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Introdução

Os sonhos nos oferecem a principal via para adentrar ao inconsciente. Sua


linguagem caracteristicamente simbólica proporciona um desafio ao psicanalista.
Procuramos realizar os nossos mais profundo desejos em nossos sonhos, que se
feitos à luz do dia seriam a causa de embaraço e aversão para aqueles que junto
conosco formam uma sociedade com valores e conceitos estabelecidos.

Os sonhos trazem do nosso inconsciente para a consciência desejos mais


reprimidos e “proibidos”, desejos recalcados, no qual sublimamos, ou seja, inibimos
nossos objetos de desejo. É através dos sonhos que temos a capacidade de vivenciar
esses objetos. Entrando profundamente nesse vasto mundo de desejos reprimidos,
fazemos um mergulho ao nosso inconsciente, ou seja, para dentro de nós mesmos,
tentando procurar o máximo de realização. Dessa forma, é muito importante que o
psicanalista em formação compreenda os mecanismos de elaboração do sonho, bem
como os princípios que o regem para sua devida interpretação.

Desde a publicação de “A interpretação dos sonhos” de Sigmund Freud, em


1900, a compreensão sobre a natureza humana ganhou novos significados. Ao incluir
o conceito de Inconsciente no paradigma científico, o médico austríaco abriu as portas
para a desconstrução de mitos e formalidades que ainda persistiam na sociedade de
seu tempo. Seguindo um princípio determinista, típico da ciência forjada em fins do
século XIX, Freud colocou o Inconsciente no centro das ações humanas, sendo tal
componente o responsável pela configuração mesma do ser, influenciando todo o seu
psiquismo e suas ações no mundo. Nesse contexto, os sonhos tomam papel
primordial para o conhecimento do verdadeiro homem, de sua natureza profunda, que
molda toda sua realidade exterior.

O que até então era apenas objeto de especulação ou de interpretações


alegóricas ou místicas, de cunho popular, passa a fazer parte do rol de estudos de
base objetiva. Segundo Freud “Os sonhos nunca dizem respeito a trivialidades: não
permitimos que nosso sono seja perturbado por tolices. Os sonhos aparentemente
inocentes revelam ser justamente o inverso quando nos damos ao trabalho de analisá-
los” (FREUD, 1996, p. 213).

Como bem afirma FROMM, Freud “reconheceu, pela primeira vez, o sintoma
neurótico como algo determinado por forças dentro de nós mesmos, como algo que
faz sentido quando se possui a chave para entendê-lo” (FROMM, 1973, P. 45).

Ainda que marcada por uma forte sexualização em sua interpretação e restrita
à ideia de que os sonhos sempre são realizações de desejos, a teoria freudiana serviu
de base para desenvolvimento de novos caminhos para se chegar ao Inconsciente a
partir do reconhecimento das imagens geradas nos períodos de sono.

Um desses novos caminhos interpretativos foi proposto por Carl Gustav Jung,
cujos seminários sobre interpretação de sonhos realizados em língua inglesa no
período entre 1928 e 1930 chegam agora ao Brasil pela Editora Vozes (Seminários
sobre análises de sonhos: notas do seminário dado em 1928-1930 por C.G. Jung.
Organização de William McGuire. Tradução de Caio Liudvik. Petrópolis, Vozes, 2014).
Durante muitos anos, esse material ficou restrito a um pequeno e seleto grupo e só
tinham acesso a ele aqueles analistas que tivessem aprovação das instituições que
os mantinham. Graças ao trabalho de organização desenvolvido inicialmente por
R.F.C. Hull e complementado por William McGuire, os apreciadores da obra de Jung,
estudantes e profissionais de psicologia e psicanálise têm em mãos um material
riquíssimo em conteúdo para aprofundamento numa das áreas mais controversas da
psicologia.

Como ser objetivo com algo tão subjetivo? Nesse contexto, JUNG aponta um
sinal: “O sonho é uma tentativa de assimilar coisas ainda não digeridas. É uma
tentativa de cura” (JUNG, p. 43). E ao longo dos seminários, ele apresenta um
conjunto de sonhos de seus pacientes e os coloca em discussão com o grupo de
estudos. A cada página ele vai descortinando possibilidades, abrindo caminhos de
interpretação, partindo de referenciais do próprio sonhador, bem como estabelecendo
ligações com temas universais (um sonho com um touro, por exemplo, leva Jung a
fazer uma digressão sobre a relação com Mitra e a elaboração da vida social).
Um detalhe interessante desta obra é a manutenção de certo tom mais trivial
do discurso. As transcrições feitas mantiveram a fluência da palavra do médico suíço,
o que nos permite acompanhar o raciocínio e, ao mesmo tempo, sentir como as ideias
iam sendo construídas na medida em que apresentadas pelo autor. Também são
mantidos os diálogos e intervenções dos participantes. Há momentos em que é
possível perceber a sutileza do humor de Jung ao abordar algumas questões. Em
outros, flui um conjunto de citações históricas e conhecimentos de culturas diversas
que embasaram e deram sustentação a muito do que Jung desenvolveu em suas
teorias. É como se estivéssemos frente a frente com ele, sentindo também nosso
Inconsciente mobilizado pelo conjunto sistêmico de seu raciocínio.

Como citado anteriormente, há traços referenciados à teoria freudiana, mas


Jung já aponta novos rumos em seu trabalho, desconstruindo a abordagem de seu
iniciador na Psicanálise. Enquanto Freud postulava que nos sonhos certas imagens
oníricas seriam expressões disfarçadas de algum sentimento (ao invés do paciente
sonhar com o próprio médico, no sonho apareceria outra pessoa para representá-lo,
como um mecanismo de disfarce, um ocultamento que precisaria ser desvendado),
Jung já busca uma concretude maior em seu objeto de estudo: “Afirmo que o
inconsciente diz o que quer dizer. A natureza nunca é diplomática. Se a natureza
produz uma árvore, é porque quis fazer uma árvore, não se enganou querendo fazer
um cachorro. E assim o inconsciente não busca disfarces, nós é que o fazemos”
(JUNG, p. 51).

