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Table of Contents

Rosto
Contracapa
Prefácio
Primeira parte
I
II
III
IV
V
VI
VII
VIII
IX
Segunda parte
I
II
III
Terceira parte
I
André Gide
O Imoralista
Tradução de Theodomiro Tostes
edição
Editora Nova Fronteira
Título original: L’immoraliste
Cl Éditions Mercure de France, 1902
Direitos adquiridos para a língua portuguesa, no Brasil, pela
Editora Nova Fronteira S.A.
Rua Maria Angélica, 168 – Lagoa – CEP: 22.461 – Tel.: 286-7822
Endereço telegráfico: NEOFRONT
Rio de Janeiro – RJ
Capa
Victor Burton
Revisão
Lúcia Mousinho
Beatriz Nunes da Silva
Marilda Barroca
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
Gide, André, 1869-1951.
G385i O Imoralista / André Gide ; tradução de Theodomiro Tostes. – 2ª ed. – Rio de
Janeiro : Nova Fronteira, 1983.
Tradução de: L’Immoraliste. I. Romance francês I. Título
82-0868
CDD – 843 CDU — 840-31
Contracapa
O imoralista é um dos livros mais ousados de André Gide, autor de Se o grão não morre e
Os frutos da terra, já publicados pela Nova Fronteira. A história do jovem casado que
renova o gosto da vida ao conhecer um belo adolescente árabe, é libelo contra a
hipocrisia do mundo burguês e denuncia corajosamente os obstáculos à liberdade do
homem. É com O imoralista que Gide melhor justifica as palavras que o definiram para
Jean-Paul Sartre: “Ele nos ensinou, ou lembrou, que tudo podia ser dito — essa a sua
audácia —, mas segundo certas regras do bem-dizer — essa a sua prudência.”

Orelhas

Descendendo ao mesmo tempo de representantes do mundo agrário e da pequena


burguesia, André-Paul-Guillaume Gide (Paris, 22/11/1869 — 19/02/1951) parecia desde
cedo fadado à controvérsia. Tendo feito estudos irregulares, segundo os preceitos da
mais estrita educação protestante, o futuro prêmio Nobel de 1947 mereceu o descaso de
seus professores, que o consideravam intelectualmente pouco dotado. Daí, talvez, a
acentuada reclusão sobre si mesmo, o silêncio quase constante e o amor pelas coisas da
natureza se terem tornado o leitmotiv de sua conturbada existência. Gide pertenceu à
geração de Claudel, Valéry e Proust, mas deles se distinguiu pela intensa crise espiritual
que marcou praticamente toda a sua vida. Nele, a sensualidade precoce se opunha ao
fervor religioso; a vergonha, aos charmes (in)discretos do pecado.
Foi pela criação literária que esses conflitos melhor se revelaram, embora sem nunca
acharem sua solução. Já nos Cahiers d’André Walter, de pouco sucesso na época (1881),
essa catarse começa a tomar forma. A história do jovem que, impotente diante das
opções proporcionadas pelo mundo exterior, se consome num excesso de vida
introspectiva, emocionou uma juventude em luta contra a hipocrisia e o puritanismo
fin-de-siècle.
Era o início de uma carreira destemida e pioneira.
O Gide imoralista tem 33 anos. Num estilo claro e esmerado, ergue a voz contra os
preconceitos, protesta contra tudo o que mascara e impede a consumação da liberdade
do homem. Recorrendo a um episódio autobiográfico — a viagem à Argélia nos idos de
1893, em que adoeceu —, ele narra o drama de um jovem casado, egresso de uma
educação rígida, para quem a saúde e o gosto de viver são encontrados nos braços de
um adolescente árabe, em meio a uma África selvagem. O conflito entre Eros e Tanatos,
que é o cerne do romance, nem por isso deixa de motivar um cântico ao mundo das
cores, dos aromas, da embriaguez sensual, um cântico, enfim, ao corpo finalmente
encontrado.
Ex-simpatizante do comunismo e influência importante no pensamento de Malraux,
Camus e Sartre, o humanista Gide tornou esse livro indispensável ao leitor de Os frutos
da terra e Se o grão não morre, ambos execrados pelos patrulheiros da boa moral. Gide,
“contemporâneo essencial”, no entender de André Malraux, mereceu de Sartre as
palavras que talvez melhor sintetizem o significado de sua obra: “Nele equilibram-se a
lei protestante e o não-conformismo do homossexual, o individualismo orgulhoso do
grande burguês e o gosto puritano dos limites estabelecidos pela sociedade (…) Ele nos
ensinou, ou lembrou, que tudo podia ser dito — essa a sua audácia —, mas segundo
certas regras do bem-dizer — essa a sua prudência.”
A Henri Ghéon
Seu franco camarada

A. G.
Eu te louvo, ó meu Deus, por me teres feito criatura tão admirável.

Salmo CXXXIX, 14
Prefácio
Dou este livro pelo que ele vale. É um fruto cheio de cinza amarga; semelhante às
plantas do deserto que crescem nos locais calcinados e só oferecem à sede um ardor
mais cruel, mas têm sua beleza sobre a areia dourada. Se eu tivesse apresentado o meu
herói como um exemplo, é preciso convir que pouco teria conseguido; 1 os raros que se
interessaram pela aventura de Michel o fizeram para desprezá-lo com toda a força de
sua bondade.
Não foi em vão que ornei Marceline de tantas virtudes; ninguém perdoou Michel por
não tê-la preferido a si mesmo.
Se eu tivesse apresentado este livro como um libelo contra Michel, também não teria
conseguido grande coisa; ninguém me ficou reconhecido pela indignação que sentiu
por meu herói; parece que a teriam sentido independentemente da minha vontade; de
Michel ela transbordava sobre mim; por pouco me teriam confundido com ele. Mas não
quis fazer neste livro ato de acusação nem apologia, e me abstive de julgar. O público,
hoje em dia, já não perdoa que o autor, depois de pintar a ação, não se manifeste a favor
ou contra; mais ainda, em pleno desenrolar do drama, quer que ele tome partido, que se
pronuncie francamente por Alceste ou por Filinto, por Hamlet ou por Ofélia, por Fausto
ou por Margarida, por Adão ou por Jeová. Não quero afirmar, é certo, que a
neutralidade (ia dizer: a indecisão) seja a marca de um grande espírito; mas creio que a
muitos dos grandes espíritos repugnou bastante… concluir — e que o fato de expor
bem um problema não pressupõe que ele já esteja resolvido.
É a contragosto que emprego aqui a palavra “problema”. Na verdade, em arte não
existem problemas — dos quais a obra de arte não seja a suficiente solução.
Se por “problema” entende-se “drama”, direi que aquele de que trata este livro, pelo
fato de ser representado na própria alma do meu herói, não deixa de ser
demasiadamente geral para ficar circunscrito à sua singular aventura. Não tenho a
pretensão de haver inventado este “problema”; ele existia antes do meu livro; triunfe
Michel ou sucumba, o “problema” continua a ser problema, e o autor não propõe como
solução nem o triunfo nem a derrota.
Se alguns espíritos mais elevados viram neste drama o relato de um caso estranho, e em
seu herói um doente; se ignoraram que algumas ideias muito oportunas e de grande
interesse podem, no entanto, habilitá-lo — a culpa não é das ideias nem do drama, mas
do autor, ou, melhor, de sua falta de habilidade —, apesar de ele ter colocado no livro
toda a sua paixão, todas as suas lágrimas e todo o seu desvelo. Mas o interesse real de
uma obra e o que ela desperta no público de um dia são duas coisas muito diferentes.
Pode-se preferir, sem muita fatuidade, correr o risco de não conseguir interessar no
primeiro dia com coisas interessantes — a apaixonar, sem amanhã, um público faminto
de banalidades.
De resto, não tentei provar coisa alguma, mas unicamente pintar bem e dar suficiente
realce à minha pintura.

________________
1
Em junho de 1902 foi lançada uma pequena edição in-octavo deste livro, de 300
exemplares.
Ao Senhor D. R.,
Presidente do Conselho

Sidi b. M. 30 de julho de 1890

Sim, tu tinhas razão: Michel nos falou, meu querido irmão. Esta é a história que ele nos
contou. Tu a pediste, eu a prometi; mas, no momento de enviá-la, hesito ainda; quanto
mais a releio, mais terrível me parece. Que irás pensar de nosso amigo? Aliás, que
pensei eu mesmo?… Devemos simplesmente reprová-lo, negando que seja possível
dirigir para o bem faculdades que se manifestaram cruéis? — Mais de um, hoje em dia,
estou seguro, teria a coragem de reconhecer-se nesta história. Seria possível inventar o
emprego de tanta força e Inteligência — ou negar a tudo isto direito de cidadania? De
que modo Michel poderá servir o Estado? Confesso que ignoro… Mas é preciso dar-lhe
uma ocupação. A alta posição a que chegaste por teus grandes méritos, o poder que tens
agora, poderão encontrar-lhe alguma coisa. — Apressa-te. Michel se oferece; ele ainda
se oferece; em breve, porém, só se oferecerá a si mesmo.
Escrevo-te sob um azul perfeito; nestes doze dias em que Denis, Daniel e eu estamos
aqui, nenhuma nuvem, nenhuma diminuição de sol. Michel diz que o céu, há dois
meses, está puro.
Não estou triste, nem contente; o ar aqui nos enche de uma vaga exaltação e nos revela
um estado que parece tão distante da alegria como da tristeza; talvez seja a felicidade.
Ficamos perto de Michel; não queremos abandoná-lo; compreenderás a razão se te
deres ao trabalho de ler estas páginas; é aqui, portanto, em sua casa, que esperamos tua
resposta; não a demores.
Sabes daquela amizade de colégio, já forte então e cada ano aumentada, que ligava
Michel a Denis, a Daniel e a mim. Entre nós quatro, firmou-se uma espécie de pacto: ao
menor apelo de um, os outros acorreriam. Quando recebi de Michel o misterioso grito
de socorro, procurei logo Daniel e Denis, e partimos os três, abandonando tudo.
Fazia três anos que não víamos Michel. Havia casado, seguido em viagem com a
mulher, e, em sua última passagem por Paris, Denis estava na Grécia, Daniel na Rússia
e eu preso, como sabes, junto de nosso pai enfermo. Não ficáramos, entretanto, sem
notícias; mas as que nos haviam dado Silas e Will, que o tinham encontrado, nos
deixaram apenas surpresos. Uma transformação, que ainda não podíamos explicar,
produzia-se nele. Já não era mais o puritano erudito de outros tempos, de gestos
desajeitados à força de convicções e olhos tão claros que às vezes interrompiam nossas
opiniões demasiadamente livres. Era … mas por que revelar-te desde já o que a sua
narrativa irá dizer?
Mando-te, pois, esta história, como a escutamos, Denis, Daniel e eu. Michel contou-a
sobre o terraço, onde nos deitáramos junto dele, à sombra e sob o cintilar das estrelas.
Ao fim da narrativa, vimos o dia nascer sobre a planície. A casa de Michel a domina,
bem como a vila de que não dista muito. Pelo calor e as colheitas ceifadas, a planície
assemelha-se ao deserto.
A casa de Michel, embora pobre e estranha, é encantadora. No inverno sentia-se frio,
pois as janelas não têm vidraças; ou, antes, não há janelas mas apenas grandes buracos
nas paredes. O tempo estava tão bom que dormimos fora sobre esteiras.
Quero dizer-te ainda que fizemos boa viagem. Chegamos aqui à tardinha, extenuados
de calor, ébrios de novidade, depois de breves paradas em Argel e em Constantina. De
Constantina, um novo trem nos trouxe a Sidi b. M., onde uma pequena caleça nos
esperava. A estrada termina longe da vila. Esta fica no alto de um rochedo, como
algumas aldeias da Umbria. Subimos a pé; duas mulas levavam nossas malas. Quando
se toma esse caminho, a casa de Michel é a primeira da vila. Há um jardim cercado de
muros baixos, ou, melhor, de sebes, em que crescem três romãzeiras curvadas e um
soberbo rododendro. Um menino cabila, que ali estava, fugiu à nossa chegada, pulando
facilmente o muro.
Michel nos recebeu sem mostrar alegria; muito simples, parecia temer qualquer
manifestação de carinho; mas, à entrada de casa, nos abraçou com um jeito grave. Até a
noite, pouco conversamos. Um jantar quase frugal estava servido no salão, cujas
suntuosas decorações nos surpreenderam, mas que a história de Michel te explicará.
Depois, serviu-nos café, que ele mesmo fez questão de preparar. Subimos, então, ao
terraço, onde a vista se estendia infinitamente, e os três, como os três amigos de Jó,
ficamos à espera, admirando sobre a planície em fogo o declínio súbito do dia. Quando
a noite caiu, Michel disse:
Primeira parte
I
Meus caros amigos, sabia que vocês me eram fiéis. Ao meu apelo vieram, como eu teria
feito com qualquer de vocês. Entretanto, há já três anos que não me viam. Que esta
amizade, que resistiu tão bem à ausência, possa também resistir à história que vou
contar. Porque se os chamei bruscamente e os fiz viajar até este lugar distante, foi
unicamente para vê-los e para que pudessem escutar-me. Não desejo outro socorro
além deste: falar-lhes. Cheguei a um ponto de minha vida que não posso mais
ultrapassar. Entretanto, não é cansaço. Mas não compreendo mais. Preciso… Preciso
falar a vocês… Saber libertar-se não é nada; o difícil é saber ser livre. Permitam que fale
de mim; vou contar-lhes minha vida, simplesmente, sem modéstia e sem orgulho, mais
simplesmente do que se falasse comigo mesmo. Escutem-me:
A última vez em que nos vimos foi, lembro-me bem, nos arredores de Angers, na
pequena igreja de campo em que se realizava o meu casamento. O público era pouco
numeroso, e a excelência dos amigos fazia dessa cerimônia banal uma cerimônia
comovente. Parecia-me que havia emoção no ambiente, e isso me emocionava também.
Na casa daquela que se tornava minha mulher, uma breve refeição, sem maiores
manifestações, nos reuniu ao sair da igreja; depois o carro nos levou, de acordo com o
costume que associa, em nosso espírito, à ideia de um casamento a visão de um cais de
partida.
Eu conhecia muito pouco minha mulher e sabia, sem grande mágoa, que ela também
não me conhecia muito. Tinha casado com ela sem amor, mais para satisfazer meu pai,
que, pouco antes de morrer, se mostrava apreensivo por me deixar sozinho. Eu amava
meu pai com ternura; preocupado pela sua agonia, só pensava, naquele triste instante,
em tornar mais suportável o seu fim; e assim comprometi minha vida, sem saber o que a
vida poderia ser. Nosso noivado, à cabeceira do moribundo, foi marcado apenas por
uma grave alegria: a da grande tranquilidade que proporcionamos a meu pai. Se eu não
amava minha noiva, confesso que também não havia amado outra mulher. Isso bastava,
a meu ver, para garantir nossa felicidade; ignorante ainda de mim mesmo, julguei
possível entregar-me a ela. Era órfã também e vivia com seus dois irmãos; chamava-se
Marceline; tinha apenas vinte anos; eu era quatro anos mais velho.
Já disse que não a amava; ao menos, não sentia por ela nada do que se chama
comumente amor, mas a amava, se quiserem entender por isso uma ternura, uma
espécie de piedade, enfim, uma estima bem grande. Ela era católica, eu sou
protestante… aliás, sem muita convicção… o padre me aceitou; eu aceitei o padre;
ficamos quites um com o outro.
Meu pai era, como se costuma dizer, um “ateu”, ao menos assim o suponho, já que, por
uma espécie de pudor invencível de que ele partilhava, nunca chegamos a conversar a
respeito de suas crenças. A grave educação huguenote de minha mãe havia, com sua
linda imagem, se apagado lentamente em meu coração; vocês sabem que a perdi muito
cedo. Eu não imaginava ainda como essa primeira moral da infância nos domina, nem
sabia dos vestígios que ela nos deixa no espírito. Essa austeridade, cujo gosto minha
mãe me deixara ao inculcar-me seus princípios, consagrei-a toda ao estudo. Tinha
quinze anos quando perdi minha mãe; meu pai cuidou de mim, cercou-me de seu
carinho, ocupou-se amorosamente de minha instrução. Eu já sabia bem o latim e o
grego; com ele aprendi rapidamente o hebreu, o sânscrito e, enfim, o persa e o árabe.
Aos vinte anos mais ou menos, sentia-me tão entusiasmado que ele ousou associar-me
aos seus trabalhos. Ele gostava de considerar-me seu igual, e quis dar-me uma prova
disso. O Ensaio sobre os cultos frígios, que apareceu com o nome dele, foi obra minha;
ele apenas o revisara; nada jamais lhe valeu tantos elogios. Ficou encantado. Quanto a
mim, senti-me envergonhado com o sucesso da farsa. Mas, desde então, eu estava
lançado. Os homens mais eruditos tratavam-me como seu colega. Até hoje sorrio das
honras que me dispensaram… Cheguei assim aos vinte e cinco anos, sem ter
contemplado mais do que livros ou ruínas, e não conhecendo quase nada da vida;
punha no meu trabalho um fervor singular. Amava alguns amigos (vocês, por
exemplo), mas amava mais a própria amizade; minha dedicação por eles era grande,
mas não passava de um desejo de sentimentos nobres; adorava em mim mesmo cada
bom sentimento. De resto, ignorava meus amigos, como eu mesmo me ignorava. Nunca
me ocorreu a ideia de que eu pudesse levar uma existência diferente, nem que fosse
possível viver diferentemente.
A meu pai e a mim bastavam as coisas simples; gastávamos tão pouco os dois, que
cheguei aos vinte e cinco anos sem saber que éramos ricos. Pensava, sem preocupar-me
muito, que tínhamos apenas o bastante para viver; adotara, junto de meu pai, tais
hábitos de economia, que me senti constrangido ao descobrir que possuíamos muito
mais. Vivia tão alheio a essas coisas, que não foi depois da morte de meu pai, do qual eu
era o único herdeiro, que tive consciência da minha fortuna, mas somente após meu
contrato de casamento, quando percebi, ao mesmo tempo, que Marceline não me trazia
quase nada de dote.
Uma outra coisa que eu ignorava, talvez mais importante ainda, era a minha saúde
delicada. Como poderia saber, se nunca a pusera à prova? Tinha resfriados, de vez em
quando, e os tratava negligentemente. A vida muito calma que levava enfraquecia-me e
me preservava ao mesmo tempo. Marceline, ao contrário, parecia robusta; — que ela foi
mais forte do que eu é o que veremos em seguida.

Na noite de nosso casamento dormimos em meu apartamento de Paris, onde nos


haviam preparado dois quartos. Ficamos em Paris apenas o tempo necessário a algumas
compras indispensáveis, depois seguimos para Marselha, de onde embarcamos logo
para Túnis.
Os afazeres urgentes, a precipitação dos últimos acontecimentos, a emoção
indispensável do casamento seguindo a outra mais real do meu luto, tudo isso me havia
esgotado. Só a bordo pude sentir minha fadiga. Até aquele momento, cada ocupação,
apesar de aumentá-la, me distraía dela. O ócio obrigatório de bordo permitiu-me, enfim,
refletir. Parecia-me que o fazia pela primeira vez.
Pela primeira vez também eu consentia em privar-me por muito tempo do meu
trabalho. Até então, só gozara algumas férias curtas. Uma viagem à Espanha com meu
pai, pouco tempo depois da morte de minha mãe, durara, é verdade, mais de um mês;
outra, à Alemanha, seis semanas; outras, ainda — mas eram viagens de estudos; meu
pai não se distraía por um momento sequer de suas investigações muito meticulosas;
eu, quando não o acompanhava, lia cada vez mais. Entretanto, logo que deixamos
Marselha, senti que me voltavam lembranças de Granada e de Sevilha, um céu mais
puro, sombras mais acolhedoras, festas, risos e cantos. É o que vamos encontrar de
novo, pensava. Subi à coberta do navio e vi Marselha ir se afastando.
De repente, percebi que me esquecera de Marceline.
Estava sentada na proa; aproximei-me e, pela primeira vez, efetivamente a contemplei.
Marceline era muito bonita. Vocês, que a viram, sabem disso. Censurava a mim mesmo
não o ter percebido antes. Conhecia-a demasiadamente para vê-la com sensação de
novidade; nossas famílias sempre tinham sido muito ligadas; eu a vira crescer,
acostumara-me ao seu encanto… Pela primeira vez admirei-me, tão grande me pareceu
o seu encanto.
Sobre um simples chapéu de palha negra, deixava flutuar um grande véu; era loura,
mas não parecia frágil. A saia e a blusa iguais eram feitas de um tecido escocês que
tínhamos escolhido juntos. Eu fizera questão de que ela não compartilhasse o meu luto.
Sentiu que eu a estava olhando e virou-se para mim… até então, não demonstrara junto
dela senão uma ternura imposta pelo dever; substituía, mais ou menos bem, o amor por
uma espécie de galanteria estudada que, evidentemente, a incomodava um pouco; será
que ela notou, naquele momento, que eu a olhava pela primeira vez de maneira
diferente? Olhou-me também, fixamente; depois, sorriu-me com muita ternura. Sentei-
me a seu lado, sem falar. Eu tinha vivido até então para mim, ou de acordo comigo pelo
menos; casara, sem ver em minha mulher mais do que uma companheira, sem pensar
com clareza que minha vida poderia ser mudada por aquela união. Compreendi afinal
que ali termina o monólogo.
Estávamos sozinhos na coberta. Ela estendeu-me o rosto; apertei-a docemente contra
mim; levantou os olhos; beijei-lhe as pálpebras e experimentei de repente, graças ao
meu beijo, um novo sentimento de compaixão; senti-me tão violentamente invadido por
ele que não pude conter as lágrimas.
— O que tens? — perguntou Marceline.
Começamos a falar. Suas palavras deliciosas me encantaram. Eu tinha as minhas
opiniões sobre a estupidez das mulheres. Junto dela, naquela noite, fui eu que me senti
desajeitado e estúpido. Assim aquela a quem ligara a minha vida tinha a sua vida
própria e real! A importância desse pensamento fez-me despertar várias vezes aquela
noite; por várias vezes ergui a cabeça sobre o leito para ver na outra cama, mais abaixo,
Marceline, minha mulher, dormir.
No dia seguinte, o céu estava esplêndido; o mar quase tranquilo. Algumas conversas,
em tom calmo, diminuíram mais nosso constrangimento. O casamento começava,
verdadeiramente. Na manhã do último dia de outubro, desembarcamos em Túnis.

Minha intenção era ficar poucos dias ali. Confesso francamente a vocês: nada, naquele
país novo, me atraía, além de Cartago e de algumas ruínas romanas; Timgad, de que
Octave me havia falado, os mosaicos de Sousse e, sobretudo, o anfiteatro de El Djem,
que eu pretendia visitar imediatamente. Era preciso antes chegar a Sousse, dali tomar a
diligência; não desejava, no meio-tempo, ocupar-me de nada mais.
Entretanto, Túnis surpreendeu-me bastante. Ao contato de novas sensações, vibravam
certas partes de mim mesmo, faculdades adormecidas que, não tendo sido
aproveitadas, conservavam toda a sua misteriosa mocidade. Sentia-me mais admirado,
estupefato, que divertido, e o que, antes de tudo, me encantava era a alegria de
Marceline.
Meu cansaço, porém, aumentava cada dia mais; mas teria vergonha de deixar-me
vencer por ele. Tossia e sentia no alto do peito um mal-estar estranho. Vamos para o sul,
pensava; o calor me curará.
A diligência de Sfax sai de Sousse às oito horas da noite; atravessa El Djem à uma da
madrugada. Tínhamos reservado lugares na carruagem. Eu esperava encontrar um
calhambeque inconfortável; sentimo-nos, ao contrário, muito bem instalados. Mas o
frio!… Por uma confiança pueril na doçura do ar do Midi, vestíamos roupas leves e só
tínhamos levado um xale. Logo ao sair de Sousse e do abrigo de suas colinas, o vento
começou a soprar. Arremessava-se pela planície, uivava, assobiava, entrava pelas
frinchas das portinholas; nada podia detê-lo. Chegamos transidos de frio; eu, além
disso, extenuado pelos solavancos da carruagem e por uma tosse horrível que me
sacudia ainda mais. Que noite! — Chegados a El Djem, nada de hospedaria; um infecto
bordj fazia as vezes de albergue. A diligência prosseguia viagem. A vila estava
adormecida; na noite, que parecia imensa, entrevia-se vagamente a massa informe das
ruínas; cães ladravam. Voltamos a uma sala terrosa, onde havia dois leitos
miseravelmente arranjados. Marceline tremia de frio, mas ao menos ali o vento não nos
alcançava.
O dia seguinte foi sombrio. Ao sair, fomos surpreendidos pela visão de um céu
uniformemente cinzento. O vento soprava ainda, mas com menos ímpeto que na
véspera. A diligência só passaria ao anoitecer… Foi um dia lúgubre, aquele. O
anfiteatro, percorrido em poucos instantes, me decepcionou; chegou a parecer-me feio,
sob o céu embaciado. Talvez minha fadiga ajudasse, aumentasse o meu desgosto. Pelo
meio-dia, por desfastio, voltei ali, procurando em vão algumas inscrições sobre as
pedras. Marceline, ao abrigo do vento, lia um livro inglês que, por sorte, trouxera
consigo. Tornei a sentar-me junto a ela.
— Que dia triste! Não te sentes muito aborrecida? — perguntei.
— Não. Como vês, estou lendo.
— Que viemos fazer aqui? Não sentes frio?
— Não muito. E tu? É verdade! estás tão pálido.
— Não.
À noite, o vento voltou a soprar com força… Afinal, chegou a diligência. E partimos de
novo.
Desde os primeiros solavancos, senti-me aniquilado; Marceline, cansadíssima,
adormeceu logo sobre o meu ombro. Minha tosse vai acordá-la, pensei, e, com muito
cuidado, afastei sua cabeça e inclinei-a contra a coberta da carruagem. Agora, eu já não
tossia mais: cuspia; era uma coisa nova; puxava aquilo sem esforço; vinha em pequenas
golfadas, a intervalos regulares; era uma sensação tão estranha que, a princípio, não me
desagradou, mas logo me causou repugnância pelo gosto desconhecido que me deixava
na boca. Meu lenço ficou imprestável. Já sentia aquilo escorrer-me pelos dedos. Devo
acordar Marceline?… Felizmente, lembrei-me de uma manta de seda que ela trazia
presa à cintura. Tomei-a cuidadosamente. O líquido, que eu já não podia conter, veio
com mais abundância. Achava-me extraordinariamente aliviado. É o fim do resfriado,
pensava. De repente, me senti muito fraco; tudo começou a girar e julguei que
desfaleceria. Devo acordá-la?… qual nada… (Guardo, creio que de minha infância
puritana, o horror a todo abandono por fraqueza; dou-lhe o nome de covardia.) Voltei a
mim, segurei-me com força, consegui vencer minha vertigem… Imaginei-me de novo
no mar, e o ruído das rodas era o ruído das ondas… Tinha deixado de escarrar.
Depois caí numa espécie de sono.
Quando acordei, já se viam nos céus os primeiros raios da aurora; Marceline dormia
ainda. Estávamos chegando. A manta de seda, que eu conservava na mão, era escura;
não se distinguia nada a princípio; mas, quando tirei do bolso o lenço, vi com espanto
que ele estava cheio de sangue.
Meu primeiro pensamento foi esconder esse sangue de Marceline. Mas de que maneira?
Estava todo manchado; havia sangue em toda parte; nos meus dedos, principalmente.
Uma hemorragia nasal… Eis aí; se ela me interrogar, direi que foi apenas isso.
Marceline ainda dormia quando chegamos. Foi a primeira a descer e nada viu. Tinham-
nos reservado dois quartos.
Pude correr ao meu, lavar-me, limpar o sangue. Marceline não chegou a ver. Entretanto,
sentia-me fraquíssimo e pedi chá para dois. Enquanto ela o servia, muito calma, um
pouco pálida também, sorridente, veio-me uma espécie de irritação por ela nada ter
visto. Sentia-me injusto, é verdade, e dizia comigo mesmo: se ela nada viu é porque eu
soube ocultar-lhe bem; não importa; nada adiantou, aquilo cresceu em mim como um
instinto, invadiu-me… afinal foi mais forte do que eu: não resisti mais: disse-lhe com
um ar distraído.
— Cuspi sangue, esta noite.
Ela não disse nada; simplesmente empalideceu muito mais, cambaleou, tentou
dominar-se e caiu pesadamente ao solo.
Lancei-me sobre ela com uma espécie de raiva:
— Marceline! Marceline!
Vamos! que fiz? Não basta que eu esteja doente?
Mas eu estava, como disse, muito fraco; pouco faltou para que também me sentisse mal.
Abri a porta; chamei; veio gente.
Lembrei-me de que trazia na mala uma carta de apresentação a um oficial da cidade;
aproveitei para mandar chamá-lo. Marceline, no entanto, voltara a si; estava agora à
cabeceira da cama em que eu tremia de febre. O oficial, um médico do exército, chegou;
examinou-nos.
Marceline não tinha nada, afirmou, e apenas ressentira-se da queda; eu estava
gravemente enfermo; não quis dizer nada de definitivo e prometeu voltar antes da
noite. Voltou, sorriu para mim, falou-me e deu-me alguns remédios. Compreendi que
estava condenado.
— Acreditam? Não tive um sobressalto. Estava extenuado. Abandonei-me,
simplesmente. — “Afinal, que me oferecia a vida? Trabalhara até o fim, cumprira
resoluta e apaixonadamente o meu dever. O resto… que me importa?”, pensava,
achando suficientemente belo o meu estoicismo.
Mas o que mais me fazia sofrer era a fealdade do lugar. “Este quarto de hotel é infecto”
— e o percorria com os olhos. De repente, lembrei-me de que ao lado, num quarto igual
àquele, estava minha mulher, Marceline; e escutei sua voz.
O médico ainda estava ali; conversava com ela; procurava falar baixo. Passou um
momento: consegui dormir.
Quando acordei, Marceline estava ao meu lado. Percebi que ela havia chorado. Eu não
amava bastante a vida para ter pena de mim mesmo; mas o aspecto do lugar me
molestava; quase com volúpia meus olhos pousaram nela.
Agora, ao meu lado, ela escrevia. Achei-a bonita. Vi-a fechar várias cartas. Depois
levantou-se, chegou mais perto, tomou com ternura a minha mão:
— Como te sentes agora? — perguntou.
Sorri, disse-lhe tristemente:
— Ficarei bom?
Mas logo ela me respondeu: — Ficarás bom! — com uma convicção tão apaixonada que
eu, quase convencido, tive como que um confuso sentimento de tudo o que a vida
poderia ser, de seu amor à vida, a vaga visão de tão patéticas belezas; as lágrimas
saltaram dos meus olhos e chorei longamente sem poder dominar-me.
Com que violência de amor ela me fez deixar Sousse; cercado de quantos cuidados,
protegido, amparado, vigiado… de Sousse a Túnis, depois de Túnis a Constantina,
Marceline foi admirável. Em Biskra eu deveria sarar. Sua confiança era perfeita; seu zelo
não descansava um instante. Preparava tudo, dirigia os embarques, reservava
acomodações. Não podia, a pobre, fazer com que a viagem fosse menos atroz. Pensei
várias vezes que devia parar e terminar. Suava como um moribundo, sufocava, às vezes
perdia os sentidos. No fim do terceiro dia, cheguei a Biskra como um defunto.
II
Por que falar dos primeiros dias? Que resta deles? Sua terrível lembrança não tem voz.
Eu não sabia mais quem era nem onde estava. Revejo apenas, junto ao meu leito de
agonia, Marceline, minha mulher, minha vida, inclinar-se. Sei que foram apenas os seus
cuidados apaixonados e o seu amor que me salvaram. Um dia enfim, como um
marinheiro perdido que avista terra, senti que um clarão de vida despertava; pude
sorrir a Marceline. Por que contar tudo isso? O importante é que a morte me havia
tocado, como se diz, com sua asa. O importante é que me pareceu surpreendente que eu
estivesse vivo, que o dia ganhou para mim uma luz inesperada. Antes, pensava, eu não
sabia que vivia. Devia fazer a palpitante descoberta da vida.
Chegou o dia em que pude levantar-me. Fiquei encantado com o nosso home. Era quase
que apenas um terraço. Que terraço! Meu quarto e o de Marceline davam para ele;
prolongava-se sobre os telhados. De sua parte mais alta, por cima das casas, viam-se
palmeiras; por cima das palmeiras, o deserto. Do outro lado do terraço viam-se os
jardins da cidade; os ramos das últimas mimosas o ensombravam; enfim ladeava o
pátio, um pequeno pátio regular, plantado de seis palmeiras regulares, e terminava na
escada que o comunicava com o pátio. Meu quarto era vasto, arejado; paredes caiadas,
nada nas paredes; uma pequena porta levava ao quarto de Marceline; uma grande porta
de vidro abria para o terraço.
Passaram-se ali dias arrastados. Quantas vezes, em minha solidão, revi aqueles dias
lentos! … Marceline está perto de mim. Lê; costura; escreve. Eu não faço nada.
Contemplo-a. Vejo o sol; vejo a sombra; vejo a linha de sombra deslocar-se; tenho tão
pouco em que pensar, que fico observando-a. Estou ainda muito fraco: respiro com
dificuldade; tudo me cansa, até a leitura; aliás, ler o quê? Ser me ocupa bastante.

