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Para Bataille, a Revolução pode, à primeira vista, ter a marca, na literatura francesa, de

uma época pobre. Mas é proposta uma exceção, de um indivíduo que teve reputação
durante sua vida, porém uma reputação deplorável, que é o caso do Marquês de Sade.
Diz-se, então, que são poucos os acontecimentos com maior valor simbólico que a
tomada da Bastilha. Por ocasião da festa que a comemora, são muitos franceses que
sentem o que os une à soberania de seu país.
Esta soberania popular seria inteiramente tumulto e revolta; ademais não haveria sinal
que diria mais da festa que a demolição insurrecional de uma prisão. Essa festa exige
essa soberania inflexível para poder existir. Mas houve um elemento de acaso que
aumentou o alcance do acontecimento.
A princípio seria apenas um mal-entendido. Mas um mal-entendido que o próprio Sade
teria suscitado. Ele estava então encarcerado há dez anos, na Bastilha desde 1784: um
dos homens mais rebeldes que já falaram de rebelião e de raiva; um homem, segundo
Bataille, monstruoso, que possuía a paixão de uma liberdade impossível.
Tanto o manuscrito de Justine como o de 120 Dias de Sodoma estavam na Bastilha
nesse dia, mas abandonados em um cárcere vazio.
Ele gritava que: "degolavam os prisioneiros". Essas suas provocações acabaram por
retardar em nove meses sua libertação , e o governador exigiu sua transferência.
Os manuscritos do marquês, que já estavam dispersos, acabaram por se perder. O
manuscrito dos Cento e Vinte Dias de Sodoma , que é para Bataille “um livro que em
algum sentido domina todos os livros, sendo a verdade do arrebatamento que o homem
no fundo é e que ele teve de conter e calar”, desapareceu: este livro que em si mesmo
significou, todo o horror da liberdade.
Mais tarde o manuscrito foi encontrado mas Sade o acreditou para sempre perdido, o
que o oprimia, ele escreve que “era a maior infelicidade que o céu pôde lhe reservar".
Morreu sem saber que na verdade o que ele imaginava assim perdido acabou por tomar
pouco mais tarde, entre os "monumentos imperecíveis do passado".
Aparentemente, foi a perda dos Cento e Vinte Dias que levou Sade a retomar, numa
terceira versão escandalosa, a história de Justine e a lhe dar como continuidade a
história de Juliette.
Segundo Bataille “a essência de suas obras é destruir: não somente os objetos, as
vítimas, cenário (que existem apenas para responder ao furor de negar), mas o autor e
a própria obra”. “traz a má nova de um acordo dos vivos com aquele que os mata, do
Bem com o Mal e — se poderia dizer — do grito mais forte com o silêncio.”
Sade desenvolve uma teologia do Ser supremo em maldade. Ora ele é ateu, mas não a
sangue frio: seu ateísmo desafia Deus e desfruta do sacrilégio.
É certo que tenha sido materialista, mas isso não resolve sua questão: a do Mal que ele
amava e do Bem que o condenava. Sade realmente amou o Mal, em toda sua obra
pretende tornar o Mal desejável, mas não podendo condená-lo, não conseguia também
justificá-lo. Os filósofos pervertidos que Sade descreve procuram o elemento maldito
em suas ações.
Tu queres", dizia ele desde 1782, na carta de 29 de janeiro, "que o universo inteiro seja
virtuoso e tu não sentes que tudo pereceria imediatamente se houvesse apenas virtudes
na terra... tu não queres entender que, já que é preciso que haja vícios, é também
injusto que tu os puna porque seria zombar de um limite..."
Klossowski, autor de Sade, meu próximo, diz: "Sade não sonha mais somente, ele
dirige e reproduz seu sonho no objeto que está na origem de seu devaneio, com o
método completo de um religioso contemplativo que põe sua alma em oração diante do
mistério divino”.
Mostrarei mais adiante que Sade, que difere do simples sádico, que é o irrefletido, teve
por objeto atingir a consciência clara daquilo que só o "arrebatamento" atinge mas o
"arrebatamento" leva à perda de consciência.
