Você está na página 1de 165

A POLÍTICA da EXPERIÊNCIA

ea
AVE-DO-PARAÍSO
por
R. D. Laing

Tradução de
Áurea B. Weissenberg

Petrópolis EDITORA VOZES LTDA.


1974
© R. D. Laing, 1967

Título do original inglês: THE POLITICS OF EXPERIENCE


AND THE BIRD OF PARADISE

Publicado pela primeira vez por Penguin Books Ltd,


Harmondsworth, Middlesex, Inglaterra

© da tradução brasileira, 1974 Editora Vozes Ltda.


Rua Frei Luis, 100 25.600 Petrópolis, RJ Brasil

Este livro não pode ser exportado para Portugal ou seus territórios
Para meus filhos
NOTA — Este livro foi escrito nos últimos três anos. Algumas partes já
foram publicadas, ou apresentadas em conferências. São as seguintes:
Capítulo 2 — Versão revisada de uma conferência pronunciada no VI
Congresso Internacional de Psicoterapia, Londres, 1964, intitulada “Prática e
teoria: A situação presente”. Transcrito em Psychother. Psychosom. 13:58-67
(1965).
Capítulo 3 — Parte do capítulo 3 é uma versão revista de conferência
pronunciada no Instituto de Arte Contemporânea, Londres, 1964. Reimpresso
sob o título de “Violência e amor” no Journal of Existentialism, volume 5, nº
20 (1965); e sob o título de “Massacre dos inocentes”, em Peace News nº
1491 (1965).
Capítulo 4 — Parte do capítulo 4 é uma versão revista de “Série e nexo na
família”, publicado na New Left Review, 15 (1962).
Capítulo 5 — Versões anteriores deste capítulo foram publicadas sob os
títulos “Que é a esquizofrenia?”, discurso pronunciado no I Congresso
Internacional de Psiquiatria Social, Londres, 1964; “Que é a esquizofrenia?”,
em New Left Review, 28:63 (1964); “Será a esquizofrenia uma doença?”, no
Int. Journ. Soc. Psy., volume X, nº 3, 1964.
Capitulo 6 — Baseado em estudo apresentado no I Congresso
Internacional de Psiquiatria Social realizado em Londres, 1964, intitulado
“Experiência transcendental em relação à religião e à psicose”. Transcrito na
Psychedelic Review, nº 6, 1965.
Capítulo 7 — Versão revista de um artigo intitulado “Uma viagem de dez
dias”, publicado em Views, n° 8 (1965).
Sumário
Introdução
A Política da Experiência
1 - As Pessoas e a Experiência
I. EXPERIÊNCIA COMO EVIDÊNCIA
II. EXPERIÊNCIA E COMPORTAMENTO INTERPESSOAL
III. ALIENAÇÃO NORMAL DA EXPERIÊNCIA
IV. A FANTASIA COMO MODALIDADE DE EXPERIÊNCIA
V. A NEGAÇÃO DA EXPERIÊNCIA
VI. A EXPERIÊNCIA DA NEGAÇÃO
2 - A Experiência Psicoterapêutica
3 - A Mistificação da Experiência
4 - Nós e Eles
5 - A Experiência Esquizofrênica
6 - Experiência Transcendental
7 - Uma Viagem de Dez Dias
A Ave-do-Paraíso
Introdução

Poucos são hoje os livros perdoáveis. Uma tela em preto, um filme mudo,
uma folha de papel em branco talvez sejam aceitáveis. Não existe muita
conjunção entre verdade e “realidade” social. Rodeiam-nos pseudo-
acontecimentos aos quais nos ajustamos com um falso consciente adaptado à
aceitação de tais ocorrências como verdadeiras, reais e até belas. Na
sociedade humana, a verdade reside agora menos naquilo que as coisas são
do que naquilo que não são. Nossas realidades sociais revelam-se feias à luz
da verdade exilada e a beleza já quase não é possível se não for falsa.
Que fazer? Nós que ainda estamos em parte vivos, existindo no âmago
fibrilante de um capitalismo senescente, poderemos fazer mais do que refletir
a decadência que nos rodeia e que existe dentro de nós? Poderemos fazer
mais do que cantar as nossas tristes e amargas canções de desilusão e derrota?
1

As exigências do presente, o fracasso do passado são os mesmos:


proporcionar uma explicação humana plenamente autoconsciente e
autocrítico do homem.
Ninguém pode agora começar a pensar, sentir ou agir senão a partir de
sua própria alienação. Estudaremos adiante algumas de suas formas.
Somos todos assassinos e prostitutas, seja qual for a cultura, sociedade,
classe ou nação a que pertençamos e por mais que nos consideremos normais,
morais e amadurecidos.
A humanidade está distanciada de suas autênticas possibilidades. Esta
visão fundamental impede-nos de assumir qualquer ponto de vista inequívoco
sobre a sanidade do bom senso, ou a loucura do chamado louco.2 O que se
exige, contudo, é mais que um apaixonado grito de humanidade ultrajada.
Nossa alienação desce às raízes. A compreensão deste fato é trampolim
essencial a qualquer reflexão séria sobre os aspectos da atual existência inter-
humana. Considerada de diferentes perspectivas, construída de diferentes
maneiras e expressa em diferentes idiomas, esta compreensão une homens tão
diversos como Marx, Kierkegaard, Nietzsche, Freud, Heidegger, Tillich e
Sartre.3
Somos criaturas confusas e enlouquecidas, estranhas à nossa verdadeira
personalidade, estranhas umas às outras e ao mundo espiritual e material —
até mesmo loucas do ponto de vista ideal que vislumbramos, mas não
adotamos.
Nascemos num mundo onde a alienação nos aguarda. Somos
potencialmente homens, mas em estado alienado, e tal estado não é
simplesmente um sistema natural. A alienação como nosso destino atual só é
alcançada por meio de chocante violência perpetrada por seres humanos
contra seres humanos.
A Política da Experiência
1 – As Pessoas e a Experiência
…. aquele grande e autêntico Anfíbio,
cuja natureza está disposta a viver não só
como as outras criaturas em diversos
elementos, como em mundos divididos e
distintos.
Sir Thomas Browne Religio Medici

I. EXPERIÊNCIA COMO EVIDÊNCIA

Os próprios fatos tornam-se ficção, quando não existem os meios


adequados para considerá-los. Precisamos menos de teorias do que da
experiência que é a fonte da teoria. Não nos satisfazemos com a fé no sentido
de uma hipótese implausível, irracionalmente sustentada: exigimos a
experiência da “evidência”.
Vemos o comportamento das outras pessoas, mas não a sua experiência.
Isto levou alguns a insistirem em que a psicologia nada tem a ver com a
experiência do outro, e sim, exclusivamente, com o seu comportamento.
O comportamento do outro é uma experiência minha. O meu
comportamento é uma experiência do outro. É tarefa da fenomenologia social
relacionar a minha experiência do comportamento do outro com a experiência
que o outro tem do meu comportamento. Seu estudo é a relação entre
experiência e experiência: seu verdadeiro campo é a interexperiência:
Eu vejo a você, e você me vê. Eu experiencio a você e você experiência a
mim. Vejo o seu comportamento. Você vê o meu. Mas nunca vi nem verei a
sua experiência relativa a mim, assim como você não pode “ver” a minha
experiência relativa a você. Minha experiência de você não está “dentro” de
mim. É simplesmente você, conforme eu o experiencio. E eu não o
experiencio dentro de mim. Suponho, de modo semelhante, que você não me
experiencie dentro de você.
“Minha experiência de você” é o mesmo que dizer “você-conforme-eu-o-
experiencio”, e “sua experiência relativa a mim” equivale a “eu-conforme-
você-me-experiencia”. Sua experiência relativa a mim não está dentro de
você e minha experiência relativa a você não está dentro de mim, mas a sua
experiência relativa a mim me é invisível e a minha experiência relativa a
você é invisível a você.
Eu não posso experienciar a sua experiência. Você não pode experienciar
a minha. Somos ambos homens invisíveis. Todos os homens são invisíveis
uns para os outros. À experiência costumava-se chamar Alma. A experiência
como invisibilidade de homem para homem é ao mesmo tempo mais evidente
que qualquer outra coisa. Somente a experiência é evidente. A experiência é a
única evidência. A psicologia é o logos da experiência. A psicologia é a
estrutura da evidência, donde a psicologia é a ciência das ciências.
Contudo, se a experiência é evidência, como se pode estudar a
experiência do outro? Pois a experiência do outro não me é evidente, assim
como não é e nunca poderá ser uma experiência minha.
Não posso deixar de tentar compreender a sua experiência, porque,
embora eu não experiencie a sua experiência, que é invisível para mim (e
impossível de ser provada, tocada, cheirada e ouvida), ainda assim eu
experiencio a você como experienciando.
Não experiencio a sua experiência, mas experiencio a você como
experienciando. Experiencio a mim mesmo como experienciado por você. E
experiencio a você como experienciando a si mesmo como experienciado por
mim. E assim por diante.
O estudo da experiência alheia é baseado em interferências que eu retiro
de minha experiência de você experienciando a mim, de como você me está
experienciando a mim que experiencio a você que experiencia a mim….
A fenomenologia social é a ciência da experiência, minha e dos outros.
Ocupa-se da relação entre a minha experiência de você e a sua experiência de
mim. Isto é, a interexperiência. Refere-se ao seu comportamento e ao meu
comportamento como eu o experiencio e ao seu comportamento e ao meu
comportamento como você o experiencia.
Sendo a experiência sua e deles invisível para mim, assim como a minha
é para você e para eles, procuro tornar evidente para os outros, através da
experiência que têm do meu comportamento, o que eu deduzo da sua
experiência, através da minha experiência do seu comportamento.
Este é o problema crucial da fenomenologia social.
A ciência natural relaciona-se somente com a experiência que o
observador tem das coisas, nunca com o modo pelo qual as coisas têm
experiência de nós. Isto não quer dizer que as coisas não reajam a nós e umas
às outras.
A ciência natural nada sabe da relação entre comportamento e
experiência. A natureza dessa relação é misteriosa, no sentido que lhe atribui
Marcel, isto é, não se trata de um problema objetivo. Não existe lógica
tradicional para expressá-la. Não existe método elaborado para compreender
a sua natureza. Mas esta relação é a cópula da nossa ciência — caso ciência
signifique uma forma de conhecimento adequada ao assunto. A relação entre
experiência e comportamento é a pedra que os construtores rejeitarão
correndo risco. Sem ela, toda a estrutura de nossa teoria prática entrarão em
colapso.
A experiência é invisível para o outro. Mas a experiência não é algo mais
“subjetivo” do que “objetivo”, mais “interior” do que “exterior”; não é mais
processo que praxe, mais input que output, mais psíquico que somático, mais
dado duvidoso colhido pela introspecção do que extrospecção. Não é,
sobretudo, um “processo intrapsíquico”. Tais transações, objeto-relações,
relações interpessoais, transferência, contratransferência, que supomos
ocorrer entre as pessoas não são apenas o jogo recíproco de dois objetos no
espaço, cada qual equipado de processos intrapsíquicos extrovertidos.
Esta distinção entre exterior e interior refere-se em geral à diferença entre
comportamento e experiência, mas às vezes refere-se também a certas
experiências que se supõe serem “interiores”, em contraste com outras que
são “exteriores”. Mais exatamente: é uma distinção entre diferentes
modalidades de experiência, isto é, percepção (externa), em contraste com
imaginação, etc. (interna). Mas a percepção, a Imaginação, a fantasia, o
devaneio, os sonhos, a memória são apenas modalidades diversas de
experiência, nenhuma delas mais “interior”, ou “exterior” que qualquer outra.
Contudo, esta maneira de falar reflete um split em nossa experiência.
Parecemos viver em dois mundos, e muita gente tem consciência somente do
revestimento “exterior”. Contanto que nos lembremos de que o mundo
“interior” não se encontra num espaço “dentro” do corpo ou da mente, esta
maneira de falar servirá à nossa finalidade. (Foi aceitável para William
Blake). O “interior” é, então, o nosso estilo pessoal com que experienciamos
nosso corpo, as outras pessoas, o mundo animado e inanimado: imaginação,
sonhos, fantasia e mais além, penetrando âmbitos cada vez mais avançados
da experiência.
Bertrand Russell observou, certa vez, que as estrelas estão no cérebro das
pessoas.
As estrelas, conforme as vemos, não se encontram nem mais, nem menos
no meu cérebro do que as estrelas que imagino. Não as imagino na minha
cabeça, assim como não as vejo na minha cabeça.
A relação da experiência para o comportamento não é a do interior para o
exterior. Minha experiência não se encontra dentro da minha cabeça. Minha
experiência desta sala está lá fora na sala.
Dizer que a minha experiência é intrapsíquica é pressupor que exista uma
psique e que a minha experiência nela se encontra, Minha psique é a minha
experiência, minha experiência é a minha psique.
Muita gente acreditava que os anjos moviam as estrelas. Parece agora que
não movem. Como consequência desta e doutras revelações semelhantes,
muita gente já não acredita em anjos.
Muita gente acreditava que a “sede” da alma estivesse nalguma parte do
cérebro. Desde que os cérebros começaram a ser abertos com frequência,
ninguém viu ainda “a alma”. O resultado desta e de outras revelações
semelhantes é que muita gente já não acredita na alma.
Quem suporia que os anjos movem estrelas, ou seria bastante
supersticioso para supor que, pelo fato de não se ver a alma sob a lente de um
microscópio, ela não exista?

II. EXPERIÊNCIA E COMPORTAMENTO INTERPESSOAL

É nossa tarefa experienciar e conceber o concreto, isto é, a realidade em


sua plenitude. Mas, de imediato, isto é impossível. Experimental e
conceptualmente possuímos fragmentos.
Podemos partir dos conceitos da pessoa única,4 das relações entre duas ou
mais pessoas, dos grupos ou da sociedade em geral; ou do mundo material,
concebendo os indivíduos como secundários. Podemos derivar os principais
determinantes do nosso comportamento individual e social a partir de
exigências externas. Todos esses pontos de vista constituem visões e
conceitos parciais. Teoricamente precisamos de uma espiral esquemática em
expansão e contração, que permita movimentar-nos livremente e sem
descontinuidade a partir de diversos graus de abstração para maiores ou
menores graus de concretismo. A teoria é a visão articulada da experiência.
Este livro começa e termina com a pessoa.
Podem os seres humanos ser pessoas, hoje em dia? Pode um homem ser
seu verdadeiro self com outro homem ou mulher? Antes de fazermos uma
pergunta otimista, como: “Que é um relacionamento pessoal?”, precisamos
indagar se o relacionamento pessoal é possível, ou se são possíveis as
pessoas na situação presente? O que nos preocupa é a possibilidade do
homem. A pergunta só pode ser formulada através de suas facetas. O amor é
possível? É possível a liberdade?
Sejam ou não pessoas todos, alguns, ou nenhum dos seres humanos,
desejo definir uma pessoa de duas maneiras: em termos de experiência, como
um centro de orientação do universo objetivo; e em termos de
comportamento, como a origem das ações. A experiência pessoal transforma
determinado campo num setor de intenção e ação: somente através da ação
podemos transformar a nossa experiência. É fácil e tentador considerar as
“pessoas” como simples objetos isolados no espaço, e que podem ser
estudadas como quaisquer outros objetos naturais. Mas assim como
Kierkegaard observou que ninguém descobrirá a consciência olhando através
do microscópio as células cerebrais, ou qualquer outra coisa, ninguém
encontrará pessoas estudando-as como se fossem apenas objetos. Uma pessoa
é você ou eu, ele ou ela, por meio de quem um objeto é sentido. Estarão tais
centros de experiência e origens de atos vivendo em mundos totalmente
isolados, por eles mesmos compostos? Cada qual deve referir-se aqui à sua
própria experiência. Minha experiência como centro de experiência e origem
de ação diz-me que não é assim. Minha experiência e ação ocorrem num
campo social de influência e interação recíprocas. Eu experiencio a mim
mesmo, identificável como Ronald Laing por mim próprio e por outros, que
se referem àquela pessoa que eu chamo de “eu” como “você” ou “ele”, ou
agrupado como “um de nós”, “um deles”, ou “um de vocês”.
Esta característica das relações pessoais não surge na correlação do
comportamento de objetos não pessoais. Inúmeros sociólogos enfrentam o
próprio embaraço negando-lhe a ocasião. Contudo, o mundo natural
científico é complicado pela presença de certas entidades identificáveis, e
reidentificáveis de maneira fidedigna com intervalos de anos, cujo
comportamento é a manifestação, ou o encobrimento de uma visão do mundo
equivalente em status ontológico à do cientista.
Pode-se observar as pessoas dormindo, alimentando-se, caminhando,
falando, etc., de maneiras relativamente previsíveis. Não devemos contentar-
nos apenas com observação deste tipo. A observação do comportamento deve
estender-se por inferência às atribuições da experiência. Somente quando
principiamos a fazê-lo, podemos realmente construir o sistema experimental-
comportamental que é a espécie humana.
É bem possível estudar os visíveis, audíveis, olfatíveis esplendores dos
corpos humanos, e grande parte do estudo do comportamento foi realizada
nesses termos. Pode-se acumular grande número de unidades de
comportamento e encará-las como uma população estatística, em sentido
algum diversa da multiplicidade que constitui um sistema de objetos não-
humanos. Mas não se estudarão pessoas. Numa ciência da pessoa estabeleço
como axiomático que: o comportamento é uma função da experiência e tanto
a experiência como o comportamento estão sempre relacionados com alguém
ou alguma coisa diversa da própria pessoa.
Quando duas (ou mais) pessoas se relacionam, o comportamento de cada
uma em relação à outra é mediado pela experiência que cada uma tem da
outra, e a experiência de cada uma é mediada pelo comportamento da outra.
Não existe contiguidade entre o comportamento de uma pessoa e o de outra.
Grande parte do comportamento humano pode ser visto como tentativas
unilaterais, ou bilaterais de eliminar a experiência. Uma pessoa pode tratar
outra como se ela não fosse uma pessoa, e ela própria pode agir como se não
o fosse. Não existe contiguidade entre a experiência de uma pessoa e a de
outra. Minha experiência relativa a você é sempre mediada pelo seu
comportamento. O comportamento que seja consequência direta do impacto,
como o de uma bola de bilhar colidindo com outra, ou de experiência
transmitida diretamente à experiência, como nos possíveis casos de percepção
extra-sensorial, não é pessoal.

III. ALIENAÇÃO NORMAL DA EXPERIÊNCIA

A importância de Freud para a nossa época se deve em grande parte ao


seu insight e, em âmbito considerável, à sua demonstração de que a pessoa
comum é um fragmento atrofiado, dissecado do que pode ser uma pessoa.
Quando adultos, esquecemos a maior parte de nossa infância, não só o
conteúdo como o sabor; como homens do mundo, dificilmente sabemos da
existência de um mundo interior — mal recordamos nossos sonhos e pouco
os entendemos quando recordamos. Quanto ao corpo, mantemos apenas as
sensações proprioceptivas necessárias à coordenação dos movimentos e a
assegurar as exigências mínimas de sobrevivência bio-social — registrar a
fadiga, necessidade de alimentação, sexo, defecação, sono; além disso, pouco
ou nada. Nossa capacidade de pensar, exceto a serviço daquilo que,
perigosamente iludidos, supomos ser o nosso interesse próprio, é
lamentavelmente limitada. Mesmo a capacidade de ver, ouvir, tocar, provar e
cheirar está tão envolvida nos véus da mistificação que é necessário a quem
quer que seja uma disciplina intensiva para desaprender antes de recomeçar a
sentir o mundo com inocência, verdade e amor.
E é até mais remota a experiência imediata de (em contraste com a crença
ou fé) um reino espiritual de demônios, espíritos, poderes, dominações,
principados, serafins, querubins, a Luz. À medida que os domínios de
experiência tornam-se mais alienados, precisamos de uma mentalidade cada
vez mais aberta para sequer conceber a sua existência.
Muitos não sabem, nem mesmo acreditam, que todas as noites
penetramos zonas de realidade nas quais esquecemos nossa vida desperta
com a regularidade com que esquecemos nossos sonhos quando acordados.
Nem todos os psicólogos conhecem a fantasia como uma modalidade da
experiência5 e o entrelaçamento contrapontual, por assim dizer, das diferentes
modalidades experienciais. Muitos dos que estão alerta para a fantasia
acreditam que esta seja o ponto mais distante a que a experiência pode chegar
em circunstâncias “normais”. Para além existem apenas as zonas
“patológicas” das alucinações, das miragens fantasmagóricas e das ilusões.
Tal estudo de coisas representa uma devastação inacreditável de nossa
experiência. Por isso, muito se fala, sem muita base, de maturidade, amor,
alegria, paz.
Isto é consequência e ocasião de divórcio entre a experiência — o que
dela restou — e o comportamento.
O que chamamos “normal” é um produto de repressão, negação, cisão,
projeção, introjeção e outras formas de ação destrutiva sobre a experiência
(ver adiante). Está radicalmente separado da estrutura do ser.
Quanto mais se vê tal coisa, tanto mais insensato se torna prosseguir com
descrições generalizadas de “mecanismos” supostamente esquizóides,
esquizofrênicos e histéricos.
Existem formas de alienação relativamente estranhas às formas
estatisticamente “normais” de alienação. A pessoa “normalmente” alienada,
em razão de agir mais ou menos como os demais, é considerada sã. Outras
formas de alienação em desacordo com o estado de alienação prevalecente
são as intituladas boas ou más pela maioria “normal”.
A condição de alienação, o estar adormecido, inconsciente, fora de si, é a
condição do homem normal.
A sociedade valoriza altamente o homem normal, educa as crianças de
modo a perderem-se e a tornarem-se absurdas, sendo assim normais.
Homens normais mataram talvez 100.000.000 de seus semelhantes
normais nos últimos cinquenta anos.
O comportamento é uma função da experiência. Agimos segundo nossa
maneira de ver as coisas.
Se nossa experiência for destruída, nosso comportamento será destrutivo.
Se nossa experiência for destruída perdemo-nos a nós mesmos.
Que parcela do comportamento humano, sejam as interações entre
pessoas, ou entre grupos, será inteligível em termos de experiência humana?
Ou o nosso comportamento inter-humano é incompreensível, sendo nós
simples veículos passivos de processos inumanos, cujos objetivos são tão
obscuros como, no momento, fora de nosso controle, ou o nosso
comportamento em relação uns aos outros é uma função de nossa experiência
e de nossas próprias intenções, por mais que delas estejamos alienados. No
último caso precisamos assumir responsabilidade definitiva pelo que fazemos
daquilo de que somos feitos.
Não acharemos inteligível o comportamento, se o virmos como uma fase
não essencial de um processo essencialmente inumano. Ouvimos falar de
homens que agem como animais, homens que agem como máquinas, homens
que agem como complexos bioquímicos, com certas maneiras próprias, mas
perdura a maior dificuldade em alcançar em termos humanos a compreensão
do homem.
Os homens de todas as épocas estiveram sujeitos, segundo acreditaram ou
sentiram, à forças estelares, divinas, ou vindas de correntes que sopram agora
através da própria sociedade, e que parecem determinar o destino humano,
assim como as estrelas pareciam fazê-lo no passado.
Contudo, os homens viveram sempre sobrecarregados não só pelo senso
de subordinação ao destino e ao acaso, às necessidades externas ordenadas,
ou às contingências, como também a um senso de que seus próprios
pensamentos e sentimentos, nos mais íntimos interstícios, são o produto, o
resultante de processos aos quais eles se submeteram.
O homem pode distanciar-se de si mesmo mistificando a si próprio e aos
outros. Pode também ser roubado no que faz pela interferência de outros.
Se formos despojados da experiência, seremos despojados de nossos
feitos; e se nossos feitos forem, por assim dizer, arrebatados de nossas mãos
como brinquedos das mãos de uma criança, seremos despojados de nossa
humanidade. Não nos podemos iludir. Os homens podem e destroem a
humanidade de seus semelhantes e a condição desta possibilidade é sermos
interdependentes. Não somos mônadas auto-suficientes, que não produzem
qualquer efeito uns sobre os outros, exceto um reflexo. Sofremos a ação dos
outros homens, modificando por bem ou por mal; e somos agentes que
afetamos os outros de diferentes maneiras. Cada um de nós é o outro para os
outros. O homem é um paciente- agente, agente-paciente, interexperienciando
e interagindo com os seus semelhantes.
É bem certo que, a menos que possamos regular o nosso comportamento
mais satisfatoriamente que no momento, acabaremos por nos exterminarmos.
Contudo, é conforme sentimos o mundo que agimos, e este princípio é válido,
mesmo quando a ação oculta a nossa experiência, em vez de revelá-la.
Não somos sequer capazes de pensar adequadamente sobre o
comportamento que se encontra nos limites da alienação. Mas o que
pensamos é menos do que o que sabemos; o que sabemos é menos do que
aquilo que amamos; o que amamos é muito menos do que existe. E nessa
medida precisa, somos muito menos do que aquilo que somos.
Contudo, sempre que nasce uma criança, surge uma possibilidade de
adiamento. Cada criança é um novo ser, um profeta em potencial, um novo
príncipe espiritual, uma nova centelha de luz precipitada na escuridão
exterior. Quem somos nós para concluir que tudo é sem esperanças?

IV. A FANTASIA COMO MODALIDADE DE EXPERIÊNCIA

A experiência “superficial” do eu e do outro emerge de uma matriz


experiencial menos diferenciada. Ontogeneticamente, os esquemas
experienciais muito precoces são instáveis e superáveis, mas nunca de todo.
Em âmbito maior ou menor, o primeiro modo pelo qual o mundo teve sentido
continua a fundamentar toda nossa experiência subsequente e todas as ações.
O nosso primeiro modo de experienciar o mundo é em grande parte o que os
psicanalistas chamam fantasia. Esta modalidade tem a sua própria validez,
sua própria racionalidade. A fantasia infantil pode tornar-se um enclave
fechado, um “inconsciente” não desenvolvido, mas tal não é necessário. Esta
eventualidade é outra forma de alienação. A fantasia que se encontra em
muita gente de hoje está separada daquilo que a pessoa considera sua
experiência amadurecida, sadia, racional, adulta. Não vemos, então, a fantasia
em sua verdadeira função, mas a experienciamos meramente como um
aborrecimento infantil, intruso e sabotador.
Na maior parte de nossa vida social, disfarçamos esse nível básico de
fantasia de nosso relacionamento.
A fantasia é um meio especial de nos relacionarmos com o mundo. Faz
parte, às vezes essencial, do significado ou sentido (le sens: Merleau-Ponty)
implícito na ação. Como relacionamento podemos estar dele dissociados;
como significado talvez não o compreendamos; como experiência talvez
escape de diversas maneiras à nossa observação. Assim, é possível falar de
fantasia “inconsciente”, se esta afirmativa geral for dotada de conotações
específicas.
Contudo, embora a fantasia possa ser inconsciente — isto é, embora
estejamos inconscientes da experiência nesta modalidade, ou recusemos
admitir que o nosso comportamento implique num relacionamento
experiencial, ou numa experiência relacional que lhe dê um significado,
muitas vezes aparente aos outros senão a nós — a fantasia não precisa ser
assim de nós separada, seja em termos de conteúdo ou de modalidade.
A fantasia, em suma, no sentido em que uso o termo, é sempre
experiencial, significativa e, se a pessoa dela não se dissociar, racional num
sentido válido.
Duas pessoas estão sentadas conversando. Uma delas (Peter) expõe uma
questão à outra (Paul). Leva algum tempo apresentando de diferentes
maneiras seu ponto de vista a Paul, mas este não o compreende.
Imaginemos o que talvez se passe no sentido que atribuo à fantasia. Peter
procura comunicar-se com Paul. Acha que este se encontra
desnecessariamente fechado à sua pessoa. Torna-se cada vez mais importante
para ele aplacá-lo, ou penetrá-lo. Mas Paul parece duro, impenetrável e frio.
Peter sente que está batendo com a cabeça contra um muro de tijolos.
Cansado, desesperançado, torna-se cada vez mais vazio à medida que percebe
o seu fracasso. Finalmente, desiste.
Paul acha, por outro lado, que Peter o está pressionando demais e que
precisa combatê-lo. Não compreende o que ele diz, mas acha necessário
defender-se da agressão.
A dissociação de cada um de sua própria fantasia e da fantasia do outro
revela a falta de relacionamento de cada qual consigo mesmo e com o outro.
Ambos relacionam-se mutuamente “na fantasia” em medida maior ou menor
do que cada qual pretende relacionar-se consigo mesmo e com o outro.
Aqui, duas experiências fantasiosas, grosseiramente complementares,
negam com veemência a maneira tranquila pela qual os dois conversam um
com o outro, confortavelmente instalados em suas poltronas.
É um erro considerar a descrição acima como simples metáfora.