Uma manhã Marceline entra rindo: — Trago-te um amigo — me diz; e vejo entrar, atrás
dela, um menino árabe de pele morena. Chama-se Bachir, tem uns grandes olhos
silenciosos que me contemplam. Sinto-me um pouco constrangido, e esse
constrangimento já me cansa; não digo nada, pareço contrariado. O menino, diante da
frieza do meu acolhimento, se desconcerta, volta-se para Marceline e, com um
movimento de graça animal e meiga, encolhe-se contra ela, toma-lhe a mão e a beija
com um gesto que descobre seus braços nus. Noto que ele está nu sob a leve gandura
branca e o albornoz remendado.
— Vamos! senta ali — diz Marceline, que nota meu constrangimento. — Brinca
tranquilamente.
O pequeno senta-se no chão, tira uma faca do capuz do albornoz, um pedaço de djerid e
começa a trabalhar. É um apito, creio, que ele quer fazer.
Ao fim de pouco tempo, sua presença já não me constrange. Olho-o; parece ter
esquecido de que estou ali. Seus pés estão descalços; os tornozelos e os pulsos são
delicados. Maneja sua pobre faca com uma destreza divertida… Será que vou me
interessar por isso?… Seus cabelos são raspados à moda árabe; usa um mísero barrete
com um buraco no lugar da borla. A gandura, um pouco caída, descobre seu ombro
frágil. Sinto desejo de tocá-lo. Inclino-me; ele se volta e me sorri. Faço-lhe um gesto de
que me passe o apito, pego-o e finjo admirá-lo muito. Agora ele quer ir embora.
Marceline dá-lhe um doce, eu duas moedas.
No dia seguinte, pela primeira vez, me aborreço; espero; espero o quê? sinto-me
enfastiado, inquieto. Afinal, não resisto mais:
— Bachir não vem esta manhã, Marceline?
— Se queres, vou buscá-lo.
Ela me deixa, desce; depois de um instante, volta sozinha. Que fez de mim a doença?
Sinto vontade de chorar, vendo-a voltar sem Bachir.
— Era muito tarde, diz ela; as crianças saíram da escola e se dispersaram por toda parte.
Há algumas encantadoras, sabes? Creio que todas já me conhecem. — Trata, ao menos,
de que ele venha amanhã.
No dia seguinte, Bachir voltou. Sentou-se como na antevéspera, tirou sua faca, tentou
cortar uma madeira mais dura e trabalhou tão bem que enterrou a lâmina no polegar.
Estremeci de horror; ele riu, mostrou o corte brilhante e ficou entretido vendo correr o
sangue. Quando ria, mostrava os dentes branquíssimos; lambeu gostosamente o
ferimento; sua língua era rosada como a de um gato. Como fazia tudo naturalmente!
Era o que nele mais me atraía: a saúde. A saúde daquele pequeno corpo era bela.
No outro dia trouxe bolinhas de gude. Quis que eu jogasse com ele. Marceline não
estava presente; ela não teria consentido. Hesitei, olhei Bachir; o pequeno me tomou o
braço, pôs as bolinhas na minha mão, obrigou-me a jogar. Custei muito a me abaixar,
mas procurei contentá-lo. O prazer de Bachir me encantava. Enfim, não pude mais.
Estava banhado de suor. Larguei as bolinhas e caí sobre uma cadeira, Bachir, um pouco
surpreendido, me olhava.
— Doente? — perguntou com ternura; o timbre de sua voz era encantador.
Marceline voltou.
— Leva-o — disse a ela. — Sinto-me cansado esta manhã.
Algumas horas depois, escarrei sangue. Foi enquanto caminhava com dificuldade no
terraço. Marceline estava ocupada em seu quarto; felizmente nada viu. Sentira-me
sufocado e, ao respirar mais profundamente, aquilo veio e encheu-me a boca… Mas já
não era sangue claro, como nas primeiras vezes; era um grande coágulo horrível que
cuspi no chão com nojo.
Andei alguns passos, cambaleando. Estava horrivelmente emocionado. Tremia. Tinha
medo; sentia-me enraivecido, pois até então pensara que, pouco a pouco, a cura
chegaria, e que era só questão de esperar. Esse brutal acidente me derrubava. Coisa
estranha, os primeiros escarros não me produziram tanto efeito; lembrava-me agora de
que me haviam deixado quase calmo. De onde vinha o meu medo, o meu horror àquele
momento? É que eu começava, ai de mim!, a amar a vida. Voltei atrás, inclinei-me,
encontrei meu escarro, tomei uma palha e, levantando o coágulo, guardei-o no lenço.
Olhei. Era um feio sangue quase negro, uma coisa pegajosa, repugnante … Pensei no
belo sangue rubro de Bachir … E, de repente, senti um desejo, uma ânsia, uma força
mais furiosa, mais imperiosa do que tudo o que sentira até então: viver! eu quero viver.
Eu quero viver. Cerrei os dentes, os punhos, e me concentrei todo, perdidamente,
desoladamente, nesse esforço para a existência. Tinha recebido na véspera uma carta de
T…; em resposta a perguntas aflitas de Marceline, ela vinha cheia de conselhos médicos;
T… juntara à sua carta algumas brochuras de vulgarização médica e um livro mais
especializado que, por isso mesmo, me pareceu mais sério. Eu lera negligentemente a
carta e nem olhara os impressos; primeiro, porque a semelhança dessas brochuras com
os pequenos tratados morais que haviam fartado minha infância não me atraía; depois,
porque todos os conselhos me importunavam; eu não pensava, além disso, que esses
“Conselhos aos tuberculosos”, “Cura prática da tuberculose” pudessem aplicar-se ao
meu caso. Não me considerava tuberculoso. Antes, atribuía minha primeira hemoptise a
uma causa diferente; ou melhor, não a atribuía a nada, evitava pensar nela, e me
julgava, se não curado, ao menos próximo da cura… Li a carta; devorei o livro, os
tratados. Subitamente, com uma terrível evidência, descobri que não me tratara como
devia. Até então, eu me deixara viver, confiando na mais vaga esperança; de repente,
minha vida apareceu atacada, atacada atrozmente em seu centro. Um inimigo múltiplo,
altivo, vivia em mim. Eu o escutava, seguia-o com os olhos, sentia-o. Não o venceria
sem luta… e repetia a meia voz, como para convencer-me melhor: é uma questão de
vontade. Pus-me em estado de hostilidade. Caía a noite: organizei minha estratégia.
Durante algum tempo, só a minha cura seria o meu estudo; meu dever era a minha
saúde; devia achar bom, chamar Bem tudo o que me fosse salutar, esquecer, repelir
tudo o que não me curasse. Antes do jantar, quanto a respiração, exercício, alimentação,
eu havia tomado resoluções. Comíamos em uma espécie de pequeno quiosque que o
terraço envolvia de todos os lados. Sós, tranquilos, longe de tudo, a intimidade de
nossas refeições era deliciosa. De um hotel vizinho, um negro velho nos trazia uma
comida passável. Marceline cuidava dos menus, encomendava um prato, recusava
outro … Como não tinha ordinariamente grande apetite, eu não me preocupava muito
com os pratos que faltavam, ou com os menus insuficientes. Marceline, habituada
também a não comer muito, não sabia nem percebia que eu não me alimentava bem.
Comer muito era a primeira de todas as minhas resoluções. Pretendia pô-la em prática a
partir dessa noite. Não pude. Serviram-nos uma sopa intragável e depois uma carne
demasiadamente assada. Minha irritação foi tão grande que, lançando a culpa sobre
Marceline, transbordei diante dela em palavras imoderadas. Acusei-a; parecia, por
minhas palavras, que ela deveria sentir-se responsável pela má qualidade da comida.
Esse pequeno atraso no regime que eu resolvera adotar adquiria a mais grave
importância; eu esquecia os dias anteriores; esse jantar fracassado punha tudo a perder.
Fiquei irredutível. Marceline teve de ir à cidade buscar uma conserva, um patê
qualquer. Voltou em seguida com uma tigelinha que devorei quase toda, como para
provar que, de nós dois, era eu o que tinha mais necessidade de comer. Na mesma noite
decidimos o seguinte: as refeições deveriam ser muito melhores: mais numerosas
também, uma em cada três horas; a primeira seria às seis e meia. Uma abundante
provisão de conservas de toda espécie supriria os modestos pratos do hotel …
Não pude dormir aquela noite, de tal modo o pressentimento, de minhas novas
virtudes me perturbava. Creio que tive um pouco de febre; tinha a meu lado uma
garrafa de água mineral; bebi um copo, dois copos; da terceira vez, esvaziei a garrafa,
bebendo pelo gargalo. Estudava minha vontade como se estuda uma lição; tomava
conhecimento de minha hostilidade e a projetava contra todas as coisas; devia lutar
contra tudo: minha salvação dependia só de mim. Enfim, vi a noite empalidecer; o dia
apareceu. Tinha sido a minha vigília de armas. O dia seguinte era domingo. Até então,
confesso que não me preocupava com as crenças de Marceline; por indiferença ou
pudor, parecia-me que nada tinha a ver com aquilo; além disso, não lhe dava
importância. Aquele dia, Marceline foi à missa. disse-me, ao voltar, que tinha rezado
por mim. Olhei-a fixamente e lhe falei com a maior ternura: — Não deves rezar por
mim, Marceline. — Por quê? — perguntou um pouco inquieta. — Eu não gosto de
proteções. — Repeles a ajuda de Deus? — Depois, ele teria direito à minha gratidão.
Isso cria obrigações; não quero assumi-las. Tínhamos o ar de quem graceja, mas não nos
enganávamos, de modo algum, sobre a importância de nossas palavras. — Não poderás
curar-te sozinho, pobre amigo — suspirou. — Então, tanto pior … Depois, notando sua
tristeza, acrescentei menos brutalmente: — Tu me ajudarás.
III
Vou falar longamente do meu corpo. Falarei tanto, que parecerá a vocês que esqueço a
parte do espírito. Minha negligência nesta narrativa é voluntária; era real quando eu a
estava vivendo. Não tinha força bastante para manter uma dupla vida; do espírito e do
resto, pensava, cuidarei mais tarde, quando estiver melhor.
Estava longe de sentir-me bem. Por qualquer coisa transpirava; por qualquer coisa me
resfriava; tinha, como dizia Rousseau, “o hálito curto”, às vezes, um pouco de febre;
outras vezes, desde pela manhã, um sentimento de horrível lassidão, e ficava, então,
prostrado sobre uma poltrona, indiferente a tudo, egoísta, preocupado unicamente em
respirar bem. Respirava penosamente, com método, com cuidado; minhas expirações se
faziam em duas arrancadas que a minha vontade supertensa não podia conter; muito
tempo depois, não conseguia evitá-las senão à custa de muita atenção.
Mas o que mais me fez sofrer foi minha mórbida sensibilidade a toda mudança de
temperatura. Penso, quando hoje medito sobre aquilo, que uma perturbação nervosa de
ordem geral se juntava à doença; não poderia explicar de outra maneira uma série de
fenômenos, irredutíveis, creio eu, ao simples estado tuberculoso, como me parecia
então. Sentia sempre calor ou frio excessivos; cobria-me logo com um exagero ridículo,
passava do calafrio ao suor, descobria-me um pouco, e tremia quando deixava de
transpirar. Certas partes do meu corpo gelavam, tornavam-se, apesar do suor, frias ao
tato como um mármore; nada conseguia aquecê-las. Era de tal modo sensível ao frio que
um pouco de água caída no meu pé, enquanto lavava o rosto, me resfriava; era
igualmente sensível ao calor… Conservava essa sensibilidade, conservo-a ainda, mas
hoje é para gozá-la voluptuosamente. Toda sensibilidade muito viva, conforme o
organismo for robusto ou fraco, pode tornar-se causa de delícia ou de mal-estar. Tudo o
que noutro tempo me molestava tornou-se delicioso agora.
Não sei como até então conseguira dormir com as janelas fechadas; seguindo os
conselhos de T***, passei a abri-las durante a noite; a princípio, um pouquinho; depois,
escancarei-as completamente; logo aquilo se tornou um hábito, uma necessidade tão
grande que bastava fechá-las para sentir-me sufocado. Com que prazer mais tarde pude
sentir entrar pelo meu quarto o vento das noites, o luar…
Acabemos de uma vez com essas primeiras tentativas de saúde. Graças a cuidados
constantes, ao ar puro, a uma alimentação mais escolhida, comecei a sentir-me melhor.
Até então, temendo a fadiga da escada, não me arriscara a deixar o terraço; nos últimos
dias de janeiro, desci afinal e me aventurei até o jardim.
Marceline me acompanhava, levando um xale. Eram três horas da tarde. O vento, às
vezes violento naquela região e que me perseguira durante três dias, havia cessado. A
doçura do ar era deliciosa.
Jardim público… Uma larga alameda o dividia, sombreada por duas fileiras dessa
espécie de mimosas muito altas, que na Europa se chamam acácias. Bancos, à sombra
das árvores. Um regato canalizado, mais profundo que largo, quase reto, contornava a
alameda; depois outros canais menores que desviavam a água do regato, levando-a,
através do jardim, até às plantas; a água pesada é cor de terra, cor de argila rósea ou
cinzenta. Poucos estrangeiros, alguns árabes; estes vão e vêm e, quando saem do sol,
seus mantos brancos tomam a cor da sombra.
Estremeci de frio quando entrei nessa sombra estranha; envolvi-me no xale; entretanto,
não me sentia mal; ao contrário… Sentamo-nos num banco. Marceline estava calada.
Passaram alguns árabes; depois chegou um bando de meninos. Marceline conhecia
vários e lhes fez sinal; aproximaram-se. Foi me dizendo seus nomes; houve perguntas,
respostas, sorrisos, caretas, jogos inocentes. Tudo isso me irritava um pouco e voltou
meu mal-estar; estava cansado e transpirava. Mas confesso que o que me incomodava
não eram as crianças, era ela. Sim, por pouco que fosse, sentia-me molestado por sua
presença. Se me levantasse, ela me acompanharia; se tirasse o xale, ela quereria levá-lo;
se o pusesse de novo, ela perguntaria: “Estás com frio?” Depois, eu não ousava falar aos
meninos em sua presença; via que ela tinha os seus protegidos; de propósito, fingi
interessar-me pelos outros.
— Podemos ir — disse-lhe; e resolvi comigo mesmo voltar sozinho ao jardim.
No dia seguinte, ela precisou sair às dez horas; aproveitei a ocasião. O pequeno Bachir,
que raramente deixava de vir pela manhã, tomou o meu xale; sentia-me ágil, de coração
leve. Não havia quase ninguém na alameda; eu caminhava lentamente, sentava-me por
um instante, continuava a andar. Bachir me seguia, tagarelando; fiel e dócil como um
cão. Cheguei à parte do canal em que as lavadeiras vêm lavar; no meio da corrente, há
uma pedra lisa; sobre ela, uma rapariguinha deitada, com o rosto inclinado para a água
e com a mão na corrente; lançava ou apanhava pequenos ramos. Seus pés nus
mergulhavam na água; guardavam a marca úmida do banho e sua pele parecia mais
escura. Bachir chegou-se a ela e falou-lhe; ela voltou-se, sorriu-me, respondeu a Bachir
em árabe.
— É minha irmã — disse-me ele; depois explicou-me que sua mãe viria lavar roupa e
que a pequena a esperava. Chamava-se Rhadra, que quer dizer Verde, em árabe. Dizia
tudo isso com uma voz encantadora, clara, infantil como a emoção que eu sentia.
— Está pedindo que lhe dês duas moedas — acrescentou.
Dei-lhe dez, e me dispunha a partir, quando chegou a mãe, a lavadeira. Era uma mulher
admirável, pesada, com uma cara larga tatuada de azul, e trazia um cesto de roupas na
cabeça, como as canéforas antigas, e, como estas, vestida simplesmente de um largo
pano azul escuro arrepanhado na cintura e descaindo até os pés. Logo que viu Bachir,
gritou-lhe rudemente. Ele respondeu com violência; a pequena interveio; e estabeleceu-
se entre os três uma discussão acalorada. Afinal Bachir, como vencido, disse-me que a
mãe precisava dele aquela manhã; entregou-me o xale tristemente e tive de voltar
sozinho.
Não andara vinte passos, quando o xale me pareceu de um peso insuportável; banhado
de suor sentei-me no primeiro banco que encontrei. Esperava que passasse alguém que
me livrasse daquele fardo. Não tardou a aparecer um rapagão de quatorze anos, negro
como um sudanês, nada tímido, que se ofereceu para ajudar-me. Chamava-se Ashour.
Seria bonito se não fosse zarolho. Gostava de conversar, contou-me de onde vinha o rio
e disse-me que, depois do jardim público, ele corria para o oásis e o atravessava
inteiramente. Escutava-o, esquecendo o meu cansaço. Por mais gracioso que Bachir me
parecesse, conhecia-o bastante agora, e sentia-me feliz em variar. Prometi mesmo, um
outro dia, descer sozinho ao jardim e esperar, sentado num banco, o acaso de um
encontro feliz…
Depois de parar várias vezes ainda, chegamos, Ashour e eu, diante da minha porta.
Tive vontade de convidá-lo a subir, mas não me animei com receio do que Marceline
poderia pensar. Encontrei-a na sala de jantar, junto de um garotinho raquítico e de
aspecto tão miserável que me causou no primeiro momento mais repulsão do que
piedade. Com uma ponta de receio, Marceline me disse:
— O pobrezinho está doente.
— Não será contagioso? Que tem ele?
— Ainda não sei ao certo. Queixa-se de tudo um pouco. Fala francês muito mal; quando
Bachir estiver aqui amanhã, lhe servirá de intérprete… Dei-lhe um pouco de chá…
Depois, como para se desculpar, vendo que eu não dizia nada:
— Há muito tempo já que o conheço; não quis trazê-lo antes; tinha medo de te cansar,
ou talvez de te contrariar.
— Por que razão? — exclamei; — podes trazer aqui todas as crianças que quiseres, se
isso te agrada!
E pensei, um pouco irritado por não o ter feito, que poderia muito bem ter trazido
comigo Ashour.
Olhei minha mulher; tinha um ar maternal e carinhoso. Sua ternura era tanta que o
pequeno partiu profundamente animado. Falei do meu passeio e fiz sentir com bons
modos a Marceline por que preferia sair sozinho.
Minhas noites, geralmente, eram ainda entrecortadas de sobressaltos, que me
despertavam gelado ou molhado de suor. Aquela noite dormi tranquilo e quase não
despertei. Na manhã seguinte, desde as nove horas, estava pronto para sair. O dia
estava lindo; sentia-me repousado, nada fraco, alegre, ou antes bem disposto. O ar
estava calmo e morno, mas levei o xale comigo, como pretexto para pedir a alguém que
o carregasse. Já disse que o jardim era contíguo ao nosso terraço; em um instante, estava
ali. Penetrei, encantado, na sua sombra. O ar estava luminoso. As acácias, cujas flores
aparecem muito antes das folhas, exalavam um suave perfume — a menos que não
viesse de todas as coisas aquele aroma leve e desconhecido que parecia entrar em mim
por vários sentidos e me exaltava. Respirava com mais facilidade; meus passos eram
mais lépidos; sentei-me, entretanto, no primeiro banco, mais tonto de prazer do que
cansado. Olhei. A sombra era móvel e leve; não caía ao solo, parecia apenas pousar nele.
Luz! — Eu escutava. Que ouvia? Nada, e tudo ao mesmo tempo; cada ruído me
encantava. — Lembro-me de um arbusto, cujo tronco, de longe, me pareceu de uma
consistência tão estranha, que me levantei para ir tocá-lo com a mão. Palpei-o como
numa carícia; senti-me deliciado. Lembro-me… Seria mesmo nessa manhã que eu iria
nascer?
Esqueci que estava só, não esperava nada, esqueci a hora. Parecia-me que, até então, eu
havia sentido pouco para pensar muito, e surpreendia-me esta descoberta: minha
sensação tornava-se tão forte como um pensamento.
Digo: parecia-me — porque do fundo do passado de minha primeira infância
despertavam enfim os mil clarões de mil sensações desgarradas. A consciência que eu
readquiria dos meus sentidos me permitia essa inquieta revelação. Sim, meus sentidos,
de agora em diante despertados, tornavam a encontrar toda uma história e
recompunham um passado. Eles viviam! Viviam! nunca tinham deixado de viver,
mesmo durante os meus anos de estudo, uma vida latente e sutil.
Não encontrei ninguém aquele dia, e fiquei satisfeito; tirei do bolso um pequeno
Homero, que não abrira desde minha partida de Marselha, reli três frases da Odisseia,
decorei-as; depois, encontrando um alimento suficiente no seu ritmo e me deliciando
com ele, fechei o livro, e ali fiquei, trêmulo, mais vivo do que nunca, com o espírito
entorpecido de felicidade…
IV
Marceline, que via com alegria minha saúde voltar, havia vários dias que me falava dos
jardins maravilhosos do oásis. Ela amava o ar livre e as caminhadas. A liberdade, que
lhe dava a minha doença, permitia-lhe longos passeios de que voltava deslumbrada; até
então não tinha falado sobre eles, com receio de me animar a acompanhá-la ou de me
entristecer com a descrição de coisas agradáveis de que eu não podia gozar. Mas agora,
que eu estava melhor, contava com elas para completar a minha cura. O prazer que eu
sentia de novo em caminhar e observar fazia com que a ideia me tentasse. No dia
seguinte saímos juntos.
Levou-me a um estranho caminho, como não vi igual em parte alguma. Entre dois altos
paredões de terra, ele se alonga indolentemente, as formas dos jardins, que os paredões
limitam, o inclinam com suavidade; faz uma curva aqui, mais adiante se interrompe;
logo à entrada há um atalho que desconcerta; a gente já não sabe de onde vem nem para
onde vai. A água fiel do regato segue o atalho, ladeia um dos paredões; estes são feitos
da mesma terra da estrada e de todo o oásis, uma argila levemente rosada ou
acinzentada, que a água torna um pouco mais escura, que o sol ardente esmalta e que
endurece ao calor, mas abranda ao primeiro aguaceiro formando um solo plástico em
que os pés nus ficam gravados. Por sobre os paredões, palmeiras. A nossa chegada,
pombas-rolas voaram. Marceline me olhava.
Esqueci meu cansaço e minha indisposição. Caminhava numa espécie de êxtase, de
silenciosa alegria, de exaltação dos sentidos e da carne. Nesse momento, soprou uma
leve viração; todas as palmas se agitaram e vimos as palmeiras mais altas inclinarem-se;
depois voltou a calma a tudo, e ouvi distintamente atrás do paredão um som de flauta.
Havia uma brecha; entramos.
Era um lugar cheio de sombra e luz; tranquilo, como se estivesse ao abrigo do tempo;
cheio de silêncios e de frêmitos, leve rumor da água que corre, dá de beber às palmeiras
e foge de árvore em árvore, voz discreta das rolas, canto da flauta que um menino
tocava. Estava guardando um rebanho de cabras; sentado, quase nu, sobre um tronco
abatido de palmeira; não se preocupou com nossa chegada, não fugiu, não parou de
tocar senão um instante.
Notei, nesse curto silêncio, que outra flauta ao longe respondia. Avançamos um pouco
mais, depois:
— É inútil ir mais adiante — disse Marceline — esses jardins se parecem uns aos outros;
apenas, no fim do oásis, são um pouco maiores. Estendeu o xale no chão:
— Descansa um pouco.
Quanto tempo ficamos ali? não sei mais, que importava a hora? Marceline estava junto a
mim; deitei-me, pousei a cabeça no seu colo. O canto da flauta escorria ainda, cessava
um momento, recomeçava: o ruído da água… Às vezes, uma cabra rompia o silêncio.
Fechei os olhos; senti pousar na minha fronte a mão fresca de Marceline; sentia o sol
ardente docemente peneirado pelas palmas; não pensava em nada; que importava o
pensamento? sentia extraordinariamente.
Às vezes, um novo rumor; abria os olhos: era o vento leve nas palmas. Ele não descia
até nós, só agitava as palmas altas…

