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NOTAS DIDÁCTICAS

Esquizofrenia - Perspectiva de Conrad (*)

MANUELA BORJA SANTOS (**)


VITOR AMORIM RODRIGUES (**)

Klaus Conrad, discípulo de Kretchmer, e suas descrições, segundo a terminologia de


Director da Clínica Psiquiátrica de Gotinga uma ciência objectiva, outros, dos quais se
durante a década de 50 é autor de importantes destaca Binswanger, o criador da Psiquiatria
estudos sobre a estrutura e evolução dos surtos compreensiva da existência humana, pretendem
esquizofrénicos, hoje considerados clássicos. que só é possível compreender a génese e
Na altura em que Conrad se debruçou mais erupção das doenças mentais, nomeadamente
especificamente sobre a esquizofrenia, durante dos surtos esquizofrénicos, a partir da análise
os anos de 41/42, a Psiquiatria académica existencial das biografias dos doentes,
debatia-se numa encruzilhada. Se de um lado considerando cada doente como um ser no
e oposta a ela se erguia e consolidava a Escola mundo, com um projecto de existência que, se
Psicanalítica, com a qual Conrad não se irrealizável, dará origem a uma crise existencial
identifica, por considerar que a sua essência é do seu «ser-enquanto-projecto)), só superável
sobretudo compreensiva no sentido das através do delírio.
((ciências do espírito)), isto é, procura interpretar Mais explicitamente: se o objectivo do
as manifestações anormais das doenças mentais indivíduo é inalcancável, ao mesmo tempo que
a partir de certos quadros fundamentais este é incapaz de renunciar, a única saída
axiomáticos, como o mito de Édipo, por outro possível é o delírio que concilia o inconciliável,
lado a Psiquiatria Académica do seu tempo, através d a ((consciência anormal de
degladiava-se entre duas posições divergentes. significação» e da modificação do sistema de
Enquanto uns defendiam para a Psiquiatria o referência. Ora, a qualquer destas duas posições,
modelo das Ciências Naturais, procurando Conrada levanta sérias objecções: a primeira,
aproximá-la das demais disciplinas médicas, a a explicação cerebro-fisiológica, que pretendia
partir da explicação dos vários quadros fazer corresponder, por exemplo, uma vivência
nosológicos e sindromáticos das doenças alucinatória a uma alteração eléctrico-cortical,
mentais, através de alterações em grande parte argumenta ele que se lhe escapa das mãos o
desconhecidas das funções e estruturas cerebrais domínio do Psíquico tentando, sem o conseguir,
transformar a psicopatologia em fisiopatologia;
a segunda, a investigação científico-espiritual
(*) Comunicação apresentada no V Seminário de
Psicologia e Psicopatologia Clínica, ISPA, Maio de das relações de sentido, para a qual a mesma
1990. vivência alucinatória só seria compreensível
(**) Internos de Psiquiatria do Hospital Miguel partindo da temática do projecto do mundo,
Bombarda, Lisboa. sempre único e irrepetível, do «ser aí» da

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existência individual, objecta ele que passamos fenomenológico dizendo que se quizermos
da psicopatologia a hermenêutica, com todas compreender uma das obras de J.S. Bach, por
as fraquezas inerentes as Ciências Históricas. exemplo a Arte da Fuga, podemos prescindir
A interrogação sobre o que aconteceria se o do conhecimento da temática do projecto do
doente esquizofrénico tivesse podido realizar o mundo de Bach, e da sua história vital, das suas
desejo inscrito no seu projecto existencial, quer relações com os filhos ou do espírito da sua
dizer, sobre se o surto esquizofrénico não teria época e proceder, isso sim, a análise da obra
lugar ou se, pelo contrário, o delírio surgiria como o faz a Musicologia, a partir da estrutura
com outra temática, permanece sem resposta. da sua construção, como um tema de

