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Conceito de paranóia

História do conceito de paranóia


O significado literal da palavra paranóia vem do grego para=ao lado de, fora; e noia=de si, ou seja,
’’fora de si’’. Hipócrates usou o termo para se referir delírio com febre alta e outros autores a usaram
como sinônimo de demências e loucura. Por seu significado não ser claro o suficiente, o termo caiu
em desuso até o século XIX, quando é recuperado pela ciência psiquiátrica.

A paranóia dentro da perspectiva psiquiátrica

A psiquiatria clássica definia a paranóia simplesmente como uma crença falsa, sendo o delírio sua
característica predominante. Karl Ludwig Kahlbaum (1828-1899) descreveu a paranóia como
síndrome psiquiátrica em 1863. Para ele, a paranóia era uma doença mental parcial que ao longo do
tempo interfere no intelecto e é de permanência imutável. Desde então a paranóia ficou conhecida
como uma doença delirante, imutável ao longo do tempo, portanto designava delírios primários,
crônicos e sistematizados.
Kraepelin (1915), um grande sistematizador da nosografia psiquiátrica, acreditava que havia três tipos
de transtornos paranóides:
1.Paranóia – doença crônica e rara caracterizada por um fluxo de delírios fixo, falta de alucinações
deteriorações da personalidade.Os tipo de delírios observados incluíam os persecutórios,de
ciúmes,somáticos grandiosos e hipocondríaco.
2.Parafrenia – desenvolveu-se mais tarde que a esquizofrenia e era mais leve, pois mesmo
apresentando alucinações não havia deterioração mental.
3.Demências Paranóides – era como a paranóia, mas tinham um início mais precoce e causava
deterioração mental. Ele as considerava como uma forma de demência precoce por causa das
desordens cognitivas, de pensamento e emoção.
Também considerava os sintomas paranóides em outras variedades de doenças médicas e
psiquiátricas.
Bleuler também identificou a paranóia e Freud ajudou a contribuir para a formação de sua etiologia.
Ernest Kretschmer fez uma correlação entre a paranóia e a personalidade, afirmando em sua teoria
sobre o assunto que algumas personalidades mais sensíveis depressivas, pessimistas e narcisistas
desenvolviam sintomas paranóides em momentos críticos da vida. Porém, tinham prognóstico
favorável e não desenvolviam esquizofrenia.
A confusão em torno do termo paranóia levou a psiquiatria a tentar esclarecer o conceito e torná-lo
clinicamente útil. Cromberg (2000) faz um apanhado de alguns pontos que a psiquiatria considera
importante analisar para se trabalhar com o termo:
a)O termo paranóia é um constructo clínico utilizado para interpretar observações e refere-se a uma
conduta psicopatológica, sendo necessário o conhecimento do termo para utilizá-lo.
b)Implica clínico de psicopatologia.
c)Seus sintomas podem aparecer em outras patologias psiquiátricas e médicas, envolvendo fatores
neurológicos, fisiológicos, uso de drogas e outras substâncias psicoativas.
d)O julgamento de condutas paranóides baseia-se em seu aspecto extremista, de inadequação social
e da presença de delírios.
e)Os termos delírio paranóide, parafrenia e transtorno paranóide não são mais usados. As
terminologias relacionadas à paranóia, além do próprio termo, são transtornos delirantes, paranóide
e paranóico, personalidade e síndrome paranóide.

A paranóia dentro da perspectiva psicanalítica

A psicanálise relativizou a diferença entre normal e patológico ao ocupar-se do sofrimento psíquico