Na manhã seguinte, voltei com Marceline ao mesmo jardim; na tarde do mesmo dia, fui
sozinho. O pastor que tocava a flauta estava ali. Aproximei-me dele, falei-lhe. Chamava-
se Lassif, tinha apenas doze anos, era belo. Disse-me o nome de suas cabras, disse-me
que os canais se chamam seghias, que nem todos correm todos os dias; a água, sábia e
parcimoniosamente distribuída, satisfaz a sede das plantas e depois se retira. Ao pé de
cada palmeira há um pequeno depósito cavado que conserva a água para dar de beber à
árvore; um sistema engenhoso de comportas, que o menino explicou, fazendo-o
funcionar, represa a água e a leva aos pontos mais ressequidos.
No outro dia, vi um irmão de Lassif: era um pouco mais velho, menos bonito; chamava-
se Lachmi. Com o auxílio da espécie de escada que faz ao longo do fuste a cicatriz das
velhas palmas cortadas, ele subiu até o cimo de uma palmeira chapotada; depois desceu
agilmente, deixando ver, sob o manto flutuante, uma nudez dourada. Trazia do alto da
árvore, cujo cimo haviam podado, uma pequena cabaça de terra: estava pendurada lá
em cima, perto do corte recente, para recolher a seiva da palmeira com a qual se faz um
vinho doce muito apreciado pelos árabes. A convite de Lachmi, provei um pouco; mas
seu gosto estranho, áspero e adocicado não me agradou.
Nos dias seguintes, fui mais adiante; vi outros jardins, outros pastores e outras cabras.
Como Marceline havia dito, esses jardins eram todos parecidos; entretanto, cada um
deles tinha alguma coisa diferente.
Às vezes, Marceline me acompanhava ainda; mas, quase sempre, desde a entrada dos
jardins, eu dispensava sua companhia, alegando que estava cansado, que queria sentar-
me um pouco, que ela não me devia esperar, pois tinha mais necessidade de caminhar
do que eu. Assim ela terminava sem mim o seu passeio. Eu ficava junto dos pequenos.
Em pouco tempo, conhecia muitos; conversava com eles longamente, aprendia seus
jogos, ensinava-lhes outros, perdia no jogo de rolhas todos os meus niqueis. Alguns que
me acompanhavam até mais longe (cada dia eu alongava mais as caminhadas) me
indicavam, para voltar, uma passagem nova, carregavam meu capote e meu xale; antes
de deixá-los, distribuía moedas; às vezes, eles me seguiam, brincando, até à porta; às
vezes, chegavam a entrar.
Marceline, por sua vez, tinha os seus convidados. Trazia principalmente os meninos da
escola, que ela animava nos estudos; à saída das aulas, os bem-comportados e os
estudiosos subiam; os que eu trazia eram diferentes; mas os brinquedos reuniam todos
eles. Tínhamos sempre doces e refrescos. Outros vieram voluntariamente, sem convite.
Lembro-me de cada um deles; chego mesmo a revê-los…

Pelo fim de janeiro, o tempo piorou subitamente; um vento frio começou a soprar e
minha saúde ressentiu-se da mudança. O grande espaço descoberto, que separa o oásis
da cidade, tornou-se para mim impraticável, e tive de contentar-me novamente com o
jardim público. Depois choveu; uma chuva gelada que, no horizonte, ao norte, cobriu
de neve as montanhas.
Passei aqueles dias tristes junto do fogo, sombrio, lutando raivosamente contra a doença
que, com o mau tempo, triunfava. Dias lúgubres: não podia ler nem trabalhar; o menor
esforço me causava transpirações incômodas; fixar a atenção me extenuava; ficava
sufocado, quando não cuidava de respirar bem.
Durante esses tristes dias, os meninos foram a minha única distração. Quando chovia,
só os mais íntimos entravam; tinham as roupas molhadas; sentavam-se, em círculos, ao
pé do fogo. Eu me sentia demasiadamente cansado e enfermo para fazer outra coisa que
não fosse olhá-los; mas a presença de sua saúde me curava. Os que Marceline trazia
eram fracos, macilentos, bem-comportados; irritava-me contra ela e contra eles e,
finalmente, os repelia. Confesso que me davam medo.
Uma manhã, tive uma revelação curiosa de mim mesmo: Moktir, o único protegido de
minha mulher que não me irritava (talvez por ser bonito), ficara só comigo no meu
quarto; até então, não me atraía muito, mas seu olhar brilhante e sombrio me intrigava.
Uma curiosidade, que não sabia explicar bem, fazia com que eu acompanhasse os seus
gestos. Eu estava de pé, junto ao fogo, os cotovelos sobre a lareira, diante de um livro, e
parecia absorvido, mas podia ver, refletidos no espelho, os movimentos do rapaz a
quem dava as costas. Moktir não sabia que estava sendo observado e imaginava que eu
estivesse mergulhado na leitura. Vi-o aproximar-se sem ruído de uma mesa em que
Marceline guardara, junto de um livro, uma pequena tesoura, apoderar-se dela
furtivamente e escondê-la rápido no albornoz. Meu coração bateu um momento com
força, mas nem os mais sérios pensamentos puderam despertar em mim um sentimento
de revolta. Ao contrário, chego a convencer-me de que foi um sentimento de alegria o
que me invadiu naquele instante. Quando já havia dado a Moktir bastante tempo para
me furtar, voltei-me de novo para ele e falei-lhe como se nada tivesse acontecido.
Marceline gostava muito desse menino; entretanto, não foi o receio de magoá-la que me
fez, quando voltou, em vez de denunciar Moktir, imaginar não sei que história para
explicar a perda da tesourinha. A partir desse dia, Moktir tornou-se o meu preferido.
V
Nossa estada em Biskra já não devia prolongar-se muito. Passadas as chuvas de
fevereiro, o calor tornou-se fortíssimo. Depois dos longos e sombrios dias de chuva,
acordei uma manhã, subitamente, no azul. Levantei-me e corri ao terraço mais alto. O
céu, de um horizonte a outro, estava puro. Sob o sol, já ardente, nuvens de vapor se
elevavam; o oásis inteiro exalava fumaça; ao longe, ouvia-se bramir o Oued
transbordado. O ar estava tão límpido, tão leve, que me senti muito melhor. Marceline
chegou; tivemos vontade de sair, mas a lama nos fez mudar de ideia.
Poucos dias depois, voltamos ao jardim de Lassif; os caules pareciam pesados, moles,
inchados pela água. Essa terra africana, cujos anseios eu não conhecia, submersa
durante tantos dias, despertava agora do inverno, ébria de água, rebentando em novas
seivas, cheia de uma impetuosa primavera de que eu sentia a repetição em mim mesmo.
Ashour e Moktir nos acompanharam a princípio; eu gozava suas amizades simples que
me custavam apenas meio franco por dia; mas em breve, cansado deles, já não me
sentindo tão fraco que necessitasse do exemplo de sua saúde, e, sem encontrar mais nos
seus jogos o alimento de minha alegria, voltei para Marceline a exaltação do meu
espírito e dos meus sentidos. A alegria que ela sentiu mostrou-me que, antes, estivera
triste. Desculpei-me como uma criança por tê-la tantas vezes abandonado, atribuí à
minha fraqueza meu humor estranho e variável, afirmei que até então me sentia muito
cansado para amar, mas que, daí em diante, o amor cresceria juntamente com a saúde.
Eu era sincero; mas, sem dúvida, ainda estava muito fraco, pois só mais de um mês
depois é que desejei Marceline.
A cada dia, entretanto, o calor aumentava. Nada nos prendia a Biskra — a não ser esse
encanto de que devia lembrar-me depois. Nossa resolução de partir foi súbita. Em três
horas a bagagem estava pronta. O trem partia na madrugada seguinte…