Na verdade, afirma Conrad, há tantos projectos compassos múltiplos em relação com um
do mundo como doentes esquizofrénicos e, por sistema de contraponto, etc.. É certamente mais
esta via, nunca encontraríamos o especi- fácil a partir daqui compreender a obra, do que
ficamente esquizofrénico, o essencial comum a partir da vida única e irrepetível de J.S. Bach.
a todos os doentes. N o entanto, as duas posições não se
Assim, ambos os caminhos saem igualmente antagonizam, antes se complementam. A que
do psíquico: um dirige-se ao infra-psíquico, isto resultados chegou então Conrad a partir da
é, ao domínio do físico e o outro cai no campo Análise de Figura do material de vivências do
do ultrapsíquico, isto é, do metafísico. surto esquizofrénico recente? Precisamente ao
Para Conrad, é a fenomenologia Husserliana que esperávamos, isto é, a descoberta de que
o método que, aplicado a análise do campo existe uma relação intrínseca entre os fenómenos
psíquico, permitirá a ultrapassagem deste estruturais do surto, o que nos permite conceber
impasse, regressando a o domínio d o o processo a partir de um ponto de vista
especificamente psíquico e considerando apenas unitário. Objectivando: o surto esquizofrénico
aquilo que está presente na consciência. Torna- é caracterizado pela sucessão de várias fases,
-se então a psicopatologia em primeiro lugar a saber - Trema, Apofania, Apocalipse, Fase
e fundamentalmente, em Psicologia Aplicada. de Consolidação e Fase Residual - sendo que
Nas palavras de Jaspers, de cuja escola cada fase não pode surgir sem ser precedida
Conrad se pretende um continuador: «É pela anterior. Por exemplo, não é possível,
necessário deixar de lado todas as teorias segundo Conrad, que surjam sintomas de
tradicionais, todas as construções psicológicas, esquizofrenia catatónica, como veremos
todas as simples interpretações e juízos; temos próprios da Fase Apocalíptica, sem que primeiro
que aplicar-nos puramente aquilo que em sua tenham existido delírios paranóides, incluidos
existência real podemos compreender, distinguir na Fase Apofânica precedente.
e descrever.)) Mas, não pode esta análise Procuremos, então, pormenorizar cada uma
psicológica contentar-se com a descrição dos das fases Conradianas.
fenómenos psicopatológicos isolados (falsos
reconhecimentos, influência do pensamento,
percepção delirante, etc.), não considerando as 1. TREMA
suas inter-relações, ou procurando
«desmembrar» cada fenómeno nos seus Para a primeira das fases, Conrad elegeu a
elementos atómicos, segundo o modelo da velha expressão Trema, preterindo a de «pródromo»,
Psicologia Associacionista. Não! O surto por considerar esta um conceito nosológico e
esquizofrénico é um fenómeno unitário que só não fenomenológico.
a Análise de Figura (Gestalt) permitirá Trema é um termo da gíria teatral, usado
esclarecer. pelos actores para significar a angústia, a tensão
O objecto da investigação é a temática actual, que estes experimentam antes de entrarem em
os seus modos intencionais e as alterações da palco e que só desaparece q u a n d o o
percepção. Porque todo o vivenciado está abandonam, ou se decidem antecipadamente a
configurado, a análise de tais fenómenos é não entrar. O mesmo pode acontecer com os
sempre análiie de configurações. estudantes, os conferencistas ou até os
Conrad exemplifica analogicamente o método desportistas.

