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Douglas Barros

Quem foi Freud?


1º Aula1

“Uma palavra e tudo está salvo / Uma palavra e tudo está


perdido.”
(Andre Breton)

1 Este ensaio será utilizado como material complementar no curso Quem


foi Freud? Seu conteúdo pode ser livremente reproduzido desde que ci-
tada a fonte.
Ato 2: O inconsciente

C ertamente não foi Freud que inventou a palavra


inconsciente, mas, sem dúvida, foi ele que
atrelou o conceito do inconsciente ao desejo. Antes
de sua clínica, a palavra inconsciente muitas vezes era
entendida como um adjetivo correspondente à ideia de
processos não conscientes do indivíduo. Mesmo Johann
Friedrich Herbart, que usou a noção de inconsciente
muito próximo à maneira freudiana, não chegou perto
de esboçá-lo enquanto um sistema psíquico distinto
e topograficamente dividido em sistemas. É em Freud
que a noção de inconsciente ganha aspecto central à
subjetividade. É nele que o inconsciente deixa de ser visto
como algo além ou aquém da consciência se revelando
como algo abrupto que emerge e organiza outra forma
de lógica.
Se é assim não podemos esquecer, entretanto, de
Theodor Lipps (1851-1914) que, em Munique, dezessete
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anos antes de Freud, lançou um livro chamado Os fatos
fundamentais da vida psíquica no qual deixava claro que
todos os processos psíquicos seriam inconscientes. Grande
influência nas reflexões freudianas, o distanciamento da
noção de inconsciente entre ambos só se deu quando o
desejo, como aquilo que o anima, foi pensado por Freud
de maneira central. “Efetuou-se aí a ruptura que estava
em gestação havia muitos anos: partindo do inconsciente
descritivo caro ao romantismo alemão do começo do
século XIX, e do qual Eduard von Hartmann fizera uma
recapitulação em seu livro Filosofia do inconsciente...
Freud definiu seu inconsciente de maneira original (não
mais como o inverso do consciente).1”
Lacan mais tarde irá nos lembrar que o inconsciente
de Freud não poder ser identificado ao inconsciente
romântico da criação imaginante2, o seu acesso se
produz pelos desvios da vida consciente do sujeito e se

1 ROUDINESCO, E. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar,


1988 pp.376

2 LACAN, J. Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da


psicanálise (1964). Rio de Janeiro, Zahar, 2008.
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desvela como algo que emerge de maneira abrupta: um
gesto, um chiste, um ato-falho, algo a apresentar uma
descontinuidade no relato, etc. Pensar no inconsciente à
maneira freudiana significa, assim, pensar que a própria
possibilidade de sua aparição como fenômeno se dá na
descontinuidade ante um enunciado que o sujeito faz. Há
pouquíssimo tempo, muitos consideravam o inconsciente
como um lugar localizado nas profundezas aquerônticas
do cérebro, felizmente também chegou-se à conclusão de
que o inconsciente não é um lugar substancial, mas algo
de uma outra cena com arranjos próprios. Um sistema
psíquico a se contrapor a outro e conviver no mesmo
aparelho.
É isso que encontramos na primeira tópica presente
no capítulo VII de A interpretação dos sonhos: o Ics se
contrapõe a outro sistema psíquico – o pré-consciente
(Pcs) e o consciente (Cs). Essa tensão irredutível entre
dois sistemas, que forja a subjetividade, marca a noção
de inconsciente freudiano. A novidade não reside só
nos sistemas psíquicos em tensão, mas também numa

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lógica subjacente ao próprio inconsciente. Freud nunca
falou nada sobre indeterminação do inconsciente, pelo
contrário, sua conclusão é que há uma determinação
própria a ele. Trocando em miúdos; o inconsciente
não é um caos indeterminado de forças sem registro
simbólico organizado, o fantástico dessa conclusão reside
na possibilidade de compreensão dada a sintaxe que lhe
é própria.
Freud muito cedo percebeu que o inconsciente se
mostra nas lacunas do relato e são nos fenômenos
lacunares que a descontinuidade demonstra algo a
ultrapassar o próprio sujeito. Nas suas manifestações, o
sujeito se sente ultrapassado por um outro desconhecido:
um negativo à objetividade que processa algo da verdade
daquilo que estrutura sua certeza de si. É quando o sujeito
da verdade se vê atropelado pelo sujeito do inconsciente.
Um outro sujeito que se oculta em nós mesmos e
muitas vezes aparece como oposição ao que cremos
ser. Impressionante como essa conclusão freudiana se

