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T. Pinheiro
Federal University of Rio de Janeiro
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All content following this page was uploaded by T. Pinheiro on 12 March 2016.
Nós sabemos de quem herdamos a cor dos nossos olhos, mas somos
cegos de nossos deuses e de nossos sonhos.
2
Não legarei senão sonhos; a natureza me fez desertor.
1
GARCIA-ROSA, L.A., O mal radical em Freud, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1990, pp. 17-18
2
. BIANCIOTTI, Hector, Sans les misericordes do Christ, Paris, Gallimard, 1985.
Helena Vianna, na primeira parte deste volume, nos aponta
para o fato de que, além de médica, a Dra. Hilferding tinha cursado
Filosofia na Universidade de Viena. Essa formação, que certamente
incluiu estudos sobre Marx e Nietzche, lhe deu, talvez, mais
condições e liberdade para estabelecer o pensamento que se
conduziu fora da metafísica. Certamente a delimitação do campo
psicanalítico como um pensar para além da Ordem da Natureza não
se dá sem dificuldades. O próprio Freud, em seu trajeto, fez várias
idas e vindas.
Se de um lado, no texto Três ensaios sobre a teoria da
sexualidade3, Freud exige que a sexualidade humana seja
concebida fora dos preceitos da medicina, quando afirma que não há
objeto predeterminado para a sexualidade humana, de outro, o fator
biológico será um referencial constante das suas postulações. No
prefácio que escreveu para a 3a edição, em 1914, na tentativa de
elucidar a questão, acaba por torná-la mais ambígua com a
afirmação de que a ontogênese repete de alguma maneira a
filogênese. Sem dúvida, o Freud dessa época ainda se colocava
como um pensador que atribuía à ciência exata da época o único
valor de ciência, e que as ciências humanas teriam que ser
referendadas pela ciência exata. Ora, a ciência exata tinha por base
a Ordem da Natureza; como conciliar com isso um pensamento que
se impõe fora dessa ordem?
Freud tentou em alguns momentos conciliar o inconciliável.
Não é estranho que a platéia à qual Hilferding se dirige seja tomada
de indignação. Essa indignação não se deve ao fato de ser uma
platéia composta unicamente de homens. É certo que a visão do
homem, no que se refere à mulher, está plena de equívocos que
podem levar a mulher a ocupar um estatuto inferior, mas também
podem levá-la a ser endeusada com qualificativos ou adjetivos
3
. FREUD, Sigmund, Trois essais sur la théorie de la sexualité, Paris, Idée/Gallimard, 1962.
também problemáticos. Nesse endeusamento, iremos, com certeza,
nos deparar com o amor materno.
Assim, para além dessa questão, ao propor o amor materno
com pertencendo ao âmbito psicanalítico, Margarete Hilferding sem
dúvida esbarra em uma construção imaginária que parece; talvez tão
intocável e não verbalizável quanto a proibição do incesto. Esta
última não consta, por exemplo, de nenhuma proibição religiosa.
Está implícita: não precisa ser dita, escrita ou proibida claramente.
Própria da condição humana, ela dispensa qualquer explicitação.
O amor materno, mesmo não tendo um estatuto semelhante
ao da proibição do incesto, parece ter sido encampado num
imaginário fundamental que determinaria a condição feminina: como
se a mulher, ou o que é a mulher, fosse indissociável do amor
materno. Por que é tão indispensável que o amor materno seja algo
implícito, óbvio, dado a qualquer mulher pela Ordem da Natureza?
A questão levantada por Margarete Hilferding permanece tão
difícil, atualmente, quanto no início do século. A bibliografia
psicanalítica é profusa no que diz respeito à relação mãe-bebê e, no
entanto, bastante restrita, pois tem sempre por objetivo a
constituição do sujeito. É por recorrência a esse início de como se
constitui o psiquismo humano, de como se organiza esse aparato e
de como ele vai se tornando mais e mais complexo, que se vai
buscar sustentação teórica nessa relação em que o bebê é o centro
e o alvo das atenções. Um bebê, portanto, se constitui como sujeito
através dessa relação com quem cuida dele e que servirá de
sustentação para uma hipótese teórica. Salvo essas considerações,
somente quando se trata de conta da teoria do narcisismo, o foco
então se volta para a mãe. Mas em nenhum momento é
questionado o amor materno: como se ausência de amor materno
fosse vista como puro desvio de ordem.