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Mas o Trema nem sempre é angústia, pode às vezes também como animação, alegria, como
ser alegria, entusiasmo, pois a angústia será acontece na esperança.
tanto maior quanto menor for o sentimento de Outros experimentaram-no como culpa ou
possibilidade de ter êxito e vice-versa. No condenação, como se estivessem a espera de um
entanto, é sempre tensão, algo que está castigo, como se tivessem cometido um crime.
eminente, é tremulo, atormentador e Outros ainda, não se sentem mais que inibidos,
incontrolável. Nunca é neutral: ou se tem uma sem vontade, abandonados e sem esperança, de
sensação de vitória ou de derrota, de positivo tal forma que não se distingue de uma
ou negativo. depressão endógena, sobretudo se tivermos em
Nesta fase, o campo psíquico fica como que linha de conta o risco de suicídio.
«estreitado», rodeado d e barreiras Finalmente outros vivem numa atmosfera de
intransponíveis, movendo-se o indivíduo neste desconfiança, enfrentam o mundo inimigo que
como um prisioneiro na sua cela, sem grandes os rodeia.
possibilidades de fuga. A forma de vivenciar o Trema varia segundo
A crescente tensão do «campo» pode levá-lo a personalidade prévia, a qual determina,
a tentar ultrapassar essas barreiras, surgindo igualmente, a temática do próprio delírio.
então condutas sem sentido, alterações do Nesta fase, que não se percebe nunca como
comportamento, reacções inadequadas a transtorno patológico, produz-se uma perda de
realidade exterior. liberdade: o doente já não pode mover-se no
Os doentes experimentam algumas vezes «campo», pois sente-se rodeado de barreiras,
sentimentos de culpabilidade, existindo, por isso, rejeitado num mundo que é só seu, incapaz de
como que um abismo que os separa dos outros, comunicar com os outros, dos quais o começa
não lhes restando outra «ponte» além da a separar um abismo. Aqui, o fundo vivencial
construida através da expiação. deixa de ser neutro e começa a destacar-se e
Manifestações somáticas (como cefaleias, a adquirir significado, ocupando o que
palpitações, dor pré-cordial, astenia, etc.), anteriormente trnsparecia em primeiro plano -
podem ser parte integrante do Trema. a figura.
Este pode ainda manifestar-se como letargia, Só ao passar por este ponto crítico se abrem
depressão, ou iniciar-se mesmo por uma as limitações, descarrega-se o «campo» das suas
tentativa de suicídio; mais raramente pode barreiras, ficando livre o caminho, e s6 assim
começar por uma distímia maníaca. desaparece a tensão específica do Trema.
Outra das características desta fase é a O Trema pode durar de dias a vários anos.
desconfiança, sendo difícil perceber os limites No entanto, ao desaparecer, surge aquilo que
entre desconfiança normal e patológica, onde já vinha sendo anunciado pela tensão crescente
começa o delírio. Podemos afirmar que este - o Delírio.
ainda não existe enquanto o indivíduo é capaz
de «transcendência», quando ainda há
possibilidade de correcção, de cedência a 2. APOFANIA
argumentação lógica.
Com o evoluir deste processo surge o Apofania (do Grego «tornar manifesto))), foi
chamado ((humor delirante)), que é um meio o termo que Conrad elegeu para a «consciência
termo entre a vivência normal e a delirante de Significação anormal» (Jaspers) ou
propriamente dita. Para Jaspers o «humor ((estabelecimento de relações sem motivo»
delirante» é uma fina alteração que tudo (Gruhle), expressões que considerou pouco
penetra: «há algo no ar, acontece qualquer praticas e difíceis de manejar.
coisa, mas não sei o que é, diga-me o que é Nesta nova vivência, que para Jaspers
que se passa.» Ora como na realidade nada constitui o saber que se impõe de modo
mudou, esta mudança deu-se na estrutura de imediato «acerca de significações», ou seja o
vivência do indivíduo. saber que se impõe sem ter de perguntar porque
Em resumo: o Trema pode ser vivenciado se sabe, porque não necessita de nenhuma
como pressão ou tensão, inquietação, angústia, demonstração, o doente delirante comporta-se

