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A demissão do outro na esquizofrenia

A esquizofrenia e a linguagem

Podemos dizer que os esquizofrênicos, ao contrário do que se pensava inicialmente


Bleuler, Sá desanimados do inconsciente, no sentido utilizado por Lacan nos anos
1970, embora de uma forma diferente daquela manifestada por James Joyce. Para
essa ideia um “desabonamento só inconsciente”. Lacan se serve só termo francês
Abonnement, a assinatura, tal como usado ao se dizer, por exemplo, que se é
assinante de uma revista. Nesse sentido, para Lacan, os esquizofrênicos seriam
desabonados, não assinantes do inconsciente. No entanto, à diferença do
desabonamento joyciano, sua demissão do Outro se manifesta, como postula
Bleuler, pelos distúrbios das associações, que tornam o pensamento incoerente.
Eles se expressam como condenações, deslocamentos, defeitos da simbolização,
distraibilidade, fuga das ideias, tendência à generalização, desaparecimento e
inibição do pensamento ou, ao contrário, pensamentos impostos, sonorização ou
fluxo contínuo de pensamentos e perseveração. O pensamento autistico é definido
por esse tipo de operação, afastada da realidade, que Freud denomina de princípio
primário de funcionamento psíquico. O autismo de Bleuler consiste na perda de
contato com a realidade, substituída muitas vezes por uma “realidade” mais
conforme aos desejos irrealizáveis do paciente que se manifestam no delírio das
alucinações. Estes são classificados por Bleuler como sintomas acessórios,
juntamente com os distúrbios de memória (dejá vu, lacunas na memória), a perda
dos limites e da unidade o eu, alterações de linguagem e da escrita, alterações
somáticas e sintomas catatônicos, entre os quais Bleuler inclui: catalepsia, estupor,
hipercinesia, estereotipias, maneirismos, negativismo, automatismos de comando,
ecopraxia, ecolalia, automatismos compulsivos e impulsividade. Finalmente
teríamos, como sintomas acessórios, os estados maníacos e melancólicos agudos,
assim como os estados crepusculares e delirantes agudos.

O lugar central da dissociação e do autismo beneficiam uma concepção


psicopatológica essencialmente sincrônica,blefando a uma extensão desmensurada
da entidade esquizofrenia, que acaba incluindo as psicoses agudas confusionais e
delirantes, os bouffées delirantes da psiquiatria francesa, assim como as psicoses
maníaco-depressivas. Além disso,na maneira extremamente compreensiva da
forma dita simples permite a Bleuler incluir nas esquizofrenia os “nervosos”,
“psicopatas”, alcoólatras, mendigos, vagabundos e excêntricos, cuja “frouxidão
associativa” acaba desembocando na apatia e na desinserção social. A demissão
do Outro aparece então aqui como ruptura do laço social, consequência dessa
entidade mórbida vasta que se tornou o grupo das esquizofrenias. Os psicanalistas,
no início do século, adotaram essa definição de Bleuler, deixando um pouco de lado
a paranoia. No entanto , Freud considerava a paranoia um bom tipo clínico,
enquanto a esquizofrenia seria para ele um mau termo nosológico (Freud; Jung,
1975, p. 182 e 224)

Uma delimitação possível do conceito de esquizofrenia passa por uma precisão dos
conceitos freudianos que devem ser diferenciados da madeira como são utilizados
por Bleuler e Jung, notadamente pela eliminação da libido - Eros - do conceito de
autismo. Segundo Lacan, é no decorrer do seu comentário sobre Schreber que
Freud se dá conta das dificuldades colocadas pelo problema do investimento
libidinal das psicoses. A ideia de um autoerotismo primordial, a partir do qual se
constituem os objetos, poderia confundir-se com a noção junguiana de interesse
psíquico. Daí a necessidade de voltar, no seu artigo sobre narcisismo, à distinção
entre libido do eu e libido de objetos (Lacan, 1983, p. 136; Freud, 1974b, p. 89-103)

A ideia que as pulsões auto eróticas dão origem a unidade do eu aproxima-se da


concepção lacaniana do estádio do espelho, em que essa unidade se constitui um
dado momento. Freud supõe que as pulsões auto eróticas existam desde a origem e
que uma nova ação psíquica, que Lacan denominará, retomando Wallon, o estádio
do espelho, junte-se a elas para dar origem ao narcisismo. O sujeito vê sua imagem
real no estado de imagem virtual no espelho. A forma de seu corpo está fora dele,
pois está ligada à impotência primitiva devida a prematuração do ser humano. Sem
domínio de seu corpo, ele só pode ver sua forma realizada fora dele mesmo. O
espelho representa o Outro simbólico, que define a linguagem e a possibilidade da
fala que definem o menor ou maior grau de estruturação imaginária, especular. São,
pois, a linguagem e a possibilidade da fala que definem o menor ou maior grau de
estruturação imaginária. O espelho dá a imagem especular, i(a), eu ideal, armadura
corporal pacificadora, porque ele organiza as pulsões. Mas essa imagem deve ser
sustentada pelo olhar de um representante do Outro, que nomeia essa imagem do
outro especular, designando-lhe o significante do Ideal do eu. O que é percebido só
se sustenta em uma zona de nomeação.bss essa unificação do corpo na imagem
nomeada pelo Ideal não acontece, temos o corpo fragmentado do esquizofrênico e
sua constante busca de algo que possa dar unidade a seu corpo. Tal paciente, a
todo momento dizendo: “quero ver no espelho, senão morrerei” (Alvarenga, 1994, p.
81-88)

Para Lacan, o problema que se coloca então a Freud é o da estrutura das psicoses
dentro da teoria da libido (Alvarenga, 1992). Trata-se de apreender a diferença de
estrutura entre o afastamento da realidade nas neuroses e nas psicose levando em
conta o gozo. A solução junguiana para as psicoses - introversão da libido no
mundo interior do sujeito - é análoga a solução freudiana para as neuroses, o que
Lacan atribui a uma confusão entre os registros do imaginário e do simbólico. Em
Freud esses registros seriam estritamente distintos, permitindo-lhe dizer que, na
neurose, se há uma recusa da realidade, pode haver um recurso às fantasias ao
passo que nas psicoses nenhuma substituição imaginária seria possível.