Ele extrapola o conceito de sexualidade e apresenta uma abordagem que vai


do simbólico ao histórico, objetivando a construção de uma nova imagem do sujeito,
que se vê frente a frente com sua realidade interior querendo ser conhecida.

Jung apresenta nesses seminários praticamente todos os temas com que


trabalhou ao longo de sua trajetória na construção da Psicologia Analítica: anima,
animus, inconsciente coletivo, sombra, entre outros. É num destes seminários que ele
apresenta pela primeira vez o conceito de Sincronicidade, que somente em 1930 viria
a ser desenvolvido formalmente em livro.
Os “Seminários sobre análise de sonhos” vêm enriquecer sobremaneira a
literatura de psicologia disponível em língua portuguesa, acrescentando valiosas
informações à tão vasta obra de Carl Jung e abrem um leque de opções para o estudo
sistemático deste componente tão essencial em nossas vidas, o sonho, e que tantas
vezes tratamos como uma coisa engraçada ou sem sentido.

Para além desta compreensão, os seminários mergulham a fundo na dinâmica


do Inconsciente e sua profusão de imagens que revelam seus significados na medida
em que compreendemos sua dinâmica, seu movimento, sua historicidade: “São
pequenos dramas, cada um com seu preâmbulo, situação dramática, catástrofe e
solução, embora de certa forma estáticos. Porém, se analisarmos uma série de
sonhos, descobriremos que há um movimento, um movimento circular, ou melhor,
uma espiral. E ainda, isto nos dá uma maior sensação de certeza e segurança em
saber que uma suposição equivocada poderá ser corrigida ou verificada nos sonhos
seguintes; e conseguimos ter uma muito melhor impressão da análise de sonhos
quando podemos seguir uma série de sonhos da mesma pessoa” (JUNG, p. 293).

Provocador e perturbador de nossas consciências com seus conceitos que


foram tidos por muitos como mais místicos do que científicos, Jung é uma referência
fundamental para quem deseja se aprofundar no conhecimento da mente humana e
trabalhar no sentido de levar o homem a sua individuação, fazendo a integração
completa de todo o seu ser.

A OBRA “INTERPRETAÇÃO DOS SONHOS” DE SIGMUND FREUD

Na obra A Interpretação dos sonhos, Freud apresenta um abundante


material de análises de sonhos, essas análises se articulam com o
estabelecimento de teses gerais sobre a formação do material onírico, o que irá
culminar em uma formulação sistemática acerca do funcionamento do aparelho
psíquico. A obra apresenta uma concepção de um aparelho psíquico sem
referências anatômicas, por conseguinte, os processos psíquicos que estariam
presentes nesse aparelho prescindiriam de uma localização corpórea.
Assim Freud (1996ª, p. 563) diz
Desprezarei por completo o fato de que o aparelho anímico em que
estamos aqui interessados é-nos também conhecido sob a forma de
uma preparação anatômica, e evitarei cuidadosamente a tentação de
determinar essa localização psíquica como se fosse anatômica.
Permanecerei no campo psicológico, e proponho simplesmente seguir
a sugestão de visualizarmos o instrumento que executa nossas
funções anímicas como semelhante a um microscópio
composto, um aparelho fotográfico ou algo desse tipo. Com base
nisso, a localização psíquica corresponderá a um ponto no interior do
aparelho em que se produz um dos estágios preliminares da
imagem. No microscópio e no telescópio, como sabemos, estes
ocorrem, em parte, em pontos ideais, em regiões em que não se situa
nenhum componente tangível do aparelho.

Assim, o aparelho psíquico é concebido “psicologicamente”, sem


base anatômica e composto por instâncias psíquicas e não mais por neurônios
investidos, como na obra Projeto para uma psicologia científica (FREUD,
1996b). O aparelho psíquico passa a ter a natureza de uma especulação, ou seja,
equivale a um constructo que não tem correspondência na empiria. Vale ressaltar
que o fato de não poder ser comprovado empiricamente, não torna esse conceito
pouco importante ou infrutífero, afinal, é possível reconhecer o seu valor
heurístico.

Freud (1996a, p.563), ao explicar ao leitor sobre o seu modo de abordar


o funcionamento do aparelho psíquico, esclarece:

Retrataremos o aparelho psíquico como um instrumento composto


a cujos componentes daremos o nome de “instâncias”, ou (em
prol de uma clareza maior) “sistemas”. Pode-se prever, em seguida,
que esses sistemas talvez mantenham entre si uma relação espacial
constante, do mesmo modo que os vários sistemas de lentes de um
telescópio se dispõem uns atrás dos outros.

Na primeira topografia do seu aparelho psíquico, Freud nos fala em três


instâncias: o consciente, pré-consciente e inconsciente. consciente referese,
segundo Freud (2004, p.83), apenas à representação que está presente
em nossa consciência, ou seja, àquela que percebemos como tal. Já no
inconsciente encontram-se os conteúdos latentes, aos quais não temos acesso
direto e que fazem força para adentrar a consciência. É nessa instância que
Freud localiza a mola geradora dos sonhos, chistes, lapsos e sintomas.

Para Freud (1996ª, p.568) “a força propulsora da formação dos sonhos é


fornecida pelo inconsciente”. O inconsciente é visto como o fator causal destas
formações psíquicas. Sobre a formação dos sintomas, Freud afirma que “o mundo
interno do paciente histérico está recheado de representações psíquicas ativas,
mas inconscientes; todos os seus sintomas originam-se delas” (FREUD, 2004,
p.85). Continuando a definição das instâncias psíquicas, cabe indicar o
pré-consciente, ou seja, a terceira instância onde se localiza uma censura
que controla a passagem de conteúdos entre as demais localidades.

