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Eu e o Id

Freud introduz o texto em questão como sendo uma retomada dos


pensamentos iniciados em ​Além do princípio do prazer ​1920, de forma a dar
prosseguimento a esses, ligando-os a observações clínicas. O autor caracteriza o
texto enquanto uma síntese, no qual também tangencia o que antes não fora objeto
de elaboração da psicanálise, além de outras teorias de não analistas e
ex-analistas.

I. CONSCIÊNCIA E INCONSCIÊNCIA

Neste tópico, Freud começa por retomar a premissa básica da psicanálise,


sendo está a diferenciação do psiquismo consciente e inconsciente, lembrando que
fora esta premissa que o permitiu a compreender os processos patológicos do
psiquismo. Deste modo, para a psicanálise, a essência do psiquismo não é a
consciência, está será entendida como uma qualidade do psiquismo, podendo
somar-se a outras qualidades ou, ainda, estar ausente.

A ideia da existência de um psiquismo inconsciente é trazida por Freud, em


seu texto, como contrária ao pensamento habitual da cultura filosófica, na qual o
psiquismo era considerado como equivalente a consciência. Porém, o autor, coloca
que a psicologia consciente seria incapaz de explicar fenômenos como os sonhos
ou a hipnose, fenômenos estes que forjaram a concepção de um psiquismo
inconsciente no início da formulação da psicanálise.

“Estar consciente”, é colocado no texto como uma expressão de caráter


descritiva, que se relacionaria a uma percepção imediata, pois, segundo Freud, os
elementos psíquicos (como uma ideia) não são duradouramente conscientes,
passam rápido, de modo a serem conscientes por um instante e no outro não mais,
mesmo quando podem tornar-se novamente conscientes.

Partindo deste ponto, Freud apresenta sua descrição do que seria a ideia
latente enquanto aquela que em determinadas condições pode voltar a tornar-se
consciente. O latente aparece, assim, como um estado do elemento psíquico, um
“capaz de tornar-se consciente”. Porém, não sendo consciente propriamente dito
(percepção imediata), mais sim uma “capaz de consciência”, seria, em um sentido
descritivo, também inconsciente.

A origem do conceito de inconsciente se deu a partir de uma interpretação do


dinamismo da vida psíquica, distinta da descritiva que coloca o latente enquanto
inconsciente, maiores diferenciações serão feitas abaixo. Segundo Freud, de início,
supõe-se, na vida psíquica, a existência de poderosos processos ou ideias, com
efeitos semelhantes às das demais ideias conscientes. A teoria psicanalítica surge,
assim, ao afirmar que estas determinadas ideias não podem ser conscientes por
haver uma determinada força que se opõe a elas. Ao estado no qual estas idéias se
acham colocou-se o nome de repressão, e a força que mantém essas ideias em
repressão foi chamada de resistência. A existência destas ideias não conscientes
(em repressão), incapazes de tornarem-se conscientes por uma força que se opõe a
elas (resistência), não poderia ser refutada a medida que a técnica psicanalítica
encontrou formas de cancelar esta força (com a hipnose e a análise dos sonhos) de
modo que tornaram-se conscientes. Deste modo, é a partir da teoria da repressão,
do dinamismo psíquico, que a psicanálise adquire seu conceito de inconsciente, de
modo a ter-se o reprimido como protótipo do inconsciente.

Em um sentido descritivo, Freud considera-se dois tipos de inconsciente, o


latente (mais capaz de consciência) e o reprimido (que em si não é capaz de
consciência), sendo o primeiro considerado apenas em um sentido descritivo como
inconsciente. No sentido dinâmico tem-se apenas o reprimido enquanto
inconsciente. Essa diferenciação entre dois inconscientes no sentido descritivos e
um no sentido dinâmico é de grande importância pois a diferença entre inconsciente
e consciente é a percepção, porém no sentido dinâmico há um dinamismo psíquico
que mantêm ideias em repressão.

Ao que que é latente no psiquismo, Freud denomina de pré-consciente, este


é colocá-lo mais próximo do consciente, pelo autor, em comparação ao inconsciente
(aquilo que é reprimido). Tem-se desse modo a construção de três termos,
consciente (cs), pré-consciente (pcs) (latente) e inconsciente (ics) (reprimido).
Porém essas diferenciações se mostraram insuficientes no decorrer do trabalho
analítico.