Lembro-me da última noite. A lua estava quase cheia; pela janela escancarada, ela
entrava no meu quarto. Marceline dormia. Eu estava deitado mas não conseguia
dormir. Ardia numa espécie de febre feliz, que não era outra coisa senão a vida.
Levantei-me, mergulhei na água as mãos e o rosto, depois empurrando a porta
envidraçada, saí.
Já era tarde; nenhum ruído; nenhum sopro: o próprio ar parecia adormecido. Apenas,
ao longe, ouviam-se os cães árabes que, como chacais, uivam a noite inteira. Diante de
mim, o pequeno pátio; a muralha, na minha frente, punha nele um manto oblíquo de
sombra; as palmeiras regulares, já sem cor nem vida, pareciam imobilizadas para
sempre… Mas mesmo no sono encontra-se ainda uma palpitação de vida — nada ali
parecia dormir, tudo parecia morto. Tive medo daquela calma; e, de repente, como para
protestar, afirmar-se ou se desesperar no silêncio, invadiu-me de novo o sentimento
trágico da minha vida, tão violento, quase doloroso, e com tal ímpeto que eu teria
gritado, se pudesse gritar como os animais. Lembro-me de que segurei a mão esquerda
com a direita; quis levá-la à cabeça e o consegui. Para quê? para afirmar que eu vivia e
achar isso admirável. Toquei a fronte, as pálpebras. Senti um leve arrepio. Dia virá,
pensava, dia virá em que até para levar aos lábios a água para a minha sede, já não terei
mais forças… Entrei, mas não me deitei logo; quis fixar aquela noite, impor sua
lembrança ao meu pensamento, retê-la dentro de mim; sem saber o que fazia, peguei
um livro — a Bíblia — e o abri ao acaso; curvado à luz do luar, podia ler; li estas
palavras de Cristo a Pedro, estas palavras que nunca mais esqueceria: “Agora tu cinges
a tua túnica e vais aonde queres ir; mas, quando fores velho, estenderás as mãos…”
Estenderás as mãos… Na manhã seguinte, muito cedo, partimos.
VI
Não falarei de cada dia da viagem. Alguns só deixaram uma lembrança confusa; minha
saúde, ora melhor, ora pior, vacilava ainda ao vento frio, inquietava-se com a sombra de
uma nuvem, e meu estado nervoso causava perturbações frequentes; mas meus
pulmões, pelo menos, melhoravam. Cada recaída era menos longa e séria; seu ataque
não era menos violento, mas meu corpo se tornava cada vez mais protegido contra ela.
De Túnis, chegamos a Malta, depois a Siracusa; voltava à terra clássica, cuja língua e
passado me eram familiares. Desde o princípio de minha doença, eu vivia sem exame,
sem lei, tratando simplesmente de viver, como fazem o animal ou a criança. Menos
absorvido agora pela doença, via que a minha vida voltava a ser certa e consciente.
Depois da longa agonia, pensara ter voltado a ser o mesmo e ligar de novo o presente ao
passado; numa terra desconhecida eu podia me iludir assim; aqui, não; aqui tudo me
revelava o que ainda me surpreendia: eu estava mudado.
Quando, em Siracusa e mais adiante, quis retomar meus estudos, mergulhar como
antigamente no exame minucioso do passado, descobri que alguma coisa havia, se não
suprimido, ao menos modificado em mim o gosto por aquilo tudo: era o sentimento do
presente. A história do passado tomava agora a meus olhos essa imobilidade, essa
fixidez terrível das sombras noturnas no pequeno pátio de Biskra, a imobilidade da
morte. Antes, me sentia bem com essa mesma fixidez que permitia a precisão do meu
espírito; todos os fatos da história apareciam diante de mim como as peças de um
museu, ou melhor, como as plantas de um herbário, cuja secura definitiva me ajudava a
esquecer que, um dia, ricas de seiva, elas tinham vivido sob o sol. Agora, para poder
achar algum prazer na história, eu precisava imaginá-la no presente. Os grandes fatos
políticos deviam, portanto, impressionar-me muito menos do que a emoção que
renascia em mim pelos poetas, ou por certos homens de ação. Em Siracusa, reli Teócrito,
imaginando que os seus pastores de nomes bonitos eram os mesmos que eu havia
amado em Biskra.
Minha erudição, que a cada passo despertava, era um estorvo à minha alegria. Não
podia ver um teatro grego, um templo, sem logo reconstruí-lo abstratamente.Diante de
cada ruína que ficara no lugar de uma festa antiga, sentia a tristeza profunda de saber
que ela estava morta; eu tinha horror à morte.
Evitava por isso as ruínas; preferia aos mais belos monumentos do passado esses
jardins baixos chamados Latomias, onde os limões têm a doçura ácida das laranjas, e as
margens do Ciane que, entre papiros, corre ainda tão azul como no dia em que correu
para chorar Proserpina.
Cheguei a desprezar dentro de mim essa ciência que era antes o meu orgulho; esses
estudos, que antes eram toda a minha vida, não pareciam ter comigo senão uma relação
perfeitamente acidental e convencional. Descobria-me outro e existia, feliz de mim, fora
daquelas coisas. Como especialista, sentia-me estúpido. Como homem — será que me
conhecia? — sentia apenas que estava nascendo sem poder saber quem eu nascia. Era o
que precisava descobrir. Nada mais trágico, para quem pensou que ia morrer, do que
uma lenta convalescença.
Depois que a asa da morte o roçou, o que parecia importante já não o é mais; outras
coisas que não o pareciam ser ou cuja existência era mesmo ignorada, passam a ter
importância. O acervo espiritual dos conhecimentos adquiridos desaparece como uma
maquilagem, e deixa ver a nu a própria carne, o ser autêntico que se escondia.
Foi este, desde logo, que eu pretendi descobrir: o ser autêntico, o “velho homem”;
aquele que o Evangelho já não queria mais; aquele que tudo, em torno a mim, os livros,
os mestres, meus pais e eu mesmo tínhamos tentado suprimir. E ele me aparecia já,
graças aos elementos superpostos, mais apagado e difícil de descobrir, mas, por isso
mesmo, ainda mais útil de descobrir e mais valioso. Desprezei, desde então, esse ser
secundário, aprendido, que a instrução desenhara por cima. Era preciso apagar esses
elementos superpostos.
E eu me comparava aos palimpsestos; gozava o prazer do sábio que, sob escrituras mais
recentes, descobre sobre o mesmo papel um texto mais antigo, infinitamente mais
precioso. Que era, afinal, esse texto oculto? Para lê-lo, não seria necessário, antes de
tudo, apagar os textos recentes?
Assim, eu já não era mais o ser enfermiço e estudioso, a quem convinha a minha moral
precedente, perfeitamente rígida e restritiva. O que havia aqui era mais do que uma
convalescença; havia um aumento, uma recrudescência de vida, o afluxo de um sangue
mais rico e mais quente que devia tocar meus pensamentos, tocá-los um a um, penetrar
tudo, impressionar, colorir as mais remotas, delicadas e secretas fibras do meu ser.
Porque a robustez ou a fraqueza se fazem; o ser se forma segundo as forças que tem;
mas, para que estas aumentem e permitam poder mais, e… Todos esses pensamentos
não me vinham então, e a minha pintura aqui me falha. Na verdade, eu não pensava
mais, não me examinava mais; uma fatalidade feliz me guiava. Temia que um olhar
mais apressado viesse perturbar o mistério da minha lenta transformação. Era preciso
dar tempo para que os caracteres apagados reaparecessem, e não procurar formá-los.
Deixando, pois, o meu cérebro, não ao abandono mas em repouso, entreguei-me
voluptuosamente a mim mesmo, às coisas, ao todo, que me pareceu divino. Tínhamos
deixado Siracusa, e eu corria sobre a estrada escarpada que une Taormina a La Molla,
gritando, para atraí-lo a mim: Um novo ser! Um novo ser!
Meu único esforço, esforço então constante, era o de sistematicamente desprezar ou
suprimir tudo o que supunha dever unicamente à minha instrução passada e à minha
primeira moral. Num gesto voluntário de desdém pela minha ciência e pelos meus
gostos de sábio, recusei ver Agrigento, e alguns dias mais tarde, no caminho que leva a
Nápoles, não me detive junto ao belo templo de Pesto, onde ainda palpita a Grécia, e
aonde fui, dois anos depois, rezar a não sei que deus.
Que digo? Único esforço? Poderia interessar-me por mim, senão como um ser
perfectível? Nunca minha vontade se exaltara tanto como para atingir essa perfeição
desconhecida e que eu imaginava confusamente; empregava essa vontade inteira em
fortificar meu corpo, em bronzeá-lo. Perto de Salerno, deixando a costa, tínhamos
chegado a Ravello. Ali, o ar mais penetrante, a atração dos rochedos repletos de
refúgios e de surpresas, a profundidade desconhecida dos vales, ajudando minha força
e minha alegria, favoreceram o meu impulso.
Mais próxima do céu que afastava da praia, Ravello, sobre uma encosta íngreme, fica
em frente à margem plana e distante de Pesto. Sob o domínio normando, era uma
cidade de certa importância; agora não é mais do que uma pequena vila, em que éramos
os únicos estrangeiros. Uma antiga casa religiosa, agora transformada em hotel, nos
ofereceu alojamento; situada na extremidade do rochedo, seus terraços e seu jardim
pareciam pendurados no azul. Além do muro coberto de pâmpanos, só se via, a
princípio, o mar; era preciso chegar junto do muro para poder acompanhar a vertente
cultivada que, mais em degraus do que em atalhos, ligava de Ravello à praia. Adiante
de Ravello, a montanha continuava. Oliveiras, alfarrobeiras enormes; à sombra delas,
ciclames; mais para cima, castanheiros em grande número, um ar fresco, plantas do
norte; para baixo, limoeiros perto do mar. São dispostos em pequenos cultivos, por
causa da inclinação do solo; são jardins em escada, quase iguais; uma aleia estreita, no
meio, atravessa-os de uma ponta a outra; entra-se ali sem ruído, furtivamente. É bom
sonhar sob essa sombra verde; a folhagem é espessa, pesada; nenhum raio vivo a
penetra; como gotas de cera espessa, os limões pendem, perfumados; na sombra, eles
são brancos e esverdeados; estão ao alcance da mão, da sede; são doces, acres; e
refrescam.
A sombra era tão densa embaixo deles, que não tive coragem de parar depois da
caminhada que me fazia transpirar ainda. Entretanto, os degraus já não me fatigavam;
tratava de subi-los de boca fechada; espaçava cada vez mais minhas paradas, dizia
comigo mesmo: chegarei até lá sem fraquejar; depois, chegado ao fim, encontrando em
meu orgulho contente a recompensa, pus-me a respirar longa e fortemente, de tal modo
que me pareceu sentir o ar penetrar com mais eficácia no meu peito. Dedicava a esses
cuidados do corpo a minha assiduidade de outros tempos. Progredia.
Às vezes, admirava-me de que a saúde voltasse tão depressa. Chegava a imaginar que
havia exagerado a gravidade do meu estado; a duvidar de que tivesse estado muito
doente, a rir dos meus escarros de sangue, a lamentar que a minha cura não tivesse sido
mais difícil.
A princípio, eu me tratara estupidamente, ignorando as necessidades do meu corpo.
Estudei-o pacientemente e tornei-me, quanto à prudência e aos cuidados, tão engenhoso
e constante, que me divertia em seu estudo como em um jogo. O que ainda me fazia
sofrer mais era a minha sensibilidade doentia a qualquer mudança de temperatura.
Agora que meus pulmões estavam curados, atribuía essa hiperestesia à minha
debilidade nervosa, último vestígio da doença. Resolvi vencer aquilo. A vista das belas
peles tostadas e como penetradas de sol, que mostravam, trabalhando nos campos,
alguns camponeses de camisa aberta, me dava desejos de queimar-me também. Certa
manhã, ao despir-me, olhei meu corpo; meus braços magros, meus ombros, que, mesmo
com grande esforço, não perdiam a postura arqueada, mas sobretudo a brancura, a
descoloração de minha pele, encheram-me de vergonha e de lágrimas. Tornei a vestir-
me rapidamente, e, em vez de descer em direção a Amalfi, como costumava fazer,
dirigi-me para os rochedos cobertos de erva e de musgo, longe das casas, longe dos
caminhos onde poderia ser visto. Quando cheguei, despi-me lentamente. O ar era quase
frio, mas o sol ardia. Ofereci todo o corpo à sua chama. Sentei-me, deitei-me, voltei as
costas. Sentia debaixo de mim o solo duro; a agitação das ervas me roçava. Mesmo ao
abrigo do vento, tremia e palpitava a cada sopro. Senti depois envolver-me um ardor
delicioso; todo o meu ser afluía à minha pele.
Ficamos em Ravello quinze dias; cada manhã, eu voltava aos rochedos, fazia a minha
cura. Em breve, minha roupa excessiva tornou-se incômoda e supérflua; minha
epiderme tonificada deixou de transpirar continuamente e pôde proteger-se com o seu
próprio calor.
Na manhã de um dos últimos dias (estávamos em meado de abril) arrisquei-me mais.
Numa anfractuosidade dos rochedos, corria uma fonte clara. Ali mesmo, ela caía em
cascata, não muito abundante é verdade, mas dentro de uma bacia mais profunda que
havia cavado, cheia de uma água puríssima. Por três vezes eu tinha ido ali, debruçara-
me estendido na borda, cheio de sede e de desejos; contemplara longamente o fundo de
rocha polida, onde não se via uma nódoa, uma erva, e onde o sol penetrava, vibrátil e
matizado. No quarto dia, avancei resoluto, até chegar à água que estava mais clara do
que nunca, e, sem refletir, mergulhei completamente nela. Logo, transido, saí da água e
me estendi na grama, ao sol. Colhi algumas folhas perfumadas de hortelã, esmaguei-as
na mão e esfreguei com elas o meu corpo úmido mas ardente. Olhei-me longamente,
sem sentir vergonha, com alegria. Achava que o meu corpo poderia ser forte, e o via
harmonioso, sensual, quase bonito.
VII
Assim me bastavam, como ação e como trabalho, exercícios físicos que, sem dúvida,
implicavam uma transformação do meu estado moral, mas que não me pareciam mais
do que um treinamento, um simples meio, e já não conseguiam satisfazer-me por si
mesmos.
Um outro ato, que talvez lhes pareça ridículo mas que eu quero revelar, porque traduz
em sua puerilidade o desejo que me atormentava de manifestar exteriormente a
mudança íntima de meu ser: em Amalfi, mandei cortar minha barba.
Até então, eu usara barba grande e os cabelos cortados quase rentes. Não me podia
imaginar de outra maneira. E, de repente, no dia em que me despi pela primeira vez
junto aos rochedos, senti que aquela barba era demais; dava a impressão de uma última
peça de vestuário de que eu não podia libertar-me; senti-a como se fosse postiça; era
cuidadosamente aparada, não em ponta, mas numa forma quadrada, que me pareceu
então desagradável e ridícula. De volta ao meu quarto de hotel, olhei-me no espelho
com desagrado; tinha o ar do que havia sido até então: um homem de ideias feitas.
Depois do jantar, desci a Amalfi, resolvido. A cidade era muito pequena; entrei em uma
tenda modesta que havia na praça. Era dia de feira; o pequeno salão estava cheio; tive
de esperar interminavelmente; mas nada, nem as navalhas duvidosas, o afiador
amarelo, os cheiros misturados, a conversa do barbeiro, me fizeram mudar de ideia. Ao
sentir que a barba caía sob a tesoura, tive a impressão de que arrancava uma máscara.
Não importa! quando, em seguida, me olhei, a emoção que me invadiu, e que eu
reprimi como pude, não foi alegria, mas medo. Não discuto esse sentimento; apenas o
constato. Achava minhas feições bem bonitas… não, o medo me vinha de que
pudessem ver nu meu pensamento, que eu, de repente, achara que devia ocultar.
Em compensação, deixei crescer o cabelo.
Eis tudo o que meu ser novo e ainda ocioso achava para fazer. Pensava que nasceriam
dele atos surpreendentes para mim mesmo; mas mais tarde; mais tarde, dizia comigo —
quando o ser estiver mais formado. Forçado a viver esperando, eu conservava, como
Descartes, uma forma provisória de agir. Pude assim disfarçar com Marceline. A
transformação do meu olhar, e, sobretudo, no dia em que apareci sem barba, a
expressão nova do meu rosto, poderiam tê-la inquietado; ela, porém, já me amava
bastante para achar que eu estava bem. Tranquilizei-a, além disso, como pude. O
importante é que ela não perturbasse o meu renascimento; para escondê-lo aos seus
olhos, eu devia, portanto, dissimular.
De resto, aquele que Marceline amava, e com quem tinha casado, não era o meu “novo
ser”. Repetia isso, para convencer-me de que devia ocultá-lo aos seus olhos. Assim, só
oferecia a ela uma imagem de mim mesmo, a qual, para ser constante e fiel ao passado,
ia se tornando cada dia mais falsa.
Minhas relações com Marceline continuaram, entretanto, as mesmas — ainda que cada
vez mais exaltadas por um amor sempre maior. A minha própria dissimulação (se se
pode chamar assim a necessidade de presentar de sua opinião o meu pensamento), a
minha dissimulação o fazia crescer. Quero dizer que, nesse jogo, a imagem de Marceline
estava sempre em meu pensamento. Talvez essa sujeição à mentira me custasse um
pouco, a princípio; mas cheguei rapidamente à conclusão de que as coisas consideradas
as piores (a mentira, para não citar outras) só são difíceis de fazer enquanto não foram
feitas; e ainda mais que elas se tornam facilmente cômodas, agradáveis, boas de repetir
e, com o tempo, naturais. Assim pois, como em tudo aquilo em que conseguimos vencer
uma primeira aversão, terminei por gostar dessa dissimulação, por persistir nela, como
no jogo das minhas faculdades desconhecidas. E avançava cada dia, em uma vida mais
rica e mais cheia, para uma felicidade de melhor sabor.
VIII
A estrada de Ravello a Sorrento é tão bonita que eu não desejava, aquela manhã, ver
nada mais belo sobre aterra. A aspereza quente da rocha, a abundância do ar, os
perfumes, a limpidez, tudo me enchia do adorável encanto de viver e me bastava, como
uma leve alegria que habitasse dentro de mim; lembranças, ou saudades, esperança ou
desejo, futuro e passado se calavam; só conhecia da vida o que levava em mim, o que
trazia em si o instante. — Ó alegria física! — exclamava. — Ritmo certo dos meus
músculos! saúde!…
Tinha partido de madrugada, antes de Marceline, cuja alegria calma teria amortecido a
minha, como o seu passo teria retardado o meu. Alcançou-me de carro, em Positano,
onde devíamos almoçar.
Eu ia chegando a Positano quando um barulho de rodas, acompanhado de um canto
estranho, me fez voltar a cabeça. No primeiro momento, nada pude ver, por causa de
uma curva da estrada que contorna o penhasco, mas, de repente, surgiu uma carruagem
numa corrida desenfreada; era a de Marceline. O cocheiro cantava a plenos pulmões,
fazia grandes gestos, levantava-se na boleia, chicoteava ferozmente o cavalo enfurecido.
Que animal! Passou por mim; tive apenas tempo de me afastar; e não se deteve ao meu
apelo… Lancei-me em sua direção, mas o carro ia muito depressa.
Temia ao mesmo tempo ver Marceline saltar do carro ou ficar dentro dele; um
movimento do cavalo poderia precipitá-la ao mar… De repente, o cavalo caiu.
Marceline salta, quer fugir; mas eu já estou ao seu lado. O cocheiro, ao ver-me, solta
terríveis palavrões. Eu estava furioso; ao primeiro insulto, avancei para ele e derrubei-o
brutalmente da boleia. Rolamos por terra, mas não perdi a vantagem; o homem parecia
aturdido pela queda, e, em seguida, ainda mais, por um murro que lhe dei em plena
cara quando vi que queria me morder. Entretanto, não o larguei, com o meu joelho
apertado contra o seu peito e procurando sujeitar-lhe os braços. Olhei seu rosto
hediondo que o meu golpe enfeara ainda mais; ele cuspia, babava, sangrava, dizia
nomes, o miserável! Pareceu-me justo estrangulá-lo — e talvez o tivesse feito… pelo
menos me sentia capaz disso; mas a lembrança da polícia me conteve.
Consegui, não sem esforço, amarrá-lo solidamente. Como um saco, atirei-o dentro do
carro.
Ah! que olhares e beijos trocamos depois. O perigo não tinha sido grande; mas eu tivera
de mostrar minha força, e isso para protegê-la. Pareceu-me, naquele instante, que eu
podia dar a minha vida por ela… e dá-la com alegria… O cavalo tinha se levantado.
Deixando ao bêbado o fundo do carro, subimos os dois à boleia e, guiando mais ou
menos bem, chegamos a Positano e depois a Sorrento.
Foi naquela noite que possuí Marceline.
Já compreenderam ou devo repetir-lhes que eu me sentia como novo nas coisas do
amor? Foi talvez a essa novidade que a nossa noite de núpcias deveu o seu encanto…
Porque me parece, quando me lembro hoje, que essa primeira noite foi a única, tanto a
expectativa e a surpresa do amor ajuntavam ao prazer novas delícias — tanto uma só
noite basta à expansão do maior amor e tanto o meu espírito se obstina a conservar sua
lembrança única. Foi como o riso de um momento em que as nossas almas se
confundiram… Mas creio que há apenas um instante do amor que a alma mais tarde
tenta em vão sobrepujar; que ela se consome no esforço de ressuscitar sua felicidade; e
que nada impede a felicidade como a sua própria lembrança. Ah! como recordo aquela
noite…
Nosso hotel ficava fora da cidade e era cercado de jardins; uma larga sacada prolongava
o nosso quarto; ramos de árvore o roçavam. A manhã entrou livremente pela grande
janela escancarada. Levantei-me sem ruído e, carinhosamente, inclinei-me sobre
Marceline. Ela dormia e parecia sorrir em seu sono. Sentia-me tanto mais forte, quanto a
sentia mais delicada e de uma graça tão frágil. Pensamentos tumultuosos
turbilhonavam em minha cabeça. Pensava em que ela não me mentia, ao dizer que eu
era tudo para ela; e depois: “Que faço eu para sua alegria? Quase todos os dias a deixo
abandonada; tudo espera de mim e eu a deixo sozinha!… ah! pobre, pobre Marceline!
…” Meus olhos encheram-se de lágrimas. Em vão procurei uma desculpa em minha
debilidade passada; para que meus cuidados constantes, meu egoísmo? acaso, nesse
momento, eu não era mais forte do que ela?…
O sorriso fugira de seu rosto; a aurora, apesar de dourar todas as coisas, punha nele
uma tristeza pálida; e talvez a chegada da manhã me trouxe um sentimento de angústia:
“Deverei um dia, por minha vez, cuidar de ti? inquietar-me por tua causa, Marceline?”,
exclamei para mim mesmo. Estremeci e, transido de amor, de piedade, de ternura,
depus entre os seus olhos fechados o mais terno, o mais amoroso e o mais piedoso dos
beijos.
IX
Os poucos dias que vivemos em Sorrento foram risonhos e tranquilos. Gozava eu
alguma vez de tal felicidade? Seria possível, no futuro, tornar a viver tais sensações?…
Estava sempre junto de Marceline; cuidando menos de mim mesmo, eu me ocupava
mais de minha mulher e sentia, em conversar com ela, o mesmo antigo prazer que me
proporcionava o silêncio.
Fiquei surpreso ao descobrir que a nossa vida errante, que eu julgava satisfazer-me
plenamente, não lhe agradava senão como um estado provisório; em seguida, porém,
senti a ociosidade daquela vida; compreendi que a existência era uma só, e, sentindo
pela primeira vez um desejo de trabalhar, resultante da falta de ocupação em que me
deixava enfim minha saúde restabelecida — falei seriamente em regressar; pela alegria
que Marceline demonstrou, compreendi que, havia muito tempo, ela pensava nisso.
Entretanto, os trabalhos de história de que recomeçava a cogitar já não tinham para
mim o mesmo gosto. Já disse que, depois de minha doença, o conhecimento abstrato e
neutro do passado me parecia vão, e se outrora eu pudera dedicar-me a pesquisas
filológicas, ocupando-me, por exemplo, em precisar a parte da influência gótica na
deformação da língua latina, e desprezando, desconhecendo as figuras de Teodorico, de
Cassiodoro, de Amalasunta e suas paixões admiráveis, para exaltar-me unicamente com
os vestígios e o resíduo de suas vidas, sentia então que esses mesmos vestígios, e a
própria filologia inteira, eram para mim apenas um meio de penetrar melhor naquelas
coisas cuja nobreza e grandeza selvagem me haviam sido reveladas. Resolvi ocupar-me
mais daquela época, limitar-me por algum tempo aos últimos anos do império dos
godos, e aproveitar nossa próxima passagem por Ravena, teatro de sua agonia.
Mas confesso que a figura do jovem rei Talarico era o que mais me atraía. Imaginava
esse menino de quinze anos, surdamente excitado pelos godos, revoltar-se contra sua
mãe Amalasunta, insubordinar-se contra sua educação latina, desembaraçar-se da
cultura como um cavalo dos arreios incômodos e, preferindo a companhia dos godos
incivilizados à do velho e prudente Cassiodoro, gozar alguns anos, com rudes favoritos
de sua idade, uma vida violenta, voluptuosa e desenfreada, para morrer aos dezoito
anos, estragado, saciado de devassidão. Descobria, nesse trágico impulso para um
estado mais selvagem e intacto, alguma coisa do que Marceline chamava sorrindo a
“minha crise”. Eu buscava uma justificativa para lhe dedicar pelo menos o meu espírito,
já que não ocupava mais meu corpo; e, na morte horrível de Talarico, cheguei a
convencer-me de que devia ver uma lição.
Antes de Ravena, onde ficaríamos quinze dias, veríamos rapidamente Roma e Florença,
depois, deixando Veneza e Verona, apressaríamos o fim da viagem, para só nos
determos em Paris. Achava um encanto completamente novo em falar do futuro com
Marceline; estávamos ainda indecisos quanto ao lugar em que passaríamos o verão;
ambos cansados de viajar, não tínhamos desejo de embarcar novamente; eu desejava
para os meus estudos a maior tranquilidade; pensamos, então, numa quinta entre
Lisieux e Pont-L’Evêque, no mais verde recanto da Normandia — outrora propriedade
de minha mãe, onde eu passara em companhia dela alguns verões da minha infância e
aonde não mais voltara depois de sua morte. Meu pai confiava sua manutenção e
vigilância a um caseiro já velho, que cobrava em seu nome e nos enviava regularmente
as rendas. Uma casa grande e muito agradável, num jardim cortado de fios de água,
deixara-me adoráveis lembranças; chamava-se La Morinière; pareceu-me que seria bom
passar algum tempo ali.
Falei em passar o inverno seguinte em Roma — mas trabalhando, não mais como
simples viajante… Mas esse último projeto foi logo abandonado: entre a importante
correspondência que, havia muito tempo, nos esperava em Nápoles, encontrei uma
carta com a notícia de que, estando vaga uma cátedra no Colégio de França, meu nome
havia sido repetidamente lembrado; era apenas um lugar de livre-docente, mas que, por
isso mesmo, no futuro, me deixaria em maior liberdade; o amigo que me dava a
informação indicava, no caso em que eu quisesse aceitar, os passos que deveria dar para
isso — insistia comigo para que aceitasse. Hesitei, vendo naquilo sobretudo uma
escravidão; depois pensei em que talvez fosse interessante expor, num curso, meus
trabalhos sobre Cassiodoro… e a alegria que eu daria a Marceline acabou por me
decidir. Depois de tomada a decisão, só via a vantagem daquilo.
No mundo culto de Roma e de Florença, meu pai tinha diversas relações, que eu já
conhecia por correspondência. Elas me proporcionaram todos os meios de fazer as
pesquisas que eu desejasse, em Ravena e em outros lugares; não pensei mais senão no
trabalho. Marceline esforçava-se para facilitar-me tudo, com mil atenções e mil
cuidados.
Nossa felicidade, durante esse fim de viagem, foi tão igual, tão calma, que nem posso
descrevê-la. As mais belas obras dos homens são obstinadamente dolorosas. Como seria
a descrição da felicidade? Só se pode contar aquilo que a prepara, e o que a destrói. E já
contei a vocês tudo aquilo que a preparou.
Segunda parte
I
Chegamos a La Morinière nos primeiros dias de julho, depois de ficar em Paris o tempo
estritamente necessário às nossas compras e a umas poucas visitas.
La Morinière, como já disse, está situada entre Lisieux e Pont-L’Evêque, na região mais
sombria e mais úmida que conheço. Inúmeros valezinhos, estreitos e molemente
ondulados, terminam não muito longe do enorme vale de Auge, que se aplana de
repente até o mar. Nenhum horizonte; arvoredos cheios de mistérios; alguns campos,
mas sobretudo prados, pastagens de suaves inclinações, cujo capim espesso é cortado
duas vezes por ano, onde numerosas macieiras, quando o sol está baixo, vêm juntar sua
sombra em que pascem rebanhos livres; em cada oco do chão, água, lago, charco ou
regato, ouve-se o rumor de correntes contínuas.
Ah, como me lembrava bem da casa! seus tetos azuis, suas paredes de tijolo e de pedra,
suas aduelas, os reflexos nas águas dormentes… Era uma velha casa que poderia alojar
mais de doze pessoas; Marceline, três criados e eu mesmo às vezes ajudando
dificilmente conseguíamos animar uma parte dela. Nosso velho caseiro, que se chamava
Bocage, já tinha feito preparar algumas peças; os velhos móveis acordaram de seu sono
de vinte anos; tudo ficara como via ainda a minha lembrança, as paredes e tetos não
muito estragados, os quartos em condições de serem habitados. Para receber-nos
melhor, Bocage havia enchido de flores todos os vasos que encontrara. Tinha mandado
limpar e capinar o grande pátio e as alamedas mais próximas do parque. A casa,
quando chegamos, recebia o último raio de sol, e do vale que a defrontava subira uma
bruma imóvel que velava e revelava o rio. Pouco antes de chegar, reconheci de repente
o cheiro da vegetação; e, quando escutei de novo em torno da casa os gritos agudos das
andorinhas, todo o passado de súbito reapareceu, como se me esperasse e, ao
reconhecer-me, quisesse fechar-se novamente à minha aproximação.
Ao fim de alguns dias, a casa ficou mais ou menos confortável; eu teria podido entregar-
me ao trabalho; demorei, escutando ainda dentro de mim as vozes do meu passado, e,
logo depois, ocupado por uma emoção inesperada: Marceline, uma semana depois de
nossa chegada, disse-me que estava grávida.
Pareceu-me desde aí que eu lhe devia novos cuidados, que ela tinha direito a uma
ternura maior; pelo menos nos primeiros tempos que se seguiram à sua confidência,
passei junto dela quase todos os momentos do dia. íamos sentar-nos perto do bosque,
no banco em que outrora eu me sentava com minha mãe; ali, quanto mais voluptuoso se
nos apresentava cada instante, mais insensivelmente a hora transcorria. Se nenhuma
lembrança isolada se desprende dessa época da minha vida, não é porque eu guarde em
relação a ela uma gratidão menos profunda — mas sim porque tudo se misturava, se
fundia num bem-estar uniforme, em que a noite se unia à manhã sem transição, em que
os dias se ligavam sem surpresas aos dias.
Retomei lentamente o trabalho, com o espírito calmo, disposto, certo de minha força,
olhando o futuro com confiança e sem febre, com a vontade tranquila, como se
escutasse o conselho dessa terra temperada.
Não há dúvida, pensava, que o exemplo desta terra, onde tudo se predispõe ao fruto, à
seara útil, terá sobre mim a mais salutar das influências. Admirava o tranquilo futuro
que prometiam esses bois robustos, essas vacas pródigas nessas opulentas pastagens.
As macieira plantadas em ordem nos declives favoráveis das colinas anunciavam para o
verão colheitas excelentes; imaginava a riqueza dos frutos que fariam, em breve, os seus
galhos vergarem-se. Dessa abundância ordenada, dessa feliz servidão, dessas lavouras
sorridentes, estabelecia-se uma harmonia, não mais fortuita mas imposta, um ritmo,
uma beleza perfeitamente humana e natural, em que não se sabia o que mais admirar,
de tal modo se confundiam numa união perfeita a fecunda expansão da natureza livre e
o sábio esforço do homem para ordená-la. Que seria desse esforço, pensava eu, sem a
selvageria poderosa que ele domina? Que seria do selvagem impulso dessa seiva
transbordante sem o esforço inteligente que o contém e o conduz, sorrindo, à
exuberância? E sonhava com terras em que todas as forças fossem tão bem ordenadas,
todos os gastos compensados, todas as trocas tão estritas que a menor diminuição seria
sensível; depois, aplicando o meu sonho à vida, construía para mim uma ética que se
tornava uma ciência da perfeita utilização de si mesmo por uma inteligente disciplina.
Onde estavam, onde se escondiam então minhas antigas turbulências? Sentia-me tão
calmo que parecia que elas nunca tinham existido. A onda do meu amor as havia
recoberto…
Entretanto, o velho Bocage zelava em torno de nós; dirigia, fiscalizava, aconselhava;
sentia-se demasiadamente sua preocupação de parecer indispensável. Para não o
desgostar, era preciso examinar suas contas, escutar com paciência suas explicações sem
fim. Mesmo isso não lhe bastava; tive de acompanhá-lo pelas terras da propriedade. Sua
honestidade sentenciosa, seus discursos contínuos, a evidente satisfação com sua
própria pessoa, a exibição que fazia de sua integridade, dentro de pouco tempo me
exasperaram; tornava-se cada vez mais insistente e eu já pensava em achar um meio de
readquirir minha liberdade — quando um acontecimento inesperado veio dar às nossas
relações um caráter diferente: Bocage, uma noite, comunicou-me que esperava no dia
seguinte seu filho Charles. Disse um ah! quase indiferente, pois até o momento não me
preocupara com os filhos que Bocage pudesse ter; depois, vendo que minha indiferença
o chocava, que ele esperava de mim alguma demonstração de interesse ou surpresa:
— Onde estava ele, ultimamente? — perguntei.
— Numa granja modelo, perto de Alençon — respondeu Bocage.
— Deve ter agora os seus… — continuei, calculando a idade desse filho cuja existência
eu ignorava, e falando suficientemente devagar para dar-lhe tempo de me interromper.
— Dezessete anos feitos — continuou Bocage. — Não tinha mais de quatro anos,
quando a senhora sua mãe morreu. Ah! já está um rapagão; breve saberá mais do que o
pai…
E Bocage, depois de começar, continuava a falar, sem que nada, nem o meu cansaço
aparente, conseguisse detê-lo. No dia seguinte, já não pensava naquilo, quando Charles,
recém-chegado, veio apresentar a Marceline e a mim seus cumprimentos. Era um belo
rapaz, tão rico de saúde, de corpo tão bem feito, que o horrível traje domingueiro que
havia vestido em nossa honra não chegava a torná-lo ridículo; apenas sua timidez
aumentava mais ainda a bela coloração de seu rosto. Parecia não ter mais de quinze
anos, tal o tom infantil do seu olhar; expressava-se claramente, sem falsa vergonha e, ao
contrário do pai, não falava para não dizer nada. Não sei mais sobre que falamos
naquela primeira noite; ocupado em observá-lo, não encontrei o que lhe dizer e deixei
que Marceline lhe falasse.
Mas na manhã seguinte, pela primeira vez, não esperei que o velho Bocage viesse
buscar-me para ir à granja, onde sabia que se haviam iniciado alguns trabalhos.
Tratava-se de reparar um lago. Esse lago deixava escapar água, e era preciso cimentar
os pontos de vazamento. Era preciso para isso começar por esvaziar o lago, o que não se
fazia havia quinze anos. Carpas e tencas abundavam ali, algumas muito grandes, que
nunca deixavam o fundo. Eu tencionava aclimatá-las às águas dos canais de irrigação e
dar os peixes aos trabalhadores, de modo que, desta vez, juntava-se ao trabalho o prazer
de uma pescaria, como o demonstrava a extraordinária animação daquela gente; alguns
meninos da vizinhança tinham vindo também e se misturado aos trabalhadores. Até
Marceline, um pouco mais tarde, viria reunir-se aos outros.
A água já baixara bastante, quando cheguei. Às vezes, um grande arrepio enrugava-lhe
a superfície, revelando os dorsos escuros dos peixes agitados. Nas poças que ficavam à
margem, os rapazinhos, chapinhando, pescavam petingas brilhantes que atiravam em
baldes cheios de água clara. A água do lago, que o susto dos peixes turvava ainda mais,
era terrosa e, de momento em momento, tornava-se mais opaca. Havia mais peixes do
que tínhamos imaginado; quatro peões da granja os apanhavam, mergulhando a mão
ao acaso. Eu lamentava que Marceline não estivesse presente e já me dispunha a ir
buscá-la, quando alguns gritos anunciaram as primeiras enguias. Não era possível
agarrá-las; elas escorregavam entre os dedos. Charles, que até então ficara ao lado do
pai junto à margem, não se conteve mais; tirou rapidamente os sapatos, as meias,
despiu o casaco e o colete, depois, arregaçando as calças e as mangas da camisa, entrou
desembaraçadamente no lamaçal. Eu, no mesmo instante, o imitei.
— Que tal Charles!? — gritei. — Está satisfeito de ter voltado?
Ele não respondeu nada, mas me olhou, sorridente, ocupado em sua pescaria. Chamei-o
em seguida, para que me ajudasse a cercar uma grande enguia; juntávamos as mãos
para apanhá-la. Depois daquela, foi outra; a lama nos salpicava o rosto; às vezes,
afundávamos de repente e a água nos subia até as coxas; em pouco tempo, estávamos
ensopados. No calor da atividade, trocávamos apenas algumas exclamações, algumas
frases; mas, no fim do dia, percebi que estava tratando Charles com toda a intimidade,
sem saber bem quando tinha começado. Essa ação comum valera mais do que uma
longa conversa para que nos conhecêssemos um ao outro. Marceline não veio, mas não
lamentei a sua ausência; parecia-me que ela teria perturbado um pouco a nossa alegria.
Na manhã seguinte saí à procura de Charles e juntos nos dirigimos às plantações.
Eu, que conhecia mal as minhas terras e fazia pouca questão de conhecê-las melhor,
fiquei surpreso ao ver que Charles as conhecia muito bem, assim como a distribuição de
suas rendas; disse-me, coisa que eu apenas suspeitava, que eu tinha seis rendeiros, que
poderia ganhar de dezesseis a dezoito mil francos de rendimentos e que se mal
conseguia a metade era porque grande parte do dinheiro era gasta em consertos de toda
espécie e no pagamento de intermediários. Certos sorrisos seus, ao examinar as
plantações, fizeram-me duvidar de que o cultivo de minhas terras fosse tão bom como
eu supunha ou como Bocage me fazia crer; animava Charles a falar do assunto, e aquela
inteligência prática, que me exasperava em Bocage, no seu filho me encantava.
Continuamos diariamente nossos passeios; a propriedade era vasta e, depois de
esquadrinhá-la em todos os cantos, recomeçamos com mais método. Charles não me
escondia a irritação que lhe causava a vista de certos campos mal cultivados, de espaços
cobertos de giestas, cardos e ervas daninhas; fez-me partilhar de seu horror pelo
alqueive e desejar com ele métodos de cultura mais bem-ordenados.
— Mas — dizia-lhe eu — quem sai prejudicado com esse medíocre processo? Só o
rendeiro, não é verdade? O rendimento das terras, mesmo que varie, não faz variar o
preço do arrendamento.
Charles se irritava um pouco: — O senhor não entende nada — tomava a liberdade de
responder-me —, e eu sorria ao escutá-lo. — Pensando apenas no rendimento, o senhor
parece não querer notar que o capital se deteriora. Suas terras, sendo imperfeitamente
cultivadas, perdem lentamente o seu valor.
— Se elas pudessem, melhor cultivadas, render mais, duvido que o rendeiro não
pusesse mãos à obra; sei que ele é bastante interesseiro para deixar de colher o que for
possível.
— O senhor não conta — prosseguia Charles — com o aumento da mão de obra. Essas
terras, às vezes, ficam longe das granjas. Se fossem cultivadas, não renderiam nada ou
quase nada, mas ao menos não se estragariam…
E a conversa continuava. Às vezes, durante uma hora, enquanto percorríamos os
campos, parecíamos repetir as mesmas coisas; mas eu escutava e, pouco a pouco, ia
aprendendo.
— No fim de contas, isso compete a teu pai — disse-lhe um dia, irritado. — Charles
corou um pouco:
— Meu pai está velho — respondeu. — Já faz muito em cuidar das coisas necessárias à
manutenção da propriedade e à entrada regular das rendas. Sua missão aqui não é a de
reformar.
— Que reformas proporias tu? — perguntava-lhe. Mas ele se esquivava, dizia não ter
uma ideia formada; e só à custa de muita insistência eu conseguia fazer com que se
explicasse:
— Tirar dos rendeiros todas as terras que deixam sem cultivar — terminava
aconselhando. — Se os rendeiros deixam uma parte de seus campos em pousio, é sinal
de que já ganham o bastante para poder pagar ao senhor; se pretendem conservar tudo,
aumente o preço dos arrendamentos. Os homens desta região são todos uns
preguiçosos — acrescentava.
Das seis granjas que me pertenciam, a que eu visitava com mais prazer estava situada
sobre a colina que dominava La Morinière; chamava-se La Valterie; o rendeiro que a
ocupava não era um homem desagradável; eu gostava de conversar com ele. Mais perto
de La Morinière, uma granja conhecida por “granja do Castelo” estava alugada a meias,
por um sistema de parceria agrícola, que deixava Bocage, na ausência do proprietário,
possuidor de uma parte do gado. Agora que a suspeita havia nascido, eu começava a
desconfiar de que o honesto Bocage era bem capaz, se não de me lograr, ao menos de
deixar que os outros me lograssem. É verdade que me deixavam de posse de uma
estrebaria e de um curral, mas logo compreendi que a sua maior utilidade era permitir
ao rendeiro alimentar suas vacas e cavalos com a minha aveia e o meu feno. Até então,
escutara benevolamente as notícias inverossímeis que Bocage, de vez em quando, me
trazia: mortalidades, deformações, doenças, eu acreditava em tudo. Nunca julgava
possível que, ao adoecer uma das vacas do rendeiro, ela se tornasse uma das minhas
vacas; nem que, se uma das minhas vacas estivesse bem, passasse a ser imediatamente
do rendeiro; entretanto, algumas frases imprudentes de Charles, algumas observações
pessoais começaram a alertar-me; meu espírito, uma vez avisado, agiu rapidamente.
Marceline, a quem contei minhas suspeitas, examinou minuciosamente todas as contas,
mas não conseguiu encontrar um único erro; a honestidade de Bocage abrigava-se
nelas. — Que fazer? — Deixar a coisa correr. Mas ao menos, intimamente irritado,
comecei desde então a vigiar os animais, sem deixar que ele o percebesse.
Eu tinha quatro cavalos e dez vacas; era o suficiente para me atormentar. Dos quatro
cavalos, havia um que chamavam ainda “o potro”, apesar de já ter mais de três anos;
tratavam então de domá-lo; eu começava a interessar-me pelo caso, quando um belo dia
vieram dizer-me que o animal era perfeitamente intratável, que nunca serviria para
nada e que a melhor solução era vendê-lo. Como eu tivesse duvidado, fizeram-no
quebrar a parte dianteira de um carrinho e ensanguentar os jarretes.
Fiz um grande esforço, aquele dia, para conservar a calma, e o que me conteve foi o ar
constrangido de Bocage. Afinal de contas, havia nele mais fraqueza do que má intenção,
pensava eu, e a culpa é dos empregados; infelizmente, eles não se sentem dirigidos. Saí
para ver o potro. Ao ouvir os meus passos, um servente que batia nele com um chicote
começou a acariciá-lo; fiz de conta que não vira nada. Não entendia muito de cavalos,
mas o potro me parecia um belo animal; era um meio-sangue baio claro, de formas
admiravelmente delgadas; tinha o olho vivíssimo e a crina, tal como a cauda, era quase
loura. Verificando que não estava ferido, mandei que tratassem dos seus arranhões e saí
sem dizer mais nada.
À noite, encontrando Charles, procurei saber o que ele pensava do potro.
— Acho-o muito manso — respondeu —, mas eles não sabem tratá-lo; acabarão por
enfurecê-lo.
— Como farias, no lugar deles?
— O senhor quer confiar-me o animal por oito dias? Responsabilizo-me por ele.
— E que farás?
— O senhor verá.
Na manhã seguinte, Charles conduziu o potro a um recanto do prado sombreado por
uma soberba nogueira e circundado pelo rio; fui até lá acompanhado de Marceline. É
uma das minhas lembranças mais vivas. Charles havia amarrado o potro, com uma
corda de alguns metros, a uma estaca solidamente fixada no solo. O potro, muito arisco,
parece que se tinha debatido fogosamente durante algum tempo; agora, amansado,
fatigado, movia-se em torno da estaca de um modo mais calmo; seu trote, de uma
elasticidade surpreendente, era agradável de ver e atraía como uma dança. Charles, no
centro do círculo, evitando a corda com um salto brusco, excitava-o ou acalmava-o com
palavras; tinha na mão um longo chicote mas não o vi servir-se dele. Tudo, no seu ar ou
nos seus gestos, por sua mocidade e sua alegria, dava a esse trabalho o belo aspecto
ardente do prazer. Subitamente, sem eu saber como, ele montou o animal que havia
diminuído a marcha e parado em seguida; acariciou-o um pouco e, de repente, eu o vi a
cavalo, senhor de si, segurando levemente a crina, risonho, curvado, prolongando sua
carícia. O potro resistiu um momento, depois retomou seu trote parelho, tão belo e
elegante, que tive inveja de Charles e lhe confessei.
— Mais alguns dias de doma e a sela já não o incomodará; dentro de duas semanas, até
a senhora se animará a montá-lo; estará manso como um cordeiro.
Tinha razão; alguns dias depois, o cavalo se deixava acariciar, encilhar, levar sem
desconfiança; a própria Marceline o teria montado, se o seu estado lhe permitisse esse
exercício.
— O senhor devia experimentá-lo — disse-me Charles.
Nunca o teria tentado sozinho; mas Charles propôs encilhar um outro cavalo para ele; o
prazer de acompanhá-lo me decidiu.
Como me senti grato à minha mãe por me haver dado lições de equitação na
adolescência! Muito me valeu a lembrança distante dessas primeiras aulas. Não me
causou surpresa estar a cavalo; em poucos instantes, perdi o medo e senti-me
perfeitamente à vontade. O cavalo que Charles montava era mais pesadão, sem raça,
mas não desagradava muito à vista, especialmente porque o rapaz o montava muito
bem. Habituamo-nos a sair um pouco cada dia, de preferência pela madrugada, quando
o capim estava brilhante de orvalho; íamos até o limite dos bosques; as aveleiras
molhadas, sacudidas à nossa passagem, nos borrifavam; o horizonte, de súbito, se abria;
era o imenso vale de Auge; ao longe se adivinhava o mar. Parávamos um instante, sem
apear; o sol nascente coloria, afastava, dispersava as brumas; depois, partíamos a trote
largo; parávamos um tempo enorme na granja; o trabalho ia apenas começando;
gozávamos a soberba alegria de chegar antes dos trabalhadores e de dominá-los; depois
os deixávamos, subitamente; eu voltava a La Morinière no momento em que Marceline
se levantava. Chegava ébrio de ar, aturdido pelo galope, os membros um pouco
entorpecidos por uma voluptuosa lassidão, o espírito cheio de saúde, de apetite, de
viço. Marceline aprovava, encorajava o meu capricho. Ao entrar, ainda em traje de
montaria, eu levava até o leito, onde ela me esperava, um cheiro de folhas molhadas
que ela achava agradável. E ficava me ouvindo contar-lhe o nosso passeio, o despertar
dos campos, o início dos trabalhos… Parecia tão contente de me sentir viver, como de
viver. Em breve abusei também daquela alegria; nossos passeios se prolongaram e, às
vezes, eu só voltava ao meio-dia.
Entretanto, reservava o fim do dia e a noite para preparar minhas aulas. Meu trabalho
progredia; estava satisfeito com ele e chegava mesmo a achar possível reunir mais tarde
minha lições em um volume. Por uma espécie de reação natural, à medida que minha
vida se ordenava, se regrava, e eu dedicava meu tempo a regrar e ordenar todas as
coisas que me cercavam, sentia-me cada vez mais seduzido pela velha ética dos godos,
e, enquanto durante o meu curso eu me ocupava, com uma ousadia que depois me
censuraram, em exaltar a incultura e fazer sua apologia, esforçava-me laboriosamente
para dominar ou suprimir tudo o que podia lembrá-la, em torno de mim e em mim
mesmo. Até onde levei essa minha atitude sensata, ou — quem sabe — louca?
Dois de meus rendeiros, cujos contratos terminavam no Natal, vieram propor-me sua
renovação; tratava-se de assinar, como de costume, a folha chamada “promessa de
contrato”. Fortalecido pelas revelações de Charles, excitado por suas conversas
quotidianas, recebi os homens resolutamente. Eles, confiados na certeza de que não se
substitui facilmente um rendeiro, reclamaram de saída uma redução no preço do
arrendamento. Foi enorme sua surpresa, quando li as “promessas” que eu mesmo tinha
redigido, nas quais não somente me recusava a reduzir os preços, como também lhes
tirava certos lotes de terra de que não se utilizavam. A princípio, fingiram tomar a coisa
como um gracejo de minha parte. Que faria eu com aquelas terras? Elas nada valiam; e,
se eles não faziam nada, era porque nada podiam fazer… Depois, vendo que eu falava
sério, resolveram teimar; eu, de minha parte, também teimei. Pensaram que me
assustariam com a ameaça de partir. Eu, que não esperava outra coisa:
— Pois vão embora se quiserem! Não os prendo aqui — respondi-lhes. Recolhi as
promessas de contrato e rasguei-as na frente deles.
Fiquei, pois, com mais de cem hectares disponíveis. Já há algum tempo que projetava
confiá-los à direção de Bocage, certo de que, indiretamente, era a Charles que os
entregava; eu mesmo pretendia dedicar-me também ao seu cultivo; por isso não refleti
mais: os riscos do empobrecimento me tentavam. Os rendeiros só sairiam pelo Natal;
até lá podíamos tomar certas medidas. Falei a Charles; sua alegria, que não pôde
dissimular, me desagradou; fez-me sentir ainda mais sua exagerada mocidade. O
tempo, porém, urgia; estávamos naquela época do ano em que as primeiras colheitas
deixam os campos livres para os primeiros amanhos. Por uma convenção estabelecida,
os trabalhos do rendeiro que sai e os do que entra seguem parelhos, e o primeiro
abandona suas terras, uma a uma, à medida que recolhe a seara. Eu temia, como uma
espécie de vingança, a animosidade dos dois rendeiros despedidos; mas os dois, ao
contrário, aparentaram para comigo uma perfeita condescendência (só mais tarde é que
eu soube dos proveitos que eles tiravam daquilo). Vali-me de sua atitude para
percorrer, de manhã e de noite, as terras que em breve me seriam devolvidas. O outono
começava; tive de contratar mais homens para apressar o amanho e a semeadura;
tínhamos comprado desterroadores, rolos e charruas; eu passeava a cavalo,
fiscalizando, dirigindo os trabalhos, tomando o gosto de mandar.
Entretanto, nos prados vizinhos, os rendeiros colhiam as maçãs; elas caíam, rolavam no
capim espesso, mais abundantes do que nos outros anos; os trabalhadores não eram
suficientes; vinham homens das povoações mais próximas, que eram contratados por
oito dias; Charles e eu, as vezes, gostávamos de ajudá-los. Uns sacudiam os ramos para
fazer cair os frutos tardios; recolhiam-se à parte os que caíam por si mesmos, demasiado
maduros, às vezes esborrachados sobre a grama; era difícil caminhar sem pisá-los. Subia
do prado um cheiro acre e adocicado que se misturava ao da terra amanhada.
O outono avançava. As manhãs dos últimos dias bonitos são as mais frescas, as mais
límpidas. Às vezes, a atmosfera molhada azulava a distância, afastava-a mais ainda,
fazia de um passeio uma viagem; os campos pareciam maiores; às vezes, ao contrário, a
transparência anormal do ar tornava os horizontes mais próximos, fáceis de percorrer; e
não sei qual das duas sensações nos fazia mais melancólicos. Meu trabalho estava quase
terminado; pelo menos, era o que eu dizia para poder ocupar-me de outras coisas. O
tempo que não passava no campo, passava-o ao lado de Marceline. Saíamos juntos ao
jardim; caminhávamos lentamente, ela apoiada languidamente no meu braço; íamos
sentar num banco, de onde se dominava o vale que a tarde enchia de luz. Tinha um jeito
carinhoso de se recostar no meu ombro; e ficávamos assim até a noite, sentindo o dia
escoar-se, sem gestos, sem palavras…
O nosso amor já se deixava envolver por uma onda de silêncio! O amor de Marceline já
era mais forte do que as palavras podiam expressar, e por vezes quase me angustiava.
Como um sopro que encrespa uma água tranquila, a mais leve emoção transparecia na
sua fronte; em seu ventre, misteriosamente, ela escutava o frêmito de uma nova vida; e
eu me inclinava sobre ela como sobre uma profunda água límpida, na qual, por mais
que a vista penetrasse, via somente o amor. Ah! se fosse apenas a felicidade, eu teria
tentado então retê-la, como quem tenta reter, em vão, entre as mãos juntas uma água
que foge; mas já sentia, ao lado da felicidade, uma outra coisa estranha a ela, que coloria
bem o meu amor, mas com um colorido de outono.
O outono avançava. O capim, cada manhã mais encharcado, já não secava em sua parte
inferior; de madrugada, estava branco. Os patos, nadando nas águas dos canais, batiam
as asas; agitavam-se selvagemente; às vezes, erguiam-se com grandes gritos e faziam,
num voo bulhento, toda a volta de La Morinière. Uma manhã, não os vimos mais;
Bocage os havia prendido. Charles explicou-me que eles devem ser presos assim,
durante o outono, na época da migração. E, poucos dias depois, o tempo mudou. Uma
tarde, veio de repente um grande sopro, um forte hálito do mar, trazendo o vento norte
e a chuva, carregando os pássaros nômades. O estado de Marceline, as preocupações de
uma nova instalação, os primeiros preparativos do meu curso, nos chamavam à cidade.
O inverno, que começava cedo, nos afugentou.
É verdade que os trabalhos do campo me fariam voltar em novembro. Senti-me um
tanto irritado, ao saber dos planos de Bocage para o inverno; manifestou-me seu desejo
de mandar Charles de volta para a granja modelo, onde teria ainda muita coisa que
aprender; conversei longamente com ele, empreguei todos os argumentos que encontrei
mas não consegui fazê-lo ceder: o mais que pude alcançar foi que ele deixasse Charles
encurtar um pouco os seus estudos, a fim de voltar mais cedo. Bocage não negava que a
exploração das duas terras não se faria sem muito trabalho; mas tinha em vista,
segundo me disse, dois camponeses de confiança que tencionava empregar; seriam
quase rendeiros, quase caseiros, quase peões; a coisa era demasiado nova para a região
para que ele esperasse bons resultados; mas fora eu, dizia, que tinha querido assim.
Essa conversa passou-se no fim de outubro. Nos primeiros dias de novembro, voltamos
a Paris.
II
Foi na Rua S***, perto de Passy, que nos instalamos. O apartamento, que um dos irmãos
de Marceline nos indicara e que já tínhamos visitado na nossa última passagem por
Paris, era muito maior do que o que eu herdara de meu pai. Marceline ficou apreensiva,
não só pelo preço do aluguel como também pelas despesas que teríamos
necessariamente de fazer. A todos os seus receios eu opunha um fingido horror ao
provisório; eu mesmo fazia força para acreditar no que dizia e procurava exagerar sua
importância. É verdade que as diversas despesas de instalação excederiam nossa renda
anual, mas nossa fortuna já razoável devia aumentar ainda; contava para isso com o
meu curso, com a publicação do meu livro e até mesmo — que loucura! — com os
novos rendimentos das minhas terras. Não me detive, pois, diante de nenhuma
despesa, pensando que cada uma delas me prenderia mais àquele lugar, e pretendendo
suprimir ao mesmo tempo o gosto ambulatório que pudesse sentir ou receasse sentir
dentro de mim.
Nos primeiros dias, saímos da manhã à noite para fazer compras; e ainda que o irmão
de Marceline, muito gentilmente, nos poupasse algumas caminhadas, ela não tardou
muito em se sentir esgotada. Depois, em lugar do repouso que lhe era necessário, teve,
assim que ficamos instalados, de receber visitas sobre visitas; o isolamento em que
havíamos vivido até então fazia com que elas afluíssem agora, e Marceline, desabituada
à sociedade, não sabia nem encurtá-las, nem evitá-las fechando a sua porta; eu a
encontrava, à noite, extenuada; e, se não me inquietava aquela fadiga cuja causa natural
eu conhecia, tratava ao menos de diminuí-la, recebendo às vezes em lugar dela, o que
absolutamente não me divertia, ou pagando outras vezes as visitas, o que me divertia
ainda menos.
Nunca fui um conversador brilhante; a frivolidade das reuniões, o seu espírito, são
coisas que não me podem agradar; havia, entretanto, frequentado um bom número
delas, antigamente; mas como esse tempo estava longe! Que se passara depois? Sentia-
me, perto dos outros, inexpressivo, triste, enfadonho, ao mesmo tempo importuno e
importunado… Por uma estranha falta de sorte, vocês, que eu já considerava os meus
únicos amigos verdadeiros, não estavam em Paris e não deviam voltar tão cedo. Teriam
sido meus confidentes e talvez me compreendessem melhor do que eu mesmo me
compreendia. Mas de tudo isso que nascia em mim e que revelo hoje a vocês, que sabia
eu então? O futuro me parecia perfeitamente garantido e nunca me senti mais senhor
dele.
E mesmo que tivesse sido mais perspicaz, que recurso contra mim poderia encontrar em
Hubert, Didier, Maurice e tantos outros, que vocês conhecem tão bem quanto eu?
Compreendi logo, infelizmente, a impossibilidade de me fazer entender por eles. Desde
as primeiras conversas que tivemos, vi-me obrigado a representar um falso papel, a
parecer-me, sob pena de me julgarem hipócrita, com aquele que ainda imaginavam que
eu fosse; e, para maior comodidade, fingir ter as ideias e os gostos que eles me
atribuíam. Não se pode, ao mesmo tempo, ser sincero e parecer sincero. Revi com mais
satisfação meus colegas de estudos, arqueólogos e filólogos, mas não encontrei em sua
convivência mais emoção e mais prazer do que sentia em folhear bons dicionários de
história. Depois, esperei achar uma compreensão um pouco mais direta da vida no meio
de romancistas e de poetas; mas, se eles possuíam essa compreensão, é preciso convir
em que não a demonstravam; pareceu-me que a maioria deles não vivia, contentava-se
em fingir viver e, por pouco, teria considerado a vida um terrível empecilho para
escrever. E eu não podia censurá-los; e não afirmo que o erro não fosse meu… Aliás,
que entendia eu por viver? — Era precisamente o que gostaria que me ensinassem. —
Uns e outros conversavam habilmente sobre diversos fatos da vida, mas nunca sobre
aquilo que os motiva.
Quanto aos raros filósofos, cujo papel deveria ser ensinar-me, eu sabia muito bem o que
poderia esperar deles; matemáticos ou neocriticistas, conservavam-se o mais distante
que podiam da inquietante realidade e só se ocupavam, como o algebrista, da existência
das quantidades que medem.
Quando voltava para junto de Marceline, não lhe escondia o aborrecimento que toda
aquela gente me causava.
— Todos eles se parecem. Cada um repete os outros. Quando converso com um, tenho a
impressão de conversar com muitos.
— Mas, meu amigo — dizia-me ela —, não podes exigir que cada um seja diferente dos
demais.
— Quanto mais se parecem entre si, mais diferentes são de mim.
E prosseguia depois, mais tristemente:
— Nunca estiveram doentes. Vivem, parecem viver e não saber que vivem. Aliás, eu
mesmo, quando estou entre eles, já não vivo mais. Hoje, por exemplo, que fiz? Saí do
quarto às nove horas; só antes de sair é que tive tempo de ler um pouco; foi o único
momento bom do dia. Teu irmão me esperava no notário; depois do notário, não me
deixou; tive de ir com ele ao tapeceiro, depois ao marceneiro e só me largou em casa de
Gaston, almocei no quartier com Philippe, depois encontrei Louis, que me esperava no
café; assistimos juntos à aula de Théodore, que cumprimentei à saída; para poder
recusar seu convite para domingo, tive de acompanhá-lo à casa de Arthur; fui com
Arthur ver uma exposição de aquarelas; depois deixar cartões em casa de Albertine e de
Julie… Volto extenuado e te encontro tão fatigada como eu, depois de teres visto
Adeline, Marthe, Jeanne, Sophie… E quando, à noite, recordo todas essas ocupações do
dia, sinto que o tempo foi tão inútil, tão vazio, que desejaria voltar atrás, recomeçar o
dia hora após hora, e chego a sentir vontade de chorar.
Entretanto, não saberia dizer nem o que eu entendia por viver, nem se o gosto que eu
tinha tomado de uma vida mais espaçosa e arejada, menos limitada e menos
preocupada com a do próximo, não era o segredo simples da minha inquietação; esse
segredo me parecia muito misterioso: um segredo de ressuscitado, pensava, porque eu
continuava um estranho no meio dos outros, como alguém que volta de entre os
mortos. A princípio, não senti mais do que um doloroso desassossego, mas depois um
sentimento novo se manifestou. Não sentira o mínimo orgulho, posso afirmá-lo, ao
publicar os trabalhos que me valeram tantos elogios. E agora? Seria orgulho? Talvez;
mas ao menos nenhum traço de vaidade se misturava a ele. Sentia, pela primeira vez, a
consciência do meu próprio valor; o que importava era o que me separava e me
distinguia dos outros; o que eu tinha a dizer era o que ninguém antes de mim dissera ou
poderia ter dito.
Meu curso começaria em seguida; seduzido pelo assunto, enchi minha primeira lição de
todo o meu novo entusiasmo. A propósito da mais refinada civilização latina, pintei a
cultura artística manifestando-se através do povo, à maneira de uma secreção, que a
princípio indica pletora, superabundância de saúde, depois se congela, endurece, opõe-
se a todo contato perfeito do espírito com a natureza, esconde sob a aparência
persistente da vida a diminuição da vida, forma casca em que o espírito oprimido
definha, depois se estiola e morre. Enfim, levando avante a minha ideia, apontava a
Cultura, nascida da vida, matando a vida.
Os historiadores censuraram em mim uma tendência a generalizações muito rápidas.
Outros censuraram meu método; e os que me felicitaram foram justamente aqueles que
me tinham compreendido menos.

