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A rebelião dos médicos filósofos contra a filosofia tradicional tinha lá suas razões. Era
impossível explorar com o único recurso de proposições lógicas, as bases do intelecto
(sensação, percepção, memória, consciência, imaginação, pensamento, linguagem), e da
motivação humana (apetições, emoções e afetos). Era também necessário clarificar o
campo psicológico para não confundi-lo com a moral, e para não levar ao laboratório a
pesquisa com os processos complexos como o pensamento. Até então, inícios do século
XIX, havia uma grande distância entre a reflexão filosófica sobre as operações do
intelecto ou da alma, e a observação médica sobre as relações entre lesões cerebrais,
funcionamento mental e comportamento. Para ir adiante, a psicologia deveria romper
com um fundamento importante das teorias filosóficas: a especulação sobre a natureza
humana.
Eu devo me manter atento para o ponto de vista das ciências naturais ao longo de todo o
livro. Cada ciência natural assume certos dados sem crítica, e declina desafiar os
elementos entre os quais as próprias leis obtidas e das quais derivam as deduções. A
psicologia, a ciência das mentes individuais finitas, assume como seus dados (1) os
pensamentos e sentimentos, e (2) o mundo físico em tempo e espaço com os quais eles
coexistem e os quais (3) eles conhecem. Naturalmente, estes dados são discutíveis; mas
essa discussão (e de outros elementos) é chamada de metafísica e está fora da província
deste livro. O livro, assumindo que os pensamentos e sentimentos existem e são
veículos do conhecimento, argumenta que a psicologia, quando verifica a correlação
empírica dos vários tipos de pensamento ou sentimento com condições definidas do
cérebro, não pode ir além disso que é como faz uma ciência natural. Se for além,
transforma-se em metafísica. Todas as tentativas para explicar nossos pensamentos
fenomenais dados enquanto produto de entidades profundas (se "Alma", "Ego
Transcendental", "Idéias", ou "Unidades Elementares da Consciência") são metafísicas.
Este livro conseqüentemente rejeita as teorias associacionistas e espiritualistas; e neste
ponto de vista estritamente positivista consiste o único fator sobre o qual eu tento
reivindicar originalidade. (James, 1952, p. xiii)
Existe um corpo de conhecimento que não é conhecido pela maioria das pessoas. Esta
informação refere-se ao comportamento humano e à consciência em suas várias formas.
Ele pode ser usado para explicar, predizer e controlar ações humanas. Aqueles que têm
acesso a esse conhecimento podem contar com recursos valiosos para compreenderem
outros seres humanos. Há neles uma concepção mais completa e acurada sobre o que
determina o comportamento e os pensamentos de outros indivíduos, o mesmo não
ocorrendo entre aqueles que não possuem este conhecimento. Surpreendentemente, este
corpo de conhecimento desconhecido é a disciplina de psicologia. (Stanovich, 2004, p.
ix)
Tomando a visão dos três autores, nos seus respectivos tempos e contextos, podemos
interpretar que a psicologia realmente consagrou-se como ciência e está produzindo
grandes conhecimentos. Contudo, apesar de muito difundida, ela é pouco conhecida,
mesmo por aqueles que a estudam.
Voltemos aos três autores mencionados. James foi muito claro ao especificar o tipo de
dado que a psicologia estava interessada, mas insistia que para ela progredir deveria
romper definitivamente com os sistemas metafísicos e suas doutrinas do supra-sensível.
Wolman não deixa qualquer dúvida de que a ciência é a porta para as grandes
transformações nas relações entre o humano e a natureza, sendo o humano é parte desta
natureza. Por fim, Stanovich confirma que a psicologia é realmente uma ciência, seus
progressos são formidáveis, mas lamenta que pouca gente saiba disso. Considerando
que há entre a publicação de James e a de Stanovich um intervalo de 110 anos, pode-se
admitir que haja algum problema com o projeto científico ou com o projeto de
divulgação da psicologia. Qual seria o problema? Stanovich vai dizer que a "psicologia,
provavelmente mais do que qualquer ciência, requer habilidades em pensamento crítico
para permitir aos estudantes a separação entre o joio e o trigo, um problema que se
acumula em torno de qualquer ciência" (Stanovich, 2004, p. xi). Menos mal.
O fato é que o campo da psicologia não rompeu com os sistemas metafísicos tão
condenados pelos primeiros psicólogos. Algumas décadas depois do célebre The
Principles de James, a pesquisa em psicologia experimental dividia-se em tantas frentes
que a visão de globalidade e de inter-relação entre fenômenos psicológicos era de difícil
discernimento. A reação veio por meio das teorias da personalidade e das teorias de
psicoterapia que, ao oferecerem uma visão global do dinamismo humano e das
diferenças individuais, traziam embutida a hipótese primeira, em muitos casos uma
doutrina metafísica. O problema metafísico das teorias de personalidade e da
psicoterapia é facilmente constatado na fidelidade dos seguidores a essas doutrinas e na
dificuldade de diálogo entre as teorias. Mesmo que muitas dessas teorias não recorram a
princípios fundamentais supra-sensíveis, a definição de natureza humana já é em si uma
questão merecedora de análise criteriosa. O problema se agrava diante da atração de
psicólogos e estudantes pelas chamadas psicologias alternativas.