Essa frase pode parecer pura provocação. Pois se afirmarmos
até aqui que a Psicanálise é um pensar para fora da Ordem da
Natureza, está portanto implícito que ela seja o lugar onde o acaso é
ponto de partida fundamental. Na Ordem da Natureza, uma ordem
antecede a tudo, e o que escapa dela será desvio e não acaso. Se
o amor materno é pensado como implícito da condição feminina,
algo tão intrínseco à mulher quanto seria entendida como desvio de
ordem. O tema, assim colocado, manter-se-ia fora do campo
psicanalítico.
É interessante constatar que serão sempre as mulheres que
refletirão sobre o tema, e não necessariamente psicanalistas.
Recentemente, a escritora Marguerite Duras, em artigo publicado
pelo jornal Libértation sobre o assassinato de uma criança, cometido
provavelmente pela mãe, escreveu:
Acontece que algumas mães não amam os seus filhos nem a casa, nem são as
mulheres do lar que se esperava que fossem. Que elas não são tampouco as mulheres de
seus maridos. Que não são mães, assim como não são fiéis, e que apesar de tudo isso,
elas passam por tudo, pelo casamento, pela trepada, pela criança, pela casa, pelos
móveis,
sem que isso as tenha mudado em nada, nem mesmo por um só dia. Por que a
maternidade
não seria malvinda? Por que o advento de uma mãe pela chegada de um filho não seria
um
4
fracasso?
4
DURAS, Marguerite, “Sublime, forcément sublime Christine V.”, in Jornal Libération , Paris, de
17.07.1985.
No artigo de M. Duras, ela não só parte do pressuposto de
que a mãe de Gregory ( Christine V. ) é realmente a assassina,
como termina com a frase título do artigo: “Sublime,
necessariamente sublime Christine V. “. Mesmo em Paris, um dos
centros mais importantes do pensamento moderno, era impensável
a defesa proposta por Marguerite Duras de que não só o amor
materno não era inato, mas também que violência da mãe contra o
filho era o único recurso de libertação dessa mãe.
Nesse sentido, o texto de 1911 de Margarete Hilferding e o
artigo de M. Duras de 1985 se assemelham, fazendo com que a
primeira não só esteja propondo uma questão que obedece com
todo rigor ao campo psicanalítico, como também aponta para a
atualidade de sua postulação. Pelo visto, a reação de indignação
provocada em 1911 em nada mudou.
A própria Margarete Hilferding constrói sua argumentação
dando todos os elementos na sua conferência, para que não seja
possível pensar o amor materno como sendo inato. Toda sua
colocação do bebê como objeto sexual da mãe desmantela a
questão do inato. Não obstante, a Dra. Hilferding parece não querer
descartar a hipótese do inato, o que torna a questão paradoxal. A
Psicanálise, enquanto corpo teórico, pode e tem que aceitar o amor
materno como não sendo inato, para que o tema tenha possibilidade
de pertencer ao seu campo. A ausência de artigos sobre o assunto
faz pensar que os teóricos da Psicanálise têm dificuldade de
conceber o tema, pois essa aceitação implica, teoricamente, a
delimitação do campo psicanalítico como desvinculado do
pensamento da Ordem da Natureza; e, portanto, também em
desvincular a mulher da maternidade.
Não pretendo dizer, com isso, que não exista o registro da
Ordem da Natureza - isso seria negar todas as ciências que nela
estão embasadas, na qual a própria medicina se encontra.
A questão do inato , ou seja, de instintos vitais, pertence à
medicina. E a medicina terá visão desse corpo como um corpo da
Natureza, obedecendo à Ordem da Natureza; e, sobretudo, é ela
que dispõe de instrumental teórico para dar conta dessa concepção.
Ora, a Psicanálise, ao pensar o corpo, como demonstrou no seu
último livro Gracia-Roza, a partir de outros pressupostos, de um
outro lugar e dispondo de instrumental teórico, terá necessariamente
que desvinculá-lo do registro da Natureza.
O corpo pulsional, o corpo erógeno da Psicanálise, não tem
nada em comum com o corpo da medicina, pois é um corpo
construído a partir da linguagem. Ao tentar misturar os dois campos
teóricos, corre-se o risco de fazer uma medicina última categoria ou
uma Psicanálise de botequim. Essa, aliás, tem sido toda a
dificuldade da construção teórica da psicossomática, ou seja, o amor
materno enquanto inato é compatível com o campo da medicina. No
campo psicoanalítico, o amor materno não pode ser pensado como
algo preexistente a toda mulher.