Foi ao sair da minha aula que revi pela primeira vez Ménalque. Nunca convivera muito
com ele e, pouco antes do meu casamento, ele partira de novo para uma daquelas
viagens distantes que nos privavam de sua companhia, às vezes, por mais de um ano.
Antigamente, eu não gostava dele; parecia orgulhoso e não se interessava pela minha
vida. Fiquei, por isso, surpreendido, quando o vi em minha primeira aula. Mesmo a sua
insolência, que antes me afastava de sua companhia, me agradou, e o seu sorriso me
pareceu mais encantador justamente por não ser muito comum. Recentemente, um
absurdo, um vergonhoso processo de escândalo, tinha dado ensejo a que os jornais o
difamassem; aqueles que se sentiam feridos pelo seu desprezo e pela sua superioridade
aproveitaram o pretexto para a vingança; e o que mais os irritava era que ele não
parecia preocupar-se com o caso.
— É preciso — respondia aos insultos — deixar que os outros tenham razão, porque
isso os consola de não terem outra coisa.
Mas a “boa sociedade” se indignou e aqueles que, como é costume dizer, “se respeitam”
julgaram de seu dever afastarem-se dele e devolver-lhe assim o seu desprezo. Foi para
mim uma razão a mais: atraído a ele por uma secreta influência, aproximei-me e
abracei-o afetuosamente diante de todos.
Vendo com quem eu conversava, os últimos importunos se retiraram; fiquei só com
Ménalque.
Depois das críticas irritantes e dos cumprimentos ineptos, suas poucas palavras a
propósito da minha aula me tranquilizaram.
— Você queima o que adora — disse-me ele. — Tem razão. Custou a resolver-se, mas
assim a chama fica mais forte. Não sei ainda se o compreendo bem; você me deixa
curioso. Não converso muito frequentemente, mas gostaria que conversássemos. Venha
jantar comigo esta noite.
— Caro Ménalque — respondi —, você parece esquecer que sou casado.
— Sim, é verdade — replicou —, ao ver a franqueza cordial com que ousou me dirigir a
palavra —, poderia julgá-lo mais livre.
Senti receio de o ter ferido; mais ainda de parecer fraco, e disse-lhe que o encontraria
depois do jantar.

Em Paris, sempre de passagem, Ménalque morava em hotel; desta vez, mandara


preparar várias peças à maneira de apartamento; tinha consigo os seus criados, comia à
parte, vivia à parte; estendera sobre as paredes, sobre os móveis cuja fealdade banal lhe
feria os olhos, algumas tapeçarias que trouxera do Nepal e que, dizia, acabava de sujar
antes de oferecê-las a um museu. Minha vontade de estar com ele era tão grande que o
encontrei ainda à mesa, quando entrei; e, como me desculpasse de perturbar o seu
jantar:
— Mas não tenho intenção de interrompê-lo — foi dizendo — e espero que você me
permita acabar. Se tivesse vindo jantar comigo, eu lhe ofereceria um Chiraz, o vinho que
Hafiz cantou, mas agora já é tarde; é preciso estar em jejum para bebê-lo. Toma ao
menos um licor?
Aceitei, pensando que ele também tomaria; mas, vendo que só traziam um copo, fiquei
admirado.
— Desculpe-me — disse ele —, mas quase nunca bebo.
— Tem medo de se embriagar?
— De modo nenhum. Mas considero a sobriedade uma embriaguez mais poderosa;
conservo com ela a lucidez.
— E dá de beber aos outros?
Ele sorriu. — Não posso exigir de cada um as minhas virtudes. É já tão agradável
encontrar nos outros os meus vícios…
— Fuma, ao menos?
— Não muito. É uma embriaguez impessoal, negativa e muito fácil de conseguir;
procuro na embriaguez uma exaltação e não uma diminuição da vida. Mas deixemos
isso. Sabe de onde venho? De Biskra. Sabendo que você tinha andado por lá, resolvi
procurar seu rasto. Que teria vindo fazer em Biskra esse cego erudito, esse devorador
de livros? Só costumo ser discreto com aquilo que me contam; com o que eu mesmo
descubro, confesso que a minha curiosidade não tem limites. Foi por isso que procurei,
remexi, indaguei por onde pude. Minha indiscrição me valeu alguma coisa, pois me deu
vontade de tornar a vê-lo; já que, em lugar do sábio rotineiro que via antigamente em
você, sei que devo ver agora… você mesmo me dirá o quê. Senti que o meu rosto
corava.
— O que descobriu a meu respeito, Ménalque?
— Quer saber? Mas não tenha medo! Conhece bem seus amigos e os meus para saber
que não posso falar de você com ninguém. Já viu como compreenderam sua palestra…
— Mas — disse eu com uma leve impaciência — nada prova ainda que eu possa lhe
dizer o que não posso dizer aos outros. Vamos! O que soube a meu respeito?
— Primeiro, que você esteve doente.
— Mas isso não tem nada de…
— Oh! já tem sua importância. Depois, contaram-me que gostava de sair sozinho, sem
livros (e foi isso que mais admirei), ou, quando não ia só, preferia a companhia de
meninos à de sua mulher. Não fique assim corado, ou eu desisto de falar.
— Vá contando sem olhar para mim.
— Um dos pequenos — chama-se Moktir, se não me engano —, belo como poucos,
ladrão e trapaceiro como nenhum, me pareceu ter muito que contar; eu o atraí, comprei
sua confiança, o que, como sabe, não é nada fácil, pois creio que ele ainda mentia ao
dizer que não mentia mais… Diga-me se é verdade o que me contou a seu respeito.
Ménalque, ao dizer isso, levantou-se e tirou da gaveta uma pequena caixa que abriu.
— Esta tesoura era sua? — perguntou, mostrando-me uma coisa informe, enferrujada,
embotada, torcida; e não tive dificuldade em reconhecer a tesourinha que Moktir
surrupiara.
— Sim, é, ou melhor, era de minha mulher.
— Disse-me que a apanhou, quando você estava de costas, um dia em que se achavam
sozinhos dentro de um quarto: mas o interessante não é isso; afirma que, no momento
em que pretendia escondê-la no albornoz, descobriu que você acompanhava seus gestos
pelo espelho e notou que o reflexo do seu olhar o espiava. Você tinha visto o furto e não
disse nada! Moktir ficou muito surpreso com esse silêncio… e eu também.
— Não me surpreende menos o que você acaba de dizer. Como! ele sabia então que eu
tinha visto tudo?
— O importante não é isso; você quis ser o mais sabido; nesse jogo as crianças nos
derrotarão sempre. Você pensou que o tinha em suas mãos e era ele que o dominava…
Mas o importante não é isso. Explique-me o seu silêncio.
— Também queria que alguém me explicasse.
Ficamos algum tempo sem falar. Ménalque, que andava de um lado para o outro pela
sala, acendeu distraidamente um cigarro e quase no mesmo instante o jogou fora.
— Há nisso — continuou — um “senso”, como dizem os outros, um “senso” que parece
faltar-lhe, caro Michel.
— O “senso moral”, talvez — disse, esforçando-me por sorrir.
— Oh, não, simplesmente o da propriedade.
— Não me parece que você mesmo o possua.
— Tenho-o tão pouco, que aqui, como vê, nada me pertence; nem mesmo a cama em
que me deito. Tenho horror ao repouso; é a posse que o provoca, e na segurança a gente
adormece; gosto bastante de viver para querer viver acordado, e mantenho por isso,
mesmo no meio de minhas riquezas, esse sentimento de estado precário com o qual
exaspero ou ao menos exalto a minha vida. Não posso dizer que ame o perigo, mas amo
a vida aventurosa e quero que ela exija de mim, a todo instante, toda a minha coragem,
toda a minha felicidade e toda a minha saúde…
— Então, por que me censura? — interrompi.
— Oh, como me compreende mal, caro Michel; por pouco cometo a tolice de fazer uma
profissão de fé! Se pouco me importa, Michel, a aprovação ou a desaprovação dos
homens, não viria eu mesmo aprovar ou desaprovar; essas palavras não têm para mim
nenhum sentido. Falei muito a meu respeito, ainda há pouco; pensava estar sendo
compreendido… Queria apenas dizer-lhe que, para um homem que não tem o senso da
propriedade, você parece ter muito; e é grave.
— O que possuo, afinal?
— Nada, se encara a coisa dessa maneira… Mas não está dando um curso? Não é
proprietário na Normandia? Não acaba de se instalar luxuosamente em Passy? Não está
casado? Não espera um filho?
— Bem! — disse-lhe impaciente — isso prova simplesmente que eu soube fazer a minha
vida mais “perigosa” (como você diz) do que a sua.
— Sim, simplesmente — repetiu Ménalque, de modo irônico; depois, virando-se
bruscamente e me estendendo a mão: — Vamos, adeus; basta por esta noite; não
diremos mais nada que se aproveite. Mas, até breve.
Passei algum tempo sem tornar a vê-lo.
Novas ocupações, novos cuidados tomaram meu tempo; um sábio italiano mostrou-me
alguns documentos novos por ele descoberto; estudei-os longamente para o meu curso.
Sentir que a minha primeira aula fora mal compreendida excitou meu desejo de explicar
tudo diferente e com mais força nas seguintes; fui levado daí a tratar como doutrina o
que antes arriscara a título de hipótese engenhosa. Quantos homens que afirmam não
devem sua força à sorte de só terem sido compreendidos pela metade! Por mim,
confesso que não posso distinguir a dose de teimosia que, talvez, venha misturar-se ao
desejo de afirmação natural. O que eu tinha de novo a dizer me parecia tanto mais
urgente quanto mais me custava dizê-lo e, sobretudo, fazê-lo compreender.
Mas como as frases ficavam pálidas comparadas com os atos! A vida, o menor gesto de
Ménalque, não seriam, por acaso, mais eloquentes do que o meu curso? Como
compreendi bem, desde então, que o ensino quase todo moral dos grandes filósofos
antigos foi realizado, tanto ou mais ainda, pelo exemplo do que pelas palavras.

