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Relações entre Psicologia e Filosofia: A psicologia filosófica

O modo como a psicologia se insere no campo geral do conhecimento a coloca em uma


condição privilegiada para o diálogo, seja com as demais ciências, com as humanidades
ou mesmo com as artes. A psicologia ocupa um espaço privilegiado de interseção entre
as humanidades e as ciências. Em processos complexos tipicamente humanos, a
psicologia apresenta-se em sua singularidade lógica que é a condição de mover-se entre
raciocínios digitais (redução de incerteza, diferenciação probabilística) e analógicos
(decifração de ambigüidade, diferenciação de possibilidades). Nesta condição, o diálogo
da psicologia com outros saberes é fértil, mas por vezes empobrecido pela insistência
em tomar a interdisciplinaridade como suficiência retórica e não como contraste
epistemológico.

O diálogo com a filosofia, em particular com a filosofia da ciência e da ética, é


imprescindível para o refinamento conceptual e para o exercício crítico de qualquer
campo de conhecimento. Neste sentido, as relações entre psicologia e filosofia seguem
os padrões das demais ciências, concentrando-se no exame de questões fronteiriças e
controversas. Temos como exemplo, o problema ontológico da representação, isto é, se
a intermediação simbólica é ou não é imprescindível para comportamento humano
(Peter, 2004), ou se a moral deve ser entendida numa perspectiva realista ou pluralista
(Kendler, 2002). Questões conceptuais clássicas continuam sendo examinadas à luz de
novas evidências e implicações filosóficas. São exemplos, a escolha de abordagem para
inferência causal, se co-variação ou mecânica (Newsome, 2003), ou novos dados e
interpretações sobre as contribuições da Gestalt para a explicação da experiência
consciente (Engelmann, 2002; Lehar, 2003). Por outro lado, temas mais recorrentes na
psicologia brasileira se fazem representar em debates tais como: natureza humana e os
limites da ciência (Root, 2003), dilemas correntes entre hermenêutica e poder
(Richardson, 2002) e limites metafísicos e epistemológicos na classificação científica
(Stamos, 2004). A surpresa na literatura internacional está na maior concentração de
trabalhos sobre análise de temas, sendo menor as considerações sobre sistemas
filosóficos ou filósofos renomados.

Mesmo com maior presença em departamentos e eventos da área da filosofia, a


psicologia filosófica vem atraindo a atenção de psicólogos. Há uma sociedade de
psicologia inteiramente dedicada às questões filosóficas, a Society for Theoretical and
Philosophical Psychology que é associada à Divisão 24 da American Psychological
Association (APA), denominada de Theory & Philosophy. As principais revistas da área
são as seguintes: Philosophical Psychology; Philosophy, Psychiatry & Psychology;
Journal of Theoretical and Philosophical Psychology; e Theory & Psychology. Note-se
que os dois últimos periódicos mencionados são publicados pela APA. Infelizmente, a
anacrônica dispersão temática das revistas brasileiras impede uma análise comparativa,
embora se saiba que várias questões de psicologia filosófica vêm sendo discutidas em
periódicos nacionais. De qualquer modo, a preocupação brasileira sobre as relações
entre psicologia e filosofia aparece em textos na defesa dos métodos qualitativos
(Ferreira, Calvoso & Gonzales, 2002), e da subjetividade (Neubern, 2001); na análise
das relações entre psicologia, psicanálise e ciência (Bastos, 2001; Pacheco Filho, 1997),
ou na justificação epistemológica de que "no lugar da psicologia explicar o social, é o
próprio social que deve explicar o surgimento da psicologia moderna" (Silva, 2004, p.
12).

A apresentação é uma síntese de três diálogos: 1) diálogos com as psicologias dos


grandes filósofos; 2) diálogos com a filosofia da ciência; e 3) diálogos com a psicologia
filosófica. O primeiro procura esclarecer a concepção de psicológico no pensamento
filosófico que vai dos gregos aos primórdios da psicologia experimental. O segundo
contrasta o discurso epistemológico das décadas de 1970 e 1980 com o quadro atual
neste início do século XXI. O terceiro destaca as principais preocupações e debates da
psicologia filosófica nos últimos anos. A apresentação tem limites e espero obedecê-los
com humildade. Assim, cabe antecipar que serei sinóptico, privilegiando o global mais
do que o específico, e a reflexão pessoal mais do que uma revisão exaustiva da
literatura.

Diálogos com as psicologias dos grandes filósofos


Psicologia e Filosofia mantêm entre si uma relação de amor e ódio. Na perspectiva dos
primeiros psicólogos experimentais, a influência da filosofia era um mal a ser afastado
por impedir os avanços conceptuais e operacionais da investigação científica. Na
perspectiva dos filósofos, os psicólogos estavam à deriva, sem clareza de objeto e
método. A generalização é problemática, pois os primeiros passos da psicologia
experimental se devem a médicos que eram também filósofos. Por sua vez, filósofos
preocuparam-se com alternativas de objeto e método para a psicologia, mas os frutos
foram lentos e polêmicos. De qualquer modo, o desenvolvimento da psicologia
experimental representou para a filosofia uma ameaça de esvaziamento. A psicologia
chegava para ocupar o espaço dedicado ao estudo do sujeito cognoscitivo, um campo de
descrição e reflexão filosófica por excelência, desde os primórdios do pensamento
humano.

A rebelião dos médicos filósofos contra a filosofia tradicional tinha lá suas razões. Era
impossível explorar com o único recurso de proposições lógicas, as bases do intelecto
(sensação, percepção, memória, consciência, imaginação, pensamento, linguagem), e da
motivação humana (apetições, emoções e afetos). Era também necessário clarificar o
campo psicológico para não confundi-lo com a moral, e para não levar ao laboratório a
pesquisa com os processos complexos como o pensamento. Até então, inícios do século
XIX, havia uma grande distância entre a reflexão filosófica sobre as operações do
intelecto ou da alma, e a observação médica sobre as relações entre lesões cerebrais,
funcionamento mental e comportamento. Para ir adiante, a psicologia deveria romper
com um fundamento importante das teorias filosóficas: a especulação sobre a natureza
humana.