Entre as instâncias presentes na primeira topografia do aparelho psíquico,


a de maior relevância para o desenvolvimento do tema relacionado ao
nosso artigo é a instância inconsciente, pois é ela a responsável pelas
formações oníricas. Freud (1996c, p.17) assinala que, devido à teorização da
interpretação dos sonhos, a psicanálise progrediu em direção a uma ciência
que não tinha os elementos conscientes como fundamentais. Ao passo que, na
sua ciência a consciência é destituída da função causal em relação aos atos
psíquicos, a sua teorização caminha em direção a uma psicologia profunda,
baseada na análise de processos inconscientes. Ora, os sonhos são produtos
do inconsciente, portanto, a teoria dos sonhos tem um papel essencial no
desenvolvimento da psicanálise, pois foi a partir dela que se tornou
possível a vinculação do inconsciente com processos da vida cotidiana, uma vez
que os sonhos acometem tanto pessoas sãs quanto doentes.

Sendo assim, Freud (1996c, p.17) ressalta que é necessário voltar a atenção
primeiramente para a posição que ocupa a teoria dos sonhos, pois ocupa um
lugar especial na história da psicanálise e assinala um ponto decisivo;
foi com ela que a psicanálise progrediu de método psicoterapêutico para
psicologia profunda.

O fato de conseguir dar inteligibilidade a um sonho, que inicialmente era


nebuloso e não acessível, confirmava para Freud que sua ciência caminhava
no rumo certo, no caminho da comprovação da existência do inconsciente.
Mas, afinal de contas, como se forma o sonho? E quais as suas
características? Para responder essas questões, recorremos a uma
citação freudiana que nos elucida aspectos existentes nesse fenômeno da vida
psíquica:
Nosso primeiro passo consiste em estabelecer nossa nova atitude para
com o problema dos sonhos, introduzindo dois novos conceitos e
nomes. O que tem sido chamado de sonho descrevemos como
texto do sonho, ou sonho manifesto, e aquilo que estamos procurando,
o que suspeitamos existir, por assim dizer, situado por trás do
sonho, descreveremos como pensamentos oníricos latentes.
Havendo feito isto, podemos expressar nossas duas tarefas conforme
se segue. Temos de transformar o sonho manifesto em sonho latente,
e explicar como, na mente do sonhador, o sonho latente se tornou
sonho manifesto. A primeira parte é uma tarefa prática, pela qual é
responsável a interpretação de sonho; exige uma técnica. A segunda
parte é uma tarefa teórica, cuja atribuição é explicar a hipotética
elaboração onírica; e só pode ser uma teoria. Ambas, a técnica de
interpretação de sonhos e a teoria da elaboração onírica têm de ser
recriadas. (FREUD, 1996c, p. 19-20)

Os sonhos são produto do inconsciente e, mesmo sendo imprecisos e


aparentemente incoerentes, podem, com a ajuda do analista, ser transformados
em um texto comunicável, assim, o que o analista procura estabelecer no relato
do sonhador é a origem dos pensamentos latentes. Os sonhos manifestos, ou seja,
o relato do sonhador pode ser das mais diversas características, desde um
sonho coerente, a sonhos que o sonhador não consegue distinguir com alguma
precisão cenas ocorridas; daí a existência de uma técnica para que se possa
chegar ao conhecimento do real motivo do sonho, ao seu conteúdo latente.
Ainda sobre os sonhos, o criador da psicanálise dirá que se trata de uma
realização distorcida do desejo. (FREUD, 1996a, p.560)

Na formação onírica, dois mecanismos assumem uma posição privilegiada,


são eles: condensação e deslocamento. A condensação se refere à tendência
de formar novas unidades a partir de elementos que, em nossa vida de vigília,
estariam separados. Sendo assim, Freud dirá que um elemento do sonho
manifesto representa um grande número de pensamentos oníricos latentes,
“como se fosse uma alusão conjunta a todos eles; e, em geral, o âmbito do
sonho manifesto é extraordinariamente pequeno em comparação com a
riqueza de material de que se originou” (FREUD, 1996d,
p. 180). Quanto ao deslocamento, diz respeito à maneira como intensidades
psíquicas são transferidas de um elemento para outro, sendo assim:

Com frequência acontece que um elemento que era de pequena


importância nos pensamentos oníricos apareça como o aspecto
mais claro, e, por conseguinte, mais importante do sonho manifesto
e vice-versa, que elementos essenciais dos pensamentos
oníricos sejam representados no sonho manifesto apenas por ligeiras
alusões. (FREUD, 1996d, p. 180)

Segundo o pai da psicanálise, todos os processos envolvidos no


trabalho do sonho só vieram à tona graças aos seus estudos, posto que
antes os sonhos não correspondiam a um fenômeno psíquico cabível de
uma explicação científica. Os dois mecanismos explanados acima se referem aos
processos que regulam a produção do material onírico, estão a favor de
uma explicação científica para os sonhos. Além desses dois elementos que
compõem as regras que determinam a formação onírica, a resistência é outro
mecanismo que tem forte influência no ato de sonhar.

A resistência concerne a um conflito de forças. Uma dessas forças se


empenha para expressar algo, porém há uma força operando no sentido
contrário para evitar sua expressão. Nesse jogo, quando uma das instâncias
consegue efetuar seu desejo de expressar, a instância oposta acaba liberando
a passagem para a consciência da ideia afetiva, no entanto, essa expressão é
distorcida, sendo substituída por algo aceitável.

