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O

PAI GORIOT
HONORÉ DE BALZAC nasceu em Tours em 1799, filho de um funcionário público. Passou quase seis
anos interno em um colégio de Vendôme, depois se fixou em Paris, onde exerceu a função de estagiário em
um escritório de advocacia e, posteriormente, de escritor freelance . Entre 1820 e 1824, adotando diversos
pseudônimos, escreveu alguns romances, boa parte deles em colaboração, e, a seguir, tentou inutilmente a
sorte na atividade de editor, impressor e tipógrafo. Aos trinta anos, muito endividado, retomou a literatura
com grande empenho e escreveu o primeiro romance publicado em seu nome, A Bretanha . Nos vinte anos
seguintes, escreveu cerca de noventa romances e contos, entre os quais muitas obras-primas que receberam
o nome abrangente de A comédia humana . Como disse o próprio Balzac: “O que ele [Napoleão] não
conseguiu concluir com a espada, eu o realizarei com a pena”. Ele faleceu em 1850, alguns meses depois de
se casar com Evelina Hanska, a condessa polonesa com quem manteve relações durante dezoito anos.
ROSA FREIRE D’AGUIAR nasceu no Rio de Janeiro. Formou-se em jornalismo pela PUC do Rio de
Janeiro e nos anos 1970 e 1980 foi correspondente em Paris das revistas Manchete e IstoÉ e do Jornal da
República . Em 1986 retornou ao Brasil e desde então trabalha no mercado editorial. Traduziu do francês,
espanhol e italiano cerca de cem títulos nas áreas de literatura e ciências humanas, de autores como Céline,
Lévi-Strauss, Sabato, Balzac, Montaigne e Stendhal. É autora de Memória de tradutora (2004) e editora da
coleção Arquivos Celso Furtado (Contraponto/ Centro Celso Furtado), na qual já publicou cinco títulos.
Entre os prêmios que recebeu estão o da União Latina de Tradução Técnica e Científica (2001) por O
universo, os deuses, os homens , de Jean-Pierre Vernant, e o Jabuti (2009) por A elegância do ouriço , de
Muriel Barbery, ambos da Companhia das Letras. É presidente do Conselho Deliberativo do Centro
Internacional Celso Furtado.
HONORÉ
DE BALZAC
O pai Goriot
Tradução de
ROSA FREIRE D'AGUIAR
Sumário

Prefácio da segunda edição Werdet (1835) —


Honoré de Balzac
O PAI GORIOT
Notas
Cronologia
Outras leituras
Prefácio da segunda edição Werdet
(1835)

HONORÉ DE BALZAC

Desde sua reimpressão em forma de livro, o que na lógica do livreiro constituiu


uma segunda edição, O pai Goriot é alvo da censura imperial de Sua Majestade
o Jornal, esse autocrata do século XIX , que pontifica acima dos reis, lhes dá
opiniões, os faz, os desfaz; e que, de vez em quando, é obrigado a vigiar a moral
desde que suprimiu a religião de Estado. O autor bem sabia que estava no
destino do pai 1 Goriot sofrer durante sua vida literária, assim como tinha sofrido
durante sua vida real. Pobre homem! Suas filhas não queriam reconhecê-lo
porque ele não tinha fortuna; e as folhas públicas também o renegaram, a
pretexto de que ele era imoral. Como um autor não tentaria se livrar do San
Benito com que a santa ou a maldita inquisição o cobre ao lhe atirar na cara a
palavra “imoralidade”? 2 Se os quadros desenhados pelo autor eram falsos, a
crítica o teria recriminado dizendo-lhe que ele caluniava a sociedade moderna; se
a crítica os considera verdadeiros, não é sua obra que é imoral. O pai Goriot não
foi suficientemente compreendido, embora o autor tenha tido o cuidado de
explicar como o homem estava revoltado contra as leis sociais, por ignorância e
por sentimento, assim como Vautrin está, por sua força desconhecida e pelo
instinto de seu caráter. O autor riu muito ao ver certas pessoas, obrigadas a
entender o que criticavam, desejarem que o pai Goriot tivesse o sentimento das
conveniências, ele, esse Illinois da farinha, esse Hurão da Halle-aux-blés. Por
que não o criticaram por não conhecer Voltaire nem Rousseau, por ignorar o
código dos salões e a língua francesa? O pai Goriot é como o cão do assassino,
que lambe a mão do dono quando ela está manchada de sangue; ele não discute,
ele não julga, ele ama. O pai Goriot engraxaria, como diz, as botas de Rastignac
para se aproximar da filha. Quer ir assaltar o Banco de França quando elas não
têm dinheiro, então não ficaria furioso com seus genros que não as fazem
felizes? Ama Rastignac porque sua filha o ama. Que todos olhem em torno de si
e queiram ser sinceros: quantos pais Goriot de saias não veriam? Ora, o
sentimento do pai Goriot implica a maternidade. Mas essas explicações são
quase inúteis. Os que gritam contra esta obra a justificariam admiravelmente
bem se a tivessem feito! Aliás, o autor não é, de caso pensado, moral ou imoral,
para empregar os termos falsos de que se servem. O plano geral que liga suas
obras umas às outras, e que um de seus amigos, o sr. Félix Davin, recentemente
expôs, obriga-o a pintar tudo: tanto o pai Goriot como a Marana, Bartholomeo di
Piombo como a viúva Crochard, o marquês de Léganès como Cambremer,
Ferragus como o sr. de Fontaine, enfim, captar a paternidade em todas as dobras
de seu coração, pintá-la por inteiro, 3 assim como ele tenta representar os
sentimentos humanos, as crises sociais, o mal e o bem, toda a mistura da
civilização.
Se certos jornais arrasaram com o autor, há outros que o defenderam. Vivendo
solitário, preocupado com seus trabalhos, ele não pôde agradecer as pessoas a
quem é mais devedor ainda porque são companheiros que tinham, para criticá-lo,
os direitos do talento e de uma antiga amizade, mas ele lhes agradece
coletivamente por seus úteis auxílios.
As pessoas apaixonadas pela moral, que levaram a sério a promessa que, no
prefácio anterior, o autor fez de retratar uma mulher completamente virtuosa,
ficarão sabendo, talvez com satisfação, que neste momento o quadro está sendo
envernizado, a moldura está sendo bronzeada, enfim, que sem metáfora essa
obra dificultosa intitulada O lírio no vale será publicada numa de nossas revistas.
4

Meudon, 1o de maio de 1835.


O pai Goriot
Ao grande e ilustre Geoffroy Saint-Hilaire,
como testemunho de admiração por
seus trabalhos e seu gênio.
DE BALZAC
A sra. Vauquer, em solteira De Conflans, é uma senhora de idade que há
quarenta anos mantém em Paris uma pensão burguesa instalada na Rue Neuve-
Sainte-Geneviève, entre o Quartier Latin e o Faubourg Saint-Marceau. Essa
pensão, conhecida pelo nome de Casa Vauquer, admite igualmente homens e
mulheres, moços e velhos, sem que nunca a maledicência tenha atacado os
costumes desse respeitável estabelecimento. Mas, também, há trinta anos nunca
se viu um jovem por lá, e para que um rapaz more ali sua família deve lhe dar
uma mesada muito magra. No entanto, em 1819, época em que começa este
drama, ali vivia uma pobre moça. Seja qual for o descrédito em que tenha caído
a palavra “drama” pela maneira abusiva e torturante como foi atacada nestes
tempos de dolorosa literatura, é necessário empregá-la aqui: não que esta história
seja dramática no verdadeiro sentido da palavra; mas, concluída a obra, talvez se
terão derramado algumas lágrimas intra e extramuros . Será ela compreendida
fora de Paris? A dúvida é legítima. As peculiaridades desta cena cheia de
observações e cores locais só podem ser aprecidadas entre as colinas de
Montmartre e as alturas de Montrouge, neste ilustre vale de escombros
incessantemente prestes a desabar e de riachos negros de lama; vale repleto de
sofrimentos reais, de alegrias volta e meia falsas, e tão terrivelmente agitado que
se precisa um não sei que de exorbitante para produzir uma sensação de certa
permanência. Porém, aí se encontram, aqui e acolá, dores que pelo amontoado
dos vícios e virtudes tornam-se grandes e solenes: diante de seu aspecto, os
egoísmos e interesses se detêm e se apiedam; mas a impressão que recolhem é
como um fruto saboroso prontamente devorado. O carro da civilização,
semelhante ao do ídolo de Jaggernaut, 1 apenas retardado por um coração mais
difícil de esmagar que os outros e que atravanca a sua roda, logo o quebrou e
prossegue sua marcha gloriosa. Assim farão vocês, vocês que seguram com a
mão branca este livro, vocês que se afundam numa poltrona macia pensando:
“Talvez isto vá me divertir”. Depois de terem lido os secretos infortúnios do pai
Goriot, jantarão com apetite imputando a própria insensibilidade ao autor,
tachando-o de exagero, acusando-o de poesia. Ah! saibam: este drama não é uma
ficção, nem um romance. All is true , ele é tão verdadeiro que todos podem
reconhecer esses elementos em si mesmos, em seu coração talvez!
A casa onde se explora a pensão burguesa pertence à sra. Vauquer. Situa-se na
parte baixa da Rue Neuve-Sainte-Geneviève, no lugar onde o terreno desce em
direção à Rue de l’Arbalète por uma ladeira tão íngreme e tão difícil que
raramente os cavalos a sobem ou descem. Essa circunstância é favorável ao
silêncio que reina nessas ruas apertadas entre a cúpula do Val-de-Grâce e a
cúpula do Panthéon, dois monumentos que mudam as condições da atmosfera,
nela lançando tons amarelados e tudo escurecendo com as tonalidades severas
que suas cúpulas projetam. Ali os calçamentos são secos, os riachos não têm
lama nem água, o mato cresce ao longo dos muros. Ali o homem mais
indiferente se entristece, como todos os passantes, o barulho de um carro torna-
se um acontecimento, as casas são sombrias, os muros cheiram a prisão. Ali um
parisiense perdido só enxergaria pensões burguesas ou instituições, 2 miséria ou
tédio, velhice que morre, alegre juventude obrigada a trabalhar. Nenhum bairro
de Paris é mais horrível, nem, digamo-lo, mais desconhecido. A Rue Neuve-
Sainte-Geneviève é, sobretudo, como uma moldura de bronze, a única que
convém a este relato, para o qual não se deveria preparar demais o espírito com
cores escuras, com ideias graves; assim como, de degrau em degrau, o dia
declina e o canto do condutor se acentua quando o viajante desce às Catacumbas.
3 Comparação verdadeira! Quem decidirá o que é mais horrível ver, corações
ressecados ou crânios vazios?
A fachada da pensão dá para um jardinzinho, de modo que a casa cai em
ângulo reto na Rue Neuve-Sainte-Geneviève, onde a vemos cortada em sua
profundidade. Ao longo dessa fachada, entre a casa e o jardinzinho, reina um
círculo de cascalhos com dois metros de largura, diante do qual há uma alameda
arenosa margeada de gerânios, louros-rosa e romãzeiras plantados em grandes
vasos de porcelana azul e branca. Entra-se nessa alameda por uma porta
secundária, tendo ao alto uma tabuleta em que está escrito: CASA VAUQUER , e
embaixo: Pensão burguesa para os dois sexos e outros . 4 Durante o dia, uma
porta com postigo, armada com uma sineta estridente, deixa perceber no final da
calçadinha, no muro oposto à rua, uma arcada pintada em mármore verde por um
artista do bairro. No vão simulado por essa pintura, eleva-se uma estátua que
representa o Amor. Ao verem o verniz descascado que a cobre, os amantes de
símbolos descobririam talvez um mito do amor parisiense que é curado a poucos
passos dali. 5 Sob o pedestal, esta inscrição meio apagada lembra o tempo de que
data o ornamento, graças ao entusiasmo demonstrado por Voltaire, que retornou
a Paris em 1777:
Quem quer que sejas, eis teu mestre:
Ele o é, o foi ou deve sê-lo. 6