É difícil resistir à tentação de abordar as relações entre psicologia e filosofia sem


relembrar este começo intrigante, quando erros filosóficos retardaram em séculos
desenvolvimentos psicológicos importantes, o mesmo ocorrendo com erros
psicológicos. Por exemplo, Aristóteles errou ao desprezar as relações entre cérebro e
mente já indicados na medicina de Hipócrates (Mueller, 1960). Para ele, o coração era o
centro das sensações. Do mesmo modo, Locke errou ao propor a doutrina da tábula rasa
que ainda hoje interfere em sérias decisões políticas, confundido igualdade jurídica com
igualdade biológica (Pinker, 2002/2004).

A concepção de natureza humana foi a grande disputa entre as teorias psicológicas


propostas pelos filósofos. A primeira tarefa dos primeiros psicólogos foi romper com a
especulação metafísica para então estabelecer a psicologia como ciência natural. Essas
preocupações aparecem com clareza no prefácio de William James (1842-1910) para o
célebre The Principles of Psychology de 1981:

Eu devo me manter atento para o ponto de vista das ciências naturais ao longo de todo o
livro. Cada ciência natural assume certos dados sem crítica, e declina desafiar os
elementos entre os quais as próprias leis obtidas e das quais derivam as deduções. A
psicologia, a ciência das mentes individuais finitas, assume como seus dados (1) os
pensamentos e sentimentos, e (2) o mundo físico em tempo e espaço com os quais eles
coexistem e os quais (3) eles conhecem. Naturalmente, estes dados são discutíveis; mas
essa discussão (e de outros elementos) é chamada de metafísica e está fora da província
deste livro. O livro, assumindo que os pensamentos e sentimentos existem e são
veículos do conhecimento, argumenta que a psicologia, quando verifica a correlação
empírica dos vários tipos de pensamento ou sentimento com condições definidas do
cérebro, não pode ir além disso que é como faz uma ciência natural. Se for além,
transforma-se em metafísica. Todas as tentativas para explicar nossos pensamentos
fenomenais dados enquanto produto de entidades profundas (se "Alma", "Ego
Transcendental", "Idéias", ou "Unidades Elementares da Consciência") são metafísicas.
Este livro conseqüentemente rejeita as teorias associacionistas e espiritualistas; e neste
ponto de vista estritamente positivista consiste o único fator sobre o qual eu tento
reivindicar originalidade. (James, 1952, p. xiii)

As relações entre psicologia e filosofia são revistas em 1973 pelo psicólogo e


historiador Benjamin B. Wolman (1908-2000) em um estudo intitulado Concerning
Psychology and the Philosophy of Science. Wolman inicia suas considerações com as
definições de ciência e de filosofia. O termo ciência é apresentado como tendo duas
conotações: "a busca do conhecimento e os resultados desta busca" (p. 22). O termo
filosofia é então definido como o amor à sabedoria, sendo que sabedoria é
conhecimento em oposição à ignorância. Como rainha soberana da sabedoria, a filosofia
reinou na Grécia Antiga e na Idade Média, prescrevendo regras para o conhecimento
humano. Contudo, prossegue Wolman (p. 22),

Os progressos científicos dos Tempos Modernos ultrapassaram a filosofia e a teologia.


Técnicos, engenheiros, médicos, navegantes, exploradores e aventureiros produziram
mais conhecimento que os eruditos monges e filósofos. A ciência foi criada por homens
que necessitavam dela para o comércio, para o trabalho, para o prazer e, sobretudo, para
aqueles que estavam à procura dos fatos. Laboratórios e expedições científicas
produziram mais conhecimento factual nos últimos três séculos do que jamais foi
inventado pelas meditações e especulações.
Para Wolman, as idéias revolucionárias que trouxeram a psicologia definitivamente para
o lado da ciência vieram da teoria da evolução e das grandes descobertas da
neurofisiologia. Tais movimentos romperam as barreiras artificiais entre o humano e o
resto da natureza.
Filósofos e teólogos tomaram a humanidade fora de contexto, mas a biologia, a
fisiologia, a neurologia e a moderna psicologia vêem os humanos como parte e parcela
do mundo orgânico. Meditações sobre a natureza da alma, da psique, da mente e assim
por diante estão sendo substituídas por observações e experimentos sobre o
comportamento dos organismos vivos, incluindo o comportamento humano.
(Wolman, p. 23)

As contundentes manifestações de James e Wolman em um intervalo de mais de 80


anos parecem mostrar que a psicologia consolidou-se como uma atividade plenamente
científica. No entanto, saltando-se para uma publicação de 2001, How to think straight
about psychology, escrito pelo psicólogo Keith E. Stanovich (Universidade de Toronto),
já na 7ª edição, lê-se o seguinte:

Existe um corpo de conhecimento que não é conhecido pela maioria das pessoas. Esta
informação refere-se ao comportamento humano e à consciência em suas várias formas.
Ele pode ser usado para explicar, predizer e controlar ações humanas. Aqueles que têm
acesso a esse conhecimento podem contar com recursos valiosos para compreenderem
outros seres humanos. Há neles uma concepção mais completa e acurada sobre o que
determina o comportamento e os pensamentos de outros indivíduos, o mesmo não
ocorrendo entre aqueles que não possuem este conhecimento. Surpreendentemente, este
corpo de conhecimento desconhecido é a disciplina de psicologia. (Stanovich, 2004, p.
ix)