humano que é inerente a sua própria formação como sujeito, desmistificando a patologia como algo
distante do sujeito ‘’normal’’. Ocupou-se de ações simples como o sonho, a fala, prazer e desprazer,
dor psíquica, usando-as para entender os mecanismos psíquicos. Está fundamentada na sexualidade
humana, entendida em um sentido amplo como o campo das pulsões, essencial para a formação e
funcionamento do aparelho psíquico, consequentemente do próprio sujeito. Portanto, todos os
elementos formadores de sintomas são encontrados em todos os seres humanos, variando seu grau
e disposição em cada um deles.
Freud começou a analisar as manifestações psíquicas com um olhar da psiquiatria, mas logo foi mais
além e criou novos instrumentos conceituais para esta análise. Ele começou fazendo uma distinção
entre os tipos de neuroses de sua época e a partir disso começou a elaborar um grande campo
conceitual do funcionamento psíquico. No manuscrito H, junto a uma carta a Fliess (1895), Freud
expõe suas primeiras noções sobre a paranóia, que ainda falara nos textos ''As psiconeuroses de
defesa'' (1894), ''Novas considerações sobre as psiconeuroses de defesa'' (1896), ''Psicopatologia da
vida cotidiana'' (1901) e ''Observações Psicanalíticas Sobre um Caso de Paranóia'' (1910, caso
Schreber). Ele define a paranóia crônica como um modo patológico de defesa, como a histeria e
neurose obsessiva, por exemplo. Atribui o termo defesa a resistência em recordar, e o mecanismo
psíquico que a embasa, a repressão. Diante de uma realidade (inclui-se idéias ou sentimentos) que
por algum motivo é insuportável, inaceitável ao sujeito ocorre à rejeição desta realidade. Esse seria
um mecanismo de projeção defensivo, de rejeição. O sujeito projeta no exterior, geralmente, algum
sentimento causado por um acontecimento recalcado e que lhe é insuportável para ser atribuído ao
seu próprio eu.
O mecanismo de projeção é uma defesa comum na nossa vida cotidiana, uma vez que, ao
produzirmos uma modificação interna podemos atribuí-la a uma causa externa. Freud considera o
delírio de projeção normal quando estamos conscientes de nossas modificações internas. Quando
nos desligamos de nossas próprias modificações internas e atribuímos a causa de tudo ao exterior
teremos a paranóia. O delírio está relacionado com mecanismos de projeção, onde o conteúdo
projetado no objeto externo faz este tornar-se ameaçador e perseguidor. Através do delírio o sujeito
tenta reconstituir a parte da realidade perdida, rejeitada, que na paranóia é sempre atribuída a um
objeto externo. Por isso, uma pessoa que antes foi amada, mas cujo sentimento por ela foi recalcado,
pode se tornar um perseguidor que tenta nos fazer mal ou mesmo que seja ele quem nos ama na
verdade. No exemplo do caso Schreber, o sentimento de ser perseguido por seu médico Flechsig
recalcava, na verdade, um sentimento de amor pelo mesmo, que por ser de cunho homoerótico foi
recalcado e projetado, constituindo um delírio. Freud, em investigações junto a Jung e Ferenczi,
descobriu que o ponto central da patologia de vários paranóicos é a defesa contra o desejo
homossexual. O delírio descobre a relações entre vida social e erotismo, trazendo a tona o desejo
sexual. Bell (2005) diz que ‘’Freud defende a tese -ainda válida -de que o delírio não é a doença em
si, mas representa uma tentativa de recuperação. A catástrofe principal é a perda de contato com o
mundo que faça sentido. ’’
Divide o delírio em quatro tipos, conforme a especificidade dele, mas todos com base na fantasia
homossexual, segundo Freud. São elas:
a)Delírio persecutório é a negação do sentimento de amor por outro ‘’eu não o amo, eu o odeio’’,
que ainda sofre a transformação em ‘’ele me odeia, pois me persegue, então tenho direito de odiá-lo’’.
Projeta-se no objeto de desejo o ódio pela própria existência deste desejo, tornando-o persecutório,
e assim, justifica-se o ódio que ele nos causa.
b)Erotomania, onde o objeto é trocado ‘’não amo ele, amo ela’’, com o intuito de negar o desejo
homoerótico. E a projeção transforma o ‘’eu a amo ‘’ em ‘’percebo que ela me ama’’.
c)Ciúme delirante é quando se desconfia do parceiro (a) imaginando que ele (a) ama outros (as)
pessoas, as quais o próprio sujeito é que está tentado a amar.
d)Delírio de grandeza ou megalomania é uma rejeição do desejo como um todo’’eu não amo
ninguém’’, centrando o desejo em si mesmo.
Jaques Lacan ao se deparar com o caso da paciente Aimée,em 1931,passou a estudar a paranóia. A
concepção do sujeito para ele era de que esse é a soma das representações conscientes e
inconscientes empregadas em uma relação com o outro, logo, com a sociedade. Entendia o delírio
como fenômeno elementar no sentido de estrutural, pois acredita que a paranóia é uma manifestação
patológica da estrutura psicótica, por isso é elementar. Na estrutura psicótica, o Nome-do-Pai é
foracluído, ou seja, não houve a inscrição da função significante primordial, pois foi foracluída do
campo Simbólico e retorna no Real. Contardo Calligaris (1989) fala que não ocorre uma amarragem
deste significante tornando-o o pólo central da organização da estrutura, como ocorreria na neurose.
O que acontece é uma ‘’captonage’’ - ligação ou ponto de capton em outros autores - que liga
significante e significado sem produzir uma amarragem definitiva que se constitua como pólo central
deste saber. Isso permite pensar que existe algo que funciona, pode funcionar como metáfora, dar
significação, mas não é uma amarragem em um lugar central e organizador do modo de ver o mundo.
Os fenômenos elementares descritos na psiquiatria, delírio e alucinação, são sintomas da estrutura
psicótica e essa não faz laço social por meio da linguagem, que pertenceria ao simbólico. A formação
de um delírio está marcada pela certeza irredutível na idéia delirante, e esta idéia exclui o sujeito do
vínculo social estabelecido pela linguagem porque o paranóico não demanda um saber do outro
(Cromberg, 2000). Quando há uma situação em que o sujeito é chamado a referir-se ao nome-do-pai,
a sustentar esse nome, a função foracluída responde no Real com a volta dos significantes que
deveriam ter sido simbolizados. Este conjunto de significantes paternos, de repente, se impõe como
referência paterna obrigatória, sem deixar de ser no Real, sem vínculo com o saber do sujeito. O
delírio produziria uma metáfora que opera uma nova organização do saber do sujeito ao redor deste
pólo central que permanecerá no Real (Calligaris, 1989). Por isso, o delírio paranóico é marcado pela
certeza, é uma tentativa de organizar-se em torno de um saber, de substituir a metáfora neurótica.