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apresenta no famoso livro O duplo de Dostoiévski3.
Nessa obra a personagem principal, o conselheiro titular
Goliadkin, se depara com ele mesmo, que é um outro, e
lhe usurpa a identidade. Nesse vertiginoso caso fictício
apreendido por Dostoiévski vemos se esboçar o sujeito
do inconsciente que vai ser visualizado por Freud.
O inconsciente não é e, portanto, é essa característica
pré-ontológica, esse caminho irrealizado que
emerge de maneira evanescente através do chiste, da
parapraxia – pequenos erros mnemônicos operados por
esquecimentos aparentemente triviais – e dos sonhos,
que permite um olhar sobre a função limitada do desejo.
O desejo encontra seu limite no prazer e o seu princípio
é aquilo que lhe dá contornos. São nesses fenômenos
lacunares impulsionados pelo desejo que se encontra uma
outra ordem; a ordem do inconsciente com sua lógica
própria. De modo que o inconsciente não é o caos ou a
indeterminação, mas uma outra estrutura capaz de ser
analisada e cujas determinações existem na evanescência

3 DOSTOIÉVSKI, F. O duplo. São Paulo: Editora 34, 2010.


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de seu fenômeno descontínuo e aparentemente surge
do nada. Interessante pensar que Freud revela um
pensamento diante das imagens do desejo (quer no
sonho, quer no ato falho, etc.) um pensamento que se
revela como algo ausente, uma determinação construída
numa outra cena. O resultado é que há uma determinação
própria à lógica do inconsciente atuando no sentido da
dissuasão das forças pulsionais.

Onde mora o inconsciente?

M as onde reside o inconsciente? Nos deparamos


com um problema que dispensou rios de tintas
para ser aplacado. A tendência de dar um lugar fisiológico
ao inconsciente e substancializá-lo não é desconhecida
na história da psicanálise. A correspondência da tópica
– Ics, Pcs e Cs – com lugares anatômicos foi ansiada por
muitos. Eis um problema subjacente à herança freudiana:
a primeira tópica permite compreender a economia
dos sistemas psíquicos sem obliterar a busca por lugares
concretos da psique. Quem não lembra da metáfora
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do teatro? Por isso, é preciso novamente reafirmar: o
inconsciente não é uma coisa ou um lugar, ele possui uma
sintaxe própria e uma lei de articulação determinada e
não um lugar onde a articulação se dá.
Noutras palavras, o inconsciente é a articulação de
uma outra lógica que expressa uma cisão na formação
da subjetividade. É por isso que encontramos o lar
preferencial do inconsciente nos sonhos porque neles
vemos sua articulação ser produzida no registro
simbólico: “o que define, portanto, o inconsciente não são
os seus conteúdos, mas o modo segundo o qual ele opera,
impondo a esses conteúdos uma determinada forma.4” O
sonho articular uma discursividade própria permitindo
a identificação dos conteúdos latentes na sua produção.
É por isso que lugar do sujeito do inconsciente reside na
lacuna entre percepção e consciência. É exatamente aí
que o sujeito se constitui como fendido entre o enunciado
e a enunciação de si.
Seja como for os fatos psíquicos não organizam um

4 GARCIA-ROZA, L. A. Freud e o inconsciente. Rio de Janeiro: Zahar,


1985 pp.175
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lugar substancial ou anatômico ao inconsciente tampouco
pode ser visto como um lugar concreto senão como
representações que emergem através do ato descontínuo.
Não à toa, a necessidade da rememoração na análise se
coloca como um convite ao retorno às lacunas buscando
capturar a enunciação do inconsciente feita pelo sujeito.
Quando ele aceita esse retorno, através da rememoração
e da associação livre, repete-se o quadro que evoca não
uma reprodução do que foi, mas a tentativa de uma
presentificação em ato dos fenômenos inconsciente.
Ou seja, a associação livre na clínica, diante de um fato,
serve para instigar a aparição daquilo que se articula no
inconsciente do sujeito.
Ao ser lançado o convite à rememoração, a revisitação
da experiência passada a transforma na sua atualidade,
emergem os traumas do sujeito a partir das brechas
que se articulam com a enunciação inconsciente
deste. A rememoração na análise é, portanto, a busca
pela reaparição do trauma que organiza sentido à
subjetividade; a sua articulação se dá pela abertura
promovida pela descontinuidade da enunciação que o