A psicologia é mesmo um corpo de conhecimento assim tão desconhecido? Stanovich


vai responder que sim, com base nas considerações seguintes: 1) falha dos professores
dos primeiros anos dos cursos de psicologia em explicar claramente para os alunos o
que é psicologia; 2) falha dos professores em promover junto aos alunos o
desenvolvimento de habilidades para a análise crítica; e 3) falha curricular dos cursos de
psicologia no sentido de incluir um grande número de teorias e abordagens, e vários
tipos de experimentos e métodos, sem encontrar tempo para discutir as questões e os
mal-entendidos dos novos estudantes. Como exemplo Stanovich traz algumas perguntas
e comentários comuns entre estudantes. Por exemplo, os estudantes costumam perguntar
se psicologia é mesmo uma ciência real, assim como a química ou a física, se
experimentos artificiais de laboratório podem ensinar alguma coisa sobre o mundo real,
ou se a estatística tem algum valor para a psicologia. Os comentários de aula são até
mais radicais: essa teoria está furada, pois o meu irmão se comporta exatamente ao
contrário do que ela afirma, ou são tantas as teorias que a psicologia finda caindo no
senso comum ou em alguma opinião exacerbada. Felizmente, os comentários de
Stanovich se referem à realidade norte-americana. Assim, qualquer semelhança com a
realidade brasileira é mera coincidência.

Tomando a visão dos três autores, nos seus respectivos tempos e contextos, podemos
interpretar que a psicologia realmente consagrou-se como ciência e está produzindo
grandes conhecimentos. Contudo, apesar de muito difundida, ela é pouco conhecida,
mesmo por aqueles que a estudam.

Voltemos aos três autores mencionados. James foi muito claro ao especificar o tipo de
dado que a psicologia estava interessada, mas insistia que para ela progredir deveria
romper definitivamente com os sistemas metafísicos e suas doutrinas do supra-sensível.
Wolman não deixa qualquer dúvida de que a ciência é a porta para as grandes
transformações nas relações entre o humano e a natureza, sendo o humano é parte desta
natureza. Por fim, Stanovich confirma que a psicologia é realmente uma ciência, seus
progressos são formidáveis, mas lamenta que pouca gente saiba disso. Considerando
que há entre a publicação de James e a de Stanovich um intervalo de 110 anos, pode-se
admitir que haja algum problema com o projeto científico ou com o projeto de
divulgação da psicologia. Qual seria o problema? Stanovich vai dizer que a "psicologia,
provavelmente mais do que qualquer ciência, requer habilidades em pensamento crítico
para permitir aos estudantes a separação entre o joio e o trigo, um problema que se
acumula em torno de qualquer ciência" (Stanovich, 2004, p. xi). Menos mal.

O fato é que o campo da psicologia não rompeu com os sistemas metafísicos tão
condenados pelos primeiros psicólogos. Algumas décadas depois do célebre The
Principles de James, a pesquisa em psicologia experimental dividia-se em tantas frentes
que a visão de globalidade e de inter-relação entre fenômenos psicológicos era de difícil
discernimento. A reação veio por meio das teorias da personalidade e das teorias de
psicoterapia que, ao oferecerem uma visão global do dinamismo humano e das
diferenças individuais, traziam embutida a hipótese primeira, em muitos casos uma
doutrina metafísica. O problema metafísico das teorias de personalidade e da
psicoterapia é facilmente constatado na fidelidade dos seguidores a essas doutrinas e na
dificuldade de diálogo entre as teorias. Mesmo que muitas dessas teorias não recorram a
princípios fundamentais supra-sensíveis, a definição de natureza humana já é em si uma
questão merecedora de análise criteriosa. O problema se agrava diante da atração de
psicólogos e estudantes pelas chamadas psicologias alternativas.

Um modo interessante de lidar com essas questões e de desenvolver habilidades de


pensamento crítico é o diálogo com os grandes filósofos, em particular com as teorias
sobre natureza e comportamento humano. O diálogo com as idéias psicológicas dos
filósofos auxilia na identificação dos elementos que devem compor uma teoria de
psicologia, e mostra com clareza as perguntas que uma teoria psicológica deve
responder. O distanciamento atual destas teorias permite a realização de um exame
crítico indolor, sem patrulhamento e sem proselitismo. Como resultado, nós aprendemos
a pensar psicologicamente e não através de determinada teoria psicológica.

A filosofia caracteriza-se pelo estudo do amplo e do universal, enquanto as ciências


concentram-se no particular, ocupando-se de parcelas da realidade. A filosofia e as
ciências, em conformidade com suas características, estão igualmente empenhadas em
encontrar e explicar as causas e modos de expressões do real. Mas, a filosofia, em suas
análises globais, permite a compreensão gradativa e articulada de temas complexos e
controversos.

Parece-me mais vantajoso iniciar-se na psicologia examinando as proposições advindas


da reflexão filosófica do que estudando os volumosos e desconexos manuais de
introdução à psicologia, alguns dos quais com mais de 800 páginas, divididas em três
colunas. Aqui uma advertência se faz necessária. Os manuais de introdução continuam
sendo indispensáveis para uma visão acurada da extensão do campo psicológico
contemporâneo, mas para usufruí-los deve-se, antes, aprender a pensar criticamente.

Comparando-se as exposições filosóficas sobre o comportamento humano, desde a


Antiga Grécia até o século XVIII, nota-se que os fenômenos chamados de psicológico
emergem de dois pólos tensionais: a gnose e o éthos: a primeira se referindo à ação de
conhecer; a segunda ao lócus onde tal ação se manifesta. Por éthos se entende o
conjunto de costumes e hábitos fundamentais, no âmbito do comportamento humano e
da cultura, característicos de uma determinada coletividade, época, e região.