Portanto, seu objetivo não diferiria do da filosofia senão pela via que ele empregava.
Sade partiu do "arrebatamento" de fato, que ele quis tornar inteligível e a filosofia parte
da calma consciência — da inteligibilidade distinta — para levá-la a algum ponto de
fusão.
Em suas cartas, a partir do que é descrito por Bataille, Sade se mostra instável, divertido
sedutor, violento, apaixonado ou engraçado, capaz de ternura, talvez de remorso. Mas
em seus livros, se limita a um exercício invariável, em que uma tensão se desprende das
preocupações que nos limitam. Somos desde o início perturbados por suas arrogâncias
inacessíveis.
Mas Sade estava em uma situação moral. Bastante diferente de seus heróis, pois
demonstrou muitas vezes sentimentos humanos, ele conheceu estados de arrebatamento
e de êxtase que lhe pareceram de muito sentido em relação às possibilidades comuns.
Fala-se a respeito da incompatibilidade entre a violência, que é cega, e a lucidez da
consciência. O frenesi distanciava a consciência. Por seu lado, a consciência, em sua
condenação angustiada, negava e ignorava o sentido do frenesi
Ele teve de tomar o avesso e contestar tudo o que os outros tinham como inabalável
Seus livros dão esta sensação: que, com uma resolução desesperada, ele queria o
impossível e o avesso da vida
"É, portanto verdade", grita Blangis, "que o crime tem por si mesmo um tal encanto
que, independentemente de toda volúpia, ele pode bastar para inflamar todas as
paixões.'- um dos quatro carrascos de 120 dias de Sodoma.
A linguagem de Cento e Vinte Dias é a do universo lento, que infalivelmente degrada,
que flagela e que destrói a totalidade dos seres que ele apresentou.
Essa condição inumana de prisioneiro em que Sade de encontrava foi essencial para a
consciência clara e distinta que funda esse impulso erótico.
Livre, Sade teria podido estragar a paixão que o solicitava, mas a prisão lhe retirava esse
meio. Se a paixão produzida não perturba aquele que a produz, o conhecimento
objetivo, exterior, é possível, mas a plena consciência não é atingida, pois quer que o
desejo seja experimentado.
A consciência do desejo é pouco acessível: o desejo por si só altera a clareza da
consciência, mas sobretudo a possibilidade de uma satisfação a suprime. Para a
animalidade toda, parece que a satisfação sexual teve lugar numa grande "desordem dos
sentidos".
A inibição de que ela é objeto na humanidade se liga, por outro lado, a seu caráter,
senão inconsciente, ao menos afastado da consciência clara.
Esta consciência, a individualidade essencialmente refletida de Sade a preparava: Sade
não deixava de seguir um raciocínio paciente, associado ao esforço que ele mantinha
para assimilar a maior parte dos conhecimentos de sua época.
Mas sem a reclusão, a vida desordenada que ele teria levado não lhe teria deixado a
possibilidade de alimentar um interminável desejo, que se proporia à sua reflexão sem
que ele pudesse satisfazê-lo.
Sade revela somente a realização da consciência: ele não pode chegar à plenitude de
clareza. O espírito deve ainda aceder, senão à ausência de desejo, ao menos ao
desespero que deixa ao leitor de Sade o sentimento de uma similitude final entre os
desejos experimentados por Sade e os seus, mas que não têm esta intensidade, que são
normais.
Diz Bataille: É emocionante para nós que uma fabulação mítica se ligue ao que
finalmente desvela o âmago dos mitos. Era preciso uma revolução — no ruído das
portas da Bastilha derrubadas — para nos libertar, ao acaso da desordem, o segredo
de Sade: ao qual a infelicidade permite viver este sonho, cuja obsessão é a alma da
filosofia, a unidade do sujeito e do objeto; é, no caso, a identidade no ultrapassamento
dos limites dos seres, do objeto do desejo e do sujeito que deseja.
Maurice Blanchot disse justamente de Sade que ele tinha "sabido fazer de sua prisão a
imagem da solidão do universo", mas que esta prisão, este mundo não o incomodava
mais, pois tinha "banido e excluído todas as criaturas".

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