V. A NEGAÇÃO DA EXPERIÊNCIA

Parece não haver agente mais eficaz do que outra pessoa para tornar vivo o nosso
mundo ou, por meio de um olhar, gesto, ou observação, atrofiar a realidade na qual a
pessoa se abrigava.6
O ambiente físico fornece-nos constantes possibilidades de experiência,
ou então as cerceia. Daí brota o significado humano fundamental da
arquitetura. A glória de Atenas, conforme Péricles expressou tão lucidamente,
e o horror de tantas facetas das megalópolis modernas é que a primeira
realçava e as últimas cerceiam a mente do homem.
Contudo, aqui concentro-me naquilo que fazemos a nós mesmos e uns
aos outros.
Tomemos o mais simples dos esquemas interpessoais. Consideremos Jack
e Jill em relacionamento. O comportamento de Jack em relação a Jill é por
esta sentido de determinadas maneiras. O modo como ela o sente afeta de
maneira considerável seu comportamento em relação a ele. Sua maneira de
portar-se em relação a ele influencia (sem determinar totalmente, de modo
algum) o modo como ele a sente. E a experiência dele em relação a ela
contribui para a sua maneira de portar-se para com ela, que, por sua vez…. E
assim por diante.
Cada qual poderá adotar duas formas de ação fundamentalmente distintas
neste sistema interpessoal: agir de acordo com a sua experiência, ou agir de
acordo com a experiência do outro, e não existe outra forma possível de ação
pessoal dentro deste sistema. Isto é, ao considerarmos uma ação pessoal de
self para self, ou do self para o outro, a única maneira de agir é basear-nos na
nossa experiência, ou na experiência do outro.
A ação pessoal pode proporcionar ou cercear as possibilidades de
enriquecimento de experiência. A ação pessoal pode validar, confirmar,
encorajar, apoiar, realçar predominantemente, ou invalidar, desconfirmar,
desencorajar, solapar e cercear. Pode ser criativa ou destrutiva.
Num mundo onde a condição normal é de alienação, a maior parte da
ação pessoal será destrutiva tanto para a nossa experiência como para a do
outro. Esboçarei aqui alguns dos modos pelos quais isto ocorre. Deixo ao
leitor considerar, baseado em sua própria experiência, de que modo são
difusos esses tipos de ação.
Sob o título de “mecanismos de defesa”, a psicanálise descreve diversas
maneiras pelas quais a pessoa se aliena a si mesma. Por exemplo: recalque,
negação, split, projeção, introjeção. Tais “mecanismos” são com frequência
descritos em termos psicanalíticos como “inconscientes”, isto é, a própria
pessoa parece não estar cônscia do que faz a si mesma. Ainda que desenvolva
bastante insight para notar a ocorrência de um splitting, experiencia-o em
geral como um mecanismo, um processo impessoal que a domina, que ela
pode observar, mas não controlar ou deter.
Assim, existe certa validade fenomenológica em referir-se a tais “defesas”
pelo termo “mecanismo”. Mas não nos devemos deter aí. Possuem esta
qualidade mecânica porque a pessoa encontra-se delas dissociada na maneira
como sente a si mesma. Ela parece aos seus próprios olhos e aos dos outros
sofrer por causa deles. Trata-se aparentemente de processos que ela sofre e
como tal sente a si mesma como paciente dotada de psicopatologia especial.
Mas isto ocorre apenas da perspectiva de sua experiência alienada. À
medida que se torna desalienada é capaz, em primeiro lugar, de tomar
consciência deles, se já não o fez, e depois adotar a medida ainda mais crucial
de compreender progressivamente que existem coisas que ela faz ou fez a si
mesma. O processo reverte à praxe, o paciente torna-se o agente.
Finalmente é possível recuperar o terreno perdido. Esses mecanismos de
defesa são atos realizados pela pessoa baseada em sua própria experiência.
Além disso, ela dissociou-se de suas próprias ações. O produto final desta
dupla violência é uma pessoa que não se experiencia plenamente como
pessoa, e sim como parte de uma pessoa, invadida por “mecanismos”
psicopatológicos destrutivos, face aos quais torna-se vítima relativamente
indefesa.
Tais “defesas” constituem ação sobre a própria pessoa. Mas as “defesas”
não são intrapessoais, são transpessoais. Ajo não só sobre mim próprio,
como também posso agir sobre você. E você age não só sobre si mesmo,
como sobre mim. Em ambos os casos, age-se sobre a experiência.7
Se Jack consegue esquecer algo, isto pouco adianta, se Jill continuar a
lembrar-lhe o fato. É preciso que ele a induza a não fazê-lo. A maneira mais
segura seria não só mantê-la calada a respeito, como induzi-la a esquecer
também.
Jack pode agir sobre Jill de diferentes maneiras. Pode levá-la a sentir-se
culpada por “referir-se ao assunto”. Pode invalidar a experiência dela, o que
será feito mais ou menos radicalmente. Pode sugerir simplesmente que o fato
é trivial, sem importância, embora seja importante e significativo para ela.
Indo mais além, pode desviar a modalidade da experiência da memória para a
imaginação: “Foi tudo imaginação sua”. Pode ir mais além, invalidando o
conteúdo. “Não aconteceu assim”. Finalmente, pode invalidar não só o
significado, a modalidade e o conteúdo, como a própria capacidade de
recordar, fazendo ao mesmo tempo com que ela se sinta culpada.
Isto é bastante comum e frequente entre as pessoas. Para que esta
invalidação transpessoal dê resultado, porém, é aconselhável recobri-la com
uma espessa pátina de mistificação.8 Por exemplo: negando que é isto o que
se está fazendo e invalidando, ainda por cima, qualquer percepção de que
ocorre por meio de imputações como as seguintes: “Como pode pensar uma
coisa dessas?” “Você deve estar louco”. E assim por diante.

VI. A EXPERIÊNCIA DA NEGAÇÃO

Existem muitas variedades de experiência de falha ou ausência, e muitas


distinções sutis entre a experiência da negação e a negação da experiência.
Toda experiência é ao mesmo tempo ativa e passiva, a unidade do dado e
do interpretado; e a interpretação do que é dado pode ser positiva ou
negativa: será o que se deseja, teme, ou se está preparado a aceitar, ou então
não será. O elemento de negação existe em todo relacionamento e em toda
experiência de relacionamento. A distinção entre a ausência de
relacionamentos, e a experiência de todo relacionamento como uma ausência
é a divisão entre solidão e o perpétuo isolamento, entre a esperança provisória
e o desalento, ou o desespero permanente. A parte que sinto representar na
geração deste estado de coisas determina o que sinto que posso ou deveria
fazer a respeito.
As primeiras insinuações do não-ser talvez tenham sido a ausência do
seio ou da mãe. Parece ter sido esta a sugestão de Freud. Winnicott escreve
sobre “o buraco”, sobre a criação do nada no devorar do seio. Bion relaciona
a origem do pensamento com a experiência da ausência do seio. O ser
humano, na expressão de Sartre, não cria o ser, antes injeta o não-ser no
mundo, numa plenitude original de ser.
O nada, como experiência, surge como ausência de alguém ou de alguma
coisa: ausência de amigos, relações, prazer, sentido da vida, ideias, alegria,
dinheiro. Aplicado às partes do corpo, é ausência de seio, pênis, conteúdo
bom ou mau; é o vazio. A lista é, em princípio, infindável. Suponhamos
qualquer coisa e imaginemos a sua ausência.
Ser e não ser é o tema central de toda a filosofia oriental e ocidental. Estas
palavras não constituem arabescos verbais inócuos e inocentes, exceto no
filosofismo profissional da decadência.
Tememos aproximar-nos do que há de insondável, infinito e
imponderável em cada coisa.
“Não há o que temer” é a derradeira palavra tranquilizadora e o derradeiro
terror.
Experienciamos os objetos de nossa experiência como se estivessem lá no
mundo exterior. A origem de nossa experiência parece estar fora de nós
mesmos. Na experiência criativa, experienciamos a origem das imagens
criadas, das formas, dos sons dentro de nós e, ao mesmo tempo, para além de
nós mesmos. As cores emanam de uma fonte de pré-luz não iluminada, os
sons do silêncio, as formas da ausência de formas. O pré-som, a pré-luz e a
pré-forma nada são, no entanto constituem a origem de todas as coisas
criadas.
Estamos separados de e relacionados uns com os outros fisicamente.
Como seres corpóreos, as pessoas relacionam-se através do espaço. E
estamos separados e reunidos por nossas diferentes perspectivas, educação,
background, organização, lealdades de grupo, afiliações, ideologias,
interesses de classe sócio-econômicos, temperamento. Esses elementos
sociais que nos unem são ao mesmo tempo tantas coisas, parcelas sociais que
se interpõem entre nós. E se pudéssemos nos despojar de todas as exigências
e contingências e revelar uns aos outros a nossa presença nua? Se tirássemos
tudo, roupas, disfarces, muletas, maquilagem e também os projetos comuns,
os jogos que proporcionam os pretextos para as ocasiões que aparentam ser
encontros — se pudéssemos de fato nos encontrar, se tal coisa acontecesse,
uma feliz coincidência de seres humanos, o que nos separaria?
Duas pessoas que nunca tiveram nada conosco, absolutamente nada entre
nós e elas. Aquilo que está realmente “entre” não pode ser nomeado por
nenhuma das coisas que se interpõem. O “entre” é, em si mesmo, nada.
Se eu desenhar uma forma numa folha de papel, realizo um ato baseado
na experiência da minha situação. Que experiencio a mim mesmo ao fazer
isso e que intenção tenho? Estarei tentando transmitir algo a alguém
(comunicação)? Estarei dispondo de novo os elementos de algum jogo
caleidoscópico, algum quebra-cabeça interior (invenção)? Estarei tentando
descobrir as propriedades do novo Gestalten que daí emerge (descoberta)?
Ficarei espantado ao surgir algo que antes não existia? Por que não havia
estas linhas no papel antes que eu as colocasse? Aproximamo-nos aqui da
experiência da criação e do nada.
O que chamamos poema compõe-se talvez de comunicação, invenção,
fecundação, descoberta, produção, criação. Através de toda a contenção de
intenções e motivos, ocorreu o milagre. Há algo de novo sob o sol: o ser
emergiu do não-ser; uma fonte borbulhou do rochedo.
Sem o milagre nada teria acontecido. As máquinas já se estão tornando
mais capazes de se comunicar entre si do que os seres humanos com outros
seres humanos. A situação é irônica. Há cada vez mais preocupação com a
comunicação e cada vez menos em comunicar-se.
Não nos empenhamos tanto com experiências de “suprir a falha” na teoria
ou no conhecimento, de preencher um vazio, ocupar um espaço em branco.
Não é uma questão de colocar algo dentro de nada, mas de criar algo do nada,
ex nihilo. O nada do qual emerge a criação em sua forma mais pura não é um
espaço vazio, ou um período vazio de tempo.
No não-ser encontramo-nos nos limites mais longínquos que a linguagem
poderá alcançar, mas é possível sugerir por seu intermédio, porque a
linguagem não pode expressar o que não posso dizer. Não posso dizer o que
não pode ser dito, mas os sons podem levar-nos a escutar o silêncio. No
âmbito da linguagem é possível sugerir onde devem começar as
reticências…. Mas, ao usarmos uma palavra, uma letra, um som, um OM,
não podemos tornar um som insonoro, ou citar o que não tem nome.
O silêncio da pré-formação expresso em e através da linguagem não pode
ser manifesto pela linguagem. Esta pode ser usada para transmitir o que não
pode ser dito — através dos interstícios, dos vazios e lapsos, o mosaico de
palavras, sintaxe, som e sentido. As modulações de timbre e volume
delineiam a forma não preenchendo as entrelinhas, precisamente. Mas é um
grave erro supor que as linhas sejam o modelo, ou que o modelo seja aquilo
que está sendo modelado.
“O céu é azul” sugere que há um substantivo “céu” que é “azul”. Esta
sequência de sujeito, verbo, objeto, na qual “é” age como cópula unindo céu
e azul, é um nexo de sons, sintaxe, sinais e símbolos no qual nos envolvemos
completamente e que nos separa daquele inefável céu-azul-céu, ao mesmo
tempo que nos orienta para ele. O céu é azul, e o azul não é o céu, o céu não é
o azul. Mas ao dizer “o céu é azul” afirmamos que “o céu” “é”. O céu existe e
é azul. “É” serve para unir tudo e ao mesmo tempo não é nenhuma das coisas
que ele une.
Nenhuma das coisas que estão unidas por “é” podem, por si mesmas,
qualificar “é”. “É” não é isto, aquilo, outra coisa, qualquer coisa. No entanto,
“é” é a condição da possibilidade de todas as coisas. “É” é aquela nenhuma-
coisa pela qual todas as coisas são.
“É” como nenhuma-coisa é aquilo pelo qual todas as coisas são. E a
condição da possibilidade de qualquer coisa ser é estar em relação com aquilo
que não é.
O que vale dizer que a base do ser de todos os seres é a relação entre eles.
Este relacionamento é o “é”, o ser de todas as coisas, e o ser de todas as
coisas é em si mesmo nenhuma-coisa. O homem cria transcendendo a si
mesmo ao revelar-se. Mas aquilo que cria, de onde e para onde, a argila, o
vaso e o oleiro são todos não-eu. Eu sou a testemunha, o meio, a ocasião de
uma ocorrência que a coisa criada torna evidente.
Fundamentalmente, o homem não está empenhado na descoberta do que
existe, na produção e nem mesmo na comunicação ou invenção. Está
possibilitando ao ser emergir do não-ser.
A experiência do ser, o verdadeiro medium de um processo contínuo de
criação conduz-nos para além de toda depressão, busca ou vangloria, para
além mesmo do caos e do vazio, até o próprio mistério daquele contínuo salto
do não-ser para o ser e que pode ser ocasião daquela grande libertação, ao se
fazer a transição do não ter medo de nada para a compreensão de que nada há
a temer. Contudo, é muito fácil perder-se em qualquer estágio e
particularmente quando se está mais próximo.
Isto pode ser ocasião de grande alegria, mas é tão fácil ser estraçalhado
pelo processo como movimentar-se com ele. Será preciso um ato de
imaginação daqueles que não sabem por experiência própria que inferno pode
tornar-se a fronteira entre ser e não ser. Mas é para isso que existe a
imaginação.
A nossa posição em relação ao ato ou processo pode tornar-se decisiva do
ponto de vista da loucura ou da sanidade.
Existem homens que se sentem chamados a gerar inclusive a si mesmos
do nada, tendo o sentimento subjacente de que não foram adequadamente
criados, ou então criados apenas para a destruição.
Se não existem significados, valores, ponto de apoio ou ajuda, então o
homem, como criador, precisa inventar, conjurar significados e valores, apoio
e socorro do nada. Ele é um mágico.
O homem pode, na verdade, produzir algo de novo — um poema, uma
forma, uma escultura, um sistema de ideias — pensar o que nunca foi antes
pensado, produzir visões antes nunca vistas. Pouco benefício derivará de sua
própria criatividade. A fantasia não é modificada por essa “representação”
acting-out, por mais sublime que seja. O destino que aguarda o criador,
depois de ignorado, negligenciado, desprezado é, feliz ou infelizmente,
segundo o ponto de vista, ser descoberto pelos não-criativos.
Existem súbitos e aparentemente inexplicáveis suicídios que precisam ser
compreendidos como o despertar de uma esperança tão horrível e arrasadora
que se torna insuportável.
Em nossa alienação “normal” do ser, a pessoa que tenha uma perigosa
percepção do não-ser daquilo que consideramos ser (as pseudonecessidades,
os pseudovalores, as pseudo-realidades das ilusões endêmicas do que é
considerado vida, morte e assim por diante) nos proporciona, na época atual,
os atos de criação que desprezamos e ambicionamos.
As palavras de um poema, os sons em movimento, o ritmo no espaço
tentam recapturar o sentido pessoal no tempo e no espaço pessoais a partir da
visão e dos sons de um mundo despersonalizado, desumanizado. São cabeças
de ponte em território inimigo. São atos de insurreição. Sua origem é o
Silêncio que existe no centro de cada um de nós. Em qualquer lugar ou tempo
em que se estabeleça este redemoinho de sons ou de espaços padronizados no
mundo exterior, o poder que ele contém gera novas linhas de força, cujos
efeitos são sentidos através dos séculos.
O sopro criador “vem de uma zona do homem aonde ele não pode descer,
ainda que Virgílio o conduzisse, pois o poeta ali não desceria”.9
Esta zona do nada, do silêncio dos silêncios, é a origem. Esquecemos que
aí estamos todos constantemente.
A atividade precisa ser compreendida em termos da experiência da qual
emerge. São os arabescos que misteriosamente incorporam verdades
matemáticas vislumbradas apenas por alguns — como são belos e
maravilhosos! — embora sejam o debater de um homem que se afoga.
Encontramo-nos aqui em posição que transcende todas as questões,
exceto as do ser ou não-ser, encarnação, nascimento, vida e morte.
A criação ex nihilo foi considerada impossível até para Deus. Mas
ocupamo-nos de milagres. Precisamos ouvir a música daquelas guitarras de
Braque (Lorca).
Do ponto de vista do homem alienado de sua fonte, a criação emerge do
desespero e termina em fracasso. Mas esse homem não trilhou o caminho até
o final dos tempos, o final do espaço, o final das trevas e o final da luz.
Ignora que tudo termina onde tudo começa.
2 – A Experiência Psicoterapêutica10

Nos últimos vinte anos, a psicoterapia evoluiu de maneira complexa,


tanto na teoria como na prática. No entanto, através de toda essa
complexidade e às vezes confusão, é impossível, nas palavras de Pasternak,
“não terminar caindo, como numa heresia, em simplicidade inaudita”.
Na prática da psicoterapia, a própria diversidade de métodos tornou mais
clara a simplicidade essencial.
Os elementos irredutíveis da psicoterapia são o terapeuta, o paciente,
horário e local regulares e seguros. Mas não é fácil a duas pessoas
encontrarem-se. Vivemos todos na esperança de que um encontro autêntico
entre seres humanos possa ainda ocorrer. A psicoterapia consiste na poda de
tudo o que se encontra entre nós: apoios, máscaras, papéis, mentiras, defesas,
ansiedades, projeções e introjeções, em suma, todas as sobras do passado,
transferência e contratransferência, que usamos por hábito e conivência,
consciente ou inconscientemente, como a moeda corrente de nossos
relacionamentos. É precisamente esta moeda, este intermediário, que recria e
intensifica as condições de alienação que as causaram originalmente.
A contribuição distintiva da psicanálise tem sido trazer à luz essas
importações, sobras e repetições compulsivas. Entre os psicanalistas e
psicoterapeutas, a tendência agora é focalizar não só a transferência, não só o
que aconteceu antes, como o que jamais aconteceu e o que é novo. Assim, na
prática, o uso de interpretações para revelar o passado, ou mesmo para revelar
o passado-no-presente, pode ser usado apenas como tática e, na teoria, fazem-
se esforços para compreender melhor e descobrir palavras para os elementos
de não-transferência em psicoterapia.
O terapeuta pode permitir-se agir com espontaneidade e de maneira
imprevista. Pode empenhar-se ativamente em destruir velhos padrões de
experiência e comportamento. Pode apoiar ativamente padrões novos. Ouve-
se falar agora em terapeutas que dão ordens, riem, gritam, choram, e até se
levantam daquela sagrada cadeira. Zen, com sua ênfase na iluminação
alcançada através do súbito e do inesperado, é influência crescente. Claro que
tais técnicas nas mãos de um homem que não tenha inabalável preocupação e
respeito pelo paciente seriam desastrosas. Embora possamos estabelecer
alguns princípios gerais desses avanços, sua prática é ainda, e deverá ser
sempre, para o homem que possui ao mesmo tempo autoridade excepcional e
capacidade para improvisar.
Não enumerarei todas as variedades práticas da psicoterapia, longa, curta,
breve, intensiva, experimental, diretiva, não-diretiva, as que utilizam as
drogas que ampliam o consciente e outros recursos e as que nada usam, por
assim dizer, senão as pessoas. Prefiro considerar em maior detalhe a função
crítica da teoria.
Essas linhas de crescimento que parecem expandir-se centrifugamente em
todas as direções têm intensificado a necessidade de uma teoria primária
firme e vigorosa, que possa delinear cada prática e teoria em relação às
questões centrais de todas as formas de psicoterapia. No último capítulo
esbocei algumas das exigências fundamentais de tal teoria, isto é, precisamos
conceitos que indiquem simultaneamente a interação e a interexistência de
duas pessoas e que nos ajudem a compreender a relação entre a experiência e
o comportamento de cada um, dentro do contexto do relacionamento
existente entre elas. E precisamos, por nossa vez, ser capazes de conceber
este relacionamento dentro dos sistemas sociais contextuais de importância. É
fundamental que uma teoria crítica seja capaz de situar todas as teorias e
práticas no âmbito de uma visão total da estrutura ontológica do ser humano.
De que nos servem as atuais teorias da psicoterapia? Seria enganador
distinguir com muita precisão, em suas linhas, uma escola de pensamento da
outra. Na corrente principal da psicanálise ortodoxa e até entre as diversas
teorias de objeto-relacionamento na Grã-Bretanha — Fairbairn, Winnicott,
Melanie Klein, Bion — existem diferenças que vão além da ênfase. O mesmo
ocorre na escola ou tradição existencial — Binswanger, Boss, Caruso, Frankl.
Cada expressão teórica, ao que se observa, representa alguma parte no
pensamento de pelo menos alguns dos membros de qualquer escola. No pior
dos casos existem as mais extraordinárias confusões teóricas de teoria,
etologia, teoria do sistema, análise da comunicação, teoria da informação,
análise transacional, relações interpessoais, relações-objeto, teoria dos jogos,
etc.
O desenvolvimento da metapsicologia de Freud modificou o contexto
teórico em que trabalhamos. Para compreender com simpatia o valor positivo
da metapsicologia, precisamos considerar o clima intelectual no qual se
desenvolveu. Houve quem observasse que ela hauriu seu ímpeto da tentativa
de ver o homem como um objeto de investigação científica natural
conquistando assim a aceitação da psicanálise como empreendimento sério e
respeitável. Não creio que tal escudo seja agora necessário, ou mesmo que
jamais tenha sido. E o preço pago, quando se pensa em termos
metapsicológicos, é alto.
A metapsicologia de Freud, Federn, Rapaport, Hartman, Kris não possui
estrutura para qualquer sistema social gerado por mais de uma pessoa de cada
vez. Dentro de seu próprio arcabouço, não possui conceitos de coletividades
sociais de experiência partilhada ou não entre pessoas. Esta teoria não possui
categoria de “você”, como existe na obra de Feuerbach, Buber, Parsons. Não
tem meios de expressar o encontro de um “eu” com o “outro”, e o impacto de
uma pessoa sobre a outra. Não possui conceito de “mim”, exceto quando
objetivado como “o ego”. O ego é uma parte de um aparelho mental. Os
objetos internos são as outras partes deste sistema. Outro ego é parte de um
sistema ou estrutura diferente. Ainda não se estudou de que modo duas
aparelhagens mentais, ou estruturas psíquicas, ou sistemas, cada qual com sua
própria constelação de objetos internos, podem relacionar-se entre si. Dentro
da estrutura que a teoria oferece, será inconcebível, talvez. Projeção e
introjeção por si mesmas não cobrem a brecha entre as pessoas.
Poucos consideram agora centrais as questões de consciente e
inconsciente conforme eram concebidas pelos primeiros psicanalistas —
como dois sistemas observáveis objetivamente, ambos separados da
totalidade da pessoa, ambos compostos de uma espécie de material psíquico e
ambos exclusivamente intrapessoais.
É a relação entre as pessoas que é central na teoria e na prática. As
pessoas relacionam-se umas com as outras através de sua experiência e
comportamento. As teorias podem ser vistas em termos da ênfase que
colocam na experiência, ou no comportamento, e em termos de sua
capacidade para articular o relacionamento entre experiência e
comportamento.
As diferentes escolas de psicanálise e psicologia profunda reconheceram
pelo menos a relevância crucial da experiência de cada um em relação ao seu
comportamento, mas não esclareceram o que é a experiência e isto se torna
particularmente evidente em relação ao “inconsciente”.
Algumas teorias preocupam-se mais com as interações ou transações
entre as pessoas, sem se referirem muito à experiência dos agentes. Assim
como qualquer teoria que focalize a experiência e negligencie o
comportamento pode tornar-se muito enganadora, o mesmo se dá com as que
focalizam o comportamento, negligenciando a experiência e tornando-se
assim desequilibradas.
No idioma da teoria dos jogos, as pessoas possuem um repertório de
jogos baseado em determinados conjuntos de interações aprendidas. Outros
talvez se entreguem a jogos bastante confusos para permitirem a
representação de uma variedade mais ou menos estereotipada de dramas. Os
jogos possuem regras, algumas públicas, outras secretas. Há quem jogue de
maneira a infringir as regras dos jogos dos outros. Alguns fazem jogo não
declarado, tornando seus movimentos ambíguos, ou totalmente ininteligíveis,
exceto para o especialista nesses jogos secretos e inusitados. Tais pessoas,
neuróticos ou psicóticos em perspectiva, talvez tenham que submeter-se ao
cerimonial de uma consulta psiquiátrica que conduza ao diagnóstico,
prognóstico e receita médica. O tratamento consistiria em indicar- lhes a
natureza insatisfatória dos jogos em que se empenham e talvez ensinar-lhes
novos. Há quem reaja com desespero, mais pela perda do jogo do que pela
pura “perda-do-objeto”, isto é, a perda do companheiro, ou companheiros,
como pessoas reais. Mais importa a continuação do jogo que a identidade dos
jogadores.
Uma vantagem dessa linguagem é que ela reúne as pessoas. A falha em
ver o comportamento de uma pessoa em relação ao de outra tem conduzido a
muita confusão. Numa sequência de interação entre p e o, p1 → o1 → p2 → o2
→ p3 → o3, etc., a contribuição de p1 e p2 a p3 é tomada fora do contexto e
faz-se ligação direta entre p1 → p1 → p3. Esta sequência artificialmente
derivada é então estudada como uma entidade ou processo isolado e talvez se
façam tentativas para “explicá-la” (buscar a “etiologia”) em termos de fatores
genético-constitucionais, ou patologia intrapsíquica.
A teoria das relações-objeto, conforme expõe Guntrip, tenta realizar uma
síntese entre o que é intrapessoal e o que é interpessoal. Os conceitos de
objetos internos e externos, de sistemas fechados e abertos, vai até certo
ponto. Contudo, a questão continua a girar em torno de objetos e não de
pessoas. Os objetos correspondem ao “o quê?” e não ao “por meio do quê?”
da experiência. Não possuímos ainda uma fenomenologia da experiência que
inclua a chamada experiência inconsciente, a experiência relacionada com o
comportamento, a pessoa relacionada com a pessoa, sem split, negação,
despersonalização e coisificação, tudo isso tentativas infrutíferas de explicar
o todo por intermédio da parte.
Transação, sistemas, jogos podem ocorrer e ser jogados em e entre
sistemas eletrônicos. O que é especificamente pessoal ou humano? Um
relacionamento pessoal não é somente transacional, é transexperiencial e
nisso reside a sua qualidade humana específica. A transação sozinha, sem
experiência, carece de conotações pessoais específicas. Os sistemas
endócrino e retículo-endotelial transacionam. Não são pessoas. O grande
perigo de pensar no homem em termos de analogia é que a analogia acaba
sendo apresentada como uma homologia.
Por que quase todas as teorias sobre a despersonalização, coisificação,
splitting, negação tendem a revelar os sintomas que procuram descrever?
Restam-nos as transações, mas onde está o indivíduo? Resta-nos o indivíduo,
mas onde está o outro? Restam-nos os padrões de comportamento, mas onde
a experiência? Restam-nos a informação e comunicação, mas onde o pathos e
a simpatia, a paixão e a compaixão?
A terapia do comportamento é o exemplo mais extremo dessa teoria e
prática esquizoide que propõe pensar e agir puramente em termos do outro,
sem referência ao self do terapeuta ou do paciente, em termos de
comportamento sem experiência, em termos de objetos mais do que de
pessoas. É inevitável, portanto, uma técnica de desencontro, de manipulação
e controle.
A psicoterapia deve permanecer uma tentativa obstinada de duas pessoas
para recuperar a integridade do ser humano através do relacionamento entre
elas.
Qualquer técnica relativa ao outro sem o self, ao comportamento com
exclusão da experiência, ao relacionamento com negligência das pessoas
relacionadas, aos indivíduos com exclusão de seu relacionamento e, acima de
tudo, ao objeto-a-ser-modificado de preferência à pessoa-a-ser-aceita, limita-
se a perpetuar a doença que pretende curar.
E qualquer teoria não baseada na natureza humana é uma mentira e uma
traição ao homem. Uma teoria inumana conduzirá inevitavelmente a
consequências inumanas — se o terapeuta for coerente. Felizmente, muitos
têm o dom da incoerência. Isto, por mais simpático que seja, não pode ser
considerado o ideal.
Não nos ocupamos com a interação de dois objetos, nem com as suas
transações dentro de um sistema diádico. Não nos preocupamos com os
padrões de comunicação dentro de um sistema que compreende dois
subsistemas à maneira dos computadores, que recebem e processam os dados
e emitem sinais para fora. Ocupamo-nos das duas origens de experiência em
relação.
O comportamento pode ocultar ou revelar a experiência. Dediquei um
livro, O Eu Dividido,11 à descrição de algumas versões do split entre
experiência e comportamento. E ambos, tanto a experiência como o
comportamento, estão por sua vez fragmentados de diferentes maneiras. Tal
ocorre mesmo quando se fazem imensos esforços para dar a impressão de
coerência, disfarçando os pontos falhos.
Penso que a razão desta confusão reside no significado da frase de
Heidegger: “o Medonho já aconteceu”.
Os psicoterapeutas são especialistas em relações humanas. Mas o
Medonho já aconteceu. Aconteceu a todos nós. Os terapeutas encontram-se
também num mundo onde o interior já está separado do exterior. O interno
não se torna externo, e o externo torna-se interno apenas com a redescoberta
do mundo “interior”. Isto é apenas o começo. Como toda uma geração de
homens estamos tão distanciados do mundo interior, que muitos afirmam que
ele não existe; e, ainda que exista, não tem importância. Mesmo que tenha
algum significado, não se trata do preciso material da ciência, e se não for
preciso, neste caso, tornemo-lo tal: vamos medi-lo e contá-lo. Quantificar a
agonia do coração e o êxtase num mundo em que, quando o universo interior
for descoberto, é possível que nos encontremos confusos e em decadência.
Pois sem o que é interior, o externo perde o seu sentido, e sem o externo, o
interior perde a substância.
Precisamos estar a par das relações e comunicações, mas estes padrões
confusos e perturbadores de comunicação refletem a desordem dos mundos
pessoais de experiência, em cujo recalque, negação, splitting, introjeção,
projeção, etc. — em cuja profanação geral se baseia a nossa civilização.
Quando os nossos mundos pessoais forem redescobertos e puderem
reconstituir-se, a primeira coisa que descobriremos será o caos: corpos
semimortos, partes genitais dissociadas do coração, cabeça separada do
coração, cabeça dissociada das partes genitais, tudo sem unidade interior,
com o senso de continuidade quase insuficiente para agarrar-se a uma
identidade — a idolatria corrente; corpo, mente e espirito despedaçados por
contradições internas, arrastados em diferentes direções; o Homem separado
de sua própria mente e também de seu corpo — criatura semi-enlouquecida
num mundo insano.
Quando o Medonho acontecer, dificilmente poderemos escapar senão que
a Coisa faça exteriormente eco à destruição já ocorrida internamente.
Estamos todos implicados neste estado de alienação. O contexto é
decisivo para toda a prática da psicoterapia.
O relacionamento psicoterapêutico é, portanto, uma pesquisa. Uma busca
constantemente reafirmada e reconstituída daquilo que todos perdemos e que
alguns podem talvez suportar com um pouco mais de facilidade que outros,
assim como alguns suportam melhor que outros a falta de oxigênio, e esta
nova busca é autenticada pela experiência partilhada da experiência
reconquistada no relacionamento terapêutico e através dele, aqui e agora.
É verdade que no empreendimento da psicoterapia existem regularidades,
até mesmo estruturas institucionais, permeando a sequência, ritmo e tempo da
situação terapêutica vista como um processo, e elas podem e devem ser
estudadas com objetividade científica. Mas os momentos realmente decisivos
em psicoterapia, conforme todo paciente ou terapeuta que já os viveu sabe
muito bem, são imprevisíveis, únicos, inesquecíveis, irrepetíveis e, com
frequência, indescritíveis. Isto significará que a psicoterapia deve ser um
culto pseudo-esotérico? Não.
Precisamos continuar a luta através de nossa confusão, insistir em sermos
humanos.
A existência é uma chama que se desfaz constantemente e refunde nossas
teorias. O pensamento existencial não oferece segurança, lar para os
desabrigados. Não se dirige a ninguém, exceto a você e a mim. Encontra a
sua própria confirmação quando, através do abismo de nossos idiomas e
estilos, nossos erros, enganos e perversidades, encontramos, na comunicação
do outro, uma experiência de relacionamento estabelecido, perdido, destruído
ou recuperado. Esperamos partilhar a experiência de um relacionamento, mas
o único início honesto, ou mesmo o único fim, talvez seja partilhar a
experiência de sua ausência.
3 – A Mistificação da Experiência