Margarete Hilferding dá todos os passos para chegar a essa
conclusão; no entanto, falta-lhe o passo decisivo que, em 1911, não
tinha ainda condições de dar. A Psicanálise dessa época está ainda
nos seus primeiros passos. Freud tinha recém-publicado uma
pequena parte de sua produção teórica, e esse passo de ousar
pensar a Psicanálise fora da Ordem da Natureza ainda estava longe
de ser realizado. Não obstante, Freud já colocava, nessa época,
várias questões que indubitavelmente terminariam por promover a
ruptura.
O BEBÊ-
OBJETO SEXUAL DA MÃE.
5
FREUD, Sigmund, “Pour introduire le narcissisme”in La vie sexuelle, Paris, PUF,1969, p. 96
6
FREUD, Sigmund, op. cit., pag. 95
experiência de maternidade. A diferença da relação da mãe com o
primeiro filho e os demais é dedutível pela simples observação. O
que é novo é a explicação proposta na conferência, que abarca o
amor materno via sexualidade da grávida, e também o ódio
provocado pelo parto, o que aponta, necessariamente, para o
próximo capítulo, que analisará o conceito de pulsão de morte.
A PULSÃO DE MORTE
Aqueles que preferem os contos de fadas se fazem de surdos quando se fala
da tendência do homem à maldade, à agressão, à destruição e, portanto, à crueldade
7
Freud
7
FREUD, Sigmund, Malaise dans la civilisation, Paris, PUF, 1971, p. 75.
8
FREUD, Sigmund, “Au’delá du principle de plaisir”, in Essais de Psychanalyse, Paris, PBP, 1981.
9
FREUD, Sigmund, Malaise dans la civilisation, Paris, PUF, 1971, p.75.
vocação aglutinadora e a sexualidade é o modo ordenado do
psíquico. A pulsão, por sua vez, não está dentro do aparato
psíquico. Ela está, portanto, para além da ordem, para além do
princípio do prazer, é pura dispersão. Ora a definição de pulsão de
morte é justamente a disjunção, ela é a pulsão por excelência.
Pulsão sexual é, necessariamente, representante de pulsão. Pulsão
e pulsão de morte são nesse sentido, idênticas, e pulsão sexual é o
representante da pulsão inserido na ordem do sexual.10
É importante ressaltar que, toda vez que falamos em ordem do
aparato psíquico, não estamos falando da Ordem da Natureza. Esta
pressupõe um ordem preexistente. A ordem que nos referimos é
uma ordem a posteriori, uma ordenação a partir do acaso.
Isso posto, o que se ordena são representações investidas
dentro do aparato psíquico, e o que está para além disso é a pulsão.
Pulsão de morte, com sua força disjuntora, é capaz de produzir o
novo, ou a mudança nesse aparato, cujo movimento do
representante pulsional só faz unir, juntar, aglutinar. A pulsão de
morte rompe com a ordem.
O movimento libidinal de tudo juntar, tudo unir, se fosse único,
seria enlouquecedor. A força sexual tem direção única, só sabe se
ligar. É a pulsão de morte que interrompe esse movimento. Assim,
o ser humanos só é capaz de diferenciar, de aceder à alteridade, de
projetar-se no futuro, numa ação conjunta de disjunção e união.11 O
psiquismo ordenado pela sexualidade seria como a soma de laranja
com banana, gato e cachorro. Só não o é porque o simbólico exige,
para se constituir como tal, a ação disjuntora da pulsão de morte.
10
O tema foi amplamente desenvolvido por Gracia-Roza, no seu livro: O mal radical em Freud, Rio de
Janeiro, Jorge Zahar, 1990.
11
No texto “A negativa”, Sigmund Freud concebe o simbólico como ação conjunta de vida e morte.
Ferenczi no seu texto “Le problème de l’affirmation du déplaisir”in Psychanalyse 3, Paris, Payot, 1974,
faz uma análise detalhada da questão simbólica através da ação de desintrincação pulsional.
É dentro desta perspectiva que M. Hilferding pretende enfocar
a agressividade da mãe. A agressividade de que se fala está muito
mais para a postulação da pulsão de morte, cujo conceito será
formulado no final da obra de Freud ( Mal estar na civilização ), do
que para o binômio sadismo-masoquismo, referido nos Três ensaios
sobre a teoria da sexualidade. Nesse texto de 1905, a agressividade
é um ingrediente da libido, uma forma erotizada de prazer. O que
Hilferding propõe é algo diferente.