A instância psíquica Eu, colocada por Freud como uma organização coerente
dos processos psíquicos de um sujeito, a qual a consciência se liga, seria a
responsável por controlar os processos de descarga de excitação no mundo
externo, assim como de todos os seus processos parciais. As repressões também
partiriam da instância Eu, de modo a fazer com que certas tendências psíquicas
fossem excluídas da consciência.

Segundo o autor, na análise, quando o sujeito encontra dificuldades na


associação livre, entende-se que este estaria próximo do reprimido, de modo a estar
sobre o domínio de sua resistência, porém o sujeito não perceberia isso. Essa
situação, que é imprevista para a psicanálise, demonstra que a resistência, que é
parte do Eu, é também inconsciente ao sujeito. Visto isso, se compreende que parte
do próprio Eu também seria inconsciente, de modo a comportar-se tal como um
reprimido, exercendo efeitos sem tornar-se consciente.

Como consequências deste descoberta, novas dificuldades surgiram para a


prática da psicanálise de modo que, se a neurose antes era compreendida como um
conflito entre o inconsciente e o consciente, a partir desta compreensão das
relações estruturais, o que se coloca é uma nova oposição, entre o “Eu coerente e
aquilo reprimido que dele se separou”. (FREUD, p.12, 1923)
A concepção do inconsciente também se altera, a partir da compreensão
estrutural, o ​Ics não mais coincide com o reprimido, mesmo que todo reprimido seja
ics,​ nem todo o Ics é o reprimido, também entende-se que este ​Ics do Eu não é
latente como o Pcs (pois teria, assim, que se tornar cs para ser ativado). Deste
modo Freud cria um terceiro ​Ics​, um não reprimido.

II. O EU E O ID

Neste tópico, o autor aprofunda mais sua investigação acerca do Eu, após ter
indicado uma parte também inconsciente na instância. Partindo da premissa de que
o ​Ics só pode ser conhecido quando tornado consciente, Freud se debruça sobre o
que seria “tornar algo consciente”. O autor, descreve a consciência como sendo a
superfície (percipiente) do aparelho psíquico, aparecendo como uma função deste
aparelho, um primeiro sistema topográfico/espacial desde o mundo externo. Sua
investigação parte, assim, desta superfície percipiente, colocando a cs como sendo
todas as percepções, advindas tanto de fora (percepções sensoriais) e de dentro
(sensações e sentimentos).

Uma das dificuldades apresentadas sobre a ideia espacial/topológica do


aparelho psíquico (que coloca a cs como uma superfície do aparelho), é pensar
como os esses processos internos se tornaram conscientes. Freud refuta tanto a
ideia de que estes processos submergem do aparelho psíquico até a consciência,
como a de que a consciência vai até eles.

Deste modo, apresenta sua primeira tentativa de distinção entre uma ideia ics
e uma pcs (um pensamento), sem fazê-lo pela via de relação com a consciência.
Supões, assim, que as ideia inconsciente, seriam produzidas a partir de um material
desconhecido, enquanto nos Pcs acrescentar-se-iam ligações com representações
verbais correspondentes. Deste modo, muda-se a questão de “como algo se torna
consciente” para “Como algo se torna pré-consciente”.

Representações verbais estão aqui enquanto resíduas mnêmicos que já


foram percepções acústicas. Entende-se, assim, que o sistema Pcs teria uma
origem sensorial específica, sendo a palavra um resíduo mnemônico da palavra
ouvida. Sendo, ainda, resíduos mnêmicos, podem voltar a ser conscientes.

Desta forma Freud nos apresenta uma nova descoberta, sendo ela: “(...) que
apenas pode tornar-se consciência aquilo que já foi percepção cs, e que, excluindo
os sentimentos, o que a partir de dentro quer tornar-se consciente deve tentar
converter-se em percepções externas. O que se torna possível mediado a traços
mnêmicos.” (FREUD, p.14 1923). Freud entende que os resíduos de memória
estariam contidos em sistemas adjacentes ao do sistema Pcp-Cs, deste modo os
seus investimentos conseguiriam prosseguir por este sistema (Pcp-Cs) partindo do
interior.
Freud coloca que a lembrança se diferencia da alucinação e da percepção
externa, de modo que, ao vivermos uma lembrança, o investimento é conservado no
sistema mnemônico, no caso da alucinação, esta não se diferenciaria da percepção,
podendo, assim, surgir quando o investimento passa inteiramente para o elemento
Pcp, e não só propaga-se a partir dos traços mnêmicos.