No caso dos sonhos, o inconsciente se esforça para expressar um


conteúdo, mas como este não pode ser suportado pela consciência,
sofre uma censura e é camuflado. Isso equivale a dizer que as instâncias
em conflito entram em conciliação. Para sermos mais específicos, ocorre
uma formação de compromisso, ou seja, o conteúdo recalcado acaba assumindo
outra forma, diferente da original, para ser aceito no consciente, assim, nesse
compromisso o desejo inconsciente acaba sendo satisfeito – ainda que de
maneira distorcida – e as exigências defensivas também. Resumindo:

Num ponto, uma dessas forças pode ter conseguido efetuar o que quis
dizer, ao passo que, em outro ponto, é a instância contrária que fez a
comunicação pretendida eclipsar-se completamente, ou ser
substituída por algo que não revela qualquer traço seu. Os casos mais
comuns e mais característicos de construção onírica são aqueles nos
quais o conflito terminou em uma conciliação, de forma tal que a
instância com voz ativa certamente foi capaz de dizer o que quis, mas
não da forma como quis - apenas numa forma acentuada,
distorcida, irreconhecível. (FREUD, 1996c, p. 24)
Para Freud o sonho é uma realização distorcida do desejo, afinal, o
conteúdo inconsciente consegue se expressar, ainda que modo cifrado,
alterado.

Os Sonhos na Concepção de Freud

A teoria dos sonhos proposta por Sigmund Freud em 1900 desperta cada vez
mais interesse sobre esse mundo tão incompreensível, rico e cheio de sentimentos,
que dá margem a muitas considerações, censuras e novas abordagens. O que antes,
era interpretado como símbolos ou premonições agora é visto como particularidades
de nosso inconsciente. Destaca-se ainda a importância dos sonhos na vida de
qualquer indivíduo, assim como a influência que exerce sobre os mesmos, sua análise
em terapia auxiliando o terapeuta durante o tratamento (SILVA & SANCHES, 2011).

Segundo Silva e Sanches (2011), pode-se dizer que o marco da grande história
de Sigmund Freud foi “A Interpretação dos Sonhos”, obra na qual antes não tinha
grande importância para a ciência, e que logo após tal publicação ganhou de fato seu
devido valor. Através destes estudos, foi possível trazer ao consciente os conteúdos
inconscientes, onde o sonhar é um fenômeno regressivo; no qual nos devolve aos
estados primitivos da infância.

De acordo com Ferza (2009), Freud parte do princípio de que todo sonho tem
um significado, embora oculto, da realização de desejos. Os desejos reprimidos na
vida de vigília muitas vezes estão relacionados com os nossos desejos mais primitivos
vetados fortemente pela moral vigente. Interpretar um sonho significa conferir-lhe um
sentido, isto é, ajustá-lo à cadeia de nossas faculdades mentais.

Segundo Martins (2003), a linguagem dos sonhos possui suas particularidades


que, ao longo dos séculos, mostrar-se como um grupo de eventos comuns de uma
época radicados na vivência dos povos. Possibilitou ainda, um aprofundamento dos
níveis mais ocultos da mente, tornando possível a abordagem de variados sintomas,
produtos de um ambiente capaz de oprimir e colocar em risco valores naturais de
cada ser. Sonhar é mais do que um simples produto do dia-adia. É revelar-se diante
do enigma invisível, mas possível de compreensão.

A História

Os sonhos sempre exerceram fascínio na humanidade desde a antiguidade,


inclusive entre os egípcios e, particularmente, entre os judeus do Antigo Testamento.
No livro de Gênesis da biografia do patriarca José vemos também a importância da
decifração dos sonhos no contexto bíblico. Em muitas culturas os sonhos eram
considerados como uma forma de comunicar-se com o sobrenatural, uma maneira de
se prever o futuro das pessoas. Num papiro egípcio datado de 2000 AC discute-se
sonhos e suas interpretações. Era crença na Grécia Antiga de que o sonhador estava
em contato com os deuses.

Em 1900, Freud publicou sua obra Die Treumdeutung (A Interpretação dos


Sonhos). Em seus textos, ele descreveu minuciosamente o trabalho dos sonhos, sua
importância e utilização no processo analítico. Ele também afastou essa temática das
crenças religiosas e culturais, as quais vinculavam o sonho a uma experiência
premonitória e supersticiosa herdada da Antiguidade através do senso comum
(OLIVEIRA, 2011).

O livro levou dois anos (1898 e 1899) para ser escrito e nele Freud construiu o
pilar da teoria psicanalítica, passando a constituir o ponto de apoio para todo o
desenvolvimento posterior da sua obra. Assim Sigmund Freud deu um caráter
científico ao assunto. Naquele polêmico livro, Freud aproveita o que já havia sido
publicado anteriormente e faz abordagens totalmente novas, definindo o conteúdo do
sonho, geralmente como a “realização de um desejo”.

De acordo com Moura (2008), o livro a Interpretação dos Sonhos marca a


passagem para um modelo que investiga não apenas as manifestações
psicopatológicas, mas capaz de dar conta do psiquismo em geral. No Capitulo VI do
livro, Freud elabora o primeiro grande modelo do aparelho psíquico. O psiquismo é
composto por dois grandes sistemas: inconsciente e pré-consciente/consciente – que
são separados pela censura, que através do mecanismo do recalque, mantêm certas
representações inaceitáveis fora do sistema consciente. Mas essas representações
exercem uma pressão para tornarem-se conscientes e ativas. Ocorre um jogo de
forças, entre os conteúdos reprimidos e os mecanismos repressores. Como resultado
desses conflitos há a produção das formações do inconsciente: os sintomas, sonhos,
lapsos e chistes.