O éthos é o contexto cultural que baliza, que estabelece as regras da moral e do direito,
e que confronta e é confrontado pelo comportamento do agente do conhecimento. A
psicologia sem a noção do éthos esvazia-se, pois é ela que fornece o olhar externo para
variações comportamentais ditas adequadas ou inadequadas, bem formadas ou mal-
formadas, normais ou anormais. Portanto, a psicologia ocupa-se das duas faces da
questão, procurando explicar tanto a capacidade de conhecer quanto a capacidade de
apresentar comportamentos socialmente adequados.
Filósofos da ciência não são filósofos no sentido tradicional e tem pouco a ver com a
visão de mundo dos sistemas metafísicos (...) eles não descobrem ou trazem qualquer
conhecimento sobre astronomia, física, biologia e psicologia, mas analisam os trabalhos
e as palavras dos astrônomos, dos físicos, dos biólogos, e dos psicólogos. A tarefa
destes filósofos é estudar a ciência. Neste sentido, eles estão contribuindo enormemente
no desenvolvimento de métodos para a análise formal do trabalho científico. (Wolman,
1973, p. 23)
Nos anos 1970 e 1980, vários cursos de psicologia deram início a um conjunto de
atividades para o estudo da filosofia da ciência. As atividades consagraram-se nas aulas
de epistemologia que se caracterizaram como extremamente críticas ao projeto de
ciência natural da psicologia. Na época, difundia-se entre nós um projeto empírico para
as ciências humanas, tendo a linguagem como empiria. As idéias francesas sobre
marxismo, estruturalismo, fenomenologia e existencialismo animavam nossas aulas e
debates. Essas teorias exerciam forte influência em estudos literários, filosóficos,
cinematográficos e psicanalíticos. Os resultados manifestaram-se de diversos modos: na
polarização entre ciências naturais e ciências humanas; na emergência de uma
psicologia social de orientação crítica, ou sócio- histórica; e na procura por cursos de
pós-graduação na área da filosofia ou da lingüística por parte de muitos psicólogos.
Uma decorrência metodológica do período e ainda presente em nossa academia é um
certo entendimento de coerência epistemológica. Tal coerência é avaliada na habilidade
de ser capaz de conduzir a pesquisa, de acordo com um determinado referencial, seja
um autor ou teoria. Por exemplo, se o autor de referência é Piaget, Lacan ou Foucault,
deve-se permanecer restrito às posições do autor ou a de seus intérpretes, e jamais usá-
los como uma referência de passagem em um texto geral. Fossem essas as regras
epistemológicas, os autores mencionados não teriam alcançado tão grande impacto.
Esclareça-se, contudo, que a base referencial é necessária, mas a análise comparativa de
conceitos e o apoio da evidência empírica são fundamentais para o avanço do
conhecimento.
Na década de 1990, notou-se um acentuado declínio na polarização entre ciência natural
e ciência humana nas discussões psicológicas na literatura internacional. No Brasil a
polarização continuou marcante. Contudo, a grande popularidade alcançada pelas
pesquisas qualitativas contribuiu para uma aproximação entre pesquisadores qualitativos
e quantitativos. É óbvio que há ainda um radicalismo remanescente que mantém o
reducionismo para as duas pontas (natural ou humano; quantitativo ou qualitativo,
objetivista ou subjetivista), mas há também uma maior abertura e mesmo um
amadurecimento na discussão destas questões. Do mesmo modo, reconhece-se no Brasil
o grande interesse dos psicólogos por abordagens sociais e subjetivistas, mas a relação
com a epistemologia caracteriza-se muito mais pela procura de coerência metodológica
do que pela primazia da verdade. Esses avanços estão associados em grande parte ao
desenvolvimento dos programas de pós-graduação stricto sensu.
Epistemologia pode ser definida como a estrutura subjacente que delimita os modos
como os objetos são percebidos, agrupados e definidos. Neste sentido, o termo
epistemologia ou episteme passou a ser usado tanto para se referir à certeza, quanto à
suposição, ou mesmo à opinião. Em 2001 a Universidade de Stanford lançou uma
Enciclopédia de Filosofia on-line e de acesso livre . Os verbetes, escritos por filósofos
renomados, ensejam um diálogo produtivo com diferentes epistemologias, por exemplo,
bayesiana, evolucionária, feminista, moral, naturalizada, social, e da virtude. Os textos
tratam tanto de questões tradicionais, digamos as conexões entre nossas sensações e a
percepção do mundo (epistemologia naturalizada); quanto de questões recentes,
digamos o desenvolvimento de formas lógicas para tomada de decisão (epistemologia
bayesiana), a influência de gênero na justificação do conhecimento (epistemologia
feminista), e a influência das práticas sociais no desenvolvimento científico
(epistemologia social). As posições são controversas, mas os ensinamentos estão na
maneira de como as perguntas são formuladas.