A paranóia nos dias atuais

Atualmente, na psiquiatria contemporânea, o manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais,


DSM, é um material fundamental, pois organiza as concepções científicas sobre o sofrimento psíquico
humano. Foi publicado pela primeira vez em 1952, teve quatro edições revisadas, a última em 1994,
DSM-IV, que passou por uma revisão de texto e foi publicada em 2000 e denominada DSM-IV-TR,
para se diferenciar da original de 1994.
O DSM substitui o termo doença mental por transtorno (disorder). Também aboliu a terminologia
paranóia e usa o termo transtorno delirante para se referir ao que se conhecia por paranóia. O
transtorno delirante é, na classificação atual, um grupo de transtornos de causa desconhecida no qual
o sintoma principal é o delírio, que só é considerado como tal quando destoa muito da realidade,
sendo difícil distingui-lo de idéias supervalorizadas. A partir do DSM-III criou-se um eixo categorial, o
dos transtornos da personalidade, onde há o transtorno de personalidade paranóide, outra dissidência
da paranóia. Os traços de personalidade são padrões duradouros de comportamento que se
apresenta em todos os aspectos da vida do sujeito. O transtorno paranóide de personalidade
caracteriza-se por um padrão de comportamento global de desconfiança e suspeita para com os
outros, manifesta-se no começo da vida adulta e está presente em quase todos os aspectos da vida
do sujeito. Em suma, o DSM é o apanhado nosográfico da psiquiatria atual e estes transtornos são os
dissidentes do transtorno antes conhecido como paranóia.
A psicanálise contribuiu para outra perspectiva da paranóia, inclusive influenciando a psiquiatria
moderna. A teoria de Freud ainda é a base da visão psicanalítica da paranóia, ricamente
complementada por Lacan. Sem excluir outros psicanalistas que deram suas contribuições,
destacando a obra de Melaine Klein, onde a fantasia tem papel importante na constituição do sujeito,
as bases do que se considera paranóia em psicanálise ainda são destes dois autores. Entende-se
hoje que a paranóia é uma manifestação da estrutura clínica psicose que tem como característica
fundamental a elaboração de um delírio.
Segundo Hillman (1993), o delírio paranóico é incorrigível e intangível a qualquer tipo de
persuasão,seja pela via da razão,pelas evidências de sentido ou pela emoção. O sujeito crê em seu
delírio como uma realidade concreta e elabora explicações muito completas e lógicas, em sua
concepção, para explicar essas crenças. Na paranóia o estado delirante se mostra mais abertamente,
pois é característico do paranóico que ele revele pensamentos que seriam considerados
inconfessáveis para qualquer neurótico. Justamente por acreditar que o seu delírio é realidade, o
paranóico consegue expressa-los mais abertamente, já que para ele sua crença não possui nada de
absurdo e, sim, constitui-se de fatos concretos. A conduta geral, a fala e as reações do sujeito
permanecem inalteradas. Não há comprometimento da inteligência ou da capacidade de sentir e
expressar emoções. Para Cromberg (2000), paranóia é ‘''’uma doença da interpretação que se
cristaliza como certeza e verdade únicas que ganha expressão no delírio''’’.
Estas definições são resumos mais práticos de como se apresenta sintomaticamente a paranóia,
porém, todos os processos da constituição do sujeito paranóico, em termos de estruturas e de como
a psicanálise entendem esta manifestação, ainda são os mesmos descritos no tópico acima. Dessa
forma, é um desafio contemporâneo da clínica psicanalítica conseguir dialogar com a ciência
psiquiátrica, pois as duas áreas não só se pronunciam de lugares distintos, como suas concepções
de sujeito são diversas, terminando por influir diretamente também nas práticas clínicas.