O Sonho e Seus Conteúdos

Segundo Freud (1915), sonhos são fenômenos psíquicos onde realizamos


desejos inconscientes. O sonho é o resultado de uma conciliação. Dorme-se e, não
obstante, vivencia-se a remoção de um desejo. Satisfaz-se um desejo, porém, ao
mesmo tempo, continua-se a dormir. Ambas as realizações são em parte
concretizadas e em parte abandonadas (SIRONI, s.d.).

Na obra Teoria dos Sonhos, Freud postula que o homem precisa dormir para
descansar o corpo e, principalmente, para sonhar: "o sonho é a realização dos
desejos reprimidos quando o homem está consciente". Quando o homem dorme, a
consciência "desliga-se" parcialmente para que o inconsciente entre em atividade,
produzindo o sonho: através do id, os desejos reprimidos são realizados. Para Freud,
as causas dos traumas que geram certos comportamentos tidos como anormais estão
escondidas no inconsciente das pessoas, onde estão guardados os desejos
reprimidos.

Todo o material que compõe o sonho procede de nossas experiências, daquilo


que foi por nós vivenciado na vigília. Este material é recordado no sonho, embora não
seja imediatamente reconhecido pelo sonhador como originário de suas próprias
experiências. Esta é uma das características do conteúdo onírico manifesto: a de ser
experimentado pelo sonhador como algo que lhe é estranho, como se não fosse uma
produção sua (SIRONI, s.d.).
A elaboração de um sonho, segundo Freud (1915), ocorre porque “existe algo
que não quer conferir paz à mente. Um sonho, pois, é a forma com que a mente reage
aos estímulos que a atingem no estado de sono”. Alguns dos estímulos dos quais
Freud fala podem ser restos diurnos, sensações fisiológicas. Outros estímulos podem
ser os pensamentos ocultos, inconscientes, formados por desejos antigos, recalcados
pela censura do Superego – configurando-se como o texto original do sonho
(RABUSKE, 2011).

Os Conteúdos Latente e Manifesto dos Sonhos

Em “A Interpretação dos Sonhos” Freud criou o termo conteúdo manifesto para


referir-se à experiência consciente durante o sono, correspondendo ao relato ou
descrição verbal do sonho, ou seja, aquilo que o sonhante diz lembrar. Já o conteúdo
latente corresponde às idéias, impulsos, sentimentos reprimidos, pensamentos e
desejos inconscientes que poderiam ameaçar a interrupção do sono se aflorassem à
consciência claramente (REIS, 2009).

O conteúdo latente mostra-nos estruturas recalcadas que tentam emergir. O


conteúdo latente é o verdadeiro sonho, o conteúdo manifesto é o que o sujeito conta,
sendo um disfarce do verdadeiro sonho. O trabalho de sonho ou elaboração onírica é
a passagem do latente ao manifesto. Basicamente podemos dizer que o conteúdo
latente é inconsciente e o conteúdo manifesto é consciente. Além disso, o conteúdo
latente é algo semelhante a um impulso, enquanto o conteúdo manifesto é uma
imagem visual. Finalmente, o conteúdo manifesto é uma fantasia que simboliza o
desejo ou impulso latente já satisfeito, isto é, trata-se de uma fantasia que consiste
essencialmente na satisfação do desejo ou do impulso latente.

Segundo Silva e Sanches (2011), o conteúdo latente do sonho é a primeira


parte do processo de sonhar formado por três componentes: I- impressões sensoriais
noturnas; II- pensamentos e idéias relacionadas às atividades do dia (fragmentos do
nosso cotidiano, antes de pegamos no sono); III- impulsos do ID. São as impressões
sensoriais do indivíduo que se referem ao que os sentidos capturam mesmo durante
o período de dormência ( os barulhos ao seu redor; seus desejos, como beber água,
calor, frio, e etc.) tudo o que podemos adquirir nesse estágio se refere ao conteúdo
latente do sonho.

O Sonho manifesto não é senão, portanto, nada mais que o resultado de um


conjunto de operações (o trabalho do sonho) que transformam os seus componentes,
ou seja, transformam os estímulos corporais, os restos diurnos, os pensamentos do
sonho, etc. O produto final resultante de todas essas transformações é, então, a
experiência onírica (REIS, 2009).

A Distorção e a Elaboração Onírica

Segundo Garcia-Roza (1991), a distorção em que é submetido o conteúdo do


sonho é produto do trabalho do sonho de não deixar passar algo proibido, interditado
pela censura. A censura deforma os pensamentos latentes no trabalho do sonho.
Freud concebe a censura como uma função que se exerce na fronteira entre os
sistemas inconsciente e pré-consciente, algo que opera na passagem de um sistema
para outro mais elevado. Segundo Garcia-Roza, um fragmento não é distorcido ao
acaso, mas imposto por uma exigência da censura, a principal responsável pela
deformação onírica, apresentando o conteúdo manifesto condensado, deslocado,
simbolizado ou através da elaboração secundária.

Ainda em Garcia-Roza (1991), um fragmento não é distorcido ao acaso, mas


imposto por uma exigência da censura, a principal responsável pela deformação
onírica, apresentando o conteúdo manifesto condensado, deslocado, simbolizado ou
através da elaboração secundária.
O sonho, como todo o funcionamento psíquico é multideterminado. À
transformação do conteúdo latente em conteúdo manifesto chamamos “trabalho ou
labor do sonho”. Consiste no disfarce que acontece porque determinadas idéias
causam ansiedade e, como tal não são admitidas no consciente. Por exemplo, a idéia
A ao querer surgir na consciência sofre uma censura e é obrigada a transformar-se
em B (BARNABÉ, s.d.).