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sujeito faz de si. Descontinuidade marcada pela lógica
do inconsciente e suas representações. Para Freud o que
encontra resistências para ser rememorado se repete na
conduta, a análise busca a revelação justamente do que se
repete. Nesse processo há um momento significativo da
passagem de um sujeito ao outro, e o lugar da fala surge
como lugar da verdade. Se incita então a abertura aos
processos lacunares que podem revelar aquilo que não
está presente.
O curioso nesse processo é que a interpretação do
analista nada mais é do que a demonstração de que
o inconsciente já está interpretado na demonstração
daquilo que foi expresso pela sua abertura através da fala
do analisando. É na transferência que o inconsciente volta
a se fechar e é nela que se possibilita a interpretação de sua
sintaxe. Eis sua contradição: se inicia a interpretação no
exato instante em que o inconsciente escapa. É evidente
que, nesse processo, uma determinada representação
pode evadir-se à censura e ingressar nas instâncias Pcs-
Cs. A suposição de Freud nessa passagem é que cada
sistema psíquico carrega consigo um investimento

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econômico específico. Para entender esse processo
precisamos compreender as características sistemáticas
que organizam o inconsciente segundo Freud.

O sistema do inconsciente

P rimeiro, é preciso levar em consideração que


cada sistema psíquico mantém uma estrutura
própria totalmente distinta. No sistema Ics, o seu núcleo
reside em representações pulsionais que procuram
ser descarregadas. Elas são, segundo Freud, impulsos
carregados de desejos e, sendo assim, as delimitações
que organizam o funcionamento do sistema Ics não são
iguais às que presidem o funcionamento do sistema Pcs-
Cs. Esse duplo sistema também possui um modo de
funcionamento que Freud denominou processo primário
e processo secundário.
Há um interesse aqui que pode evidenciar o caráter
complexo que Freud atribui ao inconsciente. Os
conteúdos do processo primário ligado ao sistema Ics

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são “representantes-representações” das pulsões que
não podem tornar-se conscientes enquanto tais. Esses
conteúdos ao descarregarem-se de seus investimentos
pulsionais reequilibram as forças do aparelho psíquico.
A lógica do inconsciente não é excludente, mas
paraconsistente. Isso significa que desejos antagônicos
podem conviver sem desestruturar a relação psíquica
quando são reequilibradas através da economia libidinal.A
negação, ou o princípio de não contradição, não faz parte
do inconsciente. Interessante, antes de seguir, apreender
que o aparelho psíquico não possui uma natureza
ontológica, quando Freud o aproximou de um modelo
físico, tomado de empréstimo da termodinâmica, levou
em consideração a relação de forças que se reequilibram
no psiquismo.
Voltemos ao ponto anterior: o processo secundário se
executa na instancia do pré-consciente e do consciente,
nele as representações são mais estáveis e se mediam pela
realidade. Sendo assim, a posição primária se articula
pelas pulsões não mediadas que, à medida da mediação,
estabilizam a subjetividade. Esse processo é caracterizado
por dois mecanismos: o deslocamento e a condensação.
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Então “os processos primário e secundário são ainda
respectivamente correlativos do princípio de prazer
e do princípio de realidade: enquanto os processos Ics
procuram satisfação pelo caminho mais curto e direto
(isto é, sem mediação), os processos Cs, regulados
pelo princípio de realidade, são obrigados a desvios e
adiamentos.5”
Na abertura aos fenômenos do inconsciente não há
contradição ante sua lógica, na fenda pela qual se observa
o que estrutura o desejo não há função do tempo. É
interessante perceber que o inconsciente expresso pela
irrupção do desejo desnuda um caráter interessante
pensado por Freud: o inconsciente não envelhece
tampouco os seus desejos. O desejo se afigura como
um movimento em devir. Portanto, podemos afirmar
que o inconsciente e o desejo escapam ao tempo: se o
passado está morto e o futuro não existe, na apresentação
da imagem do desejo está a indestrutibilidade. Por isso,
o inconsciente além de ter um sistema próprio também

5 GARCIA-ROZA, 1985, p.182

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tem uma temporalidade que é só sua.

Para fixar

Com tudo que foi dito ficou evidente que:


1) O inconsciente não é um lugar substancial ou
anatômico, mas representações que emergem de lacunas
evasivas que tem uma lógica e uma delimitação próprias.
2) O inconsciente freudiano não é o inverso do
consciente, mas um sistema que expressa uma cisão
fundamental na formação da subjetividade.
3) O inconsciente se expressa pela descontinuidade
da enunciação que o sujeito faz acerca de si e de suas
rememorações: um chiste, um ato falho, um sonho, etc.
4) A lógica do inconsciente desnuda algo que
ultrapassa o próprio sujeito, algo da verdade daquilo que
estrutura sua psique. Um duplo que organiza no mesmo
sujeito um sujeito do inconsciente: o Eu e um Outro de
mim mesmo.
5) O nosso inconsciente não envelhece tampouco
nossos desejos recalcados.

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