Ao cair a noite, a porta de postigo é substituída por uma porta maciça. O


jardinzinho, tão largo quanto o comprimento da fachada, fica encravado entre o
muro da rua e a parede-meia da casa vizinha, ao longo da qual pende um manto
de hera que a esconde inteiramente e atrai os olhos dos passantes por um efeito
pitoresco em Paris. Cada um desses muros é forrado de latadas e vinhas cujas
frutificações frágeis e poeirentas são alvo dos temores anuais da sra. Vauquer e
de suas conversas com os pensionistas. Ao longo de cada muro reina uma
estreita aleia que leva a uma sombra de tílias, palavra que a sra. Vauquer,
embora nascida De Conflans, pronuncia obstinadamente tílhias , apesar das
observações gramaticais de seus hóspedes. Entre as duas aleias laterais há um
canteiro de alcachofras ladeado de árvores frutíferas podadas em forma de roca,
e margeado de azedinha, alface e salsinha. Sob o abrigo de tílias está fincada
uma mesa redonda pintada de verde e cercada de cadeiras. Ali, nos dias
caniculares, os convivas bastante ricos para se permitirem tomar café vão
saboreá-lo num calor capaz de fazer os ovos serem chocados. A fachada, com a
altura de três andares e dominada pelas mansardas, é de pedras e pintada dessa
cor amarela que dá um aspecto ignóbil a quase todas as casas de Paris. As cinco
janelas abertas em cada andar têm pequenas vidraças e são guarnecidas de
gelosias, nenhuma delas estando levantada da mesma maneira, de modo que
todas as suas linhas discordam entre si. A profundidade dessa casa comporta
duas janelas que, no térreo, têm como ornamento barras de ferro gradeadas.
Atrás da construção há um quintal com cerca de seis metros de largura, onde
vivem em paz porcos, galinhas, coelhos, e no fundo do qual se ergue um telheiro
para se serrar madeira. Entre esse telheiro e a janela da cozinha está suspenso o
guarda-comida, abaixo do qual caem as águas gordurosas da pia. Esse quintal
tem, dando para a Rue Neuve-Sainte-Geneviève, uma porta estreita por onde a
cozinheira joga o lixo da casa, limpando essa cloaca com muita água, sob pena
de pestilência.
Naturalmente destinado à exploração da pensão burguesa, o térreo se compõe
de um primeiro aposento iluminado pelas duas janelas da rua, e no qual se entra
por uma porta-janela. Esse salão se comunica com uma sala de jantar que é
separada da cozinha pelo vão de uma escada cujos degraus são de madeira e
ladrilhos pintados e esfregados. Nada é mais triste de ver do que esse salão
mobiliado com poltronas e cadeiras estofadas de crina com listas alternadas
foscas e brilhantes. No meio há uma mesa redonda com tampo de mármore
Sainte-Anne, enfeitada com uma licoreira de porcelana branca ornamentada de
filetes de ouro semiapagados, que hoje se encontra por toda parte. Essa sala,
bastante mal assoalhada, é coberta de lambris até a altura do parapeito. O resto
das paredes é forrado com um papel envernizado representando as principais
cenas de Telêmaco , e cujos personagens clássicos são coloridos. O painel entre
as janelas gradeadas oferece aos pensionistas o quadro do festim organizado por
Calipso para o filho de Ulisses. Há quarenta anos essa pintura provoca as
brincadeiras dos jovens pensionistas, que se creem superiores à sua posição
zombando do jantar a que a miséria os condena. A lareira de pedra, cuja fornalha
sempre limpa atesta que ali só se faz fogo nas grandes ocasiões, é enfeitada com
dois vasos cheios de flores artificiais, envelhecidas e enjauladas, que
acompanham um relógio de mármore azulado do pior mau gosto. Esse primeiro
aposento exala um cheiro sem nome no idioma, e que se deveria chamar de odor
de pensão . Cheira a abafado, a mofo, a rançoso; dá frio, é úmido para o nariz,
penetra nas roupas; tem gosto de uma sala onde se jantou; fede a serviço, a copa,
a hospital. Talvez pudesse ser descrito caso se inventasse um processo para
avaliar as quantidades elementares e nauseabundas ali jogadas pelas atmosferas
catarrais e sui generis de cada pensionista, jovem ou velho. Pois bem! Apesar
desses horrores banais, se vocês o comparassem com a sala de jantar, que é
contígua, achariam esse salão elegante e perfumado como deve ser um budoar.
Essa sala inteiramente forrada de madeira foi outrora pintada numa cor hoje
indefinida, que forma um fundo sobre o qual a sujeira imprimiu suas camadas de
modo a desenhar figuras esquisitas. Está tomada por aparadores pegajosos sobre
os quais há garrafas bisotadas, manchadas, argolas metálicas furta-cores, pilhas
de pratos de porcelana grossa de beiras azuis, fabricados em Tournai. Num canto
está colocada uma caixa de escaninhos numerados que serve para guardar os
guardanapos, manchados ou sujos de vinho, de cada pensionista. Lá se
encontram esses móveis indestrutíveis, proscritos em qualquer lugar, mas postos
ali como o são os detritos da civilização nos Incurables. 7 Ali vocês veriam um
barômetro com um capuchinho que sai quando chove, gravuras execráveis que
tiram o apetite, todas emolduradas em madeira preta envernizada com filetes
dourados; um relógio de parede de tartaruga incrustada de cobre; uma estufa
verde, lâmpadas de Argand onde a poeira se mistura com o óleo, uma mesa
comprida coberta por um oleado suficientemente engordurado para que um
engraçadinho, pensionista externo, escrevesse seu nome servindo-se do dedo
como pena, cadeiras estropiadas, pequenos capachos vergonhosos de esparto que
esfiapa mas nunca se solta, e também escalfetas miseráveis com orifícios
quebrados, dobradiças desconjuntadas, em que a lenha carboniza. Para explicar
como esse mobiliário é velho, rachado, podre, bambo, roído, desastrado, zarolho,
inválido, moribundo, seria preciso fazer uma descrição que atrasaria demais o
interesse desta história, e que as pessoas apressadas não perdoariam. O piso
vermelho é cheio de vales produzidos pela esfregação ou pelas camadas de cor.
Em suma, ali reina a miséria sem poesia; uma miséria poupada, concentrada,
surrada. Se ainda não tem lama, tem manchas; se não tem buracos nem andrajos,
cairá na podridão.
Esse cômodo está em todo o seu esplendor quando, cerca de sete da manhã, o
gato da sra. Vauquer precede sua dona, salta sobre os aparadores, fareja o leite
contido em várias tigelas cobertas por pratos e faz ouvir seu ronrom matinal.
Logo a viúva se mostra, ataviada com sua touca de tule, sob a qual pende um
tufo de cabelo postiço malposto, e anda arrastando seus chinelos enrugados. Sua
cara velhusca, gorducha, do meio da qual sai um nariz em bico de papagaio, suas
mãozinhas rechonchudas, sua pessoa roliça como um rato de igreja, seu corpete
muito apertado e desalinhado estão em harmonia com a sala que destila
infelicidade, em que se esconde a especulação, e cujo ar ardorosamente fétido a
sra. Vanquer respira sem sentir enjoo. Seu rosto fresco como uma primeira geada
de outono, seus olhos enrugados, cuja expressão passa do sorriso prescrito às
dançarinas à amarga carranca do agiota, enfim toda a sua pessoa explica a
pensão, assim como a pensão implica sua pessoa. A prisão para os forçados não
existe sem o comitre, não se imaginaria um sem o outro. A corpulência
macilenta dessa mulherzinha é produto dessa vida, assim como o tifo é
consequência das exalações de um hospital. Sua anágua de lã tricotada, que fica
aparecendo sob sua primeira saia feita com um vestido velho, e cujo acolchoado
escapa pelas brechas do pano rasgado, resume o salão, a sala de jantar, o
jardinzinho, prenuncia a cozinha e faz pressentir os pensionistas. Quando ela
está ali, o espetáculo está completo. Tendo cerca de cinquenta anos, a sra.
Vauquer se parece com todas as mulheres que conheceram desgraças . Tem os
olhos baços, o ar inocente de uma alcoviteira que vai intimidar para cobrar mais,
mas que, aliás, está disposta a tudo para amenizar seu destino, a entregar
Georges ou Pichegru, se Georges ou Pichegru ainda precisassem ser entregues. 8
No entanto, ela é no fundo boa mulher , dizem os pensionistas, que a imaginam
sem fortuna ao ouvi-la gemer e tossir como eles. Quem havia sido o sr.
Vauquer? Ela jamais se explicava sobre o falecido. Como ele perdera sua
fortuna? Nas desgraças, ela respondia. Comportara-se mal com ela, só lhe
deixara os olhos para chorar, aquela casa para viver e o direito de não se condoer
de nenhum infortúnio, porque, dizia, sofrera tudo o que é possível sofrer. Ao
ouvir a patroa dando seus passinhos, Sylvie, a cozinheira, tratava de servir o café
da manhã aos pensionistas internos.
Geralmente os pensionistas de fora só pagavam pelo jantar, que custava trinta
francos por mês. Na época em que esta história começa, os internos eram sete. O
primeiro andar continha os dois melhores apartamentos da casa. A sra. Vauquer
morava no mais modesto, e o outro pertencia à sra. Couture, viúva de um fiscal
de renda da República francesa. Morava com ela uma mocinha bem jovem,
chamada Victorine Taillefer, a quem ela servia de mãe. A pensão dessas duas
damas chegava a mil e oitocentos francos. Os dois apartamentos do segundo
eram ocupados, um por um velho chamado Poiret; o outro por um homem de
cerca de quarenta anos, que usava uma peruca preta, pintava as suíças, dizia ser
ex-comerciante e se chamava sr. Vautrin. O terceiro andar se compunha de
quatro quartos, dos quais dois estavam alugados, um por uma solteirona
chamada srta. Michonneau; o outro por um antigo fabricante de aletrias, de
massas da Itália e de amido, que se deixava chamar pai Goriot. Os dois outros
quartos estavam destinados às aves de arribação, esses estudantes desafortunados
que, como o pai Goriot e a srta. Michonneau, só podiam pôr quarenta e cinco
francos por mês na alimentação e na moradia; mas a sra. Vauquer não desejava
muito a presença deles e só os aceitava quando não encontrava nada melhor:
comiam pão demais. Nesse momento, um dos dois quartos pertencia a um rapaz
vindo dos arredores de Angoulême para Paris, a fim de estudar direito, e cuja
família numerosa se submetia às mais duras privações para lhe enviar mil e
duzentos francos por ano. Eugène de Rastignac, assim se chamava, era um
desses jovens moldados no trabalho pelo infortúnio, que compreendem desde a
tenra idade as esperanças que os pais depositam neles e que se preparam para um
belo destino já calculando o alcance de seus estudos e adaptando-os de antemão
ao movimento futuro da sociedade, para serem os primeiros a esmagá-la. Sem
suas observações curiosas e a habilidade com que ele soube se comportar nos
salões de Paris, este relato não teria se colorido dos tons verdadeiros que, com
certeza, deverá a seu espírito sagaz e a seu desejo de penetrar nos mistérios de
uma situação pavorosa, tão cuidadosamente escondida pelos que a haviam criado
quanto por quem a sofria.
Acima desse terceiro andar havia um sótão para pendurar a roupa e duas
mansardas em que dormiam um criado para o serviço pesado, Christophe, e a
gorda Sylvie, a cozinheira. Além dos sete pensionistas internos, a sra. Vauquer
tinha, dependendo do ano, oito estudantes de direito ou de medicina, e dois ou
três frequentadores assíduos que moravam no bairro, todos pagando só o jantar.
A sala recebia para jantar dezoito pessoas e podiam caber umas vinte; mas na
parte da manhã ali só havia sete inquilinos, cuja reunião oferecia, durante o
almoço, o aspecto de uma refeição de família. Todos desciam de chinelos,
permitiam-se observações confidenciais sobre a roupa ou a aparência dos
