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PARA ALEM DAS MATRIZES: A PSICANALISE

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lo traba-

COMO ENCLAVE DA MODERNIDADE


re a afir-

oitempo,
BEYOND THE MATRIXES:
Revista THE PSYCHOANALYSIS WHILE AN ENCLAVE OF MODERNITY
perários: de
l7 f. Tese Psicologia Luís Cláudio Figueiredo 1
~deral do

:Obras PALESTRAS
311-339.
1. Rio de

Esta palestra tem como título: "Para além das ceu assim, quer dizer, não é uma condição que tenha
o: O Tra- Matrizes: a Psicanálise como enclave da Modernidade". crescido; não se trata de ter começado unificado e de-
ação.São Após comunicar esse título para o professor José Célio pois se tornado diverso, múltiplo. A Psicologia já co-
Freire (meu ex-orientando de Doutorado na USP e res- meça com essa diversidade e até hoje continua assim.
) político ponsável pelo convite), recebi dele o aviso de que a pala- Como entender isso? Qual a razão de ser dessa condi-
17. vra enclave não constava do Aurélio. Ao que eu retruquei: ção? Como nos situarmos diante do campo da psico-
"então consulte o Houaiss, porque do Houaiss consta". logia ou das psicologias, das suas histórias, dos seus
Mas isso, para que não criemos uma mera disputa entre cruzamentos? Tais perguntas levaram a que, num dado
dicionários, tem algum interesse. De fato, "enclave" não momento, eu me dedicasse a pensar essa diversidade
é uma palavra de uso assim tão corrente. Pode produzir no âmbito da epistemologia, ou seja, a procurar
urna certa estranheza como a que ocorreu com o amigo explicitar uma certa compreensão dos pressupostos
Célio. Acho que a minha conferência começou a fazer antropológicos, teóricos, metodológicos e éticos que
efeito justamente aí, ao introduzir o título, ele mesmo, fomentam essa diversidade do campo psi.
como uma espécie de enclave, produzindo esse descon- Trata-se de uma questão que resultou num li-
certo. O Célio deve ter pensado: "mas que vergonha! vem vro que eu escrevi quando atuava como professor vi-
um sujeito lá de longe, meu convidado, falar de um ne- sitante na Universidade Federal da Paraíba. Passei dois
gócio que não existe". Mas existe. Existe, mas é esquisito. anos lá e, ao longo desse tempo, escrevi o que foi pu-
É exatamente essa a condição da psicanálise que me pa- blicado com o nome de "Matrizes do pensamento psi-
rece interessante poder comentar: "A Psicanálise como cológico". Talvez alguns de vocês já tenham ouvido
enclave da Modernidade". Existe, mas é esquisita. falar. É um livro no qual eu coloco idéias que até hoje
O meu interesse a respeito da Psicologia na sua me parecem importantes. Até hoje, eu uso esse livro
diversidade, na sua complexidade, é muito antigo. Na tanto na graduação, quanto na pós-graduação da USP,
verdade, eu diria: começou quando eu ainda era alu- por exemplo. Mas, aqui entre nós, falando francamen-
no de Antônio Gomes Penna, cuja biografia acabei de te, é um livro pessimamente escrito. A leitura desse
escrever a pedido do CFP 2, feito em 1965. Depois de catatau costuma ser um tormento para os alunos. É
formado, ao longo do mestrado, do doutorado e da uma pena, entretanto, pois, modéstia à parte, ele con-
livre-docência, eu sempre, de uma forma ou de outra, tém algumas idéias que ainda me parecem boas e que
retomava a essa questão: como compreender o nosso não são encontradas em outras fontes. Vejo que está
campo? Como compreender o nosso campo com essa todo mundo concordando comigo. Esse livro merecia
pluralidade de perspectivas teóricas, metodológicas, um escritor melhor. Tem algumas idéias interessantes
éticas que, segundo a minha avaliação, não é uma di- e originais, mas mal explicitadas, mal formuladas, e
versidade que tenda a se reduzir? Este campo já nas- de uma maneira muito incômoda para o pobre leitor.

·Palestra proferida por ocasião da XX Semana de Psicologia da UFC (8 a 12 de julho de 2002).


1
Psicanalista, Professor da USP e da PUCSP, autor de Matrizes do Pensamento Psicológico (1991), A Invenção do Psicológico e Ética
e Técnica em Psicanálise (1992}, entre outros livros. E-mai/: lclaudio@netpoint.com.br
2
Cf. FIGUEIREDO, L. C. Antônio Gomes Penna. [s.l.]: Ed. lmago, 2002.

