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RESENHA

A CONSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS


The construction of sciences

FOUREZ, Gérard. A construção das ciências. Introdução à Filosofia e à Ética


das Ciências. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1995.

Ana Cristina Baruffi1


Helder Baruffi2

Vivemos hoje em uma sociedade do conhecimento, da tecnologia, da informação


em tempo real. Estamos permanentemente conectados. A informação se apresenta na
tela de um smartphone e as respostas se antecipam às próprias perguntas, como bem
destaca o filósofo Michel Serres.3
Mas como foi esta evolução do conhecimento? Que fatores foram preponderantes
para que chegássemos ao atual nível de conhecimento?
Especificamente na obra “A Construção das Ciências. Introdução à Filosofia e
à Ética das Ciências” são apresentadas algumas respostas importantes a esta evolução
do pensamento científico, assinalando, a partir da perspectiva filosófica, o caminho
percorrido na construção do conhecimento e elementos importantes para o avanço do
saber. Não é uma exposição linear dos avanços das ciências, nem um roteiro com passos
para orientar a elaboração de projetos ou a pesquisa científica, mas uma importante
reflexão sobre a ciência e seus códigos éticos, sobre o papel dos especialistas científicos
sobre questões éticas, sobre o problema da normalidade da ciência, sobre a verdade. Uma
questão que interessa nesta perspectiva é: “Pode a ciência dizer algo a respeito do que
‘deveria ser’, ou dos problemas éticos? (p. 34).
É evidente que a resposta não é simples. São vários os cenários possíveis e
decorrem da multiplicidade de fatores – cultura, observação, normalidade, objetividade/
subjetividade, comunidade científica, poder político, ideologia.

1  Mestre em Direito pela Unipar. Professora de Direito - graduação e pós-graduação. Pesquisadora.


2  Professor doutor titular aposentado da Universidade Federal da Grande Dourados – UFGD. Professor no curso de
Direito do Centro Universitário da Grande Dourados- UNIGRAN.
3  SERRES, Michel. Polegarzinha. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2013
Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 21 | n. 42 | Jul./Dez. 2019 241
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O problema do conhecer é preocupação histórica, presente entre os gregos, que


ora falam na “gnosis” – conhecimento, ora na “episteme” – saber, e também em todo o
pensamento medievo e moderno.
Mas afinal, o que é o conhecimento? Podemos sintetizar afirmando que
conhecimento é apropriação, é saber, é informação. Mas observa Fourez: “Falar
de objetos é sempre situar-se em um universo convencional de linguagem” (p. 48); a
objetividade decorre da cultura, enquanto “construção social da realidade”4; “Dizer que
‘alguma coisa’ é objetiva é portanto dizer que é ‘alguma coisa’ da qual se pode falar
com sentido; é situá-la em um universo comum da percepção e de comunicação, em
um universo convencional, instituído por uma cultura”(p. 48). O que se observa nestas
notas é que não há uma objetividade absoluta na investigação científica, mas decorre
esta dos interesses, linguagens, inserção do indivíduo na instituição social “[...] admitida
comunitariamente” (p. 49). Em outras palavras, a autoridade científica decorre, em grande
parte, desta adesão do pesquisador ao pensamento hegemônico da comunidade científica
ou “paradigmas de ciência”.5
Para Fourez, observar é, inicialmente, uma construção do sujeito. Assim, a
observação científica não é puramente passiva, mas supõe uma organização da visão,
seguida de uma descrição (interpretação em termos teóricos pré-adquiridos), estruturada
em função de um projeto, estruturado por um ‘sujeito’ a se confundir com a subjetividade
individual (p. 60). Destaca que os “objetos” não são dados “em si”, independentemente de
todo o contexto cultural, mas também não são meras construções subjetivas, assumindo,
uma posição crítica em relação à fonte e essência do conhecimento.6
É no embate entre as diferentes correntes de pensamento em relação à fonte, à
essência e ao método de conhecimento que o pensamento científico evolui e se transforma
no tempo. É inegável, para a evolução do pensamento científico, a contribuição dos

4  Citando BERGER, Peter; LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade: tratado de sociologia do
conhecimento. Petrópolis: vozes, 2004.
5  Cf. KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. 5. ed. São Paulo: Editora Perspectiva S.A, 1997.
6  Em relação à fonte do conhecimento, Miguel Reale assinala as seguintes correntes: Racionalista, que tem origem
na Grécia antiga, para a qual a razão é a fonte principal do conhecimento. Tudo depende da razão. A razão por si só é
capaz de conhecer a realidade. Na antiguidade, Parmênides, Sócrates, Platão e Aristóteles, realçaram o papel da razão. Na
Idade Média, teólogos, como Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino, extraem da razão boa parte da doutrina e no
séc. XVI temos alguns dos expoentes do racionalismo, como Descartes, Leibniz e Spinoza; Empirista, que sustenta ser a
experiência a origem única ou fundamental do conhecimento e este só é válido quando verificado por fatos metodicamente
observados; Criticismo, síntese do racionalismo e do empirismo. Afirma que o conhecimento envolve uma contribuição
positiva e construtora por parte do sujeito cognoscente em razão de algo que já está no espírito, anteriormente à
experiência do ponto de vista do conhecimento. Em relação à essência do conhecimento (o que se conhece), apresenta
as doutrinas pré-metafísicas: objetivismo (ênfase no objeto) e subjetivismo (ênfase no sujeito), Metafísicas: realismo
(res-coisa); Idealismo (não há objetos reais, independentes da consciência), e o fenomenalismo (fenômeno) e Teológicas
– monismo e panteísmo; dualismo e teísmo. Em relação ao método do conhecimento, destaca o conhecimento mediato,
sensível, espiritual, fenomenológico e o conhecimento imediato, dedutivo, indutivo e a analogia.