Segundo Garcia-Roza (1991), o sonhador tem acesso ao conteúdo manifesto,


ou seja, ao sonho sonhado e recordado por ele ao despertar. Este é o substituto
distorcido de algo inteiramente distinto e inconsciente que são os pensamentos
latentes. A distorção a que é submetida o conteúdo do sonho é produto do trabalho
do sonho de não deixar passar algo proibido, interditado pela censura. A censura
deforma os pensamentos latentes no trabalho do sonho. Um fragmento não é
distorcido ao acaso, mas imposto por uma exigência da censura, a principal
responsável pela deformação onírica.

De acordo com Jablonski (s.d.), a respeito dos sonhos, em geral, Freud conclui
que sua função é a de realização disfarçada dos desejos recalcados. Tamanho é o
disfarce nos sonhos que a realização dos desejos nos aparece às vezes sob forma
de pesadelos. Tais distorções devem-se ao trabalho da censura interna que funciona
mesmo durante o sono. Freud destaca quatro mecanismos deste trabalho:
condensação, deslocamento, simbolismo, dramatização e processo de elaboração
secundária.

Condensação
Vários elementos (temas, imagens, idéias, etc.) se combinam num só, de forma
que o sonho se torna mais compacto que os pensamentos-sonho. Segundo Castro
(2009), na transformação dos pensamentos oníricos em conteúdo onírico ocorre
necessariamente uma compressão de volume, uma condensação, em graus variáveis
de um sonho para outro. Na condensação, segundo Laplanche e Pontalis (2001),
“uma representação única representa por si só várias cadeias associativas e traduz-
se no sonho pelo fato de o relato manifesto, comparado com o conteúdo latente, ser
lacônico: constitui uma tradução resumida.”

“A condensação designa o mecanismo pelo qual o conteúdo manifesto do


sonho aparece como uma versão abreviada dos pensamentos latentes”. GarciaRoza
(2008)

Deslocamento
O processo de deslocamento de intensidade psíquica é resultado da ação de
uma força psíquica que atuará em dois sentidos: retirando a intensidade de elementos
que possuem alto valor psíquico e criando, a partir de elementos com baixo valor
psíquico, novos valores que vão penetrar no conteúdo dos sonhos.

Juntamente com o processo de condensação, o deslocamento é um dos


fatores dominantes que determinam a diferenciação entre o pensamento dos sonhos
e o conteúdo dos sonhos.

“O aspecto mais significativo do sonho pode se apresentar de modo a quase


passar despercebido, ao passo que os aspectos secundários aparecem, às vezes,
ricos em detalhes. Nisto constitui o deslocamento da energia de uma imagem para
outra” (JABLONSKI, s.d.).

Simbolismo
Na função de simbolização, há uma transformação dos pensamentos oníricos
em símbolos, fornecendo ao sonho uma série de metáforas e conferindo certa
poeticidade ao conteúdo manifesto. É nesse estágio que o sonho assume realmente
a sua forma peculiar, com uma racionalidade e inteligibilidade bem distinta do
pensamento diurno (ALVARENGA & LUCINDA, s.d.).

Certas imagens dos sonhos têm sempre um mesmo significado. Freud fornece
uma grande lista de símbolos inconscientes constituída de objetos que se referem,
sobretudo à sexualidade. Continentes em geral, como caixas, malas, cofres e etc.
Seriam símbolos do órgão sexual feminino e objetos pontiagudos ou inseridos dentro
de caixas, cavidades, etc. são geralmente símbolos do órgão sexual masculino. É
claro que os sonhos, sendo tão distorcidos por estes quatro mecanismos da censura,
devem ser interpretados para se tornarem inteligíveis. O sonho de que nos lembramos
constitui apenas o conteúdo manifesto e nos parece absurdo, louco. Interpretado, ele
se transforma num texto linear a que chamamos conteúdo latente, no qual vamos
perceber com clareza o desejo realizado pelo sonho (JABLONSKI, s.d.).

Dramatização ou Concretização
Segundo Jablonski, s.d., a dramatização é a representação de imagens em
ação. O sonho é como um teatro que, como distingue Freud. A dramatização é
também um mecanismo responsável pela economia dos sonhos. As operações
mentais inconscientes por meio das quais o conteúdo latente do sonho se transforma
em sonho manifesto, damos o nome de elaboração do sonho, também chamada
dramatização. O processo responsável por essa transformação, que Freud
considerava a parte essencial da atividade onírica, é o funcionamento do sonho.

No processo de dramatização os fragmentos do sonho, condensados e


deslocados da racionalidade na vigília, são transformados em cenas. Aí é formado
todo um contexto para esses elementos e, na maior parte das vezes, trata-se de uma
ambientação bem distinta do que foi vivido no dia anterior (ALVARENGA & LUCINDA,
s.d.).

A Elaboração Secundária
Segundo Laplanche e Pontalis (2001), consiste na operação mental
inconsciente por intermédio da qual o conteúdo latente de um sonho se transforma
em um sonho manifesto, sendo, também, um efeito da censura. Trata-se, portanto,
de uma “remodelação do sonho destinada a apresentá-lo sob a forma de uma história
relativamente coerente e compreensível”.

A elaboração secundária, que é essa remodelação, consiste, essencialmente,


em tirar a aparência de absurdo e de incongruência do sonho, tapando os seus
buracos, remanejando parcial ou totalmente seus elementos. Com esse objetivo é
possível observar a elaboração secundária em operação, quando o sonhante se
aproxima do estado de vigília (REIS, 2009).

Simbologia dos Sonhos


Os sonhos possuem uma linguagem que Freud denominou símbolos. Para
entender seus diversos conteúdos, temos que distinguir o que os símbolos
representam nesse sonho. A simbologia dos sonhos não só está vinculada ao contato
que o criador do sonho teve com o objeto, mas também com a forma que ele se
relaciona sentimentalmente com esse objeto. Um exemplo prático, o mar pode
apresentar distintas simbologias, variando de pessoa a pessoa. Para alguns o mar
pode significar destruição (o mar destruindo estruturas deixadas na praia), mas para
outros, invasão (a água avançando e invadindo território) de acordo com Freud o que
a pessoa sente quanto a esse objeto ou essa situação é fundamental para a
interpretação de sonho.