· Revista de Psicolo~a, Fortaleza, v. 21 n.lf2, p.103-110, janJdez. 2003 11!1


Todavia, apesar da péssima qualidade literá- mensão da existência desde o final da Idade Média,
ria, "Matrizes do pensamento psicológico" fez um desde o Renascimento até, digamos assim, o início do
certo sucesso que, para mim, é uma surpresa. Está que seria uma pós-modernidade, ou, digamos de ou-
na oitava edição, se não me engano, ou seja, ele é tra forma, do que é uma modernidade tardia. Trata-
lido por aí afora, pelo Brasil. Depois eu vou falar um se do momento em que nasce, entre outras produções
pouquinho mais dele. O que eu queria dizer, basica- do chamado modernismo, a psicanálise.
mente, é que essa foi minha primeira tentativa de O então livro A Invenção do Psicológico 3 , literari-
organizar, de uma maneira mais abrangente, de uma amente, é muito melhor do que o Matrizes, embora
maneira, digamos, mais panorâmica, a diversidade não o substitua. Recomendo-o a vocês. Realmente, esse
do campo psicológico. O intuito era o de ajudar a livro de 1992 e que já está na sexta edição, é interes-
mim mesmo, aos meus alunos, aos meus colegas, a sante, é mesmo gostoso de ler. Mas o que eu queria
nos situarmos nesse campo. Dar a ele uma certa comentar é o seguinte: tanto na compreensão do cam-
inteligibilidade. Porque, se a gente não tenta obter po obtida a partir das matrizes psicológicas, quanto
esta inteligibilidade, o nosso campo parece um caos. na compreensão alcançada a partir daquilo que eu fui
Em certo sentido, ele realmente é caótico. A forma- elaborando em "A Invenção do Psicológico", a Psica-
ção do aluno em Psicologia reflete esse caos. Reflete
nálise sempre ficava numa posição realmente esqui-
essa diversidade, essa fragmentação, essas coisas que
sita. Ela ficava numa relação que, ao mesmo tempo,
não se encaixam, que se atravessam, que se desmen-
era de grande pertinência e de grande impertinência no
tem umas as outras.
contexto da cultura e, em especial, da cultura psi .. É
Dez anos depois de eu ter escrito "Matrizes do assim que uma certa noção de enclave vai se tornan-
pensamento psicológico", voltei ao tema por um ou- do necessária.
tro ângulo: não se tratava tanto de entender a diversi-
Por exemplo, considerando o livro Matrizes, se
dade da psicologia, mas de entender a complexidade
vocês tiverem a paciência de ler esse pequeno
do próprio objeto, isto é, a vida psíquica, a vida men-
calhamaço, verão que, praticamente em todas as ma-
tal, a subjetividade. Levava em consideração, essa era
a minha hipótese, o fato de que a importância desse trizes psicológicas, de alguma maneira direta ou oblí-
tema, que é o nosso - o psicológico - não era casual. qua, eu faço referência a alguma dimensão da
Fazia parte de uma história, fazia parte, digamos, da Psicanálise. Porém, em nenhuma delas, posso situar
"evolução" de uma certa cultura, que é a cultura oci- de maneira confortável o pensamento psicanalítico ou
dental moderna. Para entendermos o que é o nosso a prática psicanalítica. Ela está- ou é-, de uma certa
objeto, como é que ele se constituiu, como é que ele se maneira, pertinente a todas as matrizes. Tem, diga-
tornou relevante para o homem contemporâneo, é mos, um pé nestas, e inclusive nalgumas que são an-
necessário uma pesquisa histórica sobre a cultura tagônicas, isto é, que implicam em concepções
moderna e sobre os modos de subjetivação modernos bastante contraditórias sobre o mundo, o homem, o
e contemporâneos no Ocidente. Mesmo para quem psiquismo e o conhecimento. Mas se a Psicanálise está
não é psicólogo, mesmo para quem não está direta- ali, por outro lado, ela é impertinente: parece uma es-
mente lidando com o psicológico, enquanto profissio- pécie de estranho no ninho, estranho em todos os ni-
nal ou estudante, sem dúvida, esta é uma dimensão nhos. Ela não cabe, não se acomoda adequadamente
de um extraordinário impacto em nossa vidas e em em nenhuma matriz do pensamento psicológico. Ela
nossa idéias sobre a vida. não pode, digamos assim, de fato ser apresentada
Hoje, nós nos pensamos e interpretamos nos- como um representante legítimo de qualquer desses
sas ações e existência em termos do psiquismo, do modos de pensar o homem e o psiquismo.
psicológico. Nem sempre foi assim. Para entender a Algo deste gênero também se passa no caso do
importância disso, para entender a complexidade que livro "A Invenção do Psicológico". Da mesma forma,
isso adquiriu, entender a densidade dessa dimensão no plano histórico-cultural e no contexto dos modos
da existência, eu me dediquei a uma pesquisa funda- de subjetivação contemporâneos, a Psicanálise fica
mentalmente de ordem histórica e filosófica e que re- numa posição que é de grande inserção, pertencendo
sultou na minha tese de livre docência na USP. Ela se claramente ao conjunto filosófico, artístico, literário e
in titula" A invenção do psicológico: quatro séculos de científico que, grosso modo, corresponde ao chamado
subjetivação". Tento mostrar a constituição dessa di- "Modernismo", é como se ela fosse um dos principais,

3 FIGUEIREDO, L. C. A Invenção do Psicologia: xxx séculos de sugestivação (1500-1900) São Paulo: Escrita, 1992.

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Revista de Psicologia Luís Cláudio Figueiredo