Segundo ela, diante da falta de prazer, ou melhor, da ausência
e perda de prazer sexual que o feto proporcionava à mãe, o que
surge é a destruição, e a agressividade ganha lugar, direcionada a
essa criança que acaba de nascer. Em nenhum momento é
questão, para Hilferding, de desejo sádico ou do estabelecimento de
uma relação sadomasoquista. Não se trata, para a mãe, de passar
a ter prazer através dos maus-tratos que vier praticar contra o filho.
Independente das considerações que correlacionam a
agressividade à sexualidade da grávida, Hilferding propõe a análise
de que o amor materno não é inato, porque observações atestam
que essas mães são, em princípio, hostis ao filho que acaba de
nascer e capazes de abandoná-los e maltratá-los.
Nesse ponto é que se deu a discussão com os membros da
Sociedade Psicanalítica de Viena, onde Margarete Hilferding
lamenta que o debate não tenha tomado o ruma que ela esperava.
Acha que foi mal compreendida, pois seu interesse era o de discutir
o fator fisiológico como algo determinante, após a hostilidade inicial,
para que o amor materno pudesse passar a existir. O físico viria
após a reação psíquica, e teria o poder de modificá-la.
Essa colocação de M. Hilderfing levanta algumas hipóteses. A
primeira delas diz respeito ao estatuto do fisiológico. Sua colocação
é no sentido de entender o amor materno como pertencendo ao
mesmo registro dos instintos vitais como fome etc., e, tendo o
psíquico uma primazia sobre esse corpo, assim como acontece com
os anoréxicos, a ação instintiva seria anulada.
Essa pode ser uma das interpretações possíveis, mas que não
deixa de apresentar problemas. Como colocar no mesmo nível a
sensação de fome - toda vez que o organismo necessita de alimento
- e o amor materno? A própria palavra amor, nesse caso, cria
problemas.
Certos animais, fêmeas ou machos, dependendo da espécie,
se encarregam de alimentar seus filhotes e protegê-los até que até
que eles tenham condições de fazê-lo por si mesmos. É fato
também que alguns animais devoram seus filhotes - os
encarregados de jardins zoológicos que o digam. Mas no primeiro
caso, podemos chamar esse cuidado de amor materno ou paterno?
Nesse caso, a Dra. Hilferding deveria ter usado o termo “instinto
materno”. Por que não o fez?
A segunda hipótese, que pode parecer mais absurda, seria a
de conceber o fisiológico como back-up psíquico, e vice versa.
De qualquer forma, a questão colocada por Hilferding diz
respeito ao contexto histórico da Psicanálise, que tem que ser
levado em consideração. Seis anos antes de sua conferência, Freud
havia publicado os Três Ensaios sobre a teoria da sexualidade, onde
o conceito de pulsão é entendido como sendo apoiado no instinto ( a
noção de apoio é polêmica até hoje, e pode ser interpretada como a
grande preocupação de Freud, na época, em referendar a sua teoria
psicanalítica na biologia - uma ciência exata ). A idéia de Freud,
nesse momento, é que o instinto pode serviria de apoio para a
pulsão: o instinto visando a satisfação, a pulsão, o prazer. Ficava,
assim, resolvida uma questão fundamental para a teoria freudiana: a
da introdução no psiquismo do diferencial prazer/desprazer. Nesse
sentido, a pulsão tomaria carona no instinto, e só então se
diferenciaria como psíquica. Ora, a noção de apoio só tem utilidade
na Psicanálise para explicar a instauração da subjetividade, para dar
conta do advento do psiquismo. Fora dessa ótica, ela não tem
qualquer razão de ser, ou seja, não há como pensar na noção de
apoio, no aparato psíquico adulto, já estruturado, como seria o caso
da mulher grávida. Se era essa a proposta de Hilferding, ela não
tem nenhum fundamento nem qualquer respaldo teórico, nem no
contexto de 1911.
Outra discordância com relação ao debatedores, inclusive com
o próprio Freud, se refere à análise da hostilidade. Segundo a
conferencista, os argumentos levantados não são suficientes a
Freud para dar conta dos fenômenos de agressão e destruição que
fazem parte da vida.
O aparte final da oradora mostra claramente que sua intenção
era encaminhar a discussão do amor materno para o campo da
Psicanálise e que a agressividade da qual falava, os elementos da
sexualidade ou da ordem do aparato psíquico eram insuficientes.