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filósofos e pensadores, como os pré-socráticos Parmênides e Pitágoras, os filósofos


gregos Sócrates, Platão e Aristóteles, os pensadores da Idade Média, Santo Agostinho
e Santo Tomás de Aquino e da idade moderna e contemporânea, René Descartes, John
Locke, Thomas Hobbes, Jean-Jacques Rousseau, David Hume, Immanuel Kant, Georg
W. E Hegel, Augusto Comte, Sigmund Freud, Ludwig Wittgestein e Martim Heidegger,
e os cientistas Galileu Galilei, Isaac Netown, Charles Darwin, Louis Pasteur, Albert
Einstein e Karl Popper, para citar alguns.
Como destaca Thomas Khun,7 o processo de conhecimento é um movimento
histórico de superação de paradigmas ou modelos de ciência no qual o velho modelo ou
paradigma de ciência, que não consegue mais responder aos novos questionamentos ou
problemas propostos pelos pesquisadores e cientistas, dá lugar a um novo modelo, ou
paradigma de ciência que passa a ser dominante e de uso pelos cientistas e pesquisadores,
passando a ser a ciência normal e de referência. Este processo identifica a evolução do
conhecimento científico e o movimento na estrutura do conhecimento científico e pode
ser identificado, hoje, em diferentes campos, como no direito do trabalho - diferentes
profissões deixaram de existir e outras novas surgiram-, explicitando que muitas
disposições contidas no conhecimento jurídico trabalhista (normas relativas ao trabalho)
não mais se aplicam, havendo necessidade de outras que possam, como paradigmas,
orientar estas novas práticas. Os aplicativos de celulares como o Uber, as fintechs e o
surgimento das criptomoedas, que estão revolucionando o sistema bancário e o sistema
financeiro mundial, ou o uso de robôs para fazer cirurgias de alta precisão, são alguns
exemplos destas transformações e avanços do conhecimento científico. Mas decorrem de
escolhas sociais e informam sobre o poder político e ético.
É esta reflexão que acompanha Fourez na obra “A Construção das ciências.
Introdução à filosofia e à ética das ciências”, e o faz sempre na perspectiva de uma
reflexão crítica e de contribuição para os enfrentamentos éticos que acompanham a
sociedade moderna a partir de uma seleta bibliografia de referência, fenomenológica e
crítica, que nos ajuda a situar o autor.
Estruturado em 13 capítulos, este apresenta uma introdução inicial na qual situa o
propósito da obra e a perspectiva filosófica adotada, justificando o “porquê” da filosofia
em um programa de ciências e a ciência e os códigos éticos. Na sequência apresenta
algumas reflexões epistemológicas sobre o método científico e a observação, a adoção e
rejeição de modelos e a comunidade científica, destacando as ambiguidades do conceito
de comunidade científica e assinala o papel da ciência como disciplina intelectual, as
rupturas epistemológicas, a interdisciplinaridade, as verdades científicas e as perspectivas

7  KHUN, Thomas. Op. cit.

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sócio históricas sobre a ciência moderna. Ao abordar ciência e ideologia, busca responder
a seguinte indagação: a ciência varia de acordo com o grupo social?
Os capítulos que se seguem buscam explicitar a distinção entre ciências
fundamentais e ciências aplicadas, ciência, poder político e ética, ciência e verdade,
ética idealista e ética histórica. Encerra com uma indagação: como articular ciência e
ética? Resposta complexa, expressa que a ciência permite analisar melhor os efeitos e a
coerência de uma determinada abordagem, mas não pode fornecer resposta a questão
ética: “queremos assumir tal decisão?” (p. 300). Ressalta que as decisões éticas e políticas
são adotadas como consequência de um debate, em que intervirão análises e apelos éticos
(p. 301), mas que, no final de tudo, é o ser humano quem decide.
O autor: Gérard Fourez, pesquisador belga e professor emérito da Universidade
de Namur (Bélgica), falecido no ano de 2018. Formado em Filosofia e em Matemática
pela Universidade de Lovaine (Bélgica), possuía doutorado em Física Teórica pela
Universidade de Maryland, além de uma formação religiosa. Assinalam Adriana Mohr
e outros que “Esta formação ao mesmo tempo acadêmico-científica e religiosa é, [...]
fundamental para compreender não só a produção acadêmica do autor, mas a origem de
seus princípios, de seus conceitos e de sua forma de ver a ciência, a ética, a educação e o
ensino de Ciências.”8

REFERÊNCIAS

BERGER, Peter; LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade: tratado de


sociologia do conhecimento. Petrópolis: vozes, 2004.
KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. 5. ed. São Paulo: Editora
Perspectiva S.A, 1997.
MOHR, Adriana; MULINARI, Guilherme; VENTURI, Tiago; CUNHA, Tiago Bonatelli da.
Um singular plural: contribuições de Gérard Fourez para a educação em ciências. Revista
Dynamis. FURB, Blumenau, v.25, n.1, p 164-179, 2019. Disponível em: http://www.furb.
br/web/upl/arquivos/201907021703250.Forez_AC.pdf.
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20.ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
SERRES, Michel. Polegarzinha. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2013

8  MOHR, Adriana; MULINARI, Guilherme; VENTURI, Tiago; CUNHA, Tiago Bonatelli da. Um singular plural:
contribuições de Gérard Fourez para a educação em ciências. Revista Dynamis. FURB, Blumenau, v.25, n.1, p 164-179,
2019. Disponível em: http://www.furb.br/web/upl/arquivos/201907021703250.Forez_AC.pdf.

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