édia, senão o principal fruto de todo um processo de nantemente cientificista. Não me cabe aqui nem dis-
'cio do subjetivação moderno e contemporâneo. Como se esse cutir nem me posicionar favorável ou contrariamente
de ou- processo levasse, quase inevitavelmente, à abertura a esta realidade. Faço apenas uma caracterização que
Trata- deste horizonte que é o campo do pensamento psica- talvez possa ser facilmente reconhecida.
duções nalítico. Por outro lado, a relação da Psicanálise com O segundo grande agrupamento é o das matri-
a modernidade tardia, com esse espaço e tempo da zes que eu chamo de românticas. Não por serem "sen-
modernidade contemporânea que se constituíram ao timentais", embora nelas os estados afetivos e
'terari-
longo dos séculos, é uma relação complexa, contradi- sentimentos sejam muito valorizados. Esta denomina-
_mbora
tória e constitui um certo enfrentamento. Eu sempre ção emerge do reconhecimento da ligação de um certo
!te, esse
ficava com a seguinte questão: qual é o estatuto, qual tipo de pensamento psicológico com uma tradição do
lnteres-
é o lugar, quais são as posições possíveis para a Psica- pensamento moderno que teve nos movimentos român-
queria
nálise, seja no campo das matrizes psicológicas, seja ticos alemão, francês e inglês do século XVIII e XIX o
locam-
no campo dos processos de subjetivação contempo- seu enraizamento. O que é característico destas matri-
quanto
râneos, já que ela sempre aparecia com essa simultâ- zes românticas? É que os objetos a serem considerados
.e eu fui
nea pertinência- impertinência? Sobre isso valeria, a pela psicologia não são, fundamentalmente, eventos na-
a' Psica-
meu ver, falar um pouco com vocês hoje. turais submetidos a um determinismo, mas são formas
~ esqui-
Pelo viés das matrizes, tento caracterizar o cam- expressivas. O que são formas expressivas? São objetos
tempo,
po das psicologias contemporâneas a partir de três que têm valor de comunicação. São objetos que podem
?ncia no
grandes agrupamentos. Cada um deles com suas sub- ser, por exemplo, sonhos, textos, falas, gestos, e com-
'l psi .. É
divisões, com seus desdobramentos. Trata-se primei- portamentos. Não importa o que são concretamente,
tornan-
ramente, do que chamo de matrizes cientificistas: desde que possam ser concebidos como produtos da
aquelas que concebem a psicologia, a produção do co- ação humana ou que sejam, em si mesmos, ações que
.fnzes,

se nhecimento psicológico segundo o modelo das ciênci- funcionam, voluntária ou involuntariamente, como
equeno as naturais: o da física, o da química e, principalmente, modos ou meios de comunicação e que exigem, por-
s as ma- o das biologias. Ora, o que é fundamental como crité- tando, compreensão e, eventualmente, interpretação.
ouoblí- rio para identificar as matrizes cientificistas, é o pres- Considerar que a psicologia, além de lidar com
lSãO da suposto de que o objeto, ou seja, o psiquismo, a vida processos e fenômenos que pertencem à Ordem da
;o situar mental, o comportamento, deve ser concebido em ter- Natureza, também tem a ver com essa outra quali-
tlítico ou mos de um evento natural. Isso quer dizer que se trata dade de "objetos" e que se dedica ao estudo, à análi-
rna certa de um evento articulado e, nessa medida, determina- se, ao conhecimento de formas expressivas, faz uma
tn, diga- do, segundo uma Ordem Natural, segundo leis, segun- enorme diferença. Por quê? Em primeiro lugar, por-
~ são an- do categorias. Digamos assim, segundo modos de que, se nós estamos falando aqui em formas expres-
cepções identificação com os quais o cientista natural reconhe- sivas, nós estamos pressupondo a existência de sujeitos.
)mem, o ce a objetividade e a positividade dos seus objetos. De um lado, há o sujeito que age, que se expressa,
álise está Essas matrizes cientificistas, obviamente, têm que produz, que cria formas e obras e, do outro, um
:uma es- uma imensa difusão no campo das psicologias e uma outro sujeito a quem se endereçam as mensagens e
los os ni- forte presença na formação do psicólogo. Não sei, por que as compreende, interpreta e, eventualmente, a
damente exemplo, como está organizado o currículo na UFC, elas responde. Em segundo lugar, porque se encon-
,gico. Ela mas pelo que eu conheço da PUC-SP e da USP e tam- tramos um sujeito criativo, produtor, comunicativo,
esentada bém de algumas das grandes universidades do Rio, por mais que ele seja condicionado, por mais que ele
er desses as cadeiras que tratam da Psicologia enquanto ciên- esteja funcionando, digamos, de acordo com certas
cia natural, ou enquanto algo modelado segundo as restrições sociais e biológicas, no essencial, esse su-
:>caso do ciências naturais, ocupam os primeiros anos do cur- jeito humano criativo, produtor e comunicativo com-
1a forma, so. Por isso os alunos, às vezes, ficam bastante choca- porta algo de liberdade e espontaneidade e tem assim
S modos dos, porque entram para o curso de Psicologia algo de singular.
álise fica esperando alguma coisa um pouco mais clínica, um Cria-se a velha controvérsia, que atravessa o
encendo pouco mais humana, enfim, alguma coisa talvez me- nosso campo desde sempre, entre uma visão estrita-
iterário e nos científica. Às vezes, até contrariados, porque en- mente determinista na qual os eventos exibem regu-
chamado contram uma visão de Psicologia completamente laridades e padrões e estão subordinados e leis e uma
rlncipais, distinta dessas expectativas. Freqüentemente, os cur- visão que abre, em maior ou menor grau, espaços para
rículos são organizados de tal maneira que, nos pri- a liberdade e para a singularidade única dos aconte-
meiros dois, três anos, os alunos são quase submetidos cimentos. Se nós falamos em criatividade, em produ-
a uma formação numa Psicologia de índole predomi- ção e comunicação, já estamos no campo daquilo que

