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Reflexões sobre as bases do amor materno

Chapter · January 1991

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T. Pinheiro
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INTRODUÇÃO

A conferência de Margarete Hilferding de 11 de janeiro de 1911,


cuja discussão e análise compõe a terceira parte deste volume, além
da curiosidade que suscita, por ser o primeiro trabalho psicanalítico
realizado por uma mulher, consegue em poucas linhas reunir temas
espinhosos para a Psicanálise até os dias de hoje.
A escolha do tema e sua abordagem demonstram, de maneira
surpreendente, não só a ousadia da autora, como também o quanto
ela estava avançada para o seu tempo. Questões como a
Psicanálise e a Ordem da Natureza são colocadas de imediato,
mesmo que indiretamente; o conceito da pulsão de morte, postulado
por Freud somente em 1920, encontra-se facilmente depreendido;
assim como a tentativa de construção de uma metapsicologia da
sexualidade da grávida.
Todas essas teorias criam até o presente momento problemas
e embaraços aos teóricos da Psicanálise. São terrenos
pantanosos que nesse quase um século de existência da Teoria
Psicanalítica não deixaram de questionar a fundo o próprio corpo
teórico. É difícil que qualquer autor da atualidade ousasse reuni-los
num só texto ou exposição. Cada um deles, por si só, tem sido alvo
de estudos aprofundados apresentados sob forma de teses, livros,
pesquisas, sem que se tenha, na maioria das vezes, o tema
dominado inteiramente de maneira conclusiva.
Talvez por ingenuidade, a Dra. Hilferding tenha abraçado a
todos numa só palestra. Talvez... Mas se assim foi, tomara que
mais ingênuos apreçam, pois, lendo com atenção sua conferência,
tudo nos leva a supor que esses temas não podem ser pensados
isoladamente. Eles estão implicados uns nos outros: Psicanálise,
Amor Materno e Pulsão de Morte.
* Agradeço a Helena Vianna pela honra do convite a participar deste trabalho a
ter-me feito descobrir a Dra. Margarete Hilferding.
A Regina Herzog, que aceitou ser minha interlocutora durante toda elaboração
deste trabalho. Sua paciência e suas observações minuciosas me foram
preciosas e indispensáveis.
A Bernadette Pinheiro pela ajuda fraterna.

À primeira vista pode parecer pobre, ao leitor, a análise, a


partir do resumo de transcrição em alta,, de uma única conferência.
Entretanto, se tomarmos a afirmação de Parmênides em seu poema
Sobre a Natureza - “O ser é”- como ponto de partida do pensamento
filosófico, é fácil constatar que nem a frase era pobre nem muito
menos as filosofias que se seguiram.
Certamente Parmênides e Hilferding não têm o mesmo peso de
importância. Estou longe de propor tal coisa. Quero somente
indicar como exemplo, que, mesmo a partir de material que não é o
ideal, pois nem se trata do texto original nem da obra completa, as
idéias que se encontram nesse resumo de conferência são
extremamente ricas e uma modernidade de tal que, sem dúvida,
seria possível desdobrar essa análise numa série de questões
fundamentais para o pensamento psicanalítico atual. Foi-me
preciso, ao contrário, restringir o campo da analise em certos
tópicos. Seria repetir a audácia de Hilferding nesse trabalho abordar
todas elas minuciosamente. Decidi ater-me aos pontos que me
pareceram os mais fundamentais e originais, a saber:

1. O amor materno e a Psicanálise;


2. O bebê - objeto sexual da mãe;
3. A pulsão de morte;
4. A separação.
AMOR MATERNO E
PSICANÁLISE

A primeira questão que Margarete Hilferding coloca, nesse


texto, é se o amor materno deve ser considerado como inato ou não.
Sua postulação é decorrência da observação de mães com seus
bebês. Segundo a autora, principalmente no que tange ao primeiro
filho, nada leva a crer que o amor materno seja inato, e diante disto
ela propõe uma reflexão psicanalítica para o fato.
A novidade que a Psicanálise traz no início do século não é a
de conceber o aparato psíquico como cindido, tendo de um lado o
consciente e o pré-consciente, e de outro o inconsciente.
Certamente a noção de inconsciente é anterior a Freud; sua
genialidade foi a de traçar uma teoria do inconsciente colocando-a
no universo da inteligibilidade. ë ao pensar o inconsciente como
obedecendo a outras leis que as do pré-consciente/consciente,
estabelecendo uma outra lógica, que Freud dá um salto
epistemológico e funda a teoria psicanalítica. O salto consiste em
conceber esse inconsciente com tendo um sistema de
funcionamento diverso do consciente e do pré-consciente, mas onde
o que sem dúvida obedece a regras, sejam as de um sistema ou de
outro, são representações ( representação-coisa e representação-
palavra ). O que eqüivale a dizer que o ponto de partida da
Psicanálise é pensar o homem que fala, imenso no simbólico
assujeitado à linguagem, e portanto, fora do inconsciente - cujas
regras fundamentais a que estão sujeitas as representações são o
deslocamento e a condensação, que Lacan apontou como idênticas
às figuras sintáticas da metonímia e da metáfora - Freud se distancia
ou rompe com o pensar naturalista acerca do homem.
O homem da Psicanálise é o homem da linguagem, o homem do
simbólico, sejamos nós psicanalíticas lacanianos ou não. E é esta
revolução que Freud inaugura: pensar o homem assujeitado pela
linguagem, o que só pode ser feito fora da ordem natural. Como diz
Garcia-Roza:

Tomar a linguagem como ponto de partida significa recusar a ordem


prévia que naturalismo impõe no mundo(...) Se a psicanálise recusa a ordem natural
como um
princípio explicativo, se ela se afirma que seu ponto de partida não pode ser outro senão a
1
linguagem ...

Não é aliás, preciso ser psicanalista para aceitar pensar o


homem fora dessa ordem. Em 1985, Hector Bianciotti, romancista,
escreveu:

Nós sabemos de quem herdamos a cor dos nossos olhos, mas somos
cegos de nossos deuses e de nossos sonhos.
2
Não legarei senão sonhos; a natureza me fez desertor.