É necessário ter sempre em mente que os sonhos não se manifestam


coordenadamente em termos de palavras, frases, proposições, etc. Esses meios de
expressão são, nos sonhos, substituídos por “imagens visuais” que, por outro lado,
constituem uma linguagem simbólica representativa de desejos e afetos reprimidos.
A interpretação de um sonho requer, pelo menos, que se conheçam as principais
significações simbólicas, o que deve ser elaborado através do material derivado das
Associações Livres. As imagens simbólicas constituem regressões a longínquas
formas elementares do pensamento (REIS, 2009).

Certas imagens dos sonhos têm sempre um mesmo significado. Freud fornece
uma grande lista de símbolos inconscientes constituída de objetos que se referem
sobretudo à sexualidade. Continentes em geral, como caixas, malas, cofres e etc.
Seriam símbolos do órgão sexual feminino e objetos pontiagudos ou inseridos dentro
de caixas, cavidades, etc. são geralmente símbolos do órgão sexual masculino
(JABLONSKI, s.d.).

“Na literatura se encontram exemplos de símbolos que podem ser utilizados


em todos os tipos de cultura. Contudo, há a observação de que o significado de um
símbolo dependerá sempre da associação e da cultura do paciente que o sonhou”
(OLIVEIRA, 2011).

Oliveira (2011) diz ainda que Freud liste uma série de símbolos que ele
considera praticamente universais, detectável em quase todas as culturas. Para a
figura humana a representação típica é uma casa. Os pais aparecem como imperador
e imperatriz, rei e rainha ou outras pessoas de status. Os filhos, irmãos e irmãs são
simbolizados por bichinhos ou pequenos animais. O nascimento é quase sempre
representado por algo relacionado à água. Morrer tem relação com partir, viajar de
trem e a nudez, por meio de roupas e uniformes.
A interpretação dos sonhos na perspectiva
psicanalítica

Nas civilizações antigas, os sonhos tinham, como principal finalidade, revelar


informações sobre-humanas, sendo que os deuses e os demônios eram os
protagonistas, tendo a função de “enviar” essas informações. Aristóteles acreditava
que os sonhos eram de natureza do espírito humano, diferente de qualquer natureza
divina. Em outras palavras, o sonho é o produto da mente humana. A partir disso,
surgem, então, duas visões discrepantes:

1ª – verdadeiras e válidas (pois tinha “propósito” de predizer coisas do


futuro);

2ª – vãs e destituídas de valores (apenas, condição da mente).

Posteriormente, para Freud (1996), “todo material que compõe o conteúdo de


um sonho é derivado, de algum modo, da experiência, ou seja, foi reproduzido ou
lembrado no sonho” (p.49). Os sonhos são a continuação da nossa vida em estado
de vigília, como se vivêssemos em um mundo paralelo. Quando sonhamos e, depois,
acordamos e não lembramos é porque a fonte está além da memória de vigília. Nestes
casos, o sonhador tem a impressão de que não há ligação entre o sonho e o estado
de vigília. É preciso uma nova experiência para lembrar as recordações perdidas e
reconstruí-las. Freud, ainda, nos diz que nossos sonhos são oriundos ou não de fatos
empíricos remetentes a infância. “Nada que tenhamos possuído mentalmente uma
vez pode se perder inteiramente” (FREUD apud SCHOLZ, 1996, p. 57).

O sonho é o melhor caminho para acessar os conteúdos inconscientes da


psique humana. De acordo com Garcia-Roza (2011), os sonhos não são absurdos,
mas possuem um sentido, portanto podem ser interpretados, pois são manifestações
de desejos inconscientes reprimidos. Todavia, o sentido dos sonhos, a priori, é
inacessível e incompreensível, tanto para o sonhador, quanto para o intérprete, isto
acontece porque o conteúdo dos sonhos são distorcidos/disfarçados, devido tais
desejos causarem censura.
Freud chama de Deformação Onírica, o processo no qual o sonho que
recordamos após acordar é submetido a uma deformação, com o intuito de recalcar
um desejo, sentimento ou pensamento que não condiz com o aceito moralmente, e
que causa repúdio, sendo o recalcamento um mecanismo de defesa contra uma
ameaça que pode causar sofrimento psíquico (GARCIA-ROZA, 2011). Portanto, o
conteúdo do sonho que lembramos após acordar é distinto do conteúdo onírico
relatado ao intérprete. O sonho recordado é um substituto deformado de um conteúdo
inconsciente, ao qual se pretende chegar através da interpretação.

Os sonhos se dão em dois registros: o sonho lembrado e contado pelo


sonhador (conteúdo manifesto), e outro oculto e inconsciente (conteúdo latente), no
qual se pretende chegar através da interpretação. Encontrar o sentido de um sonho é
percorrer o caminho que dá acesso aos desejos inconscientemente recalcados.

Segundo Garcia-Roza (2011), os mecanismos de defesa fundamentais do


trabalho do sonho agem através da distorção do conteúdo latente ou restos diurnos
(como, também, são conhecidos), para que o mesmo não se torne consciente. A
seguir, serão descritos a Condensação, Deslocamento, Figuração e Elaboração
Secundária.

A Condensação refere-se ao fato de que o conteúdo manifesto no sonho é


menor do que o conteúdo latente, isto é, o conteúdo manifesto seria uma “tradução
abreviada” do conteúdo latente. Ela pode ocorrer a partir de três maneiras:

1ª – Ocultando ou deformando alguns elementos do conteúdo latente;

2ª – Permitindo que apenas alguns elementos do conteúdo latente apareçam;

3ª – Combinando vários elementos do conteúdo latente em apenas um


elemento do conteúdo manifesto, ou seja, representando todo um conjunto por
apenas um elemento.