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só pode ser expresso de urna maneira livre e singular. diz respeito, que nos remete à Psicanálise. Então, a Psi-
Ternos, corno se sabe, um grande número de correntes canálise está, sem dúvida nenhuma - e muitas vezes
e escolas psicológicas que, de alguma maneira, cami- por isso ela é tão combatida pelos fenornenólogos, pe-
nham nessa direção ou se fundam nesses pressupos- los existencialistas e, de outro lado, pelos adeptos da
tos românticos em contraposição às muitas psicologias psicologia científica -, numa interseção importante
que compartilham os pressupostos cientificistas. ente o campo das ciências naturais, da lógica das ciên-
Nós encontramos ainda o terceiro agrupamen- cias naturais, dos modelos das ciências naturais, com
to ao qual eu me dedico no livro acima citado, o que as questões e soluções das ciências históricas e da cul-
eu chamo de matrizes pós-românticas. Por que pós- tura. Por outro lado, colocá-la entre os pós-românti-
românticas? Elas não teriam surgido diretamente de cos, aproximando-a seja da fenomenologia, seja dos
urna perspectiva cientificista, porque elas pressupõem estruturalismos, o que tantos já tentaram, não me pa-
também que o objeto, não apenas da Psicologia, mas rece muito apropriado.
de todas as ciências sociais e históricas, tem algo de Sem dúvida nenhuma, a Psicanálise está sem-
sui generis na medida em que considera, exatamente, pre de alguma forma interpelada pelo caráter sui
essa dimensão da subjetividade criativa e produtora, generis dos objetos do psiquismo, pelos objetos en-
que é capaz de gerar, dentro de certas condições, o quanto formas expressivas a serem compreendidas e
novo, o inusitado que deixa suas marcas singulares. interpretadas. Também está, sem dúvida nenhuma,
Por outro lado, o que vai caracterizar as matri- envolvida num esforço racional de ter acesso e obter
zes pós-românticas, corno a fenomenologia ou os es- conhecimento a respeito dessas formas. Não poden-
truturalismos, é a suposição de que essa criatividade, do, tampouco, desconhecer a estreita vinculação do
essa produção simbólica, tem, ela também, a sua lógi- psiquismo com o corpo e seus processos naturais. Ou
ca. É possível, portando, de alguma maneira, adquirir seja, a psicanálise está em todo canto sem, ao mesmo
e produzir conhecimento válido e universal a respeito tempo, estar bem em nenhum deles.
das formas expressivas, ou seja, das expressões livres Prosseguindo na mesma direção, mas partindo
do sujeito, seja enquanto coletivo ou individual. A ló- de outro ângulo, eu ainda precisaria dizer que, toman-
gica a considerar pode ser aquela das próprias mensa- do a principal distinção entre os cientificistas de um
gens, a das próprias formas - e com isso nós nos lado, e os românticas e pós-românticas do outro, pode-
aproximamos de urna perspectiva mais estruturalista se encontrar, nessa organização que eu faço das ma-
- ou pode ser urna lógica que vai ser procurada no trizes do pensamento psicológico, urna oposição já
plano da subjetividade, da sua constituição, das con- trabalhada no plano da filosofia ..
dições filosóficas e transcendentais de produção da Refiro-me à oposição entre o que o filósofo ale-
vida simbólica. Aí, estaríamos mais próximos de urna mão Jürgen Habermas, num dado momento, identifi-
perspectiva fenomenológica. De qualquer maneira, o cou corno diferentes "interesses do conhecimento". As
que é característico das matrizes pós-românticas é exa- matrizes cientificistas, são, sem dúvida nenhuma, mo-
tamente o fato de que, por um lado, há um reconheci- vidas por um interesse tecnológico, ou seja, sua finali-
mento de que os nossos objetos não são eventos dade é a de produzir conhecimento psicológico para
naturais submetidos a urna determinação mecânica ou desenvolver técnicas e instrumentos capazes de ampli-
funcionalista stricto sensu. Por outro lado, há a idéia ar a nossa capacidade de previsão e controle do evento
de que, apesar de haver criatividade e alguma liber- psíquico e cornportarnental. Ternos, do outro lado, o que
dade nessa produção, nem por isso, tal fica alheio ao Habermas chama de interesses comunicativos. Aqui se
que é alcançado e ao que pode ser visado por um es- situam os conhecimentos psicológicos desenvolvidos,
forço racional. Algo que, nas matrizes românticas, não elaborados e difundidos a serviço do interesse com a
acontece. Em termos epistemológicos, as matrizes ro- comunicação: com a ampliação da possibilidade do ho-
mânticas, tendem forte ou mesmo exclusivamente para mem comunicar-se um com o outro e cada um consigo
o intuitivo, para o ernpático, para formas de conheci- mesmo. Novamente aí, a Psicanálise estaria dos dois la-
mento que são menos racionais, conceituais e dos e não seria absolutamente redutível, na minha vi-
teorizantes, enquanto as pós-românticas restabelecem são, nem a urna perspectiva de controle, previsão ou,
os domínios da razão, embora promovam o esforço enfim, interesse tecnológico. Ela teria algo a ver com isso:
de construção de urna razão renovada. nasceria e se desenvolveria enquanto urna prática de
Trata-se, aqui, da minha visão básica das três transformação efetiva com intuitos terapêuticos. Ade-
grandes famílias das matrizes do pensamento psico- rnais, ela tem, claramente, algo a ver com os interesses
lógico. Corno eu afirmei: o curioso é que, em todas elas, de compreensão e interpretação. Tal levou muitos auto-
nós vamos encontrar alguma coisa que tem a ver, que res a aproximá-la da hermenêutica.