Dentro dessa perspectiva, se tomarmos o amor materno como


correlato da herança, tal qual a cor dos olhos, como fazendo parte
de uma ordem preestabelecida e predeterminada ( a Ordem da
Natureza ), então ela não interessa à Psicanálise. Não tem por que
ser objeto de sua reflexão ou estudo, mas, se ao contrário, o amor
materno faz parte do mundo dos sonhos, da linguagem, aí então ele
se encontra no campo de pensabilidade da Psicanálise. O que
Margarete Hilferding propõe é justamente isto: pensar o amor
materno como pertencente a esse aparato psíquico proposto por
Freud.

1
GARCIA-ROSA, L.A., O mal radical em Freud, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1990, pp. 17-18
2
. BIANCIOTTI, Hector, Sans les misericordes do Christ, Paris, Gallimard, 1985.
Helena Vianna, na primeira parte deste volume, nos aponta
para o fato de que, além de médica, a Dra. Hilferding tinha cursado
Filosofia na Universidade de Viena. Essa formação, que certamente
incluiu estudos sobre Marx e Nietzche, lhe deu, talvez, mais
condições e liberdade para estabelecer o pensamento que se
conduziu fora da metafísica. Certamente a delimitação do campo
psicanalítico como um pensar para além da Ordem da Natureza não
se dá sem dificuldades. O próprio Freud, em seu trajeto, fez várias
idas e vindas.
Se de um lado, no texto Três ensaios sobre a teoria da
sexualidade3, Freud exige que a sexualidade humana seja
concebida fora dos preceitos da medicina, quando afirma que não há
objeto predeterminado para a sexualidade humana, de outro, o fator
biológico será um referencial constante das suas postulações. No
prefácio que escreveu para a 3a edição, em 1914, na tentativa de
elucidar a questão, acaba por torná-la mais ambígua com a
afirmação de que a ontogênese repete de alguma maneira a
filogênese. Sem dúvida, o Freud dessa época ainda se colocava
como um pensador que atribuía à ciência exata da época o único
valor de ciência, e que as ciências humanas teriam que ser
referendadas pela ciência exata. Ora, a ciência exata tinha por base
a Ordem da Natureza; como conciliar com isso um pensamento que
se impõe fora dessa ordem?
Freud tentou em alguns momentos conciliar o inconciliável.
Não é estranho que a platéia à qual Hilferding se dirige seja tomada
de indignação. Essa indignação não se deve ao fato de ser uma
platéia composta unicamente de homens. É certo que a visão do
homem, no que se refere à mulher, está plena de equívocos que
podem levar a mulher a ocupar um estatuto inferior, mas também
podem levá-la a ser endeusada com qualificativos ou adjetivos

3
. FREUD, Sigmund, Trois essais sur la théorie de la sexualité, Paris, Idée/Gallimard, 1962.
também problemáticos. Nesse endeusamento, iremos, com certeza,
nos deparar com o amor materno.
Assim, para além dessa questão, ao propor o amor materno
com pertencendo ao âmbito psicanalítico, Margarete Hilferding sem
dúvida esbarra em uma construção imaginária que parece; talvez tão
intocável e não verbalizável quanto a proibição do incesto. Esta
última não consta, por exemplo, de nenhuma proibição religiosa.
Está implícita: não precisa ser dita, escrita ou proibida claramente.
Própria da condição humana, ela dispensa qualquer explicitação.
O amor materno, mesmo não tendo um estatuto semelhante
ao da proibição do incesto, parece ter sido encampado num
imaginário fundamental que determinaria a condição feminina: como
se a mulher, ou o que é a mulher, fosse indissociável do amor
materno. Por que é tão indispensável que o amor materno seja algo
implícito, óbvio, dado a qualquer mulher pela Ordem da Natureza?
A questão levantada por Margarete Hilferding permanece tão
difícil, atualmente, quanto no início do século. A bibliografia
psicanalítica é profusa no que diz respeito à relação mãe-bebê e, no
entanto, bastante restrita, pois tem sempre por objetivo a
constituição do sujeito. É por recorrência a esse início de como se
constitui o psiquismo humano, de como se organiza esse aparato e
de como ele vai se tornando mais e mais complexo, que se vai
buscar sustentação teórica nessa relação em que o bebê é o centro
e o alvo das atenções. Um bebê, portanto, se constitui como sujeito
através dessa relação com quem cuida dele e que servirá de
sustentação para uma hipótese teórica. Salvo essas considerações,
somente quando se trata de conta da teoria do narcisismo, o foco
então se volta para a mãe. Mas em nenhum momento é
questionado o amor materno: como se ausência de amor materno
fosse vista como puro desvio de ordem.
Essa frase pode parecer pura provocação. Pois se afirmarmos
até aqui que a Psicanálise é um pensar para fora da Ordem da
Natureza, está portanto implícito que ela seja o lugar onde o acaso é
ponto de partida fundamental. Na Ordem da Natureza, uma ordem
antecede a tudo, e o que escapa dela será desvio e não acaso. Se
o amor materno é pensado como implícito da condição feminina,
algo tão intrínseco à mulher quanto seria entendida como desvio de
ordem. O tema, assim colocado, manter-se-ia fora do campo
psicanalítico.
É interessante constatar que serão sempre as mulheres que
refletirão sobre o tema, e não necessariamente psicanalistas.
Recentemente, a escritora Marguerite Duras, em artigo publicado
pelo jornal Libértation sobre o assassinato de uma criança, cometido
provavelmente pela mãe, escreveu:

Acontece que algumas mães não amam os seus filhos nem a casa, nem são as
mulheres do lar que se esperava que fossem. Que elas não são tampouco as mulheres de
seus maridos. Que não são mães, assim como não são fiéis, e que apesar de tudo isso,
elas passam por tudo, pelo casamento, pela trepada, pela criança, pela casa, pelos
móveis,
sem que isso as tenha mudado em nada, nem mesmo por um só dia. Por que a
maternidade
não seria malvinda? Por que o advento de uma mãe pela chegada de um filho não seria
um
4
fracasso?