Freud responde à questão de como tornamos (pré-)consciente algo reprimido com:


“ao estabelecer tais elos intermediários pcs, por meio do trabalho analítico. A
consciência permanece em seu lugar, então, mas tampouco o Ics subiu, digamos,
até o Cs.” (FREUD, 1923)

Enquanto os vínculos entre o Eu e a percepção externa seriam mais


evidentes, a percepção interna, requerem uma especial investigação, pois ela
coloca em questão a consciência enquanto um sistema superficial (Pcp-Cs). A
percepção interna diz respeito a sensações de processos advindos de diversas
camadas do aparelho psíquico, incluindo as mais profundas. Sendo, assim, essas
sensações seriam mal conhecidas, mais primordiais, sendo manifestações
pluriloculares, vindo de diversos lugares simultaneamente, tendo, assim, qualidade
diversas e opostas. A série de prazer-desprazer é trazida como o melhor exemplo
destas percepções internas, por Freud.

Retoma-se que as sensações de Prazer e desprazer, são causadas por uma


diminuição dos investimentos energéticos e por um aumento, respectivamente. Ao
se denominar o que se torna consciente enquanto prazer e desprazer, sendo na
verdade algo que é qualitativo-quantitativo outro no curso psíquico, Freud questiona
se este outro pode tornar-se consciente onde está ou se este outro teria de ser
conduzido ao sistema Pcp. Para Freud, a experiência clínica demonstra a última
opção como a correta. Este outro se comportaria como um impulso reprimido, sem
que o Eu note sua pressão, sendo então, apenas com a resistência à pressão, que
este outro tornar-se-ia consciente como desprazer.

Sensações e sentimentos também teriam que atingir o sistema Pcp para se


tornarem conscientes. Nos casos em que o caminho da sensação é barrado, esta
sensação não seria sentida como tal. Freud, fazendo uma analogia com as ideias
inconscientes, fala aproximadamente sobre os sentimentos inconscientes, com a
diferença de que as idéias inconscientes que precisam criar elos (representações
verbais) para se conduzirem ao cs, e no caso dos sentimentos, isso se daria de
forma direta. Ressalta-se que a diferença entre Cs e Pcs não faz sentido para os
sentimentos, este podem ser apenas conscientes ou inconscientes, mesmo quando
são ligados a representações verbais, não seria isso que propriamente as fizeram
se tornar conscientes.

Entende-se melhor, assim, o papel da representação verbal, sendo por


intermédio desta que se dá a transformação dos processos de pensamento internos
em percepções. Deste modo, entende-se que em um super investimento do pensar,
todos os pensamentos são percebidos como de fora, de modo a serem tidos como
verdades.

Ao começar a definir o Eu, Freud coloca o sistema Pcp como seu núcleo, e
além de abarcar o Pcs (que se apoia nos resíduos mnêmicos), como já colocado
acima, parte deste Eu também é inconsciente. O Eu, é colocado pelo autor
enquanto uma entidade que parte do sistema Pcp e é inicialmente pcs, e de Id
(parte da psique que se comporta como ics – o termo é usado por Groddeck e
adotado por Freud). Um sujeito é, assim, para Freud, um Id (um algo) psíquico,
inrreconhecido e inconsciente, que teria em sua superfície o Eu, este desenvolvido a
partir de seu núcleo, o sistema Pcp. Imaginando uma representação gráfica para
este aparelho psíquico, ter-se-ia o Eu sem uma separação nítida com o Id, de modo
a confluir com ele na parte interior, do mesmo modo, o reprimido concluiria com o Id,
sendo uma parte dele. O reprimido permanece separado do Eu pelas resistências
da repressão, mas por meio do Id poderia, o Eu, comunicar-se com ele.

O Eu é entendido como a parte do Id que fora modificada pelo mundo


externo, de forma análoga, pode se pensar que a percepção tem o mesmo papel
para o Eu do que a pulsão tem para o Id. O Eu, no qual vigora o princípio de
realidade, esforça-se para colocar as influências do mundo externo sobre o Id,
sendo o princípio de prazer o que vigora no último. O Eu, que representaria a razão,
encontrar-se-ia em oposição às paixões do Id.