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como um homem ante uma revelação. O conter uma multiplicidade de interpretações
significado é-lhe dado de modo manifesto, possíveis que deixam o doente perplexo.
revelado e por isso ele não pode compreender No delírio, ao contrário do que se pensa, tudo
as dúvidas dos outros. tem importância, tudo é vivido com intensidade.
Tal como no Trema, continua a haver uma O doente está muito mais atento as vozes, aos
sensação de vitória ou derrota. E a própria passos, ao comportamento dos outros, a luz,
forma de vivenciar o Trema, normalmente etc. e realmente faltam, nesta fase, vivências de
perdura durante esta fase, isto é, quem no Trema ((reconhecimento» ou «estranheza». Nos falsos
se encontrava numa tensão e expectativa neutral, reconhecimentos poderá haver realmente uma
continua, na Apofania, como espectador certa semelhança entre pessoas, semelhança essa
neutral. O depressivo angustiado que esperava que habitualmente nos passa despercebida mas
a sua execução continua, por vezes, com graves a que o doente está mais atento. Também o
exacerbações e raptos suicidas. contrário pode suceder, explicando Conrad
Os hipo-maníacos continuam agitados e ambos os Fenómenos por aquilo a que se
hipercinéticos, com fuga de ideias, podendo chamou «predomínio de propriedades
mesmo passar a um estado catatónico essenciais)), na ausência de reflexão epicrítica.
desagregado. Cada elemento isolado do campo tem uma
No entanto, e numa primeira fase, apenas os relação com o doente, tudo gira a sua volta.
objectos percepcionados contêm os sinais da Esta é a característica mais importante da fase
Apofania. O espaço interior, ou seja, o Apofânica - a Anastrofe (do Grego «volta,
conteúdo das representações, todo o mundo retorno, acção de voltar») e que significa que
interior, dos conflitos e imagens internas, está o Eu ocupa o centro do mundo.
livre de tais sinais. Sempre que existe uma vivência Apofânica,
Na realidade tudo está na mesma, mas o Eu modifica-se anastroficamente e,
mudam-se a s relações de sentido, as inversamente, quando há uma vivência
significações, mudam-se os sistemas de Anastrófica, também os objectos se
referência e com eles a «figura», sobressaindo transformam de um modo Apofânico.
dum «fundo» que até aí era neutral. Numa segunda fase, a Apofania apodera-se
Todos nós temos a capacidade de mudar de também do espaço interior («actualizado» de
modo natural os nossos sistemas de referência Metzger), ou seja, já os pensamentos são
e fazemo-lo a todo o momento. Nestes doentes também vivenciados a luz da Apofania,
isto não é possível, pois para eles as «coisas», surgindo então a sensação de estar sob hpnose,
embora externamente pareçam iguais, já não assim como vivências de inspiração, difusão e
são o mesmo que eram: alteraram o seu carácter, sonorização do pensamento, sendo as próprias
saíram da sua neutralidade, adquiriram um sensações corporais vividas de forma apofânica.
significado, embora este possa não ser Para tudo aquilo que é vivenciado, surgindo
imediatamente claro. de fora do «campo», ou seja, os objectos
Assim, tudo o que o doente olha adquire um percepcionados, o doente encontrava a expressão
aspecto novo, estranho, bizarro, algo tenso. «está posto»; tudo o que é pertença do espaço
Na percepção delirante, os doentes vivenciam interior «está feito».
os objectos com uma intensa alteração peculiar: Pode acontecer que apenas o espaço exterior
primeiramente, o objecto percepcionado indica seja afectado e só depois o mesmo aconteça
ao doente que se refere a ele, embora este não ao interior.
saiba em que sentido; posteriormente, refere-se No entanto, e com a mesma frequência, este
a ele e sabe imediatamente porquê - «puseram- processo pode ocorrer simultâneamente. Mais
-no para o submeter a uma prova, para lhe raramente, o espaço exterior fica livre e o
chamar a atenção.» Aliás, nesta apofânia do interior afectado, como acontece, por exemplo,
espaço exterior («encontrado» de Metzger), são nas vivências de inspiração.
comuns expressões como: «instruídos, postos, Nesta fase do surto, ou se inicia um
t r u q u e s , preparado, provas, tramado, movimento de retrocesso ou o doente poderá
dissimulado, etc.». Por iiltirno, o objecto pode evoluir para o estadio seguinte - o Apocalipse.