O Deslocamento consiste na substituição de alguma representação por outra


estreitamente associada a ela em alguns aspectos, porém de maneira deformada.
Ele poderá ocorrer a partir de duas maneiras:
1ª – Substituição de um elemento latente por outro mais remoto que funcione
como simples alusão, de forma indireta e vaga;

2ª – Mudança do elemento latente por um elemento sem importância,


ocorrendo assim, uma descentralização da importância.

Vale ressaltar que ambos os mecanismos acima citados, fazem parte do


processo primário do sistema psíquico inconsciente, onde possui como característica
a energia livre (princípio do prazer) desprovido de qualquer censura imposta pela
sociedade.

A Figuração remete na seleção e transformação dos pensamentos dos sonhos


em imagens. Esse mecanismo, por si só, é um dos responsáveis pela distorção
resultante da elaboração onírica.

Na Elaboração Secundária ocorre a modificação do sonho, de forma que ele


apareça como uma história coerente e compreensível. Outrossim, esse mecanismo
faz com que o sonho perca sua aparência de absurdidade.,

O que é interpretado na psicanálise não é o sonho, mas o seu relato. Assim,


para quem sonha, o sonho é ininteligível para o psicanalista, contudo, a pessoa que
sonha sabe o significado do seu sonho, apenas não sabe que sabe. Isso acontece
porque a censura impede de saber.

O soneto apresentado a seguir refere-se a um sonho que manifesta um desejo


recalcado de um tio para com a sua sobrinha (personagens fictícios):

SONETTO DI SOGNI

De repente, surgem árvores robustas…

Tigres de olhos grandes e ardentes

Com espíritos combatentes

Duas forças numa união “justa”


Olhos caramelos desejando a vitória

Quando, então, as jaulas emergem do chão

E os outros animais fazem plantão

Tentando manter o controle e mudar essa história

Então, o tigre se metamorfoseia

Tornando-se um coelho indefeso

Assustado ao pé da cachoeira

Diante do medo, ele busca abrigo

Mas nada é coeso

Sob a vigilância iminente do inimigo

Por: Luri Maiara, Juliana Martins, Mayelle Batista e Rômulo Sousa

O sonho relatado no soneto pode parecer, a princípio, ilógico, ininteligível e


desprovido de qualquer significado, podendo ser descartado como algo que não
possui sentindo nenhum, bem como não possui relação com a vida do sujeito.
Entretanto, esse sonho possui um riquíssimo conteúdo a ser interpretado, possuindo
elementos correspondentes a desejos recalcados que podem levar a compreensão
de instâncias inconscientes.

Esse desejo recalcado refere-se ao desejo sexual que um tio tem por sua
sobrinha. De acordo com os valores morais que nos são repassados, principalmente
pela família, e que nos são introjetados, tal desejo é visto como inapropriado, não
condizendo com o aceito socialmente, considerando que se esse desejo chegar a ter
acesso à consciência pode ser ocasionador de sofrimento psíquico.

Os mecanismos de defesas fundamentais que trabalham no sonho têm a


finalidade de distorcer o real objetivo de desejo. Quando aparecem nos sonhos
“árvores robustas”, é a simbolização da família (árvore genealógica), fonte originária
de moralidade, e o mecanismo que está “ativo” é o de deslocamento, pois o objeto
real de desejo é substituído por um mais remoto/indireto, mas que, ainda, mantém
relação com o real. Os “tigres de olhos grandes e ardentes” referem-se ao “casal” (tio
e sobrinha), simbolicamente, se desejando, enquanto os “espíritos combatentes”
significam a necessidade de extravasamento dessas energias sexuais, ou seja,
desejos correspondentes ao ato do sexo selvagem. As “duas forças numa união
‘justa’” dizem respeito à vontade do tio em ter uma relação de cumplicidade e desejo
mutuo para com a sua sobrinha.

Os “olhos caramelos” simbolizam o olhar da sobrinha, refletindo sua inocência


e aguçando o desejo pervertido de dominação do tio. O desejo de vitória destaca a
vontade de, enfim, conseguirem ficar juntos. As jaulas que emergem do chão se
referem à família, controlando e impedindo a manifestação dos desejos de ambos,
porque são tidos como inaceitáveis e repudiantes. Os outros animais que fazem
plantão significam o medo do tio de que seus desejos sejam descobertos, achando
que existem pessoas à espreita, vigiando-o. O “tentando manter o controle e mudar
essa história” representam à família e as pessoas da sociedade, que impõem as suas
regras e valores, para controlar os desejos do sujeito.

A metamorfose do tigre em coelho mostra a vulnerabilidade do sujeito frente às


repressões de seus desejos pela sociedade (a cachoeira), e o medo de julgamento
da mesma. Diante desse medo, ele busca abrigo, para se esconder e se proteger de
tais julgamentos, mas as coisas, ainda, parecem estar fora de coesão, então ele
continua sentindo medo do descobrimento de seus desejos por sua sobrinha. A
“vigilância iminente do inimigo” tem relação a esse receio insidioso de ser descoberto.

Nessa perspectiva, os sonhos se tornam, na teoria psicanalítica, um


instrumento valioso para acesso à conteúdos inconscientes no setting clínico. O
analisando, ao trazer elementos oníricos em seu discurso, manifesta pulsões que sua
consciência condena, e, ao mesmo tempo, o inconsciente sente a necessidade de
extravasamento destes conteúdos latentes que, por sua vez, encontram resistência
para emergir à consciência, através da repressão. A análise dos conteúdos oníricos
possibilita uma melhor compreensão das neuroses.
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