Usando a metáfora do cavalo e do cavaleiro Freud coloca o Eu (cavaleiro)


como estando sob controle normalmente da motilidade (descargas), de modo a se
comportar como um freio aos impulsos do Id (cavalo), o fazendo por meio de forças
emprestadas. Mas, do mesmo modo que por vezes o cavaleiro teria de conduzir o
cavalo para onde ele gostaria de ir a fim de não se separar deste, o Eu também
transforma em ato as vontades do Id, como se estas fossem suas.

A respeito da gênese do Eu, ou seja, sua diferenciação com o Id, ressalta-se


uma questão além da influência do sistema Pc, o corpo, principalmente sua
superfície, surgindo como uma projeção desta superfície, do qual podem partir
percepções internas e externas simultaneamente. O Eu consciente deve ser
pensado como sendo sobretudo um Eu corporal.

Pensando-se mais sobre as relações do Eu com a consciência, esperar-se-ia que as


funções psíquicas que se encontram em uma posição elevada em uma escala de
valores sociais ou morais tivessem maior facilidade de acesso a consciência em
comparação às atividades de valores inferiores que se dão no inconsciente, porém,
Freud demonstra que as experiência nos mostra que tanto as coisas mais elevadas
quanto as mais profundas do Eu, podem ser inconscientes. Isso se mostra nos
casos em que a auto crítica e a consciência moral, também se mostram
inconscientes, não sendo apenas o caso da resistência. Com isso, passa-se a falar
sobre um sentimento de culpa inconsciente, que ganha importância ao se notar que
esta culpa ergue maiores obstáculos na direção da cura das neuroses.

III. O EU E O SUPEREU (IDEAL DE EU)

Freud já havia tecido hipóteses sobre uma possível instância psíquica que
mais tarde chamaria de Supereu em alguns textos passados, como “Introdução ao
Narcisismo”, de 1914, e “Psicologia das massas e análise do Eu”, de 1921. Neste
capítulo, ele insiste em mencionar que tais hipóteses anteriores ainda são válidas.
Antes de propriamente apresentar o Supereu, ele inicia o texto com uma digressão,
como ele mesmo diz, ao objetivo principal de seu texto.

Inicia o texto, portanto, se utilizando de algumas patologias para ilustrar as


relações de investimento objetal; na melancolia tem-se a perda de um objeto que
antes fora alvo da libido, e, por consequência, um retraimento dessa energia
investida para o Eu. Esse objeto se estabelece novamente no Eu, ou seja, o
investimento objetal é substituído por uma identificação. Essa substituição seria em
parte responsável pela configuração e formação do que chamamos de caráter do
Eu, caráter esse que seria um precipitado dos investimentos objetais abandonados,
portanto, teria relação com a história das escolhas eróticas de objeto do indivíduo.

Freud também vê essa transformação de outra maneira: pode-se entendê-la


como uma tentativa do Eu controlar o Id. Ao adquirir traços do objeto, o Eu estaria
sujeito a ser amado pelo Id, assim como este amara o objeto perdido, como que
dizendo: “Veja, você pode amar a mim também, eu sou tão semelhante ao objeto”.

Essa realocação da libido, dos objetos ao Eu, envolve de certa forma uma
sublimação, pois nesse processo tem-se o abandono das metas sexuais e um
retraimento da libido ao Eu, este que poderá dar-lhe outra meta a partir disso. Isso
caracterizaria o narcisismo secundário descrito por Freud em “Introdução ao
Narcisismo”.

Em seguida, Freud passa a discorrer sobre as identificações, dando destaque


às primeiras identificações da infância. A identificação é o laço afetivo mais primitivo
que temos com alguém, não à toa as construídas na tenra infância serem de
extrema importância e terem efeitos duradouros na vida psíquica do sujeito. A
identificação pelos pais seria a primeira e mais significativa de todas, uma relação
mais antiga que qualquer investimento objetal. Essas primeiras relações de
identificação, diz Freud, são extremamente complexas, por conta de dois fatores: a
natureza triangular da situação edípica e a bissexualidade constitucional do
indivíduo.