Referências:
American Psychiatric Association (2003). Referência Rápida aos Critérios Diagnósticos do DSM-IV-
TR. (4ª ed. revisada). Porto Alegre: Artmed.
Bell, D.(2003).Paranóia.Rio de Janeiro:Duetto.
Calligaris, Contardo. (1989). Introdução a uma Clínica Diferencial das Psicoses. Porto Alegre: Artes
Médicas.
Cromberg, Renata U. (2000). Paranóia. São Paulo: Casa do Psicólogo.
Hillman, James. (1993). Paranóia. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes.

Bruna Marques Crixel

O diagnóstico da paranóia
Podemos optar entre duas formas de realizar um diagnóstico: Observar o sintoma do sujeito, ou
escutar o sujeito do sintoma. Os manuais para diagnóstico CID e DSM nos fornecem uma relação de
sintomas observáveis e seus correspondentes transtornos mentais. Dessa forma, podemos observar
os sintomas para fazer um diagnóstico que irá orientar a clínica com o paciente.

No CID-10 e no DSM-IV-TR, a paranóia corresponde a F22.0 e a 297.1 respectivamente. Nesses


manuais ela é denominada Transtorno Delirante e abarca alguns subtipos, tais como erotomaníaco e
persecutório. O Transtorno Delirante tem como característica fundamental o desenvolvimento de
delírios não-bizarros, que podem ser isolados ou formarem um conjunto de delírios relacionados entre
si. Tais delírios podem durar a vida toda, sendo comumente persistentes.

Se por um lado podemos, para realizar um diagnóstico, nos deter em observar os sintomas
apresentados pelo paciente paranóico, por outro podemos escutar o sujeito desses sintomas, sendo
a psicanálise um meio. Para a psicanálise, a paranóia pertenceria ao grupo das psicoses. Tanto as
neuroses quanto as psicoses são estruturações de defesa, e a diferença entre elas residiria no modo
como o sujeito se defende da Demanda imaginária do Outro. (Calligaris, 1989). Se para a psiquiatria
um diagnóstico de “Transtorno Delirante” é feito com base na observação de fenômenos – ausência
ou presença de delírios bizarros – para a psicanálise o diagnóstico é realizado na transferência, de
modo que o delírio não é a doença em si, mas apenas o modo pelo qual o paranóico pode dar sentido
ao mundo. Como afirma Freud(1911), "a formação delirante, que presumimos ser o produto
patológico, é, na realidade, uma tentativa de restabelecimento, um processo de reconstrução”. Os
delírios, na paranóia, costumam estar associados a mecanismos de projeção, sendo que o conteúdo
é projetado no objeto por ser intolerável ao sujeito, fazendo com que esse objeto se torne ameaçador
(Bell, 2005). No entanto, cabe ressaltar que a projeção não é um mecanismo exclusivo da paranóia,
estando presente tanto na estrutura neurótica quanto na psicótica. Freud afirma, a partir de um estudo
sobre o caso Schreber, que toda a paranóia pode ser representada a partir de negações sobre a
proposição “Eu (um homem) o amo (um homem)” (Bell, 2005). Se a negação é posta sobre o verbo,
temos o delírio de perseguição: “eu o odeio porque ele me persegue”. Quando a negação é posta
sobre o sujeito, “não sou eu que o amo, é ela quem o ama” - base do delírio de ciúmes. E se a negação
é posta no objeto é “ele que me ama” (Freud, 1911). Às idéias iniciais de Freud seguiram-se outros
autores que trouxeram contribuições bastante relevantes ao entendimento da paranóia, entre
eles Jacques Lacan.

Referências:
Bell, D. (2005). Paranóia. Rio de Janeiro: Relume Dumará: Ediouro: Segmento-Duetto.
Calligaris, C. (1989). A estrutura psicótica fora de crise. Em: Introdução a uma clínica diferencial das
psicoses. Porto Alegre: Artes Médicas.
Classificação de transtornos mentais e de comportamento da CID-10: descrições clínicas e diretrizes
diagnósticas. Porto Alegre: Artes Medicas, 1993.
Freud, S. (1987). Edição Standard brasileira das Obras psicológicas completas de S. F. Rio de
Janeiro: Imago. “Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranóia
(dementia paranoides)” (1911c);
Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais - DSM-IV-TR (4ª ed., texto revisado). Porto
Alegre: Artes Médicas, 2002.

Karine Puntel

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