Foi em minha casa que voltei a ver Ménalque, cerca de três semanas depois do nosso
primeiro encontro. Foi quase no fim de uma reunião muito concorrida. Para manter
uma tranquilidade quotidiana, Marceline e eu preferíamos deixar as portas abertas na
noite de quinta-feira; podíamos assim fechá-las sem mais preocupações nos outros dias.
Cada quinta-feira, os que se diziam nossos amigos compareciam: o tamanho de nossos
salões nos permitia recebê-los em grande número e a reunião se prolongava até altas
horas. Creio que, antes de tudo, os atraía o encanto singular de Marceline e o prazer de
conversarem uns com os outros, porque, de minha parte, desde a segunda reunião, não
tinha mais nada para escutar, nada para dizer, e escondia mal o meu aborrecimento.
Vagueava do fumoir ao salão, da sala de entrada à biblioteca, surpreendendo às vezes
uma frase, observando pouco e olhando distraidamente.
Antoine, Etienne e Godéfroy discutiam o último voto da Câmara, estendidos nas
poltronas delicadas de minha mulher. Hubert e Louis seguravam sem precaução e
esfregavam as admiráveis águas-fortes da coleção do meu pai. No fumoir, Mathias, para
escutar melhor o que lhe dizia Léonard, pousara o seu charuto aceso numa mesa de
pau-rosa. Um cálice de curaçau tinha sido entornado no tapete. Os sapatos barrentos de
Albert, deitado impudentemente num divã, sujavam o estofo. E a poeira que se
respirava era feita da horrível deterioração das coisas… Tomou-me um desejo furioso
de expulsar todos os meus convidados. Móveis, estofos, estampas, depois da primeira
mancha, perdiam para mim todo o valor; coisas manchadas, coisas atingidas pela
doença e como marcadas pela morte. Desejaria proteger tudo aquilo, fechar a sete
chaves, só para mim. Como Ménalque é feliz, nada possuindo de seu! Eu sofro pelo fato
de querer conservar. Que me importa, no fundo, tudo isso?
Numa pequena sala, menos iluminada, separada por uma porta de vidro, Marceline só
recebia alguns íntimos; estava meio estendida sobre almofadas; terrivelmente pálida, e
me pareceu tão cansada que me assustei jurando para mim mesmo que aquela recepção
seria a última. Era bem tarde. Ia olhar o relógio, quando senti no bolso do colete a
tesourinha de Moktir.
— Por que a teria ele furtado para estragá-la e destruí-la em seguida?
Nesse momento, alguém tocou-me o ombro; virei-me bruscamente: era Ménalque.
Estava de casaca (era quase o único nesse traje) e acabava de chegar. Pediu-me que o
apresentasse à minha mulher; eu não o teria feito espontaneamente. Ménalque era
elegante, quase bonito; um bigode caído, já grisalho, cortava-lhe o rosto de pirata; a
chama fria do seu olhar indicava mais coragem e decisão do que bondade. Logo que
chegou diante de Marceline, compreendi que ele não lhe agradara. Depois de trocarem
umas frases banais de polidez, arrastei-o para o fumoir.
Eu tinha sabido, aquela manhã, da nova missão que o ministro das colônias lhe
confiara; diversos jornais, relembrando, a propósito disso, sua carreira aventurosa,
pareciam esquecer os insultos grosseiros da véspera e não encontravam palavras
suficientes para elogiá-lo. Exageravam, obstinadamente, os serviços que prestara ao
país, à humanidade inteira, com as preciosas descobertas de suas últimas viagens, como
se ele tivesse feito tudo aquilo com uma finalidade humanitária; e louvavam suas
qualidades de abnegação, de devotamento, de ousadia, como se ele esperasse uma
recompensa com essas palavras.
Ia felicitá-lo; ele me interrompeu logo de início:
— Como!, você também, caro Michel? Você não me insultou antes. Deixe essas tolices
aos jornais. Eles parecem admirar-se hoje de que um homem de maus costumes possa
ter ainda algumas virtudes. Eu não sei fazer a meu respeito as distinções e as reservas
que eles pretendem estabelecer, e só existo totalmente. Não pretendo outra coisa que o
natural e, em cada ação que pratico, o prazer que ela me dá é uma prova de que devia
praticá-la.
— Isso pode levar longe — disse eu.
— Assim o espero — respondeu Ménalque. — Ah, se todos os que nos cercam
pudessem se convencer disso. Mas quase todos eles pensam que só obterão de si
mesmos algo de bom pelo refreamento; só se sentem contentes nesse estado. É a si
mesmos que menos procuram parecer-se. Cada um deles toma para si um padrão,
depois o imita; não chega sequer a escolher o padrão que imita; aceita um padrão já
escolhido. Creio, entretanto, que há outras coisas para ler em um homem. Mas eles não
ousam. Não ousam virar a página. Leis da imitação; eu chamo a isso: leis do medo. Eles
tem medo de ficar sós; e não ficam sós de modo algum. A agorafobia moral me é odiosa;
é a pior das covardias. Entretanto, é sozinho que o homem inventa. Mas quem fala de
inventar? O que existe em cada um de diferente é precisamente o que ele possui de raro,
o que faz o seu próprio valor; e é isso que se procura suprimir. Imita-se. E pretende-se
amar a vida!
Deixei Ménalque falar; o que ele dizia era precisamente o que, um mês atrás, eu tinha
dito a Marceline; portanto, deveria aprová-lo. Por que então, por que covardia o
interrompi, e lhe disse, imitando Marceline, palavra por palavra, a frase com que ela me
interrompera:
— Você não pode, entretanto, exigir, caro Ménalque, que cada um seja diferente dos
demais…
Ele se calou, subitamente, olhou-me de um modo estranho e, vendo que Eusèbe se
aproximava para despedir-se de mim, deu-me as costas sem cerimônia e foi conversar
com Hector. Minha frase, logo depois de pronunciada, me pareceu estúpida; e fiquei
triste principalmente porque Ménalque poderia acreditar que eu me sentira atingido
por suas palavras. Já era tarde; meus convidados iam saindo. Quando o salão ficou
quase vazio, Ménalque voltou para junto de mim:
— Não posso despedir-me assim de você. Sem dúvida, compreendi mal as suas
palavras. Ao menos espero que seja assim.
— Não — respondi. — Não as compreendeu mal; elas, porém, não tinham nenhum
sentido; mal acabei de dizê-las, envergonhei-me de minha estupidez e de pensar que
elas iam me colocar entre os que você há pouco me descrevia e que, posso garantir-lhe,
me são igualmente odiosos. Detesto os homens de princípio.
— São — retomou Ménalque num sorriso — o que há de mais detestável neste mundo.
Não devemos esperar deles nenhuma espécie de sinceridade; porque ou fazem somente
o que os seus princípios decretaram que podem fazer, ou consideram o que fazem como
mal feito. Ao pensar que você fosse como eles, a palavra gelou nos meus lábios. A
tristeza que senti depois mostrou como é viva a afeição que lhe dedico; desejei que me
tivesse enganado — não em minha afeição, mas na opinião que fizera.
— Efetivamente, sua opinião era falsa.
— Não é mesmo? — disse-me ele, tomando bruscamente a minha mão. — Escute: tenho
de partir em breve, mas queria vê-lo uma vez mais. Minha viagem, desta vez, será mais
longa e aventurosa; não sei quando poderei voltar. Devo seguir dentro de quinze dias;
aqui, todos ignoram que minha partida esteja tão próxima; digo a você
confidencialmente. Embarcarei de madrugada. A noite que precede minha partida é
sempre para mim uma noite de terríveis angústias. Prove-me que não é um homem de
princípios; prometa-me que passará comigo essa última noite.
— Mas nós nos veremos antes — disse-lhe um pouco surpreso.
— Não. Durante esses quinze dias, não estarei aqui para ninguém; não estarei mesmo
em Paris. Amanhã, parto para Budapeste; dentro de seis dias, estarei em Roma. Tenho
aqui e ali alguns amigos que desejo abraçar antes de deixar a Europa. Um outro me
espera em Madri…
— Está combinado, passarei essa noite de vigília com você.
— E tomaremos vinho de Chiraz — disse Ménalque.
Alguns dias depois, Marceline começou a passar menos bem. Já disse que ela se sentia
frequentemente cansada; mas evitava queixar-se e, como eu atribuísse aquele cansaço
ao seu estado, achava a coisa natural e não me preocupava. Um velho médico, bastante
estúpido ou insuficientemente informado, nos havia tranquilizado excessivamente.
Entretanto, novas perturbações acompanhadas de febre decidiram-me a chamar o
doutor Tr***, que passava então pelo mais competente especialista. Admirou-se de que eu
não o tivesse chamado mais cedo e prescreveu um regime severo, que ela já deveria ter
feito antes. Por uma coragem imprudente, Marceline até aquele dia havia abusado de
suas forças; até o parto; que se esperava para fins de janeiro, deveria conservar-se em
repouso. Talvez um pouco inquieta e mais fraca do que queria confessar, Marceline
aceitou pacientemente as recomendações mais exigentes; teve, porém, um breve
movimento de revolta quando o Dr. Tr*** lhe receitou quinino, em doses que ela sabia
capazes de afetar o bebê. Recusou-se obstinadamente a tomá-lo durante três dias, mas,
como a febre aumentasse, acabou por concordar com mais essa exigência. Desta vez,
entregou-se a uma grande tristeza, e tudo lhe parecia uma dolorosa renúncia ao futuro;
uma espécie de resignação religiosa quebrou a vontade que a sustinha até então, e seu
estado piorou de repente durante os quinze dias que se seguiram.
Cerquei-a de mais cuidados ainda e animei-a como pude, valendo-me das próprias
palavras de Tr***, que não via nada de muito grave em seu estado; mas a violência de
seus receios terminou por assustar-me também. Ah! como a nossa felicidade repousava
já, perigosamente, numa esperança! e em que incerto futuro… Eu, que antes só achava
gosto no passado, senti-me um dia embriagado pelo súbito sabor do instante; mas o
futuro nos desencanta da hora presente, mais do que o presente nos desencantou do
passado. Desde a nossa noite de Sorrento, todo o meu amor, toda a minha vida,
projetaram-se para o futuro.
Chegou afinal a noite que eu prometera passar com Ménalque; e, apesar da minha
hesitação em abandonar Marceline, fiz com que ela compreendesse a importância do
encontro e a seriedade da minha promessa. Ela estava um pouco melhor aquela noite,
mas apesar de tudo eu estava inquieto; uma enfermeira tomou o meu lugar junto dela.
Logo que saí à rua, minha inquietação adquiriu uma força nova; eu a repelia, lutava
contra ela, irritado ao mesmo tempo comigo por não poder libertar-me daquilo.
Cheguei assim, pouco a pouco, a um estado de supertensão, de exaltação singular,
muito diferente e muito próximo ao mesmo tempo da inquietação dolorosa que o
provocara, mas mais próximo ainda da felicidade. Era tarde; eu caminhava a passos
largos; a neve começava a cair abundante; sentia-me feliz de respirar enfim um ar mais
vivo, de lutar contra o frio, feliz contra o vento, a noite, a neve; saboreava minha
energia.
Ménalque, que me ouviu chegar, surgiu no patamar da escada. Esperava-me sem
paciência. Estava pálido e parecia um pouco tenso. Tirou meu sobretudo e obrigou-me a
trocar as botas molhadas por duas macias pantufas persas. Sobre uma mesinha, ao pé
do fogo, havia salgadinhos e doces. Duas lâmpadas iluminavam menos do que o fogo
da lareira. Ménalque, antes de tudo, pediu notícias de Marceline; para simplificar,
respondi que, ela estava passando bem.
— E seu filho? Para quando o espera?
— Para daqui a um mês.
Ménalque inclinou-se para o fogo, como se quisesse esconder o rosto. Estava calado.
Ficou tanto tempo assim em silêncio, que eu me senti, afinal, constrangido, não sabendo
mais o que lhe dizer. Levantei-me, dei alguns passos, depois, aproximando-me dele,
pousei a mão no seu ombro. Então, como se continuasse um pensamento:
— É preciso escolher — murmurou. — O importante é saber o que se deseja…
— Como! Não quer partir? — perguntei-lhe, sem saber que sentido daria às suas
palavras.
— Parece.
— Está hesitante, então?
— De que me serviria? Você, que tem mulher e filho, fique… Das mil formas da vida,
cada um de nós só pode conhecer uma. Desejar a felicidade dos outros é loucura; não
saberíamos que fazer dela. A felicidade não se compra feita, quer-se sob medida. Parto
amanhã; eu sei; cortei minha felicidade à minha medida… conserve a tranquila
felicidade do lar…
— Eu também cortei a minha felicidade à minha medida — exclamei —, mas cresci;
atualmente ela já me aperta; às vezes, quase me estrangula!…
— Bah, você se adapta — disse Ménalque; depois, postou-se diante de mim, mergulhou
seu olhar no meu e, como eu continuasse em silêncio, sorriu um pouco tristemente: —
Um homem crê que possui e é possuído — continuou. — Sirva-se de Chiraz, caro
Michel; não o tomará muitas vezes; e coma uma dessas massas cor-de-rosa com que os
persas o acompanham. Hoje quero beber com você, esquecer que parto amanhã e
conversar como se a noite fosse longa… Sabe o que faz da poesia moderna, e sobretudo
da filosofia, letras mortas? É que elas se distanciaram da vida. A Grécia tomava
diretamente a vida como matéria de sua idealização; de modo que a vida do artista já
era por si mesma uma realização poética; a vida do filósofo, a sua filosofia posta em
ação; de modo também que, misturadas à vida em vez de se ignorarem, a filosofia
alimentando a poesia e a poesia exprimindo a filosofia, eram de uma persuasão
admirável. Hoje em dia, a beleza não age mais; a ação já não se preocupa em ser bela; e
a sabedoria trabalha à parte.
— Por que — perguntei — você, que vive a sua sabedoria, não escreve as suas
memórias? ou simplesmente — continuei ao vê-lo sorrir — as suas lembranças de
viagem?
— Porque não quero lembrar — respondeu. — Se o fizesse, teria a impressão de impedir
a chegada do futuro e de prolongar o passado. É do perfeito esquecimento de ontem
que crio a novidade de cada hora. Nunca me bastou ter sido feliz. Não acredito nas
coisas mortas, e confundo não ser mais com nunca ter sido.
Irritei-me, afinal, com essas palavras que antecipavam demasiadamente meu
pensamento; tinha vontade de puxá-lo para trás, de fazê-lo parar; mas tentava em vão
contradizê-lo; e me irritava mais comigo mesmo do que com Ménalque. Fiquei,
portanto, em silêncio. Ele, ora indo e vindo como uma fera enjaulada, ora inclinando-se
para o fogo, ficava calado longo tempo ou dizia subitamente:
— Ainda se os nossos cérebros medíocres soubessem embalsamar as lembranças! Mas
estas conservam-se mal; as mais delicadas se desfazem, as mais voluptuosas
apodrecem; as mais deliciosas são as que oferecem mais perigo. Aquilo de que a gente
se arrepende era antes delicioso.
De novo um longo silêncio; e depois ele continuava: — Saudades, remorsos,
arrependimentos, são alegrias de outrora vistas de costas. Não gosto de olhar para trás,
e abandono ao longe o meu passado como o pássaro, para voar, deixa a sua sombra. Ah!
Michel, toda alegria nos espera sempre, mas quer sempre achar o leito vazio, ser a
única, e que cheguemos a ela como um viúvo. Ah! Michel, toda alegria é semelhante ao
maná do deserto que se corrompe de um dia para o outro; é semelhante à água da fonte
Ameles que, segundo Platão, não podia ser guardada em nenhum vaso… Que cada
instante leve tudo o que trouxe.
Ménalque falou ainda muito tempo; não posso lembrar de todas as suas frases; muitas,
entretanto, ficaram gravadas dentro de mim, tanto mais fortemente quanto mais
depressa eu desejaria esquecê-las; não que me revelassem qualquer coisa nova — mas
porque punham a nu bruscamente o meu pensamento; um pensamento que eu cobrira
com tantos véus que quase conseguira sufocá-lo. Assim se passou aquela noite.
Quando, de manhã, depois de ter levado Ménalque ao trem, me encaminhei sozinho
para junto de Marceline, senti-me cheio de uma tristeza abominável, de ódio contra a
alegria cínica de Ménalque; desejava que ela fosse fictícia; e esforçava-me por negá-la.
Irritava-me por não ter sabido responder-lhe; irritava-me por ter dito algumas palavras
que poderiam fazer com que ele duvidasse da minha felicidade, do meu amor. E eu me
agarrava à minha duvidosa felicidade, à minha “tranquila felicidade”, como dizia
Ménalque; não conseguia, infelizmente, afastar dela a inquietação, mas acreditava que
essa inquietação servia de alimento ao amor. Voltava-me para o futuro, onde já via o
meu filhinho me sorrir; por ele se reformava e se fortificava a minha moral…
Decididamente, eu caminhava com passo firme.
Mas, quando entrei em casa, senti que havia em tudo uma desordem insólita. A
enfermeira veio ao meu encontro e me disse, com palavras moderadas, que minha
mulher fora acometida de terríveis aflições e dores durante a noite, apesar de não
acreditar que tivesse chegado a hora; que, ao sentir-se tão mal, mandara chamar o
médico; que este, tendo corrido imediatamente para junto dela, ainda não saíra do
quarto; depois, vendo a minha palidez, tentou me reanimar, dizendo que tudo já estava
sob controle, que…
Precipitei-me para o quarto de Marceline. A peça estava pouco iluminada; e, ao entrar,
só pude distinguir o médico que, com um gesto, me impôs silêncio; depois, na sombra,
uma figura que eu não conhecia. Ansiosamente, sem ruído, aproximei-me da cama.
Marceline tinha os olhos fechados; estava tão pálida que, a princípio, julguei que
estivesse morta; mas, sem abrir os olhos, ela virou a cabeça para mim. Num canto
sombrio do quarto, a figura desconhecida arrumava, escondia vários objetos; vi
instrumentos brilhantes, algodão; vi, ou julguei ver, roupa branca manchada de
sangue… Senti que perdia as forças. Quase caí aos pés do médico; ele me amparou. Eu
compreendia; tinha medo de compreender…
— E o pequeno? — perguntei ansioso.
Teve um triste encolher de ombros. Sem saber mais o que fazia, atirei-me sobre o leito,
soluçando. Ah! súbito futuro. O chão cedia bruscamente sob os meus passos; só havia
diante de mim um grande vazio para onde eu rolava completamente.
Neste ponto, tudo se confunde numa lembrança tenebrosa. Entretanto, a princípio,
Marceline parecia restabelecer-se rapidamente. Como as férias do começo do ano me
davam um pouco de folga, passava quase todo o dia junto dela. Ao seu lado, eu lia,
escrevia, ou lia um pouco para ela. Nunca saía sem lhe trazer algumas flores. Lembrava-
me da maneira carinhosa com que ela me tratara em minha doença, e cercava-a de tanto
amor que às vezes ela sorria, parecendo feliz. Não trocamos nenhuma palavra a respeito
do triste acidente que matara as nossas esperanças…
Depois a flebite se declarou; e, quando começava a declinar, uma embolia,
repentinamente, pôs Marceline entre a vida e a morte. Era noite; vejo-me inclinado
sobre ela sentindo, junto ao seu, meu coração parar ou reviver. Quantas noites velei
assim! o olhar fixado obstinadamente nela, esperando, à força de muito amor, transmitir
um pouco da minha vida à sua. E, se já não pensava com frequência na felicidade,
minha única e triste alegria era ver, às vezes, Marceline sorrir.
Meu curso havia recomeçado. Onde encontrei forças para preparar e dar minhas aulas?
… Minha lembrança se perde e não sei como se sucederam as semanas. Há, no entanto,
um pequeno fato que desejo relatar:
É uma manhã, pouco tempo depois da embolia; estou junto de Marceline; ela parece um
pouco melhor, mas tem de sujeitar-se ainda à mais completa imobilidade; não deve
sequer mover o braço. Inclino-me para dar-lhe de beber e, depois de ter bebido,
enquanto ainda estou curvado sobre ela, com uma voz que a sua aflição torna mais
fraca, indica-me com o olhar um cofrezinho e pede-me que o abra; está em cima da
mesa; vou abri-lo; está cheio de fitas, retalhos, pequenos enfeites sem valor — que
quererá ela? Trago a caixa para perto da cama; tiro os objetos um por um. É isto? isto?…
não; ainda não; e sinto que está um pouco inquieta.
— Ah! Marceline! é este pequeno rosário que queres! — Ela se esforça por sorrir.
— Pensas que não cuido bastante de ti?
— Oh! meu amigo! — murmura.
E eu me lembro da nossa conversa de Biskra, de sua tímida censura ao ver-me repelir o
que ela chama “a ajuda de Deus”. Continuo, um pouco asperamente: — Consegui
curar-me sozinho.
— Rezei tanto por ti — respondeu-me.
Diz isso de um modo tão terno, tão triste; sinto no seu olhar uma suplicante
ansiedade… Pego o rosário, ponho-o em sua mão enfraquecida que repousa sobre o
lençol. Um olhar cheio de lágrimas e de amor me recompensa — mas não consigo
retribui-lo; fico um momento ali sem saber o que fazer, constrangido; enfim, não
suportando mais:
— Adeus — digo-lhe — e saio do quarto com um ar hostil, como se me tivessem
expulsado.
Entretanto, a embolia provocara graves perturbações; o terrível coágulo de sangue, que
o coração rejeitara, fatigava e congestionava os pulmões, obstruía a respiração, tornava-
a penosa e ofegante. Pensava que nunca mais a veria sã. A doença entrara em
Marceline, habitava o seu corpo, marcava-o, manchava-o. Ela era uma coisa destruída.
III
A estação tornava-se benigna. Mal terminei meu curso, levei Marceline para La
Morinière, depois de ouvir do médico que o perigo mais sério tinha passado e que, para
acabar de curá-la, não havia nada melhor que uma mudança de ares. Eu mesmo
também sentia uma grande necessidade de repouso. As noites que passara em claro,
aquela angústia prolongada e, sobretudo, aquela espécie de simpatia física que, por
ocasião da embolia, me fizera sentir as terríveis palpitações do coração de Marceline,
tudo isso me cansara como se eu mesmo tivesse estado enfermo.
Teria preferido levá-la para a montanha; ela, porém, manifestou o mais vivo desejo de
voltar à Normandia, alegando que nenhum clima lhe podia ser melhor; lembrou-me
que eu estava na obrigação de visitar as terras de que tinha, um pouco
imprudentemente, tomado conta. Convenceu-me de que, assumindo essa
responsabilidade, eu devia tratar de ser bem-sucedido. Logo que chegamos, obrigou-me
a percorrer as terras… Não sei se na sua insistência amistosa não entrava uma boa parte
de abnegação; o temor de que, ficando preso junto dela para cuidá-la, eu me sentisse
tolhido na minha liberdade… Marceline, entretanto, continuava a melhorar; o sangue
recoloria as suas faces; e nada me repousava mais do que sentir menos triste o seu
sorriso; podia sem receio deixá-la sozinha.
Voltei para as plantações. Era a época da colheita dos primeiros fenos. O ar carregado
de pólen e de perfume entonteceu-me, a princípio, como uma bebida capitosa. Parecia-
me que, desde o ano anterior, não respirava mais ou só tinha respirado poeira, tão
docemente penetrava em mim a atmosfera. Da elevação em que me sentara, como
embriagado, eu podia contemplar La Morinière; via seus telhados azuis, as águas
dormentes de suas valas; em torno, campos ceifados e outros cheios de vegetação;
adiante, a curva do regato; mais longe, os bosques, onde no último outono passeara a
cavalo com Charles. Um som de canções aproximou-se; eram os ceifeiros que voltavam,
com o forcado ou o ancinho ao ombro. Os trabalhadores, que eu ia reconhecendo um
por um, me fizeram lembrar com tristeza que eu já não era ali um viajante
deslumbrado, mas o dono. Aproximei-me, sorri para eles, falei-lhes, perguntei
demoradamente pela vida de cada um. Bocage, pela manhã, já me havia informado
sobre o estado das plantações; aliás, nunca deixara de me contar por carta os menores
incidentes da granja. Os cultivos não iam mal, iam mesmo muito melhor do que ele me
fazia crer. Entretanto, esperava-me para algumas decisões importantes e, durante
alguns dias, dirigi tudo na melhor maneira, sem grande prazer, mas prendendo a essa
aparência de trabalho a minha vida desfeita.
Logo que Marceline pôde receber visitas, vários amigos vieram passar algum tempo
conosco. Sua companhia amável e tranquila era agradável à minha mulher mas fazia-
me sair de casa com mais frequência. Preferia a companhia dos trabalhadores; parecia-
me que junto deles, eu tinha mais coisas a aprender — não que os interrogasse muito —
não, e posso apenas exprimir a espécie de alegria que sentia ao lado deles: melhor,
através deles — e, ao passo que já sabia o que diriam nossos amigos, antes mesmo de
começarem a falar, a simples vista desses maltrapilhos me causava sempre uma
sensação de novidade.
Se a princípio eles apenas condescendiam em responder-me, ao contrário do que eu
fazia ao interrogá-los, em breve suportaram mais a minha presença. Entrava cada vez
mais em contato com eles. Não contente de acompanhá-los ao trabalho, queria assistir a
suas distrações; seus pensamentos obtusos não me interessavam, mas eu assistia às suas
refeições, escutava seus gracejos, acompanhava amorosamente os seus prazeres. Era
uma espécie de simpatia, semelhante à que fazia palpitar o meu coração junto com o de
Marceline, era um eco imediato de cada sensação estranha — não uma coisa vaga, mas
aguda e precisa. Sentia em meus braços a fadiga do ceifeiro; cansava-me com o seu
cansaço; o gole de sidra que ele bebia matava a minha sede; sentia a bebida escorrer na
sua garganta; um dia, ao afiar a foice, um deles cortou profundamente o polegar; sua
dor doeu-me até a medula.
Parecia-me, assim, que não era apenas a vista que me revelava a paisagem, mas que eu
sentia também por uma espécie de contato que essa estranha simpatia ilimitava.
A presença de Bocage me molestava; diante dele, eu tinha de tomar ares de dono, o que
não me agradava absolutamente. Dava ordens ainda, como era preciso, e dirigia a meu
modo os trabalhadores; mas não montava mais a cavalo, com receio de mostrar o meu
domínio sobre eles. Apesar das precauções que tomava para que não sentissem a minha
presença e não ficassem constrangidos diante de mim, eu continuava, como antes, cheio
de uma curiosidade perversa. A existência de cada um deles permanecia, a meus olhos,
misteriosa. Parecia-me sempre que uma parte de suas vidas se ocultava. Que faziam
eles, quando eu já não estava ali? Minha presença não permitia que pudessem divertir-
se mais. E imaginava em cada um deles um segredo que desejaria conhecer. Rondava,
seguia, espiava. E prendia-me às naturezas mais inexpressivas, como se de sua
obscuridade esperasse, para iluminar-me, um pouco de luz.
Um deles, sobretudo, me atraía: era alto, bastante bonito, nada estúpido, mas levado
unicamente pelo instinto; cedia a todos os impulsos e todos os seus atos eram bruscos.
Não era do lugar, e tinha sido contratado por acaso. Trabalhava muito bem dois dias e
no terceiro se embebedava. Uma noite fui vê-lo furtivamente na granja; estava estirado
sobre o feno e dormia um sono profundo de ébrio. Estive a contemplá-lo longamente!…
Um belo dia, partiu como tinha chegado. Desejaria saber por que caminhos… Soube,
naquela noite, que Bocage o despedira. Fiquei furioso com Bocage; mandei-o chamar.
— Parece que você mandou Pierre embora — comecei. — Pode dizer-me por quê?
Um pouco surpreso com a minha cólera, que, entretanto, eu procurava dominar: — O
senhor não quereria conservar aqui um bêbado, que punha a perder os melhores
trabalhadores.
— Sei melhor do que você quem é que devo conservar.
— Um vagabundo! Ninguém sabe de onde saiu. Não era bem visto por aqui… Se uma
noite ele pusesse fogo à granja, talvez o senhor ficasse satisfeito.
— Afinal, isso é comigo, e o dono aqui sou eu; dirigirei as coisas como quiser. Para o
futuro, quero que exponha os seus motivos, antes de condenar qualquer pessoa. Bocage,
como já disse, me conhecia desde pequeno; por mais forte que fosse o tom das minhas
palavras, ele gostava muito de mim para sentir-se ferido. De resto, não levou muito a
sério. O camponês normando geralmente não dá nenhum valor àquilo cujo objetivo ele
não compreende, isto é, às coisas que não têm lucro por finalidade. Bocage considerava
a nossa discussão um simples capricho meu.
Entretanto, eu não quis terminar a conversa com uma repreensão, e, sentindo que me
excedera, resolvi acrescentar alguma coisa:
— Seu filho Charles não está para voltar? — decidi-me a perguntar-lhe depois de um
momento de silêncio.
— Pensei que o senhor já o tivesse esquecido; nunca mais pediu notícias dele — disse,
ainda magoado.
— Como poderia esquecê-lo, Bocage, depois de tudo o que fizemos juntos no ano
passado? Conto mesmo com ele para os novos trabalhos…
— O senhor é muito bondoso. Charles deve voltar dentro de oito dias.
— Bem, isso me alegra, Bocage — e encerrei a conversa.
Bocage tinha um pouco de razão; eu não me esquecera de Charles, mas ele já não me
despertava um grande interesse. Como explicar que, depois de uma camaradagem tão
calorosa, eu não sentisse a seu respeito a mínima curiosidade? É que os meus trabalhos
e os meus gostos já não eram mais os do ano anterior. Minhas duas propriedades, devo
confessar, não me interessavam tanto quanto os homens que nelas trabalhavam; e, para
frequentá-los, a presença de Charles seria embaraçosa. O rapaz era demasiadamente
sensato e gostava de fazer-se respeitar. Daí que, apesar da viva emoção que a sua
lembrança despertava em mim, eu visse com receio aproximar-se o dia do seu regresso.
Ele voltou. Ah, como eu tinha razão de temer e como Ménalque fazia bem em repelir
qualquer lembrança! Vi entrar, em lugar de Charles, um absurdo senhor coberto com
um ridículo chapéu-coco. Meu Deus! como estava mudado! Apesar de contrafeito,
procurei não retribuir com muita frieza a alegria que ele demonstrou ao me rever; mas
mesmo essa alegria me desagradou; era uma coisa estudada, sem aparência de
sinceridade. Eu o recebera na sala de visitas e, como já era tarde, não distinguia bem o
seu rosto; mas, quando trouxeram a lâmpada, vi com desgosto que ele havia deixado
crescer as suíças.
Nossa conversa, aquela noite, foi um tanto forçada; como eu sabia que ele estaria
sempre nas plantações, evitei, durante quase oito dias, visitá-las, e procurei a
companhia dos meus livros e dos meus hóspedes. Quando recomecei a sair, fui atraído
por uma ocupação inesperada.
Um grupo de lenhadores havia invadido os bosques. Cada ano, vendia-se uma parte
deles; dividida em doze lotes iguais, a mata fornecia anualmente, junto de alguns
rebentos que ninguém esperava que vingassem, algumas árvores de doze anos que se
aproveitavam para lenha.
O trabalho era feito no inverno; e antes da primavera, conforme as cláusulas da venda,
os lenhadores deviam ter terminado o corte. Mas a negligência do velho Heurtevent, o
negociante de madeira que dirigia os trabalhos, era tão grande que, às vezes, a
primavera encontrava a mata ainda entulhada; viam-se então novos brotos frágeis
alongarem-se através dos ramos mortos, e, quando enfim os lenhadores retiravam a
madeira cortada, destruíam sem querer os novos rebentos.
Esse ano, porém, a displicência do velho Heurtevent, o comprador, excedeu nossa
expectativa. Na falta de concorrente, tive de entregar-lhe o corte por um preço muito
baixo; desse modo, certo de que nada tinha a perder, não teve pressa em cortar a
madeira pela qual pagara tão pouco. E, de semana em semana, ele protelava o trabalho,
protestando às vezes a ausência de trabalhadores, outras vezes o mau tempo, um cavalo
doente ou outros trabalhos… que sei eu? De tal modo que, no meio do verão, o
transporte da lenha ainda estava por fazer.
O que, no ano anterior, me teria irritado enormemente, deixou-me esse ano
perfeitamente calmo; compreendia o prejuízo que Heurtevent me causava; mas as
matas assim devastadas me pareciam belas, e passeava nelas com prazer, espiando,
vigiando a caça, surpreendendo as serpentes e, às vezes, sentando-me longo tempo
sobre um dos troncos abatidos, que parecia viver ainda, e, por suas feridas abertas,
continuava a brotar em ramos verdes.
Subitamente, no meio da primeira quinzena de agosto, Heurtevent resolveu trazer os
seus homens. Chegaram seis de uma vez, pretendendo fazer todo o serviço em dez dias.
A parte da mata em que trabalhavam ficava próximo a La Valterie; e permiti, para
facilitar-lhes a tarefa, que lhes trouxessem a comida do estabelecimento. Ficou
encarregado disso um rapazola chamado Bute, que voltara do exército contaminado —
refiro-me a seu espírito porque o corpo estava perfeito; era um dos tipos com quem eu
gostava mais de conversar. Desse modo, podia vê-lo sem precisar ir às plantações.
Porque foi precisamente nessa ocasião que recomecei a sair. Durante alguns dias não
me afastei da mata, só voltando a La Morinière à hora das refeições e fazendo-me
esperar algumas vezes. Fingia fiscalizar os trabalhos, mas na verdade só via os
trabalhadores.
Juntavam-se, às vezes, a esse grupo de seis homens dois filhos de Heurtevent; um de
vinte anos, o outro de quinze, altos, curvados, de traços duros. Pareciam estrangeiros e,
de fato, eu soube mais tarde que sua mãe era espanhola. Fiquei admirado de que ela
tivesse vindo para aquela região, mas parece que Heurtevent, um vagabundo
consumado em sua mocidade, tinha, ao que parece, casado com ela na Espanha. Por
esse motivo, ele era muito malvisto por ali. Lembro-me de que chovia, a primeira vez
que encontrei o mais moço dos filhos; ele estava só, sentado no alto de uma carreta
cheia de lenha; e ali, estendido no meio da madeira, cantava, ou antes, berrava uma
estranha cantiga que eu nunca escutara naquela região. Como os cavalos que puxavam
a carreta conheciam o caminho, iam avançando sem precisar que os conduzissem. Não
posso descrever o efeito que aquele canto produziu em mim; lembrava-me de ter
ouvido qualquer coisa semelhante na África… O pequeno, em sua exaltação, parecia
embriagado; nem olhou para o meu lado quando passei. No dia seguinte, soube que era
um dos filhos de Heurtevent. Era para revê-lo, ou ao menos para esperá-lo, que eu me
demorava na mata. Estavam acabando de transportar a lenha. Os filhos de Heurtevent
só vieram três vezes. Pareciam arrogantes, e não consegui arrancar-lhes uma palavra.
Bute, ao contrário, gostava de contar coisas; pouco a pouco fiz com que ele sentisse o
que podia dizer diante de mim; desde então, mostrou-se desembaraçado e começou a
revelar-me o que sabia. Avidamente, eu me debruçava sobre o seu mistério. Ao mesmo
tempo, ele ultrapassava a minha esperança e não conseguia satisfazer-me. Era aquilo,
afinal, o que existia sob a aparência? Ou tudo não passava de uma nova hipocrisia? Que
importava? Interrogava Bute, como havia feito com as crônicas informes dos godos. De
suas narrativas saía um turvo vapor de abismo que me subia à cabeça e que eu,
inquietamente, aspirava. A primeira coisa que me contou foi que Heurtevent dormia
com a filha. Tive receio de manifestar qualquer espanto e impedir, com isso, novas
confidências; sorri, portanto; a curiosidade me arrastava.
— E a mãe da pequena? Não diz nada?
— A mãe? Há já doze anos que morreu… Ele a surrava.
— Quantos são na família?
— Cinco filhos. O senhor conhece o mais velho e o mais moço. Há ainda um de
dezesseis anos, que não tem muita saúde e deseja ser padre. Aliás, a filha mais velha já
teve dois filhos com o pai…
E eu soube pouco a pouco uma porção de coisas, que faziam da casa dos Heurtevents
um lugar ardente, excitante, em torno do qual, involuntariamente, minha imaginação
voejava como um moscardo: uma noite, o filho mais velho tentou violar uma jovem
empregada; e, como esta se debatesse, o pai interveio em auxílio do rapaz e, com suas
mãos enormes, sujeitou-a; enquanto isso, o segundo filho, no andar superior,
continuava devotamente as suas orações, e o mais novo, testemunha da cena, divertia-
se enormemente. Quanto ao estupro, creio que não deve ter sido difícil, pois, segundo
dizia Bute, a criadinha, pouco tempo depois, tentou seduzir o pequeno cura.
— E não deu resultado? — perguntei.
— Ele ainda resiste, mas não muito — respondeu Bute.
— Não disseste que o velho tinha outra filha?
— Que topa o primeiro que encontra; e além disso sem pedir nada. Ao contrário, se é
questão de pagar, quem paga é ela. Agora, nada de fazer a coisa em casa do velho; ele
vira fera. Diz que, em família, a gente tem direito de fazer o que quer; mas nada de
estranhos. Pierre, o rapagão que o senhor despediu, não contou nada, mas uma noite
saiu de lá com a cabeça quebrada. Desde esse dia, é no mato do castelo que o pessoal se
diverte.
Então, animando-o com o olhar:
— Já experimentaste? — perguntei.
Ele baixou os olhos por mera formalidade, e disse com um jeito cínico:
— Às vezes. — Depois, erguendo rapidamente os olhos:
— O caçula do velho Bocage também.
— Que caçula?
— Alcides, o que dorme na granja. O senhor não conhece?
Fiquei absolutamente surpreso, ao saber que Bocage tinha outro filho.
— É verdade — continuou Bute — que, no ano passado, ele ainda estava em casa do tio.
Mas é de admirar que o senhor ainda não tenha encontrado o rapaz aí pelos matos;
quase todas as noites ele caça às escondidas. Bute dissera estas últimas palavras em voz
mais baixa. Olhou-me e compreendi que era preciso sorrir.
Então Bute, satisfeito, continuou: — O senhor, naturalmente, deve saber que lhe roubam
os bichos. Afinal, os matos são tão grandes que não lhe fazem grande mal.
Eu me mostrei tão pouco descontente, que Bute, animado e talvez feliz por fazer sua
maldadezinha ao velho Bocage, mostrou-me dentro de um buraco as armadilhas que
Alcides colocara, depois indicou-me um ugar junto à sebe onde provavelmente eu
poderia surpreendê-lo. Era uma estreita passagem, no alto de um talude, aberto na
própria sebe, pela qual Alcides costumava passar mais ou menos às seis horas. Ali, Bute
e eu, antegozando a cena, estendemos um fio de cobre muito bem dissimulado. Depois,
fazendo-me jurar que não o denunciaria, Bute foi embora, com receio de comprometer-
se. Eu deitei-me no lado oposto do talude e esperei.
Esperei três horas em vão. Já começava a pensar que Bute me tivesse logrado… Afinal,
depois de longa espera, escuto o rumor de um passo leve. Meu coração bate e sinto de
repente a terrível volúpia do caçador furtivo… O laço está tão bem colocado que
Alcides vem direitinho sobre ele. De repente, vejo-o cair, preso pelo tornozelo. Quer
escapar, torna a cair, debate-se como um pequeno animal. Mas eu já o tenho seguro. É
um garoto terrível, de olhos verdes, cabelos grossos, expressão velhaca. Dá-me
pontapés; depois, imobilizado, procura morder e, como não consegue, começa a lançar-
me à cara os mais extraordinários palavrões que já ouvi. Afinal, não posso mais, desato
numa gargalhada. Então, ele para de repente, olha-me e diz numa voz mais baixa:
— Seu brutamontes. Você me aleijou.
— Deixa-me ver.
Baixa a meia sobre a sandália e mostra o tornozelo, onde apenas se distingue um leve
sinal cor-de-rosa. — Não é nada. Sorri um pouco e depois, com um jeitinho sonso: —
Vou dizer a meu pai que é o senhor que prepara os laços.
— Ora essa! Este é um dos teus.
— Na certa que não foi o senhor que botou este pequenino.
— Por que não fui eu?
— O senhor não poderia saber. Mostre como é que faz.
— Mostra-me tu…
Aquela noite, cheguei muito tarde para jantar, e como ninguém sabia por onde eu
andava, Marceline estava aflita. É claro que não lhe contei que havia colocado seis
armadilhas e que, em vez de repreender Alcides, dera-lhe alguns niqueis.
No dia seguinte, indo examinar com ele os laços que havíamos armado, tive a alegria de
encontrar dois coelhos presos. A temporada de caça ainda não começara. Que fazer,
portanto, com esses animais que não era possível mostrar sem me comprometer? Era o
que Alcides se negava a confessar-me. Soube afinal, por Bute, que Heurtevent era um
velho receptador e que o mais novo de seus filhos servia de intermediário entre Alcides
e ele. Iria eu penetrar mais ainda nos segredos daquela assustadora família? Com que
paixão me abandonava àquelas caçadas furtivas!
Encontrava Alcides todas as tardes: apanhamos um grande número de coelhos, e até
mesmo um cabrito montês; o animalzinho respirava ainda… e até hoje lembro com
horror a alegria com que Alcides o matou. Pusemos o cabrito num lugar seguro, até que
o filho de Heurtevent viesse buscá-lo à noite.
Desde então, quase não saía de casa durante o dia, pois os matos cortados já não me
atraíam tanto. Tentei mesmo trabalhar; triste trabalho sem finalidade — já que resolvera
abandonar meu curso —, trabalho ingrato, do qual o mais leve canto, o mais leve rumor
do campo me distraíam; todo grito era para mim um apelo. Quantas vezes corri da
minha mesa à janela, para ver o quê? coisa nenhuma! Quantas vezes, saindo de
repente… A única atenção de que eu me sentia capaz era a de todos os meus sentidos.
Mas, quando a noite caía — e a noite já chegava cedo —, era a nossa hora, cuja beleza eu
não imaginara até então; e saía de casa como entram os ladrões. Tinha olhos de ave
noturna. Admirava a folhagem mais móvel e mais alta, as árvores espessas. A noite
penetrava em tudo, afastava tudo, fazia o solo distante e as superfícies profundas. O
atalho mais plano parecia perigoso. Sentia-se em toda a parte o despertar de tudo aquilo
que vivia uma existência tenebrosa.
— E teu pai? Onde acha que estejas agora?
Guardando os animais no estábulo.
Eu já sabia que Alcides dormia perto dos pombos e das galinhas; como o fechassem ali à
noite, ele escapava por um buraco do teto; conservava nas roupas um cheiro quente de
ave doméstica… Depois, subitamente, logo que apanhava a caça, ele afundava na noite
como num alçapão, sem um gesto de adeus, sem me dizer ao menos até amanhã. Sabia
que, antes de entrar na granja onde os cães não lhe ladravam, encontrava o pequeno
Heurtevent e lhe entregava o que caçara. Mas onde? Era o que a minha curiosidade não
conseguia descobrir: ameaças, ardis, fracassaram; os Heurtevents não se deixavam
surpreender. E não sei onde se manifestava mais a minha loucura: se em perseguir um
mistério sem importância que fugia cada vez mais de mim, ou talvez em inventar o
mistério à força de curiosidade? Mas que fazia Alcides depois de deixar-me? Iria mesmo
dormir na granja? ou mentia aos que assim pensavam? Ah! com essa minha curiosidade
eu só conseguia diminuir mais o seu respeito, sem aumentar a sua confiança; e isso me
punha furioso e desolado ao mesmo tempo…
Logo que ele desaparecia, eu ficava terrivelmente só; e voltava através dos campos,
sobre o capim pesado de orvalho, ébrio de noite, de vida selvagem e de anarquia,
molhado, enlameado, coberto de folhas. De longe, da adormecida La Morinière, parecia
guiar-me, como um farol tranquilo, a lâmpada da minha sala de estudo onde Marceline
pensava que eu estivesse, ou a do seu quarto, de que eu saíra dizendo-lhe que não
podia dormir sem um passeiozinho noturno. E não lhe mentia: tinha horror à minha
cama e teria preferido passar a noite na granja.