Não basta destruir a experiência própria e alheia. É preciso cobrir tal


devastação com um falso consciente habituado, na expressão de Marcuse, à
sua própria falsidade.
A exploração não deve ser vista como tal. Deve ser vista como
benevolência. A perseguição não precisa, de preferência, ser invalidada como
produto de imaginação paranoide, e sim considerada como bondade. Marx
descreveu a mistificação e revelou a sua função em sua época. O tempo de
Orwell já chegou. Os colonizadores não só mistificam os nativos, nas
maneiras que Fanon revela com tanta clareza,12 como são obrigados a
mistificar a si mesmos. Nós, europeus e norte-americanos, somos os colonos
e a fim de manter as nossas surpreendentes imagens como dons de Deus para
a grande maioria da espécie humana esfaimada, precisamos interiorizar a
nossa violência, voltando-a contra nós e nossos filhos, e empregar a retórica
da moralidade ao descrever o processo.
A fim de racionalizar o nosso complexo industrial-militar, precisamos
destruir a nossa capacidade de ver com clareza o que se encontra diante de
nós e de imaginar o que fica para além. Muito antes que seja deflagrada uma
guerra termonuclear, já desperdiçamos a nossa sanidade. Principiamos com
as crianças. É imperioso agarrá-las a tempo. Sem a mais minuciosa e rápida
lavagem cerebral, suas mentes corruptas veriam através de nossas
manipulações escusas. As crianças não são tolas ainda, mas nós as
transformaremos em imbecis como nós próprios, dotadas de Q.I. elevado, se
possível.
Desde o instante do nascimento, quando o bebê da idade da pedra se
defronta com a mãe do século vinte, é submetido às forças da violência
chamadas amor, assim como o foram a mãe e o pai. Tais forças destinam-se
sobretudo a destruir a maior parte de suas potencialidades. Este
empreendimento tem êxito, de modo geral. Quando o novo ser humano chega
aos quinze anos, mais ou menos, já se transformou num ser parecido
conosco: uma criatura meio demente, mais ou menos adaptada a um mundo
louco. Tal é a normalidade na época presente.
O amor e a violência, corretamente falando, são pólos opostos. O amor
deixa o outro em paz, mas com afeição e preocupação. A violência tenta
cercear a liberdade do outro, forçá-lo e agir da maneira que desejamos, mas
com extrema falta de preocupação, com indiferença diante do destino alheio.
Estamos efetivamente nos destruindo por meio da violência mascarada de
amor.
Sou especialista — que Deus me ajude! — em ocorrências do espaço e do
tempo interiores, em experiências chamadas pensamentos, imagens,
devaneios, memórias, lembranças de sonhos, lembranças de visões, sonhos de
alucinação, refrações de refrações de refrações daqueles originais Alfa e
Ômega da experiência e realidade, daquela Realidade em cujo recalque,
negação, divisão, projeção, falsificação e violação e profanação generalizadas
nossa civilização se baseia tanto como em tudo o mais.
Vivemos igualmente fora de nossos corpos e de nossa mente.
Preocupado como me encontro com este mundo interior, observando dia a
dia a sua devastação, pergunto por que isto aconteceu?
Um dos componentes da resposta, sugerido no Capítulo I, é que nós
podemos agir sobre a experiência de nós mesmos, dos outros e do mundo,
assim como sobre o mundo através do próprio comportamento.
Especificamente, tal devastação é em grande parte devida ao trabalho da
violência que foi perpetrada sobre cada um de nós, e por cada um de nós
sobre nós mesmos. A denominação que costumamos dar a esta violência é
amor.
Agimos sobre nossa experiência a comando dos outros, assim como
aprendemos a portar-nos de acordo com eles. Ensinaram-nos o que
experienciar e o que não experienciar, assim como nos ensinaram que
movimentos fazer e que sons emitir. Uma criança de dois anos já age, fala e
pensa moralmente. Já se movimenta de maneira “certa”, emite os sons
“corretos” sabe o que deve sentir e não sentir. Seus movimentos tornaram-se
tipos estereométricos, permitindo ao antropólogista identificar, através do
ritmo e do estilo, suas características nacionais e até regionais. Assim como
aprende a movimentar-se de maneira específica, retirada de todo o âmbito
possível de movimentos, aprende também sentir dentro de todo o âmbito
possível de experiência.
Muitas das ciências sociais do momento aprofundam esta mistificação. A
violência não pode ser vista através dos olhos do positivismo.
Uma mulher despeja forçosamente alimento, por meio de um funil, pela
garganta de um ganso. Será isto crueldade para com o animal? Ela alega não
ter qualquer motivação ou intenção de crueldade. Se pretendêssemos
descrever a cena “objetivamente”, nós a despojaríamos daquilo que se
encontra “objetivamente”, ou melhor, ontologicamente, presente na situação.
Toda descrição pressupõe nossas premissas ontológicas quanto à natureza
(ser) do homem, dos animais e do relacionamento entre eles.
Se um animal é rebaixado a uma peça manufaturada de produto, a uma
espécie de complexo bioquímico, de modo que sua carne e órgãos sejam
simplesmente material que revele uma certa tessitura sob a ação do paladar
(macia, tenra, rija), um gosto, talvez um cheiro — então, descrever o animal
positivamente nesses termos é rebaixar-se, rebaixando o próprio ser. Uma
descrição positiva não é “neutra”, ou “objetiva”. No caso do ganso – matéria-
prima-para-o-patê, a descrição só pode ser negativa se permanecer presa por
uma ontologia válida. Isto é, a descrição movimenta-se à luz daquilo de que a
atividade é uma brutalização, um rebaixamento e uma profanação — isto é, a
verdadeira natureza dos seres humanos e dos animais.
A descrição deve ser feita à luz de o fato de que os seres humanos
tornaram-se tão brutalizados, banalizados, atoleimados que não percebem seu
próprio rebaixamento. Isto não se destina a sobrepor à descrição “neutra”
certos julgamentos de valor que perderam todo o critério de validade
“objetiva”, isto é, qualquer validade que alguém julgue dever levar realmente
a sério. Em questões “subjetivas” tudo é válido. Ideologias políticas, por
outro lado, estão embaraçadas por julgamentos de valor não reconhecidos
como tais e sem qualquer validade ontológica. Os pedantes ensinam à
juventude que essas questões de valor são irresponsáveis, impossíveis de se
provar ou verificar, que não são de fato questões; ou que precisamos é de
metaquestões. Entretanto, a guerra no Vietnã prossegue.
Sob o signo da alienação, cada aspecto da realidade humana está sujeito à
falsificação e uma descrição positiva só pode perpetuar a alienação que não é
capaz de descrever, aprofundando-a mais ainda ao disfarçá-la e mascará-la.
Precisamos então repudiar um positivismo que atinge a sua
“autenticidade” mascarando com êxito o que é e o que não é, seriando o
mundo do observador mediante transformação da realidade dos fatos em
capta, que são aceitos como dados, despojando o mundo do ser e relegando o
fantasma do ser a um mundo sombrio de “valores” subjetivos.
A linguagem teórica e descritiva de grande parte da pesquisa relativa à
ciência social adota uma aparente posição de neutralidade “objetiva”. Mas já
vimos o quanto isto pode ser enganador. A escolha da sintaxe e do
vocabulário são atos políticos que definem e circunscrevem a maneira pela
qual os “fatos” serão sentidos. Na verdade, de certo modo vão ainda mais
longe, criando os fatos a serem estudados.
Os “dados” da pesquisa são menos dados que tomados a uma matriz de
ocorrências constantemente fugidias. Deveríamos falar em captados (capta)
de preferência a dados (data). A porção quantitativamente intercambiável de
cereal que penetra no moinho dos estudos de autenticidade e nas escalas de
classificação é a expressão de um processamento do que fazemos sobre a
realidade, e que não é a expressão dos processos da realidade.
Investigam-se cientificamente objetos, coisas, padrões de relações entre
as coisas, ou sistemas de “ocorrências”. As pessoas distinguem-se das coisas
por experienciarem o mundo, ao passo que as coisas se comportam no
mundo. Coisas-ocorrências não experienciam. Os acontecimentos pessoais
são experimentais. O cientificismo natural é o erro de transformar as pessoas
em coisas por meio de um processo de coisificação, que não é em si mesmo
parte do verdadeiro método científico natural. Os resultados assim derivados
precisam ser desquantificados e descoisificados antes de poderem ser
reassimilados ao reino da fala humana.
Fundamentalmente, o erro é o fracasso em compreender que existe uma
descontinuidade ontológica entre os seres humanos e os seres neutros.
Os seres humanos relacionam-se uns com os outros não apenas
externamente, como duas bolas de bilhar, mas pela relação dos dois mundos
de experiência que entram em jogo quando duas pessoas se encontram.
Se os seres humanos não forem estudados como seres humanos, então
mais uma vez ocorrem violência e mistificação.
Em grande parte dos escritos contemporâneos sobre o indivíduo e a
família existe a suposição de uma confluência não-muito-infeliz, para não
dizer de harmonia pre-estabelecida, entre a natureza e a educação. Talvez seja
preciso fazer alguns ajustes de ambos os lados, mas todas as coisas
contribuem para o bem daqueles que desejam apenas segurança e identidade.
Desapareceu todo o senso possível de tragédia, de paixão. Desapareceu
toda a linguagem da alegria, encantamento, paixão, sexo, violência. A
linguagem é a da sala da diretoria. Nada mais de cenas primevas, e sim
coalizões parentais; nada mais de repressão de elos sexuais com os pais, a
criança “desiste” de seus desejos edipianos. Por exemplo:
A mãe pode corretamente investir suas energias no cuidado do filho pequeno quando o
apoio econômico, status e proteção da família são proporcionados pelo pai. Ela pode
também mais facilmente limitar sua cathexis pelo filho aos sentimentos maternos, quando
as necessidades de esposa são satisfeitas pelo marido.13
Não se trata aqui de linguagem grosseira referente à relação sexual, ou
mesmo de uma “cena primitiva”. A metáfora econômica está corretamente
empregada. A mãe “investe” no filho. O mais revelador é a função do
marido: dar apoio econômico, status e proteção, nesta ordem.
Há frequentes referências à segurança, à estima dos outros. Espera-se que
desejemos e vivamos para “obter prazer da estima e afeição dos outros”.14
Caso contrário, a pessoa é um psicopata.
Tais afirmativas são, em certo sentido, verdadeiras. Descrevem a criatura
assustada, acovardada, abjeta que nos aconselham a ser, caso queiramos ser
normais, oferecendo uns aos outros proteção mútua contra a nossa própria
violência. A família como “rede protetora”.
Por detrás desta linguagem espreita o terror que existe nos bastidores de
todas essas aparências de amizade, esse dar e receber de estima, status, apoio,
proteção e segurança. Através dos gestos urbanos e polidos, ainda se veem as
rupturas disfarçadas.
Em nosso mundo somos “vítimas que ardem na fogueira, sinais através
das chamas”, mas, para Lidz e outros, as coisas prosseguem mansamente. “A
vida contemporânea exige adaptabilidade”. Precisamos também “utilizar o
intelecto” e possuir “um equilíbrio emocional que permita à pessoa adaptar-se
aos outros sem medo de perder a identidade no intercâmbio. A vida moderna
exige confiança básica nos outros e fé na integridade do self.15
Encontra-se às vezes um vislumbre de maior honestidade quando, por
exemplo, “consideramos a sociedade de preferência ao indivíduo; cada
sociedade possui um interesse vital na doutrinação das crianças, que
constituem seus novos recrutas”.16
Esses autores talvez escrevam com ironia, mas não há disso evidência.
Adaptação a quê? À sociedade? A um mundo que enlouqueceu?
A função da Família é reprimir Eros, induzir a uma falsa consciência de
segurança, negar a morte evitando a vida, anular a transcendência, crer em
Deus para não sentir o Vazio, criar, em suma, o homem de uma só dimensão;
promover o respeito, a conformidade, a obediência; desencorajar as crianças
de brincar, induzir o medo do fracasso, promover o respeito pelo trabalho e
pela “respeitabilidade”.
Permitam que apresente aqui duas visões alternativas da família e da
adaptação humana:
Os homens não se tornam o que eram destinados a ser por natureza, e sim o que a
sociedade determina…. os sentimentos de generosidade…. são, por assim dizer, atrofiados,
queimados, violentamente arrancados e amputados para se adaptarem às nossas relações
com o mundo, um tanto à maneira pela qual os mendigos atrofiam e mutilam os filhos para
ajustá-los à sua futura situação na vida.17
E:
De fato, o mundo parece ainda habitado por selvagens bastante estúpidos para verem
antepassados reencarnados em seus filhos recém-nascidos. Armas e jóias pertencentes ao
morto são colocadas diante dos olhos da criança; se ela fizer qualquer movimento ouvirá
um grito: “Vovô ressuscitou”. O “velho” mamará, molhará o colchão e ostentará o nome
ancestral; os sobreviventes dessa antiga geração gostarão de ver seu companheiro de
caçadas e batalhas agitar os minúsculos membros e gritará, tão logo consiga falar, lhe
inculcarão recordações do morto. Um severo treinamento vai “restaurar” o antigo caráter.
Lembrarão à criança que “ele” era raivoso, cruel ou magnânimo, e ela se convencerá disso,
apesar de toda a experiência atestando o contrário. Que barbarismo! Suponhamos uma
criança viva; costuremo-la na pele de um morto, e ela ficará sufocada numa infância senil,
sem ocupações, exceto reproduzir os gestos avunculares, sem outra esperança, senão
envenenar futuras infâncias após sua própria morte. Não admira que depois disso fale de si
mesmo com as maiores precauções, à meia voz, com frequência na terceira pessoa; esta
miserável criatura está bem cônscia de ser seu próprio avô.
Esses atrasados aborígenes podem ser encontrados nas Ilhas Fiji, em Taiti, na Nova
Guiné, em Viena, em Paris, em Roma, em Nova Iorque, onde quer que haja homens. São
chamados pais. Muito antes do nosso nascimento, antes mesmo de sermos concebidos,
nossos pais decidem quem seremos.18 7
Em certos setores vigora o ponto de vista de que a ciência é neutra e que
tudo isto é uma questão de julgamento de valores.
Lidz chama à esquizofrenia o fracasso da adaptação humana. Nesse caso,
isto é também um julgamento de valor. Ou alguém dirá que se trata de um
fato objetivo? Muito bem, chamemos à esquizofrenia uma tentativa bem
sucedida de o homem não se adaptar às pseudo-realidades sociais. Será
também isto um fato objetivo? A esquizofrenia é uma falha no
funcionamento do ego. Será isto uma definição neutralista? Mas o que, ou
quem é o “ego”? A fim de regressar àquilo que é o ego, à realidade com a
qual se relaciona mais de perto, precisamos desagregá-la, despersonalizá-la,
desextrapolar, desabstratar, desobjetivar, descoisificar e voltar ao você e eu,
às nossas linguagens ou estilos particulares de nos relacionarmos no contexto
social. O ego é por definição um instrumento de adaptação, de modo que
voltamos a todas as questões levantadas por todo esse aparente neutralismo.
A esquizofrenia será uma fuga bem-sucedida à adaptação a um tipo de ego?
A esquizofrenia é uma etiqueta afixada por certas pessoas em outras nas
situações em que ocorre uma disjunção interpessoal de determinada espécie.
Isto é o mais próximo que se pode chegar, no momento, uma declaração
“objetiva”.
A família é, em primeiro lugar, o instrumento habitual do que chamamos
socialização, isto é, conseguir que cada novo recruta da raça humana se
comporte e sinta substancialmente da mesma maneira que aqueles que já ali
se encontram. Somos todos decaídos Filhos da Profecia, que aprendemos a
morrer no Espírito e renascer na carne.
Isto é também conhecido como vender o direito de primogenitura por um
prato de lentilhas.
Aqui vão alguns exemplos de Jules Henry, professor americano de
antropólogia e sociologia, num estudo do sistema escolar americano:

O observador acaba de entrar na classe do quinto ano para um período de observação.


O professor diz: “Qual de vocês, meninos simpáticos, bem-educados, quer receber o
sobretudo (do observador) e pendurá-lo?” Pelo número de mãos que se agitam, tem-se a
impressão de que todos reclamam a honra. O professor escolhe um dos alunos, que recebe
o sobretudo do observador…. O professor orientava a aula de aritmética, perguntando
principalmente: “Quem gostaria de dar a resposta do próximo problema?” A indagação era
acompanhada pela costumeira floresta de mãos agitadas, aparentemente com grande
competição para a resposta.
O que nos surpreende aqui são a precisão com que o professor consegue mobilizar a
potencialidade dos meninos no sentido de um correto comportamento social, e a rapidez
com que eles reagem. O grande número de mãos que se agitam já é um absurdo, mas não
há outra escolha. E se permanecessem ali imobilizados?
Um professor hábil estabelece diversas situações, de tal modo que uma atitude
negativa só poderá ser interpretada como traição. A função de perguntas como: “Qual de
vocês, meninos simpáticos e bem-educados, receberá o sobretudo (do observador) para
pendurá-lo?” é fazer as crianças não ver o absurdo — é forçá-las a reconhecer que o
absurdo é a existência, que é melhor existir absurdo do que não existir. O leitor terá
observado que a pergunta não foi formulada da seguinte maneira: “Quem sabe a resposta
do problema?” e sim: “Quem gostaria de dar a resposta?” O que em determinada fase da
nossa cultura foi considerado um desafio em talento matemático torna-se um convite à
participação de grupo. A questão essencial é que nada existe senão aquilo que existe pela
alquimia do sistema.
Numa sociedade onde a competição pelos bens culturais básicos é o pivô da ação, as
pessoas não podem aprender a amar-se umas às outras. Torna-se assim necessário que a
escola ensine as crianças como odiar e sem parecer fazê-lo, pois a nossa cultura não pode
tolerar a ideia de crianças odiando-se umas às outras. Como é que a escola realiza tal
ambiguidade?19
Mais um exemplo de Henry:
Boris encontrou dificuldade em reduzir 12/16 ao mínimo múltiplo, só conseguindo
chegar a 6/8. A professora perguntou calmamente se era o máximo a que ele podia chegar
na redução. Sugeriu que ele “raciocinasse”. Houve muita agitação, muitos acenos por parte
das outras crianças, loucas por corrigi-lo. Boris parecia bastante infeliz, talvez
mentalmente bloqueado. A professora, tranquila, paciente, ignorou os outros, concentrando
olhar e voz em Boris. Após um ou dois minutos, voltou-se para a classe e disse: “Bem,
quem sabe dizer a Boris qual é o número?” Uma floresta de mãos agitou-se e a professora
chamou Peggy. Peggy disse que quatro servia de divisor ao numerador e denominador.20
Henry comenta:
O fracasso de Boris possibilitou o sucesso de Peggy; sua desolação tornou-se causa do
regozijo da menina. É uma condição padrão na escola primária americana atual. Para um
índio zuni, hopi ou dakota, a atitude de Peggy seria inacreditavelmente cruel, pois a
competição, a obtenção do sucesso graças ao fracasso de alguém é uma forma de tortura
estranha a essas culturas não competitivas.
Considerado do ponto de vista de Boris, o pesadelo no quadro-negro foi, talvez, uma
lição de autocontrole para que ele não fugisse gritando da sala sob imensa pressão pública.
Tais experiências forçam todos os educados em nossa cultura a sonhar repetidamente,
todas as noites, mesmo no pináculo do êxito, não com o sucesso, e sim com o fracasso. Na
escola, o pesadelo exterior é internalizado pelo resto da vida. Boris aprende não só
aritmética como também o pesadelo essencial. Para ser bem-sucedido em nossa cultura, é
preciso aprender a sonhar com o fracasso.21
Segundo Henry, a educação na prática nunca foi um instrumento para
libertar a mente e o espírito do homem e sim para prendê-los. Julgamos
querer crianças criativas, mas o que desejamos que elas criem?
Se durante todo o período escolar as crianças forem instigadas a porem em dúvida os
Dez Mandamentos, a santidade da religião revelada, os fundamentos do patriotismo, os
motivos de lucro, o sistema bipartido, as leis do incesto, etc….22
…. existiria tal criatividade, que a sociedade não saberia para onde se
voltar.
As crianças não renunciam com facilidade à sua imaginação inata, à
curiosidade, à ausência de sonhos. É preciso amá-las para forçá-las a isso. O
amor é a trilha que atravessa a permissiveness em direção à disciplina. E
através da disciplina, com frequência, à autotraição.
O que a escola deve fazer é induzir a criança a querer pensar da maneira
como a escola deseja que pense. “O que vemos”, diz Henry, referindo-se ao
jardim da infância americano e ao sistema escolar, “é a capitulação patética
de crianças pequenas”. Cada qual reconhecerá, julgo, os princípios, sejam
aplicados mais cedo ou mais tarde, na escola ou no lar.
É a coisa mais difícil do mundo ver tal coisa ocorrendo na nossa cultura.
Numa classe de Londres, onde a idade média era dez anos, propuseram
uma competição às meninas. Teriam que preparar bolos que seriam julgados
pelos meninos. Venceu uma das garotas, cuja “amiga” declarou que ela havia
comprado o bolo, em vez de prepará-lo pessoalmente. A menina viu-se
desprestigiada diante de toda a classe.
Comentários:
1. A escola induziu aqui as crianças, de maneira bastante específica, a
papéis ligados ao sexo.
2. Pessoalmente acho indecente ensinar às meninas que seu status
depende da impressão que consigam produzir no paladar dos meninos.
3. Os valores éticos são colocados em jogo numa situação que, no
melhor dos casos, é um mau gracejo. Sendo coagida pelos adultos a esse
jogo, o melhor que uma criança pode fazer é jogar de acordo com o
sistema sem se deixar surpreender. Admiro acima de tudo a menina que
venceu e espero que ela aprenda a escolher mais cuidadosamente, no
futuro, as suas “amigas”.
O que Henry descreve nas escolas americanas é uma estratégia que
observei frequentemente nas famílias britânicas que eu e meus colegas
estudamos.
A dupla ação de nos destruirmos de um lado e de outro chamarmos a isso
amor é uma surpreendente prestidigitação. Os seres humanos parecem ter
capacidade quase ilimitada de enganar-se a si mesmos e aceitar suas mentiras
como se fossem verdades. Por tal mistificação alcançamos e conservamos o
nosso ajuste, adaptação e socialização. Mas o resultado de tal ajuste à nossa
sociedade é que, tendo sido enganados pelos outros e enganando-nos a nós
mesmos fora de nossas mentalidades, isto é, fora de nosso mundo de
experiência pessoal, daquele sentido singular com o qual potencialmente
dotamos o mundo exterior, vemo-nos simultaneamente induzidos à ilusão de
sermos “egos encapsulados” independentes. Tendo ao mesmo tempo perdido
o self e criado a ilusão de sermos egos autônomos, é natural que nos
dobremos interiormente às imposições exteriores em escala quase
inacreditável.
Não vivemos num mundo de identidades e definições nítidas,
necessidades e temores, esperanças e desilusões. As tremendas realidades
sociais da nossa época são fantasmas, espectros dos deuses assassinados e de
nossa própria humanidade que volta para assombrar-nos e destruir-nos. Os
negros, os judeus, os vermelhos. Eles. Apenas eu e você vestidos de maneira
diversa. A contextura dessas alucinações socialmente partilhadas é o que
chamamos realidade, e nossa loucura de conluio é o que chamamos sanidade.
Suponhamos que esta loucura exista somente onde os nossos pássaros da
morte adejem na estratosfera. Nos interstícios de nossos momentos mais
íntimos e pessoais.
Fomos todos processados em camas procrusteanas. Alguns, pelo menos,
conseguiram odiar o que de nós fizeram. Vemos inevitavelmente o outro
como um reflexo da ocasião de nossa própria autodivisão.
Os outros instalaram-se em nosso coração e nós lhes damos o nosso
próprio nome. Cada um, não sendo ele próprio nem para si mesmo, nem para
o outro, assim como o outro não é ele mesmo para si ou para nós, ao ser outro
para o outro nem reconhece a si mesmo nem ao outro, nem ao outro em si
mesmo. Daí que sendo pelo menos uma dupla presença, perseguido pelo
fantasma de seu próprio self assassinado, não surpreende que o homem
moderno seja viciado em outras pessoas, e quanto mais viciado, menos
satisfeito e mais solitário.
Mais uma volta da espiral, outro giro no círculo vicioso, outra roda do
torniquete. Pois então o amor torna-se maior alienação, outro ato de
violência. Minha necessidade é a necessidade de ser necessário, meu anseio é
o anseio de ser desejado. Ajo agora para instalar o que considero ser eu
mesmo naquilo que considero ser o coração da outra pessoa. Marcel Proust
escreveu:
Como temos coragem de desejar viver, como podemos fazer um só movimento para
nos proteger da morte, num mundo onde o amor é provocado por uma mentira e consiste
unicamente na necessidade de aplacar os nossos sofrimentos com qualquer ser que nos
tenha feito sofrer?
Mas ninguém nos faz sofrer. A violência que perpetramos contra nós, as
recriminações, reconciliações, êxtases e agonias de um caso amoroso
baseiam-se na ilusão condicionada pela sociedade de que duas pessoas reais
estejam em relacionamento. Nessas circunstâncias, trata-se de um perigoso
estado de alucinação e ilusão, uma confusão da fantasia, explodindo e
implodindo, de corações partidos, reparação e vingança.
Mas, nisto tudo, não posso impedir as ocasiões em que, perdidos de todo,
os amantes possam descobrir um ao outro, momentos em que o
reconhecimento ocorre, quando o inferno se transforma em paraíso e desce à
terra, quando este louco desatino pode tornar-se alegria e celebração.
E pelo menos fica bem às pessoas ingênuas se mostrarem mais gentis
entre si, demonstrar alguma simpatia e compaixão, se ainda restarem pathos e
paixão.
Mas quando a violência se mascara de amor, quando ocorre cisão entre
self e ego, entre interior e exterior, entre bom e mau, tudo o mais se torna
uma dança infernal de falsas dualidades. É sabido que quando se racha no
meio o Ser e se insiste em se apegar a isto omitindo-se aquilo, prendendo-se
ao bom sem apego ao que é mau, negando-se um por causa do outro, o que
acontece é que o mau impulso dissociado, mau agora em duplo sentido, volta
para impregnar e possuir o bem, voltando-se contra si mesmo.
Quando se perde o grande Tao, jorram a benevolência e a justiça.
Quando a sabedoria e a sagacidade se erguem, surgem grandes
hipócritas.
Quando as relações de família já não são harmoniosas, vemos
crianças filiais e pais dedicados.
Quando a nação se encontra em confusão e desordem, surgem os
patriotas.
Precisamos ser muito cautelosos em nossa cegueira seletiva. Os alemães
educaram as crianças no sentido de considerarem dever seu exterminar os
judeus, adorar o líder, matar e morrer pela Pátria. A maioria dos de minha
geração não consideravam e não consideram loucura total preferir a morte a
ser vermelho. Nenhum de nós, suponho, terá perdido muitas horas de sono
por causa da ameaça de iminente aniquilação da raça humana e por nossa
responsabilidade neste estado de coisas.
Nos últimos cinquenta anos, nós, seres humanos, liquidamos com nossas
próprias mãos cerca de cem milhões dos de nossa espécie. Aparentemente
buscamos a morte e a destruição tal como a vida e a felicidade. Somos
impelidos a matar e a ser aniquilados assim como a viver e deixar viver.
Somente pela mais absurda violação de nós mesmos, alcançamos a
capacidade de viver em relativa harmonia com uma civilização que parece
impelida à sua própria destruição. Talvez em âmbito limitado possamos
desfazer o que fizeram a nós e o que fizemos a nós mesmos. Homens e
mulheres talvez tenham nascido para se amarem uns aos outros, simples e
genuinamente, em vez de fingir aquilo que chamamos amor. Se
conseguirmos deixar de nos destruir, talvez consigamos deixar de destruir os
outros. Precisamos começar por admitir que mesmo aceitando a nossa
violência, ao invés de cegamente nos destruirmos com ela, precisamos
compreender que temos um medo de viver e amar tão profundo como temos
de morrer.
4 – Nós e Eles

Somente quando algo se torna problemático, é que começamos a fazer


perguntas. Os desentendimentos nos abalam, arrancando-nos à sonolência e
forçando-nos a considerar o nosso ponto de vista através da comparação com
o de outra pessoa que não o partilha. Mas resistimos a tais confrontos. A
história das heresias de todos os tipos atesta mais de uma tendência a romper
a comunicação (excomunhão) com aqueles que apoiam diferentes dogmas e
opiniões; é o testemunho de nossa intolerância face às diferentes estruturas
fundamentais de experiência. Aparentemente precisamos partilhar um sentido
comunal da existência humana, dar junto com os outros um senso comum ao
mundo, manter um consenso.
Mas parece que, uma vez partilhadas certas estruturas fundamentais de
experiência, elas passam a ser consideradas como entidades objetivas. Tais
projeções coisificadas de nossa liberdade são então introjetadas. Quando os
sociólogos estudarem essas coisificações projetadas-introjetadas, elas
assumirão a aparência de coisas. Não o são ontologicamente, mas são
pseudocoisas. Até então, Durkheim tinha toda razão ao enfatizar que as
apresentações coletivas vêm a ser consideradas como coisas, exteriores a
todos. Elas assumem a força e o caráter de realidades autônomas parciais,
com sua própria maneira de viver. Uma norma social poderá impor uma
opressiva obrigação a todos, embora pouca gente a sinta como sua.
Neste momento histórico estamos todos presos no inferno de frenética
passividade. Vemo-nos ameaçados de extermínio que seja recíproco, que
ninguém deseja, que todos temem, que talvez só nos aconteça “porque”
ninguém sabe como impedi-lo. Existe uma possibilidade de fazê-lo, se
conseguirmos compreender a estrutura dessa alienação entre nós e nossa
experiência, entre nossa experiência e nossos atos, entre nossos atos e sua
autoria humana. Todo mundo está executando ordens. De onde vêm? De
parte alguma, como sempre. Será ainda possível reconstituir o nosso destino
com essa infernal e inumana fatalidade?
Dentro deste círculo muito vicioso, defendemos seres que existem e a eles
obedecemos somente na medida em que continuamos a inventá-los e
perpetuá-los. Que status ontológico possuem esses grupos de seres?
Este cenário humano é feito de miragens, demoníacas pseudo-realidades,
porque todo mundo crê que todos os demais nelas acreditam.
De que modo encontraremos o caminho de volta a nós mesmos?
Comecemos por tentar raciocinar sobre o assunto.
Agimos não só em termos de nossa própria experiência, como também
daquilo que julgamos que Eles sentem, e de como pensamos que eles pensam
que nós pensamos, e assim por diante, numa espiral logicamente vertiginosa
até o infinito.23
Nossa linguagem é apenas em parte adequada para expressar esse estado
de coisas. No nível 1, duas pessoas, ou dois grupos, podem concordar ou
discordar. Conforme dizemos, combinam ou não combinam. Partilham de um
ponto de vista em comum. Mas no nível 2 talvez pensem ou não que
concordam ou discordam, e podem ou não estar corretos em ambos os casos.
Enquanto o nível 1 se preocupa com o acordo ou desacordo, o nível 2
preocupa-se com entender ou não entender. O nível 3 preocupa-se com um
terceiro nível de percepção: o que eu penso que você pensa que eu penso?
Isto é, com a compreensão de, ou o fracasso em compreender, a compreensão
ou incompreensão do segundo nível, baseado na concordância ou
discordância do primeiro. Teoricamente os níveis são infinitos.
A fim de enfrentar tal complexidade mais facilmente, utilizamos uma
espécie de taquigrafia. A letra A representará concordância, e D,
discordância. C representará compreensão, e I, incompreensão. P será
percepção de compreensão ou incompreensão, e F, fracasso em perceber a
compreensão ou incompreensão. Assim, P C A C P pode significar, quando
aplicado a marido e mulher, que o marido percebe que a mulher compreende
que os dois estão de acordo e que ela percebe, por sua vez, que ele o
compreende.
Assim:
MARIDO MULHER MARIDO MULHER
P C A C P

Por outro lado:

MARIDO MULHER MARIDO MULHER


F I D I F
significaria:
que marido e mulher estão em desacordo; um não compreende o outro e
ambos não percebem sua mútua incompreensão.
Existem diversas ramificações neste esquema. Entraremos em detalhes
mais adiante.24
As possibilidades dos três níveis de perspectiva podem ser reunidas da
seguinte maneira:25

Percepção Falha na percepção


Compreensão Incompreensão Compreensão Incompreensão
Acordo PCA PIA FCA FIA
Desacordo PCD PID FDC FID

Presume-se que faça diferença para muita gente saber se está ou não de
acordo com o que pensa a maioria das pessoas (segundo nível): e saber que a
maioria os acha parecidos com eles próprios (terceiro nível). É possível
pensar o que todo mundo pensa e acreditar que se esteja em minoria. É
possível pensar o que pouca gente pensa e supor estar com a maioria. É
possível sentir que Eles pensam que se é parecido com Eles quando não se é e
quando Eles não pensam. É possível dizer: acredito nisto, mas Eles acreditam
naquilo, de modo que sinto muito, nada posso fazer.