A ação de conhecer apresenta-se como a capacidade para interpretar e responder àquilo


que ocorre com o agente do conhecimento, com os outros, e com o entorno. Para tanto,
espera-se deste agente o domínio de um código ou linguagem, a aprendizagem com a
experiência, a empatia e solidariedade com os demais membros da comunidade, e o
autocontrole de acordo com as regras do grupo. A relação entre conhecimento e
autocontrole está associada à reflexão sobre como é possível o conhecimento e por que
o conhecimento orienta o autocontrole. A reflexão ocupa-se então de duas tarefas:
discernir a veracidade do conhecimento e explicar a capacidade de conhecer. Tem-se,
então, a invenção da filosofia e da psicologia: a primeira ocupando-se da origem lógica,
da validade e do valor universal do conhecimento; a segunda, da gênese e do valor
individual do conhecimento. A primeira implicação nos remete ao campo da
epistemologia (Knowledge, logos, discourse), a segunda ao campo da gnosiologia
(théorie de la connascenza). Por influência da língua inglesa, o termo epistemologia
acabou consagrando-se como denominador das duas implicações, causando certa
confusão entre a capacidade humana de conhecer e de questionar as suas crenças, e a
verdade sobre o que é dado como conhecido. A distinção entre gnosiologia e
epistemologia facilita o reconhecimento das diferenças entre racionalismo e empirismo
quando aplicados à gênese do intelecto (nativismo versus ambientalismo), e à
verificação lógica do conhecimento (dedução e indução).

O éthos é o contexto cultural que baliza, que estabelece as regras da moral e do direito,
e que confronta e é confrontado pelo comportamento do agente do conhecimento. A
psicologia sem a noção do éthos esvazia-se, pois é ela que fornece o olhar externo para
variações comportamentais ditas adequadas ou inadequadas, bem formadas ou mal-
formadas, normais ou anormais. Portanto, a psicologia ocupa-se das duas faces da
questão, procurando explicar tanto a capacidade de conhecer quanto a capacidade de
apresentar comportamentos socialmente adequados.

Qualquer comportamento humano é social e qualquer ato humano é moral.

A introdução a essas questões complexas e profundas é grandemente auxiliada pela


análise das teorias metafísicas. Essas teorias partem das relações entre: 1) elementos e
princípios de vida, 2) sensibilidade (sensações, apetites, paixões, emoções) e 3)
racionalidade e inteligência. Note-se a proximidade com a definição de James
apresentada acima: (1) pensamentos e sentimentos, e (2) o mundo físico em tempo e
espaço com os quais eles coexistem e os quais (3) eles conhecem. As três instâncias são
tratadas em suas articulações e contrastes. Por exemplo, qual a relação entre
sensibilidade e racionalidade? Qual seria a via para um conhecimento confiável? Qual a
diferença entre percepção e imaginação? Qual a relação entre sonho, memória, e
consciência? Como são formados os hábitos? E o que ocorre quando alguma dessas
funções adoece? As teorias vão além se preocupando em decifrar os embates entre a
racionalidade e as paixões, e em entender a vontade: a iniciação de uma ação, o exame
das razões para realizá-la ou não, e a decisão para agir do modo escolhido ou não.
Todos esses elementos são compreendidos por um princípio fundamental (ontologia)
supra-sensível (racionalismo) ou não (empirismo) que serve de base para as
intervenções educacionais e psicológicas. A vantagem deste exercício crítico é a
comparação dos elementos básicos e das regras de relações, com as explicações que a
teoria fornece. Talvez, se a psicologia não fosse tão vulnerável à mistura do joio com o
trigo, como falou Stanovich (2004), não necessitássemos deste esforço. Em
compensação, começa-se a conviver com um grande número de nomes e idéias que
freqüentam assiduamente os periódicos de psicologia, os diários de notícias, o teatro e o
cinema (Sócrates, Platão, Aristóteles, Agostinho, Aquino, Lutero, Descartes, Espinosa,
Leibniz, Locke, Berkeley, Hume, Reid, e Kant). Ainda é bem provável que se obtenha
uma noção mais clara das relações entre teoria e prática. No Brasil, as relações entre
filosofia, idéias psicológicas, e ética no período colonial vêm sendo investigadas, do
ponto de vista histórico e teórico, por Marina Massimi (ver por exemplo Massimi,
2001).

O estudo das idéias psicológicas me parece valioso para se discernir os ingredientes


necessários a uma teoria psicológica. Teoria, neste contexto, apresenta-se como
generalista, mais afeita à idéia de sistema ou macroteoria. É bem verdade que a
preferência atual é por microteorias que são específicas, econômicas, e ágeis na solução
de problemas. Mesmo reconhecendo o valor das microteorias, das especialidades e das
linhas de pesquisa, a compreensão abrangente, mesmo que superficial, do campo de
ciência a que se pertence faz bem ao profissional e ao pesquisador.
Diálogos com a filosofia da ciência

Para Wolman (1973), a transformação da psicologia em ciência autônoma deixou a


filosofia sem objeto de estudo, cabendo aos filósofos uma outra missão: assumir a
leitura crítica das ciências.

Filósofos da ciência não são filósofos no sentido tradicional e tem pouco a ver com a
visão de mundo dos sistemas metafísicos (...) eles não descobrem ou trazem qualquer
conhecimento sobre astronomia, física, biologia e psicologia, mas analisam os trabalhos
e as palavras dos astrônomos, dos físicos, dos biólogos, e dos psicólogos. A tarefa
destes filósofos é estudar a ciência. Neste sentido, eles estão contribuindo enormemente
no desenvolvimento de métodos para a análise formal do trabalho científico. (Wolman,
1973, p. 23)