Freud não abandona o conteúdo sexual do seu conceito de libido para fazê-lo
coincidir com o interesse psíquico em geral, como quer Jung. Para Lacan, o
esquema junguiano “não permite apreender as diferenças que podem existir entre a
retratação dirigida, sublimada, do interesse pelo mundo à qual pode chegar o
anacoreta, e a do esquizofrênico cujo resultado é, entretanto, estruturalmente
distinto” (Lacan, 1983, p. 137). Trata-se de uma das poucas referências de Lacan à
esquizofrenia.
Haveria na vida psíquica uma pressão para sair das fronteiras do narcisismo, ou do
gozo do Um, e colocar a libido nos objetos,vou dirigir-se ao Outro, quando o
investimento do eu em libido ultrapassa uma determinada medida. Os fenômenos
da hipocondria e da parafrenia termo utilizado por Freud para falar da esquizofrenia,
estão ligados a uma estase da libido do eu, ao passo que a introversão e a
regressão das neuroses de transferência estão ligadas anima estase da libido de
objetos.
É no seu texto “O inconsciente”, notadamente no capítulo VII, “Avaliação do
Inconsciente” (Freud, 1974a, p. 224 - 233), que a retirada de investimento nas
palavras na esquizofrenia aparece em todo o esplendor do inconsciente estruturado
como linguagem. Pois é justamente através das alterações da linguagem na
esquizofrenia que Freud vai apontar a existência do inconsciente, a céu aberto, no
que ele chama então de psiconeuroses narcísicas.
Freud continua a opor libido do eu e libido objetal, de tal forma que na neurose
renuncia-se ao objeto real, mas a libido que lhe é retirada subsiste no inconsciente,
apesar do recalque. A aptidão à transferência supõe esse investimento de objeto.
Na esquizofrenia, ao contrário, após o processo de retirada do investimento objetal,
a libido retirada não procura um novo objeto, mas se volta para o eu. Se não
paranoia essa libido serve ao narcisismo e à megalomania, na esquizofrenia a libido
retorna aos órgãos do corpo de maneira fragmentada, concomitantemente ao
investimento de determinados significantes.

Freud observa que, nos esquizofrênicos, a maneira de se expressar é rebuscada,


cheia de maneirismos. A construção das frases sofre uma desorganização particular
que pode torná-las incompreensíveis. Uma relação aos órgãos e inervações do
corpo passa frequentemente ao primeiro plano. Para ilustrá-lo, ele apresenta o
célebre caso da paciente de Viktor Tausk (1933). A jovem após uma briga com o
amante, lamenta-se de que seus olhos não estavam direitos, estavam tortos, o que
explica por uma série de recriminações ao amante: ele era um hipócrita, um
entortador de olhos (augenverdreher) - o que significa, em alemão, enganador -,
agora ela tinha os olhos tortos, não eram mais seus olhos, via o mundo com olhos
diferentes. Freud nota que a relação da paciente com o órgão corporal representa o
conteúdo dos seus pensamentos. O discurso esquizofrênico apresenta um traço
hipocondríaco, que ele denomina de “fala do órgão”. Enquanto uma histérica teria
efetivamente revirado os os olhos nos sintomas de conversão, já esquizofrenia o
fenômeno se manifesta na literalidade da linguagem.

Freud assinala que o encadeamento do pensamento é dominado pelo elemento que


tem como conteúdo uma sensação do corpo. Assim, um paciente pode dizer que
seus pensamentos estão “trombando” com os pensamentos de outros pacientes
quando ele anda na enfermaria. Ou dizer que “o ano novo vai chegar de trem”.
Freud diz que as palavras, na esquizofrenia, são submetidas ao mesmo processo
que produz as imagens do sonho a partir dos pensamentos latentes: o processo
primário. As palavras são condensadas ou transferem seus investimentos por
deslocamento, são tratadas como coisa. É a identidade da expressão verbal, e não
a semelhança entre as coisas designadas, que comanda a substituição. Assim, na
linguagem esquizofrênica a relação entre as palavras predomina sobre a relação
entre as coisas. Se os investimentos de objeto são abandonados, o investimento
das representações de palavras dos objetos é mantido. Em outro exemplo, um
paciente pode atacar os objetos do sexo masculino pelos quais se sente atraído
dizendo que quer comer carne humana. Ele não consegue metaforizar o desejo
sexual verbalizado pela palavra “comer”, no sentido de ter relação sexual com
alguém, e afirma literalmente que quer comer carne humana.
Se na esquizofrenia a fuga consiste em retirar o investimento pulsional da
representação de objeto, parece surpreendente que a representação da palavra
seja superinvestida. Freud supõe que esse investimento da palavra pertença à
tentativa de cura. No esforço de recuperar os objetos perdidos, o sujeito deve
contentar-se com a palavra no lugar da coisa.

Freud diz então que os esquizofrênicos tratam as coisas concretas como se fossem
abstratas, o que Lacan retoma dizendo que o significante parece exterior ao sujeito
psicótico, que fica preso a ele por uma fixação erótica. (Lacan, 1985, p. 165).

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