pensionistas externos, e sobre os acontecimentos da noite anterior, expressando-
se com a confiança da intimidade. Esses sete pensionistas eram os filhinhos
mimados da sra. Vauquer, que lhes dispensava com uma precisão de astrônomo
cuidados e atenções, de acordo com o montante de suas pensões. Idêntica
consideração afetava aquelas criaturas reunidas pelo acaso. Os dois inquilinos do
segundo pagavam apenas setenta e dois francos por mês. Esse preço em conta,
que só se acha no Faubourg Saint-Marcel, entre a Bourbe e a Salpêtrière, e do
qual a sra. Couture era a única exceção, anunciava que esses pensionistas deviam
estar sob o peso de desgraças mais ou menos aparentes. Assim, o espetáculo
desolador apresentado dentro daquela casa se repetia no vestuário de seus
frequentadores, igualmente deteriorados. Os homens usavam sobrecasacas cuja
cor se tornara problemática, sapatos como os que são jogados nas esquinas dos
bairros elegantes, camisas puídas, roupas que não tinham mais que a alma. As
mulheres usavam vestidos antiquados, retingidos, desbotados, velhas rendas
remendadas, luvas lustrosas pelo uso, golas bordadas sempre encardidas e lenços
esgarçados. Se essas eram as roupas, quase todos mostravam corpos solidamente
robustos, compleições que haviam resistido às tempestades da vida, faces frias,
duras, apagadas como as dos escudos fora de circulação. As bocas enrugadas
eram armadas de dentes ávidos. Esses pensionistas faziam pressentir dramas
concluídos ou em ação; não esses dramas representados às luzes da ribalta, entre
telas pintadas, mas dramas vivos e mudos, dramas gélidos que remexiam
ardorosamente o coração, dramas contínuos.
A velha srta. Michonneau mantinha sobre seus olhos cansados uma viseira de
tafetá verde rodeada por um fio de arame que teria assustado um anjo da
Misericórdia. Seu xale de franjas mirradas e chorosas parecia cobrir um
esqueleto, de tão angulosas eram as formas que escondia. Que ácido despojara
essa criatura de suas fortunas femininas? Devia ter sido bonita e bem-feita: seria
o vício, a tristeza, a cupidez? Teria amado demais, teria sido vendedora de
roupas usadas, ou somente cortesã? Expiava, por uma velhice da qual os
passantes fugiam, os triunfos de uma juventude insolente ao encontro da qual
tinham se precipitado os prazeres? Seu olhar branco dava frio, sua figura
franzina ameaçava. Tinha a voz estridente de uma cigarra gritando no arbusto à
chegada do inverno. Dizia ter cuidado de um velho atacado por um catarro na
bexiga e abandonado pelos filhos, que o imaginaram sem recursos. Esse velho
lhe legara mil francos de renda vitalícia, periodicamente disputados pelos
herdeiros, de cujas calúnias era alvo. Embora o jogo das paixões tivesse
devastado seu rosto, ainda se viam certos vestígios de uma brancura e de uma
delicadeza no tecido que permitiam supor que o corpo conservasse alguns restos
de beleza.
O sr. Poiret era uma espécie de máquina. Avistando-o estender-se como uma
sombra cinza ao longo de uma alameda do Jardin des Plantes, a cabeça coberta
por um velho boné mole, mal segurando na mão a bengala com cabo de marfim
amarelado, deixando flutuar as abas murchas de sua sobrecasaca que escondia
mal uma calça quase vazia, e pernas com meias azuis que cambaleavam como as
de um homem embriagado, mostrando seu colete branco sujo e seu jabô de
musseline grosseira amarrotada que se unia de modo imperfeito à gravata
amarrada em volta de seu pescoço de peru, muita gente se perguntava se aquela
sombra chinesa pertencia à raça audaciosa dos filhos de Jafé 9 que borboleteiam
pelo Boulevard Italien. Que trabalho pudera encarquilhá-lo assim? Que paixão
deixara cor de bistre sua face bulbosa, que, desenhada como caricatura, teria
parecido irreal? O que havia ele sido? Mas talvez tivesse sido funcionário do
Ministério da Justiça, na seção para onde os carrascos enviam seus relatórios de
despesas, a conta do fornecimento de véus negros para os parricidas, de farelo
para as cestas, de cordas para as lâminas. 10 Talvez tivesse sido recebedor na
porta de um matadouro, ou subinspetor de salubridade. Enfim, aquele homem
parecia ter sido um dos asnos de nosso grande moinho social, um desses Ratons
parisienses que nem sequer conhecem seus Bertrands, 11 algum pivô em torno de
quem tinham girado os infortúnios ou as sujeiras públicas, enfim um desses
homens de quem dizemos, ao vê-los: No entanto, é preciso gente assim. A bela
Paris ignora essas figuras pálidas de sofrimentos morais ou físicos. Mas Paris é
um verdadeiro oceano. Joguem a sonda, jamais conhecerão sua profundidade.
Percorram-no, descrevam-no! Por mais cuidado que ponham em percorrê-lo, em
descrevê-lo; por mais numerosos e interessados que sejam os exploradores desse
mar, sempre se encontrará um lugar virgem, um antro desconhecido, flores,
pérolas, monstros, alguma coisa de inaudito, esquecido pelos mergulhadores
literários. A Casa Vauquer é uma dessas monstruosidades curiosas.
Duas figuras formavam ali um contraste surpreendente com a massa dos
pensionistas e dos frequentadores. Embora a srta. Victorine Taillefer tivesse uma
palidez doentia parecida com a das moças atacadas de anemia clorótica, e se
ligasse ao sofrimento geral que formava o fundo desse quadro por uma tristeza
habitual, por um jeito encabulado, por um ar pobre e frágil, seu rosto, porém,
não era velho, seus movimentos e sua voz eram ágeis. Essa infelicidade jovem
parecia um arbusto de folhas amareladas, recém-plantado em terreno inóspito.
Sua fisionomia arruivada, seus cabelos de um louro fulvo, seu corpo magro
demais expressavam essa graça que os poetas modernos encontravam nas
estatuetas da Idade Média. Seus olhos cinzentos mesclados de negro
expressavam uma doçura, uma resignação cristãs. Suas roupas simples, baratas,
traíam formas jovens. Era bonita por justaposição. Feliz, teria sido deslumbrante:
a felicidade é a poesia das mulheres, assim como a toalete é a maquiagem. Se a
alegria de um baile tivesse refletido suas cores rosadas sobre aquele rosto pálido;
se as doçuras de uma vida elegante tivessem preenchido, tivessem avermelhado
aquelas faces já levemente encovadas; se o amor tivesse reanimado aqueles
olhos tristes, Victorine poderia ter lutado com as mais belas moças. Faltava-lhe o
que cria uma segunda vez a mulher, as roupas e adereços, e as cartas de amor.
Sua história forneceria o assunto de um livro. Seu pai acreditava ter razões para
não reconhecê-la, recusava mantê-la perto de si, só lhe concedia cem francos por
ano, e alterara sua fortuna a fim de poder transmiti-la inteiramente a seu filho.
Parente afastada da mãe de Victorine, que outrora fora morrer de desespero na
casa dela, a sra. Couture tomava conta da órfã como de sua própria filha.
Infelizmente a viúva do fiscal de renda das Forças Armadas da República não
possuía nada no mundo além de um usufruto sobre a partilha do marido, e de sua
pensão; um dia poderia deixar essa pobre moça, sem experiência e sem recursos,
à mercê do mundo. A boa mulher levava Victorine à missa todo domingo, à
confissão a cada quinze dias, a fim de torná-la, para qualquer eventualidade, uma
moça devota. Tinha razão. Os sentimentos religiosos ofereciam um futuro àquela
criança renegada, que amava o pai, que todos os anos se encaminhava à casa
dele para levar-lhe o perdão de sua mãe; mas que, todos os anos, topava
inexoravelmente com a porta fechada da casa paterna. Seu irmão, seu único
mediador, não fora vê-la uma só vez em quatro anos, e não lhe enviava nenhuma
ajuda. Ela implorava a Deus que abrisse os olhos do pai, que enternecesse o
coração do irmão, e rezava por eles sem acusá-los. A sra. Couture e a sra.
Vauquer não encontravam palavras suficientes no dicionário de injúrias para
qualificar esse comportamento bárbaro. Quando amaldiçoavam aquele
milionário infame, Victorine deixava ouvir palavras doces, semelhantes ao canto
do torcaz ferido, cujo grito de dor ainda exprime amor.
Eugène de Rastignac tinha um rosto todo meridional, a tez branca, cabelos
pretos, olhos azuis. Sua presença, suas maneiras, sua pose habitual denotavam o
filho de uma família nobre, em que a primeira educação comportara apenas
tradições de bom gosto. Se era econômico em seus trajes, se nos dias correntes
acabava de gastar as roupas do ano anterior, às vezes podia, porém, sair vestido
como se veste um rapaz elegante. Via de regra usava uma velha sobrecasaca, um
colete ordinário, a feia gravata preta, amassada, mal amarrada do estudante,
umas calças do mesmo tipo e botas com meias-solas.
Entre esses dois personagens e os outros, Vautrin, o homem de quarenta anos,
de suíças pintadas, servia de transição. Era uma dessas pessoas de quem o povo
diz: “Esse aí está vendendo saúde!”. Tinha os ombros largos, o busto bem
desenvolvido, os músculos aparentes, mãos grossas, quadradas e fortemente
marcadas nas falanges por tufos de pelos cerrados e de um ruivo ardente. Seu
rosto, riscado por rugas prematuras, oferecia sinais de dureza que suas maneiras
ágeis e afáveis desmentiam. Sua voz de baixo, em harmonia com a imensa
alegria, não desagradava. Era prestativo e divertido. Se alguma fechadura
funcionava mal, logo a desmontava, consertava, lubrificava, limava, remontava,
dizendo: “Isso eu conheço”. Conhecia tudo, aliás, os navios, o mar, a França, o
estrangeiro, os negócios, os homens, os acontecimentos, as leis, os hotéis e as
prisões. Se alguém se queixava demais, logo lhe oferecia seus serviços. Várias
vezes emprestou dinheiro à sra. Vauquer e a alguns pensionistas; mas seus
devedores prefeririam morrer a não lhe pagar, de tanto medo instilava, apesar de
seu ar bondoso, por um certo olhar profundo e cheio de resolução. Pelo modo
como lançava um jato de saliva, anunciava um sangue-frio imperturbável que
não devia fazê-lo recuar diante de um crime para sair de uma posição ambígua.
Como um juiz severo, seu olhar parecia ir ao fundo de todas as questões, de
todas as consciências, de todos os sentimentos. Seus costumes consistiam em
sair depois do almoço, em voltar para jantar, em sumir por toda a noite e retornar
cerca de meia-noite, com a ajuda de uma chave mestra que a sra. Vauquer lhe
entregara. Só ele gozava desse privilégio. Mas, também, dava-se
maravilhosamente bem com a viúva, a quem chamava de mamãe agarrando-a
pela cintura, afago pouco entendido! A boa mulher acreditava que a coisa ainda
era fácil, ao passo que só Vautrin tinha os braços compridos o suficiente para
apertar aquela pesada circunferência. Um traço de sua personalidade era pagar
generosamente quinze francos por mês pelo gloria 12 que tomava à sobremesa.
Gente menos superficial do que eram aqueles jovens levados pelos turbilhões da
vida parisiense ou aqueles velhotes indiferentes ao que não os tocava
diretamente não teriam se detido na impressão duvidosa que Vautrin lhes
causava. Ele sabia ou adivinhava os negócios dos que o cercavam, ao passo que
ninguém podia penetrar em seus pensamentos nem em suas ocupações. Embora
tivesse erguido sua aparente bonomia, sua constante condescendência e sua
alegria como uma barreira entre os outros e ele, vez por outra deixava ser
desvendada a terrível profundidade de seu caráter. Volta e meia uma tirada digna
de Juvenal, e com a qual parecia se satisfazer em ridicularizar as leis, fustigar a
alta sociedade, convencê-la de ser inconsequente consigo mesma, deixava supor