Esse artigo de M. Duras ficou famoso não por ter sido


magnificamente bem escrito, mas pela indignação que provocou nos
seus leitores. O caso do “Petit Gregory”encontrado morto, enforcado
com uma corda de náilon jogado no rio próximo à sua casa, vinha
abalando a sociedade francesa não só pela atrocidade do crime,
mas sobretudo pelo fato de que as investigações levaram à mãe
como a provável assassina. Os casos de maus-tratos praticados
pelos pais vêm aumentando em todo o mundo nos últimos anos e
têm sido amplamente discutidos.

4
DURAS, Marguerite, “Sublime, forcément sublime Christine V.”, in Jornal Libération , Paris, de
17.07.1985.
No artigo de M. Duras, ela não só parte do pressuposto de
que a mãe de Gregory ( Christine V. ) é realmente a assassina,
como termina com a frase título do artigo: “Sublime,
necessariamente sublime Christine V. “. Mesmo em Paris, um dos
centros mais importantes do pensamento moderno, era impensável
a defesa proposta por Marguerite Duras de que não só o amor
materno não era inato, mas também que violência da mãe contra o
filho era o único recurso de libertação dessa mãe.
Nesse sentido, o texto de 1911 de Margarete Hilferding e o
artigo de M. Duras de 1985 se assemelham, fazendo com que a
primeira não só esteja propondo uma questão que obedece com
todo rigor ao campo psicanalítico, como também aponta para a
atualidade de sua postulação. Pelo visto, a reação de indignação
provocada em 1911 em nada mudou.
A própria Margarete Hilferding constrói sua argumentação
dando todos os elementos na sua conferência, para que não seja
possível pensar o amor materno como sendo inato. Toda sua
colocação do bebê como objeto sexual da mãe desmantela a
questão do inato. Não obstante, a Dra. Hilferding parece não querer
descartar a hipótese do inato, o que torna a questão paradoxal. A
Psicanálise, enquanto corpo teórico, pode e tem que aceitar o amor
materno como não sendo inato, para que o tema tenha possibilidade
de pertencer ao seu campo. A ausência de artigos sobre o assunto
faz pensar que os teóricos da Psicanálise têm dificuldade de
conceber o tema, pois essa aceitação implica, teoricamente, a
delimitação do campo psicanalítico como desvinculado do
pensamento da Ordem da Natureza; e, portanto, também em
desvincular a mulher da maternidade.
Não pretendo dizer, com isso, que não exista o registro da
Ordem da Natureza - isso seria negar todas as ciências que nela
estão embasadas, na qual a própria medicina se encontra.
A questão do inato , ou seja, de instintos vitais, pertence à
medicina. E a medicina terá visão desse corpo como um corpo da
Natureza, obedecendo à Ordem da Natureza; e, sobretudo, é ela
que dispõe de instrumental teórico para dar conta dessa concepção.
Ora, a Psicanálise, ao pensar o corpo, como demonstrou no seu
último livro Gracia-Roza, a partir de outros pressupostos, de um
outro lugar e dispondo de instrumental teórico, terá necessariamente
que desvinculá-lo do registro da Natureza.
O corpo pulsional, o corpo erógeno da Psicanálise, não tem
nada em comum com o corpo da medicina, pois é um corpo
construído a partir da linguagem. Ao tentar misturar os dois campos
teóricos, corre-se o risco de fazer uma medicina última categoria ou
uma Psicanálise de botequim. Essa, aliás, tem sido toda a
dificuldade da construção teórica da psicossomática, ou seja, o amor
materno enquanto inato é compatível com o campo da medicina. No
campo psicoanalítico, o amor materno não pode ser pensado como
algo preexistente a toda mulher.
Margarete Hilferding dá todos os passos para chegar a essa
conclusão; no entanto, falta-lhe o passo decisivo que, em 1911, não
tinha ainda condições de dar. A Psicanálise dessa época está ainda
nos seus primeiros passos. Freud tinha recém-publicado uma
pequena parte de sua produção teórica, e esse passo de ousar
pensar a Psicanálise fora da Ordem da Natureza ainda estava longe
de ser realizado. Não obstante, Freud já colocava, nessa época,
várias questões que indubitavelmente terminariam por promover a
ruptura.
O BEBÊ-
OBJETO SEXUAL DA MÃE.