Nos anos 1970 e 1980, vários cursos de psicologia deram início a um conjunto de
atividades para o estudo da filosofia da ciência. As atividades consagraram-se nas aulas
de epistemologia que se caracterizaram como extremamente críticas ao projeto de
ciência natural da psicologia. Na época, difundia-se entre nós um projeto empírico para
as ciências humanas, tendo a linguagem como empiria. As idéias francesas sobre
marxismo, estruturalismo, fenomenologia e existencialismo animavam nossas aulas e
debates. Essas teorias exerciam forte influência em estudos literários, filosóficos,
cinematográficos e psicanalíticos. Os resultados manifestaram-se de diversos modos: na
polarização entre ciências naturais e ciências humanas; na emergência de uma
psicologia social de orientação crítica, ou sócio- histórica; e na procura por cursos de
pós-graduação na área da filosofia ou da lingüística por parte de muitos psicólogos.
Uma decorrência metodológica do período e ainda presente em nossa academia é um
certo entendimento de coerência epistemológica. Tal coerência é avaliada na habilidade
de ser capaz de conduzir a pesquisa, de acordo com um determinado referencial, seja
um autor ou teoria. Por exemplo, se o autor de referência é Piaget, Lacan ou Foucault,
deve-se permanecer restrito às posições do autor ou a de seus intérpretes, e jamais usá-
los como uma referência de passagem em um texto geral. Fossem essas as regras
epistemológicas, os autores mencionados não teriam alcançado tão grande impacto.
Esclareça-se, contudo, que a base referencial é necessária, mas a análise comparativa de
conceitos e o apoio da evidência empírica são fundamentais para o avanço do
conhecimento.
Na década de 1990, notou-se um acentuado declínio na polarização entre ciência natural
e ciência humana nas discussões psicológicas na literatura internacional. No Brasil a
polarização continuou marcante. Contudo, a grande popularidade alcançada pelas
pesquisas qualitativas contribuiu para uma aproximação entre pesquisadores qualitativos
e quantitativos. É óbvio que há ainda um radicalismo remanescente que mantém o
reducionismo para as duas pontas (natural ou humano; quantitativo ou qualitativo,
objetivista ou subjetivista), mas há também uma maior abertura e mesmo um
amadurecimento na discussão destas questões. Do mesmo modo, reconhece-se no Brasil
o grande interesse dos psicólogos por abordagens sociais e subjetivistas, mas a relação
com a epistemologia caracteriza-se muito mais pela procura de coerência metodológica
do que pela primazia da verdade. Esses avanços estão associados em grande parte ao
desenvolvimento dos programas de pós-graduação stricto sensu.

Epistemologia pode ser definida como a estrutura subjacente que delimita os modos
como os objetos são percebidos, agrupados e definidos. Neste sentido, o termo
epistemologia ou episteme passou a ser usado tanto para se referir à certeza, quanto à
suposição, ou mesmo à opinião. Em 2001 a Universidade de Stanford lançou uma
Enciclopédia de Filosofia on-line e de acesso livre . Os verbetes, escritos por filósofos
renomados, ensejam um diálogo produtivo com diferentes epistemologias, por exemplo,
bayesiana, evolucionária, feminista, moral, naturalizada, social, e da virtude. Os textos
tratam tanto de questões tradicionais, digamos as conexões entre nossas sensações e a
percepção do mundo (epistemologia naturalizada); quanto de questões recentes,
digamos o desenvolvimento de formas lógicas para tomada de decisão (epistemologia
bayesiana), a influência de gênero na justificação do conhecimento (epistemologia
feminista), e a influência das práticas sociais no desenvolvimento científico
(epistemologia social). As posições são controversas, mas os ensinamentos estão na
maneira de como as perguntas são formuladas.

Tome, por exemplo, a epistemologia da moral e pergunte: como se faz possível o


conhecimento da moral? A resposta é problemática. A perspectiva sociológica defronta-
se com duas possibilidades opostas: 1) fatos morais não existem e os conflitos devem-
se, muito mais, à sensibilidade moral do que aos fatos morais; ou 2) existe
conhecimento moral, mas os fatos morais dependem dos valores do grupo e por isso não
são verdades universais. A perspectiva psicológica traz o problema do julgamento moral
como dependente de motivações intrínsecas, sendo impossível falar-se de conhecimento
da moral. A perspectiva ontológica vai perguntar o que é moral? A resposta vai
depender de uma outra análise: moral é uma realidade natural ou supra-sensível,
internalista ou externalista? Logo, o conhecimento moral dependerá da definição de sua
realidade. A perspectiva feminista entende que o encaminhamento da questão é
suspeito, pois pode trazer critérios implícitos de verdade que têm prejudicado mulheres
ao longo do tempo. Enfim, como se mover em tamanha controvérsia? O filósofo
Richmond Campbell (2003) sugere que uma possibilidade é fazer a distinção entre
crenças morais e a representação da realidade moral.

Diante da variedade de epistemologias, pode-se argumentar que a tarefa do pesquisador


resume-se a escolha da teoria que se ajusta a seu modo de conhecer ou ao que quer
conhecer. No entanto, há um forte movimento entre filósofos contrários ao relativismo
epistemológico. A crítica à epistemologia é, no entanto, favorável à psicologia. Quine
(1969) defendia que os filósofos deveriam recorrer à psicologia cognitiva e às
neurociências, sob o argumento de que "as boas razões" devem ceder o lugar à
"evidência adequada" (Feldman, 2001). No momento, grupos de filósofos estão
acompanhando atentamente o desenvolvimento das teorias da mente para reverem suas
explicações epistemológicas. O filósofo Robert Audi, editor do The Cambridge
Dictionary of Philosophy (Audi, 1999) disse em artigo recente (Audi, 2000) que um
entendimento corporificado de epistemologia, filosofia da ciência, filosofia da mente, e
ética é a tendência mais difundida e influente na filosofia contemporânea. Com efeito, é
esta tendência que vem se sobressaindo na literatura denominada de psicologia
filosófica.