Parecia ela esperar que seu interlocutor fosse Freud que escreveu
quase vinte anos após:
O meu amor é, para mim, algo infinitamente precioso que não tenho o direito de
desperdiçar sem prestar contas... Se alguém é desconhecido, não me atrai por
nenhuma qualidade pessoal, me é bem difícil ter por ele qualquer afeto... Para o
homem, o próximo não é somente um auxiliar e um objeto sexual, mas também um
objeto de tentação.
12
FREUD, Sigmund, Malaise dans la civilisation, Paris, PUF, 1971, pp. 62 e 64.
nem na argumentação médica de Federn. Nem psíquica, nem física,
a agressividade de que Margarete Hilferding quis tratar parece não
encontrar apoio teórico que lhe satisfaça em parte alguma. Ela
parece ter o dado na mão sem possuir conceitos que dêem conta
dos fatos por ela observados: a violência sobre o que ela mesma
postulou, como sendo objeto sexual natural da mãe, permanece
para ela enigmática.
A SEPARAÇÃO
13
FREUD, Sigmund, L’analyse finie e l’analyse infinie, Paris, La Bibliothèque Freudienne, p. 47
tempo, move o aparato e contra o qual ele se organiza. Desse
artigo, o que interessa de perto a este trajeto que propus fazer, a
partir da conferência de Hilferding, é a maneira como o parto é
abordado.
14
ZALTZMAN, Nathalie, “Un mot primitif: la chimère du sexe”, in Revista Topique, n° 20, Paris, 1978,
p. 23.
15
ZALTZMAN, Nathalie, op.cit., p.33
Essa primeira gravidez, como já vimos, inesperadamente
propicia excitações sexuais. No parto do primeiro filho se processa
a mesma relação de parceria que tivera com a mãe. Agora o
parceiro é o filho, o que faz com que a mulher, que se torna mãe
pela primeira vez, mergulhe no universo que a obrigou a estruturar
sua subjetividade. Um sexo-separação que ao mesmo tempo insiste
em se manifestar e contra o qual toda a organização psíquica se fez,
tendo, muitas vezes, pago um preço muito alto para se estruturar
como sujeito.
É esse mergulho peculiar que a coloca num lugar menos
peculiar, de onde é remetida, no parto a vivenciar, em seu próprio
sexo, essa relação com o sexo impensável da mãe, da qual foi
protagonista ao nascer, o impensável da própria relação incestuosa
com o filho que está nascendo. Se o texto de Zaltzman nos obriga a
pensar que o interdito do incesto foi violado de alguma maneira no
próprio parto, veremos que a mulher, ao parir, repete essa vivência
através do próprio sexo. E, como diz Zaltzman, “se lá onde há sexo
há separação e onde há separação há sexo”, talvez na negação da
outra parte que se separa, talvez então não haja sexo. Nesse
sentido, os dois textos se entrecruzam. Que metapsicologia
particular é essa, nessa primeira experiência de gravidez e de parto?
O impensável não é o sexo castrado da mulher: o impensável é
esse sexo que implica separação, contra o qual e pelo qual o
humano se funda. Mas será certamente na vivência da primeira
gravidez, o impensável da separação, através do próprio sexo. Na
gravidez, o impensável torna-se assim um escândalo, escancarando
esse sexo da mulher que engendra, que se excita com o feto e que,
ao parir, tem através dele uma relação sexual que a remete ao
impensável da relação sexual do seu próprio parto. Sexo
impensável do qual todos os seres humanos emanam.
Que o primeiro filho suscite emoções violentas de ódio e
paixão, é o mínimo a que podemos chegar. A dificuldade de
reconhecer enquanto filho, a criança que acaba de nascer parece,
após todo esse percurso, quase óbvia, pois o que está em jogo
nessa gravidez primeira é a própria estrutura psíquica da mulher que
se torna mãe.
A mulher, como diz Adélia Prado16, tem que ser desdobrável.
A mulher que se torna mãe precisa de mais aptidão que as outras,
no seu desdobramento, o que nem sempre é possível.
Hilferding nessa conferência aponta novos cominhos para se
pensar o amor materno, as relações mãe-filho/filha. Fornece
algumas pistas para que se possa estabelecer a metapsicologia da
mulher grávida, e sem dúvida essa metapsicologia terá
necessariamente que passar por conceitos como: corpo pulsional,
pulsão de morte e recusa do feminino. Conceitos que em 1911
estavam longe de ser formulados e pelo menos dois deles - corpo
pulsional e recusa do feminino - ainda são obscuros na teoria
psicanalítica.
16
PRADO, Adélia, Bagagem, Rio de Janeiro, Nova Fronteira.
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