que ele tinha rancor do estado social e que havia, no fundo de sua vida, um
mistério cuidadosamente escondido.
Atraída, talvez sem saber, pela força de um ou pela beleza do outro, a srta.
Taillefer dividia seus olhares furtivos e seus pensamentos secretos entre esse
quarentão e o jovem estudante; mas nenhum deles parecia pensar nela, se bem
que, de um dia para o outro, o acaso pudesse mudar sua situação e torná-la um
rico partido. Aliás, nenhuma daquelas pessoas se dava ao trabalho de verificar se
os infortúnios alegados por uma delas eram falsos ou verdadeiros. Todas tinham
umas pelas outras uma indiferença mesclada de desconfiança que resultava de
suas situações respectivas. Sabiam-se impotentes para aliviar seus sofrimentos, e
todas, ao contá-los, haviam esgotado o cálice das condolências. Semelhantes a
velhos cônjuges, já não tinham nada a se dizer. Portanto, só restavam entre elas
relações de uma vida mecânica, o jogo de engrenagens sem óleo. Todas deviam
passar direto na rua por um cego, escutar sem emoção o relato de um infortúnio
e ver na morte a solução de um problema de miséria que as tornava frias à mais
terrível agonia. A mais feliz dessas almas desconsoladas era a sra. Vauquer, que
reinava naquele hospital livre. Só para ela aquele jardinzinho, que o silêncio e o
frio, a secura e a umidade tornavam vasto como uma estepe, era um bosquezinho
aprazível. Só para ela a casa amarela e sombria, que cheirava a azinhavre de
balcão, tinha suas delícias. As celas lhe pertenciam. Ela alimentava aqueles
forçados condenados a penas perpétuas exercendo sobre eles uma autoridade
respeitada. Onde aquelas pobres criaturas teriam encontrado em Paris, pelo preço
que ela cobrava, alimentos saudáveis, suficientes, e um apartamento que tinham
toda a liberdade para tornar, se não elegante e cômodo, ao menos limpo e
salubre? Tivesse ela se permitido uma injustiça gritante, a vítima a teria
suportado sem se queixar.
Uma reunião dessas devia oferecer e oferecia em pequena escala os elementos
de uma sociedade completa. Entre os dezoito convivas encontrava-se, como nos
colégios, como na sociedade, uma pobre criatura rejeitada, um saco de pancadas
sobre quem choviam as brincadeiras. No começo do segundo ano, essa figura
tornou-se para Eugène de Rastignac a mais notável de todas em meio das quais
ele estava condenado a viver ainda por dois anos. Esse cristo era o antigo
macarroneiro, o pai Goriot, sobre cuja cabeça um pintor teria, assim como um
historiador, feito cair toda a luz do quadro. Por qual acaso esse desprezo
semiodioso, essa perseguição mesclada de piedade, esse desrespeito pela
desgraça tinham atacado o mais antigo pensionista? Ele dera margem a isso por
alguns desses ridículos ou esquisitices que perdoamos menos do que perdoamos
os vícios? Essas questões estão muito próximas de grandes injustiças sociais.
Talvez esteja na natureza humana fazer com que tudo suporte quem tudo sofre
por humildade verdadeira, fraqueza ou indiferença. Acaso todos nós não
gostamos de provar nossa força à custa de alguém ou de alguma coisa? O ser
mais fraco, o garoto de rua, bate em todas as portas quando está congelando, ou
trepa num monumento virgem para escrever seu nome.
O pai Goriot, velhote de seus sessenta e nove anos, retirara-se para a pensão da
sra. Vauquer em 1813, depois de largar os negócios. Primeiro pegara o
apartamento ocupado pela sra. Couture, e pagava então mil e duzentos francos
de pensão, como homem para quem cinco luíses a mais ou a menos eram uma
bagatela. A sra. Vauquer reformara os três quartos daquele apartamento
mediante uma ajuda de custo prévia que financiou, dizem, o valor de uma
mobília ordinária composta de cortinas de percalina amarela, poltronas de
madeira envernizada estofadas de veludo de Utrecht, algumas pinturas a cola e
papéis que bibocas do subúrbio recusariam. Talvez a negligente generosidade
com que se deixou enganar o pai Goriot, que por essa época era respeitosamente
chamado de sr. Goriot, a tenha feito considerá-lo um imbecil que não entendia
nada de negócios. Goriot chegou munido de um guarda-roupa bem fornido, o
enxoval magnífico do negociante que não se recusa nada ao se retirar do
comércio. A sra. Vauquer admirara dezoito camisas de meia-holanda, cuja
delicadeza era mais notável ainda porque o macarroneiro usava sobre o jabô fixo
dois alfinetes presos por uma correntinha, cada um com um grande diamante
engastado. Habitualmente vestido com uma casaca azul-clara, pegava todo dia
um colete de piquê branco, sob o qual flutuava seu ventre piriforme e
proeminente, que fazia pular uma pesada corrente de ouro guarnecida de
berloques. Sua tabaqueira, também de ouro, continha um medalhão cheio de
cabelos que aparentemente o tornava culpado de alguma boa fortuna. Quando
sua hospedeira o acusou de ser um frajola , ele deixou perambular pelos lábios o
alegre sorriso do burguês cujo brinquedinho foi elogiado. Seus armouros (ele
pronunciava essa palavra como o zé-povinho) 13 foram enchidos com a volumosa
prataria de sua casa. Os olhos da viúva se acenderam quando o ajudou
cortesmente a desembalar e arrumar as conchas, as colheres de servir, os
talheres, os galheteiros, as molheiras, vários pratos, os aparelhos de café de
vermeil, enfim peças mais ou menos belas, pesando uma certa quantia de
marcos, e das quais ele não queria se desfazer. Esses presentes lhe lembravam as
solenidades de sua vida doméstica.
— Este — ele disse à sra. Vauquer apertando um prato e uma tigelinha cuja
tampa representava duas rolinhas que se bicotavam — é o primeiro presente que
minha mulher me deu, no dia de nosso aniversário. Pobre mulher! Empregou
nisso todas as suas economias de solteira. Está vendo, senhora? Eu preferiria
raspar a terra com as unhas a me separar disso. Graças a Deus! Poderei tomar
nesta tigela meu café, todas as manhãs, pelo resto de meus dias. Não tenho do
que me queixar, tenho meios de sobreviver por muito tempo.
Por fim, a sra. Vauquer tinha visto muito bem, com seu olho de águia, certas
inscrições no livro-caixa que, vagamente somadas, podiam dar àquele excelente
Goriot uma renda de cerca de oito a dez mil francos. Desde esse dia, a sra.
Vauquer, De Conflans em solteira, que estava então com quarenta anos feitos e
só aceitava trinta e nove, teve algumas ideias. Embora o canal lacrimal dos olhos
de Goriot estivesse revirado, inchado, caído, o que o obrigava a enxugá-los com
muita frequência, ela o achou com aparência agradável e muito ajeitado. Aliás,
sua panturrilha carnuda e saliente prognosticava, tanto quanto seu nariz
quadrado e comprido, qualidades morais que a viúva parecia apreciar, e que o
rosto lunar e ingenuamente parvo do homenzinho parecia confirmar. Devia ser
um animal solidamente constituído, capaz de dispender todo seu espírito em
sentimentos. Seus cabelos em asas de pombo, que o barbeiro da Escola
Politécnica ia empoar toda manhã, desenhavam cinco pontas sobre a fronte baixa
e decoravam bem seu rosto. Embora um pouco rústico, ele andava tão frajola,
pegava seu tabaco magnificamente, o aspirava como um homem tão seguro de
ter sempre sua tabaqueira cheia de macouba, 14 que no dia em que o sr. Goriot se
instalou em sua pensão a sra. Vauquer deitou-se à noite assando, como uma
perdiz envolta na tira de toucinho, ao fogo do desejo que a agarrou de abandonar
o sudário de Vauquer para renascer como Goriot. Casar-se, vender sua pensão,
dar o braço àquela fina flor de burguesia, tornar-se uma dama de prestígio no
bairro, pedir recursos para os indigentes, organizar pequenos passeios de
domingo a Choisy, Soissy, Gentilly; ir ao espetáculo quando bem entendesse, no
camarote, sem esperar os ingressos de autor que lhe davam alguns de seus
pensionistas no mês de julho; sonhava com todo o Eldorado dos casaizinhos
parisienses. Não confessara a ninguém que possuía quarenta mil francos
amealhados vintém a vintém. Sem dúvida, julgava-se, no quesito fortuna, um
partido vantajoso. “Quanto ao resto, eu valho esse homenzinho!”, pensou
virando-se na cama, como para provar a si mesma encantos que a gorda Sylvie
via toda manhã modelados pelo avesso. A partir desse dia, durante cerca de três
meses, a viúva Vauquer aproveitou o barbeiro do sr. Goriot e fez algumas
despesas de toalete, desculpadas pela necessidade de dar à sua casa um certo
decoro em harmonia com as pessoas honradas que a frequentavam. Urdiu muitas
intrigas para mudar os empregados de seus pensionistas, exibindo a pretensão
de, dali em diante, só aceitar as pessoas mais distintas sob todos os pontos de
vista. Um estrangeiro se apresentava, e ela se gabava da preferência que o sr.
Goriot, um dos comerciantes mais importantes e respeitáveis de Paris, lhe
concedera. Distribuiu prospectos em cujo alto se lia: CASA VAUQUER . “Era”, ela
dizia, “uma das mais antigas e mais estimadas pensões burguesas do Quartier
Latin. Com uma vista das mais agradáveis para o vale dos Gobelins (podia-se
avistá-lo do terceiro andar) e um bonito jardim, ao fundo do qual SE ESTENDIA
uma ALAMEDA de tílias.” Falava do bom ar e da solidão. Esse prospecto lhe levou
a sra. condessa de l’Ambermesnil, mulher de trinta e seis anos, que esperava o
fim da liquidação e o acerto de uma pensão que lhe era devida, na qualidade de
viúva de um general morto nos campos de batalha. A sra. Vauquer cuidou de sua
mesa, acendeu a lareira nos salões durante quase seis meses e cumpriu tão bem
as promessas de seu prospecto que pôs dinheiro seu na pensão. Assim, a
condessa dizia à sra. Vauquer, chamando-a de querida amiga , que lhe traria a
baronesa de Vaumerland e a viúva do coronel conde Picquoiseau, duas amigas
suas, que terminavam no Marais o contrato com uma pensão mais cara que a
Casa Vauquer. Essas senhoras, aliás, ficariam muito bem de vida quando o
Departamento da Guerra tivesse terminado seu trabalho. “Mas o Departamento
não termina nada”, ela dizia. Depois do jantar, as duas viúvas subiam juntas para
o quarto da sra. Vauquer, e ali trocavam uma prosinha bebendo cassis e
comendo guloseimas reservadas à boca da proprietária. A sra. de l’Ambermesnil
aprovou plenamente as opiniões de sua hospedeira sobre o Goriot, excelentes
opiniões, que aliás adivinhara desde o primeiro dia; achava-o um homem
perfeito.
— Ah! minha querida senhora, um homem saudável como meus olhos —
dizia-lhe a viúva. — Um homem perfeitamente conservado, e que ainda pode dar
muito prazer a uma mulher.
A condessa fez generosas observações à sra. Vauquer sobre sua roupa, que não
estava de acordo com suas pretensões. “É preciso se pôr em pé de guerra”, disse-
lhe. Depois de muitos cálculos, as duas viúvas foram juntas ao Palais-Royal,
onde compraram, nas Galeries de Bois, um chapéu de penas e uma touca. A
condessa arrastou a amiga para a loja La Petite Jeannette, onde escolheram um
vestido e uma echarpe. Quando essas munições foram utilizadas, e a viúva se viu
com essas armas, ficou parecendo, sem tirar nem pôr, a tabuleta do Boeuf à la
mode. 15 No entanto, viu-se tão mudada, e para melhor, que se julgou muito grata
à condessa e, embora pouco generosa , rogou-lhe que aceitasse um chapéu de
vinte francos. Na verdade, tencionava lhe pedir o favor de sondar Goriot e
valorizá-la junto a ele. A sra. de l’Ambermesnil se prestou muito amigavelmente
a essa manobra, e cercou o velho macarroneiro, com quem conseguiu ter uma
conversa; mas depois de tê-lo achado pudico, para não dizer refratário às