Diálogos com a psicologia filosófica

O interesse da psicologia filosófica abrange todas as frentes da psicologia


contemporânea. Como exemplo podem ser citados: a influência da neurociência
cognitiva e da psicologia biológica na compreensão de seres humanos; o manejo de
saúde mental na prática psicoterapêutica; as implicações éticas da pesquisa e da prática
profissional; o lugar da espiritualidade; o papel dos métodos qualitativos em psicologia,
entre os quais a fenomenologia, a psicologia cultural, a narrativa e a análise de discurso;
e as perspectivas feministas e pós-modernistas para o conhecimento psicológico. Para
esta breve menção aos debates contemporâneos entre psicologia e filosofia, vou me
limitar aos problemas da representação, da experiência consciente, da vontade, e da
moral.

A representação mental é caracterizada como um problema sério a ser esclarecido pelos


filósofos da mente. O filósofo australiano Peter Slezak (2002) resumiu o problema do
seguinte modo:

O mesmo tópico foi central na famosa controvérsia entre Antoine Arnauld e Nicolas
Melebranche no século XVII, e também central na tradição das "idéias" nos escritos de
Locke, Berkeley, Hume, Reid e Kant. Este padrão de recorrência é um fato intrigante.
Contudo, a literatura em ciência cognitiva pouco acrescentou à história dos primeiros
pensadores da filosofia moderna.

Por conseguinte, o filósofo John Yolton (1996), um estudioso da relação entre


percepção e realidade, disse ter muita esperança de que a leitura dos primeiros
pensadores da idade moderna possa nos ajudar a entender como nós podemos ter
representação (cognitivamente) e realismo.

Os dois grandes fantasmas desta discussão são as definições do esquema básico da


representação, e a recorrente ameaça do homúnculo (a idéia da existência de um ser
interior). O esquema usado para definir representação contém três partes: o que é
representado (mundo), a representação (idéia), e o usuário da representação (mente). A
falha do esquema, segundo Slezak (2002) é não fazer a distinção entre representações
internas e externas, e pensar que a idéia se interpõe entre o mundo e a mente. No
entanto, as soluções apresentadas são no mínimo problemáticas. A redução do modelo
triádico para o modelo dual transforma-se em três prováveis soluções insatisfatórias,
pois um dos componentes terá de ser excluído. A exclusão da idéia leva ao realismo
radical, pois os objetos seriam presenças literais para a mente, não haveria ilusões, por
exemplo. A exclusão do mundo traria de volta o solipsismo de Berkeley ou a autonomia
da subjetividade. Por fim, a exclusão da mente acabaria com qualquer projeto de
psicologia, e o sujeito cognoscitivo não passaria de um robô. Na base de toda essa
polêmica está a controvérsia sobre os dados experienciais: o problema dos dados da
primeira pessoa.
Dados experienciais e primeira pessoa remetem à tradição filosófica da fenomenologia.
Aliás, quando se fala na relação entre psicologia e filosofia, a fenomenologia e o
existencialismo aparecem como referências obrigatórias nos nomes de Brentano,
Husserl, Jaspers, Heidegger, Sartre, e Merleau-Ponty. Essas abordagens foram
responsáveis por uma reaproximação temática entre psicologia e filosofia, nos meados
do século XX, com repercussão no campo da psicopatologia, da psicoterapia e da
pesquisa qualitativa. Não seria surpresa afirmar que o diálogo entre psicólogos e
filósofos continua animador, justamente, em torno dos conceitos fenomenológicos de
experiência consciente e intencionalidade. A surpresa deste diálogo entre psicólogos e
fenomenólogos está no seu objetivo: a naturalização da fenomenologia. O mais
surpreendente é que esses diálogos, fundamentados em pesquisa empírica e análise
filosófica, estão trazendo contribuições importantes para uma compreensão mais
articulada e integrada da teoria psicológica.

Na verdade, a naturalização da fenomenologia teve início com a filosofia de Merleau-


Ponty (1942/1975, 1945/1994), reintegrando as observações de Husserl sobre o
fenômeno da consciência com a estrutura de como a consciência é vivenciada no corpo.
Por volta de 1990, investigações reconhecidas como neurofenomenologia receberam
grande impulso, sob a liderança do proeminente neurocientista Francisco Varela.

No final da década, um grupo de pesquisadores e professores de instituições francesas


(Petitot, Varela, Pachoud, & Roy, 1999) organizou um livro intitulado Naturalizing
Phenomenology, publicado pela editora da Universidade de Stanford. O objetivo deste
grupo interdisciplinar (neurocientistas, epistemólogos aplicados, e filósofos
husserlianos) foi reforçar a pesquisa científica da cognição com o auxílio da
fenomenologia de Husserl, e também transformar a própria fenomenologia com os
recursos da neurocognição.

Como se sabe, as pesquisas em cognição sofreram muitos percalços ao longo de século


XX. Experiência e cognição, enquanto consciência, constituiu o primeiro foco de
pesquisa em psicologia experimental. Limitações instrumentais e metodológicas
desviaram a atenção da cognição para o comportamento, perdendo-se no percurso os
dados de primeira pessoa, aqueles dados experienciais ou subjetivos, tão caros aos
experimentos em psicofísica, no século XIX. A novidade do dado comportamental de
terceira pessoa desqualificou o dado experiencial de primeira pessoa. Quando se retorna
à cognição, por volta dos anos 1960, assume-se a perspectiva da terceira pessoa,
deixando de lado a subjetividade (primeira pessoa). Gradualmente, os pesquisadores em
cognição, fortemente influenciados pelos sistemas computadorizados de informação e
pela inteligência artificial, foram encontrando dificuldades na análise dos dados
cognitivos. Tais dados não se enquadravam em esquemas da lógica formal. Diante desta
limitação, alguns cognitivistas foram aos poucos introduzindo dados de primeira pessoa
ao solicitar relatos verbais dos sujeitos de pesquisa. A aliança entre cognição e
fenomenologia é um programa interdisciplinar na procura de soluções epistemológicas
satisfatórias para os dados de primeira pessoa e para a estrutura cognitiva da percepção
de tempo.