Havia muita caça naquele ano. Coelhos, lebres, faisões se sucediam. Vendo que tudo
marchava bem, Bute, três noites depois, começou a sentir prazer em juntar-se a nós.
Na sexta tarde de caça, só encontramos dois dos doze laços; alguém os havia roubado
durante o dia. Bute me pediu cem moedas para comprar fio de cobre, dizendo que o de
ferro não valia nada.
No dia seguinte, tive a satisfação de ver os meus dez laços em casa de Bocage, e tive de
aprovar o seu zelo. O pior é que, no ano anterior, eu tinha, irrefletidamente, prometido
dar dez moedas em troca de cada laço apreendido; tive, portanto, de dar cem a Bocage.
Ao mesmo tempo, com suas cem moedas, Bute comprava o fio de cobre. Quatro dias
depois, a mesma história; dez novos laços são apreendidos. De novo cem moedas a Bute
e cem moedas a Bocage. E, como o felicito:
— Não é a mim que o senhor deve felicitar, e sim a Alcides.
— Como!
Muita surpresa pode perder-nos, e me contenho.
— Sim — continua Bocage —, o senhor compreende: já estou velho e tenho muito que
fazer nas plantações. O pequeno percorre os matos por mim; conhece-os muito bem; é
esperto, e sabe melhor do que eu onde encontrar as armadilhas.
— Não duvido, Bocage.
— Então, das dez moedas que o senhor paga, eu lhe dou cinco por armadilha.
— E ele bem as merece. Por Deus! Vinte laços em cinco dias! O pequeno trabalhou bem.
Os caçadores têm de tomar cuidado. Aposto que descansarão um pouco.
— Meu caro senhor, quanto mais se apreende mais se encontra. A caça está cara este
ano, e por algumas moedas que ela lhes possa custar…
Sinto-me tão bem logrado que, por pouco, creria na cumplicidade de Bocage. E o que
mais me dói nessa história não é o triplo comércio de Alcides, é saber que ele me
engana. Que farão do dinheiro, Bute e ele? Não sei nada; não saberei nada de tais
sujeitos. Mentirão sempre; e me enganarão só pelo gosto de me enganar. E à noite já não
são cem moedas mas dez francos que dou a Bute; advirto-lhe que é pela última vez e
que, se os laços forem descobertos, tanto pior.
Na manhã seguinte, vejo entrar Bocage; vem muito contrafeito e eu me sinto logo mais
perturbado do que ele. Que se passou? E Bocage me conta que Bute só voltou de manhã
para casa; estava bêbado como um gambá; às primeiras palavras que Bocage lhe disse,
Bute o insultou, depois avançou para ele e lhe bateu…
— Enfim — diz Bocage —, eu vim saber se o senhor me autoriza (acentua um pouco a
palavra), me autoriza a despedi-lo.
— Vou pensar no caso, Bocage. Sinto muito que ele lhe tenha faltado com o respeito.
Vejo… Deixe-me pensar um pouco; volte daqui a duas horas.
Bocage sai. Conservar Bute é ferir cruelmente Bocage; expulsar o rapaz é incitá-lo à
vingança… Paciência; seja o que Deus quiser; afinal sou o único culpado… E, quando
Bocage volta:
— Pode dizer a Bute que não queremos mais vê-lo aqui.
Depois espero. Que faz Bocage? Que diz Bute?
E só à noite chegam a mim os ecos do escândalo. Bute falou. Compreendo pelos gritos
que vêm da casa de Bocage; estão surrando o pequeno Alcides. — Bocage vai chegar;
chega; ouço o seu velho passo se aproximar, e meu coração bate mais forte do que no
momento da caçada. Instante insuportável! Todos os grandes sentimentos serão
invocados; e eu terei de levá-los a sério. Que explicação inventar? Como representarei
mal! Ah, trocaria com gosto o meu papel… Bocage entra. Não compreendo
absolutamente nada do que me diz. É absurdo: e tenho de pedir que comece de novo.
No fim, sei apenas isto: ele crê que Bute é o único culpado; a incrível verdade lhe
escapa; que eu dei dez francos a Bute, e para quê? O velho é esperto demais para
admitir isso. Está certo de que Bute roubou os dez francos; ao dizer que fui eu que os
dei, este último acrescenta ao roubo a mentira; quer ocultar sua ação; não é a Bocage
que poderão enganar dessa maneira… Das caçadas noturnas já não se fala. Se deu uma
surra em Alcides, foi porque o pequeno dormia fora de casa.
Bem, estou salvo; pelo menos quanto a Bocage, a coisa vai bem. Que imbecil o tal Bute!
Naturalmente, naquela noite, não senti grandes desejos de caçar.
Pensava que tudo acabara, mas uma hora depois chega Charles. Vem de cara amarrada;
já de longe parece mais intolerável do que o pai. E dizer que no ano passado…
— Então, Charles, há quanto tempo não o vejo.
— Se o senhor quisesse me ver bastaria ir até à granja. Não me meto em histórias
noturnas no meio do mato.
— Ah! teu pai te contou?
— Meu pai não me contou nada, porque de nada sabe. Por que teria de descobrir, na
sua idade, que o seu patrão está caçoando dele?
— Atenção, Charles, está te excedendo…
— Sim, é verdade, o senhor é o patrão; faz o que bem entende.
— Charles, sabes perfeitamente que não zombei de ninguém; e se faço o que quero é
porque só eu serei o prejudicado.
Encolheu ligeiramente os ombros.
— Como quer que a gente defenda os seus interesses, se o senhor é o primeiro a atacá-
los? Não é possível proteger ao mesmo tempo o guarda noturno e o ladrão.
— Por quê?
— Porque então… mas, afinal, tudo isso é muito complicado para mim, e simplesmente
não me agrada ver meu patrão juntar-se aos criminosos, e desfazer com eles o que
fazemos em seu benefício.
Charles diz essas palavras com voz cada vez mais firme. Sua atitude é quase nobre.
Noto que tirou as suíças. O que ele me diz é justíssimo. E como fico calado (que lhe
direi?), continua:
— O senhor me dizia o ano passado que a gente tem deveres para com aquilo que
possui; mas, infelizmente, parece ter esquecido. É preciso levar a sério esses deveres e
não brincar com eles imprudentemente… porque então o homem não seria digno de
possuir. Um silêncio.
— É tudo o que tinha a dizer?
— Por hoje é, sim senhor; mas talvez outro dia, se o senhor me levar a isso, virei dizer
que meu pai e eu deixamos La Morinière.
E sai, cumprimentando-me com respeito. Apenas tenho tempo de refletir.
— Charles!
Sim, ele tem razão. Oh, mas se é isso que a gente chama possuir!…
— Charles!
E corro em seu encalço; alcanço-o em plena noite e, rápido, para firmar minha súbita
decisão:
— Podes dizer a teu pai que ponho à venda La Morinière.
Charles saúda gravemente e se afasta sem dizer nada. Tudo isso é absurdo! absurdo!

Marceline, aquela noite, não pode descer para jantar e manda dizer que não está bem.
Subo apressadamente e entro cheio de ansiedade em seu quarto. Ela me acalma em
seguida:
— É apenas um resfriado — supõe. Ela apanhou um pouco de friagem.
— Não podias resguardar-te mais?
— Mas logo que senti o calafrio, vesti o xale.
— Não era depois e sim antes que o devias ter vestido.
Olha-me, tenta sorrir… Ah! talvez um dia tão mal começado me predisponha assim à
tristeza — se ela me dissesse em voz alta: “Importa-te tanto que eu viva?”, não a teria
entendido melhor. Decididamente, tudo se desfaz em torno de mim; de tudo o que a
minha mão apanha, ela nada sabe conservar… Inclino-me para Marceline e cubro de
beijos seu rosto pálido. Então, ela não se contém mais e soluça sobre o meu ombro.
— Oh, Marceline, Marceline, vamos partir daqui. Em outro lugar, eu te amarei como te
amei em Sorrento… Julgas que mudei, não é assim? Mas longe daqui verás que nada
mudou o nosso amor…
E, se ainda assim não consigo curar a sua tristeza, vejo como já se apega a essa
esperança!… A estação apenas começara, mas estava úmida e fria, e os últimos botões
de rosa secavam sem poder se abrir. Nossos convidados já tinham regressado.
Marceline, apesar de enferma, pôde cuidar dos últimos arranjos, e cinco dias depois
partimos.
Terceira parte
I
Procurei então, mais uma vez, fechar o meu amor na mão. Mas para que havia eu de
querer uma felicidade tranquila? A que Marceline me dava, a que ela representava para
mim, era como um repouso para quem não se sente cansado. Mas, como eu a sentia
exausta e necessitada do meu amor, fingia que o amor de que a cercava era uma
necessidade minha. Sentia intoleravelmente seu sofrimento; e era para curá-la que eu a
amava.
Ah, quantos cuidados ardentes, quantas vigílias! Como outros aumentam sua fé
exagerando as orações e penitências, assim eu cultivava o meu amor. E Marceline
agarrava-se novamente à esperança. Havia nela tanta mocidade ainda; em mim tantas
promessas, ela pensava. Fugimos de Paris como para uma nova lua de mel. Mas, desde
o primeiro dia de viagem, ela começou a piorar; e tivemos de parar em Neuchâtel.
Como eu amava aquele lago de águas verdes!, sem nada de alpestre, e cujas águas,
como as de um charco, misturam-se com a terra e escorrem entre os caniços. Encontrei
para Marceline, num hotel muito confortável, um quarto com vista para o lago; e não
saí de seu lado o dia inteiro.
Ela estava tão mal que, na manhã seguinte, mandei chamar um médico de Lausanne.
Ele quis saber se eu conhecia, na família de minha mulher, outros casos de tuberculose.
Respondi que sim, apesar de não conhecer; mas não queria confessar que eu mesmo
estivera quase condenado e que, antes de cuidar de mim, Marceline nunca estivera
enferma. Atribuí tudo aquilo à embolia, ainda que o médico só visse nela uma causa
ocasional e me afirmasse que o mal vinha de mais longe. Aconselhou-nos vivamente o
ar livre dos altos Alpes, onde minha mulher, na sua opinião, ficaria curada; e, como o
meu maior desejo era passar todo o inverno em Engadine, logo que Marceline ficou em
condições de suportar a viagem tornamos a partir.
Lembro-me, como se fossem grandes acontecimentos, de cada sensação da viagem. O
tempo estava límpido e frio; tínhamos trazido os abrigos mais grossos… Em Coire, o
barulho incessante do hotel impediu-nos quase completamente de dormir. Por mim,
teria preferido uma boa noite em claro, e não me sentiria fatigado; mas Marceline… E
não me irritava tanto o barulho, mas o fato de ela não poder dormir, tão necessitada
estava de um bom sono! No dia seguinte, partimos antes de amanhecer; tínhamos
reservado lugares na diligência de Coire; as mudas bem organizadas permitem chegar
em um dia a Saint-Moritz.
Tiefenkasten, o Julier, Samaden… lembro-me de tudo, hora por hora; da qualidade
diferente e do friúme do ar; do som dos guizos dos cavalos; da minha fome; da parada,
ao meio-dia, diante do albergue; do ovo cru que desmanchei na sopa, do pão de rala e
da frieza áspera do vinho. Esses alimentos grosseiros não convinham a Marceline; ela
apenas pôde comer alguns biscoitos que eu felizmente trouxera para a viagem. Revejo o
cair do dia, a rápida ascensão da sombra contra as encostas das florestas; depois uma
nova parada. O ar cada vez mais puro e frio. Quando a diligência para, mergulhamos
até o coração na noite e no silêncio límpido; límpido… não existe outra palavra. O
menor ruído ganha nessa estranha transparência sua qualidade perfeita e sua plena
sonoridade. A viagem continua à noite. Marceline tosse… Oh, não parará mais de
tossir? Penso na diligência de Sousse. Parece-me que eu tossia melhor: ela faz tantos
esforços… Como parece fraca e mudada; assim na sombra, eu mal a reconheceria. Como
suas feições estão chupadas! Seriam assim mesmo os dois buracos negros das narinas?
Oh, ela tosse horrivelmente. É o resultado mais evidente dos seu cuidados. Tenho
horror à simpatia; todos os contágios se ocultam nela; só devíamos simpatizar com os
fortes. Oh, realmente ela não aguenta mais! Não chegaremos logo!?… Que faz ela?…
Toma o lenço e o leva aos lábios, vira a cabeça. … Que horror! Será que vai cuspir
sangue? — Brutalmente, arranco o lenço de suas mãos. Na meia claridade da lanterna o
examino. Nada. Mas demonstrei demais a minha angústia; Marceline, tristemente, tenta
sorrir e murmura:
— Não; ainda não.
Finalmente, chegamos. Já não é sem tempo; ela mal se aguenta em pé. Os quartos que
nos preparam não me satisfazem; passaremos ali a noite e mudaremos no dia seguinte.
Nada me parece suficientemente bonito nem bastante caro. Como a temporada de
inverno ainda não começou, o imenso hotel está quase vazio; posso escolher à vontade.
Tomo dois quartos espaçosos, claros e mobiliados com simplicidade; há uma grande
sala contígua, que termina numa grande janela de sacada de onde se pode ver o horrível
lago azul e não sei que monte brutal de encostas muito arborizadas ou muito nuas. É ali
que nos servirão as refeições. O apartamento é caríssimo, mas que importa! Não tenho
mais o meu curso, mas mandei vender La Morinière. E depois, veremos… Aliás, para
que quero dinheiro? Para que quero tudo isso?… Sinto-me forte agora… Penso que uma
completa mudança de fortuna deve educar tanto quanto uma completa mudança de
saúde. Marceline, porém, tem necessidade de luxo; está tão fraca… por ela gastarei
tanto e tanto que… E eu ia tomando ao mesmo tempo o horror e o gosto desse luxo.
Nele eu lavava, banhava a minha sensualidade, depois desejava fugir.
Entretanto, Marceline ia melhorando, e os meus cuidados constantes triunfavam. Como
não tinha vontade de comer, eu encomendava, para estimular seu apetite, pratos
delicados, tentadores; bebíamos os melhores vinhos. Convencia-me de que ela os
apreciava, de tal modo eu gostava dessas bebidas estrangeiras que provávamos todos
os dias. Eram vinhos ásperos do Reno; os Tokay quase xaroposos que me enchiam de
sua virtude capitosa. Lembro-me de um estranho Barbagrisca, do qual só restava uma
garrafa, de modo que não pude saber se o gosto esquisito que tinha se sentiria também
nos outros.
Todos os dias saíamos de carro; depois, de trenó, quando a neve caiu, envoltos até o
pescoço nos abrigos de pele. Eu voltava de rosto ardente, cheio de apetite, depois de
sono. Apesar disso, não renunciava completamente ao trabalho e sempre encontrava
uma hora por dia para pensar no que eu sentia que deveria dizer. Não cogitava mais de
história; havia muito tempo que os estudos históricos só me interessavam como um
meio de investigação psicológica.
Já disse como o passado me tinha seduzido novamente, quando imaginei ver nele
semelhanças inquietantes; tinha mesmo esperado que, de tanto interrogar os mortos,
pudesse obter deles alguma indicação secreta sobre a vida… Mas agora o próprio
Talarico poderia, para falar-me, levantar-se do seu sepulcro; eu não escutava mais o
passado. E como poderia uma resposta antiga satisfazer minha pergunta nova: — Que
pode o homem ainda? Eis o que me importava saber. O que o homem disse até agora é
tudo o que ele poderia dizer? Não teria ignorado qualquer coisa de si mesmo? Não lhe
resta senão repetir?… E cada dia aumentava em mim o sentimento confuso de riquezas
intactas, que cobriam, escondiam, abafavam as culturas, as decências, as morais.
Parecia-me então que eu nascera para um gênero desconhecido de descobertas; e
entregava-me apaixonadamente àquela pesquisa tenebrosa, para a qual o pesquisador
deve abjurar e afastar de si a cultura, a decência e a moral.
Daí eu só admitir nos outros as manifestações mais selvagens, e deplorar qualquer
refreamento que os pudesse reprimir. Por pouco, só veria na honestidade restrições,
convenções ou temor. Teria gostado de aceitá-la como uma dificuldade rara; nossos
costumes tinham feito dela a forma mútua e banal de um contrato. Na Suíça, ela faz
parte do conforto. Eu compreendia que Marceline necessitasse dela; mas não lhe
escondia o novo rumo dos meus pensamentos. Já em Neuchâtel, ela elogiava aquela
honestidade que transpira dos rostos e das paredes.
— A minha me basta perfeitamente — respondia-lhe eu ; tenho horror às pessoas
honestas. Se nada tenho a temer de sua parte, nada tenho também a aprender. E elas
também nada têm a dizer…
Honesto povo suíço! De nada lhe vale comportar-se bem… sem crimes, sem história,
sem literatura, sem artes… um grande roseiral sem espinhos nem flores…
Já sabia com antecedência que esse país honesto me entediaria, mas, no fim de dois
meses, sentindo que o tédio se transformava em furor, eu só pensava em partir.
Estávamos em meados de janeiro. Marceline sentia-se melhor, muito melhor: a
febrezinha contínua que lentamente a minava desaparecera; um sangue mais fresco
recoloria suas faces; gostava novamente de caminhar, mas sem excesso; não estava
como antes constantemente fatigada. Não custei muito a convencê-la de que já
aproveitara completamente os benefícios daquele ar puro, e de que nada lhe faria tanto
bem agora como uma viagem à Itália, onde a morna doçura da primavera terminaria a
sua cura — mas, sobretudo, não custei muito a convencer-me, tão cansado me sentia
daquelas alturas.
Entretanto, agora que, na minha ociosidade, esse passado que detesto vai retomando
sua força, essas lembranças, mais do que as outras, me perseguem. Corridas rápidas em
trenó; açoite alegre do ar seco, salpico de neve, apetite; — marcha incerta na névoa,
sonoridade rara de vozes, brusca aparição dos objetos; — leituras na sala calafetada,
paisagem através dos vidros, paisagem gelada; — espera trágica da neve; —
desaparecimento do mundo exterior, voluptuosa retração dos pensamentos… Oh,
patinar ainda com ela, lá longe, sós, sobre o pequeno lago límpido, cercado de lariços,
perdido; depois voltar com ela ao cair da noite…