tentativas que lhe sugeriu seu desejo particular de seduzi-lo por conta própria,
saiu revoltada com sua grosseria.
— Meu anjo — disse à querida amiga —, você nada tirará desse homem! Ele é
ridiculamente desconfiado; é um sovina, uma besta, um tolo, que só lhe causará
desgosto.
Houve entre o sr. Goriot e a sra. de l’Ambermesnil coisas tais que a condessa
não quis nem mais se encontrar com ele. No dia seguinte, partiu esquecendo-se
de pagar seis meses de pensão, e deixando uma roupa velha avaliada em cinco
francos. Por mais rigorosa que a sra. Vauquer tenha sido em suas buscas, não
conseguiu obter nenhuma informação em Paris sobre a condessa de
l’Ambermesnil. Costumava falar desse caso deplorável, queixando-se de seu
excesso de confiança, embora fosse mais desconfiada que uma gata; mas parecia
essas muitas pessoas que desconfiam dos mais chegados e se entregam ao
primeiro que aparece. Fato moral, estranho mas verdadeiro, cuja raiz é fácil
encontrar no coração humano. Talvez certos indivíduos não tenham mais nada a
ganhar junto daqueles com quem vivem; depois de ter lhes mostrado o vazio de
suas almas, sentem-se secretamente julgados por eles com uma severidade
merecida; mas, sentindo uma invencível necessidade das adulações que lhes
faltam, ou devorados pela vontade de parecer possuir as qualidades que não têm,
esperam flagrar a estima ou o coração dos que lhes são estranhos, arriscando-se a
se decepcionarem um dia. Enfim, há indivíduos nascidos mercenários que não
fazem nenhum bem a seus amigos ou a seus próximos, porque devem; ao passo
que, prestando serviço a desconhecidos, recolhem em troca um grão de amor-
próprio: quanto mais perto deles está o círculo de seus afetos, menos amam;
quanto mais este se amplia, mais prestativos são. A sra. Vauquer tinha, sem
dúvida, algo dessas duas naturezas, essencialmente mesquinhas, falsas,
execráveis.
— Se eu estivesse aqui — dizia-lhe então Vautrin —, essa desgraça não lhe
teria acontecido! Eu teria encarado muito bem essa farsante. Conheço essas
figurinhas .
Como todos os espíritos tacanhos, a sra. Vauquer tinha o costume de não sair
do círculo dos acontecimentos e de não julgar suas causas. Gostava de acusar os
outros por seus próprios erros. Quando essa perda ocorreu, considerou o honesto
macarroneiro o princípio de seu infortúnio, e a partir daí começou, dizia, a
perder as ilusões a seu respeito. Quando reconheceu a inutilidade de suas
provocações e de seus gastos de representação, não demorou a adivinhar a razão
disso. Percebeu então que seu pensionista já tinha, segundo sua expressão, umas
atitudes suspeitas. Por fim, foi-lhe provado que sua esperança tão delicadamente
afagada repousava numa base quimérica, e que jamais tiraria nada daquele
homem, conforme a expressão enérgica da condessa, que parecia uma
conhecedora. Ela foi necessariamente mais longe na aversão do que tinha ido em
sua amizade. Seu ódio não foi proporcional a seu amor, mas às suas esperanças
frustradas. Se o coração humano encontra serenidade subindo às alturas da
afeição, raramente se detém na ladeira rápida dos sentimentos odiosos. Mas o sr.
Goriot era seu pensionista, e a viúva foi, portanto, obrigada a reprimir as
explosões de seu amor-próprio ferido, a enterrar os suspiros que essa decepção
lhe causou e a devorar os desejos de vingança, como um monge humilhado por
seu prior. Os espíritos mesquinhos satisfazem seus sentimentos, bons ou maus,
com mesquinharias incessantes. A viúva empregou sua malícia de mulher em
inventar perseguições surdas contra sua vítima. Começou por cortar os
supérfluos introduzidos na pensão.
— Acabaram-se os pepinos em conserva, acabaram-se as anchovas: são umas
arapucas! — disse a Sylvie, na manhã em que voltou ao seu antigo programa. O
sr. Goriot era um homem frugal, em quem a parcimônia necessária às pessoas
que fazem fortuna por si mesmas degenerara em hábito. A sopa, o cozido, um
prato de legumes tinham sido, deviam sempre ser seu jantar predileto. Portanto,
foi bem difícil para a sra. Vauquer atormentar seu pensionista, cujos gostos em
nada ela podia melindrar. Desesperada por encontrar um homem inatacável,
começou a desconsiderá-lo, e assim fez sua aversão ser partilhada por seus
pensionistas, que, por diversão, serviram a suas vinganças. Por volta do fim do
primeiro ano, a viúva chegara a tal grau de desconfiança que se perguntava por
que aquele negociante, tendo como riqueza sete a oito mil libras de renda,
possuindo uma prataria fantástica e joias tão belas quanto as de uma rapariga
sustentada, permanecia na casa dela, pagando-lhe uma pensão tão módica
relativamente à sua fortuna. Durante quase todo esse primeiro ano, Goriot
costumara jantar fora uma ou duas vezes por semana; depois, insensivelmente,
começara a jantar fora não mais que duas vezes por mês. As pequenas escapadas
do sr. Goriot convinham bem demais aos interesses da sra. Vauquer para que ela
ficasse descontente com a exatidão progressiva com que seu pensionista fazia as
refeições em sua casa. Essas mudanças foram atribuídas tanto a uma lenta
diminuição de sua fortuna como ao desejo de contrariar sua hospedeira. Um dos
mais detestáveis costumes desses espíritos liliputianos é supor suas
mesquinharias nos outros. Infelizmente, no fim do segundo ano o sr. Goriot
justificou os falatórios de que era alvo, pedindo à sra. Vauquer para passar para o
segundo andar, e reduzir sua pensão a novecentos francos. Ele precisou fazer
uma economia tão estrita que já não acendeu a lareira em seu quarto durante o
inverno. A viúva Vauquer quis ser paga adiantado; o que aceitou o sr. Goriot,
que a partir de então ela chamou de pai Goriot. E foi um tal de adivinhar as
causas daquela decadência! Exploração difícil! Como dissera a falsa condessa, o
pai Goriot era um sonso, um taciturno. De acordo com a lógica das pessoas de
cabeça oca, todas indiscretas porque só têm tolices a dizer, os que não falam de
seus negócios devem fazer negócios suspeitos. Portanto, aquele negociante tão
distinto tornou-se um tratante, aquele frajola virou um velho esquisito. Ora,
segundo Vautrin, que nessa época foi morar na Casa Vauquer, o pai Goriot era
um homem que ia à Bolsa e que, seguindo uma expressão bastante enérgica da
linguagem financeira, especulava miúdo sobre as rendas depois de ter se
arruinado. Ora era um desses pequenos jogadores que vão arriscar e ganhar toda
noite dez francos no jogo. Ora o tornavam um espião ligado à alta polícia; mas
Vautrin pretendia que ele não era esperto o suficiente para sê-lo . O pai Goriot
era também um avarento que emprestava a juros extorsivos, um homem que
sustentava todos os sorteios da loteria. Faziam dele tudo o que o vício, a
vergonha, a impotência geram de mais misterioso. Só que, por mais ignóbeis que
fossem seu comportamento ou seus vícios, a aversão que inspirava não ia a
ponto de bani-lo: ele pagava sua pensão. Além disso, era útil, todos jogavam em
cima dele seu bom ou mau humor, com brincadeiras ou empurrões. A opinião
que parecia a mais provável, geralmente adotada, era a da sra. Vauquer. A ouvi-
la, aquele homem tão bem conservado, saudável como seus olhos e com quem
ainda se podia ter muito prazer, era um libertino que tinha gostos estranhos. Eis
os fatos em que a viúva Vauquer apoiava suas calúnias. Alguns meses depois da
partida daquela desastrosa condessa que soubera viver por seis meses às suas
custas, uma manhã, antes de se levantar, ela ouviu na escada o fru-fru de um
vestido de seda e o passo miúdo de uma mulher jovem e ágil que corria para o
quarto de Goriot, cuja porta estava inteligentemente aberta. A gorda Sylvie logo
foi dizer à patroa que uma moça bonita demais para ser honesta, vestida como
uma deusa , calçando borzeguins de lã que não estavam enlameados, deslizara
como uma enguia da rua até a sua cozinha e lhe perguntara pelo apartamento do
sr. Goriot. A sra. Vauquer e sua cozinheira se puseram a escutar e flagraram
várias palavras carinhosamente pronunciadas durante a visita, que durou algum
tempo. Quando o sr. Goriot reconduziu sua dama , a gorda Sylvie logo pegou
sua cesta e fingiu ir ao mercado, para seguir o casal enamorado.
— Senhora — disse à patroa ao voltar —, pensando bem, o sr. Goriot tem de
ser rico até dizer chega para mantê-las nesse nível aí. Imagine que havia na
esquina da L’Estrapade uma carruagem fantástica na qual ela subiu.
Durante o jantar, a sra. Vauquer foi puxar uma cortina, para impedir que
Goriot ficasse incomodado com um raio de sol que batia em seus olhos.
— O senhor é amado pelas beldades, sr. Goriot, o sol o procura — ela disse
fazendo alusão à visita que recebera. — Diachos! Tem bom gosto, ela era bem
bonita.
— Era minha filha — ele disse com uma espécie de orgulho no qual os
pensionistas quiseram ver a fatuidade de um velho que mantém as aparências.
Um mês depois dessa visita, o sr. Goriot recebeu outra. Sua filha que, da
primeira vez, viera em traje matutino, veio depois do jantar, e vestida como para
ir ao espetáculo. Os pensionistas, ocupados em conversar no salão, puderam ver
uma bonita loura, corpo magro, graciosa, e elegante demais para ser filha de um
pai Goriot.
— Dá-lhe duas! — disse a gorda Sylvie, que não a reconheceu.
Alguns dias depois, outra moça, alta e corpo bonito, morena, cabelos negros e
olhos vivos, perguntou pelo sr. Goriot.
— Dá-lhe três! — disse Sylvie.
Essa segunda filha, que da primeira vez também tinha ido ver o pai de manhã,
voltou dias depois, à noite, com vestido de baile e de carruagem.
— Dá-lhe quatro! — disseram a sra. Vauquer e a gorda Sylvie, que não
reconheceram nessa grande dama nenhum vestígio da moça vestida
simplesmente na manhã em que fez sua primeira visita.
Goriot ainda pagava mil e duzentos francos de pensão. A sra. Vauquer achou
muito natural que um homem rico tivesse quatro ou cinco amantes, e o julgou
mesmo muito hábil em fazê-las passarem por suas filhas. Não se escandalizou
por ele mandá-las ir à Casa Vauquer. Só que, como essas visitas lhe explicavam
a indiferença de seu pensionista a seu respeito, permitiu-se, no começo do
segundo ano, chamá-lo de velho nojento. Por fim, quando seu pensionista caiu
nos novecentos francos, perguntou-lhe o que pretendia fazer em sua casa, ao ver
descer uma daquelas senhoras. O pai Goriot lhe respondeu que aquela senhora
era sua filha mais velha.
— Então tem umas trinta e seis filhas? — disse, áspera, a sra. Vauquer.
— Tenho só duas — retrucou o pensionista com a doçura de um homem
arruinado que chega a todas as docilidades da miséria.
Pelo fim do terceiro ano, o pai Goriot reduziu ainda mais suas despesas,
subindo ao terceiro andar e se pondo a quarenta e cinco francos de pensão por
mês. Dispensou o fumo, despediu seu peruqueiro e não se empoou mais. Quando
o pai Goriot apareceu pela primeira vez sem estar empoado, sua hospedeira
deixou escapar uma exclamação de surpresa percebendo a cor de seus cabelos,
que eram de um cinza sujo e esverdeado. Sua fisionomia, que desgostos secretos
tinham insensivelmente tornado mais triste dia após dia, parecia a mais
desconsolada de todas as que guarneciam a mesa. Então não houve mais
nenhuma dúvida. O pai Goriot era um velho libertino cujos olhos só tinham sido
preservados da influência maligna dos remédios necessitados por suas doenças
graças à habilidade de um médico. A cor repugnante de seus cabelos provinha de
