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O que a psicanálise diz sobre psicose?

Freud diferencia a psicose da neurose em termos de uma perda de realidade


que se situa de maneira diferente em ambos os casos. Diante das
frustrações da vida, o neurótico se isola, se refugia na fantasia que é sua
realidade psíquica e, assim, mantém uma divisão possível entre o exterior e
o interior. O psicótico não tem essa possibilidade e, por não haver recinto
interior, está preso a um fora fantasmático que ele vive como real. Eis por
que a psicose é classicamente definida como doença caracterizada pela
perda do contato com a realidade. Lacan se aprofunda notavelmente nesses
mecanismos: se para o psicótico a realidade constitui um problema, não é
por um déficit, e sim pela falta de um significante que a ordene e lhe dê uma
significação que permita o laço social.
O tema vinculado à perda de realidade inquieta a todos os estudiosos da
psicose. Esclareçamos que a realidade está sempre alterada para os sujeitos;
somos todos delirantes nesse sentido, mas na neurose há uma distância que
preserva contra confundir o real com a própria “loucura”. A realidade que
aparece para o psicótico é uma realidade que lhe causa perplexidade e
desconcerto, porque falta essa significação que, embora relativa, faz com
que o neurótico possa descansar nela. Nesse sentido, o psicótico estaria
mais amarrado à realidade como realidade nua, desértica, que leva Freud a
falar de uma vivência de fim de mundo. Sobre esse vazio não semântico será
montado o delírio a seguir, como uma tentativa de produzir um sentido.
Tal lacuna na significação leva Lacan a falar da carência daquele significante
ao qual denomina significante do nome do pai, forcluído na psicose e
presente na neurose. Esse significante é o que sustenta nossa crença em um
senso comum e em determinados pilares sobre os quais se assenta nossa
existência. O dramatismo que sua ausência produz se revela, por exemplo,
em Schreber, quando, ao relatar o começo de sua doença, afirma que em
dado momento os relógios do mundo pararam, que houve um assassinato
de almas, que os homens pareciam feitos às pressas etc. É impossível
entender esse quadro sem situar o momento inicial, chamado de
desencadeamento, no qual o sujeito confronta uma situação que põe em
jogo, de maneira brutal, esse vazio na trama de um tecido que se desfaz.
Não havendo remendo possível, o desconcerto deixa o sujeito em um
estado de estupefação angustiosa ao enfrentar tal derrocada. As convicções
delirantes são secundárias. Em princípio, o psicótico não é aquele que sabe,
como acreditaria um exame fenomenológico; pelo contrário, é quem mais
se aproximou do buraco no saber. Ele tentará produzir um sentido mediante
a interpretação delirante, cujo eixo triunfa na paranoia e fracassa na
esquizofrenia.
Você sabia que… Freud começa suas elaborações com base nas
neuroses e que Lacan o faz com base nas psicoses?
O surgimento do termo psicose remonta ao século XIX, quando as doenças
mentais são erigidas em solo próprio, não só como diferentes das do
cérebro, ou dos nervos ou do corpo, mas daquelas que na tradição filosófica
foram chamadas de doenças da alma. É no fim desse século que se
estabelece na tradição psiquiátrica uma oposição entre neurose e psicose. O
termo designa a loucura sem fazer mais que descrever certas condutas que
aparentemente escapam do racional. A psicanálise descobre uma lógica
nessa “falta de razão”, lógica que encontra sua formulação-chave no estudo
que Freud faz do caso Schreber. Embora não tenha sido seu paciente,
escreveu um livro insuperável, Memórias de um doente dos nervos
(Schreber, 2010), que inspirou Freud, no qual relata, de forma profunda, os
sintomas da paranoia.
Schreber é um eminente jurista cuja carreira se vê interrompida por seus
surtos psicóticos. Seu livro ilustra de tal maneira as características do quadro
que quem queira conhecer suas peculiaridades encontrará ali uma
contribuição que supera a de qualquer manual. Voltemos a sua ideia sobre o
desaparecimento dos relógios do mundo: Koyré situa esse aparelho na
inauguração do universo de precisão, sem o qual não haverá possibilidade
de ciência exata. Esse instrumento é regulado segundo uma unidade de
tempo que podemos pensar como um simbólico compartilhado que volta
sempre ao mesmo lugar e que, nesse sentido, amarra-se a um real. A
abolição dessa marca será, para esse jurista, simultânea à afluência
constante e abundante de raios em relação ao corpo em um suntuoso
deslumbramento de manifestações luminosas. Assim, na psicose, o lugar no
qual se produz a lacuna será ocupado pelo gozo do Outro, que assumirá
diferentes formas: a erotomania, a perseguição.
Freud quer diferenciar o mecanismo que opera na neurose daquele que o
faz na psicose: para a primeira, propõe a repressão, e, para a segunda, a
rejeição [Verwerfung]. Por um lado, o reprimido retorna sob a forma das
diversas produções do inconsciente, e o sujeito, embora essas sejam
diferentes de seu eu consciente, aceita-as como próprias, provenientes de
seu “interior”. Por outro lado, quando o mecanismo é a rejeição, aquilo que
foi suprimido retorna do exterior, e o sujeito não o reconhece como próprio.
O exterior se torna um espaço forâneo e inquietante, persecutório e
inabitável, e diante disso Freud não se contenta com pensar em uma simples
“projeção”. Lacan chama esse mecanismo de forclusão.
Diferente de Freud, Lacan pensa em um tratamento possível para a psicose,
visto que dá extrema importância às suplências que o doente pode
empregar para compensar a derrocada subjetiva.
O termo forclusão resulta da tradução da palavra alemã Verwerfung,
empregada por Freud. Ele dedica toda a sua atenção à neurose, considerada
curável, em detrimento da psicose, que julga quase sempre incurável. Nesse
sentido, a neurose histérica das mulheres da burguesia vienense atendidas
por Freud e por Breuer não se parece com as “loucas” da Salpêtrière postas
em cena por Charcot, sem dúvida também histéricas, mas com limites
próximos da psicose. O encontro de Freud com a psicanálise se dá, por um
lado, no âmbito do consultório privado; o de Lacan, por outro lado, no
hospital Sainte-Anne. Os inícios são diferentes: um baseado na neurose, o
outro na psicose; e nos dois casos as mulheres são as protagonistas. Lacan
baseia suas primeiras pesquisas sobre o tema no estudo de dois casos que
na época abalam a comunidade: um é o de Aimée, mulher que feriu uma
atriz na saída de um teatro, e o outro de umas criadas, as irmãs Papin, que
mataram a patroa e sua filha e inspiraram a obra As criadas, de Genet.
O termo repúdio (forclusão) se origina no vocabulário jurídico. Significa o
encerramento de uma ação judicial na qual uma das partes não respeita os
prazos legais para cumprir certas formalidades. A parte em questão fica
excluída do direito de discutir no âmbito de um litígio, em virtude de não ter
respeitado tais prazos; declara-se “a foro exclusio”; daí o termo repúdio, ou,
mais exatamente, forclusão, que Lacan introduz na psicanálise.

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