Outro aspecto, talvez o mais relevante da exposição de


Margarete Hilferding, é a questão da sexualidade da grávida, quando
se trata da relação mãe-bebê.
Logo de início, verifica-se a distinção feita pela conferencista.
Não se trata de estabelecer a sexualidade feminina via maternidade,
mas de estabelecer um metapsicologia da sexualidade da mulher
grávida. Esta seria estimulada sexualmente pelo feto, e o parto seria
a perda dessa excitação, vivida durante a gestação.
Margarete Hilferding em nenhum momento se remete á idéia
de uma grávida na plenitude narcísica, como normalmente, dentro
da Psicanálise, é enfocada a questão da gravidez. O terreno do seu
trabalho será a sexualidade no seu sentido mais estrito e concreto,
ou seja, vinculado diretamente a uma sensação corporal. É essa
sexualidade que determinará o amor materno. Suas frases são
inequívocas: “Supõe-se que os primeiros sinais de amor materno
surjam na época dos primeiros movimentos do feto. Parece que
esses movimentos provocam também certa sensação de prazer, o
que poderia ser considerado como índice dessas relações sexuais”.
O amor materno inexistente após o parto pode aparecer com o
contato físico entre a mãe e o bebê. Essa proposta indica a
abordagem de Margarete: se não foi possível a sensação de prazer
durante a gestação, caso seja proporcionada após o parto ( através
do contato físico ), o amor materno estará garantido.
O suporte do amor materno é, portanto, a relação sexual entre
a mãe e o bebê. Aliás, é após o parto que esse bebê se constitui
como “objeto sexual natural para a mãe”.
Apesar de a frase ser curta: “a criança representa um objeto
sexual natural para a mãe”, ela comporta uma série de questões que
tentarei abordar separadamente.
É possível para a Psicanálise conceber um objeto sexual
natural para o ser humano?
Freud, ao longo da sua obra, não fez outra coisa senão provar
que a escolha de um objeto sexual para o ser humano nada tem de
predeterminado. Trata-se do obscuro objeto do desejo. E este pode
ser qualquer coisa: um ser humano do mesmo sexo ou do sexo
oposto, uma peça do vestuário, uma forma, um investimento
intelectual. O estatuto deles será igual para o psiquismo. Foi a
partir dessa descoberta que Freud se viu obrigado a pensar o
homem na contra-mão da natureza. Entretanto, através do retorno a
um início de constituição do sujeito, chegamos sempre à postulação
do edipiano ( eixo de estruturação do aparato psíquico freudiano ) e,
nele, a mãe como primeiro objeto sexual. Portanto, se existe algum
objeto “natural”, este será o primeiro objeto - a mãe, ou quem se
ocupa do bebê. É esse objeto proibido pela interdição do incesto
que torna obrigatória a estruturação complexa do aparato psíquico.
A mãe, como objeto sexual privilegiado do bebê, não coloca
problemas epistemológicos à Psicanálise. Ao contrário, dar-lhe-á
todo o suporte teórico necessário. É essa mãe que marcará
sexualmente o corpo do bebê, significando-o, impondo-lhe um
verdadeiro loteamento de zonas erógenas, investindo, tocando,
afagando, numa marcação banhada pelo simbólico, pela linguagem
da mãe, provocando no bebê o diferencial prazer / desprazer. Assim
esse bebê nasce e entra no mundo sob a égide do simbólico da
mãe, com um corpo marcado por adulto que o alimenta, toca-o e o
mantém vivo.
Do ponto de vista do bebê, a explicação parece, portanto,
relativamente fácil. Ora, o que Margarete Hilferding propõe é bem
mais complicado, pois ela coloca a questão pelo seu lado oposto. É
para a mãe que ela pleiteia um objeto sexual natural. É do lugar do
adulto que já dispõe de um de um aparato psíquico, mal ou bem-
estruturado, que ela lança a idéia de um objeto sexual, natural, um
objeto óbvio do desejo.
Se tomarmos a questão pela ótica da gravidez, com trata a
conferencista, talvez o problema se torne um pouco mais simples. A
excitação de que M. Hilferding fala provém de um ser que ainda não
tem o caráter de existente na realidade, de um ser enquanto
separado da mãe. Está na barriga dela produzindo mudanças no
seu corpo, sem que ela tenha qualquer poder ou controle sobre elas.
A excitação se dá à revelia da mãe - no caso exemplificado na
conferência - quando o feto se mexe. O parceiro sexual, nesse
caso, não tem o estatuto de sujeito, não tem cara, jeito e não fala. À
mãe é dado o direito a todas as fantasias com relação ao seu
parceiro. Esse parceiro é engendrado por ela, e está, aliás, o tempo
todo dentro dela.
A abordagem narcísica, entretanto, parece inevitável. O poder
de gerar vida dentro de si mesma, essa plenitude de ser dois num só
corpo é, sem dúvida, para a mulher o ápice de sua vivência
narcísica. Estão aí as mulheres grávidas, com ar de felicidade
saindo pelos poros, sentidos-se plenas, poderosas, para nos lembrar
permanentemente que ali, naquele momento daquela mulher, algo
muito particular e prazeroso está sendo vivido por ela.
Mas essa plenitude e esse prazer podem ser imputados
somente à questão narcísica? A abordagem de M. Hilferding propõe
colocar o foco na excitação no corpo da mãe, originada pelos
movimentos fetais. Certamente essa abordagem é própria do
contexto psicanalítico de sua época. Os primórdios da Psicanálise
estavam ainda bastante vinculados à concretude dos fatos ou das
sensações corporais. Dos fatos no caso da etiologia da histeria,
pela qual Freud acreditava que o trauma sexual tinha por base uma
sedução efetivamente ocorrida na infância dessas pacientes. Havia,
portanto, a necessidade de que um fato real, datado, tivesse existido
na história de cada histérica. Foram necessários alguns anos para
que Freud revisse esse pressuposto, passando a estabelecer para o
psiquismo o mesmo estatuto, seja para o evento real, seja para a
fantasia. Para a realidade psíquica ambos são idênticos. Esse salto
teórico foi de extrema importância para a Psicanálise, dando ao
psiquismo a autonomia que lhe faltava, isto é, de serem as
representações, que lá se encontravam, as formadoras do que se
chama realidade psíquica, não sendo, com isso, possível separar
mundo interno de mundo externo. A realidade do ser humano nada
mais é do que aquilo que se constitui com sendo as representações
de cada um.
Se de um lado, portanto, o contexto psicanalítico estava se
libertando da idéia de que o trauma histérico estava ligado a fatos
efetivamente ocorridos, de outro, o corpo pulsional com suas
funções e sensações corporais se encontrava necessariamente na
origem do prazer sexual. Nos Três ensaios sobre a teoria da
sexualidade (1905), como já mencionamos, está o ponto de partida