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ire do Revista de Psicologia Luís Cláudio Figueiredo

aPsi- Uma outra maneira de pensar essa distinção É interessante pensar, por exemplo, o que ocorre
i ezes implica em averiguar histórica e filosoficamente o que quando Descartes estabelece a famosa oposição ou dis-
s, pe- subjaz às matrizes, principalmente nessa grande divi- tinção entre a coisa extensa e a coisa pensante. Estas
1
'OS da são que eu faço entre eventos naturais e formas expres- duas substâncias simples são, por isso mesmo, fáceis
I
tante sivas. A oposição entre as matrizes cientificistas e as de serem concebidas, fáceis de serem de abordadas. A
ciên- românticas, de uma certa forma, consagra o processo matéria e os corpos físicos passarão a ser estudados pelas
com de dissociação entre espírito e matéria que faz parte de ciências. A coisa pensante, segundo ele, vai ser
cul- toda a história ocidental. Na modernidade, tal atinge investigada pela filosofia. Mas Descartes, ao lidar com
um patamar ainda mais alto, o da dissociação entre o humano, se dava conta de que havia aí exatamente
mente e corpo que se desdobra na oposição entre sujei- uma duplicidade de coisa somática e coisa pensante.
1e pa- to e objeto. Trata-se, basicamente, de uma dissociação Percebia também que o mais complicado, o praticamen-
entre atividade e passividade. A minha tese é de que te impossível, era conceber essa substância complexa com
sem- toda a civilização ocidental e, em particular, a civiliza- a união dessas duas substâncias simples. O que ficava
er sui ção moderna a partir do século XVII, a partir de Des- exatamente no lugar do impensável, do inconcebível,
s en- cartes então, está marcada por essa dissociação mente no lugar desta participação simultânea dos dois planos:
' e
idas e corpo, objeto e sujeito, entre a atividade- prerrogati- corpo e mente. Tal seria aquilo de que não poderíamos
uma, va do sujeito- e a passividade dos objetos. nunca ter idéias muito claras, mas aproximadas e con-
obter Admito, ainda, que o que é característico da fusas: o afeto.
oden- nossa experiência subjetiva, enquanto sujeitos moder- Com Descartes, constatamos, por um lado, o
'
ão do nos, é de estarmos continuamente atravessados e pensamento que pode ser objeto de um trabalho filo-
is.Ou opostos a nós mesmos em termos dessa dissociação. sófico absolutamente rigoroso e, por outro, o corpo
esmo Existimos, ao mesmo tempo, de forma não integrada, que pode ser objeto das ciências naturais. Mas, entre
como sujeito e como objeto, como atividade e como um e outro, na mediação dessas duas substâncias sim-
tindo passividade; ao mesmo tempo também acalentamos ples, para criar, exatamente, o humano inconcebível, te-
lman- sonhos megalômanos, fantasias de onipotência em que ríamos o lugar do afeto, desses pensamentos obscuros
leum pretendemos o controle do mundo físico, químico, bi- a que Descartes vai se referir quando fala das paixões
pode- ológico, social e psíquico e, por outro lado, funciona- da alma. Estas paixões são exatamente aquilo que para
s ma- mos como seres absolutamente dóceis e passivos Descartes ocupam o lugar do inconcebível. Não ape-
ção já diante de formas de controle que o próprio homem nas corpo, nem apenas espírito . Tomando Descartes
engendra e constrói. como parâmetro, eu diria o seguinte: o que é caracte-
io ale- rístico do pensamento psicanalítico é que ele vai se
Levando em conta que as Matrizes do Pensa-
entifi- dedicar ao inconcebível, à união impossível entre cor-
mento Psicológico refletem e consagram a divisão, a
/'. As po e mente. O conceito de pulsão, um conceito
dissociação mente e corpo, sujeito e objeto, atividade e
l,mo- limítrofe entre o soma e a psique, ocupa justamente
passividade, nós poderíamos dizer, em primeiro lugar,
finali- este lugar.
que todas as correntes contemporâneas do pensamen-
, para to psicológico, de uma forma ou de outra, trazem con- Enquanto todas as outras correntes da Psico-
lmpli- sigo essa mesma dissociação e reproduzem de algum logia contemporânea, de alguma maneira, tentam es-
'vento modo a mesma dificuldade. Todavia, entre elas - e aí capar do inconcebível trabalhando segundo o modelo
o que se põe a questão - surge a Psicanálise, me parece. Se a das ciências naturais ou das ciências do espírito, e
qui se gente faz um acompanhamento da história da obra de optando por este ou por aquele, transformando-se
vidos, Freud e do que se passou no pensamento psicanalítico em observação, explicação naturalista ou em inter-
:om a até então, a Psicanálise nasce exatamente como uma pretação, compreensão hermenêutica, pode-se res-
ioho- espécie de resposta crítica a essa dissociação. Ela é, de saltar algo característico da Psicanálise. Ela não faz
msigo nascença, tanto o produto como resposta crítica ao pro- a escolha, não faz a opção entre ciências naturais e
ois la- cesso de dissociação que marca a constituição subjeti- ciências do espírito. Ela é uma articulação do
ha vi- va ocidental e moderna. Isso lhe dá exatamente uma inarticulável na Modernidade, mas não só na
io ou, posição por um lado estratégica e, por outro lado, pro- Modernidade, em toda a nossa história ocidental.
nisso: blemática. Ela fica de alguma maneira desestabilizada Nessa medida- e isso foi um termo que eu usei du-
ica de em termos epistemológicos justamente pela posição que rante bastante tempo e me satisfazia, hoje já não me
A de- ocupa diante de um objeto que é duplo, que se desdo- satisfaz mais, embora eu ache que ele continue váli-
resses bra. Trata-se de um objeto que, de certa maneira, se do-, a Psicanálise é um híbrido assim como híbrido é
;auto- apresenta continuamente através de dissociações e des- seu objeto. A Psicanálise constitui-se híbrida, porque
dobramentos. tem como principal motivo, como razão de ser, como