A título de ilustrar esses dois pontos, Freud prossegue em exemplificar essas


relações no desenrolar do Complexo de Édipo do menino. Neste, bem cedo se
desenvolve uma identificação pelo pai e um investimento objetal na figura da mãe,
ilustrando o que seria um protótipo de uma escolha objetal por “apoio”. Ambas
relações coexistem até o momento em que se dá o Complexo de Édipo, ou seja,
quando o menino passa a ter sentimentos ambivalentes em relação ao pai,
sentimentos estes que estavam presentes desde o início na relação de
identificação, mas latentes. O menino então vê o pai como um obstáculo a ser
superado e eliminado, a fim de substituí-lo ao lado de sua mãe.

Mais tarde, com o declínio do Complexo de Édipo, o investimento objetal na


mãe tem que ser abandonado, surgindo no lugar uma identificação com a mãe, ou,
mais comumente, um fortalecimento da identificação pelo pai. Freud fala aqui em
um Édipo “normativo” e positivo, em contraposição a um desfecho edípico contrário
e negativo, e isso teria relação com a bissexualidade originária e constitutiva da
criança.

Em suma, o Complexo de Édipo seria responsável por estabelecer essas


duas relações de identificação da criança com seus pais, e teria como resultado um
precipitado no Eu, este que se formará como o ​Super-eu ou Ideal de Eu.​

É importante deixar claro que Freud usa muitas vezes os dois termos sem
fazer diferenciação, o que pode causar confusão quando pensamos as funções de
cada um. O Super-eu caracteriza-se pela proibição, pelo limite. Já o Ideal de Eu é
afirmativo, representa o caminho a seguir, uma tentativa em vão de reviver as
primeiras experiências de onipotência infantil. O Eu tenta seguir a caminho do
perdido Eu Ideal, aquele que uma vez fomos enquanto “majestade, o bebê”, embora
não seja possível retornarmos a este estado. Nesse sentido, o Ideal de Eu aponta
como devemos viver, e o Super-eu julga o Eu com base nesse modelo. ​Algumas
referências que podem ajudar: Definições de Ideal de Eu (página 289) e Supereu
(página 643) no livro “Vocabulário da Psicanálise” de Laplanche e Pontalis.

O Super-eu, no entanto, é mais que apenas um resíduo das primeiras


escolhas objetais do Id. Ele representa a repressão do Complexo de Édipo, uma
internalização do obstáculo para os desejos infantis que antes se materializaram na
figura dos pais. Sua relação com o Eu trata tanto da proibição: “você não deve
ser/fazer”, como da afirmação: “você deve ser/fazer”, sendo esta última função mais
atrelada ao Ideal de Eu.

A severidade do tratamento do Supereu com o Eu tem relação direta com a


severidade da repressão do Complexo de Édipo da criança. Desde modo, pode-se
dizer que o Super-eu conservará o caráter do pai, na medida em que a criança de
certo modo tomou emprestada a força do pai para estabelecer essa autoridade
dentro de si. Freud atribui então a gênese do Supereu a dois fatores biológicos: a
longa dependência e desamparo infantil do ser humano e o desenrolar do seu
Complexo de Édipo.
Pode-se dizer que o Supereu é o herdeiro do Complexo de Édipo;
estabelecendo-o, o Eu se assenhora do Complexo de Édipo, ao mesmo tempo em
que se submete ao Id. Assim, o Eu passa a responder à três senhores: os impulsos
internos que provém do ​Id,​ as exigências realísticas do ​mundo externo,​ e as ordens
imperativas do ​Super-eu.​

Freud agora se volta à uma das muitas críticas feitas a psicanálise; a de não
se importar com aquilo que seria além do indivíduo; o supra pessoal, a moral, por
exemplo. Este algo que é “elevado” no ser humano, diz Freud, é justamente o Ideal
de Eu ou Supereu, que seria o representante das relações da criança com seus
pais. O Super-eu satisfaz tudo o que se espera desse algo “elevado” no homem.
Nesse sentido, a semente a partir da qual surgiriam todas as religiões estariam nele.
A comparação do Eu com seu ideal produziria esse sentimento de humildade
presente nas religiões, que se caracterizam por criarem uma figura onipotente e
inalcançável. O sentimento de culpa surge justamente quando esse Eu não é capaz
de corresponder às exigências da consciência.