ELES

Mexericos e escândalos existem sempre, independentes de nós. Cada


pessoa é o outro para os outros. Os membros de uma rede de escândalos
podem estar unidos por ideias que ninguém admitirá em sua própria pessoa.
Cada um pensa o que pensa que o outro pensa. O outro, por sua vez, pensa no
que o outro pensa. Cada qual não se importa em ter um inquilino de cor, mas
seu vizinho se importa. Cada qual, porém, é vizinho de seu vizinho. O que
Eles pensam é mantido com convicção. É indubitável e incontestável. O
grupo de escândalo é uma série de outros, que cada qual repudia em si
mesmo.
Não tenho objeções a que minha filha case com um gentio, mas vivemos
num bairro judeu, afinal de contas. Esse poder coletivo está em proporção
com a criação desse poder por parte de cada pessoa com sua própria
impotência.
Vê-se isto claramente na seguinte situação de Romeu e Julieta às avessas.
John e Mary vivem um caso de amor e quando estão para terminá-lo,
Mary descobre estar grávida. Ambas as famílias são informadas. Mary não
quer casar com John. John não quer casar com Mary. Mas John acha que
Mary quer que ele case com ela, e Mary não quer magoar os sentimentos de
John dizendo-lhe que não deseja casar com ele, pois pensa que ele quer casar
com ela, e que ele pensa que ela quer casar com ele.
As duas famílias, porém, complicam ainda mais a confusão. A mãe de
Mary adoece, grita e chora por causa da desgraça. Que dirão os outros da
educação que ela deu à filha? Não se importa com a situação “em si”,
principalmente porque a moça vai se casar, mas importa-se com o que dirão
todos. Ninguém, em ambas as famílias (“…. se afetasse apenas a mim….”),
se importa consigo mesmo, mas todo mundo se preocupa com os efeitos dos
“mexericos” e do “escândalo” sobre os demais. A preocupação centraliza-se
principalmente no pai do rapaz e na mãe da moça, que precisam ser
consolados pelo terrível golpe que sofreram. O pai do rapaz preocupa-se com
o que a mãe da moça pensará a seu respeito. A mãe da moça preocupa-se
com o que “todo mundo” pensará dela. O rapaz preocupa-se com o que a
família pensa que ele fez a seu próprio pai, e assim por diante.
A tensão sobe em espiral dentro de poucos dias, envolvendo
completamente todos os membros de ambas as famílias e manifestando-se em
lágrimas, torcer de mãos, recriminações e desculpas.
Declarações típicas:
MÃE para filha: Mesmo que ele queira casar com você, como poderá
respeitá-la depois do que todos andarem dizendo a respeito de você?
FILHA (algum tempo depois): Eu já estava farta dele antes de descobrir
que estava grávida, mas não queria magoar-lhe os sentimentos, porque ele
estava tão apaixonado por mim.
RAPAZ: Se eu não devesse tanto a meu pai por tudo o que fez por mim
teria dado um jeito para que ela se livrasse do bebê. Mas agora todo mundo já
sabe.
Todo mundo sabia, porque o filho contou ao pai, que contou à mulher,
que contou ao filho mais velho, que contou à mulher dele, etc….
Tais processos parecem conter um dinamismo divorciado dos indivíduos.
Mas, neste caso como em todos os outros, o processo é uma forma de
alienação inteligível quando, e somente quando os passos nas vicissitudes da
alienação de cada uma das pessoas podem ser rastreados a qualquer momento
até sua origem única — a experiência e os atos de cada um.
O que há de peculiar n’Eles é que Eles são criados somente quando cada
um de nós repudia sua própria identidade. Quando os instalamos em nosso
coração somos apenas uma pluralidade de solidões, onde o que cada qual
possui em comum é a dotação ao outro da necessidade de suas próprias
ações. Cada pessoa, porém, como outro para o outro, é uma necessidade do
outro. Cada qual nega qualquer elo interior com os demais; cada pessoa
afirma sua própria inessencialidade. “Limitei-me a cumprir ordens. Se eu não
o fizesse, outro o faria”. “Por que não assina? Todo mundo assinou”, etc.
Embora eu não faça questão, não posso agir de outra maneira. Nenhuma
outra pessoa é mais necessária do que eu pre- tendo ser para Eles. Mas assim
como ela é “um d’Eles” para mim, eu sou “um d’Eles” para ela. Nesta
coleção de indiferença recíproca, de recíproca inessencialidade e solidão,
parece não existir liberdade. Existe conformidade com uma presença que em
toda parte está em algum lugar.

NÓS

A essência de qualquer grupo, do ponto de vista dos próprios membros do


grupo, é muito estranha. Se eu penso em você e nele reunidos comigo, e em
outros como não comigo, já formei duas sínteses rudimentares, isto é, Nós e
Eles. Contudo, este ato particular de síntese não é em si mesmo um grupo.
Para que nós constituamos um grupo, é necessário não só que eu considere,
digamos, você, ele e eu como Nós, mas também que você e ele pensem
também em nós como Nós. Chamarei ao ato de experienciar um número de
pessoas como uma única coletividade, um ato de síntese grupai rudimentar.
Neste caso, Nós, isto é, cada um dos Nós, eu, você e ele, realizamos atos de
síntese grupai rudimentar. Mas no momento trata-se apenas de três atos
particulares de síntese de grupo. Para que o grupo realmente se entrose,
preciso compreender que você se considere como um de Nós, conforme eu
faço, e que ele se considere como um de Nós, conforme você e eu fazemos.
Preciso assegurar-me, além disso, que tanto você como ele compreendem que
eu penso em mim mesmo com você e com ele, e você e ele precisam
assegurar-se também de que os outros dois compreendem que esse Nós é
onipresente entre nós, não apenas uma ilusão particular minha, sua ou dele,
partilhada por dois de nós, mas não pelos três.
Poderei condensar o parágrafo acima da seguinte maneira:
Eu “interiorizo” a síntese sua e dele, você interioriza a dele a minha, ele
interioriza a minha e a sua: eu interiorizo a sua interiorização da minha e da
dele. Você interioriza a minha interiorização da sua e da dele. Além disso, ele
interioriza a minha interiorização da dele e da sua — uma espiral lógica
introvertida, de perspectivas recíprocas que alcançam o infinito.
O grupo, considerado em primeiro lugar do ponto de vista da experiência
de seus próprios membros, não é um objeto social lá fora no espaço. É o ser
extraordinário constituído pela síntese que cada um fez da mesma
multiplicidade, transformando-a em Nós, e da síntese que cada um fez da
multiplicidade de sínteses.
O grupo considerado do exterior surge como um objeto social,
emprestando, pela aparência e processos aparentes que nele ocorrem,
credibilidade à ilusão organísmica.
Trata-se de uma miragem. À medida que a pessoa se aproxima, verifica
não haver organismo em parte alguma.
Chamarei nexo ao grupo cuja unificação é alcançada através da
interiorização recíproca de cada um por cada um dos outros, na qual nenhum
“objeto comum”, nem estruturas organizacionais ou institucionais, etc.,
possuem função primordial como uma espécie de “cimento” de grupo.
A unidade do nexo encontra-se no interior de cada síntese. Cada ato de
síntese está unido por interioridade recíproca com todas as outras sínteses do
mesmo nexo, na medida em que é também a interioridade de cada uma das
outras sínteses. A unidade do nexo é a unificação feita por cada pessoa da
pluralidade das sínteses.
Esta estrutura social do nexo completamente realizado é a sua unidade
como ubiquidade. É uma ubiquidade de aquis, enquanto que a série dos
outros está sempre em outra parte, sempre lá.
O nexo existe somente na medida em que cada um o encarna. O nexo está
em toda parte, em cada um, e não mais que em cada um. O nexo encontra-se
no pólo oposto a Eles, na medida em que cada pessoa reconhece estar afiliada
a esse pólo, considera o outro coessencial a ela, e supõe que o outro a
considere coessencial ao outro.
Estamos todos no mesmo barco em mar tempestuoso
E devemos uns aos outros uma terrível lealdade.
(G. K. Chesterton)
Neste grupo de lealdade recíproca, de fraternidade até a morte, cada
liberdade é reciprocamente empenhada, uma para com a outra.
Na família nexal, a unidade do grupo é alcançada através da experiência
de cada um do grupo, e o perigo para cada um (já que a pessoa é essencial à
pessoa) é a dissolução ou dispersão “da família”. Isto pode ocorrer somente
quando uma pessoa após outra a dissolve em si mesma. Uma “família” unida
existe somente enquanto cada um age em termos de sua existência. Cada
pessoa pode então agir sobre a outra, coagindo-a (por meio da simpatia,
chantagem, dívida, culpa, gratidão, ou pura violência) a manter imutável a
sua interiorização do grupo.
A família nexal é então a “entidade” que precisa ser preservada e servida
por cada um, é algo pelo qual se vive e se morre, e que por sua vez oferece a
vida pela lealdade e a morte pela deserção. Qualquer deserção do nexo
(traição, heresia, etc.) é, pela ética do nexo, merecedora de punição: pior
castigo imaginável pelos “homens do grupo” é o exílio ou a excomunhão: a
morte grupai.
A condição de permanência de tal nexo, cuja única existência é a
experiência que cada um dele tem, é a vitoriosa re-invenção do que quer que
proporcione à tal experiência a sua razão de ser. Se não existir perigo externo,
então é preciso inventar e manter o perigo e o terror. Cada qual precisa agir
sobre os demais para neles manter o nexo.
Há famílias que vivem em perpétua ansiedade diante do que, para elas, é
o mundo exterior maligno. Seus membros vivem num gueto familial, por
assim dizer. É esta uma das bases da chamada superproteção materna. Não se
trata de superproteção do ponto de vista da mãe e nem, muitas vezes, do
ponto de vista dos outros membros da família.
A “proteção” que tal família oferece aos seus membros parece basear-se
em diversas pré-condições: 1 — uma fantasia do mundo exterior como
extraordinariamente perigoso; 2 — a geração do terror no interior do nexo,
diante desse perigo exterior. A “ação” do nexo é a geração desse terror. Tal
ação é violência.
A estabilidade do nexo é o produto do terror gerado em seus membros
pela ação (violência) exercida pelos membros do grupo uns sobre os outros.
Essa “homeostase” familial é produto de reciprocidades mediadas sob os
estatutos da violência e do terror.
A mais elevada ética do nexo é a preocupação recíproca. Cada pessoa
preocupa-se com o que a outra pensa, sente, faz. Talvez venha a considerar
direito seu esperar que os outros se preocupem com ele, e sente-se na
obrigação de, por sua vez, preocupar-se com os outros. Não faço coisa
alguma sem achar que é meu direito que você se sinta feliz ou triste,
orgulhoso ou envergonhado daquilo que fiz. Cada ação minha é sempre uma
preocupação dos outros membros do grupo e eu o considerarei insensível,
caso você não se preocupe com a minha preocupação por você, quando você
faz alguma coisa.
A família pode agir como os gangsters, oferecendo uns aos outros
proteção mútua contra a violência de cada um. É um terrorismo recíproco
com a oferta de proteção, segurança contra a violência com que cada qual
ameaça o outro e é ameaçado, caso alguém saia da linha.
Minha preocupação, minha preocupação pela sua preocupação, sua
preocupação e a sua preocupação pela minha preocupação, etc., constituem
uma espiral infinita, sobre a qual repousa o meu orgulho ou a minha
vergonha relativa ao meu pai, irmã, irmão, mãe, filho, filha.
A característica essencial do nexo é que cada ação de uma pessoa,
segundo se espera, se referirá a todas as outras e as influenciará. A natureza
desta influência será, espera-se, recíproca.
Espera-se que cada um seja controlado, e controle os outros por meio do
efeito recíproco que cada qual exerce sobre os demais. Ser afetado pelas
ações ou sentimentos dos outros é “natural”. Não é “natural” que o pai não se
sinta nem orgulhoso, nem envergonhado do filho, da filha, da mãe, etc.
Segundo tal ética, a ação feita para agradar, para tornar feliz, para demonstrar
gratidão para com o outro é a mais alta forma de ação. Esta causa-efeito
transpessoal recíproca é uma suposição auto-realizadora. Neste “jogo” é uma
falta usar desta interdependência para magoar o outro, exceto a serviço do
nexo, mas o pior de todos os crimes é recusar agir em termos desta suposição.
Exemplos disto em ação:
Peter dá algo a Paul. Se Paul não fica satisfeito, ou recusa o presente, ele
se mostra ingrato por aquilo que lhe fizeram. Ou: Peter fica triste, se Paul faz
alguma coisa. Portanto, se Paul a faz, entristece Peter. Se Peter fica triste,
Paul não tem consideração, é insensível, egoísta, ingrato. Ou: se Peter está
preparado para se sacrificar por Paul, Paul também deve estar disposto a
sacrificar-se por Peter, senão será egoísta, ingrato, insensível, impiedoso, etc.
O “sacrifício”, em tais circunstâncias, consiste em Peter empobrecer-se
para fazer algo por Paul. É a tática da dívida imposta. Uma maneira de
expressá-lo é dizer que cada um investe no outro.
O grupo, seja Nós, Você ou Eles, não é um novo indivíduo ou organismo,
ou hiperorganismo no cenário social; não possui agência, nem consciência
própria. No entanto, podemos derramar o nosso sangue e o sangue alheio por
essa presença exangue.
O grupo é uma realidade desta ou daquela espécie. Mas que espécie de
realidade? O Nós é uma forma de unificação de uma pluralidade composta
por aqueles que partilham entre si a experiência comum de sua invenção
onipresente.
Visto do exterior, o grupo pode ter diferente aspecto. Continua a ser um
tipo de unificação imposto sobre uma multiplicidade, mas desta vez aqueles
que inventam expressamente a unificação não a compõem. Não me refiro
aqui, é claro, à percepção de um Nós já constituído de dentro de si mesmo,
visto por um elemento exterior. O Eles surge à vista como uma espécie de
miragem social. Os vermelhos, os brancos, os negros, os judeus. No cenário
humano, contudo, tais miragens podem ser auto-realizadoras. A invenção do
Eles cria o Nós, e Nós talvez precisemos de inventar a Eles para reinventar a
Nós mesmos.
Uma das formas mais hesitantes de solidariedade ocorre, quando cada
qual deseja a mesma coisa, mas não quer coisa alguma dos outros. Estamos
unidos, digamos, por um desejo comum, para conseguir o último lugar no
trem, ou a maior pechincha de uma liquidação. Com prazer cortaríamos o
pescoço uns dos outros, mas poderíamos ainda assim sentir um certo elo a
nos unir, a unidade negativa, por assim dizer, na qual cada um vê o outro
como redundante e onde a metaperspectiva de cada qual mostra-lhe que ele é
redundante para o outro. Cada um, como o outro-para-o-outro, é excessivo.
Neste caso, partilhamos um desejo de apropriar o mesmo objeto ou objetos
comuns: alimento, terra, posição social, real ou imaginária, mas nada
partilhamos entre nós e nem desejamos fazê- lo. Dois homens amam a mesma
mulher, duas pessoas querem a mesma casa, dois candidatos querem o
mesmo emprego. Esse objeto comum pode ao mesmo tempo tanto separar
como unir. Poderá ou não dar-se a todos é a questão-chave. A que ponto é
escasso?
O objeto pode ser animal, vegetal, mineral, humano ou divino, real ou
imaginário, singular ou plural. Um objeto humano unindo pessoas, por
exemplo, é o cantor pop em relação aos seus fãs. Podem todos possuí-lo,
ainda que magicamente. Quando a magia se defronta com outro tipo de
realidade, descobre-se que o ídolo corre o perigo de ser despedaçado pelo
frenesi das fãs., que querem arrancar-lhe um pedaço.
O objeto pode ser plural. Duas firmas rivais empenham-se em intensa
campanha publicitária competitiva, cada qual sob a impressão de estar
perdendo fregueses em benefício da outra. Uma pesquisa de mercado revela
às vezes o quanto está eivado de fantasia o cenário dessas multiplicidades
sociais. As leis que governam a percepção, a invenção e a manutenção dos
seres sociais que se chamam “os consumidores” ainda estão por descobrir.
O elo comum entre Nós pode ser o outro. O Outro talvez não seja até tão
localizado como um Eles definido, para quem se pode apontar. Na coesão
social do escândalo, do mexerico, da discriminação racial sub-reptícia, o
Outro está em toda parte e não está em parte alguma. O Outro que governa a
todos é cada um em sua posição, não de self, mas de outro. Cada self, porém,
nega ser aquele outro que ele é para o Outro. O Outro é a experiência de
todos. Cada qual nada pode fazer por causa do outro. O outro está sempre
algures.
A maneira mais íntima de nos unirmos talvez seja estarmos cada um de
nós em, e possuindo dentro de nós, a mesma presença. Isto é tolice em
qualquer sentido exterior, mas aproveitamos aqui uma modalidade de
experiência que não reconhece as distinções da lógica analítica.
Vemos repetidamente evocado esse misticismo demoníaco de grupo nos
discursos anteriores à guerra dos comícios nazistas de Nuremberg. Rudolf
Hess proclamava: “Somos o Partido, o Partido é a Alemanha, Hitler é a
Alemanha”, etc.
Somos cristãos na medida em que somos irmãos em Cristo. Estamos em
Cristo e Cristo está em cada um de nós.
Não se pode esperar que um grupo se mantenha unido por muito tempo
baseado na pura chama desta experiência unificada. Os grupos tendem a
desaparecer através de ataques de outros grupos, ou através da incapacidade
re resistir ao assédio da fome, da doença, dos splits devidos a dissenções
internas, etc. Contudo, a mais simples e a mais perene ameaça a todos os
grupos advém do simples abandono de seus membros. É o perigo da
evaporação, por assim dizer.
Sob a forma de lealdade de grupo, da fraternidade e do amor foi
introduzida uma ética cuja base é o meu direito a proporcionar ao outro
proteção contra a minha violência, se ele for leal a mim, e esperar a sua
proteção da violência dele, se eu for leal a ele, sendo minha obrigação
aterrorizá-lo com a ameaça da minha violência, se ele não permanecer leal.
É a ética pela qual os porcos de Gerasa permanecem fiéis, um por todos e
todos por um, ao mergulharem na fraternidade da destruição.
Que não haja ilusões quanto à fraternidade humana. Meu irmão, a quem
eu quero como a mim mesmo, meu gêmeo, meu double, minha carne e meu
sangue, talvez seja meu companheiro como linchador ou mártir, e em
qualquer dos casos é capaz de morrer às minhas mãos, se decidir adotar um
ponto de vista diverso da situação.
A fraternidade humana é evocada por determinados homens segundo as
circunstâncias deles. Mas raro estende-se a toda a humanidade. Em nome da
liberdade e da fraternidade estamos dispostos a mandar pelos ares a outra
metade da fraternidade e, por sua vez, a ser atirados pelos ares.
A questão é de importância vital no sentido mais estrito possível, já que
se baseia nessas fantasias sociais primitivas sobre quem e o que somos eu e
você, ele e ela, Nós e Eles, sobre se o mundo anda unido ou desagregado, se
morremos, matamos, devoramos, dilaceramos e somos dilacerados, descemos
ao inferno ou subimos ao céu, em suma, o modo de conduzirmos a vida. Que
é o “ser” dos “vermelhos” para você e para mim? Qual a natureza da presença
conjurada pela encantação dessa mágica sonoridade? Simpatizamos com o
“Leste”? Achamos ser necessário ameaçá-lo, detê-lo, aplacá-lo? A “Rússia”
ou a “China” só se encontram na fantasia de cada um, inclusive dos “russos”
e dos “chineses”: em parte alguma e em toda parte. Um “ser” criado pela
fantasia dos “russos” como aquilo em que eles vivem e que é preciso
defender, e fantasiado pelos não-russos como um supersujeito-objeto
alienígena, cuja “liberdade” a pessoa precisa defender, será tal que se todos
agirmos em termos dessa fantasia de massa pré-ontológica em série, talvez
sejamos todos destruídos por um “ser” que nunca foi, exceto na medida em
que todos nós o inventamos.
A faceta especificamente humana dos agrupamentos de homens pode ser
explorada de modo a transformá-los numa aparência de sistemas não-
humanos.
Não supomos agora que elementos químicos se combinem porque se
amam uns aos outros. Átomos não explodem por ódio. São os homens que
agem por amor ou por ódio, que se combinam para a defesa, o ataque, ou o
prazer na companhia uns dos outros.
Todos os que procuram controlar o comportamento de grande número de
outras pessoas agem sobre as experiências dessas pessoas. Uma vez que
alguém seja induzido a sentir uma situação de maneira similar à nossa, pode-
se também esperar que aja de maneira semelhante. Induzir todas as pessoas a
desejarem a mesma coisa, a detestarem o mesmo, a sentir as mesmas ameaças
é aprisionar o seu comportamento — é adquirir consumidores os buchas para
os canhões. Concluir que os negros são subumanos, ou que os brancos são
corruptos e impotentes é orientar o comportamento de acordo.
Por mais que experiência e ação possam ser transformadas em unidades
quantitativamente intercambiáveis, o esquema para a inteligibilidade das
estruturas e permanência do grupo é de ordem inteiramente diversa do
esquema que empregamos ao explicar a constância relativa em sistemas
físicos. No último caso, não remontamos da mesma maneira à constância de
um padrão até a sua interiorização recíproca, por meio daquilo que se
considere as suas unidades componentes. A inércia dos grupos humanos,
porém, que emergem como a própria negação da praxe, é na verdade o seu
produto e nada mais. Esta inércia do grupo só pode ser um instrumento de
mistificação, se for considerada parte da “ordem natural das coisas”. O abuso
ideológico de tal ideia é óbvio e serve claramente aos interesses daqueles cuja
intenção é fazer com que as pessoas creiam que o status quo é a “ordem
natural”, determinada por Deus ou pelas leis “naturais”. O que é menos
óbvio, mas não menos confuso, é a aplicação de um esquema epistemológico,
derivado de sistemas naturais, aos grupos humanos. A posição teórica serve
aqui somente para intensificar a dissociação entre praxe e estrutura.
O grupo torna-se uma máquina — e esquece que nesse maquinismo feito
pelo homem, a máquina é os próprios homens que a fabricam. É muito
diferente dos outros mecanismos feitos pelo homem, que podem ter
existência própria. O grupo são os homens que se organizam em padrões e
camadas, assumem e indicam diferentes poderes, funções, papéis, direitos,
obrigações, etc.
O grupo não pode tornar-se uma entidade separada dos homens, mas os
homens podem formar círculos para rodear outros homens. Os padrões no
espaço e no tempo, sua relativa permanência e rigidez não se transformam a
qualquer momento num sistema natural, ou num hiperorganismo, embora a
fantasia possa evoluir e os homens possam começar a viver segundo a
fantasia de que a relativa permanência no espaço-tempo de padrões e padrões
de padrões é aquilo pelo qual devem viver e morrer.
É como se todos preferíssemos morrer para preservar as nossas sombras.
Pois o grupo nada pode ser além da multiplicidade dos pontos de vista e
atos de seus membros; e isto permanece verdadeiro mesmo quando, através
da interiorização desta multiplicidade sintetizada por cada um, esta
multiplicidade sintetizada se torna onipresente no espaço e duradoura no
tempo.
Ainda bem que o homem é um animal social, já que é tão imensa a
complexidade e contradição do campo social no qual ele precisa viver. Isto
acontece mesmo com as fantásticas simplificações impostas a esta
complexidade, algumas das quais examinadas acima.
Nossa sociedade é pluralista em vários sentidos. Qualquer pessoa pode
participar de diversos grupos, que talvez tenham diferentes membros e
também formas de unificação inteiramente diversas.
Cada grupo exige uma transformação interna mais ou menos radical das
pessoas que o compõem. Consideremos as metamorfoses pelas quais um
homem pode passar no decorrer de um dia, ao se transladar de uma
modalidade social à outra — pai de família, fragmento numa multidão,
funcionário de uma organização, amigo. Trata-se não apenas de diferentes
papéis — cada qual é um passado, presente e futuro inteiros, oferecendo
diferentes opções e obstáculos, diferentes graus de mudança ou inércia,
diferentes espécies de proximidade e distância, diferentes conjuntos de
direitos e obrigações, diferentes compromissos e promessas.
Não conheço teoria do indivíduo que o reconheça plenamente. Somos
tentados a iniciar com a noção de uma suposta personalidade básica, mas os
efeitos colaterais não são redutíveis a um sistema interno. O cansado pai de
família no escritório e o fatigado homem de negócios em casa atestam o fato
de que as pessoas carregam não apenas um conjunto de objetos internos, mas
vários modos de ser sociais internalizados,26 de um contexto ao outro, às
vezes fortemente contraditórios.
E não existem emoções ou sentimentos tão constantes como o amor, o
ódio, a ira, a confiança ou a desconfiança. Sejam quais forem as definições
generalizadas de cada um deles, feitas nos mais altos níveis de abstração,
específica e concretamente, cada emoção é sempre encontrada nesta ou
naquela inflexão, segundo a modalidade do grupo onde ocorre. Não existem
emoções, instintos, ou personalidade “básicas” fora do relacionamento de
uma pessoa com este ou aquele contexto social.27
Há uma corrida contra o tempo. É possível que outra transformação se
processe se os homens chegarem a sentir-se como “Um de Nós”. Se, mesmo
fundamentados num interesse pessoal mais grosseiro, conseguirem
compreender que Nós e Eles precisamos ser transcendidos na totalidade da
raça humana; se, ao destruí-los, não nos destruirmos a todos.
Enquanto a guerra prossegue, ambos os lados tornam-se cada vez mais
parecidos. O uroborus devora a própria cauda. O círculo se completa.
Perceberemos que Nós e Eles somos sombras uns dos outros? Somos Eles
para Eles como Eles são Eles para Nós. Quando se erguerá o véu? Quando a
charada se transformará em carnaval? Talvez os santos ainda beijem leprosos.
É tempo de o leproso beijar o santo.
5 – A Experiência Esquizofrênica

Jones: (ri alto, depois silencia): Sou o próprio McDougal (Não se


trata de seu verdadeiro nome).
Smith: Que é que você faz para ganhar a vida, amigo? Trabalha
numa fazenda, ou algo semelhante?
J.: Não, sou marinheiro comerciante, considerado alta sociedade do
trabalho, do suor.
S.: Um gravador cantante, hein? Suponho que os gravadores
cantem às vezes. Quando bem ajustados. Humm-hummm. Achei que
deve ser assim. Minha toalha, tnm-hm. Voltaremos ao mar dentro de
oito ou nove meses. Tão logo sejam consertadas as nossas peças
destruídas (Pausa).
J.: Estou na fossa. Amor secreto. S.: Amor secreto, hein? (Ri).
É.
S.: Eu não tenho nenhum amor secreto.
J.: Apaixonei-me, mas não alimento nenhum amor — que me
convenha — pareça comigo — caminhe por aí.
S.: Meu único amor, oh, meu único amor é o tubarão. Afaste-se
dele. J.: Eles não sabem que tenho que viver minha vida? (Longa
pausa). S.: Trabalha na base aérea? Hum?
J.: Você sabe o que eu penso do trabalho. Completo trinta e três
anos em junho, sabia?
S.: Junho?
J.: Trinta e três em junho. Este traste aqui será bem famoso, depois
que tiver saído deste hospital. Por isso, renunciei aos cigarros, sou um
personagem espacial, venho do cosmos, não sou uma droga qualquer.
S.: (Ri) Sou uma verdadeira espaçonave de outra galáxia.
J.: Muita gente fala assim, como doido, mas “Acredite ou Não”, de
Ripley, aceite ou não — veja no Examiner, seção das histórias em
quadrinhos, “Acredite ou Não”, de Ripley, Robert E. Ripley, “Acredite
ou Não”; mas não somos obrigados a acreditar em nada; a menos que
eu me sinta assim, como um louco (Pausa). Como uma rosinha em
completa solidão (Pausa).
S.: É possível (Frase inaudível por causa do ruído de um avião). J.:
Sou marinheiro comerciante.
S.: É possível (Suspiros). Tomo banho no oceano.
J.: Tomar banho é uma droga. Sabe por quê? Porque não se pode
sair quando se quer. Você está de serviço.
S.: Posso sair quando bem entender. Posso sair quando me sentir
com vontade de sair.
J.: (Falando ao mesmo tempo) Eu, por exemplo, sou civil e posso
sair. S.: Civil?
J.: Siga meu…. meu exemplo.
S.: Parece-me que há civis, no porto (Longa pausa).
J.: Que querem de nós? S.: Hum?
J.: Que querem de você e de mim?
S.: Que querem de você e de mim? Como vou saber o que querem
de você? Sei o que querem de mim. Infringi a lei, por isso tenho que
pagar (Silêncio).28
Aí está uma conversa entre duas pessoas, classificadas de esquizofrênicas,
conforme o diagnóstico. Que significa tal diagnóstico?
Considerar a atitude de Smith e Jones como devidas primordialmente a
alguma deficiência psicológica é como supor que um homem, apoiado numa
só mão, sobre uma bicicleta, numa corda bamba, a trinta metros de altura,
sem rede de segurança, esteja sofrendo de incapacidade de firmar-se sobre os
próprios pés. É de se indagar por que tais pessoas têm que ser, às vezes
brilhantemente, tão esquivas, indefiníveis, incansavelmente propensas a se
mostrarem incompreensíveis.
Na última década, vem ocorrendo na psiquiatria uma alteração de visão,
que acarretou o debate de velhas suposições, baseadas nas tentativas de
psiquiatras do século dezenove de levar a estrutura da medicina clínica a
apoiar as suas observações. Assim, a matéria da psiquiatria foi considerada
doença mental. Pensava-se em fisiologia e patologia mentais, procuravam-se
sinais e sintomas, faziam-se diagnósticos, prognósticos e receitavam-se
tratamentos. De acordo com as suas inclinações filosóficas, a pessoa buscava
a etiologia dessas doenças mentais na mente, no corpo, no ambiente, ou em
inclinações herdadas.
O termo “esquizofrenia” foi criado por um psiquiatra suíço, Bleuler, que
trabalhou dentro deste quadro de referências. Ao usar o termo, não me refiro
a qualquer condição que considere mais mental do que física, ou a uma
doença, como a pneumonia, e sim a uma babel que determinadas pessoas
impõem a outras sob certas circunstâncias sociais. A “causa” da
“esquizofrenia” deve ser encontrada por meio do exame não apenas da pessoa
diagnosticada, como de todo o contexto social em que o cerimonial
psiquiátrico está sendo conduzido.29
Uma vez desmistificado, torna-se claro, pelo menos, que algumas pessoas
comportam-se e sentem a si mesmas e aos outros de maneiras estranhas e
incompreensíveis para a maioria, inclusive para elas próprias. Se este
comportamento e experiência caírem em certas amplas categorias elas talvez
recebam o diagnóstico de sujeitas a uma condição chamada esquizofrenia.
Pelos cálculos atuais, quase um por cento das crianças nascidas cairão nesta
categoria, mais cedo ou mais tarde, antes dos quarenta e cinco anos. Na Grã-
Bretanha, no momento, existem cerca de 60.000 homens e mulheres
internados em manicômios, e mais ainda fora deles, considerados
esquizofrênicos.
Uma criança nascida hoje na Grã-Bretanha tem dez vezes mais
oportunidades de ingressar num manicômio que numa universidade, e cerca
de um quinto dos admitidos nos nosocômios recebem o diagnóstico de
esquizofrênicos. Isto pode ser considerado um sinal de que estamos
enlouquecendo os nossos filhos com muito mais eficácia do que os estamos
educando. Talvez seja a nossa própria maneira de educá-los que os
enlouqueça.
A maioria dos psiquiatras, mas não todos, pensa ainda que as pessoas a
quem chamam esquizofrênicas sofrem de uma predisposição hereditária para
agir de maneiras predominantemente incompreensíveis, e que um fator
genérico ainda não determinado (talvez um morfismo genético) transacione
com um ambiente mais ou menos comum para induzir modificações
bioquímico-endocrinológicas, que, por sua vez, geram o que observamos
como sinais behaviorais de um sutil processo orgânico oculto.
Mas é errôneo atribuir a alguém uma doença hipotética, de etiologia
desconhecida e patologia ignorada, a menos que esta possa ser comprovada.30