A aproximação entre fenomenologia, cognição e neurociência foi incentivada pelos


resultados obtidos por Luria (1981) e outros neurologistas em pacientes com desordens
cerebrais. Em 1990, o renomado geneticista Francis Crick, prêmio nobel da medicina,
lançou um livro sobre a busca científica da alma (Crick, 1998). Interessado nas
repercussões, ele reuniu vários cientistas e filósofos para o estudo da consciência. Tais
investigações foram grandemente auxiliadas pelo desenvolvimento de tecnologias como
funcional Magnetic Resonance Imaging (fMRI), Positron Emission Tomography (PET),
e Magnetic Encephelography (MEG), viabilizando a representação das correlações entre
atividade neural e experiência consciente.

A colaboração de filósofos e cientistas tem permitido um refinamento conceptual


importante para a teorização em psicologia. Figueiredo (1989) em seu popular Matrizes
do pensamento psicológico fez uma clara distinção histórica e conceptual entre
psicologias funcionais e psicologias compreensivas. Tal dicotomia está sendo superada
pelo trabalho conjunto entre filósofos e cientistas. O neurocientista italiano Vittorio
Gallese e o filósofo alemão Thomas Metzinger escreveram recentemente um artigo
intitulado Motor ontology: The representational reality of goals, actions and selves
(Gallese & Metzinger, 2003). Os autores, baseados em resultados neurocientíficos,
mostraram como o sistema motor contribui e participa da experiência consciente, e da
emergência da primeira pessoa. Para eles, "o sistema motor constrói objetivos, ações e
selves intencionais enquanto constituintes básicos do mundo que interpretam" (p. 384).
Na mesma direção, Clément e Malerstein (2003) articularam a análise filosófica com a
psicologia do desenvolvimento para explicar a ontogênese da consciência, oferecendo
uma descrição empírica para o desenvolvimento da intencionalidade nos primeiros
meses de vida. Intencionalidade refere-se ao direcionamento da consciência, como
resume a frase tão popular entre nós: consciência é sempre consciência de alguma coisa.

Na primeira parte desta apresentação, sintetizei o núcleo central das idéias psicológicas
em torno do conceito de vontade (volição), enquanto campo onde ocorrem os embates
entre a gnose e o éthos. Pergunta-se então: por que um agente, embora julgue que A é
melhor e decida por A, faça voluntária e intencionalmente B? Os avanços nas pesquisas
sobre volição estão aqui representados nos trabalhos do neurocientista cognitivo Jing
Zhu, da Academia Chinesa de Ciências. Zhu (2004a) inicia sua argumentação em favor
do resgate do conceito de volição, apoiando-se no célebre artigo de Hilgard (1980),
intitulado A trilogia da mente: Cognição, afeição e conação. Em seu artigo, Hilgard
lembrou que até o início do século XX filósofos e psicólogos sustentavam que a volição
era a propriedade essencial para o direcionamento consciente da ação (conação).
Volição é definida como um processo executivo mental que faz a intermediação e a
ligação entre as deliberações, as decisões, e os movimentos corporais voluntários (Zhu,
2004a). A definição dá conta tanto do entendimento clássico - volição como processo
iniciador da ação; quanto do entendimento contemporâneo - volição como controle
executivo essencial da ação na implementação da intencionalidade. A ação é descrita
como um movimento precedido pelo pensamento, em combinações apropriadas de
crenças e desejos, intenções ou razões. Searle (2001) dividiu as relações entre
pensamento e ação em três partes: razões para decisão; decisão para ação, e execução da
ação. O problema, segundo o autor, são as falhas entre as partes:

Tanto quanto informa nossa experiência consciente, as falhas ocorrem quando crenças,
desejos e outras razões não são experienciadas como condições causais suficientes para
a decisão (a formação a priori da intenção); quando a intenção a priori não coloca a
condição causal suficiente para a ação; e quando a iniciação do projeto da intenção não
coloca condições suficientes para a continuação ou finalização da ação. (Searle, 2001, p.
62)

Note-se que na perspectiva de primeira pessoa a falha pode ou não se apresentar como
uma fonte de insatisfação experiencial (estar feliz ou infeliz com o que se fez), o mesmo
ocorrendo com a perspectiva de terceira pessoa (estar feliz ou infeliz com o que o outro
fez). A situação poderia ser amenizada se compartilhada na perspectiva de segunda
pessoa (intersubjetividade), compartilhamento da falha: todos somos incapazes de
atender as exigências dos nossos desejos. A breve digressão é apenas para mostrar o
encontro entre a gnose (sujeito cognoscitivo) e o éthos (a perspectiva do grupo), ou as
relações da psicologia como ciência básica (processos básicos, psicopatologia, cognição
social) e como aplicação (psicoterapia, educação, comunidades, hospitais, ambiente,
etc.).

As falhas da ação e a implicação ética decorrente são aqui ilustradas por estudos das
filósofas Roskies (2003) com o sugestivo título: São julgamentos éticos intrinsecamente
motivacionais: Lições de uma "sociopatia adquirida"; e Greenspan (2003) intitulado
Psicopatas responsáveis. A sociopatia é um distúrbio mental no qual o agente apresenta
comprometimento na capacidade para seguir regras morais como base racional de ação.
O debate filosófico concentra-se no impasse entre liberdade e determinismo nestes
casos reconhecidos como impedimentos motivacionais.