Numa hipótese histórica, sobre a origem da religião, moral e sentimento


social no homem, Freud propõe uma questão: A moralidade e religião teriam sido
adquiridas pelo Eu ou pelo Id do homem primitivo? Essa questão, diz mais a frente,
não se sustenta. Não faria sentido pensar um Id que se sustentara sozinho, dado
que ele precisa do Eu para se comunicar com o mundo externo. Também não se
pode falar numa transmissão hereditária no Eu, mantendo sempre em mente que o
Eu nada mais é que uma parte do Id que se diferenciou dado o contato com esses
estímulos do mundo externo. As vivências no Eu, no entanto, se repetidas com
frequência e força suficientes em muitos indivíduos, de certa forma se transformam
em vivências no Id. Assim, esses resíduos hereditários no Id, que abarcam
inúmeras existências de Eu, poderiam se atualizar quando o Eu cria o Supereu a
partir do Id.

IV. AS DUAS ESPÉCIES DE PULSÕES

Antes de tudo, faz-se necessário uma observação sobre a tradução da obra


de Freud. Na edição da Companhia das Letras, que aqui resumimos, o tradutor
optou pelo uso da palavra ​instinto para traduzir ​trieb,​ do alemão original. No entanto,
não concordamos com tal leitura e assim optamos neste resumo em usarmos o
termo ​pulsão.​ Isso pois na psicanálise existe uma diferença conceitual rigorosa
​ ​pulsão​. A tradução por ​instinto pode induzir o leitor ao erro, pois
entre ​instinto e
Freud nesse capítulo tem justamente o objetivo de apresentar esses dois tipos de
pulsões​ q​ ue conduziriam a vida humana, para além daquilo que é instintual.

Com a segunda tópica devidamente apresentada, Freud acredita que agora a


psicanálise tem um melhor acesso à compreensão das relações dinâmicas da vida
psíquica. Nesse capítulo, ele se utiliza da concepção pulsional que desenvolveu
alguns anos antes, em “Além do Princípio do Prazer”; a dualidade das pulsões
sexuais e as pulsões de autoconservação se encontrariam agrupadas nas ​pulsões
de vida​, em contraponto a uma nova força pulsional que chamou de ​pulsão de
​ ritmo da vida seria dado por um conflito dessas duas forças, que apesar de
morte. O
contrárias, atuariam em conjunto no ser humano. A alma seria então palco de uma
eterna luta entre Eros e Thanatos; um responsável por conservar a vida e o outro
com a tarefa de reconduzir o organismo a um estado inorgânico. As pulsões de
morte também se encontrariam manifestados como ​pulsões de destruição​, ou seja,
uma força voltada para o mundo externo e outras formas de vida.

Freud utiliza-se do exemplo do componente sádico do instinto sexual para


representar a mescla entre a pulsão de vida e pulsão de morte. No entanto, também
podemos facilmente ver no cotidiano uma espécie de confusão entre prazer e
desprazer. Tomamos os filmes de terror como exemplo; o fato de existirem muitas
pessoas que assistem esses filmes, mesmo sabendo que vão sentir medo, é no
mínimo curioso. Poderíamos então falar em uma certa satisfação no desprazer? Foi
através de observações das neuroses traumáticas e das brincadeiras infantis que,
em sua clínica, Freud chegou a uma “compulsão a repetição”, que a posterior o
levou a desenvolver uma teoria sobre um outro princípio para além do já conhecido
princípio do prazer.

O fato de haver uma mescla de ambas forças pulsionais, nos faz pensar
também numa disjunção entre elas. É por essa via que Freud irá pensar algumas
patologias como modelo de uma disjunção pulsional, como nos casos de neurose
obsessiva e nas regressões a estados anteriores do desenvolvimento da libido. A
ambivalência amor-ódio também é possível de ser pensada como representante das
pulsões. O ódio é facilmente observável como acompanhante em relações de amor,
até mesmo ele próprio pode se tornar amor, e vice-e-versa.

Em seguida, Freud discorre sobre uma possível energia indiferenciada e


deslocável na psique, que poderia juntar-se aos impulsos eróticos ou destrutivos,
elevando o investimento total destes. Ele supõe que essa energia provém da
reserva de libido narcísica, dado a maior plasticidade e facilidade de deslocamento
das pulsões de Eros sobre as de destruição. Essa energia, portanto, trabalharia a
favor do princípio do prazer, ou seja, a favor das descargas.