de Freud; ou melhor dizendo, o diferencial prazer/desprazer, que
implanta a ordem sexual no aparato psíquico, teria por substrato um
sensação corporal. Se esse corpo não é o corpo biológico, no
sentido de um corpo da Ordem da Natureza, é, contudo, uma
concretude cujas sensações imporão o diferencial prazer/desprazer.
Se o reconhecimento da realidade psíquica do fantasma, assim
como a noção de corpo erógeno e representação corporal, permitiu
à Psicanálise ganhos teóricos inestimáveis, as questões formuladas
nas primeiras décadas da elaboração do seu corpo de estarem no
primeiro plano, não podem, contudo, ser excluídas das questões
psicanalíticas.
Nesse sentido, as observações de Hilferding e sua análise vão
propor uma metapsicologia da grávida do primeiro filho, através de
não só da transformação real nesse corpo, mas também da
sensação corporal ou excitação sexual, segundo ela de fato novas,
desconhecidas até então, como fonte prazerosas. Na verdade, o
enfoque que a conferencista nos propõe é de pensar nessa mulher
grávida, pela primeira vez, como alguém que é assaltado por prazer
sexual, por uma excitação sobre a qual não dispõe de nenhum
controle, e que não pode interromper mesmo que queira.
O feto que excita a mãe o faz à revelia, de forma silenciosa e
quase oculta, pelo menos para os outros que fazem parte do seu
meio ambiente. Há entre eles (feto e mãe) algo que se passa quase
clandestinamente, sem mediação. A grávida, segundo Hilferding, é
excitada permanentemente sem que ninguém saiba ou veja; nada
externo a ela, seu feto funciona como mediador. Algo muito próximo
do conceito da plenitude ou de um estado permanente de gozo
parece ser apontado pela autora. Mais uma vez há reversão de
enfoques e lugares. Essa plenitude pensada pela Psicanálise é
geralmente referida à situação uterina, a um antes de nascer, a um
estado sem necessidades, muito menos desejo. Ora, Hilferding vai
dar aqui uma equivalência para essa grávida; é ela, no caso, que
vivência a plenitude e não apenas o seu feto, como se nessa relação
mãe-feto nada os diferenciasse, os separasse, nada apontasse para
a falta. A abordagem de Hilferding é, nesse sentido, bem mais
ampla e profunda que todo o corolário sobre o narcisismo, que
serviu até então como único, e se pretendeu exaustivo, para dar
conta do prazer da maternidade. O ar prazeroso ou a “felicidade”da
grávida e sua tão decantada onipotência parece ganhar, nessa
conferência, precisão e argumentação bem mais contundentes. Se
a teoria do narcisismo satisfazia pela questão efetiva que o feto
provoca na mãe, e portanto nesse corpo grávido, entendido na sua
concretude de novas sensações, que Hilferding postula e enriquece
qualquer teoria abordada até hoje sobre a mulher grávida.
No enfoque da completude narcísica da grávida até então
abordada, uma menção clara era feita de que, pelo menos
temporariamente, a mulher grávida se veria afastada da sua
condição de ser castrada. As explicações para tal se baseavam na
imagem de uma barriga entendida, no caso, como análoga ao pênis.
Essa teoria teria sido um caminho fácil para Hilferding. As
menções à castração, na época, pareciam vinculadas quase
estritamente à concretude de um pênis ou à ausência dele. A noção
de falta, na obra freudiana, pode ser tomada, até certa época, como
falta real ou não de um pênis. Ora, hoje o conceito de castração, a
partir da própria evolução da obra freudiana, ganhou abordagem
bem mais ampla e abstrata. A falta, ou o conhecimento da falta, é o
que determina a constituição do sujeito, e para isso trocou-se
inclusive a nomenclatura: não se trata de ter ou não pênis, mas o
falo. Por outro lado, a castração, resultante do complexo de Édipo,
tem por origem a própria proibição do incesto. Algo portanto que
transcende o indivíduo, marca-o como sujeito, impondo a inevitável
vivência de castração, tenha ele pênis ou não. Logo a colocação de
Hilferding nos leva para algo quase delicado demais.
Apesar da vivência transgressora da proibição do incesto,
vivida por essa mãe grávida, e, mais ainda, dessa proibição que a
constitui como sujeito e que, portanto, ela traz consigo como
marcação psíquica ao “burlar” a lei, nenhuma mediação social virá
em seu socorro. Ao contrário, na cultura, a imagem da mulher
grávida está geralmente ligada à imagem da mulher santa, da
mulher dessexualizada, e o amor materno como pano de fundo
induzindo à idéia de que se trata de um ser abnegado.
O desdobramento do raciocínio da conferencista é lógico.
Esse amor materno exigirá, para manter-se ou para surgir, que essa
relação tenha continuidade, que a parceria sexual se prolongue após
o parto.
Uma das novidades que Freud nos apresenta no seu texto Três
ensaios sobre a sexualidade foi a de introduzir a noção da sedução
materna sobre o corpo do bebê. É essa relação corpo a corpo, que
os cuidados de todo bebê exigem, que determinará de alguma
maneira o loteamento dessa zonas erógenas. Já em Sobre o
narcisismo - uma introdução (1914) o investimento dos pais no filho
é assim descrito: “O amor dos pais, tão tocante e, no fundo tão
infantil, nada mais é que o narcisismo deles que acaba de renascer
e que, apesar da sua metamorfose em amor de objeto, manifesta
sem deixar dúvida a sua antiga natureza”.5
Ainda nesse mesmo contexto, ao se referir às mulheres que se
tornam mães, encontramos: “A criança que elas põe no mundo é um
parte de seu próprio corpo, que se apresenta a elas como objeto
estrangeiro, no qual elas podem agora, partindo do narcisismo,
devotar todo o amor”.6
A Psicanálise nos seus últimos anos, através de alguns
teóricos, procurou estabelecer esse vínculo sexual que a mãe
imprime no bebê, por conta do seu narcisismo. Autores como
Ferenczi, ao longo de sua obra, apontarão este aspecto; Winnicott
com sua postulação de uma “preocupação materna primária”;
Laplanche com sua “teoria da sedução generalizada”, e Lacan ao
recolocar o complexo de Édipo vinculado ao estádio do espelho.
Hilferding recoloca a questão sob novo ângulo. Segundo ela, a
grávida teria prazer genital com o feto, ao qual o parto porá fim.
Essa colocação impõe um pensamento absolutamente novo e
radical, no que tange às depressões pós-parto, até então encaradas,
exclusivamente, no seu aspecto de perda narcísica. Haveria, nesse
caso, perda de uma excitação da gravidez, a perda da ilusão de
completude e de gozo sem mediação, só pensável até aí na questão
que tange a perversão.
O segundo ponto importante a ser levantado é a elaboração
teórica que leva a enfocar o primeiro filho, a primeira gravidez. A
metapsicologia, proposta pela autora, enfatiza essa primeira