Revista de Psicologia, Fortaleza, v. 21 n. V2, p.103-110, janJdez. 2003 m


_R_e_v_is_t_a_d_e_P....:s_ic.:....o.:....l....:o....gt.;.i~a_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Luís Cláudio Figueiredo

objeto fundamental, exatamente o inconcebível da nomia. Aquela de uma impulsividade própria, qua-
relação mente-corpo, da relação ou da condição su- se incontrolável em sua espontaneidade urgente e
jeito-objeto, da simultaneidade do ativo e do passi- emergente; 3) somos, necessariamente, identificados
vo no psiquismo humano. e também capazes de nos reconhecer como sujeitos
A Psicanálise não se reduz a nenhuma das ma- disciplinares e disciplinados, sujeitos da disciplina, à
trizes, não porque seja eclética e sem rigor, mas, pelo disciplina, às regras, aos condicionamentos, às exigên-
contrário, o rigor dela se conquista exatamente na con- cias, enfim, a todo um regime de sociabilidade dentro
dição de híbrido que enfrenta e, mais que isso, que do qual nós nos integramos para poder existir e so-
investe contra o processo dissociativo a que todas as breviver.
outras psicologias, mal ou bem, acabam cedendo e, Sugerimos, com essa caracterização de nossos
de uma certa forma, reproduzindo. conflitos, que a nossa pertinência simultânea a três
Se eu retomo a questão da posição da Psica- concepções antagônicas - cada uma delas altamente
nálise pelo outro lado, o que eu desenvolvi no livro determinante, altamente decisiva e constitutiva de nossas
"A Invenção do Psicológico", eu seria levado a pen- subjetividades - faz com que, inevitavelmente, nunca
sar o seguinte. Neste livro, eu tento mostrar que as possamos ter uma experiência integrada de nós mesmos.
nossas subjetividades vão se constituindo num pro- A Modernidade se organiza, em termos culturais, sociais
cesso histó.rico. Neste se organizam três grandes e psíquicos, de tal forma que os processos de subjetivação
pólos de modelos 'identificatórios' e que, de algu- dos quais nós somos os resultados, geram o que
ma maneira, também expressam três diferentes di- chamamos de território da ignorância. O que vem a ser
mensões do psiquismo bem trabalhadas pela isso? É uma forma de experimentar ou de vivenciar o
psicanálise. Identifico o pólo liberal e iluminista, que mundo e a nós mesmos que, inevitavelmente, exclui do
é uma certa concepção do sujeito enquanto razão e possível conhecimento e da consciência muitas partes
vontade- o que corresponderia a uma certa posição substantivas essencialmente constitutivas. Em outros
do ego- o pólo que eu chamo de romântico, onde se termos, se somos produto de processos de subjetivação
constitui uma certa concepção do sujeito que é aque- que se organizam dentro ou em tomo desse território da
le dos impulsos e das emoções e sentimentos, dos ignorância, sempre e inevitavelmente, seremos em maior
movimentos afetivos - tal corresponde a uma certa ou menor medida desconhecedores de nós mesmos, dos
posição do id; e ainda um pólo que eu chamo de sentidos de nossos atos. Trazemos interiormente aquilo
disciplinar, seguindo nisso o Michel Foucault. O pólo que nos ultrapassa como possibilidade de acesso e
em que se constitui uma certa concepção do sujeito conhecimento.
no sentido de 'assujeitado': aquele da obediência Tentei nos últimos capítulos do livro" A Inven-
que, de certa maneira, se impõe a uma integração ção do Psicológico"-, situar as várias psicologias, suas
submissa, a um certo sistema de vida e conjunto de várias correntes contemporâneas dentro dessa
valores e regras que correspondem a uma certa po- triangulação que delimita o território da ignorância.
sição superegóica. Tentei mostrar como todas estão aí situadas e trazem
Não vou, por absoluta falta de tempo, desen- suas marcas em alguma forma de cegueira e de im-
volver o pensamento sobre cada um desses pólos da possibilidade. Algumas tendem para um pólo disci-
cultura e sobre seus correlatos subjetivos. Isso vocês plinar e se oferecem efetivamente enquanto tal,
podem encontrar no livro citado acima e em diversos enquanto modeladores, adaptativos, ajustadores do
outros artigos subseqüentes. O que eu almejo, aqui, é homem à sociedade. Outras se concebem como ins-
chamar a atenção para o que, na minha análise, é ca- trumentos para a construção de subjetividades autô-
racterístico do homem moderno. Quando falo "mo- nomas à moda liberal e iluminista. Outras, ainda,
derno" refiro-me, implicitamente, ao "ocidental". parecem que tomam o partido romântico, promovem,
Estamos simultaneamente comprometidos com esses facilitam ou encorajam a nossa possibilidade de ex-
três pólos, ainda que entre eles haja incompatibilida- perimentar o mundo a partir do impulso, do desejo,
des intransponíveis e conflitos inevitáveis. Daqui, in- ou seja, dos movimentos afetivos que teriam então que
ferimos alguns pontos: 1) uma concepção e uma ser vividos com mais liberdade e mais espontaneida-
experiência subjetiva em que ser sujeito remete à von- de. Mas de cada um destes lugares, outros recantos
tade, à razão e a um eu autônomo; 2) somos levados, da nossa subjetividade ficam interditados, precisam
necessariamente, a nos reconhecer e a nos interpretar ser recalcados ou renegados.
como sujeitos dos impulsos e dos afetos, e que, ao in- O que me chama a atenção é que, novamente
vés de assumirmos ou desejarmos a autonomia das, neste contexto, como já o fora no das Matrizes, a
razão e vontade, aspiramos a um outro tipo de auto- Psicanálise, e as várias correntes da Psicanálise, o