Essa descida à Itália teve para mim todas as vertigens de uma queda. O tempo estava
lindo. A medida que afundávamos no ar mais suave e mais denso, as árvores rígidas
dos cumes, lariços e pinheiros regulares cediam lugar a uma vegetação rica de graça
natural e simplicidade. Parecia-me trocar a abstração pela vida e, ainda que
estivéssemos no inverno, imaginava perfumes em toda a parte. Ah! nosso riso de antes
era um riso para sombras! Minha privação me entontecia e era de sede que eu estava
ébrio, como outros se embriagavam de vinho. A reserva de minha vida era admirável;
no limiar dessa terra tolerante e cheia de promessas, todos os meus apetites vinham à
tona. Uma soma enorme de amor me sufocava; às vezes, ela afluía do fundo da minha
carne à cabeça e punha a nu meus pensamentos.
Essa ilusão de primavera durou pouco. A mudança brusca de altitude enganou-me por
um momento, mas, logo que deixamos as margens abrigadas dos lagos Bellagio e
Como, onde passamos alguns dias, encontramos o inverno e a chuva. O frio, que
suportáramos bem em Engadine, por ser leve e seco, era agora úmido, desagradável, e
nos fazia sofrer. Marceline recomeçou a tossir. Então, para fugir ao frio, descemos mais
para o sul: trocamos Milão por Florença, Florença por Roma, Roma por Nápoles, que,
sob a chuva de inverno, é a cidade mais lúgubre que conheço. Arrastava comigo um
tédio atroz. Voltamos a Roma para procurar, à falta de calor, uma aparência de
conforto. No monte Pincio alugamos um apartamento demasiadamente grande mas
muito bem situado. Já em Florença, descontentes com os hotéis, havíamos alugado por
três meses uma vila deliciosa no Viale dei Colli. Qualquer outro gostaria de viver ali
para sempre. Nós só ficamos quase vinte dias. Entretanto, em cada nova parada, eu
tinha o cuidado de arrumar as nossas coisas como se não pretendêssemos mais partir.
Um demônio mais forte me arrastava… Imaginem que levávamos nada menos do que
oito malas. Havia uma, cheia de livros, que não abri uma só vez durante a viagem.
Não admitia que Marceline se ocupasse de nossas despesas, nem tentasse moderá-las.
Eu sabia, naturalmente, que elas eram excessivas e que não poderiam durar. Deixei de
contar com o dinheiro de La Morinière; ela já não rendia nada e Bocage me mandara
dizer que não tinha encontrado comprador. Mas qualquer ideia de futuro só servia para
fazer-me gastar mais. Para que quereria tanto, quando ficasse sozinho?… pensava, e
sentia, numa angustiosa espera, diminuir, mais rapidamente ainda do que a minha
fortuna, a frágil vida de Marceline.
Ainda que eu lhe poupasse todas as preocupações, essas mudanças precipitadas a
cansavam; mas o que a cansava mais, tenho agora a coragem de confessar, era o medo
do meu pensamento.
— Compreendo bem — disse-me um dia —, compreendo bem a sua doutrina, porque
ela agora é uma doutrina. É bela talvez — acrescentou em voz mais baixa e mais triste:
— Mas suprime os fracos.
— É o que é preciso — respondi involuntariamente.
Então, pareceu-me sentir, sob o pavor da minha frase brutal, aquela criatura delicada
retrair-se e estremecer… Talvez vocês pensem que eu não amava Marceline. Juro que a
amava apaixonadamente. Nunca ela fora nem me parecera tão bela. A doença havia
sutilizado e quase extasiado suas feições. Eu não saía de seu lado, cercava-a de cuidados
contínuos, protegia, acompanhava cada instante de seus dias e de suas noites. Por mais
leve que fosse o seu sono, o meu era ainda mais leve; esperava que ela adormecesse e
despertava antes dela. Quando, às vezes, a deixava por uma hora, para caminhar
sozinho pelo campo ou pelas ruas, uma inquietação amorosa, o receio de um desgosto
seu, faziam-me voltar para o seu lado; e, outras vezes, eu apelava para a minha
vontade, protestava contra esse jugo e dizia para mim mesmo: é para isso que tu serves,
falso grande homem? e fazia durar a minha ausência; mas voltava com os braços
carregados de flores, flores de jardim precoce ou flores de estufa… Sim, repito; eu a
amava com ternura. Mas como exprimir o que sentia… À medida que eu me respeitava
menos, venerava-a mais; e quem dirá quantas paixões e quantos pensamentos inimigos
podem coabitar no homem?…

Há muito o mau tempo cessara; a primavera aproximava-se; e de repente as


amendoeiras floriam. Era o primeiro dia de março. Desço de manhã para a praça da
Espanha. Os camponeses despojaram o campo de seus ramos brancos e as flores de
amendoeira enchem os cestos dos vendedores. Meu enlevo é tão grande que compro
um sem-número delas. Três homens as carregam. Entro em casa com toda essa
primavera. Os ramos se prendem nas portas; as pétalas nevam no tapete. Espalho-as
por todos os cantos; encho todos os vasos; visto de branco a sala de Marceline. já me
sinto feliz com a sua alegria. Escuto os seus passos. Chega. Abre a porta. Que tem?
Cambaleia… Começa a chorar.
— O que tens, minha querida?
Chego-me a ela; cubro-a de carícias. Então, como para desculpar-se de suas lágrimas:
— O cheiro destas flores me faz mal — diz ela.
E era um fino, fino, um discreto cheiro de mel… Sem dizer nada, agarro os inocentes
ramos, esmago-os, levo-os dali e os jogo fora, exasperado, os olhos injetados de sangue.
— Ah! se nem esse pouco de primavera ela já consegue suportar!…
Penso às vezes naquelas lágrimas e creio agora que, sentindo-se condenada, era de
saudades de outras primaveras que ela chorava. Penso também que existem alegrias
fortes para os fortes, e alegrias fracas para os fracos que as alegrias fortes poderiam
ferir. Um pouco de prazer a embebedava; um brilho um pouco mais forte ela já não
podia suportar. O que ela chamava felicidade era o que eu chamava repouso, e eu não
queria nem podia repousar.
Quatro dias depois, seguimos para Sorrento. Tive a surpresa desagradável de não
encontrar mais o calor.
Tudo parecia tiritar. O vento, que não parava de soprar, fatigava muito Marceline.
Quisemos parar no mesmo hotel em que ficáramos na primeira viagem; e encontramos
o mesmo quarto. Olhamos com espanto, sob o céu baço, todo o cenário desencantado e
o jardim sombrio que nos parecera tão lindo quando nele passeávamos o nosso amor.
Resolvemos ir por mar a Palermo, de cujo clima tanto ouvíamos falar; chegamos a
Nápoles, onde devíamos embarcar e ali nos demoramos ainda. Mas em Nápoles, ao
menos, eu não me aborrecia. Nápoles é uma cidade viva onde o passado não se impõe.
Quase todas as horas do dia, eu ficava perto de Marceline. A noite ela, cansada, ia
deitar-se cedo; às vezes; eu também me deitava; depois, quando sentia em sua
respiração que ela havia adormecido, levantava-me sem fazer barulho, vestia-me no
escuro e saía furtivamente como um ladrão.
Fora!, eu teria gritado de alegria. O que ia fazer? Não sei. O céu, escuro durante o dia,
livrara-se das nuvens; a lua quase cheia brilhava. Eu caminhava ao acaso, sem rumo,
sem desejo, sem restrições. Via tudo com olhos novos; escutava cada ruído com um
ouvido mais atento; aspirava a umidade da noite; pousava a minha mão sobre as coisas;
vagabundeava.
A última noite que passamos em Nápoles, prolonguei essa orgia ambulatória até o
amanhecer. Ao voltar, encontrei Marceline chorando. Ficara assustada, disse-me, ao
acordar de repente e não me encontrar ali. Acalmei-a, expliquei como pude minha
ausência e prometi não a deixar mais. Mas, na primeira noite de Palermo, não pude
dominar-me; saí… As primeiras laranjeiras floresciam; o menor sopro trazia o seu
perfume…
Só ficamos em Palermo cinco dias; depois, por um longo desvio, chegamos a Taormina,
que desejávamos rever. Já disse que a vila fica empoleirada no alto da montanha? A
estação é à beira do mar. A carruagem que nos conduziu ao hotel teve de levar-me
novamente à estação para buscar as malas. Pus-me de pé dentro do veículo para
conversar com o cocheiro. Era um pequeno siciliano de Catânia, belo como um verso de
Teócrito, ardente, perfumado e saboroso como um fruto.
— Comm’é bella la Signora! — disse com uma voz encantadora, ao ver Marceline se
afastar.
— Anche tu sei bello, ragazzo — respondi; e, como estava inclinado para ele, não pude me
conter e, atraindo-o para mim, beijei-o. Ele aceitou meu gesto, rindo.
— I Francesi sono tutti amanti — disse.
— Ma non tutti gli Italiani amati — retruquei-lhe, rindo também.
Procurei-o nos dias seguintes, mas não consegui tornar a vê-lo.
Saímos de Taormina para Siracusa. Refazíamos passo a passo nossa primeira viagem,
subíamos ao princípio do nosso amor. E assim como, de semana em semana naquela
ocasião, eu caminhava para a cura, de semana em semana, à medida que avançávamos
para o sul, o estado de Marceline piorava.
Por que aberração, que obstinada cegueira, que loucura voluntária eu me convencia e,
sobretudo, procurava convencê-la de que ela necessitava de mais luz ainda e de calor, e
invocava a lembrança de minha convalescença em Biskra… O ar, no entanto, estava
mais tépido; a baía de Palermo é saudável e Marceline gostava do lugar. Ali, talvez, ela
tivesse… Mas seria eu capaz de escolher minha vontade, de decidir o meu desejo?
Em Siracusa, o estado do mar e o serviço irregular de navios nos obrigaram a esperar
oito dias. Todos os instantes que eu não passava junto de Marceline, passava-os no
velho porto. O pequeno porto de Siracusa! cheiro de vinho azedo, ruelas enlameadas,
fétido bazar onde desfilavam carregadores, vagabundos, marinheiros embriagados. A
companhia da pior gente era para mim um agradável convívio. E que necessidade tinha
eu de entender sua linguagem quando toda a minha carne a saboreava? A brutalidade
da paixão tomava ali, a meus olhos, um hipócrita aspecto de saúde, de vigor. Fingia
ignorar que sua vida miserável não podia ter para eles o mesmo gosto que tinha para
mim… Ah! gostaria de rolar com eles por baixo das mesas e só despertar no frio
tristonho da manhã. Aguçava junto deles o meu crescente horror ao luxo, ao conforto, a
tudo que me cercava, a essa proteção que a minha nova saúde tinha tornado inútil, a
todas essas precauções que tomamos para preservar o corpo do contato perigoso da
vida. Minha imaginação avançava em sua existência. Gostaria de acompanhá-los mais
longe, de penetrar na sua embriaguez… Mas, de repente, revia Marceline. Que faria ela
nesse momento? Sofria, chorava talvez… Levantava-me às pressas; corria; voltava ao
hotel, onde parecia escrito sobre a porta: aqui os pobres não entram.
Marceline, recebia-me sempre do mesmo modo; sem uma palavra de censura ou de
dúvida, e esforçando-se, apesar de tudo, por sorrir. Comíamos os dois sozinhos; eu
mandava servir-lhe tudo o que o modesto hotel podia ter de melhor. E, durante a
refeição, pensava: um pedaço de pão, de queijo, um pé de funcho lhes basta e me
bastaria também. E talvez ali, bem perto de nós, haja alguém com fome, alguém que não
tenha nem mesmo essa magra ração… E aqui na minha mesa o bastante para contentá-
los por três dias! Gostaria de derrubar as paredes, deixar afluírem os convivas… Porque
sentir sofrer de fome era para mim uma terrível angústia. E voltava ao velho porto,
onde espalhava, ao acaso, as pequenas moedas que me enchiam os bolsos.
A pobreza do homem é escrava; para comer, ele aceita um trabalho sem prazer; todo
trabalho que não dá alegria é lamentável, pensava, e pagava o repouso de muitos. Dizia:
— Não trabalhes, então: isso te aborrece. — E sonhava para cada um essa ociosidade
sem a qual não pode florescer nenhuma novidade, nenhum vício, nenhuma arte.
Marceline não se enganava a respeito de meus pensamentos; quando eu voltava do
velho porto, ela sabia da triste gente que me cercava. Tudo está no homem.
Marceline entrevia bem o que eu me obstinava em descobrir; e como eu lhe censurasse o
fato de ela crer frequentemente em virtudes que inventava sob medida para cada
criatura:
— Tu só estás contente — dizia-me — quando fazes com que te mostrem algum vício.
Não compreendes que o nosso olhar desenvolve, exagera em cada um o ponto no qual
se fixa, e que fazemos com que ele se transforme no que queremos que seja?
Teria preferido que ela não tivesse razão, mas era obrigado a confessar que, em cada
criatura, o pior instinto me parecia o mais sincero. Aliás, o que eu chamava de
sinceridade?

Deixamos afinal Siracusa. A lembrança e o desejo do Sul me obcecavam. No mar,


Marceline sentiu-se melhor… Ainda estou vendo o tom do mar. Está tão calmo que o
sulco do navio parece perdurar. Ouço o ruído da água escorrendo, ruídos líquidos; a
lavagem do tombadilho e sobre as tábuas o bater dos pés nus dos lavadores.
Revejo Malta, toda branca; a chegada a Túnis… como estou mudado!
Faz calor. O tempo está lindo. Tudo é esplêndido. Gostaria que, em cada frase, toda
uma messe de volúpia se destilasse… Em vão procuraria agora dar à minha narrativa
mais ordem do que houve na minha vida. Há muito tempo que tentei dizer como
cheguei a ser o que sou. Ah! desembaraçar o meu espírito dessa lógica insuportável!…
Nada sinto em mim que não seja nobre.
Túnis. Luz mais abundante que forte. A sombra ainda está cheia dela. O próprio ar
parece um fluido luminoso que tudo banha, onde se mergulha, onde se nada. Essa terra
de volúpia satisfaz mas não aplaca o desejo, e toda satisfação o exalta.
Terra em que se descansa de obras de arte. Desprezo aqueles que só sabem reconhecer a
beleza já transcrita perfeitamente interpretada. O povo árabe tem isto de admirável: sua
arte ele a vive, canta, dissipa-a quotidianamente; não procura fixá-la nem a embalsama
em uma obra. É a causa e o efeito da ausência de grandes artistas… Sempre considerei
grandes artistas os que ousam dar foros de beleza a coisas tão naturais que quem as vê
pode dizer: “Como não compreendi até agora que também isto era belo…”
Em Kairuan, que eu ainda não conhecia, e aonde fui sem Marceline, a noite estava
belíssima. Lembro-me de que, no momento em que voltava ao hotel para dormir, vi um
grupo de árabes deitados ao ar livre sobre as esteiras de um pequeno café. Fui dormir
ao lado deles. Voltei coberto de bichos.

Como o calor úmido da costa fizesse mal a Marceline, convenci-a de que devíamos
voltar a Biskra o quanto antes. Estávamos no princípio de abril.
É um longo percurso. No primeiro dia, viajamos sem parar até Constantina; no
segundo, Marceline está cansadíssima e só vamos até El Kantara. Ali procuramos e
encontramos uma sombra mais deliciosa e mais fresca do que a luz da lua, à noite. Ela
era como uma bebida inesgotável; escorria até nós. E da elevação onde estávamos
sentados via-se a planície abrasada. Essa noite, Marceline não pode dormir; o tom
estranho do silêncio e dos menores rumores a inquieta. Receio que tenha um pouco de
febre. Ouço-a revolver-se na cama. Na manhã seguinte, acho-a mais pálida. Partimos.
Biskra. É ali, afinal, que eu desejo chegar… sim; lá está o jardim público; o banco…
reconheço o banco em que me sentei nos primeiros dias da convalescença. Que lia eu
então!… Homero; desde aí, nunca mais tornei a abri-lo. — Eis a árvore cuja casca eu
apalpava. Como estava fraco então!… Oh! um grupo de meninos…
Não; não reconheço nenhum deles. Como Marceline está séria! Mudou tanto quanto eu.
Por que tossirá assim, com um tempo tão lindo?
— Ali está o hotel. Os nossos quartos, os nossos terraços. Em que pensa Marceline? Não
me disse uma palavra. Logo que chega ao quarto, estende-se na cama; está cansada e
quer dormir um pouco. Saio. Não reconheço os meninos, mas eles me reconhecem.
Avisados da minha chegada, acorrem todos. Será possível que sejam eles? Que lástima!
Que aconteceu? Estão lamentavelmente crescidos. E passaram-se apenas dois anos —
não é possível… que fadigas, que vícios, que preguiças puseram tanta fealdade nesses
rostos onde a mocidade brilhava? Que trabalhos grosseiros curvaram tão cedo esses
lindos corpos? É como uma bancarrota… Indago. Bachir é lavador de pratos de um café;
Ashour ganha com dificuldade alguns cobres, quebrando as pedras da estrada;
Hammatar perdeu um olho. Quem teria imaginado? Sadeck criou juízo; ajuda um irmão
mais velho a vender pão no mercado; tem agora um ar estúpido. Agib é açougueiro,
como o pai; está gordo, feio, rico; não fala mais com os companheiros desclassificados…
Como as profissões honestas embrutecem! Encontrarei no meio deles o que eu detestava
no meu? Boubaker? — Casou-se. Não tem ainda quinze anos. É grotesco. — Contudo,
não; tornei a vê-lo hoje de tarde. A coisa se explica: seu casamento é uma simples
aparência. É sempre o mesmo devasso. Mas bebe demais, deforma-se… Será isso tudo o
que resta? Eis aí a obra da vida. — Sinto tristemente que eram eles que eu desejava
rever. — Ménalque tinha razão: a lembrança é uma invenção maldita.
E Moktir?
— Acaba de sair da prisão, anda escondido. Os outros não andam mais com ele.
Desejaria vê-lo. Era o mais bonito de todos; irá também decepcionar-me?… Os outros o
encontram. Trazem-no. — Não!, este não falhou. Mesmo a lembrança que eu tinha dele
não o fazia tão admirável. Sua força e sua beleza são perfeitas… Ao reconhecer-me,
sorri.
— E que fazias antes de ser preso?
— Nada.
— Furtavas?
Ele protesta.
— Que fazes agora?
Sorri.
— Bem, Moktir, se não fazes nada, irás conosco a Touggourt.
E vem-me, de repente, o desejo de ir a Touggourt.
Marceline não está nada bem; não sei o que se passa com ela. Quando volto ao hotel,
aquela noite, ela se abraça a mim, em silêncio, os olhos fechados. A manga larga, um
pouco suspensa, mostra o seu braço emagrecido. Acaricio-a e a embalo longamente,
como uma criança que se quer adormecer. Será o amor, a angústia ou a febre que a faz
tremer assim?… Ah! talvez ainda seja tempo… Não poderei parar, finalmente? —
Procurei, encontrei o que constitui meu valor: uma espécie de teimosia no pior. — Mas
como conseguirei dizer a Marceline que amanhã partimos para Touggourt?…
Agora, ela dorme no quarto contíguo. A lua, que surgiu há muito tempo, inunda de luz
o terraço. É uma claridade quase apavorante. Não se consegue fugir dela. Meu quarto
tem lajes brancas, onde ela aparece mais nítida. Sua onda entra pela janela escancarada.
Vejo seu rasto no quarto e a sombra que nela desenha a porta. Há dois anos, ela entrava
um pouco mais adiante… sim, no lugar precisamente onde vai avançando agora —
quando me levantei sem vontade de dormir. Apoiava meu ombro contra o alizar da
porta. Reconheço a imobilidade das palmeiras… Que palavras lera, aquela noite?… Ah,
sim, as que Cristo disse a Pedro: “Agora tu cinges tua túnica, e vais aonde queres ir…”
Aonde irei? Aonde quero ir?… Ainda não lhes disse que, de Nápoles, da última vez,
tinha ido a Pesto, um dia, sozinho… ah! eu teria chorado diante daquelas pedras! A
antiga beleza parecia simples, perfeita, sorridente — abandonada. A arte foge de mim,
eu o sinto. Para dar lugar a quê? Já não é, como dantes, uma sorridente harmonia… Não
sei mais a que Deus tenebroso estou servindo. Ó Deus novo!, permita que eu ainda
conheça raças novas, tipos imprevistos de beleza.
No dia seguinte, de madrugada, a diligência nos leva. Moktir vai conosco. Está feliz
como um rei.

Chegga; Kefeldorh’; M’reyer… sombrias paradas na estrada ainda mais sombria,


interminável. Confesso que havia imaginado muito mais alegres esses oásis. Mas nada
mais que pedra e areia; alguns espinheiros anões estranhamente floridos; às vezes uma
amostra de palmeiras, alimentadas por uma fonte oculta… Ao oásis prefiro agora o
deserto… essa região de glória mortal e de insuportável esplendor. O esforço do
homem parece ali feio e miserável. Atualmente, qualquer outra terra me desgosta.
— Amas o inumano — diz Marceline. Mas como olha também! E com que avidez!
O tempo piora um pouco no segundo dia; o vento se levanta e o horizonte se embacia.
Marceline sofre; a areia que se respira queima, irrita sua garganta; a luz excessiva cansa
o seu olhar; a paisagem hostil fere os seus nervos. Mas agora é tarde demais para voltar.
Dentro de algumas horas, estaremos em Touggourt.
É dessa última parte da viagem, ainda tão próxima entretanto, que eu me lembro
menos. Impossível, agora, rever as paisagens do segundo dia e o que fiz ao chegar a
Touggourt. O que não consigo esquecer é a minha impaciência, a minha precipitação.
Fizera muito frio pela manhã. À tardinha, um simum ardente se eleva. Marceline,
extenuada pela viagem, deitou-se logo que chegou. Eu esperava encontrar um hotel um
pouco mais confortável; nosso quarto é horroroso; a areia, o sol e as moscas
mancharam, sujaram, escureceram tudo. Quase em jejum desde a madrugada, faço
servir em seguida o jantar; tudo, porém, parece mau a Marceline e não consigo
convencê-la a tomar qualquer coisa. Trouxemos conosco um pouco de chá. Eu mesmo o
preparo, ridiculamente. Contentamo-nos com alguns doces secos e esse chá, ao qual a
água salgada da região deu um gosto detestável.
Por uma última aparência de virtude, fico até a noite junto dela. E, de repente, sinto-me
também sem forças. Oh, gosto de cinzas! Lassidão! Tristeza do esforço sobre-humano!
Ouso apenas olhá-la; sei muito bem que os meus olhos, em vez de buscarem os seus,
irão fixar-se terrivelmente nos buracos negros de suas narinas; a expressão do seu rosto
de doente é atroz. Ela também já não me olha. Sinto sua angústia, como se a tocasse.
Tosse muito; depois adormece. Às vezes, um brusco arrepio a sacode.
A noite pode ser má e, antes que seja muito tarde, quero saber a quem recorrer. Saio.
Diante da porta do hotel, a praça de Touggourt, as ruas, a própria atmosfera são
estranhas a ponto de me fazerem crer que não sou eu mesmo que as vejo. Depois de
alguns instantes, volto. Marceline dorme tranquilamente. Assustei-me sem razão; nessa
terra estranha, parece haver perigo em toda parte; é absurdo. E, tranquilizado, torno a
sair.
Estranha animação noturna na praça; circulação silenciosa; ronda clandestina de
albornozes brancos. O vento arranca, de vez em quando, pedaços de música estranha e
os traz não sei de onde. Alguém se aproxima de mim… É Moktir. Diz que me esperava
e que sabia que eu tornaria a sair. Ri. Ele conhece bem Touggourt, vem ali
frequentemente e sabe onde me leva. Deixo-me arrastar por ele.
Caminhamos dentro da noite; entramos num café mouro; é dali que vinha a música.
Mulheres árabes dançam — se se pode chamar dança esse monótono movimento. Uma
delas toma-me da mão; sigo-a; é a amante de Moktir; ele acompanha… Entramos os três
no quarto estreito e profundo onde o único móvel é uma cama… Uma cama muito
baixa sobre a qual a gente senta. Um coelho branco, fechado no quarto, se assusta a
princípio, depois se acostuma e vem comer na mão de Moktir. Trazem-nos café. Depois,
enquanto Moktir brinca com o coelho, a mulher me puxa para o seu lado e eu me
abandono a ela como quem se abandona ao sono…
Aqui eu poderia fingir ou me calar — mas que me importará esta história se deixar de
ser verdadeira? Volto sozinho ao hotel. Moktir passará a noite no café. É tarde. Sopra
um siroco árido; é um vento carregado de areia, e tórrido apesar de ser noite. Depois de
quatro passos, estou banhado de suor; mas sinto de repente uma grande pressa de
voltar, e volto quase correndo. Ela talvez esteja acordada… talvez tenha necessidade de
mim… Não; a janela do quarto está às escuras. Espero que o vento pare um instante
para abrir a porta; entro silenciosamente no escuro. — Que ruído é esse?… Não
reconheço sua tosse…
Acendo a luz. Marceline está meio sentada na cama; um dos seus magros braços, seguro
às grades do leito, conserva-lhe o corpo erguido; os lençóis, as mãos, a camisa estão
inundados de sangue; seu rosto está todo sujo; os olhos, horrivelmente dilatados; e
qualquer grito de agonia me assustaria menos que o seu silêncio… Procuro no seu rosto
molhado um lugar onde pousar meu beijo horrível; o gosto de seu suor fica em meus
lábios. Lavo e refresco a sua testa, as suas faces… Junto do leito, alguma coisa dura sob
o meu pé: abaixo-me e apanho o pequeno rosário que ela reclamara aquele dia em Paris,
e que deixou cair; ponho-o em sua mão aberta, mas a mão se inclina e o deixa cair
novamente. Não sei o que fazer; gostaria de pedir socorro… Sua mão se agarra a mim
desesperadamente, me retém; ah! pensará, acaso, que quero abandoná-la? Enfim me
diz:
— Podes esperar ainda. — Nota que quero falar: — Não me digas nada; tudo vai bem.
— Apanho de novo o rosário; ponho-o em sua mão, mas novamente ela o deixa cair.
Que digo? ela o faz cair. Ajoelho-me a seu lado e aperto sua mão contra mim.
Ela se deixa ficar, metade sobre o travesseiro e metade sobre o meu ombro, parece
dormir um pouco, mas seus olhos ficam abertos. Uma hora depois, ela se ergue; sua
mão larga as minhas, crispa-se contra a camisa e rasga-lhe as rendas. Está sufocando.
Quase ao amanhecer, um novo vômito de sangue…

Acabei de contar-lhes minha história. Que direi mais? O cemitério francês de Touggourt
é pavoroso, meio devorado pela areia… Empreguei o meu resto de vontade em arrancá-
la desse lugar de desdita. É em El Kantara que repousa, à sombra de um jardim fechado
que ela amava. Há apenas três meses que isso aconteceu. Esses três meses têm uma
distância de dez anos.
Michel ficou muito tempo em silêncio. Nós também nos calamos, presa cada um de um
mal-estar estranho. Parecia-nos que, depois de contá-la, Michel tinha tornado sua ação
mais legítima. Pelo fato de não podermos desaprová-la, na lenta explicação que ele nos
deu, nós nos sentíamos quase seus cúmplices. Estávamos como que comprometidos
nela. Terminara essa narrativa sem um tremor na voz, sem que uma inflexão nem um
gesto mostrasse que uma emoção o perturbava — ou porque pusesse um orgulho cínico
em não parecer comovido, ou porque temesse, por uma espécie de pudor, provocar
nossa emoção com suas lágrimas ou, finalmente, porque não estivesse emocionado. Até
agora, não distingo nele a parte de orgulho, de força, de frieza ou de pudor. Depois de
um instante, ele continuou:
O que me apavora, confesso, é ser ainda muito jovem. Parece-me, às vezes, que a minha
verdadeira vida ainda não começou. Arranquem-me daqui agora, e deem-me razões de
existir. Já não consigo encontrá-las. Libertei-me, é possível, mas que importa?… essa
liberdade sem emprego faz-me sofrer. Não que eu esteja cansado do meu crime, se
vocês querem chamá-lo assim — mas devo provar a mim mesmo que não ultrapassei o
meu direito.
Eu tinha, quando nos conhecemos, uma grande rigidez de pensamento, e sei que é isso
que faz os verdadeiros homens. Já não a tenho mais. Mas creio que a culpa é deste
clima. Nada desencoraja tanto o pensamento como esta persistência de azul. Aqui toda
pesquisa é impossível, tanto a volúpia acompanha de perto o desejo. Cercado de
esplendor e de morte, sinto a felicidade demasiado presente e a submissão a ela
demasiadamente uniforme. Deito-me no meio do dia para abreviar sua duração e sua
ociosidade insuportável. Tenho ali, reparem, seixos brancos que deixo de molho à
sombra, e conservo depois na mão até que a sua frescura desapareça. Então recomeço,
alternando os seixos, tornando a pôr de molho na água os que perderam a frialdade. O
tempo passa, e chega a noite… Arranquem-me daqui; não o posso fazer por mim
mesmo. Alguma coisa quebrou-se em minha vontade; não sei mesmo onde encontrei
forças para afastar-me de El Kantara. Às vezes, tenho medo de que aquilo que eu
suprimi se vingue. Desejaria recomeçar tudo. Desejaria desembaraçar-me do que resta
da minha fortuna; vejam: estas paredes ainda estão cobertas… Aqui vivo com quase
nada. Um taverneiro meio francês prepara-me um pouco de comida. O menino que
vocês viram fugir quando entravam é quem a traz de manhã e de noite, em troca de
alguns niqueis e de carícias. Esse pequeno que, diante dos estranhos, se torna selvagem,
é para mim manso e fiel como um cão. Sua irmã é uma Ouled-Naïl que, todos os
invernos, vai para Constantina, onde vende o corpo aos que passam. É muito bonita, e
eu consentia, nas primeiras semanas, que ela às vezes passasse a noite comigo. Mas uma
manhã, seu irmão o pequeno Ali, surpreendeu-nos deitados juntos. Ficou muito irritado
e não quis voltar durante cinco dias. Entretanto, não ignora como vive sua irmã; ele
mesmo me falava disso sem nenhum constrangimento… Será que estava com ciúmes?
De resto, o farsante conseguiu o que queria; pois, um pouco por tédio, um pouco pelo
receio de perdê-lo, depois desse incidente não me interessei mais pela rapariga. Ela não
se zangou; mas, cada vez que a encontro, ri e zomba de mim, dizendo que prefiro o
irmão a ela. Afirma que é por causa dele que ainda estou aqui. Talvez tenha um pouco
de razão…
ESTA OBRA FOI IMPRESSA NA
EDITORA VOZES LTDA., PARA A
EDITORA NOVA FRONTEIRA S.A.,
EM NOVEMBRO DE
MIL NOVECENTOS E OITENTA E TRÊS.
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