5
FREUD, Sigmund, “Pour introduire le narcissisme”in La vie sexuelle, Paris, PUF,1969, p. 96
6
FREUD, Sigmund, op. cit., pag. 95
experiência de maternidade. A diferença da relação da mãe com o
primeiro filho e os demais é dedutível pela simples observação. O
que é novo é a explicação proposta na conferência, que abarca o
amor materno via sexualidade da grávida, e também o ódio
provocado pelo parto, o que aponta, necessariamente, para o
próximo capítulo, que analisará o conceito de pulsão de morte.

A PULSÃO DE MORTE
Aqueles que preferem os contos de fadas se fazem de surdos quando se fala
da tendência do homem à maldade, à agressão, à destruição e, portanto, à crueldade

7
Freud

É somente no seu livro Mal-estar na civilização que Freud


afirma a autonomia da pulsão de morte. Esse conceito, apresentado
em “Além do princípio do prazer”8, precisou de dez anos para ganhar
clareza e autonomia. O caminho não foi fácil, mas o resultado foi
contundente: “Reconheço que sadismo e masoquismo nós sempre
vimos manifestações com fortes pinceladas de erotismo, de pulsão
de destruição voltada para o exterior ou para o interior; mas não
compreendo mais que possamos continuar cegos à ubigüidade da
agressão e da destruição não erotizadas, e negligenciar de lhes
acordar o lugar que merecem na interpretação dos fenômenos da
vida” .9
O conceito de pulsão de morte é, talvez, a maior ousadia da
obra freudiana. Bem maior que a postulação do inconsciente ou da
teoria da sexualidade. Ao afirmar a pura maldade, Freud ousa
diante do que todos até então haviam recusado. A ética, desde
Aristóteles, sempre foi a ética do Bem; a sua vertente oposta não era
postulada. A inovação desse conceito não se restringe a dar
autonomia à destruição, mas obriga a Psicanálise a se colocar sob
premissas fundamentais: o pensamento do acaso, da pulsão como
pertencendo ao campo psicanalítico e separada do aparato psíquico
ordenado; caos pulsional que só pode ser pensado através da
pulsão de morte, pois a pulsão de vida ou sexual já é, como o
próprio termo sexual designa, pensado dentro da ordem. Nas
várias definições dadas por Freud da pulsão sexual, esta tem

7
FREUD, Sigmund, Malaise dans la civilisation, Paris, PUF, 1971, p. 75.
8
FREUD, Sigmund, “Au’delá du principle de plaisir”, in Essais de Psychanalyse, Paris, PBP, 1981.
9
FREUD, Sigmund, Malaise dans la civilisation, Paris, PUF, 1971, p.75.
vocação aglutinadora e a sexualidade é o modo ordenado do
psíquico. A pulsão, por sua vez, não está dentro do aparato
psíquico. Ela está, portanto, para além da ordem, para além do
princípio do prazer, é pura dispersão. Ora a definição de pulsão de
morte é justamente a disjunção, ela é a pulsão por excelência.
Pulsão sexual é, necessariamente, representante de pulsão. Pulsão
e pulsão de morte são nesse sentido, idênticas, e pulsão sexual é o
representante da pulsão inserido na ordem do sexual.10
É importante ressaltar que, toda vez que falamos em ordem do
aparato psíquico, não estamos falando da Ordem da Natureza. Esta
pressupõe um ordem preexistente. A ordem que nos referimos é
uma ordem a posteriori, uma ordenação a partir do acaso.
Isso posto, o que se ordena são representações investidas
dentro do aparato psíquico, e o que está para além disso é a pulsão.
Pulsão de morte, com sua força disjuntora, é capaz de produzir o
novo, ou a mudança nesse aparato, cujo movimento do
representante pulsional só faz unir, juntar, aglutinar. A pulsão de
morte rompe com a ordem.
O movimento libidinal de tudo juntar, tudo unir, se fosse único,
seria enlouquecedor. A força sexual tem direção única, só sabe se
ligar. É a pulsão de morte que interrompe esse movimento. Assim,
o ser humanos só é capaz de diferenciar, de aceder à alteridade, de
projetar-se no futuro, numa ação conjunta de disjunção e união.11 O
psiquismo ordenado pela sexualidade seria como a soma de laranja
com banana, gato e cachorro. Só não o é porque o simbólico exige,
para se constituir como tal, a ação disjuntora da pulsão de morte.