O esquizofrênico é alguém que conhece estranhas experiências e/ou age de maneira


estranha, do ponto de vista habitual aos seus parentes e a nós….
Que o paciente diagnosticado esteja sofrendo de um processo patológico é um fato, ou
uma hipótese, uma suposição ou um juízo.
Considerá-lo um fato é inequivocamente falso. Considerá-lo uma hipótese é legítimo. É
desnecessário fazer a suposição, ou o juízo.
O psiquiatra, adotando uma posição clínica na presença da pessoa pré-diagnosticada, a
quem já contempla e ouve como a um paciente, inclina-se a crer que se encontra diante do
“fato” da esquizofrenia. Age como se sua existência fosse um fato estabelecido. Precisa
então descobrir a causa, ou fatores etiológicos múltiplos, para calcular a prognose e
estabelecer o tratamento. O âmago da doença coloca-se então fora da agência da pessoa.
Isto é, a doença é considerada um processo a que a pessoa está sujeita, seja ele genético,
constitucional, endógeno, exógeno, orgânico, psicológico, ou uma mistura de todos.31
Muitos psiquiatras estão se mostrando agora bem mais cautelosos com
respeito a adotar este ponto de partida. Mas que o substituirá?
Ao compreender o novo ponto de vista relativo à esquizofrenia, seria bom
recordar a história dos seis cegos e o elefante: um deles tocou no corpo e
disse que era uma parede; outro tocou uma orelha e disse que era um leque;
outro, uma perna e julgou tratar-se de uma pilastra, etc. O problema é testar, e
o erro é imprudente extrapolação.
Antigamente testava-se o comportamento dos esquizofrênicos pelo
método do exame clínico. O que vem a seguir é um exemplo do tipo de
exame realizado em finais do século. A narrativa é feita por um psiquiatra
alemão, Emil Kraepelin, em suas próprias palavras.
Senhores, os casos que colocarei hoje diante de todos são bastante estranhos. Em
primeiro lugar, os Senhores verão uma criada de vinte e quatro anos, em cujo rosto e
compleição se observam claramente sinais de profundo abatimento. Apesar disso, a
paciente mantém-se em movimento contínuo, avançando alguns passos, depois recuando;
trança o cabelo e desembaraça logo em seguida. Ao tentar deter seus movimentos,
encontramos resistência de vigor inesperado; se eu me coloco diante dela, com os braços
estendidos, a fim de detê-la, caso não consiga afastar- me para o lado, ela se esgueira
repentinamente por debaixo dos meus braços, a fim de continuar seu caminho. Se alguém a
segura com firmeza, ela contorce as feições em geral rígidas, inexpressivas, num pranto
deplorável, que cessa somente quando libertada. Notamos, além disso, que ela traz na mão
um pedaço de pão, espasmodicamente seguro nos dedos da mão esquerda e que se recusa
absolutamente a largar. A paciente não se preocupa de modo algum com o ambiente,
contanto que seja deixada em paz. Se é picada na testa com uma agulha, mal estremece ou
volta a cabeça, deixando a agulha onde está, sem alterar sua incansável movimentação de
animal acuado, para frente e para trás. Quando interrogada, quase nada responde, no
máximo meneia a cabeça. A intervalos lamenta-se: “Oh, meu Deus! Oh, meu Deus! Oh,
querida mãe! Oh, querida mãe!”, repetindo uniformemente as mesmas frases.32 5
Os dois personagens são um homem e uma moça. Se considerarmos a
situação puramente em termos do ponto de vista de Kraepelin, tudo se
ajustará de imediato. Ele é sadio, ela é louca: ele é racional, ela é irracional.
Isto exige que consideremos as ações da paciente fora do contexto da
situação conforme ela a viveu. Mas se tomarmos as ações de Kraepelin (em
grifo) tentando deter-lhe os movimentos, colocando-se diante dela com os
braços abertos, querendo arrancar-lhe à força um pedaço de pão, enfiando-lhe
uma agulha na testa, etc. — fora do contexto da situação por ele sentida e
definida — como estas parecem extraordinárias!
Uma faceta do jogo entre psiquiatra e paciente diz que se a parte do
paciente for tomada fora do contexto, conforme se encontra na descrição
clínica, poderá parecer estranha. A parte do psiquiatra, porém, é considerada
como base do ponto de vista comum relativo à normalidade. O psiquiatra,
ipso facto são, demonstra que a paciente está fora de contato com ele. O fato
de que ele esteja fora de contato com a paciente mostra que existe algo de
errado com ela, mas não com o psiquiatra.
Mas se a pessoa deixa de identificar-se com a posição clínica e considera
a dupla psiquiatra-paciente sem tais pressuposições, então é difícil manter
este ponto de vista ingênuo da situação.
Os psiquiatras prestaram pouca atenção à experiência da paciente.
Mesmo em psicanálise existe uma persistente tendência a supor que as
experiências do esquizofrênico sejam, de certo modo, irreais ou inválidas; só
se pode delas retirar algum sentido interpretando-as; sem interpretações que
lhe atribuam veracidade, o paciente encontra-se mergulhado num mundo de
ilusões e auto-engano. Kaplan, psicólogo americano, em introdução a uma
excelente coleção de auto-relatórios sobre a experiência da psicose, diz com
justiça:
Com toda a virtude do seu lado (o psiquiatra ou psicanalista), adianta-se através dos
subterfúgios e distorções do paciente e os expõe à luz da razão e do insight. Neste encontro
entre psiquiatra e paciente, os esforços do primeiro estão unidos à ciência e à medicina, à
compreensão e aos cuidados. O que o paciente experimenta está ligado à doença e à
irrealidade, à perversidade e à distorção. O processo psicoterapêutico consiste em grande
parte em que o paciente abandone suas falsas perspectivas subjetivas pelas objetivas do
terapeuta. Mas a essência desta concepção é que o psiquiatra compreende o que se passa e
o paciente não.33 6
H. S. Sullivan costumava dizer aos jovens psiquiatras que vinham
trabalhar com ele: “Quero que se lembrem de que no atual estado de nossa
sociedade o paciente tem razão, e vocês estão errados”. Trata-se de uma
simplificação abusiva. Menciono-a para abalar quaisquer ideias fixas não
menos absurdas, segundo as quais o psiquiatra está certo e o paciente errado.
Creio, porém, que os esquizofrênicos têm mais a ensinar aos psiquiatras sobre
o mundo interior do que os psiquiatras aos seus pacientes.
Um quadro diverso começa a emergir se a interação entre os próprios
pacientes for estudada sem pressupostos. Um dos melhores relatos sobre o
caso é feito pelo sociólogo americano Erving Goffman.
Goffman passou um ano como assistente de terapeuta físico de um grande
hospital para doentes mentais, com cerca de 7.000 leitos, próximo a
Washington. Seu status inferior na equipe permitia-lhe confraternizar com os
pacientes de um modo que os escalões mais elevados não poderiam fazer.
Uma de suas conclusões é a seguinte:
Segundo um velho dito, não existe linha definida entre as pessoas normais e os
pacientes mentais: existe antes um continuum, com o cidadão bem ajustado num extremo e
o psicótico violento no outro. Devo observar que, após um período de aclimatação num
hospital para doentes mentais, a noção de continuidade começa a parecer presunçosa. Uma
comunidade é uma comunidade. Assim como é bizarra para aqueles que nela não vivem, é
natural, mesmo quando não desejada, para os que nela vivem. O sistema pelo qual os
pacientes lidam uns com os outros não se encontra no extremo de coisa alguma, mas
proporciona um exemplo de associação humana a ser evitado, sem dúvida, e também a ser
guardado pelo estudante num arquivo circular, junto com todos os demais exemplos de
associação que ele possa reunir.34 7
Grande parte de seu estudo é dedicada a uma minuciosa documentação de
como uma pessoa, ao ser colocada no papel de paciente, inclina-se a ser
definida como não-agente, objeto não responsável, sendo tratada de acordo e
chegando mesmo a considerar a si própria sob esta luz.
Goffman demonstra também que desviando o foco da pessoa fora de
contexto para vê-la no seu contexto, o comportamento, que poderia parecer
ininteligível, no melhor dos casos explicável como uma regressão intra-
psíquica, ou deterioração orgânica, pode ter um sentido humano bastante
comum. Ele não descreve apenas tal comportamento “em” pacientes de
manicômios, como o apresenta no contexto da interação pessoal e do sistema
no qual ocorre.
…. existe em andamento um círculo vicioso. As pessoas internadas nas enfermarias
“piores” dispõem de bem pouco equipamento — as roupas lhes são tiradas todas as noites,
o material recreativo talvez lhes seja recusado e têm apenas como mobiliário pesadas
cadeiras e bancos de madeira. Atos de hostilidade contra a instituição precisam ser
reduzidos a artifícios limitados, tais como bater com a cadeira no chão, ou agitar o lençol
com tanta força que ele emita um som explosivo e irritante. Quanto mais inadequado é o
equipamento para expressar a rejeição do hospital, tanto mais psicótico ele parece e mais
justificada se sente a administração ao confinar O paciente naquela enfermaria. Quando o
paciente se vê isolado, nu e sem meios visíveis de expressão, talvez tenha que destruir o
colchão, se possível, ou escrever com fezes na parede — atos que a gerência considera de
acordo com o tipo de pessoa para a qual se justifica a reclusão.35
É por causa do seu comportamento fora do hospital, porém, que as
pessoas são diagnosticadas como esquizofrênicas e internadas num
manicômio.
Têm-se feito inúmeros estudos dos fatores sociais relativos à
esquizofrenia e que incluem tentativas de descobrir se ela ocorre com maior
ou menor frequência neste ou aquele grupo étnico, classe social, sexo,
posição na família, etc. Tais estudos concluíram muitas vezes que os fatores
sociais não representam um papel significativo na “etiologia da
esquizofrenia”. Isto incorre no erro lógico de petição de princípio e, além do
mais, tais estudos não se aproximam o bastante da situação relevante. Caso a
polícia queira determinar se alguém morreu de causas naturais, suicidou-se,
ou foi assassinado, não consulta as cifras de prevalência ou incidência.
Investiga as circunstâncias relativas unicamente àquele caso. Cada in-
naturais, suicidou-se, ou foi assassinado, não consulta quando se reúne
evidência bastante para responder às perguntas revelantes.
Somente nos últimos dez anos o ambiente interpessoal imediato do
“esquizofrênico” principiou a ser estudado nas minúcias. O trabalho foi
promovido, em primeiro lugar, por psicoterapeutas que tinham a impressão
de que se seus pacientes eram perturbados, com frequência a família era
muito perturbadora. Contudo, os psicoterapeutas permaneceram impedidos
por sua técnica de estudarem diretamente as famílias. A princípio, o foco
recaiu sobretudo nas mães (sempre as primeiras a serem culpadas de tudo), e
houve insistência sobre a mãe “esquizofrenogênica”, que, segundo se
supunha, gerava perturbações no filho.
Em seguida, voltou-se a atenção para os maridos das mulheres
inegavelmente infelizes, depois para as interações parentais e interações pais-
filhos (especialmente para cada pessoa da família separadamente), depois
para o grupo familial nuclear de pais e filhos, e finalmente para toda a rede de
pessoas relevantes, dentro e ao redor da família, inclusive os avós do
paciente. Quando as nossas pesquisas tiveram início, esta brecha
metodológica já havia sido aberta e um grande progresso teórico fora
alcançado.
Trata-se da hipótese da double-bind, cujo principal autor foi o
antropólogo Gregory Bateson. Esta teoria,36 pela primeira vez publicada em
1956, representava um progresso teórico de primeira ordem. O germe da
ideia desenvolveu-se na mente de Bateson ao estudar a Nova Guiné na
década de 30. Na Nova Guiné, a cultura possuía, como todas as culturas,
técnicas inclusas para manter o seu equilíbrio interior. Uma delas, por
exemplo, era o travesti sexual. Contudo, os missionários e o governo
ocidental inclinavam-se a protestar contra tais práticas. A cultura viu-se
presa, portanto, entre o risco de exterminação exterior ou a dissolução
interior.
Trabalhando com pesquisadores da Califórnia, Bateson elaborou este
paradigma de situação insolúvel, especificamente destrutiva para a identidade
do “self”, a ser aplicado ao padrão de comunicação interna da família dos
esquizofrênicos.
Os estudos das famílias de esquizofrênicos realizados em Paio Alto,
Califórnia, na Universidade de Yale, no Instituto de Psiquiatria da
Pennsylvania e no Instituto Nacional de Saúde Mental, entre outros,
demonstraram todos que a pessoa diagnosticada faz parte de uma rede mais
ampla de padrões de comunicação extremamente perturbados e
perturbadores. Em todos esses locais, que eu saiba, não foi estudado um só
esquizofrênico dotado de padrão de comunicação perturbado que não tenha
revelado ser um reflexo dos padrões perturbados e perturbadores que
caracterizavam sua família original bem como uma reação contra eles. Isto
está de acordo com as nossas pesquisas.37
Em mais de 100 casos nos quais estudamos38 as circunstâncias reais em
torno do acontecimento social, em que a pessoa passa a ser considerada
esquizofrênica, pareceu-nos que, sem exceção, a experiência e o
comportamento classificados de esquizofrênicos são uma estratégia
particular, inventada por alguém, para viver uma situação insustentável. A
pessoa passou a sentir que se encontra numa posição impossível. Não pode
fazer um gesto sem ser dominada por pressões e exigências contraditórias e
paradoxais, por coerções internas, provenientes de si mesma, como externas,
daqueles que a rodeiam. Encontra-se, por assim dizer, numa posição de
xeque-mate.
Esse estado de coisas talvez não seja percebido como tal pelas pessoas
nele envolvidas. O homem na base da pirâmide pode ser triturado e sufocado
sem que alguém perceba ou tenha intenção de fazê-lo. A situação aqui
descrita é impossível de ser vista através do estudo separado de cada pessoa
que a compõe. O sistema social, e não os indivíduos dela extrapolados,
devem ser objeto de estudo.
Sabemos que a bioquímica da pessoa é altamente sensível às
circunstâncias sociais. Que uma situação de xeque-mate ocasione uma reação
bioquímica que, por sua vez, facilita ou inibe certos tipos de experiência e
comportamento, é coisa plausível a priori.
O comportamento do paciente chamado esquizofrênico faz parte de uma
rede muito mais ampla de comportamento perturbado. As contradições e
confusões “internalizadas” pelo indivíduo precisam ser consideradas num
contexto social mais vasto.
Há algo de errado em algum ponto, mas não pode ser visto
exclusivamente, ou mesmo primordialmente, “no” paciente esquizofrênico.
Nem se trata de lançar a culpa a alguém. A posição insustentável, o
double-bind do “não posso vencer”, a situação de xeque-mate é, por
definição, não óbvia aos protagonistas. Muito raro é uma questão de mentiras
arranjadas, deliberadas, cínicas, ou uma implacável intenção de levar alguém
à loucura, embora isto ocorra com mais frequência do que se pensa em geral.
Há pais que nos dizem preferir ver o filho morto a vê-lo percebendo a
verdade, embora mesmo então digam que “é uma bênção” a pessoa estar
“fora do seu juízo”. Uma posição de xeque-mate não pode ser descrita em
poucas palavras. A situação precisa ser toda entendida antes de se ver que
nenhuma atitude é possível e que deixar de tomar uma atitude é igualmente
impossível.
Com tais reservas, apresentamos abaixo um exemplo de interação
incluído em O Eu e os Outros,39 entre pai, mãe e filho de vinte anos
recuperando-se de um episódio esquizofrênico.
Nesta entrevista, o paciente insistia em que era egoísta, enquanto os pais
afirmavam que ele não era. O psiquiatra pediu ao paciente que desse um
exemplo do que ele considerava “egoísta”.
FILHO: Bem, minha mãe me prepara uma grande refeição e eu
não como porque não sinto vontade.
PAI: Mas ele não foi sempre assim. Era um bom menino.
MÃE: É doença, não é, doutor? Ele nunca foi ingrato. Foi sempre
muito bem-educado. Fizemos por ele tudo o que nos foi possível.
FILHO: Não, fui sempre egoísta e ingrato. Não tenho respeito por
mim mesmo.
PAI: Tem, sim.
FILHO: Poderia ter se me respeitassem. Ninguém me respeita.
Todo mundo ri de mim. Sou a piada geral. Sou um palhaço.
PAI: Mas, filho, eu o respeito porque respeito um homem que se
respeita a si mesmo.
Não é surpreendente que a pessoa, em seu terror, se coloque em
estranhas posições na tentativa de controlar as “forças” sociais
irrevogavelmente contraditórias que a estão controlando, que ela
projete o interior para fora, introjete para dentro o exterior, que tente,
em suma, proteger-se da destruição por todos os meios de que dispõe
— projeção, introjeção, splitting, negação, etc.
Gregory Bateson, numa brilhante introdução a um relato autobiográfico
da esquizofrenia, escrito no século dezenove, disse o seguinte:
Parece que, uma vez precipitado na psicose, o paciente tem uma rota a percorrer. Ele
embarca, por assim dizer, numa viagem de descobertas que só estará completa com sua
volta ao mundo normal, ao qual regressa com insights diferentes dos daqueles habitantes
que jamais fizeram tal viagem. Uma vez iniciado, o episódio esquizofrênico deve seguir
uma trajetória definida, como a de uma cerimônia de iniciação — morte e renascimento —
na qual o noviço talvez tenha sido precipitado pela vida familiar, ou por circunstâncias
adventícias, mas que é em grande parte orientada por um processo endógeno.
De acordo com este quadro, a remissão espontânea não é problema. Será apenas o
resultado final e natural do processo total. O que precisa ser explicado é o fracasso de
muitos que embarcam nesta viagem e dela não conseguem regressar. Encontrarão na vida
familiar ou nos cuidados de uma instituição circunstâncias tão marcantemente
desajustadas, que mesmo a experiência alucinatória mais rica e melhor organizada não
consegue salvá-los.40
Concordo essencialmente com este ponto de vista.
Encontra-se em andamento uma revolução relativa à sanidade e à loucura,
dentro e fora da psiquiatria. O ponto de vista clínico está cedendo diante de
um ponto de vista ao mesmo tempo existencial e social.
De terra, de um ponto de vista ideal, podemos admirar uma formação de
aviões no ar. Mas a formação inteira talvez esteja fora de rota. O avião que se
encontre “fora de formação” pode estar anormal, errado, ou “louco” do ponto
de vista dos demais. Mas a própria formação pode estar errada, ou louca do
ponto de vista do observador ideal. O avião fora de formação pode estar
também mais ou menos fora de rota em relação à própria formação.
“Fora de formação” é um critério clínico, categórico.
“Desviado da rota” é um critério ontológico. Um exige dois juízos ao
longo de diferentes parâmetros. É de fundamental importância não confundir
a pessoa que pode estar “fora de formação” dizendo-lhe que se encontra “fora
de rota”, caso ela não esteja. É de fundamental importância não cometer o
erro categórico de supor que pelo fato de um grupo estar “em formação” isto
significa que se encontre necessariamente “na rota”. É a falácia dos porcos de
Gerasa. Não é obrigatório que a pessoa “fora de formação” esteja mais “na
rota” do que a formação. Não há necessidade de idealizar alguém só porque
ele foi classificado de “fora de formação”. Não há necessidade também de
persuadir a pessoa nessas condições de que a cura consiste em voltar à
formação. A pessoa que se encontra fora está em geral cheia de ódio contra a
formação e teme ser considerada como estranha.
Se a própria formação está fora de rota, então o homem que precisa
“entrar na linha” tem que abandonar a formação. Mas é possível fazê-lo,
caso se deseje, sem gritos e atritos e sem aterrorizar a formação já
aterrorizada que se deseja abandonar.
Na categoria do esquizofrênico existem vários tipos diferentes de
carneiros e bodes.
“Esquizofrenia” é um diagnóstico, uma etiqueta aplicada por certas
pessoas a outras. Isto não prova que a pessoa etiquetada esteja sujeita a um
processo essencialmente patológico, de natureza e origem desconhecidas,
ocorrendo em seu corpo. Não significa que o processo seja, primordial ou
secundariamente, psicopatológico, ocorrendo na psique da pessoa. Mas
estabelece como um fato social que a pessoa etiquetada é uma d’Elas. É fácil
esquecer que o processo é uma hipótese, supor que seja um fato e depois
fazer o juízo de que é biologicamente inadaptado e, como tal, patológico.
Mas a adaptação social a uma sociedade disfuncional pode ser muito
perigosa. O piloto de bombardeiro perfeitamente ajustado pode ser maior
ameaça à sobrevivência da espécie do que o esquizofrênico hospitalizado na
ilusão de que a Bomba se encontra dentro dele. Nossa sociedade pode ter se
tornado, ela própria, biologicamente disfuncional e algumas formas de
alienação esquizofrênica da alienação da sociedade podem ter uma função
sócio-biológica que nós não percebemos. Isto é válido mesmo que um fator
genético predisponha a certos tipos de comportamento esquizofrênico.
Críticas recentes da ação sobre a genética41 e os últimos estudos empíricos do
assunto deixam a questão em aberto.
Jung sugeriu há alguns anos que seria uma interessante experiência
estudar se o síndrome da psiquiatria se manifesta em famílias inteiras. Um
processo patológico chamado “psiquiatrose” poderá ser encontrado, pelos
mesmos métodos, como uma entidade delineável, com correlações somáticas
e mecanismos psíquicos, com base hereditária ou pelo menos constitucional,
histórica natural e prognose duvidosa.
Nos últimos tempos, o mais profundo avanço na psiquiatria foi a
redefinição das categorias básicas e suposições da própria psiquiatria.
Encontramo-nos agora num estágio de transição, onde até certo ponto
continuamos a usar velhos odres para vinho novo. Precisamos decidir se
devemos empregar antigos termos de nova maneira, ou abandoná-los à lixeira
da história.
Não existe “condição esquizofrênica”, mas a etiqueta é um fato social e o
fato social é uma ocorrência política.42 Este acontecimento político,
ocorrendo na ordem cívica da sociedade, impõe definições e consequências à
pessoa assim definida. É uma prescrição social que racionaliza um conjunto
de ações sociais, por meio das quais a pessoa é anexada por outros, que
possuem sanção legal, poderes médicos e obrigação moral para se tornarem
responsáveis pela pessoa etiquetada. Esta é introduzida não só no papel,
como na carreira de paciente pela ação combinada de uma coalizão (uma
“conspiração”) da família, do governo, do encarregado da sanidade mental,
de psiquiatras, enfermeiras, assistentes sociais e, com frequência, dos outros
pacientes. A pessoa “internada e classificada de paciente, em especial o
“esquizofrênico”, é rebaixada de seu pleno status existencial e legal como
agente humano e pessoa responsável, despojada de sua definição de si
próprio, incapaz de manter seus pertences, excluída do exercício de sua
liberdade para decidir com quem se encontrará e o que fará. Seu tempo não é
mais seu e o espaço que ocupa já não é o de sua escolha. Depois de sujeita a
um degradante cerimonial,43 conhecido como exame psiquiátrico, é
despojada de suas liberdades civis ao ser aprisionada numa instituição total,44
conhecida como “manicômio”. De maneira mais completa e radical do que
em qualquer outro ponto da nossa sociedade, ela se encontra invalidada como
ser humano, devendo permanecer num hospital para doentes mentais até que
a classificação seja rescindida ou qualificada por termos como “recuperado”,
ou “reajustado”. Uma vez “esquizofrênico”, a tendência é ser sempre
considerado “esquizofrênico”.
Por que e como isto acontece? E que funções este procedimento
desempenha na manutenção da ordem cívica? Tais perguntas mal começam a
esboçar-se e estão longe de encontrar resposta. Perguntas e respostas
focalizaram até agora a família como subsistema social. Socialmente, este
trabalho deve movimentar-se agora no sentido de mais amplo conhecimento,
não só dos padrões internos perturbados e perturbadores de comunicação, no
interior das famílias, de procedimento de double-binding, de
pseudomutualidade, daquilo que eu chamei as mistificações e as posições
insustentáveis, mas também do sentido de tudo isto no contexto mais amplo
da ordem cívica social — isto é, da ordem política, das maneiras como as
pessoas exercem controle e poder umas sobre as outras.
Há pessoas classificadas como esquizofrênicas (não todas, e não
obrigatoriamente) que se manifestam em palavras, gestos, ações (linguística,
paralinguística e cineticamente) fora do comum. Às vezes (nem sempre e não
obrigatoriamente) este comportamento fora do comum (manifesto a nós, os
outros, conforme disse, pela vista e por sons) expressa, deliberadamente ou
não, experiências fora do comum vividas pela pessoa. Às vezes (nem sempre
e não obrigatoriamente), tais experiências parecem fazer parte de uma
sequência natural de experiências potencialmente ordeira.
Tal sequência, raro permite-se que ela ocorra por estarem todos tão
ocupados “tratando” o paciente, seja por quimioterapia, choque, terapia
ambiental, terapia de grupo, psicoterapia, terapia familiar — e às vezes, nas
instituições mais avançadas, por equipes.
O que vemos às vezes em algumas das pessoas a quem chamamos e que
“tratamos” como esquizofrênicas são as expressões behaviorais de um drama
experimental. Mas vemos o drama de forma destorcida, e que os nossos
esforços terapêuticos tendem a destorcer ainda mais. O resultado dessa infeliz
dialética é uma forme frustre de um processo potencialmente natural, que
não permitimos que aconteça.
Ao caracterizar esta sequência em termos gerais escreverei inteiramente
sobre uma sequência de experiência. Terei que usar, portanto, a linguagem da
experiência. Muita gente acha que é preciso traduzir acontecimentos
“subjetivos” em termos “objetivos” para ser científico. Ser genuinamente
científico significa possuir conhecimento válido de determinado domínio da
realidade. Assim, usarei a linguagem da experiência para descrever as
ocorrências da experiência. Além disso, estarei menos descrevendo uma série
de acontecimentos discretos e diversos, do que uma sequência unitária de
diferentes pontos de vista, usando para isso uma variedade de idiomas. Sugiro
que este processo natural, que os nossos bem-intencionados e classificadores
esforços terapêuticos destorcem e cerceiam é o seguinte:
Recomeçaremos do split de nossa experiência naquilo que parecem ser
dois mundos, o interior e o exterior.
No estado normal das coisas, pouco sabemos de cada um e estamos
alienados de ambos, mas sabemos talvez um pouco mais do exterior que do
interior. Contudo, o próprio fato de ser necessário falar de exterior e interior
sugere que o primeiro já está despojado de substância, assim como o
segundo, de sentido.
Não precisamos estar inconscientes do mundo “interior”. Não
compreendemos sua existência na maior parte do tempo. Mas muita gente
nele penetra — infelizmente sem guia, confundindo realidades externas com
internas e vice-versa — e em geral perdendo sua capacidade de funcionar
com competência em relações ordinárias.
Não era preciso que fosse assim. O processo de penetrar no outro mundo,
a partir deste e regressar a este mundo vindo do outro, é tão natural como a
morte, dar à luz, ou nascer. Mas no mundo presente, tão aterrorizado e tão
inconsciente do outro mundo, não surpreende que quando a “realidade”, o
tecido deste mundo, estoura e a pessoa penetra no outro mundo sinta-se
completamente perdida e aterrorizada, encontrando apenas incompreensão
nos outros.
Algumas pessoas propositalmente, outras não, penetram ou são atiradas
em espaço e tempo interiores mais ou menos totais. Estamos socialmente
condicionados para considerar a imersão total no espaço e no tempo
exteriores como coisa normal e saudável. A imersão no espaço e no tempo
interiores tende a ser considerada um afastamento anti- social, um desvio
inválido, patológico per se e de certo modo desabonador.
Às vezes, após atravessar o espelho, ou o fundo de uma agulha,
reconhece-se o território como o próprio lar perdido; mas a maioria, ao
encontrar-se no espaço e no tempo interiores, sente-se, para começar, em
território estranho e portanto assustada e confusa.
Estão perdidos. Esquecem que já estiveram antes ali. Agarram-se a
quimeras. Tentam orientar-se aumentando a confusão pela projeção
(colocando o interior no exterior) e introjeção (importando as categorias
exteriores para o interior). Ignoram o que está acontecendo e não é provável
que alguém os esclareça.
Defendemo-nos violentamente até mesmo de todo o âmbito de nossa
experiência limitada pelo ego. Estamos muito mais inclinados a reagir com
terror, confusão e “defesas” contra uma experiência de perda do ego. Nada
existe de intrinsecamente patológico na experiência dessa perda, mas pode
ser muito difícil encontrar um contexto vivo para a viagem em que se
embarcou.
A pessoa que penetra nesse reino interior (se lhe permitirem senti-lo) se
encontrará embarcando — ou sendo conduzida, não se distingue claramente,
aqui, o ativo do passivo — numa viagem.
Esta viagem é sentida como uma penetração interior, mais profunda,
como um regresso através da vida pessoal, para dentro, de volta, através e
para além da experiência de toda a humanidade, mergulhando no homem
primitivo, em Adão e talvez mais longe ainda, no ser dos animais, vegetais e
minerais.
Nesta viagem existem muitas ocasiões em que a pessoa se pode perder
por confusão, falha parcial, ou mesmo naufrágio total: terá muitos terrores,
espíritos, demônios a enfrentar e que talvez não possam ser vencidos.
Não consideramos um desvio patológico explorar uma floresta ou galgar
o Monte Everest. Achamos que Colombo tinha o direito de enganar-se na
ideia daquilo que havia descoberto ao chegar ao Novo Mundo. Estamos
muito mais fora de contato com os pontos mais próximos das amplitudes
infinitas do espaço interior do que as do espaço exterior. Respeitamos o
viajante, o explorador, o alpinista, o astronauta. Para mim faz muito mais
sentido como projeto — na verdade, projeto de urgência desesperada em
nosso tempo, explorar o espaço e o tempo interiores da mente. Talvez isto
seja uma das poucas coisas que ainda fazem sentido em nosso contexto
histórico. Estamos tão desligados deste que muita gente se pergunta a sério se
ele existe. Não admira que seja perigoso explorar esse reino perdido. A
situação que sugiro é precisamente aquela em que tivéssemos carência quase
total de conhecimento do que chamamos mundo exterior. Que aconteceria se
alguns de nós começassem então a ver, ouvir, tocar, cheirar e sentir o gosto
das coisas? Estaríamos pouco menos confusos do que a pessoa que sente
primeiro vagos chamados, penetrando em seguida no espaço e no tempo
interiores. É para ali que a pessoa sentada numa cadeira e classificada como
catatônica muitas vezes se dirige. Não se encontra absolutamente aqui, está
toda ali. Com frequência encontra-se muito enganada em relação àquilo que
sente e é provável que não o queira sentir. Pode estar até perdida. Poucos de
nós conhecem o território no qual se perdeu, sabem alcançá-lo e descobrir o
caminho de volta.
Talvez nenhuma época na história da humanidade tenha a tal ponto
perdido contato com esse processo curativo natural, que envolve algumas das
pessoas a quem chamamos esquizofrênicas. Nenhuma época a desvalorizou
de tal modo, nenhuma lhe impôs tais proibições e obstáculos. Em vez do
manicômio, uma espécie de fábrica para o conserto de panes humanas,
precisamos de um local onde as pessoas que viajaram mais longe e, por
conseguinte, talvez estejam mais perdidas que os psiquiatras e outras pessoas
sadias, encontrem seu caminho mais profundamente no espaço e no tempo
interiores e possam regressar. Em vez do cerimonial degradante do exame
psiquiátrico, diagnóstico e prognóstico precisamos, para aqueles que se
encontrem preparados para tal (em terminologia psiquiátrica aqueles que
estão a ponto de sofrer um colapso nervoso), um cerimonial de iniciação,
através do qual ela será guiada com pleno encorajamento e sanção social, no
espaço e no tempo interiores, por pessoas que ali estiveram e regressaram. Do
ponto de vista da psiquiatria, seria como se os ex-pacientes estivessem
ajudando aos futuros pacientes a enlouquecerem.
O que ocorre, então, é uma viagem:
I – de fora para dentro,
II – da vida para uma espécie de morte,
III – do progresso para um regresso,
IV – do movimento temporal para a imobilidade temporal,
V – do tempo mundano para o tempo eônico,
VI – do ego para o self,
VII – do lado de fora (pós-nascimento) de volta ao seio de todas as
coisas (pré-nascimento),
e, então, subsequentemente, uma viagem de regresso
1 – do interior para o exterior,
2 – da morte para a vida,
3 – do movimento retroativo para o movimento novamente
progressivo,
4 – da imortalidade de volta à mortalidade,
5 – da eternidade de volta ao tempo,
6 – do self para um novo ego,
7 – de uma fetalização cósmica para um renascimento existencial.
Deixarei o caso com aqueles que desejam traduzir os elementos acima
deste processo perfeitamente natural e necessário para a linguagem da
psicopatologia e da psiquiatria clínica. O processo pode ser necessário a
todos nós, numa forma ou noutra, e poderia ter uma função central numa
sociedade verdadeiramente sadia.
Relacionei rapidamente pouco mais que os cabeçalhos de um estudo e
compreensão extensos de uma sequência natural de pontos de apoio
experimentais, que em alguns casos está submersa, escondida, destorcida e
cerceada pela etiqueta “esquizofrenia”, com suas conotações de patologia e
consequências de uma doença-a-ser-curada.
Talvez aprendamos a conceder aos chamados esquizofrênicos que voltam
a nós, às vezes após anos, não menos respeito que o concedido aos
exploradores perdidos da Renascença. Se a raça humana sobreviver, os
homens do futuro, segundo creio, contemplarão a nossa época esclarecida
como uma verdadeira era do obscurantismo. É provável que saboreiem a
ironia desta situação com mais divertimento do que nós dela conseguimos
extrair. E rirão de nós. Verão que o que chamamos de “esquizofrenia” era
uma das formas pelas quais, às vezes por intermédio de pessoas bastante
comuns, a luz começou a infiltrar-se pelas brechas de nossas mentes muito
fechadas.
A esquizofrenia era um nome novo para a dementia praecox — doença
lenta, insidiosa que, segundo se supunha, atacava em especial os jovens,
passando às vezes à demência definitiva.
Podemos talvez conservar agora o nome antigo, nele encontrando o
sentido etimológico: Schiz — “quebrado”; Phrenos — “alma ou coração”.
O esquizofrênico, neste sentido, é a pessoa de coração partido, e mesmo
os corações partidos podem ser consertados, se tivermos ânimo para permiti-
lo.
Mas “esquizofrenia”, no sentido existencial, tem pouco a ver com o
exame clínico, o diagnóstico, o prognóstico e as prescrições para a terapia da
“esquizofrenia”.
6 – Experiência Transcendental