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3. APOCALIPSE mais do que alguns fragmentos vivenciais
isolados. Caímos, portanto, no terreno
Como é vivamente sugerido pelo nome, nesta especulativo das interpretações e hipóteses. O
fase torna-se completo o divórcio com a que é original em Conrad, é a sua convicção
realidade. Se na apofania perdurava uma de que na esquizofrenia é necessário passar
continuidade de sentido, na medida em que o sempre por uma das suas formas (a paranóide),
mundo permanecia ordenado, embora centrado para que se chegue a outra (a catatónica). Neste
de modo peculiar no doente, na vivência contexto, não surpreende que ele interprete a
apocalíptica certos factos experienciados fase apocalíptica como o resultado lógico da
começam a dominar o delírio completamente, Apofania do espaço interior e exterior, levada
adquirindo um carácter de imagens, muitas até as suas últimas consequências.
vezes arquetipicas e que já não guardam em As anomalias da atitude e do movimento
si nenhuma relação de sentido real. Estamos podem, assim, explicar-se por uma vivência da
aqui em pleno quadro de esquizofrenia corporalidade alterada de modo apocalíptico.
catatónica, habitualmente descrita «ao lado» A continuidade do «Eu» cessa temporariamente,
da forma paranóide, isto é, como dois subtipos do que resultam frases do tipo «Eu já não sou
distintos mas que, para Conrad, se seguem uma eu» ou a consciência de estar morto.
a outra: vivência delirante paranóide Outra contribuição Conradiana, é a
(apofânica), pode sobrepor-se um estado comparação que ele faz das vivências delirantes
catatónico (apocalíptico), com as características com os sonhos, já que do ponto de vista formal
já conhecidas, podendo mesmo culminar na se trata do mesmo - a libertação do qualitativo
morte do doente. Este estadio terminal, era na figura pelo efeito de tendências
comparado por Conrad a um ((coma tóxico». determinantes na personalidade -, já porque
É nesta fase que a investigação do mesmo modo que no sonho, depois de
fenomenológica encontra reais dificuldades. 6 acordar da fase apocalíptica, o doente não se
o próprio Conrad quem descreve: «Temos diante recorda de mais do que imagens e fragmentos
de nós um homem agitado ou apático, com isolados. E é porque a grande maioria destas
manifestações espontâneas incoerentes, vivências se assemelha a imagens oníricas
incompreensíveis que as nossas palavras não fugazes que Conrad está convencido que é
responde de acordo com nenhum sentido, de possível manejar psicanaliticamente os
tal forma que não sabemos sequer se as suas conteúdos delirantes, do mesmo modo que os
palavras devem entender-se como resposta a conteúdos dos sonhos.
pergunta, ou se apenas coincidem casualmente Se a situação clínica do doente se agudiza,
com ela. Temos de haver-nos com pessoas, umas podemos mesmo observar a chamada catatónica
vezes em extrema angústia, outras em estado aguda mortal, da qual fenomenologicamente
de ânimo elevado, como que em embriaguez. não é possível dizer mais nada. Não obstante,
Pessoas com um comportamento totalmente o que é habitual é um movimento de retrocesso,
incompreensível, por mais que para o doente uma melhoria súbita, a que se dá o nome de
pareçam ter um certo sentido, se bem que Fase de Consolidação.
simbólico, mas que ninguém é capaz de
compreender. E, finalmente, sujeitos rígidos de
modo peculiar, de tal modo que pareceria que 4. FASE DE CONSOLIDAÇÃO
a sua vida interna estaria morta, como se em
geral já não ‘vivenciassem’ nada.» Nesta fase, toma lugar uma lenta «relaxação
Mas, se a observação directa destes doentes do campo». A Apofania acaba, pelo menos em
não traz grandes esclarecimentos, tão pouco se domínios parciais. Muitas vezes, os doentes
consegue a posteriori que os doentes nos afirmam que terminou a difusão do pensamento
descrevam o que sentiram. Naqueles que sairam que, finalmente, os deixam em paz. Chegamos
desta fase, estabelece-se como que uma mesmo a perceber no doente um esboço de
«amnésia» electiva para as vivências crítica ao delírio que até aí o tinha dominado,
apocalípticas, de tal modo que não se arranca embora este abandono não se faça sem

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resistência. Os doentes podem recusar-se a completa e compreensão da índole delirante das
afastar a ideia de que são o centro de um vivências.
poderoso sistema de observação. Um deles Em que consiste, então, o resíduo?
chegou a afirmar: «Por favor, não volte a Simplesmente na sensação subjectiva do doente
confrontar-me com esta horrível dúvida. Deixe- de que já não é o mesmo, de que a sua
-me e viverei sempre este belo delírio que me personalidade se alterou. Existe como que uma
ofereceu uma oportunidade. Foi a mais diminuição da contribuição energética, não no
grandiosa experiência que jamais tive. Não sentido físico, mas ao aparelho Psíquico. Tem-
quero abandonar estes pensamentos.)) E a esta -se pretendido exprimir isto de diferentes
resistência que Conrad chama a «Fixação maneiras: uns falam de «hipotonia da
Neurótica do Delírio)). consciência»; outros de ((relaxação do arco
No entanto, o que há a reter é que na fase intencional)); outros ainda d e «atáxia
de Consolidação pode, pouco a pouco, ou até intrapsíquica». Conrad prefere explicar esta
com surpreendente rapidez, existir uma diminuição dos impulsos volitivos, este
modificação total da estrutura - A Volta desinteresse pelas actividades e desejos que
Copernicana - como lhe chama Conrad. O fazem parte da nossa vida diariamente, como
doente abandona o sistema de referência ((redução do potencial energético da psique».
Ptolomaico, em que até aí se encontrava, para É por isso que um segundo surto vai encontrar
adoptar o de Copérnico. Já não é ele o centro uma personalidade já previamente modificada.
do mundo mas, pelo contrário, o mundo segue
o seu curso e ele não é mais do que uma
pequena parte sem importância - termina a 6. CONCLUSÕES
Anastrofe.
A Apofania pode também cessar, do mesmo Em jeito de conclusão, podemos afirmar que
modo que um sintoma neurológico (por a contribuição de Conrad para o melhor
exemplo, uma parestesia quando termina uma conhecimento da Esquizofrenia, se desenvolve
crise de esclerose múltipla). Este ir e voltar, esta segundo três linhas de força principais:
flutuação temporal, fala muito para Conrad a
favor de um processo cerebral orgânico e não Em primeiro lugar, a sua convicção de que
de um sintoma psicogénico. a posição fenomenológica não se encontrava
Caminhamos, assim, gradualmente para a esgotada, podendo ainda dar origem a
última fase. desenvolvimentos frutuosos, desde que
complementada pela «Teoria da Forma))
(Gestalt). Esta associação não teve, no
5. FASE RESIDUAL entanto, nenhum aprofundamento posterior
por parte de outros autores.
Uma das características fundamentais da Em segundo lugar, é nossa opinião que
esquizofrenia é o facto dos doentes, depois do o estudo da obra de Conrad, das suas
surto não regressarem a linha de base inicial. principais noções, da análise exaustiva que
nata-se do sobejamente conhecido Estado de fez das várias fases do surto esquizofrénico,
Defeito. Conrad prefere o termo mais neutro permitirá aos clínicos, no contacto directo
de Estado Residual. Para ele, o facto de não com os doentes, uma muito melhor
existir na Psicose esquizofrénica um restitutio compreensão e integração dos diversos
ad integrum é o argumento mais sério contrário componentes da doença que surgem não já
B concepção da psicogenia desta doença. como estranhos ou bizarros, mas inseridos
Estes residuos não têm nenhuma relação num contexto unitário. Todavia, com a
imediata com o conteúdo delirante. Não devem introdução de terapêutica neuroléptica cada
entender-se no sentido, por exemplo, de um vez mais potente e incisiva, seria ingénuo
delírio residual. Pelo contrário, é mesmo esperar observar a sucessão das diferentes
possível que, passado o surto, toda a vivência fases, tal como as descreve Conrad. Destas,
delirante remita, inclusivé com uma correção é talvez a fase de Trema aquela que se reveste