10
O tema foi amplamente desenvolvido por Gracia-Roza, no seu livro: O mal radical em Freud, Rio de
Janeiro, Jorge Zahar, 1990.
11
No texto “A negativa”, Sigmund Freud concebe o simbólico como ação conjunta de vida e morte.
Ferenczi no seu texto “Le problème de l’affirmation du déplaisir”in Psychanalyse 3, Paris, Payot, 1974,
faz uma análise detalhada da questão simbólica através da ação de desintrincação pulsional.
É dentro desta perspectiva que M. Hilferding pretende enfocar
a agressividade da mãe. A agressividade de que se fala está muito
mais para a postulação da pulsão de morte, cujo conceito será
formulado no final da obra de Freud ( Mal estar na civilização ), do
que para o binômio sadismo-masoquismo, referido nos Três ensaios
sobre a teoria da sexualidade. Nesse texto de 1905, a agressividade
é um ingrediente da libido, uma forma erotizada de prazer. O que
Hilferding propõe é algo diferente.
Segundo ela, diante da falta de prazer, ou melhor, da ausência
e perda de prazer sexual que o feto proporcionava à mãe, o que
surge é a destruição, e a agressividade ganha lugar, direcionada a
essa criança que acaba de nascer. Em nenhum momento é
questão, para Hilferding, de desejo sádico ou do estabelecimento de
uma relação sadomasoquista. Não se trata, para a mãe, de passar
a ter prazer através dos maus-tratos que vier praticar contra o filho.
Independente das considerações que correlacionam a
agressividade à sexualidade da grávida, Hilferding propõe a análise
de que o amor materno não é inato, porque observações atestam
que essas mães são, em princípio, hostis ao filho que acaba de
nascer e capazes de abandoná-los e maltratá-los.
Nesse ponto é que se deu a discussão com os membros da
Sociedade Psicanalítica de Viena, onde Margarete Hilferding
lamenta que o debate não tenha tomado o ruma que ela esperava.
Acha que foi mal compreendida, pois seu interesse era o de discutir
o fator fisiológico como algo determinante, após a hostilidade inicial,
para que o amor materno pudesse passar a existir. O físico viria
após a reação psíquica, e teria o poder de modificá-la.
Essa colocação de M. Hilderfing levanta algumas hipóteses. A
primeira delas diz respeito ao estatuto do fisiológico. Sua colocação
é no sentido de entender o amor materno como pertencendo ao
mesmo registro dos instintos vitais como fome etc., e, tendo o
psíquico uma primazia sobre esse corpo, assim como acontece com
os anoréxicos, a ação instintiva seria anulada.
Essa pode ser uma das interpretações possíveis, mas que não
deixa de apresentar problemas. Como colocar no mesmo nível a
sensação de fome - toda vez que o organismo necessita de alimento
- e o amor materno? A própria palavra amor, nesse caso, cria
problemas.
Certos animais, fêmeas ou machos, dependendo da espécie,
se encarregam de alimentar seus filhotes e protegê-los até que até
que eles tenham condições de fazê-lo por si mesmos. É fato
também que alguns animais devoram seus filhotes - os
encarregados de jardins zoológicos que o digam. Mas no primeiro
caso, podemos chamar esse cuidado de amor materno ou paterno?
Nesse caso, a Dra. Hilferding deveria ter usado o termo “instinto
materno”. Por que não o fez?
A segunda hipótese, que pode parecer mais absurda, seria a
de conceber o fisiológico como back-up psíquico, e vice versa.
De qualquer forma, a questão colocada por Hilferding diz
respeito ao contexto histórico da Psicanálise, que tem que ser
levado em consideração. Seis anos antes de sua conferência, Freud
havia publicado os Três Ensaios sobre a teoria da sexualidade, onde
o conceito de pulsão é entendido como sendo apoiado no instinto ( a
noção de apoio é polêmica até hoje, e pode ser interpretada como a
grande preocupação de Freud, na época, em referendar a sua teoria
psicanalítica na biologia - uma ciência exata ). A idéia de Freud,
nesse momento, é que o instinto pode serviria de apoio para a
pulsão: o instinto visando a satisfação, a pulsão, o prazer. Ficava,
assim, resolvida uma questão fundamental para a teoria freudiana: a
da introdução no psiquismo do diferencial prazer/desprazer. Nesse
sentido, a pulsão tomaria carona no instinto, e só então se
diferenciaria como psíquica. Ora, a noção de apoio só tem utilidade
na Psicanálise para explicar a instauração da subjetividade, para dar
conta do advento do psiquismo. Fora dessa ótica, ela não tem
qualquer razão de ser, ou seja, não há como pensar na noção de
apoio, no aparato psíquico adulto, já estruturado, como seria o caso
da mulher grávida. Se era essa a proposta de Hilferding, ela não
tem nenhum fundamento nem qualquer respaldo teórico, nem no
contexto de 1911.
Outra discordância com relação ao debatedores, inclusive com
o próprio Freud, se refere à análise da hostilidade. Segundo a
conferencista, os argumentos levantados não são suficientes a
Freud para dar conta dos fenômenos de agressão e destruição que
fazem parte da vida.
O aparte final da oradora mostra claramente que sua intenção
era encaminhar a discussão do amor materno para o campo da
Psicanálise e que a agressividade da qual falava, os elementos da
sexualidade ou da ordem do aparato psíquico eram insuficientes.
Parecia ela esperar que seu interlocutor fosse Freud que escreveu
quase vinte anos após:
O meu amor é, para mim, algo infinitamente precioso que não tenho o direito de
desperdiçar sem prestar contas... Se alguém é desconhecido, não me atrai por
nenhuma qualidade pessoal, me é bem difícil ter por ele qualquer afeto... Para o
homem, o próximo não é somente um auxiliar e um objeto sexual, mas também um
objeto de tentação.

O homem, de fato, é tentado a satisfazer sua necessidade de


agressão às expensas do seu próximo, de explorar seu trabalho sem
indenizá-lo, de utilizá-lo sexualmente sem o seu consentimento, de
se apropriar dos seus bens, de humilhá-lo, de lhe infringir
sofrimentos, martirizá-lo e matá-lo.12
A hipótese de Federn de que essas mães seriam degeneradas
é imediatamente também descartada pela conferencista. Como se
em 1911 Hilferding não soubesse o que fazer, nem onde colocar a
agressividade de que fala: nem no psíquico argumentado por Freud,

12
FREUD, Sigmund, Malaise dans la civilisation, Paris, PUF, 1971, pp. 62 e 64.
nem na argumentação médica de Federn. Nem psíquica, nem física,
a agressividade de que Margarete Hilferding quis tratar parece não
encontrar apoio teórico que lhe satisfaça em parte alguma. Ela
parece ter o dado na mão sem possuir conceitos que dêem conta
dos fatos por ela observados: a violência sobre o que ela mesma
postulou, como sendo objeto sexual natural da mãe, permanece
para ela enigmática.

A SEPARAÇÃO

Em Análise com fim e análise sem fim, texto considerado por


muitos como seu testamento teórico, Freud termina com a
expressão “recusa do feminino”, não menos enigmática que a
violência de certas mães que Hilferding nos relata na sua
conferência.
Temos freqüentemente a impressão, com o desejo do pênis e o protesto viril, de
que penetramos através de todas as estratificações psicológicas para atingir um
“rochedo “ e que chegamos com isso ao fim de nossa tarefa. Deve ser assim, pois
para o psíquico a biologia desempenha realmente o papel de um “rochedo”
subjacente.
A recusa do feminino não pode ser outra coisa senão um fato biológico, um pedaço
deste grande enigma da sexualidade. Será difícil dizer se e quando nós
13
chegaremos, no processo analítico, a dominar inteiramente este fator.