seus excessos e das drogas que tomara para continuá-los. O estado físico e moral
do pobre homem dava razão a esses disparates. Quando seu enxoval se gastou,
ele comprou percalina a catorze vinténs a vara para substituir sua bela roupa de
baixo. Seus diamantes, sua tabaqueira de ouro, sua corrente, suas joias
desapareceram um a um. Abandonara a casaca azul-clara, toda a sua roupa
elegante, para vestir, verão como inverno, um redingote de pano marrom
grosseiro, um colete de pele de cabra e umas calças cinza de lã grossa.
Progressivamente foi emagrecendo; suas barrigas da perna caíram; seu rosto,
inchado pelo contentamento de uma felicidade burguesa, enrugou-se
exageradamente; sua testa franziu-se, seu maxilar se delineou. Durante o quarto
ano de sua permanência na Rue Neuve-Sainte-Geneviève, já não parecia a
mesma pessoa. O bom macarroneiro de sessenta e dois anos, que não aparentava
quarenta, o burguês gordo e grande, viçoso e singelo, cujo jeito galhofeiro
alegrava os passantes, que tinha algo de jovem no sorriso, parecia um
septuagenário embrutecido, vacilante, macilento. Seus olhos azuis tão vivos
ficaram com tons embaçados e cinzentos, empalideceram, já não lacrimejavam,
e suas bordas vermelhas pareciam chorar sangue. A uns dava horror; a outros
dava pena. Jovens estudantes de medicina, tendo reparado a descida de seu lábio
inferior e medido o vértice de seu ângulo facial, o declararam sofrendo de
cretinismo, depois de tê-lo longamente maltratado sem nada concluir. Uma
noite, após o jantar, a sra. Vauquer tendo lhe dito à guisa de zombaria: “Pois é!
Então as suas filhas não vêm mais vê-lo?”, e pondo em dúvida sua paternidade, o
pai Goriot estremeceu como se sua hospedeira tivesse lhe espetado com um
ferro.
— Elas vêm de vez em quando — respondeu com voz emocionada.
— Ah! Ah! O senhor ainda as vê de vez em quando! — exclamaram os
estudantes. — Bravo, pai Goriot!
Mas o velho não ouviu as brincadeiras que sua resposta provocara, recaíra num
estado meditativo que quem o observava superficialmente confundia com um
embotamento senil decorrente de sua falta de inteligência. Se o tivessem
conhecido bem, talvez houvessem ficado profundamente interessados pelo
problema que sua situação física e moral apresentava; mas nada era mais difícil.
Embora fosse fácil saber se Goriot havia realmente sido macarroneiro, e qual era
o montante de sua fortuna, os velhos cuja curiosidade despertou por sua causa
não saíam do bairro e viviam na pensão como ostras num rochedo. Quanto às
outras pessoas, a efervescência peculiar da vida parisiense as fazia esquecer,
saindo da Rue Neuve-Sainte-Geneviève, o pobre velho de quem caçoavam. Para
esses espíritos limitados, como para aqueles jovens indiferentes, a seca miséria
do pai Goriot e sua estúpida atitude eram incompatíveis com uma fortuna e uma
capacidade quaisquer. Quanto às mulheres a quem chamava de filhas, todos
partilhavam a opinião da sra. Vauquer, que dizia, com a lógica severa que o
hábito de tudo supor dá às velhas ocupadas em tagarelar durante suas noites:
— Se o pai Goriot tivesse filhas tão ricas como pareciam ser todas as damas
que vieram vê-lo, não estaria na minha pensão, no terceiro andar, a quarenta e
cinco francos por mês, e não estaria vestido como um pobre.
Nada conseguia desmentir essas induções. Assim, lá para o fim do mês de
novembro de 1819, época em que estourou este drama, todos na pensão tinham
ideias bem firmes sobre o pobre velhote. Ele jamais tivera filha nem mulher; o
abuso dos prazeres fazia dele um caracol, um molusco antropomorfo a ser
classificado entre os boneíferos , 16 dizia um empregado do Museu de História
Natural, um dos frequentadores da pensão. Poiret era uma águia, um gentleman,
perto de Goriot. Poiret falava, argumentava, respondia; na verdade, não dizia
nada, ao falar, argumentar ou responder, pois tinha o hábito de repetir em outros
termos o que os outros diziam; mas contribuía para a conversa, era vivo, parecia
sensível; ao passo que o pai Goriot, dizia também o empregado do Museu,
estava constantemente a zero grau na escala de Réaumur.
Eugène de Rastignac retornara numa disposição de espírito que devem ter
conhecido os jovens superiores, ou aqueles a quem uma situação difícil
comunica momentaneamente as qualidades dos homens de elite. Durante seu
primeiro ano de estada em Paris, o pouco estudo exigido pelos primeiros graus
acadêmicos na Faculdade o deixara livre para provar as delícias visíveis da Paris
material. Um estudante não tem muito tempo se quiser conhecer o repertório de
cada teatro, estudar as saídas do labirinto parisiense, saber os usos, aprender a
língua e se habituar aos prazeres particulares da capital; explorar os bons e os
maus lugares, frequentar os cursos que divertem, inventoriar as riquezas dos
museus. Então, um estudante se apaixona por bobagens que lhe parecem
grandiosas. Tem seu grande homem, um professor do Collège de France, pago
para se comportar à altura de seu auditório. Ajeita a gravata e se pavoneia para a
mulher das primeiras galerias do Opéra-Comique. Nessas iniciações sucessivas,
despoja-se de sua casca, amplia o horizonte de sua vida e acaba por conceber a
superposição das camadas humanas que compõem a sociedade. Se começou
admirando os carros no desfile dos Champs-Elysées sob um belo sol, logo chega
a invejá-los. Eugène se submetera a esse aprendizado sem se dar conta, quando
partiu de férias, depois de ser recebido como bacharel em letras e bacharel de
direito. Suas ilusões de infância, suas ideias provincianas tinham desaparecido.
Sua inteligência modificada, sua ambição exaltada o fizeram ver as coisas como
elas são no solar paterno, no seio de sua família. Seu pai, sua mãe, os dois
irmãos, as duas irmãs e uma tia cuja fortuna consistia em pensões viviam na
pequena propriedade de Rastignac. Esse domínio de uma renda de cerca de três
mil francos era submetido à incerteza que rege o produto perfeitamente
industrial da vinha, e no entanto dali era preciso extrair todo ano mil e duzentos
francos para ele. A dimensão dessa constante angústia que lhe era
generosamente escondida, a comparação que foi obrigado a fazer entre suas
irmãs, que lhe pareciam tão belas em sua infância, e as mulheres de Paris, que se
tinham apresentado como o tipo de uma beleza sonhada, o futuro incerto daquela
família numerosa que se escorava nele, a atenção parcimoniosa com que viu
serem economizadas as mais escassas produções, a bebida feita por sua família
com os bagaços da prensa, enfim, uma profusão de circunstâncias inúteis de
registrar aqui decuplicaram seu desejo de triunfar e lhe deram sede de distinções.
Como ocorre com as grandes almas, quis não dever nada senão a seu mérito.
Mas seu espírito era eminentemente meridional; na execução, suas
determinações deveriam, portanto, ser afetadas por aquelas hesitações que
atingem os jovens quando se encontram em pleno mar, sem saber para que lado
dirigir suas forças nem sob que ângulo enfunar suas velas. Se primeiro quis se
jogar de corpo e alma no estudo, logo seduzido pela necessidade de criar
relações, observou quanta influência têm as mulheres na vida social, e de súbito
decidiu lançar-se na sociedade, a fim de conquistar protetoras: acaso deveriam
elas faltar a um rapaz ardente e espirituoso cujo espírito e ardor eram realçados
por uma aparência elegante e uma espécie de beleza nervosa a que as mulheres
se deixam de bom grado prender? Essas ideias o assaltaram no meio dos campos,
durante os passeios que outrora fazia alegremente com as irmãs, que o acharam
bem mudado. Sua tia, a sra. de Marcillac, no passado apresentada à corte, ali
conhecera as sumidades aristocráticas. De repente o jovem ambicioso
reconheceu, nas lembranças com que sua tia o embalara tantas vezes, os
elementos de várias conquistas sociais, ao menos tão importantes quanto as que
ele fazia na Escola de Direito; interrogou-a sobre os laços de parentesco que
ainda podiam ser reatados. Depois de sacudir os galhos da árvore genealógica, a
velha senhora considerou que, de todas as pessoas que podiam servir a seu
sobrinho entre a raça egoísta dos parentes ricos, a sra. viscondessa de Beauséant
seria a menos recalcitrante. Escreveu a essa jovem mulher uma carta no velho
estilo e a entregou a Eugène, dizendo-lhe que se tivesse êxito junto à viscondessa
ela o faria encontrar outros parentes. Alguns dias depois de sua chegada,
Rastignac enviou a carta de sua tia à sra. de Beauséant. A viscondessa respondeu
com um convite de baile para o dia seguinte.
Esta era a situação geral da pensão burguesa no fim do mês de novembro de
1819. Dias depois, Eugène, após ter ido ao baile da sra. de Beauséant, voltou
pelas duas da madrugada. A fim de recuperar o tempo perdido, o corajoso
estudante se prometera, enquanto dançava, estudar até de manhã. Pela primeira
vez, passaria a noite no meio daquele bairro silencioso, pois caíra sob o encanto
de uma falsa energia ao ver os esplendores da sociedade. Não jantara com a sra.
Vauquer. Os pensionistas puderam, então, acreditar que ele só voltaria do baile
na manhã seguinte, bem cedinho, como às vezes voltava das festas do Prado ou
dos bailes do Odéon, enlameando as meias de seda e deformando os escarpins.
Antes de passar os ferrolhos na porta, Christophe a abrira para olhar a rua.
Rastignac apareceu nesse momento, e pôde subir para o quarto sem fazer
barulho, seguido por Christophe, que fazia muito. Eugène se despiu, calçou os
chinelos, pegou um redingote ordinário, acendeu a lareira com torrões de turfa
seca e se preparou depressa para o estudo, de modo que Christophe ainda abafou
com a barulheira de seus sapatões os preparativos pouco ruidosos do rapaz.
Eugène ficou pensativo por uns momentos antes de mergulhar em seus livros de
direito. Acabava de reconhecer na sra. viscondessa de Beauséant uma das
rainhas da moda em Paris, e cuja casa era considerada a mais agradável do
Faubourg Saint-Germain. Aliás, ela era, tanto pelo nome como pela fortuna, uma
das sumidades do mundo aristocrático. Graças à sua tia de Marcillac, o pobre
estudante fora bem recebido naquela casa, sem conhecer a extensão desse
privilégio. Ser recebido naqueles salões dourados equivalia a um título de alta
nobreza. Mostrando-se naquela sociedade, a mais exclusiva de todas, conquistara
o direito de ir a qualquer lugar. Deslumbrado com aquela brilhante assembleia,
tendo apenas trocado umas palavras com a viscondessa, Eugène se contentara de
distinguir, entre a multidão de deidades parisienses que se comprimiam naquela
festança, uma dessas mulheres que um homem deve adorar em primeiro lugar. A
condessa Anastasie de Restaud, alta e graciosa, tinha fama de ser uma das mais
belas figuras de Paris. Imaginem grandes olhos negros, mãos magníficas, um pé
bem delineado, fogo nos movimentos, uma mulher que o marquês de
Ronquerolles chamava um cavalo puro-sangue. Essa delicadeza de nervos não
lhe tirava nenhuma vantagem; possuía as formas cheias e roliças, sem que
pudesse ser acusada de muita corpulência. Cavalo puro-sangue , mulher de raça
, essas locuções começavam a substituir os anjos do céu, as figuras ossiânicas,
toda a antiga mitologia amorosa rejeitada pelo dandismo. Mas, para Rastignac, a
sra. Anastasie de Restaud foi a mulher desejável. Ele incluíra duas danças na
lista dos cavalheiros escrita no leque, e conseguira lhe falar durante a primeira
contradança.