Vivemos numa época em que os fundamentos se alteram e se abalam as


fundações. Não posso responder por outros tempos e locais. Talvez tenha
sido sempre dessa forma. Sabemos que hoje é assim.
Nestas circunstâncias temos toda a razão de nos sentirmos inseguros.
Quando os fundamentos do nosso mundo são postos em dúvida, procuramos
os nossos refúgios, recorremos a funções, status, identidades, relações
interpessoais. Tentamos viver em castelos que só podem ser fantásticos, uma
vez que não existe terra firme no cosmos social em que foram construídos.
Somos todos testemunhas deste estado de coisas. Cada qual vê às vezes o
mesmo fragmento de uma situação total de maneira diversa; com frequência
preocupamo-nos com diferentes apresentações da catástrofe original.
Desejo relacionar neste capítulo as experiências transcendentais que
ocorrem às vezes na psicose com aquelas experiências do divino que
constituem a fonte viva de toda religião.
No capítulo anterior esbocei o modo pelo qual alguns psiquiatras estão
começando a desfazer suas categorias clínico-médicas de compreensão da
loucura. Se conseguirmos principiar a entender sanidade e loucura em termos
sociais existenciais, seremos mais aptos a ver claramente a medida pela qual
todos nós enfrentamos problemas e partilhamos dilemas comuns.
A experiência pode ser considerada louca de maneira inválida, ou
validamente mística. A distinção não é fácil. Em ambos os casos, do ponto de
vista social, tais julgamentos caracterizam diferentes formas de
comportamento consideradas desvios em nossa sociedade. As pessoas
portam-se assim porque sua experiência de si próprias é diferente. É o sentido
existencial dessa experiência fora do comum que desejo focalizar.
A experiência psicótica ultrapassa os horizontes do nosso senso comum,
isto é, comunal.
A que regiões de experiência conduz? Acarreta a perda das costumeiras
bases do “senso” do mundo que partilhamos uns com os outros. Velhos
propósitos já não parecem viáveis: velhos sentidos deixam de ter sentido; as
distinções entre imaginação, sonho, percepções externas já não parecem ter as
antigas aplicações. Ocorrências externas parecem conjuradas por magia. Os
sonhos talvez pareçam comunicações diretas dos outros, a imaginação,
realidade objetiva.
Mas, o que é mais importante, os próprios fundamentos ontológicos estão
abalados. O ser dos fenômenos e os fenômenos do ser talvez já não se
apresentem a nós como antes. Não existem apoios, nada a que se agarrar,
exceto talvez alguns fragmentos de naufrágio, algumas lembranças, nomes,
sons, um dos dois objetos que conservam um elo com o mundo há muito
perdido. Este vácuo talvez não esteja vazio. Pode estar povoado de visões e
vozes, fantasmas, formas estranhas e aparições. Ninguém que não tenha
sentido o quanto pode ser insubstancial o desfile da realidade exterior, que
não saiba como é capaz de empalidecer, compreenderá plenamente as
presenças sublimes e grotescas que talvez a substituam ou existam paralelas a
ele.
Quando a pessoa enlouquece, ocorre uma profunda transposição de sua
posição em relação a todos os domínios do ser. Seu centro de experiência
desloca-se do ego para o self. O tempo mundano torna-se uma simples
anedota, só importa o que é eterno. Contudo, o louco está confuso. Mistura
ego com self, interior com exterior, natural com sobrenatural. No entanto,
pode ser com frequência para nós, mesmo através de sua profunda
infelicidade e desintegração, o hierofante do sagrado. Exilado do cenário do
ser como o conhecemos, ele é um estranho, um alienígena, acenando para nós
do vácuo onde está mergulhando, um vácuo talvez povoado de presenças que
nem sequer suspeitamos. No passado eram chamadas demônios e espíritos,
eram conhecidas e nomeadas. A pessoa perdeu o senso do self, os
sentimentos, seu lugar no mundo como o conhecemos. Declara estar morta.
Mas nós somos forçados a sair de nossa confortável segurança por esse louco
fantasma que nos persegue com suas visões e vozes aparentemente tão
insensatas que nos sentimos impelidos a libertá-lo, limpá-lo, curá-lo.
A loucura não precisa ser um colapso total. Pode ser também uma
abertura. É potencialmente libertação e renovação, assim como escravização
e morte existencial.
Existe um número crescente de narrativas feitas por pessoas que viveram
a experiência da loucura.45 1
Apresento a seguir parte de narrativas contemporâneas mais antigas,
registradas por Karl Jaspers em sua Psicopatologia Geral.46
Creio que eu próprio causei a doença. Na tentativa de penetrar o outro mundo encontrei
seus guardiões naturais, a personificação de minha própria fraqueza e falhas. Julguei a
princípio que esses demônios fossem habitantes desprezíveis do outro mundo, que podiam
brincar comigo como se eu fosse uma bola, porque penetrei naquelas regiões despreparado
e me perdi. Mais tarde pensei serem partes isoladas de minha própria mente (paixões) que
existiam próximo de mim no espaço livre alimentando-se de meus sentimentos. Acreditava
que todos os demais os possuíssem também, embora sem percebê-lo, graças à ilusão
protetora e bem sucedida do sentimento de existência pessoal. Julguei que a última fosse
um artifício da memória, complexos de ideias, etc., uma boneca bonita de se olhar, mas
sem qualquer conteúdo real.
No meu caso, o self pessoal tornara-se poroso por causa do consciente obscurecido. Por
seu intermédio eu queria aproximar-me das fontes mais sublimes da existência. Deveria
ter-me preparado para isto durante um período prolongado de tempo, invocando em mim
um self mais elevado, impessoal, já que o “néctar” não é para lábios mortais. Agia de modo
destrutivo sobre o self do animal humano, dividindo-o em partes, que gradualmente se
desintegravam. A boneca estava quebrada de fato e o corpo dilacerado. Eu forçara acesso
em momento inconveniente à “fonte vital”, e a ira dos “deuses” caíra sobre mim. Percebi
demasiado tarde a intervenção de elementos escusos. Passei a reconhecê-los depois que já
haviam adquirido demasiado poder. Impossível recuar. Eu possuía então o mundo dos
espíritos que desejara ver. Os demônios subiram dos abismos, como o guardião Cérbero,
negando entrada aos não-iniciados. Resolvi encetar a luta de vida ou morte. Isto significava
para mim, no final, a decisão de morrer, já que precisava renunciar a tudo que mantinha o
inimigo, mas isto era também tudo o que me conservava a vida. Eu queria penetrar a morte
sem enlouquecer e coloquei-me diante da Esfinge: “Ou entras no abismo, ou entro eu”.
Ocorreu então uma iluminação. Jejuei e assim penetrei na verdadeira natureza dos
meus sedutores. Eram proxenetas e enganadores do meu querido self pessoal, que parecia,
tanto quanto eles, uma coisa do nada. Um self mais amplo e mais compreensivo emergiu e
eu pude abandonar a anterior personalidade com todo o seu séquito. Vi que essa
personalidade anterior jamais poderia penetrar nas regiões transcendentais e senti uma dor
terrível, um golpe aniquilador, mas fui salvo, os demônios encolheram-se, desapareceram,
pereceram. Uma nova vida começou para mim e de então em diante senti-me diferente das
outras pessoas. Um self consistindo de mentiras convencionais, enganos, auto-ilusões,
imagens da memória, um self exatamente como o dos outros tornou a crescer em mim, mas
por detrás e acima erguia-se um self mais amplo e mais compreensivo, que me
impressionou, sendo dotado de algo eterno, imutável, imortal e inviolável e que desde
então tem sido meu protetor e refúgio. Acredito que seria bom para muitos conhecerem
esse self mais elevado e saberem que há gente que alcançou este objetivo por meios mais
tranquilos.
Jaspers comenta:
Tais auto-interpretações são evidentemente feitas sob a influência de tendências
ilusórias e profundas forças psíquicas. Originam-se de experiências intensas e a riqueza
dessa experiência esquizofrênica chama a atenção tanto do observador como do paciente
ponderado que não considere tudo isto como uma simples mistura caótica. Mente e espírito
encontram-se presentes tanto na vida psíquica mórbida como na sadia. Mas as
interpretações desse tipo devem ser despojadas de toda importância casual. Tudo o que
podem fazer é lançar luz sobre o conteúdo e levá-lo a qualquer espécie de contexto.
Este paciente descreveu, com uma lucidez que eu não saberia melhor,
uma busca muito antiga, com suas armadilhas e perigos. Jaspers refere-se
ainda a esta experiência como mórbida e inclina-se a menosprezar a
interpretação do paciente. Contudo, tanto a experiência como a interpretação
podem ser válidas em seus próprios termos.
Certas experiências transcendentais parecem-me a fonte original de todas
as religiões. Algumas pessoas psicóticas passam por experiências
transcendentais. Com frequência (que se lembrem), jamais passaram
anteriormente por elas e muitas vezes não as tornarão a viver. Não digo,
porém, que a experiência psicótica contenha necessariamente esse elemento
de maneira mais manifesta que a sã experiência.
Experienciamos de diferentes maneiras. Percebemos as realidades
exteriores, sonhamos, imaginamos, entregamo-nos a devaneios
semiconscientes. Há quem tenha visões, alucinações, fique transfigurado,
veja auras, etc. A maioria das pessoas sente a si mesma e aos outros, quase
todo o tempo, de um modo a que chamarei egóico, isto é, centralmente ou
periferalmente sentem o mundo e a si mesmas em termos de uma identidade
consistente, um eu-aqui contra você-aí, dentro de uma estrutura de espaço e
tempo partilhada por outros membros de sua sociedade.
Esta experiência de identidade-ancorada, limitada por tempo e espaço, foi
filosoficamente estudada por Kant e mais tarde por fenomenologistas como
Husserl e Merleau-Ponty. Sua relatividade histórica e ontológica deveria ser
plenamente percebida por qualquer estudante contemporâneo do cenário
humano. Sua relatividade social e sócio-econômica tornou-se um lugar-
comum entre os antropólogos e uma banalidade para os marxistas e
neomarxistas. Contudo, oferecendo uma confirmação consensual e
interpessoal, proporciona-nos um senso de segurança ontológica, cuja
validade experienciamos como autoconfirmadora, embora saibamos que, do
ponto de vista metafísico-ontológico-sócio-econômico-cultural, sua aparente
validade absoluta seja uma ilusão.
Na verdade, todas as filosofias religiosas e existenciais concordam em
que essa experiência egóica é uma ilusão preliminar, um véu — um sonho
para Heráclito e Lao-Tzu, a ilusão fundamental de todo o budismo, um estado
de sono, de morte, de loucura socialmente aceita, um estado vegetativo ao
qual é preciso morrer e do qual é necessário nascer.
A pessoa que passa pela perda do ego, ou por experiências
transcendentais pode tornar-se ou não confusa de diferentes maneiras. E
talvez seja legitimamente considerada louca. Mas para ser louco não é
obrigatório estar doente, embora em nossa cultura as duas categorias se
confundam. Supõe-se que uma pessoa louca (seja qual for o sentido da
palavra) ipso facto está doente (seja qual for o sentido da palavra). A
experiência em que a pessoa se encontra absorvida, enquanto para os outros
parece simplesmente doentia e louca, talvez seja para ela um verdadeiro maná
do céu. Toda a sua vida pode transformar-se, mas é difícil não duvidar da
validade de tal visão. Além do mais, nem todos voltam para nós.
Serão tais experiências a simples efulgência de um processo patológico,
ou de determinada alienação? Não o creio.
Em certos casos, um homem cego de nascença pode submeter-se a uma
operação que lhe devolva a visão. O resultado é com frequência infelicidade,
confusão, desorientação. A luz que ilumina o louco é uma luz não-terrena.
Nem sempre é uma refração de sua situação no mundo. Pode ser irradiada de
outros mundos e talvez o consuma.
Esse “outro” mundo não é essencialmente um campo de batalha onde as
forças psicológicas, derivadas ou desviadas, deslocadas ou sublimadas de
suas cathexes-objeto, empenham-se numa luta ilusória — embora tais forças
possam obscurecer essas realidades, assim como podem obscurecer as
chamadas realidades externas. Quando Ivan, dos Irmãos Karamazov, diz: “Se
Deus não existe, tudo é permissível”, não está dizendo: “Se o meu superego
projetado pode ser abolido, posso fazer o que quiser de consciência
tranquila”. E sim: “Se existe apenas a minha consciência, então há validade
para a minha vontade”.
Entre médicos e padres deveria haver alguns orientadores que retirassem
a pessoa deste mundo e a introduzissem no outro. Que a orientassem dentro
dele e a conduzissem de volta.
Penetra-se no outro mundo quebrando uma concha, ou transpondo um
limiar, atravessando uma repartição, erguendo-se ou afastando-se cortinas,
descerrando-se um véu. Sete véus — sete selos, sete céus.
O “ego” é o instrumento para se viver neste mundo. Se ele se romper, ou
for destruído (pelas invencíveis contradições de certas situações na vida, por
meio de toxinas, alterações químicas, etc.), então a pessoa talvez fique
exposta a outros mundos, “reais” de diferentes maneiras, da esfera mais
familiar dos sonhos, da imaginação, da percepção ou da fantasia.
O mundo que se penetra, a nossa capacidade para experienciá-lo, parece
estar em parte condicionado ao estado do próprio “ego”.
Nossa época distinguiu-se, mais do que por qualquer outra coisa, por um
impulso a controlar o mundo exterior e pelo quase total esquecimento do
mundo interior. Se calcularmos a evolução humana do ponto de vista do
conhecimento do mundo exterior, então estaremos, em vários sentidos,
progredindo.
Se o nosso cálculo for feito do ponto de vista do mundo interior e da
unidade interno-externo, então o juízo precisa ser muito diferente.
Fenomenologicamente, os termos “interior” e “exterior” têm pouca
validade. Mas em toda esta esfera a pessoa está reduzida a expedientes
verbais — palavras não passam do dedo apontando para a lua. Uma das
dificuldades de se falar de tais assuntos nos dias de hoje é que a própria
existência das realidades interiores encontra-se agora posta em dúvida.
Por “interior” refiro-me à nossa maneira de ver o mundo exterior e todas
as realidades que não possuem presença “externa”, “objetiva” — imaginação,
sonhos, fantasias, transes, as realidades dos estados contemplativos e
meditativos, realidades de que o homem moderno, na maioria, não possui a
mais leve percepção direta.
Por exemplo: em parte alguma da Bíblia existe qualquer debate relativo à
existência de deuses, demônios, anjos. As pessoas não “creem em” Deus,
para começar: sentem a sua Presença, como ocorre com outros agentes
espirituais. A questão não era a existência de Deus, mas se este Deus em
particular era o maior de todos, ou o único, e qual a relação dos vários
agentes espirituais, uns com os outros. Existe hoje um debate público, não
com respeito à autenticidade de Deus, ao lugar atribuído na hierarquia
espiritual aos diferentes espíritos, etc., mas se Deus ou esses espíritos chegam
a existir, ou jamais existiram.
A sanidade parece repousar amplamente, hoje, na capacidade para
adaptar-se ao mundo exterior — o mundo interpessoal e o reino das
coletividades humanas.
Como esse mundo exterior humano está quase completamente separado
do interior, qualquer percepção pessoal direta desse mundo interior já
apresenta graves riscos.
Mas, desde que a sociedade, sem saber, encontra-se esfaimada pelo que
há de interior, as exigências para se evocar a sua presença de maneira
“segura”, de modo que não precisa ser levado a sério, etc., são tremendas, e a
ambivalência igualmente intensa. Não admira que seja tão grande o número
dos artistas que naufragaram nesses rochedos nos últimos 150 anos —
Hölderlin, John Clare, Rimbaud, Van Gogh, Nietzsche, Antonin Artaud….
Os que sobreviveram possuem qualidades excepcionais — capacidade
para o segredo, o disfarce, a astúcia — um cálculo totalmente realista dos
riscos que correm, não só na esfera do espiritual que frequentam, como na do
ódio de seus semelhantes por quem quer que esteja empenhado nesta busca.
Vamos curá-los. O poeta que confunde uma mulher real com a sua Musa
e age de acordo…. O jovem que embarca num iate em busca de Deus….
O exterior divorciado de qualquer luz interior é um estado de escuridão.
Vivemos numa época de obscurantismo. O estado de escuridão exterior é um
estado de pecado — isto é, alienação ou afastamento da luz interior.47 Certos
atos conduzem a um afastamento maior; outros ajudam a pessoa a não se
afastar tanto. O primeiro era chamado, antigamente, pecaminoso.
As maneiras de perder-se são legião. A loucura não é com certeza a
menos ambígua. A contraloucura da psiquiatria de Kraepelin é a exata
contrapartida da psicose “oficial”. Literalmente, e com absoluta seriedade, é
igualmente louca, se por loucura entendermos qualquer afastamento radical
da totalidade do que quer que seja. Recordemos a loucura objetiva de
Kierkegaard.
Agimos da maneira como experienciamos o mundo. Conduzimo-nos à luz
de nossa opinião daquilo que é, ou não é o caso. Isto é, cada pessoa é um
ontologista mais ou menos ingênuo. Cada qual tem suas opiniões sobre
aquilo que é, ou não é.
Não há dúvida, na minha opinião, de que tem havido profundas mudanças
na experiência humana, nos últimos mil anos. De certo modo isto é mais
evidente do que as alterações nos padrões de comportamento. Tudo sugere
que o homem sentia a Deus. A fé jamais foi uma questão da crença na Sua
existência e sim de confiança na Presença que era sentida e que se sabia
existir como um dado autêntico por si mesmo. Parece provável que muita
gente da nossa época nem sinta a Presença de Deus, nem a Presença de sua
ausência, e sim a ausência de sua Presença.
Precisamos de uma história dos fenômenos e não apenas mais fenômenos
históricos.
No estado em que estão as coisas, o psicoterapeuta secular encontra-se
com frequência no papel do cego orientando o meio-cego.
A fonte não se esgotou, a chama brilha ainda, o rio corre, a fonte ainda
borbulha, a luz não se apagou. Mas entre nós e Ele existe um véu, que será
provavelmente quinze metros de concreto sólido. Deus absconditus. Ou
fomos nós que nos escondemos.
No nosso tempo, tudo se inclina a categorizar e segregar esta realidade
dos fatos objetivos. É isto precisamente a parede de concreto. Intelectual,
emocional, interpessoal, organizacional, intuitiva, teoricamente precisamos
abrir à força o nosso caminho através da parede sólida, mesmo com o risco de
criar o caos, a loucura e a morte. Deste lado do muro é este o risco. Não há
tranquilidade, garantias.
Muita gente está disposta a ter fé no sentido da crença cientificamente
indefensável de uma hipótese não comprovada. Poucos têm bastante
confiança para testá-la. Muita gente imagina o que sente. Poucos são levados
a crer, graças ao que sentem. Paulo de Tarso foi agarrado pela nuca, atirado
ao chão e ficou cego durante três dias. Esta experiência direta era
autocomprovante.
Vivemos num mundo secular. Para adaptar-se a este mundo a criança
renuncia ao seu êxtase. (“L’enfant abdique son extase”, Mallarmé). Tendo
perdido a nossa experiência do espírito, esperamos ter fé. Mas esta fé vem a
ser crença numa realidade que não é auto- evidente. Uma profecia de Amós
diz que virá um tempo de penúria na terra, “não fome de pão, nem sede de
água, mas de ouvir a palavra do Senhor”. Este tempo chegou. É a época
presente.
Do ponto de partida alienado de nossa pseudo-sanidade, tudo é equívoco.
A nossa sanidade não é “verdadeira”. A loucura deles não é “verdadeira”
loucura. A loucura de nossos pacientes é um artefato da destruição que
desencadeamos sobre eles, e eles sobre nós. Que ninguém suponha que
encontramos “verdadeira” loucura, ou que somos verdadeiramente sãos. A
loucura que encontramos nos “pacientes” é um grosseiro travesti, um gracejo,
uma grotesca caricatura daquilo que poderia ser a cura natural daquela
integração alienada a que chamamos sanidade. A verdadeira sanidade
acarreta, de um modo ou de outro, a dissolução do ego normal, daquele falso
self competentemente ajustado à nossa alienada realidade social: o
aparecimento dos mediadores arquetípicos “interiores” do poder divino, e,
por intermédio desta morte, o renascimento e eventual restabelecimento de
uma nova espécie de funcionamento do ego, sendo este agora servo do divino
e não mais do seu traidor.
7 – Uma Viagem de Dez Dias

Jesse Watkins é agora um conhecido escultor. Alegro-me em tê-lo como


amigo. Nasceu a 31 de dezembro de 1899. Embarcou em 1916 num
cargueiro, durante a Primeira Guerra Mundial. Sua primeira viagem foi ao
norte da Rússia. No mesmo ano foi torpedeado no Mediterrâneo. Em 1932,
serviu como tripulante de um veleiro.
Ao terminar a Segunda Guerra Mundial (durante a qual serviu na Marinha
Real), era comandante e comodoro de comboios costeiros. No decorrer de sua
carreira marítima conheceu naufrágio, motim e assassinato.
Desenhou e pintou desde bem jovem e a isso dedicou-se constantemente
no mar. Quando em terra por breves períodos assistia esporadicamente às
aulas no Goldsmith’s College e na Chelsea Art School. Escreveu e publicou
ainda contos sobre a vida do mar.
Há vinte e sete anos passados, Watkins passou por um “episódio
psicótico” que durou dez dias. Gravei uma discussão com ele a respeito, em
1964, e com sua permissão aqui apresento alguns trechos.
O material fala por si mesmo. É uma narrativa de sua viagem ao espaço e
tempo interiores. Suas características gerais não são fora do comum, mas é
fora do comum possuir delas uma narrativa tão lúcida. Embora os
acontecimentos tenham vinte e sete anos de idade, estão vividos em sua
mente e constituem uma das mais significativas experiências de sua vida.

AS PRELIMINARES
Antes que a Viagem tivesse início, Jesse havia se “mudado para um
ambiente totalmente novo”. Vinha trabalhando sete dias por semana até tarde
da noite. Sentia-se física, emocional e espiritualmente “abatido”. Já que é a
própria viagem que aqui nos preocupa, não entraremos em detalhes sobre as
circunstâncias que a antecederam. Foi então mordido por um cão e a ferida
não cicatrizou. Dirigiu-se a um hospital, onde lhe aplicaram anestesia geral
pela primeira vez na sua vida e fizeram curativo no local.
Voltou de ônibus para casa e sentou-se numa cadeira. Seu filho de sete
anos entrou na sala, e Jesse viu-o de maneira nova e estranha, um tanto
afastado de si mesmo.
Foi então que tudo começou.

A VIAGEM
“…. de repente, olhei para o relógio, o rádio estava ligado, a música
tocando — hum — uma música popular. Baseava-se no ritmo de um bonde.
Taa-ta-ta-taa-taa — algo que lembrava uma melodia repetitiva de Ravel. E
quando aconteceu, senti de repente como se o tempo recuasse. Senti este
tempo recuar e tive a extraordinária sensação de que…. a sensação mais forte
que tive naquele momento foi a do recuo do tempo….
“Senti-o com tanta intensidade, que olhei para o relógio e de certo modo
achei que ele confirmava a minha opinião de que o tempo estava recuando,
embora eu não visse os ponteiros movimentando-se…. Senti-me alarmado
por ter subitamente a impressão de estar me movimentando para algum
ponto, numa esteira rolante …. incapaz de fazer o que quer que fosse, como
se escorregasse e derrapasse por uma espécie de túnel e…. fosse incapaz de
me deter. E…. hum…. isto me causou uma sensação de pânico…. Lembro-
me de ter entrado na outra sala para verificar onde me encontrava, de ter
olhado para meu próprio rosto, mas não havia espelhos por ali. Entrei no
quarto e olhei-me no espelho. Parecia, de certo modo, estranho, como se
olhasse para alguém que…. alguém familiar, mas…. muito estranho e
diferente de mim mesmo…. foi o que senti…. e então experimentei a
extraordinária sensação de ser perfeitamente capaz de fazer qualquer coisa
comigo mesmo, de estar em pleno controle de…. de todas as minhas
faculdades, corpo e tudo o mais…. e comecei a divagar”.

O antigo e o familiar aparecem de maneira nova e estranha, às vezes


como que pela primeira vez. Desaparecem os nossos antigos pontos de
referência. Recua-se no tempo. Embarca-se na mais antiga viagem do mundo.

“Minha mulher ficou muito…. hum…. preocupada. Entrou e disse que eu


devia sentar-me e depois deitar na cama; e, por estar alarmada, chamou um
vizinho. Ele era funcionário público, e ficou também um tanto assustado, mas
procurou acalmar-me. Continuei a divagar diante dele e então chegou o
médico…. hum…. e eu estava falando muito sobre a sensação mental de que
o tempo havia recuado. Claro que para mim tudo parecia perfeitamente
racional, eu recuava e pensava estar regressando a uma existência anterior,
mas somente de maneira vaga. É óbvio que olhavam para mim como se eu
estivesse completamente doido, o que poderia ser exato. E…. hum…. logo
em seguida, vi-me numa ambulância e fui transportado….”

Foi transportado para uma enfermaria de observação.