llltli Revista de Psicologia, Fortaleza, v. 21 n.l/2, p.103-110, janldez. 2003


·e do Revista de Psicologia Luís Cláudio Figueiredo

atestam. Ela pode ser aproximada, ora de um pólo, forma diferente, como um corpo estranho impondo,
ora outro, não ficando definitivamente distante de digamos assim, uma espécie de desterritorialização e
nenhum dos três e com uma necessária circulação de descentramento à região em que está incrustado.
pelos vários lugares disponíveis. No entanto, para Esta região, no caso a da modernidade contem-
a, à a psicanálise, a função do desconhecimento é exata- porânea, é obrigada agora a acolher, a lidar e tentar
mente o essencial. Isso caracteriza fundamental- contornar a presença dessa força enquistada - a psi-
mente o pensamento psicanalítico, distinguindo-o canálise - que, de uma certa maneira, está dentro do
so- de todos os demais. Não se trata, portanto, de ne- seu território, dentro dos seus muros, mas que tem os
gar a ignorância constitutiva; nem mesmo de ape- seus próprios territórios, os seus próprios muros ali
nas pensar o desconhecido, o desconhecimento, a internamente constituídos, no seio dos quais faz a crí-
ignorância, a exclusão, o recalque, a dissociação na tica à região que a circunda .
psicanálise, ou seja, todos os mecanismos através Eu diria, assim, que a posição da Psicanálise
dos quais nós perdemos acesso a nós mesmos e per- na cultura contemporânea parece ser exatamente a
demos a nossa integridade existencial. Não se tra- de um enclave da modernidade. Ela não poderia ter
ta de pensar apenas isso por um viés específico, nascido, ela não poderia existir, ela não teria o que
mas exatamente o de pensar o que é e como se dá fazer e nós não teríamos pacientes para tratar, se não
uma subjetivação que inevitavelmente gera os efei- fosse todo o processo de constituição subjetiva que é
tos cio desconhecimento. próprio da modernidade. E, no entanto, dentro des-
Ao invés de aceitar a separação entre ciências se contexto ela é o que resiste, não se deixa assimilar
naturais e ciências do espírito, trabalhava exatamente e se transforma no irredutível desse processo de cons-
a partir do ponto inconcebível em que passividade e tituição subjetiva. Isso dá a ela uma outra eficácia
atividade, sujeito e objeto, mente e corpo precisam de que não é a eficácia tecnológica que move as ciênci-
alguma maneira se articular, embora essa articulação as da natureza com seus interesses de conhecimento
·vação não seja concebível, da mesma forma. O que é caracte- peculiares. A Psicanálise não existe para prever e
prioda rístico do pensamento psicanalítico é que ele não ape- controlar. Nenhum psicanalista ou paciente de aná-
maior nas transita entre os três pólos éticos e políticos que lise adquire maior capacidade de previsão e contro-
lOS, dos caracterizam a nossa cultura e a nossa tradição e se le da sua própria vida . Pelo contrário, se a análise
aquilo incrustam em nossos psiquismos, mas transforma es- for bem feita, ele vai se dispor a viver com muito
tesso e ses efeitos de desconhecimento gerados nos processos mais liberdade o acaso, o incidente, o acontecimento
de constituição subjetiva no seu objeto próprio, fazen- e o inesperado. E, por outro lado, embora o trabalho
I nven- do-o seu objeto fundamental. Portanto, a Psicanálise de análise possa estar voltado para a compreensão e
1
as, suas não é apenas um emergente do território da ignorân- para a interpretação, ele não se esgota de maneira
dessa cia (como as demais psicologias), mas é a resposta crí- nenhuma nisso, ou seja, não se alinha com as ciênci-
rância. tica e reflexiva ao processo de constituição subjetiva as humanas movidas pelo interesse comunicativo. O
~razem que nos torna para todo e, inevitavelmente, para sem- trabalho analítico não se esgota no conhecimento
de im- pre, desconhecidos de nós mesmos, desconhecedores acerca do psiquismo e na compreensão de quem quer
o disci- de nós mesmos. que seja. Ele só se realiza à medida que há alguma
~to tal, Isso foi o que me levou a sugerir que, além de produção, alguma transformação subjetiva e isso vai
ores do pensarmos a psicanálise como híbrido, poderíamos, muito além, vai muito mais fundo do que seria uma
mo ins- com mais vantagem, também pensá-la como enclave. questão meramente cognitiva, de compreender e in-
es autô- O que é um enclave? O enclave, um galicismo, terpretar.
ainda, segundo o Dicionário Houaiss, poderia também se A Psicanálise, à medida que nasce de um de-
movem, chamar de encrave, (o que eu acho feio; lembra unha terminado campo, para constituir, dentro dessecam-
~de ex- encravada). Aceitemos, portanto, o galicismo em prol po, uma experiência sui generis, na qual o campo está
desejo, de uma certa elegância. O enclave é uma parte de um representado, mas está representado pelo avesso, por
ltãoque território inimigo - ou, ao menos, estrangeiro - aquilo que ele não pode nunca manifestar de manei-
aneida- enquistada dentro do que seria o outro território . O ra plena e completa, vai, a meu ver, se constituir,
recantos enclave é uma fortaleza estrangeira ou inimiga dentro seja na sua prática clínica, seja na sua prática teóri-
1recisam do meu território, por exemplo. O chão de que ele é ca, como o enclave da modernidade . A prática clíni-
feito, o material com que é feito, os tijolos, as pedras, ca da Psicanálise é fundamentalmente a de dar
ramente o cimento, ou seja, o que afinal de contas constitui o condições para um certo modo de experiência, que
rizes, a enclave é da mesma origem do território que o eu chamo de experiência do inconsciente. É uma expe-
lálise, o circunda, mas o enclave ocupa aquele lugar de uma riência que não ocorre apenas dentro de um consul-