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de uma particular importância já que, para Textbook of Psychiatry (Vol. V). New York:
o observador atento, pode fornecer preciosas Willinis and Wilkins.
indicações diagnósticas; por outro lado,
torna-se cada vez mais rara e difícil a RESUMO
observação de doentes em estado catatónico.
Por último, não queremos deixar de Os autores apresentam a visão de Conrad, eminente
salientar a atitude empática de Conrad em psiquiatra da Escola Alemã do princípio so século,
relação aos doentes sobre os quais incidiram sobre a estrutura e evolução do surto esquizofrénico
as suas investigações, todos eles jovens recente.
acabados de sair dos horrores de uma Guerra Depois de uma breve introdução situando-o no
Mundial, nunca deixando que a sua análise contexto histórico-psiquiátrico d a sua época,
descrevem-se as várias fases que constituem o surto,
profunda do «Eu-Objecto)) perdesse de vista a saber: Trema, Apofania, Apocalipse, Fase de
o «Eu-Sujeito» sofredor e tendo sempre Consolidação e Fase Residual.
presente a possível coexistência neste processo Os autores concluem salientando a actualidade
de alterações biológicas, em grande parte clínica da Fase de Trema e a perspectiva original de
desconhecidas no seu tempo (e que de resto Conrad, conjugando a posição fenomenológica com
não cabe a fenomenologia descobrir), mas a Teoria da Forma (Gestalt).
para as quais nunca se cansou de chamar
a atenção, acreditando firmemente no seu
ABSTRACT
esclarecimento num futuro próximo, ao que
o tempo veio a dar confirmação plena. The authors present Conrad’s vision, eminent
psychiatrist of the German School of the beginning
of the century, about the structure and evolution of
the recent schizophrenic outbreak.
BIBLIOGRAFIA After a brief introduction where he is situated in
the historical-psychiatric context of his time, the
Conrad, K. (1963). La fiquizofrenia Incipiente. severa1 phases that compose the outbreak are
Madrid: Editorial Alhambra. described, which are: Trema, Apophany, Apocalypse,
Husserl, E. (1960). Idées Directrices pour une Consolidation and Residual Phase.
Phenomelogie. Paris: Ed. Galiimard. In the end, the authors point out the clinical
Jaspers, K. (1962). General Psychopathology. actuaiity of the Trema phase and Conrad’s inovating
Manchester: Manchester University Press. vim which conjugates the phenomenological position
Kaplan, H. & Sadock, B. (1989). Comprehensive with the Gestalt Theory.

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