“Colocaram-me numa cama e…. hum…. lembro-me que era noite e foi
uma experiência assustadora, porque eu tinha a…. tinha a sensação de que….
hum…. eu estava…. de que eu havia morrido. Percebi que havia pessoas nas
outras camas ao meu redor e pensei que eram gente que morrera…. e ali se
encontrava…. apenas a espera de passar para a seção seguinte….”

Não morrera fisicamente, mas seu “ego” morrera. Simultaneamente com


a perda do ego, esta morte, emergiram redobradas sensações quanto ao
significado e a relevância de tudo.
A perda do ego pode ser confundida com a morte física. As imagens
mentais projetadas podem ser experienciadas como se fossem perseguidores.
A mente sem ego pode ser confundida com o ego, e assim por diante. Em tais
circunstâncias, a pessoa pode entrar em pânico, tornar-se paranóica, com
ideias de referências e influência, inflamar-se com ideias de grandeza, etc.
Este tipo de confusão não precisa ser alarmante. Mas quem é capaz de
afirmar que não tem medo algum de morrer, ou, se examinar bem o coração,
que se sente no direito de morrer?

“…. então comecei a entrar nessa…. verdadeira sensação de recuo no


tempo. Tinha a extraordinária impressão de…. viver, não só viver como —
sentir e…. experimentar tudo o que se relaciona com algo que eu sentia e que
era…. parecido com a vida animal, e assim por diante. A certa altura tive
mesmo a impressão de vaguear uma espécie de paisagem…. paisagem
deserta…. como se fosse um animal…. um grande animal. Parece absurdo
dizê-lo, mas eu me sentia como uma espécie de rinoceronte e, ao mesmo
tempo que experimentava medo, estava agressivo e desconfiado. E então….
hum…. voltei a períodos ainda mais recuados e comecei a lutar como se não
tivesse cérebro, como se apenas combatesse pela minha existência contra
outras coisas que me opunham a mim. E…. hum…. às vezes tinha a
impressão de ser um bebê…. poderia até…. eu…. eu até me ouvia chorando
como uma criança….
“Todas estas sensações eram muito agudas e…. hum…. reais e, ao
mesmo tempo eu estava…. estava cônscio delas, sabe, ainda me lembro de
tudo. Percebia que tudo isso me estava acontecendo…. de maneira vaga, era
uma espécie de observador de mim mesmo, mas sentia tudo ao mesmo
tempo. Sentia tudo que era tipo de sensação…. como já faz quase trinta anos,
isto soa um tanto desconjuntado, porque estou arrancando tudo da memória,
mas insisto em que conto exatamente o que me aconteceu e não estou
embelezando o caso com a imaginação, ou algo parecido. Hum…. percebi
que havia períodos em que saía completamente desse estado para o qual
caminhava, por assim dizer, e conhecia períodos relativamente lúcidos. Mas
eu lia…. lia os jornais porque me davam os jornais e coisas para ler, mas não
conseguia ler, porque tudo apresentava um grande número de associações.
Lia apenas um cabeçalho, ou a primeira linha de um item noticioso e isso
apresentava…. uma espécie de…. amplas associações na minha mente.
Parecia saltar de tudo o que eu lia e tudo o que me chamava a atenção, bang
bang-bang, um imenso número de associações brotando das coisas, de modo
que se tornou difícil para mim enfrentar aquilo que não podia ler. Tudo
parecia ter um significado mais amplo, muito mais amplo do que o normal.
Recebi uma carta de minha mulher. Lembro-me da carta que ela escreveu,
dizendo: “O sol está brilhando aqui….” e…. “É um lindo dia”. Esta era uma
das frases da carta. Havia muitas outras e não me lembro de todas, não posso
me lembrar de todas as frases que evocaram em mim reações, mas lembro-me
desta em que ela dizia: “O sol está brilhando aqui”. Senti que se isso era
exato — se a carta era dela, então ela se encontrava num mundo inteiramente
diverso. Estava num mundo que eu jamais poderia tornar a habitar…. e isto
me causou alarme e senti que, de certo modo…. penetrara num mundo de
onde jamais poderia sair”.

Embora longe do porto seguro da própria identidade, ancorado neste


tempo e lugar, o viajante pode estar nitidamente cônscio também deste tempo
e lugar.

“Sabe, eu estava perfeitamente cônscio de mim mesmo e do que me


rodeava”.
Jesse teve a impressão de possuir maiores poderes de controle sobre seu
corpo, e ser também capaz de influenciar os outros.

“…. quando fui para o hospital, por causa desta sensação, desta intensa
sensação de ser capaz de…. hum…. governar a mim mesmo, ao meu corpo e
assim por diante, disse à enfermeira que queria fazer um curativo no meu
dedo: “Não precisa se incomodar com isso”. Retirei a atadura e disse: “Isto
estará bom amanhã, se você não fizer curativo, deixe como está”. E lembro-
me daquela terrível sensação de que eu podia fazer mesmo isso e…. era um
feio corte pelo dedo abaixo. Não permiti que colocassem coisa alguma, então
disseram, ora, não está sangrando, e deixaram mesmo, e no dia seguinte
estava perfeitamente cicatrizado, porque eu voltei uma espécie de…. atenção
intensa sobre o dedo, a fim de curá-lo. Descobri que eu…. fiz um teste com o
homem que ficava a minha frente na enfermaria e que era às vezes muito
barulhento, saía da cama, fora submetido a diversas desagradáveis operações
abdominais e suponho que isso o tenha afetado, causando provavelmente o
colapso. Mas costumava levantar-se da cama, praguejar, gritar, etc. e eu me
senti meio assustado e ao mesmo tempo com muita pena dele, e então sentava
na minha cama e forçava-o a deitar, olhando para ele, concentrado, e ele se
deitava. E para ver se isto…. isto era apenas um acidente, tentei com outro
paciente ao mesmo tempo e descobri que ele…. que eu conseguia fazê-lo
deitar-se”.

Eu não desdenharia prontamente tais possibilidades.

“Tinha a sensação de possuir uma espécie de…. hum…. poder oculto,


achando vagamente que sempre o possuíra ou que todo mundo o possuía.
Embora na época eu fosse marinheiro, como fora quase toda a minha vida, e
não…. Havia lido bastante quando estava no mar, mas não literatura
esotérica, até então, nem depois…. não li nada relativo a…. ideias de
transmigração das almas, reencarnação ou como quer que o digam…. Mas
tinha às vezes a sensação de encontrar-me no início de uma imensa
jornada…. uma fantástica jornada…. e possuindo uma compreensão das
coisas que há muito vinha tentando entender, problemas de bem e mal, e
assim por diante, e que eu os resolvera, chegando à conclusão, com todas as
sensações que experimentava na ocasião, de que eu era mais…. mais do que
imaginava a mim mesmo, não me limitando a existir agora, mas existindo
desde o começo…. numa espécie de…. vindo das mais ínfimas formas de
vida até o tempo presente, e que esta era a soma das minhas experiências
reais e que aquilo que eu fazia era revivê-las. E ocasionalmente havia uma
espécie de visão diante de mim, como se estivesse olhando para baixo….
olhando para uma imensa…. ou antes…. não tanto olhando como sentindo….
que à minha frente estendia-se a mais terrível viagem…. uma viagem para….
uma questão definitiva de…. hum…. estar cônscio de tudo…. tudo o que…. e
eu o senti com tanta intensidade, e foi uma experiência tão horrível sentir de
repente aquilo, que imediatamente isolei-me dela porque não podia
contemplá-la, porque me causava calafrios. Eu…. a experiência impeliu-me a
um estado de temor que…. fui incapaz de suportar”.
“Medo da tarefa que ainda restava?
“Sim, porque…. tal era a enormidade da coisa que eu…. que não havia
maneira de evitá-la…. de me defrontar com o que eu…. a viagem que
precisava realizar. Eu tinha, suponho que por ter sido educado num ambiente
religioso, eu tinha…. a religiosidade de minha mãe, não do tipo de ir à igreja,
mas era religioso…. de modo real; ela procurou nos ensinar algo de religião
e…. o tipo de atitude em relação à vida….”

Possuía uma “sensação particularmente aguda” de que as coisas dividiam-


se em três planos: uma antecâmara, o mundo central e o mundo mais elevado.
A maioria das pessoas encontrava-se na antecâmara, à espera de entrar no
compartimento seguinte, no qual ele penetrara então:

“…. estavam como que despertando. Tinha consciência também de


uma…. hum…. uma esfera mais elevada, por assim dizer. Embaraça-me usar
estas frases porque já foram usadas tantas vezes…. sabe, as pessoas falam
sobre esferas e tudo o mais, porém, a única coisa que eu sentia…. e quando
descrevo tudo isto estou descrevendo mais as impressões…. uma experiência
mais profunda do que apenas contemplar uma coisa…. uma percepção de….
hum…. de outra esfera, outra camada de existência, estendendo-se acima….
não só da antecâmara, como do presente…. jazendo por sobre ambos, numa
espécie de existência…. de três camadas….”
“Qual era a mais baixa?”
“A mais baixa era uma espécie de espera…. como uma sala de espera”.
Isto estava unido à experiência do tempo.
“Eu não vivia apenas no…. no momento móvel, o presente, mas
movimentava-me e vivia num…. noutra dimensão para além da situação de
tempo em que me encontro agora…. O que quero dizer é que não possuía
qualquer ideologia. A única parte ideológica do que estou contando foi
aquela em que passei pela Via-Sacra, porque ali, de certo modo, a reuni com
uma ideologia daquele tempo. Tenho pensado muitas vezes no que vivi então.
Procurei tirar uma espécie de…. hum…. sentido disso, porque achava não se
tratar de algo sem sentido…. embora para os que me rodeavam…. suponho
que estivesse louco por não estar vivendo no tempo presente e se não estava
vivendo no tempo presente, encontrava-me, portanto, incapaz de enfrentá-lo
de maneira adequada. Mas sentia constantemente que estava…. recuando….
ou então avançando e recuando no tempo, que não vivia apenas no momento
presente. E que mais facilmente podia recuar do que andar para a frente,
porque o movimento progressivo era excessivo para mim”.

Tal experiência pode ser extremamente confusa e terminar de maneira


desastrosa. Não há garantias. Jesse experienciou três planos de realidade em
vez do único habitual. Afora ter percorrido a Via-Sacra, não se ligou a
nenhuma ideologia. Não possuía mapa.
Mas confiava em sua experiência de ter penetrado num estado de maior,
não menor realidade, de hipersanidade, não subsanidade. Para os outros, estas
duas possibilidades não se distinguiam entre si mais do que giz e queijo. Ele
precisava ser cauteloso.
“Eu tinha a sensação de…. deuses, não apenas de Deus, mas de deuses,
por assim dizer, de seres muito acima de nós, capazes de…. enfrentar a
situação que eu não era capaz de enfrentar, encarregados de tudo e tudo
dirigindo e…. hum…. no final, todos tinham que assumir o cargo de chefia. E
foi isto que tornou a coisa tão arrasadora de contemplar, que num período da
existência da…. da pessoa fosse preciso assumir esse encargo, mesmo por
período temporário, por se ter chegado então à percepção de tudo. O que
ficava mais além eu não sei. Na ocasião achei que…. hum…. que o próprio
Deus era um louco…. por ter aquele imenso encargo de compreender e
governar e dirigir tudo…. hum…. e que todos nós tínhamos que subir,
chegando finalmente ao ponto em que precisávamos experienciar que nós
mesmos…. Sei que isto soa completamente louco a você, mas foi o que senti
na época”.
“Refere-se a “louco”, no sentido que as pessoas no estado em que você se
encontrava são consideradas loucas?”
“Sim, é o que quero dizer, ele era…. ele era louco. Tudo abaixo dele, ou
abaixo disso, que chegasse ao ponto onde ele se encontrasse…. tinha que
tratá-lo assim, porque era ele quem estava aguentando tudo naquele
momento…. e a…. a viagem ali estava e cada um de nós precisava fazê-la
e…. hum…. tudo…. não se pode fugir a ela…. a finalidade de tudo, de toda a
existência é…. prepará-la para dar mais um passo, e mais outro, e mais outro,
e assim por diante….”

Jesse achou que esta experiência era um palco que todos precisavam
atravessar de um modo ou de outro, a fim de alcançar um estágio mais
elevado de evolução.

“…. é uma experiência que…. hum…. precisamos viver em determinado


estágio, mas só uma vez…. e que…. muito mais…. um número fantástico
de…. coisas precisam impor-se a nós até que gradualmente nos preparemos a
uma aceitação da realidade, a uma aceitação cada vez maior da realidade e do
que realmente existe…. e que qualquer fuga só poderia…. adiar, e é
exatamente como se a pessoa se fizesse ao mar num barco incapaz de
enfrentar as tempestades que poderiam surgir”.

Finalmente sentiu que não poderia “aguentar” mais e decidiu voltar.

“A enfermeira contou-me que às vezes eu os fazia ficar acordados à noite,


conversando. Eles…. colocaram-me numa cela acolchoada e eu disse: “Não
me coloquem aí”. Eu disse, eu disse: “Não suporto isso”. Mas responderam:
“Você…. precisamos experimentar isto porque você faz muito barulho à
noite…. , falando”. Então colocaram-me naquele lugar e eu disse: “Bem,
deixem a porta aberta”, então eles deixaram a porta aberta, e lembro-me de
ter passado aquela noite lutando com…. com algo que queria…. uma espécie
de…. curiosidade, ou disposição para abrir-me a…. hum…. sensações, e com
o pânico e a deficiência de espírito que não me permitiriam senti-las. E foi
então que eu percorri…. percorri a Via-Sacra, embora nunca tivesse sido o
que se possa chamar uma pessoa realmente religiosa…. como não sou
agora…. e eu passei por todas…. todas essas sensações. Bem, esta…. toda
esta experiência veio a ser…. prolongou-se por muito tempo e eu comecei
a…. continuaram a dar-me sedativos para dormir e eu…. certa manhã decidi
que não tomaria mais sedativos e que precisava acabar com aquela história,
porque não podia mais aguentar….”

O REGRESSO
“Sentado na cama pensei, bem, seja lá onde for, preciso reunir-me ao meu
self presente…. preciso muito. Então, sentado na cama, apertei os punhos
com força. E a enfermeira que acabava de entrar disse: “Quero que você tome
isto” e eu respondi: “Não vou tomar porque eu iria…. quanto mais tomo isto,
menos capaz sou de fazer qualquer coisa agora…. isto é, eu me afundarei”.
Então, sentando na cama de mãos entrelaçadas…. creio que era um modo
desajeitado de unir-me ao meu self presente, fiquei repetindo meu próprio
nome e de repente, sem mais nem menos…. compreendi que tudo estava
terminado. Todas as experiências estavam encerradas e era um final…. um
final dramático para tudo aquilo. E havia lá um médico que fora oficial da
marinha…. contra-almirante cirurgião…. cirurgião contra-almirante e ele e eu
nos tornamos amigos porque conversávamos sobre o mar, de vez em quando.
E a enfermeira entrou e disse: “Você não tomou o remédio”, e eu respondi:
“Já disse que não vou tomar”, e ela falou: “Bem, tenho que chamar o
médico”, e eu disse: “Então chame o médico”. O médico veio e eu disse:
“Não quero mais o sedativo. Sou perfeitamente capaz de…. controlar as
coisas normalmente agora”. E acrescentei: “Estou bom”. Ele olhou para mim,
fitou-me nos olhos e disse: “Ah, estou vendo”. E riu. Foi assim que aconteceu
e daquele momento em diante eu…. nunca mais tive nenhuma daquelas
sensações….”

Jesse tinha vencido a experiência.

“Mas às vezes era tão…. hum…. devastador, que forçava meu espírito até
o extremo e eu temia tornar a penetrar naquilo….
“De repente, defrontei-me com algo muito maior que a minha pessoa,
com tantas experiências, com tanta percepção, tanta coisa, que não foi
possível aguentar. Era como algo macio caindo numa bolsa de pregos….
“Eu não tinha capacidade para senti-lo. Senti-o por um momento ou dois,
mas era como uma súbita rajada de luz, vento, ou seja, o que tenha sido,
incidindo contra a pessoa, de maneira que ela se sentia demasiado despida e
sozinha para suportá-lo, não tendo forças para tanto. Era como uma criança
ou um animal subitamente surpreendido…. ou tornando- se cônscio de….
experiências adultas, por exemplo. A pessoa adulta passa por muitas
experiências durante a vida, aumenta gradualmente sua capacidade de
experienciá-la e de contemplar as coisas…. e…. compreendê-las,
experienciando-as mesmo por uma variedade de motivos, por razões
estéticas, artísticas, religiosas, por todos os tipos de razões pelas quais
experienciamos as coisas e…. se uma criança ou animal, digamos, se vissem,
de repente, diante de tudo isso, não poderiam aguentar por não serem
bastante vigorosos, não estarem preparados para tal. E eu enfrentava coisas
para as quais não estava preparado. Era demasiado manso, demasiado
vulnerável”.
Uma pessoa nesse estado pode ser “difícil” para as outras, sobretudo
quando a experiência ocorre no contexto incongruente e bizarro dos
manicômios como eles são no momento. O verdadeiro médico-sacerdote
possibilitaria à pessoa passar por tais experiências antes de chegar a
extremos. É preciso estar morrendo de desnutrição para que sirvam comida a
alguém? Jesse Watkins, porém, teve mais sorte do que muitos pacientes
teriam agora, pois parece que recebeu relativamente poucos sedativos e não
foi submetido a nenhum “tratamento” na forma de eletrochoque,
congelamento, etc.
Certa vez, foi simplesmente colocado numa cela acolchoada, quando se
mostrou importuno para os outros.
Se tivesse que enfrentar as “modernas” formas de “tratamento”
psiquiátrico é provável que a experiência fosse excessiva para ele.

“…. Eu teria que…. Eu me sentia como se quisesse desistir de tudo para


não ter consciência de nada, encolher-me e…. hum…. deixar de existir, por
assim dizer.
Sentia ser incapaz de resistir mais, por ter passado…. por ter passado por
tanta coisa, e acho que chega um ponto em que a pessoa simplesmente não
aguenta mais e precisa desistir, só que não é possível. E se eu não podia
aguentar mais, deveria…. não sei o que poderia ter acontecido…. talvez a
sensação de uma súbita parada, e se…. se fizessem isso comigo, não sei o que
seria capaz de fazer…. como teria enfrentado a situação, não estando fechado
naquele quarto…. e é claro que o quarto em si, isto é, com as paredes e o piso
marrons, acolchoados, e tudo o mais….”

Perguntei-lhe que princípios, na sua opinião, deveriam sublinhar os


cuidados proporcionados durante uma viagem dessas.

“…. a pessoa é como um navio numa tempestade. Lança uma âncora que
ajuda a embarcação a enfrentar a tempestade, mantendo-a de proa para o
vento, e proporciona também uma sensação de conforto…. aos que se
encontram a bordo pensar que lançaram uma âncora de salvação que não está
presa ao fundo, mas que faz parte do mar…. que permite sobreviver…. e
enquanto pensarem que sobreviverão no barco, conseguirão viver a
experiência da tempestade. Gradualmente começam a…. sentem-se muito
felizes com ela, embora a âncora possa ter-se rompido, ou algo assim. Acho
que se uma pessoa tivesse que…. passar por este tipo de experiência,
precisaria de…. ter uma das mãos livres para si mesma, por assim dizer, e a
outra livre para a experiência. Ela conseguirá…. creio, se quiser
sobreviver…. sair do plano presente onde se encontra…. por causa de tudo o
que desapareceu antes, e gradualmente vão surgindo os…. os recursos
necessários para enfrentar a situação presente. Ela não está preparada para
qualquer coisa assim, não muito. Algumas encontram- se mais preparadas,
outras menos…. mas é preciso algum apoio, uma espécie de âncora de
salvação, ligada ao presente…. e a ela própria, como ela é…. para poder
experienciar ao menos um pouquinho do que terá que experienciar”.

“Então, devia haver outras pessoas que de certo modo velassem por
você….”
“Outras pessoas em quem você confiasse, que sabem que você precisa
receber cuidados e não permitam que você corra à deriva e naufrague. É….
hum…. uma simples questão de…. você vê, eu acho que…. que essa história
de experienciar é uma questão de preparar o próprio espírito. Porque eu me
lembro …. para fazer uma analogia normal…. de que quando embarquei pela
primeira vez, rapaz de dezesseis anos, e fomos ao norte da Rússia, passando
por tempestades extraordinárias, quando o mar varria o convés e o navio
jogava de maneira terrível, não havia comida. Eu nunca passara por uma
coisa dessas na minha vida, porque nunca estivera em colégio interno,
estudara perto de casa, frequentando um externato e nunca estivera muito
longe de minha mãe. E o súbito impacto daquela vida rude e aterrorizante foi
um pouco mais do que eu poderia aguentar naquela época…. e…. mas
depois, gradualmente, quando comecei a embarcar com mais frequência, a
princípio comecei a…. a ser, ou fingir que era corajoso. Aos poucos
principiei a enfrentar tudo, e o que me consolava às vezes era o fato que
outras pessoas suportavam, viviam aquilo…. naquele ambiente e pareciam
estar muito bem. Não me manifestaram simpatia, ninguém era compreensivo
com ninguém, cada qual por si…. entregue aos próprios recursos para
enfrentar a situação. E eu a enfrentei e então, é claro, rememorando após
tantos anos, lembro-me das vezes em que senti muito medo, numa grande
tempestade…. hum…. mas pensava…. pensava muitas vezes que depois de
ter vivido essas tempestades, eu estaria preparado para enfrentá-las com
experiência…. mas pensava também no tempo em que era garoto, e
embarquei pela primeira vez, na primeira semana…. porque na primeira
semana em que estive no mar passamos por uma extraordinária tempestade
de vento, a cozinha de bordo foi arrasada, não havia comida, tudo ficou
molhado, o navio jogava e corremos perigo de naufragar…. senti tanto medo
simplesmente por não estar preparado para enfrentar aquilo. Suponho ser esta
a melhor analogia do que senti então…. ter que enfrentar subitamente
aquela…. aquela enormidade de conhecimentos.
“…. creio que…. aqueles dez dias e o que vivi então fizeram-me
progredir muito. E lembro-me que quando saí do hospital, fiquei internado
uns três meses ao todo, e ao sair tive repentinamente a impressão de que tudo
era muito mais real…. do que antes. A relva era mais verde, o sol brilhava
mais, as pessoas eram mais vivas, eu as via com mais clareza. Notava o que
havia de mau e de bom em tudo isso. Estava muito mais alerta”.

Há muita coisa que se precisa escrever com urgência sobre esta e outras
experiências similares. Mas pretendo confinar-me a umas poucas questões de
orientação fundamental.
Já não podemos considerar esta viagem como uma doença que precisa ser
curada. No entanto, as celas acolchoadas estão agora ultrapassadas, graças a
métodos “mais avançados” de tratamento.
Se conseguirmos nos desmistificar, veremos os “tratamentos”
(eletrochoques, tranquilizantes, congelamento — às vezes até a psicanálise)
como meios de impedir a ocor- rência desta sequência.
Não vemos que não é desta viagem que precisamos curar-nos, mas que
ela é, em si mesma, um meio natural de curar o nosso espantoso estado de
alienação chamado normalidade?
Noutras épocas, as pessoas embarcavam intencionalmente nesta viagem.
Ou, caso se encontrassem já embarcados, fosse como fosse, davam graças
como se se tratasse de um favor todo especial.
Hoje, há quem ainda se aventure. Mas talvez a maioria se veja forçada a
sair do mundo “normal” ao encontrar-se numa posição insustentável. Sem
orientação48 na geografia do espaço e do tempo interiores, é provável que se
percam facilmente sem um guia.
No capítulo 5 fiz uma relação das diferentes características de tal viagem.
Parecem ajustar-se muito bem à experiência de Jesse Watkins. (Quando Jesse
me fez a sua narrativa, não só nunca discutira o assunto anteriormente, como
ele não lera nada do que eu havia escrito). Mas isto é apenas uma
aproximação experimental.49 Foi Jung quem abriu caminho, mas poucos o
seguiram.
Seria desejável que a sociedade estabelecesse locais com a finalidade
expressa de ajudar as pessoas a vencerem as tempestades de uma viagem
assim. Parte considerável deste livro foi dedicada a demonstrar por que isto é
improvável.
Neste tipo especial de viagem, a direção que precisamos tomar é para trás
e para dentro, porque indo para trás é que começamos a descer e a sair. As
pessoas dirão que regredimos, que nos afastamos, que estamos desligados
delas. É verdade que temos um longo caminho a refazer para entrar em
contato com a realidade de que há muito nos desligamos. E como são
humanas, interessadas e até mesmo porque nos amam, e estão assustadas,
tentarão nos curar. Talvez consigam. Mas ainda há esperança de que
fracassem.
A Ave-do-Paraíso
Jesus lhes disse:
Quando fizerdes de dois um e
quando tornardes o interior em exterior
e o exterior em interior e o acima
em abaixo, e quando
tornardes o macho e a fêmea num só,
de modo que o macho não será macho e
a fêmea não será fêmea, quando colocardes
os olhos no lugar de um olho, e a mão
no lugar de uma das mãos, e um pé no lugar
do pé, e uma imagem no lugar de uma imagem,
então entrareis no Reino.
EVANGELHO SEGUNDO TOMÉ

Eu o encontrava todas as noites. Rei coroado. Lutávamos todas as noites.


Por que ele precisava matar-me? Não. Não morrerei. Posso ser menor que a
cabeça de um alfinete, mais rijo que um diamante. Súbito, como se torna
gentil! Um dos seus truques. Fora com essa Coroa! Batam nele. Despedacem-
lhe o crânio. O rosto escorre sangue em abundância. Lágrimas? Talvez. Tarde
demais! Cortem-lhe a cabeça! Quebrem-lhe a espinha! Morra agora, ó Rei!

O caranguejo movimenta-se lentamente pela parede do quarto. Não é


horrível, não é nocivo. Aceitação. Surge outro e mais outro. Arre! Não, é
demais. Mate.
Súbito era um pássaro, tão frágil, tão belo — agora contorcendo-se em
agonia mortal. Que fiz eu? Mas por que fazer comigo este jogo? Por que
parecer tão feio? É sua culpa, sua culpa.

Meio-dia. Trânsito engarrafado. A princípio não descubro por quê.


Depois compreendo. Um cão magnífico, enorme, vagueia em círculos sem
rumo pela rua. Aproxima-se do meu carro. Começo a compreender que há
algo de terrível com ele. Sim, espinha quebrada, e quando ele descreve um
círculo, o lado esquerdo do focinho surge à vista — dilacerado,
ensanguentado, disforme, uma confusão, onde apenas o olho está intacto,
fixando-me sem órbita, sozinho, desligado. Uma multidão ajuntou-se rindo,
zombando do ridículo comportamento do desorientado animal. Os motoristas
buzinam e gritam para que ele saia do caminho. As balconistas saem das lojas
e dão risadinhas.
Serei eu aquele cão, e aqueles motoristas zangados e aquelas moças que
riem? Cristo estará me perdoando por tê-lo crucificado?
Glasgow.
Rua cinzenta.
Prédios inexpressivos, úmidos de chuvisco.
O vermelho se vê somente nas faces das crianças.
Luz esmaecendo de olhos ainda sorridentes….

DIÁLOGO EM GLASGOW

ELE (a uma garota que passa): Ei, boneca, vamos fazer amor?
ELA: Mas você não vai meter….

Estação de bondes em Glasgow, na década de 30, num domingo de


novembro à tarde. O fim.
Reboco caindo. Vidraças quebradas.
Cheiro de cortiço. Banheiros úmidos e nojentos num domingo de manhã,
impregnados de cerveja choca, de vômito, peixe e fritas.

Todo aquele papel de parede florido, os arremates, as cortinas e


venezianas. A moqueta de três partes inteiras.
Lareiras ladrilhadas, guarda-fogo, enormidade de linóleo fingindo piso de
tacos. O banheiro ladrilhado, com vitral e corrimão. Respeitabilidade. Ó
respeitabilidade!
A Sra. Campbell era uma simpática jovem mãe de dois filhos. Começara
repentinamente a perder peso, enquanto o abdome inchava. Mas não se sentia
muito mal.
O estudante de medicina precisava “fazer o histórico da doença”:
“Caí no erro de conversar com ela, e fiquei sabendo da meninazinha e do
menino, do casaco que ela estava tricotando, e assim por diante”.
Ela deu entrada em nossa clínica num domingo. Um sinal foi feito no
abdome para marcar onde ficava a borda inferior do fígado, que se
apresentava inchado.
Na segunda-feira, o fígado inchara e descera ainda mais. Mesmo câncer
não podia propagar-se àquela velocidade. A paciente devia estar sofrendo de
algo muito fora do comum.
O fígado continuou a crescer diariamente. Na quinta-feira tornou-se claro
que a doente morreria. Ela não sabia disso — e ninguém sonhou em dizer-
lhe.
– Decidimos que não precisa ser operada.
– Então, vou voltar para casa?
– Dentro de alguns dias. Agora precisamos mantê-la em observação.
– Mas vou receber algum tratamento?
– Não se preocupe, Sra. Campbell. Deixe isso conosco.
Precisamos fazer mais alguns exames.
Era provável que estivesse sofrendo de uma hemorragia no fígado. Mas
por quê? Metástase de um câncer situado em outro local? Mas onde? Todas
as partes do seu corpo haviam sido examinadas, apalpadas, o reto, a vagina, a
garganta, radiografias, exames de urina, fezes, sangue…. Um interessante
problema clínico.
Na manhã de sexta-feira, os estudantes encontraram um dos jovens
cirurgiões e o caso foi discutido. Ninguém vira coisa igual. Descobriríamos
na autópsia, naturalmente, mas seria bom se conseguíssemos fazer antes o
diagnóstico.
Alguém sugeriu um tumor na retina. Os olhos haviam sido
examinados…. Mas, às vezes, esses tumores são muito pequenos, fáceis de
passar despercebidos…. Quando fora examinada pela primeira vez, não se
havia procurado por isso especificamente…. Talvez…. Era uma possibilidade
remota. Quase hora do almoço. Nessa hora, mais de quinhentos estudantes
saíam correndo de suas aulas do prédio da universidade para o refeitório,
onde havia lugar para duzentos. Quem não chegasse no princípio da fila teria
que esperar uma hora, ou mais, e só se tinha uma hora de intervalo antes da
aula seguinte.
Mas arranjaríamos tempo de dar uma espiada nos olhos dela
Quando chegamos, as enfermeiras já a estavam preparando, amarrando-
lhe os tornozelos.
Merda, estava morta! Rápido, antes que a córnea ficasse nublada.
Olhamos nas profundezas dos olhos mortos. Mortos a alguns minutos apenas.
Examinar os olhos nessa hora é interessante — vê-se o sangue começando a
coagular nas veias da retina. Mas, afora isso, nada.
Merda, perdemos nosso maldito almoço.

Livraria, Glasgow. Exemplar habitual de Horizon, o último!

“É hora de cerrar as portas nos Jardins do Ocidente. De agora em diante,


um escritor será julgado pelas ressonâncias do seu silêncio e qualidade do seu
desespero”.
Muito bem — você não teve tiragem acima de oitenta mil exemplares.
Está sem dinheiro. Mas, seu miserável, fale por si mesmo. Cancele Horizon e
dê o fora. Não me exclua. Serei julgado pela minha música, não pelo meu
silêncio e pela qualidade de patéticos vislumbres de fé, esperança e caridade
que ainda existam em mim.