O mesmo tópico foi central na famosa controvérsia entre Antoine Arnauld e Nicolas
Melebranche no século XVII, e também central na tradição das "idéias" nos escritos de
Locke, Berkeley, Hume, Reid e Kant. Este padrão de recorrência é um fato intrigante.
Contudo, a literatura em ciência cognitiva pouco acrescentou à história dos primeiros
pensadores da filosofia moderna.
Na primeira parte desta apresentação, sintetizei o núcleo central das idéias psicológicas
em torno do conceito de vontade (volição), enquanto campo onde ocorrem os embates
entre a gnose e o éthos. Pergunta-se então: por que um agente, embora julgue que A é
melhor e decida por A, faça voluntária e intencionalmente B? Os avanços nas pesquisas
sobre volição estão aqui representados nos trabalhos do neurocientista cognitivo Jing
Zhu, da Academia Chinesa de Ciências. Zhu (2004a) inicia sua argumentação em favor
do resgate do conceito de volição, apoiando-se no célebre artigo de Hilgard (1980),
intitulado A trilogia da mente: Cognição, afeição e conação. Em seu artigo, Hilgard
lembrou que até o início do século XX filósofos e psicólogos sustentavam que a volição
era a propriedade essencial para o direcionamento consciente da ação (conação).
Volição é definida como um processo executivo mental que faz a intermediação e a
ligação entre as deliberações, as decisões, e os movimentos corporais voluntários (Zhu,
2004a). A definição dá conta tanto do entendimento clássico - volição como processo
iniciador da ação; quanto do entendimento contemporâneo - volição como controle
executivo essencial da ação na implementação da intencionalidade. A ação é descrita
como um movimento precedido pelo pensamento, em combinações apropriadas de
crenças e desejos, intenções ou razões. Searle (2001) dividiu as relações entre
pensamento e ação em três partes: razões para decisão; decisão para ação, e execução da
ação. O problema, segundo o autor, são as falhas entre as partes:
Tanto quanto informa nossa experiência consciente, as falhas ocorrem quando crenças,
desejos e outras razões não são experienciadas como condições causais suficientes para
a decisão (a formação a priori da intenção); quando a intenção a priori não coloca a
condição causal suficiente para a ação; e quando a iniciação do projeto da intenção não
coloca condições suficientes para a continuação ou finalização da ação. (Searle, 2001, p.
62)
Note-se que na perspectiva de primeira pessoa a falha pode ou não se apresentar como
uma fonte de insatisfação experiencial (estar feliz ou infeliz com o que se fez), o mesmo
ocorrendo com a perspectiva de terceira pessoa (estar feliz ou infeliz com o que o outro
fez). A situação poderia ser amenizada se compartilhada na perspectiva de segunda
pessoa (intersubjetividade), compartilhamento da falha: todos somos incapazes de
atender as exigências dos nossos desejos. A breve digressão é apenas para mostrar o
encontro entre a gnose (sujeito cognoscitivo) e o éthos (a perspectiva do grupo), ou as
relações da psicologia como ciência básica (processos básicos, psicopatologia, cognição
social) e como aplicação (psicoterapia, educação, comunidades, hospitais, ambiente,
etc.).
As falhas da ação e a implicação ética decorrente são aqui ilustradas por estudos das
filósofas Roskies (2003) com o sugestivo título: São julgamentos éticos intrinsecamente
motivacionais: Lições de uma "sociopatia adquirida"; e Greenspan (2003) intitulado
Psicopatas responsáveis. A sociopatia é um distúrbio mental no qual o agente apresenta
comprometimento na capacidade para seguir regras morais como base racional de ação.
O debate filosófico concentra-se no impasse entre liberdade e determinismo nestes
casos reconhecidos como impedimentos motivacionais.
A esta altura, a pergunta óbvia é se há volições não-conscientes. Com efeito, nem todas
as ações voluntárias envolvem volições, mas volições não-conscientes são implausíveis:
Epílogo
O diálogo com a filosofia da ciência traz um domínio importante de termos básicos que
atravessam todas as nossas pesquisas e idéias: empirismo, racionalismo, idealismo,
ambientalismo, nativismo, solipsismo, objetividade, subjetividade, funcionalismo,
compreensivismo, e naturalismo.
O diálogo com a psicologia filosófica traz uma visão ampla e abrangente de uma
epistemologia naturalista capaz de incorporar contribuições de diferentes campos do
conhecimento, como a fenomenologia e a neurofisiologia. Temas que obtiveram
grandes espaços na agenda epistemológica do século XX, como o pós-modernismo, o
feminismo, e a sócio-história continuam presentes, mas em menor número de
publicações. O crescimento da literatura em psicologia filosófica é facilmente
demonstrável pelo aumento do número de publicações. Mas continua uma área de
pouco interesse. A divisão 24 da APA é a menor em número de membros, entre as suas
congêneres. Tal situação parece-me justificada, pois a ênfase é a concentração focal e
intensa na especialidade de aplicação ou na linha de pesquisa que se desenvolve. Neste
sentido, a psicologia filosófica é mais uma especialidade, mais uma linha de pesquisa, e
assim restrita aos seus simpatizantes e estudiosos.
Referências