Se essa energia deslocável é uma libido dessexualizada, ou seja, livre de


investimentos, ela pode ser entendida como sublimatória. Freud aqui retoma o
pensamento que desenvolveu no capítulo anterior do “Eu e o Id” sobre o Eu ser o
intermediador das sublimações; este primeiro converteria a libido objetal em libido
narcísica, para depois dar-lhe uma outra meta que não a sexual. Por essa linha de
pensamento, este seria o caminho geral das sublimações. O Eu, portanto,
trabalharia de encontro às intenções de Eros, se apoderando da libido dos
investimentos objetais e os dessexualizando, se colocando a serviço desses
impulsos pulsionais.

Freud agora dá um passo à frente em sua teoria do narcisismo. No início,


toda a libido estaria represada no Id, ainda sem uso e investimento, o que
caracterizaria um narcisismo primário. Na medida em que o Id envia parte dessa
libido sexual aos objetos, o Eu vai se fortalecendo, apoderando-se dessa libido e a
direcionando a si. Esse narcisismo do Eu seria então necessariamente secundário,
pois se trata de um reinvestimento da libido ao Eu, retirada dos objetos.

Voltando ao tema da dualidade pulsional, Freud diz mais uma vez como não
é fácil sustentá-la, dado a “mudez” das pulsões de morte em relação a Eros; este
daria o fragor da vida, enquanto as pulsões de destruição voltadas para o mundo
exterior seriam desviados pelo próprio Eu, por mediação de Eros. Se não fossem as
construções desenvolvidas em “Além do Princípio do Prazer” sobre os casos em
que a “compulsão a repetição” é claramente observável, e do clássico componente
sádico em Eros, teríamos uma dificuldade em manter tal concepção dualista. As
pistas dos impulsos instintuais, portanto, seriam majoritariamente de Eros.

Freud por fim analisa a satisfação do ato sexual humano pela via pulsional; o
estado de plena satisfação que o sexo propõe seria análogo a morte em alguns
animais inferiores, onde de fato a reprodução da espécie é seguida de um
aniquilamento. Nos humanos, após a “exclusão” de Eros nessa satisfação total e
absoluta do ato sexual, a pulsão de morte estaria livre de barreiras para se
manifestar e levar a cabo suas intenções. Curiosamente, há em francês um termo
que se refere ao estado de breve melancolia ou transcendência que se experiencia
após o orgasmo, chamado de ​la petit mort,​ que significa “a pequena morte”.

V. As relações de dependência do Eu

No quinto e último item do texto “O Eu e o Id” Freud tenta explicar as relações


que o Eu estabelece com o mundo externo, com o Supereu e com o Id. Em primeiro
lugar, a constituição do Eu se dá por meio de suas identificações com os objetos
abandonados pelo Id, essa identificações tem um lugar privilegiado de
funcionamento dentro do Eu. O Supereu por sua vez seria o herdeiro do Complexo
de Édipo, a tal da primeira identificação, que tomou lugar dentro do psiquismo
quando o Eu ainda estava demasiadamente enfraquecido e muito suscetível a
influência dessas primeiras identificações. Conforme o Eu se fortifica, as influências
que essas identificações possuem podem ir perdendo seu lugar tão privilegiado,
entretanto o Supereu sempre terá domínio sobre o Eu, uma vez que “é o
monumento que recorda a anterior fraqueza e dependência do Eu” (FREUD, 1923,
p. 60).

O Supereu está mais próximo ao Id, do que o Eu está do Id, dessa forma o
Supereu representa o Id para o Eu, pois o Supereu está mais embrenhado no
inconsciente do que o Eu e assim tem mais acesso ao Id. Freud exemplifica esta
relação do Supereu com o Id retomando casos em que seus pacientes pioram
depois de uma melhora significativa na análise, como se ficassem reféns de sua
própria doença. Pois parar de estar doente significa parar de sofrer, e se o paciente
não sofre o sentimento de culpa não pode encontrar satisfação, culpa esta que
talvez siga sendo o único laço do paciente com suas relações amorosas primordiais
e que tiveram de ser abandonadas.