MARINHEIRO AMERICANO (para cabeludo de Glasgow):


Boneca, vou lhe dar algo que nunca teve na vida.
CABELUDO DE GLASGOW (para amiga): Ei, Maggie. Tem um
cara aqui com lepra.

Cinquenta cadáveres deitados na laje. Antes de terminarmos, cada um de


nós terá que conhecer intimamente um deles.
No final do trimestre, depois que todos estavam dissecados, reduzidos a
pedacinhos — de repente — parecia — ninguém soube como começou —
pedaços de pele, músculo, pênis, fígado, pulmões, coração, língua, etc., etc.,
começaram a voar por todos os lados, entre gritos e berros. Quem lutava
contra quem? Só Deus sabe.
O professor encontrava-se de pé à porta há algum tempo antes que sua
presença fosse sentida na sala. Silêncio.
“Vocês deviam envergonhar-se” — trovejou. “Como esperam que eles
consigam se recompor no dia do Juízo Final?”

Tinha dez anos e era hidrocéfalo devido a um tumor inoperável, do


tamanho de uma ervilha muito pequena, no local exato para impedir o fluido
cérebro-espinhal de sair da cabeça, o que equivale a dizer que tinha água no
cérebro e que esta lhe estava arrebentando a cabeça. O cérebro encontrava-se
tão distendido, que quase se esgarçava, assim como os ossos cranianos.
Sentia dor cruciante e ininterrupta.
Uma das minhas tarefas era enfiar uma longa agulha nesse líquido
crescente para fazê-lo escoar para fora. Tinha que ser feito duas vezes ao dia
e o fluido límpido que o estava matando jorrava contra mim, saindo da
imensa cabeça de dez anos, erguendo-se numa rápida coluna de vários
centímetros de altura, e às vezes alcançando-me o rosto. Casos assim eram
em geral menos aflitivos do que pareciam ser, porque a pessoa estava, com
frequência, muito dopada, perdendo parcialmente as faculdades. Há casos em
que uma operação adianta. Ele fora submetido a várias, mas o novo canal não
funcionara.
A condição pode ser às vezes estabilizada ao nível vegetativo crônico
durante uma infinidade de anos, de modo que a pessoa acaba parecendo não
sofrer. (Não desesperem, a alma morre antes do corpo).
Mas aquele garotinho inegavelmente suportava uma agonia. Chorava
baixinho de dor. Gritando ou se queixando …. Sabia que ia morrer.
Começara a ler The Pickwick Papers. A única coisa que pedira a Deus,
contou-me, foi terminar o livro antes de morrer.
Morreu antes de chegar ao meio.

Conheço tantas piadas sem graça. Pelo menos não fui eu quem as
inventou.
Jimmy McKenzie era uma peste no manicômio porque vivia respondendo
aos gritos às suas próprias vozes. Só ouvíamos um lado da conversa, é claro,
mas podíamos deduzir o outro em termos gerais, pelo que ele dizia:
“Fodam-se, miseráveis de mente suja….”
Decidiu-se a certa altura aliviar sua aflição e a nossa, proporcionando-lhe
os benefícios de uma leucotomia.
Observou-se uma melhora na situação.
Após a operação, ele já não xingava suas vozes, mas dizia: “Que é isso?
Repitam!
Falem mais alto, idiotas, não consigo ouvir!”
Estivéramos auxiliando um parto que se arrastara por dezesseis horas.
Finalmente a criança começou a aparecer…. cinzenta, escorregadia, fria….
saiu…. um grande sapo humano…. um monstro anencéfalo, sem pescoço,
sem cabeça, com olhos, nariz, boca imensa, longos braços.
A criatura nasceu às 9,10, numa clara manhã de agosto:
Talvez estivesse semiviva. Não quisemos saber. Enrolamo-la num jornal
e caminhei pela rua O’Connéll duas horas mais tarde com o embrulho
debaixo do braço para levá-lo ao laboratório de patologia, que parecia bradar
por todas as respostas respondíveis que eu jamais formulara.
Precisava de um drinque. Entrei num bar, coloquei sobre o balcão o
embrulho. Súbito senti o desejo de abri-lo, de mostrar a todos aquela horrível
cabeça de Górgona, de deixar todo mundo petrificado.

Eu seria capaz de mostrar o local exato na rua, até o dia de hoje. Pontas
de dedos, pernas, pulmões, aparelhos genitais, tudo pensando.
Lá estão as pessoas na rua, eu as vejo. Dizem que são algo ali, algo que
atravessa o espaço, atinge os olhos, vai ao cérebro, e então ocorre alguma
coisa e por meio desse evento ocorrido no meu cérebro sinto aquelas pessoas
que se encontram lá fora, no espaço.
O “eu” que eu sou não é o “eu” que conheço, mas o “com quê” e o
“como” o eu é conhecido. Mas se este eu que é o “com quê” e o “como” não
for nada que eu conheça, então não é coisa alguma…. nada. Clique — abrem-
se as comportas — o corpo deita vísceras para fora.

Cabeça com pernas canta alegremente nas ruas, conduzidas por um


mendigo. A cabeça é um ovo. Uma velha estúpida racha a cabeça-ovo. Feto.
Seu canto é grito de inexprimível agonia. A velha ateia fogo no feto. Este se
remexe dentro da casca como se estivesse numa frigideira. Comoção. Sua
agonia e impotência são indescritíveis. Estou em chamas, não posso mover-
me. Há gritos de “Está morto!”. Mas o médico declara que ainda está vivo e
ordena que o levem para o hospital.

Dois homens sentados um diante do outro e ambos são eu. Silenciosa,


meticulosa, sistematicamente estouram os miolos um do outro com tiros de
pistola. Parecem perfeita- mente intactos. Devastação interior.

Olho ao redor para a Cidade Nova. Uma pena que todas aquelas vísceras
e abortos estejam espalhados pelas sarjetas limpinhas. Isto parece um
coração. Está pulsando. Começa a movimentar-se sobre quatro perninhas. É
nojento e grotesco. Abortos de carne vermelha, lembrando os de um cão, mas
ainda vivos. Cão estúpido, espoliado, abortivo persistindo em viver. Contudo,
a única coisa que me pede é que eu permita que ele me ame, e nem mesmo
isso.
Coração surpreendido, coração amante não amado, coração de um mundo
sem coração, doido coração de um mundo que morre.

jogando o jogo da realidade sem cartas reais na mão.


Corpo destroçado, despedaçado, reduzido a pó, membros doloridos,
coração perdido, ossos pulverizados, náusea vazia no pó. Desejo de vomitar
até os pulmões. Por toda parte sangue, tecidos, músculos, ossos em
desespero, frenéticos. Exteriormente tudo está silencioso, calmo como
sempre. Sono. Morte. Pareço estar muito bem.

Aquele doido grito silencioso na noite. E se eu arrancasse os cabelos e


saísse correndo nu, gritando pelas ruas Suburbanas, em plena noite?
Despertaria algumas pessoas cansadas e seria internado num manicômio.
Com que finalidade?

Cinco da manhã: abutres rondam a minha janela.

Majestosa floresta, dia quente de verão. Árvores orgulhosas, bem


mergulhadas na terra, arranhando o céu, altas, poderosas. Uma floresta em
todo o seu esplendor….
Surgem os lenhadores. Serram e abatem as árvores. Quem consegue
suportar ou fugir à agonia daquelas serras? As árvores são abatidas —
processadas em serrarias, cortadas, cortadas e cortadas, finalmente reduzidas
à serragem cada vez mais fina, cada vez menor, menor, menor, dissolvendo-
se na matéria do mundo inteiro.
O Lótus abre-se. Movimento da terra, através da água, movimento do
fogo para o ar. Fora e dentro, para além da vida e da morte, para além do
interior e do exterior, do sensato e do insensato, do sentido e da futilidade, do
macho e da fêmea, do ser e do não-ser, da luz e da escuridão, do vácuo e da
plenitude. Para além de toda dualidade, ou não-dualidade, para além, mais
além. Desencarnação. Volto a respirar.
Quanto mais penetro a realidade, grande ou pequena, tanto maior me
parece o nada, quanto mais penetro as profundezas do átomo ou do espaço,
tanto mais encontro o nada. O Portal do Último Juízo de Autun e o centro de
um átomo são idênticos. Meu Jesus. Êxtase. Espuma cósmica e borbulhas do
movimento perpétuo da Criação Redenção Ressurreição Juízo Final e
Primeiro e Último Começo e Fim são Um Mandala da Flor Atèmica do
Cristo. O fundo da agulha é aqui é agora. Duas batidas cardíacas enlaçam o
infinito. O que sabemos são espumas e borbulhas.
Luz. Luz do Mundo, que me irradia e brilha através de meus olhos. Sol
interior que me abrasa, mais brilhante que dez mil sóis.
Terror de ficar cego, calcinado, destruído. Agarro-me a mim mesmo.
Caio. Caio longe da Luz, nas Trevas, longe do Reino, no exílio, longe da
Eternidade, no tempo, longe do Céu, na terra. Longe, longe, longe, para fora
e para baixo, através e para além de galáxias de estrelas, cores, gemas,
através e para além do início das questões. Os dedos da mão começam a lutar
entre si. Inícios de deuses — cada plano de ser ansiando agora por um plano
mais baixo — deuses lutando e se amando até a encarnação. Semideuses,
heróis, mortais. Carnificina. Chacina do espírito no horror derradeiro da
encarnação. Sangue. Agonia. Exaustão do espírito. Luta entre a morte e o
renascimento, enervamento e regeneração.
Vômito cósmico, esperma, esmegma, diarreia, suor — de qualquer modo
uma partícula insignificante a caminho da saída….
A visão terminou, recomeço a sonhar. Concussão. Fragmentos de
memória. Pobre Casca de Ovo amassada. Hemorragia temporal no corpo da
Eternidade.
Começo a pensar de novo — a compreender, a fazer conexões, a reunir, a
recordar….
Apenas a lembrar de lembrar, ou pelo menos lembrar que esqueci….
Cada esquecimento é um desmembramento.
Nunca mais devo esquecer. Toda aquela busca e rebusca dos falsos
pontos de referência, o perigo terrível de esquecer que se esqueceu. É tão
horrível.
Por detrás, acima, além e no homem, a guerra prossegue. O homem, eu e
você, não somos o único local de batalha, mas ele é uma de suas regiões.
Mente e corpo estão dilacerados, rasgados, despedaçados, exauridos por esses
Poderes e Principados em seu conflito cósmico, que não podemos sequer
identificar.
Somos os despedaçados, abalados, dementes restos de um exército
outrora glorioso. Entre nós xistem Príncipes e Capitães de Exército, Senhores
de Batalhas, amnésicos, afásicos, atáxicos, tentando desajeitadamente
recordar o que era a batalha cujos sons vibram ainda nos seus ouvidos — a
batalha continua? Se pudéssemos entrar em contato com o Estado Maior,
recuar para reunir-nos ao grosso do Exército….
Um soldado contra a Parede nos mais longínquos confins do Império,
olhando em direção às trevas e ao perigo. O camarada mais próximo não está
à vista. Não devo desertar. Serei novamente chamado pelo Capitão, muito
breve.
Tateios, orientação, migalhas, fragmentos, peças de quebra-cabeça,
alguns devaneios dementes que podem ajudar na reconstituição da mensagem
perdida. Começo a recuperar a memória, começo a compreender que estou
perdido, começo a perceber leves sons de uma música familiar — fragmentos
de velhas canções, momentos de déjà-vu, o redespertar de uma longa agonia
entorpecida — uma insuportável compreensão daquilo que é uma derrocada,
que confusão, que traição, horror, estupidez, ignorância, covardia, cupidez,
maldita ambição. Leve recordação de uma louca nostalgia pelo Reino, o
Poder e a Glória, Paraíso Perdido
Nós, vagabundos, perdemos de tal modo o bom-senso que não sabemos o
que roubar, ou mesmo como mendigar. Somos despojados. Ruínas.
Peixes atirados à praia, debatendo-se nas ânsias da agonia, esfregando-se
uns nos outros em busca de seu próprio visco. Não seja um peixe tímido. Não
é tempo de dignidade ou heroísmo. Nossa maior esperança está na covardia e
na traição. Eu preferiria estar pálido a estar morto.
Pleno oceano. Naufrágio. Sobreviventes recolhidos. A tripulação é salva,
mas não o Capitão-Governador-Chefe. O navio salvador afasta-se do local.
Oceano vazio, parado, desolado. Esteira lenta na superfície. De repente, qual
pássaro, mergulho. Lá está o capitão. Morto? Um boneco encharcado,
semiboiando, nada mais. Se já não está, não está, parece que se afogará muito
breve. Súbito, é atirado a uma aldeia de pescadores. Os pescadores não sabem
se ele está morto ou vivo, um capitão, um boneco, ou um estranho peixe.
Surge um médico, abre-o como a um peixe, desventra-o como se fosse um
boneco, No interior há um homenzinho cinzento, encharcado. Respiração
artificial. Movimenta-se. Enrubesce. Talvez se salve.
Como preciso ser cuidadoso!. Por um triz! Se pelo menos fosse o Rei que
estivesse regressando. O Capitão vindo para assumir o comando. Agora
posso recomeçar. Pôr as coisas em ordem. Consertos, reconstruções, projetos.
Planos. Campanhas, naturalmente.
Existe uma outra região da alma chamada América.
É impossível expressar a América. Aquela última noite foi uma reunião
muito inteligente tão branca tão judia que comecei a perceber estar sentado
junto de um busto de algo parecido com terracota um buda talvez. Estava
calmo nada dizendo nem fazendo e comecei a perceber que havia uma luz
saindo do alto de sua cabeça, uma lâmpada elétrica de sessenta watts na
verdade não estou brincando era um abajur.
Que merda faz você com um abajur de buda? Ora, aquilo não é um buda,
é uma deusa qualquer.
Preside a América um impotente feminino que ri como Buda — gordo
além de toda razão ou imaginação — dobrado em miríades de pregas e
convoluções. A gordura fica nas voltas. Este Buda feminino compõe-se de
uma sujeira cósmica que está agora ardendo em monstruoso desejo
pruriginoso. Milhões de homens caem sobre ela para foder e acabar com o
seu indizível e insaciável prurido Obsceno. Perdem-se todos no pantanal
infindável, pegajoso, gorduroso de seus râncidos recessos.
Este escrito não é exceção. Permanece, como todos os escritos, um
absurdo e revoltante esforço para deixar marcas num mundo que permanecerá
tão indiferente quanto ávido. Se eu pudesse despertar você, arrancá-lo à sua
miserável opinião, se pudesse falar- lhe, eu lhe contaria.
Quem não se empenha em tentar produzir uma impressão, deixar marcas,
gravar sua imagem sobre os outros e no mundo — imagens gravadas, mais
apreciadas do que a própria vida? Queremos morrer deixando nossa marca no
coração dos outros. Que seria a vida se não houvesse ninguém para nos
recordar, para pensar em nós quando ausentes, para nos conservar vivos
depois de mortos? E quando morremos, súbita ou gradualmente, nossa
presença, espalhada por dez ou dez mil corações, se desvanecerá e
desaparecerá. Quantas velas em quantos corações? Deste material é feita a
nossa esperança e o nosso desespero.
Como selar um vácuo selando um vácuo? Como injetar o nada em toda
essa merda? Como penetrar num mundo desaparecido? Nenhum mijo, merda,
esmegma, esperma, mucóide, viscóide, macio ou rijo, ou mesmo lágrimas de
olhos, ouvidos, traseiro, chochota, cacete, narinas, de homem ou de
crocodilo, tartaruga, ou filha, que feche o Buraco. Já se ultrapassou tal
possibilidade, o último e desesperado amplexo. Entrar no que se foi. Garanto
que sim. O medonho já aconteceu.

Ruínas
O velho estilo
E todos aqueles queridos….

Quero que você me prove e me cheire, quero ser palpável, entrar sob sua
epiderme, ser uma coceira no seu cérebro e nas suas vísceras, que você não
conseguirá anular nem atenuar, que corromperá e destruirá você, levando-o à
loucura. Quem é capaz de escrever com compaixão, sem qualquer
adulteramento? Toda prosa, toda poesia, na medida em que não for
compaixão, será um fracasso.
Alerta. Cuidado. Calma. Precaução. Não tente demais, não explore.
Mantenha o seu lugar, não provoque confusão. Lembre-se de que suas mãos
estão tintas de sangue, não seja demasiado ousado, ou ambicioso. Não seja
emproado. Lembre-se de seu lugar na hierarquia, não tente sair dele, não grite
por aí, não faça poses, não seja afetado, não pense que conseguirá sair
impune, você já foi pisoteado, não tente desculpar-se. Não role por aí. A
quem está procurando enganar? Um pouco de humildade, uma fração de
amor, um grão de pó, disseram-lhe tudo o que você precisa saber, você
recebeu sua justa parte, não tente a paciência dos deuses. Cale-se e continue.
Lembre-se. Não resta muito tempo. O dilúvio e o fogo já nos estão
alcançando.

Sim, há momentos,
Às vezes,
de magia
Guincho com um sorriso
Nada mais próprio do homem
Aquela melancólica fraqueza
Aquela mansa nostalgia

lch grolte nicht

Ternura é também possível


Ah, ternura

Vagueando
Súbito defronto-me com uma de minhas infâncias
Preservada do esquecimento
Para este momento em que é mais necessária

ELE E ELA
Uma triste cançãozinha
Tateia tão hesitante em direção
á nossa intocável felicidade,
Seu gentil sorriso oferece com tato Consolo que não pedimos.
ELA: Meu coração está cheio de cinzas e raspas de limão.
ELE: Não vá muito longe.
ELA: Entrarei no meu self. Você sempre me encontrará ali.
ELE: Se eu amasse o mundo inteiro como amo você,
morreria.
Florestas e cataratas de complicadas e intersticiais
paisagens,
Cascatas e quedas-d’água através e para além de cotovelos,
até promontórios de dedos,
Estrelas de nervos, artérias de champanha,
A imagem dela faz pulsar a ponta dos meus dedos,
Desenrosca minha carne encolhida,
Toca o nervo perdido da coragem,
Incita um certo gesto de encantamento
A aventurar-se a ser.

A dança principia. Vermes sob as pontas dos dedos, lábios começando a


pulsar, dor de coração e garganta constrita. Tudo um tanto fora de compasso
e desafinado, cada qual com seu ritmo e tempo. Lentamente, conexões. Lábio
a lábio, coração a coração, encontrando-se no outro de maneira medonha,
hesitante, ardente…. notas encontrando-se em acordes, acordes em
sequências, cacofonia transformando-se em coro polifônico de contraponto,
em diapasão jubiloso.
Ondas dançantes de altos e baixos fluidos, de lábios e mamilos, dedos,
espinhas, coxas, rindo, interligando-se, intermisturando-se, fundindo-se e
tocando-se num ponto, a extrema alegria e contentamento, vida encantadora,
leve, difundindo um frescor novo cada vez mais agressivo. Sim, isto é
possível, de onde ou para onde não é mais preciso indagar ele ou ela, você ou
eu tornam-se nós — mais que um momento nosso e um declive não muito
desesperador. Que mais resta a perguntar?
A maré de um milhão de quilômetros de altura movimenta-se com a
velocidade da luz. Impossível ir acima ou abaixo, fugir, desviar-se para a
direita ou a esquerda. O Governo queima a terra com lança-chamas, terra
transformada em deserto, para absorver a água. Fogo contra água. Não entre
em pânico.
Mármore trabalhado no portão do Sexto Céu poderá confundir-se com
água.
Jardim. Gato contra ave. Saia, gato mau e agarre uma ave. Como é
fugidia e eu me estou transformando também num gato. Pare. Um gato é um
gato e uma ave é uma não-ave de espaço inefavelmente frágil, ampliando-se
subitamente em graça parabólica cheia de autoridade. Que tolice preocupar-
se, tentar salvá-la ou agarrá-la. Talvez o gato estivesse tentando salvá-la.
Deixe. Gato e ave. Begriff. A verdade que estou tentando apreender é o
amplexo que está tentando apreendê-la.
Vi a Ave do Paraíso, que se abriu diante de mim, e jamais voltarei a ser o
mesmo.
Não há o que temer. Nada.
Exatamente.
A vida que estou tentando entender é o eu que está tentando entendê-la.
Não há realmente nada mais a dizer ao voltarmos àquele início de todos
os inícios, que é o nada total. Só quando se começa a perder aquele Alfa e
ômega é que se principia a falar e escrever, e então não há mais fim, palavras,
palavras, palavras. No melhor dos casos serão talvez in memoriam,
evocações, conjurações, encantamentos, emanações, fulgurações, chamas
iridescentes no firmamento da escuridão, um tato ainda praticável,
indiscrições talvez perdoáveis….
Luzes da cidade à noite, vistas do alto, afastando-se, como estas palavras,
átomos contendo cada qual o seu mundo e todos os outros mundos. Cada qual
um estopim para fazer você explodir….
Se eu pudesse colocá-lo em funcionamento, se pudesse arrancá-lo à sua
desgraçada mente, se pudesse falar, eu lhe contaria.
Este livro foi produzido
nas oficinas gráficas da
Editora Vozes Limitada no
ano do Tricentenário da
emancipação da Província
Franciscana da Imaculada
Conceição do Brasil.

Rua Frei Luís, 100 Tel.:


42-5112
Caixa Postal 23.
End. Telegr.: Vozes
25.600 Petrópolis, Estado do
Rio
C.G.C. 31.127.301/0001
Inscr. Est. 39.030.164

Filiais:
Rio de Janeiro:
Rua Senador Dantas, 118-
1
Tel.: 242-9571
São Paulo:
Rua Senador Feijó,
158/168
Tels.: 33-3233 - 32-6890
Belo Horizonte:
Rua Tupis, 85
Loja 10
Tel.: 22-4152
Porto Alegre: Rua
Riachuelo, 1280 Tel.: 25-1172
Brasília:
CRL/Norte - Q. 704 Bloco
A, Nº 15
Representantes:
Recife: NORDIS-Nordeste
Distribuição de Editoras Ltda.
Rua da Conceição, 106. Tel.:
21-4306 Fortaleza: Ceará Ciência e
Cultura Ltda
Rua Edgar Borges, 89. Tel.: 26-
7404
Notas
[←1 ]
É possível que a teoria dialética encontre sua verdade presente na sua própria impotência.
Consultar Herbert Marcuse, One- Dimensional Man (Routledge & Kegan Paul, Londres, 1964). Não é
o meu ponto de vista.
[←2 ]
Para quem queira uma análise erudita da alienação nos sentidos psicológico e clínico, consultar
Joseph Gabel, La Fausse Conscience (Les Éditions de Minuit, Paris, 1962). Consultar ainda Michel
Foucault, Madness and Civilisation (Pantheon Books, Nova Iorque, 1965; Tavistock Publications,
Londres. 1966).
[←3 ]
É tarde demais para reexaminar o terreno percorrido pelos pensadores dos últimos 150 anos que
expuseram a natureza da alienação, especialmente em relação ao capitalismo (Penguin Books, Londres,
1963), sobretudo o capítulo 3, “Arte e capitalismo”.
[←4 ]
No verbete “pessoa”, o Oxford English Dictionary apresenta oito variações: papel representado
num drama, ou na vida; ser humano individual; o corpo vivo de um ser humano; a personalidade real de
um ser humano; um ser humano ou corpo, ou corporação com deveres e direitos reconhecidos por lei;
no sentido teológico, as três pessoas do Ser Divino; no sentido gramatical, cada uma das três classes de
pronomes e distinções correspondentes nos verbos, que indicam a pessoa que fala, isto é, na primeira,
segunda e terceira pessoas respectivamente, etc.; no sentido zoológico, cada indivíduo de um composto,
ou organismo colonial — um zoóide. Como nos referimos aqui aos seres humanos, nossas duas
variações mais importantes são a pessoa como persona, máscara, papel representado; e a pessoa como
um self real.
[←5 ]
Consultar R. D. Laing, O Eu e os Outros (Tavistock Publications, Londres, 1961; Quadrangle
Press, Chicago, 1962; Editora Vozes, Petrópolis, 1972), em especial a 1ª Parte.
[←6 ]
Erving Goffman, Encounters: Two Studies in the Sociology of Interaction (Bobbs-Merrill,
Indianapolis, 1961), p. 41.
[←7 ]
A teoria das defesas transpessoais pode ser encontrada em forma mais elaborada em R. D.
Laing, H. Phillipson and A. R. Lee, Interpersonal Perception: A Theory and a Method of Research
(Tavistock Publications, Londres, 1966).
[←8 ]
R. D. Laing, “Mistificação, confusão e conflito”, em Intensíve Family Therapy, publicado) por
Ivan Bszobrmenyi-Nagy e James L. Framo (Harper & Row, Nova Iorque, 1965).
[←9 ]
The Journals of Jean Cocteau, trad. por Wallace Fowlie (Indiana University Press,
Bloomington, 1964).
[←10 ]
Do ponto de vista do psicoterapeuta.
[←11 ]
The Divided self, Tavistock Publications, Londres, 1960; Penguin Books, 1965; trad. brasil.,
Editora Vozes, Petrópolis, 1973.
[←12 ]
Frantz Fanon, The Wretched of the Earth (MacGibbon and Kee, Londres, 1965); também Frantz
Fanon, Studies in a Dying Colonialism (Monthly Review Press, Nova Iorque, 1965).
[←13 ]
T. Lidz, The Family and Human Adaptation (Hogarth Press, Londres, 1964), p. 54.
[←14 ]
Idem, p. 34
[←15 ]
Idem, p. 28-29
[←16 ]
Idem, p. 19
[←17 ]
E. Colby (ed.), The Life of Thomas Holcroft, continued by Wllliam Hazlitt (Constable & Co.,
Londres, 1925). Vol. II, p. 82.
[←18 ]
J. P. Sartre, Prefácio de The Traitor, de André Gorz (Calder, Londres, 1960), p. 14-15.
[←19 ]
J. Henry, Culture Agalnst Man (Random House, Nova Iorque, 1963), p. 293.
[←20 ]
Idem, p. 27.
[←21 ]
Idem, p. 295-6.
[←22 ]
Idem, p. 288,
[←23 ]
Noutra obra planejei um esquema para abordar estas questões. Baseia-se em teorias de diversos
pensadores, sobretudo Durkheim, Sartre, Husserl, Schultz, Mead e Dewey. Consultar R. D. Laing,
H, Phillipson e A. R. Lee, Interpersonal Perception: A Theory and a Method of Research (Tavistock
Publications, Londres, 1966; Springer, Nova Iorque, 1966).
[←24 ]
Laing, Phillipson e Lee, op. cit.
[←25 ]
O sociólogo Thomas Scheff observou que, embora todas estas células sejam empiricamente
possíveis em relações de duas pessoas, duas delas talvez sejam nulas em condições grupais, isto é,
PIA e PID.
[←26 ]
Consultar “Estrutura individual e familiar” em Psychoanalytical Studies of the Family,
publicado por P. Lomasz (Hogarth Press, Londres, 1966).
[←27 ]
Este capítulo em especial muito deve a Critique de la Raison Dialectlque (1960), de J. P. Sartre,
resumido em Reason and Violence (1964), Tavistock Publications, Londres, de R. D. Laing e David
Cooper.
[←28 ]
J. Haley, Strategies of Psychotherapy (Grune and Stratton, Nova Iorque, 1963), p. 99-100.
[←29 ]
Consultar Garfinkel, “Condições de cerimônias de degradação bem sucedidas”, American
Journal of Sociology, LXI, 1956, p. 420-424; e também Laing, “Ritualização no comportamento
anormal”, Ritualisation of Behaviour in Animais and Man (Royal Society, Philosophical
Transactions, Série B).
[←30 ]
Consultar T. Szasz, The Myth of Mental Illness (Secker & Warburg, Londres, 1962).
[←31 ]
R. D. Laing e A. Esterson, Sanity, Madness and the Family, Volume J: Families of
Schizophrenics (Tavistcck Publications, Londres, 1964; Basic Books, Nova Iorque, 1965), p. 4.
[←32 ]
E. Kraepelin, Lectures on Clinicai Psychiatry, editado por T. Johnstone (Baillière, Tindall and
Cox, Londres, 1906), p. 30-31.
[←33 ]
B. Kaplan (ed.), The Inner World of Mental Illness (Harper and Row, Nova Iorque e Londres,
1964), p. vii.
[←34 ]
E. Gofíman, Asylums. Essays on the Social Situation of Mental Patients and Other Inmates
(doubleday-Anchor Books, Nova Iorque, 1961), p. 303.
[←35 ]
E. Goffman, op. cit,, p. 306.
[←36 ]
G. Bateson, D. D. Jackson, J. Haley, J. e J. Weakland, “Esboços de uma teoria da
esquizofrenia”, Behavioral Science, Vol. L, nº 251, 1956.
[←37 ]
R. D. Laing e A. Esterson, Sanity, Madness and the Family (Tavistock Publications, Londres,
1964; Basic Books, Nova Iorque, 1965).
[←38 ]
Drs. David Cooper, A. Esterson e eu próprio.
[←39 ]
R. D. Laing (Tavistock Publications, Londres, 1961; Quadrangle Press, Chicago, 19&2); trad.
port.: Vozes, 1972.
[←40 ]
G. Bateson (ed.), Perceval’s Narrative. A Patient’s Account of his Psychosis (Stanford
University Press, Stanford, Califórnia, 1961), p. XIII-XIV, grifo meu.
[←41 ]
Consultar, por exemplo: Pekka Tienari, Psychiatric Illnesses in Identical Twins (Munksgaard,
Copenhague, 1963).
[←42 ]
T. Scheff, “Condições sociais da racionalidade: Como as cortes urbanas e rurais lidam com os
doentes mentais”, Amer. Behav. Scient., março de 1964. Também T. Scheff, “A reação societal aos
desviantes: elementos de atribuição no isolamento psiquiátrico dos pacientes mentais de um Estado
do Meio-Oeste”, Social Problems, Nº 4, primavera de 1964.
[←43 ]
H. Garfinkel, “Condições das cerimônias de degradação bem sucedidas”, American Journal of
Sociology, LXI, 1956.
[←44 ]
E. Goffman, Asylums. Essays on the Social Situation of Mental Patients and Other Inmates
(doubleday-Anchor Books, Nova Iorque, 1961).
[←45 ]
Consultar, por exemplo, a antologia: The Inner World of Mental Illness (ed. Kaplan, Harper and
Row, Nova Iorque e Londres, 1964) e Beyond Any Reason, de Morag Coate (Constable and Co.,
Londres, 1964: Lippincott, Filadélfia, 1965).
[←46 ]
General Psychopathology, Mancliester University Press, Manchester, 1962, p. 417-18.
[←47 ]
M. Eliade, The Two and the One (Harvill Press, Londres, 1965), em especial o capítulo I.
[←48 ]
Orientação significa saber onde está o oriente. No espaço interior é conhecer o leste, a origem e
fonte de nossa experiência.
[←49 ]
Quem quiser uma lúcida descrição autobiográfica de episódio psicótico que durou seis meses e
cuja função curativa é clara, veja Barbara O’Brien, Operators and Things (Elek Books Ld.,
Londres, 1958).

Você também pode gostar