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tório. A experiência do inconsciente, em uma certa experiência também pode ser obtido em certos es-
medida, está sendo feita continuamente por nós o paços, como cinemas em que se exibem filmes de
tempo todo, embora contra ela existam nos planos arte, teatros, museus, salões de artes plásticas, etc,
individual e coletivo uma grande quantidade de pois aí também ocorre uma quebra com o cotidiano
defesas. O que é característico do setting analítico e em que, paradoxalmente, as forças do cotidiano po-
do trabalho do analista é, exatamente, o de estabele- dem ser vividas e experimentadas de forma profun-
cer posições mais favoráveis para que ali dentro pos- da e decisiva. Esses espaços funcionam também
sa se dar a experiência do inconsciente, para que ela como enclaves, mas nada, creio eu, se compara à ex-
possa vir tanto a ser mais conhecida, como, princi- periência do inconsciente que urna psicanálise ofe-
palmente, possa ser mais aceita, mais admitida - o rece a seus executantes, sejam os pacientes, sejamos
que vai além da questão do conhecimento - e para nós analistas.
que ela produza efeitos independente de qualquer Mas, também do ponto de vista teórico e
intenção, de qualquer cálculo, até mesmo do que se- epistemológico, parece que vale a pena pensar a Psi-
ria um cálculo terapêutico. O que é a pedra de toque canálise como enclave: parecem-me sempre muito
de um trabalho psicanalítico é a propiciação em pro- pouco, digamos assim, exitosas e muito pouco inte-
fundidade, de forma metódica e rigorosa, de uma ressantes as tentativas de transformar a Psicanálise,
experiência do inconsciente, onde as várias dimen- ou de proteger a Psicanálise, assumindo para ela o
sões da nossa subjetividade podem, de alguma ma- que seria o caráter de urna ciência. Isso não quer di-
neira, entrar num outro tipo de relação ou de zer que ela não contenha e comporte um conhecimen-
intercâmbio. E, por outro lado, faz parte do trabalho to, não produza conhecimento, não tenha um
do psicanalista não apenas propiciar a experiência compromisso com a razão, com o rigor e com a ver-
do inconsciente, mas protegê-la, cultivá-la, transfor- dade. No entanto, querer transformar a Psicanálise,
mando aquela experiência em alguma coisa essenci- e o pensamento psicanalítico nas suas variedades, em
al, como uma nova e mais rica possibilidade de Ciência- seja como uma ciência mais chegada às na-
experimentar a si e ao mundo. Alguém que faz uma turais, seja corno um saber mais chegado às ciências
boa análise, realmente passa por um processo do qual do espírito, à lingüística, à filosofia, não importa - é
não vai sair idêntico ao que era quando chegou. Cria- desconhecer que a Psicanálise é, antes de qualquer
se uma outra modalidade de percepção, de sensibi- coisa, um dispositivo teórico-clínico para produção de um
lidade, de pensamento, de relação consigo, com seu certo tipo de experiência de transformação subjetiva que
corpo e com sua mente. tem, ao mesmo tempo, essa profunda pertinência com
Mas, além da Psicanálise ser um enclave na cul- as subjetividades modernas e contemporâneas e, por
tura, no amplo sentido acima mencionado, é preciso outro lado, também exerce sobre essas novas subjeti-
reconhecer o caráter de enclave do próprio espaço vidades modernas e contemporâneas um poder de
analítico: a experiência do inconsciente, embora se transformação que eu não vejo em mais nenhuma das
alastre, se infiltre e se projete sobre toda a vida nas perspectivas psicológicas disponíveis. É essa a razão
condições da modernidade contemporânea, só pode para que, ao invés de tentar apresentá-la e defendê-
existir em sua forma mais potente e desenvolvida la em termos de um discurso de legitimação pela via
num ambiente no qual haja uma certa proteção e uma da ciência, eu sugira - e isso é urna afirmação polê-
certa garantia. Nesse ambiente, o da clínica psicana- mica -, que possa ser mais apropriado concebê-la,
lítica, muito difundida mas jamais plenamente fundamentalmente, como um enclave subjetivante da
institucionalizada, encontramos de forma concreta o Modernidade, um dispositivo para a constituição e
mesmo caráter de enclave: enclave da psicologia, transformação das subjetividades contemporâneas,
enclave da medicina- pertinente a ambas e irredutível inscrito na modernidade e, simultaneamente, crítico
às duas- e enclave das condições dominantes de so- e transformador do contemporâneo nos planos psí-
ciabilidade. Assim, quando um paciente entra e sai quicos e sócio-culturais.
do meu consultório, na cidade de São Paulo, supo-
nho e almejo estar oferecendo a ele uma experiência
de enclave. Um enclave na grande metrópole moder-
BIBLIOGRAFIA:
na, dentro do qual alguma coisa que faz parte es-
sencialmente da sua experiência cotidiana na cidade Figueiredo, L. C. Matrizes do Pensamento Psicológi-
pode, quase que apenas ali, ser experimentado de co. Petrópolis: Vozes, 1991.
um jeito completamente diferente e com uma eficá- _____, A invensão do psicológico. quatro séculos
cia completamente distinta. É claro que algo dessa de subjetivação (1500-1900). são Paulo: Escuta, 1992.

111!1 Revista de Psicologia, Fortaleza, v. 21 n.l/2, p.103-110, janldez. 2003

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