Roskies mostrou como evidências empíricas em psicologia podem contestar posições


filosóficas sobre princípios éticos a priori, por exemplo, que as crenças morais são
intrinsecamente motivadas (ética internalista). Como evidência, a autora menciona o
caso de pacientes com lesões cerebrais que são capazes de fazer julgamentos morais,
mas se mostram incapazes de seguir regras morais. Por sua vez, Greenspan propôs
critérios para a avaliação e responsabilização de comportamentos tidos como
sociopatas, com base em análise de casos clínicos. Para ela, há diferenças entre
sociopatias decorrentes de maltratos na primeira infância, e de deficiências congênitas
como lesões cerebrais ou problemas neuroquímicos. Tais condições devem ser tratadas
diferenciadamente do ponto de vista da responsabilidade ética e legal. De interesse, é
ressaltar a importância da pesquisa psicológica para as discussões filosóficas
contemporâneas com relação à ética (comportamento).

A esta altura, a pergunta óbvia é se há volições não-conscientes. Com efeito, nem todas
as ações voluntárias envolvem volições, mas volições não-conscientes são implausíveis:

Há estados mentais inconscientes ou processos envolvidos na produção e controle da


ação do agente, das quais o agente não tem acesso consciente ou não está ciente, mesmo
assim, é inapropriado do ponto de vista conceptual a aplicação do termo volições não-
conscientes, pois diminuem e empobrecem o vocabulário filosófico e científico. (Zhu,
2004b, p. 317)

Estudos científicos da volição e do desejo, com base em achados das neurociências,


evidenciam a correlação entre processos mentais e processos cerebrais. Funções e
processos mentais superiores tais como consciência, atenção e controle motor voluntário
distribuem-se e interagem com várias regiões cerebrais, sugerindo que os processos
psicológicos são globais e integrados. A volição está associada ao córtex cingulado
anterior (massa cinzenta localizada na margem medial do hemisfério cerebral). O córtex
cingulado anterior participa dos processos de tomada de decisão, das emoções e da
regulação dos batimentos cardíacos. É também responsável em tornar memórias novas
em memórias permanentes. O córtex cingulado anterior contém um tipo de células
nervosas (spindle neurons) só encontradas em grandes primatas e humanos (Gehring &
Knight, 2000; Posner & Rothbart, 1998). Para Zhu (2004a, 2004b), as considerações
funcionais, fenomenológicas, e neurobiológicas sugerem que a unificação do conceito
de volição é viável e consistente.

A controvérsia mais proeminente é sobre a abordagem de primeira pessoa. Pergunta-se,


então, a experiência consciente e a representação são conceitos ontológicos
cientificamente justificados? Chalmers (1997) acha que sim, mas Dennett (1991) acha
que não. Com Chalmers estão vários filósofos entre os quais Varella, Nagel, Searle,
Fodor, Levine, Pinker, e Harnad. Com Dennett (1991) estão Quine, Rorty, Hofstadter,
os Churchlands, Andy Clark, Lycan, Rosenthal, e Harman. Chegaremos a algum
consenso ou continuaremos com as discussões por tempo indeterminado? Só o futuro
dirá.

Epílogo

O diálogo com as primeiras relações entre psicologia e filosofia rompe com a


ingenuidade do psicólogo, desenvolvendo o pensamento crítico para a análise das
relações entre ontologia (o que é), epistemologia (como se justifica) e ética (para que
serve), em uma dada teoria. Como resultado, fica-se atento para as relações intrínsecas
entre os enunciados ontológicos e éticos - a conhecida ambigüidade entre fatos e
valores, ou seja, a transformação de fatos em valores e de valores em fatos. É ainda uma
maneira interessante de se iniciar no estudo das bases gerais da teorização em
psicologia.

O diálogo com a filosofia da ciência traz um domínio importante de termos básicos que
atravessam todas as nossas pesquisas e idéias: empirismo, racionalismo, idealismo,
ambientalismo, nativismo, solipsismo, objetividade, subjetividade, funcionalismo,
compreensivismo, e naturalismo.

Contudo, a contribuição mais marcante é o desenvolvimento da capacidade para


planejamento, execução e análise de dados de pesquisa. A filosofia da ciência contribui
para a crítica de métodos e para o cuidado com as interpretações. No entanto, a
literatura sobre filosofia da ciência e epistemologia não substitui a literatura sobre
história e teoria psicológica. Esses conhecimentos devem ser examinados em conjunto.

O diálogo com a psicologia filosófica traz uma visão ampla e abrangente de uma
epistemologia naturalista capaz de incorporar contribuições de diferentes campos do
conhecimento, como a fenomenologia e a neurofisiologia. Temas que obtiveram
grandes espaços na agenda epistemológica do século XX, como o pós-modernismo, o
feminismo, e a sócio-história continuam presentes, mas em menor número de
publicações. O crescimento da literatura em psicologia filosófica é facilmente
demonstrável pelo aumento do número de publicações. Mas continua uma área de
pouco interesse. A divisão 24 da APA é a menor em número de membros, entre as suas
congêneres. Tal situação parece-me justificada, pois a ênfase é a concentração focal e
intensa na especialidade de aplicação ou na linha de pesquisa que se desenvolve. Neste
sentido, a psicologia filosófica é mais uma especialidade, mais uma linha de pesquisa, e
assim restrita aos seus simpatizantes e estudiosos.

Com relação ao lugar da psicologia filosófica na formação, embora se reconheça a


pertinência, sabe-se que o encaminhamento é complicado. A enorme procura pela
profissão leva os cursos para uma orientação mais voltada às aplicações e à prestação de
serviços. Estudos básicos e exercícios abstratos de pensamento lógico acabam se
restringindo a grupos seletos, dispostos a examinarem as implicações de suas pesquisas
e práticas em um plano mais elevado de teorização. Seja como for, o interesse por
discussões filosóficas e por interfaces entre psicologia e filosofia está em declínio em
nossos cursos de graduação e de pós-graduação. Espera-se que o reconhecimento da
importância social da pesquisa empírica, tendo em vista o oferecimento de aplicações
seguras e éticas, preserve espaços para teorização e para a crítica filosófica do
conhecimento psicológico.

Agradeço as orientandas Daniela Benites e Amanda da Silveira pela leitura crítica e


oportunas sugestões.

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