Tal culpa provém do Supereu, mais precisamente, a crítica que o Supereu


tem sobre o Eu gera culpa no Eu, sentimento que se ancora no conflito do Eu com
seu Ideal de Eu. O Ideal de Eu é muitas vezes cruel com o Eu julgando o Eu
sempre com muita severidade, funcionamento muito presente na neurose obsessiva
e na melancolia, embora com destinos diferentes para esta culpa. Na neurose
obsessiva esta culpa não se justifica junto ao Eu, isto significa que o obsessivo se
indigna com a culpa que lhe foi atribuída e exige que seja fortalecido, em análise,
para que possa rejeitar tais sentimentos. Na melancolia, a culpa é tomada inteira
pelo Eu, o Eu se cala diante da culpa e se reconhece como culpado diante dela. Na
histeria, no entanto, a culpa tem como destino o recalque, e aí o Eu poderá manter,
através da resistência, a culpa no inconsciente, enquanto na “neurose obsessiva
predominam notoriamente os fenômenos de formação reativa; aqui o Eu consegue
apenas manter a distância o material a que se refere o sentimento de culpa.”
(FREUD, 1923, p. 65)

A melancolia tem como característica um Supereu extremamente forte, e


parece tomar conta de todo o sadismo disponível na pessoa, dessa forma toda sua
pulsão de morte se volta para o Eu, um sentimento de destruição que impele o Eu à
morte. Na neurose obsessiva é quase impossível que o sujeito chegue a realizar um
suicídio, como na melancolia, pois ele é imune ao perigo da autodestruição e muito
mais protegido do que o sujeito histérico. Na neurose obsessiva a tendência a
destruição fica livre e tem como objetivo destruir o objeto, mas tais tendências ficam
localizadas no Id e não no Eu, que se protege delas com formações reativas. Porém
o Supereu recrimina o Eu pelas tendências de destruição e o Eu então se vê
encurralado, diante “das instigações do Id assassino e dos reproches da
consciência punitiva” (FREUD, 1923, p. 67).

Vale dizer ainda que na melancolia o Ideal de Eu é ainda mais agressivo,


uma vez que a agressividade do melancólico fica restrita do mundo exterior, então a
agressividade passa a circular somente no mundo interno, seu receptáculo é o Eu e
quem faz uso dela é o Ideal de Eu, dessa maneira o Supereu na melancolia torna-se
um local de reunião da pulsão de morte.
O Eu então seria uma espécie de monarca constitucional, que sem sua
palavra final nada se torna lei, mas precisa ponderar cuidadosamente o que vetará
ou não, mais precisamente o que vem do Id. O Eu tenta fazer a ponte do Id com o
mundo externo, como um mediador, mas ao mesmo tempo também precisa
subjugar o Id, e retirar a libido do Id para que essa libido possa ser transformada de
investimentos objetais do Id em configurações do Eu. Os conteúdos do Id podem
chegar no Eu através de duas formas: a forma direta e a forma que passa pelo Ideal
de Eu. A constituição do Eu é marcada pela percepção das pulsões ao controle das
pulsões, da obediência às pulsões à inibição das pulsões, nestas operações há forte
presença do Ideal de Eu, que é uma formação reativa aos processos pulsionais do
Id. O Eu então vira servo de três senhores, do mundo externo, do Id e do Supereu:

Como entidade fronteiriça o Eu quer mediar entre o mundo e o Id, tornando


o Id obediente ao mundo e, com sua atividade muscular, fazendo o mundo
levar em conta o desejo do Id. Na verdade, ele se comporta como o médico
num tratamento analítico, na medida em que, com sua atenção ao mundo
real, oferece-se ao Id como objeto libidinal e procura guiar para si a libido
do Id. (FREUD, 1923, p. 70)

O Eu também lida com Eros, ou a pulsão de vida, e a pulsão de morte, ora se


arriscando e podendo tornar-se objeto da pulsão de morte, podendo até mesmo
morrer, ou enchendo-se de libido e tornando-se representante de Eros.

E por fim, há a relação do Eu com o Supereu, o Eu se vê ameaçado pelos


perigos externos e a libido do Id, podendo ser medo de dominação ou destruição.
Dessa maneira, o Eu retira seu investimento da percepção ameaçadora e o externa
como angústia. Freud então conclui dizendo que essa angústia, seja a de morte ou
da consciência moral, pode ser entendida como uma tentativa de elaboração da
angústia de castração

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