No seu artigo “un mot primitif: la chimère du sexe”, N. Zaltzman


faz uma análise dos casos que ela denomina de pacientes cyborg e,
para tal, propõe examinar o conceito de recusa do feminino
mencionado por Freud. Zaltzman traça um cominho bastante rico e
original, no qual será questão o corpo pulsional e sua relação com o
aparato psíquico, o sexo e o sexual como aquilo que, ao mesmo

13
FREUD, Sigmund, L’analyse finie e l’analyse infinie, Paris, La Bibliothèque Freudienne, p. 47
tempo, move o aparato e contra o qual ele se organiza. Desse
artigo, o que interessa de perto a este trajeto que propus fazer, a
partir da conferência de Hilferding, é a maneira como o parto é
abordado.

A linha de demarcação entre o corpo libidiano materno e o corpo em vida, que


14
se separou fisicamente, é, num tempo mítico, mentalmente impreciso para os dois.

O parto é portanto esse momento particular, capitular tanto


para o bebê quanto para a mãe. Zaltzman prossegue assim:

Para além da angústia de castração fálica, da angústia do sexo feminino como


lugar de separação (...) Uma fascinação horrorosa acompanha a evocação deste
momento particular em que uma criança começa a emergir das pregas de carne
materna. Evocação quase insuportável, mesmo se ela acompanha também de
júbilo, deste momento em dois corpos se disjuntam um do outro se pertencendo tão
carnalmente um ao outro (...) Tempo em que coexiste uma unidade já rompida, uma
separação não realizada. A fórmula não varia nunca de uma análise para outra: “Eu
me recuso a me representar que saí daí, que tomei forma e vida deste sexo, que ele
me manteve, me conteve, me reteve, estreitou todo o meu corpo. Se renuncio a
qualquer vida sexual, posso escapar indefinidamente a esta representação e a esta
angústia”. Recusa do feminino aparece como colocação de uma barreira mental que
marca com proibição de representação a existência mesmo do sexo-separação e,
por concominante retroativo, a representação sexual, como testemunham a experiência
orgásmica de certas parturientes ou certas dificuldades de parto. O interdito do
incesto é uma versão redobrada desta barreira mental original, que, como o evento
do nascimento, adquire retroativamente toda a carga de uma relação sexual incestuosa,
15
já realizada, qualquer que seja o sexo da criança.

Se tomarmos a conferência de Hilferding a partir desse texto


talvez possamos compreender melhor o enigma da hostilidade da
mãe com relação ao primeiro filho, além das luzes que o conceito de
pulsão de morte já pode nos proporcionar.

14
ZALTZMAN, Nathalie, “Un mot primitif: la chimère du sexe”, in Revista Topique, n° 20, Paris, 1978,
p. 23.
15
ZALTZMAN, Nathalie, op.cit., p.33
Essa primeira gravidez, como já vimos, inesperadamente
propicia excitações sexuais. No parto do primeiro filho se processa
a mesma relação de parceria que tivera com a mãe. Agora o
parceiro é o filho, o que faz com que a mulher, que se torna mãe
pela primeira vez, mergulhe no universo que a obrigou a estruturar
sua subjetividade. Um sexo-separação que ao mesmo tempo insiste
em se manifestar e contra o qual toda a organização psíquica se fez,
tendo, muitas vezes, pago um preço muito alto para se estruturar
como sujeito.
É esse mergulho peculiar que a coloca num lugar menos
peculiar, de onde é remetida, no parto a vivenciar, em seu próprio
sexo, essa relação com o sexo impensável da mãe, da qual foi
protagonista ao nascer, o impensável da própria relação incestuosa
com o filho que está nascendo. Se o texto de Zaltzman nos obriga a
pensar que o interdito do incesto foi violado de alguma maneira no
próprio parto, veremos que a mulher, ao parir, repete essa vivência
através do próprio sexo. E, como diz Zaltzman, “se lá onde há sexo
há separação e onde há separação há sexo”, talvez na negação da
outra parte que se separa, talvez então não haja sexo. Nesse
sentido, os dois textos se entrecruzam. Que metapsicologia
particular é essa, nessa primeira experiência de gravidez e de parto?
O impensável não é o sexo castrado da mulher: o impensável é
esse sexo que implica separação, contra o qual e pelo qual o
humano se funda. Mas será certamente na vivência da primeira
gravidez, o impensável da separação, através do próprio sexo. Na
gravidez, o impensável torna-se assim um escândalo, escancarando
esse sexo da mulher que engendra, que se excita com o feto e que,
ao parir, tem através dele uma relação sexual que a remete ao
impensável da relação sexual do seu próprio parto. Sexo
impensável do qual todos os seres humanos emanam.
Que o primeiro filho suscite emoções violentas de ódio e
paixão, é o mínimo a que podemos chegar. A dificuldade de
reconhecer enquanto filho, a criança que acaba de nascer parece,
após todo esse percurso, quase óbvia, pois o que está em jogo
nessa gravidez primeira é a própria estrutura psíquica da mulher que
se torna mãe.
A mulher, como diz Adélia Prado16, tem que ser desdobrável.
A mulher que se torna mãe precisa de mais aptidão que as outras,
no seu desdobramento, o que nem sempre é possível.
Hilferding nessa conferência aponta novos cominhos para se
pensar o amor materno, as relações mãe-filho/filha. Fornece
algumas pistas para que se possa estabelecer a metapsicologia da
mulher grávida, e sem dúvida essa metapsicologia terá
necessariamente que passar por conceitos como: corpo pulsional,
pulsão de morte e recusa do feminino. Conceitos que em 1911
estavam longe de ser formulados e pelo menos dois deles - corpo
pulsional e recusa do feminino - ainda são obscuros na teoria
psicanalítica.

16
PRADO, Adélia, Bagagem, Rio de Janeiro, Nova Fronteira.
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