— Onde encontrá-la de agora em diante, senhora? — dissera-lhe abruptamente
com essa força de paixão que tanto agrada às mulheres.
— Mas — ela disse — no Bois, no Bouffons, em minha casa, em toda parte.
E o aventureiro meridional se apressara em se ligar a essa deliciosa condessa,
tanto quanto um rapaz pode se ligar a uma mulher durante uma contradança e
uma valsa. Dizendo-se primo da sra. de Beauséant, foi convidado por essa
mulher, que ele pensou ser uma grande dama, e teve acesso à casa dela. Pelo
último sorriso que ela lhe lançou, Rastignac imaginou ser necessária uma visita.
Tivera a felicidade de encontrar um homem que não zombara de sua ignorância,
defeito mortal entre os ilustres impertinentes da época, os Maulincour, os
Ronquerolles, os Maxime de Trailles, os De Marsay, os Ajuda-Pinto, os
Vandenesse, que lá estavam na glória de suas fatuidades e misturados com as
mulheres mais elegantes, lady Brandon, a duquesa de Langeais, a condessa de
Kergarouët, a sra. de Sérizy, a duquesa de Carigliano, a condessa Férraud, a sra.
de Lanty, a marquesa d’Aiglemont, a sra. Firmiani, a marquesa de Listomère e a
marquesa d’Espard, a duquesa de Maufrigneuse e os Grandlieu. 17 Portanto,
felizmente o ingênuo estudante topou com o marquês de Montriveau, amante da
duquesa de Langeais, um general simples como uma criança, que lhe comunicou
que a condessa de Restaud morava na Rue du Helder. Ser jovem, ter sede de
sociedade, ter fome de uma mulher e ver abrirem-se para si duas casas! Pôr o pé
no Faubourg Saint-Germain na casa da viscondessa de Beauséant, o joelho na
Chaussée d’Antin na casa da condessa de Restaud! Mergulhar os olhos, de
enfiada, nos salões de Paris, e imaginar-se rapaz bonito o bastante para ali
encontrar ajuda e proteção num coração de mulher! Sentir-se ambicioso o
suficiente para dar um maravilhoso pontapé na corda bamba em que é preciso
andar com a segurança do equilibrista que não cairá, e ter encontrado numa
mulher encantadora a melhor das marombas! Com esses pensamentos e diante
daquela mulher que se erguia sublime ao lado de um fogo de torrões de turfa,
entre o Código e a miséria, quem não teria, como Eugène, sondado o futuro por
uma meditação, quem não o teria guarnecido de sucessos? Seu pensamento
errante antegozava tão intensamente suas alegrias futuras que ele se via ao lado
da sra. de Restaud quando um suspiro parecido com um hã de são José perturbou
o silêncio da noite, ressoou no coração do rapaz de maneira a fazê-lo imaginar
que se tratava do estertor de um moribundo. Abriu devagarinho a porta e,
quando estava no corredor, avistou uma linha de luz traçada por baixo da porta
do pai Goriot. Eugène temeu que seu vizinho estivesse indisposto, aproximou o
olho da fechadura, olhou para dentro do quarto e viu o velho ocupado em
trabalhos que lhe pareceram criminosos demais para que ele não pensasse em
prestar um serviço à sociedade examinando bem o que o suposto macarroneiro
estava urdindo em plena noite. O pai Goriot, que com certeza amarrara no tampo
de uma mesa emborcada um prato e uma espécie de sopeira de vermeil, girava
um tipo de cabo em torno desses objetos ricamente entalhados, apertando-os
com tanta força que aparentemente os entortava para convertê-los em lingotes.
“Caramba! Que homem!”, pensou Rastignac vendo os braços nervosos do velho
que, com a ajuda da corda, comprimia sem barulho a prata dourada, como uma
massa. “Mas então seria ele um ladrão ou um receptador que, para se dedicar
com mais segurança a seu comércio, fingiria a estupidez e a impotência e viveria
como mendigo?”, pensou Eugène, levantando-se nesse momento.
O estudante voltou a encostar o olho na fechadura. O pai Goriot, que
desenrolara o cabo, pegou a massa de prata, colocou-a sobre a mesa depois de tê-
la forrado com o cobertor, e nele a enrolou para arredondá-la em barra, operação
que executou com espantosa facilidade. “Então seria ele tão forte quanto
Augusto, rei da Polônia?”, 18 pensou Eugène quando a barra redonda ficou
praticamente moldada. O pai Goriot olhou para sua obra com ar triste, lágrimas
caíram de seus olhos, soprou a velinha à luz da qual torcera aquele vermeil, e
Eugène o ouviu se deitar dando um suspiro. “Ele é louco”, pensou o estudante.
— Pobre criança! — disse em voz alta o pai Goriot.
Diante dessas palavras, Rastignac julgou prudente manter silêncio sobre esse
acontecimento, e não condenar irrefletidamente o vizinho. Ia voltar para o quarto
quando distinguiu de repente um barulho bastante difícil de expressar, e que
devia ser produzido por homens com chinelos de feltro subindo a escada.
Eugène prestou atenção e, de fato, reconheceu o som alternado da respiração de
dois homens. Sem ter ouvido o rangido da porta nem os passos dos homens, viu
de repente um clarão tênue no segundo andar, no quarto do sr. Vautrin. “Tem um
bocado de mistérios numa pensão burguesa!”, pensou. Desceu uns degraus, pôs-
se a escutar, e o som do ouro bateu em seu ouvido. Logo a luz se apagou e as
duas respirações se fizeram ouvir de novo, sem que a porta tivesse rangido.
Depois, à medida que os dois homens desceram, o barulho foi se atenuando.
— Quem está aí? — gritou a sra. Vauquer abrindo a janela de seu quarto.
— Sou eu que estou chegando, mamãe Vauquer — disse Vautrin com seu
vozeirão.
“É estranho! Christophe tinha passado os ferrolhos”, pensou Eugène voltando
para seu quarto. “É preciso ficar acordado para saber exatamente o que acontece
ao redor de si em Paris.” Desviado por esses pequenos fatos de sua meditação
ambiciosamente amorosa, ele começou a estudar. Distraído pelas desconfianças
que lhe vinham a respeito do pai Goriot, mais distraído ainda pela figura da sra.
de Restaud, que de vez em quando se postava diante dele como a mensageira de
um brilhante destino, acabou indo se deitar e dormiu a sono solto. De dez noites
prometidas pelos jovens ao estudo, eles dão sete ao sono. É preciso ter mais de
vinte anos para passar uma noite em claro.
Na manhã seguinte reinava em Paris um desses nevoeiros densos que a
envolvem e embrumam tão bem que as pessoas mais pontuais se enganam sobre
o tempo. Os encontros de negócios são anulados. Todos pensam ser oito horas
quando bate meio-dia. Eram nove e meia, a sra. Vauquer ainda não se mexera de
sua cama. Christophe e a gorda Sylvie, também atrasados, tomavam
tranquilamente seu café, preparado com as camadas superiores do leite destinado
aos pensionistas, e que Sylvie deixava ferver muito tempo, a fim de que a sra.
Vauquer não percebesse aquele dízimo ilegalmente arrecadado.
— Sylvie — disse Christophe molhando a primeira torrada —, o sr. Vautrin,
que apesar de tudo é um bom homem, viu mais duas pessoas esta noite. Se a
patroa se preocupar, é melhor não lhe dizer nada.
— Ele lhe deu alguma coisa?
— Ele me deu cem vinténs por conta do mês, maneira de me dizer: “Cale a
boca”.
— Fora ele e a sra. Couture, que não são pães-duros, os outros gostariam de
nos tirar com a mão esquerda o que dão com a mão direita no primeiro dia do
ano — disse Sylvie.
— E, mesmo assim, o que é que eles dão! — disse Christophe —, uma
moedinha mixuruca, e de cem vinténs. Lá vão dois anos que o pai Goriot cuida
pessoalmente dos seus sapatos. Esse mão de vaca do Poiret nem quer saber de
cera, e preferiria bebê-la a passá-la nas sapatrancas dele. Quanto ao magricela do
estudante, me dá quarenta vinténs. Quarenta vinténs não pagam nem minhas
escovas, e para completar vende suas roupas velhas. Que miserê!
— Deixe para lá! — disse Sylvie bebendo golinhos de café. — Nossos
empregos ainda são os melhores do bairro: a gente vive bem aqui. Mas, a
propósito do gordo papai Vautrin, Christophe, disseram alguma coisa para você?
— Disseram. Encontrei há uns dias um senhor na rua, que me disse: “Não é na
sua casa que mora um senhor gordo com suíças que ele pinta?”. Eu disse: “Não,
senhor, ele não pinta. Um homem alegre como ele não tem tempo para isso”.
Então eu disse isso para o sr. Vautrin, que me respondeu: “Fez bem, garoto!
Responda sempre assim. Nada é mais desagradável do que deixar que conheçam
nossas mazelas. Isso pode estragar os casamentos”.
— Pois é, para mim, no mercado, também quiseram me embrulhar para me
fazerem dizer se eu o via vestir sua camisa. Que graça! Puxa — ela disse
interrompendo-se —, já está batendo quinze para as dez no Val-de-Grâce e
ninguém se mexe.
— Ora essa! Eles todos saíram. A sra. Couture e sua mocinha foram comer o
bom Deus na igreja Sainte-Étienne desde as oito horas. O pai Goriot saiu com
um pacote. O estudante só voltará depois da aula, às dez horas. Eu os vi saindo
quando limpava minhas escadas; o pai Goriot me deu uma batida com o que
carregava, que era duro como ferro. Mas o que é que afinal faz esse
homenzinho? Os outros o empurram como se fosse um pião, mas no final das
contas é um bom homem, e que vale mais que todos eles. Não dá grande coisa;
mas as senhoras nas casas de quem ele me manda às vezes dão umas gorjetas
polpudas, e são bem vestidas para chuchu.
— Aquelas que ele chama de filhas, hein? Elas são uma dúzia.
— Eu sempre só fui na casa de duas, as mesmas que vieram aqui.
— Lá está a patroa se mexendo; vai fazer seu estardalhaço; tenho que ir. Preste
atenção no leite, Christophe, olhe o gato.
Sylvie subiu para o quarto da patroa.
— O quê, Sylvie, são quinze para as dez, você me deixou dormir como uma
marmota! Nunca me aconteceu uma coisa dessas.
— É o nevoeiro, que está de cortar de faca.
— Mas e o almoço?
— Ora! Os seus pensionistas estavam com o diabo no corpo; todos eles
puseram sebo nas canelas desde o raiar da orora.
— Mas fale direito, Sylvie — retrucou a sra. Vauquer —, a gente diz “raiar da
ourora”.
— Ah, patroa, digo como a senhora quiser. O que interessa é que a senhora
pode almoçar às dez horas. 19 A Michonneau e o Poiret não se mexeram. Só os
dois é que estão na casa, e dormem que nem pedras que são.
— Mas Sylvie, você põe os dois juntos, como se…
— Como se o quê? — continuou Sylvie deixando escapar uma gargalhada
boba. — Os dois têm os mesmos defeitos, são feitos um para o outro.
— É curioso, Sylvie: como é que então o sr. Vautrin entrou esta noite depois
que Christophe passou os ferrolhos?
— Muito pelo contrário, patroa. Ele ouviu o sr. Vautrin e desceu para lhe abrir
a porta. E foi isso que a senhora pensou…
— Dê-me a minha camisola e vá correndo ver o almoço. Arrume o resto do
carneiro com as batatas e sirva umas peras cozidas, daquelas que custam dois
vinténs cada.
Instantes depois, a sra. Vauquer desceu, no momento em que seu gato acabava
de derrubar com uma patada o prato que cobria uma tigela de leite, e o lambia
com a maior pressa.
— Bichano! — ela exclamou. O gato deu no pé, e depois foi se esfregar em
suas pernas. — É, é, faça seu chamego, velho covarde! — ela lhe disse. —
Sylvie! Sylvie!
— Ei, patroa, o que é?
— Mas olhe o que o gato bebeu.
— É culpa desse animal do Christophe, eu disse para ele pôr a tampa. Onde ele
se meteu? Não se preocupe, senhora; será o café do pai Goriot. Vou pôr água
dentro, ele não vai notar. Não presta atenção em nada, nem mesmo no que come.
— Mas aonde é que ele foi, esse palhaço? — indagou a sra. Vauquer pondo os
pratos.
— E a gente lá sabe? Ele faz uns negócios de todos os diabos.
— Dormi demais — disse a sra. Vauquer.
— Mas também, está fresca como uma rosa…
Nesse momento tocou a campainha e Vautrin entrou no salão cantando com
seu vozeirão:

Por muito tempo percorri o mundo


E me viram por todo lugar...

— Oh! Oh! Bom dia, mamãe Vauquer — disse ao ver a hospedeira, que ele
pegou galantemente nos braços.
— Ande, pare com isso.
— Diga impertinente ! — ele retrucou. — Vamos, diga. Quer fazer o favor de
dizer? Pronto, vou pôr a mesa com a senhora. Ah! sou bonzinho, não sou?

Cortejar a morena e a loura,


Amar, suspirar…

— Acabo de ver uma coisa singular.

… ao léu.

— O quê? — perguntou a viúva.


— O pai Goriot estava às oito e meia na Rue Dauphine, no ourives que compra
galões e talheres antigos. Ele lhe vendeu por uma boa quantia um utensílio
doméstico de vermeil, muito bem entortado para um homem que não é do ramo.
— Ah! É mesmo?
— É. Eu voltava para cá depois de ter levado um amigo que está se
expatriando pelos Transportes Reais; esperei o pai Goriot para ver: só para me
divertir. Voltou para este bairro pela Rue des Grès, onde entrou na casa de um
agiota conhecido, chamado Gobseck, um sujeitinho esquisito, capaz de fazer
peça de dominó com os ossos do pai; um judeu, um árabe, um grego, um cigano,
um homem que seria um bocado difícil de roubar, ele bota seus escudos no
Banco.
— Mas o que é que esse pai Goriot faz?
— Ele não faz nada — disse Vautrin —, ele desfaz. É um imbecil bastante
idiota para se arruinar por amar as moças que…
— Aí está ele! — disse Sylvie.
— Christophe — gritou o pai Goriot —, suba comigo.
Christophe seguiu o pai Goriot, e logo tornou a descer.
— Aonde você vai? — perguntou a sra. Vauquer a seu criado.
— Fazer uma entrega para o sr. Goriot.
— O que é que é isso? — perguntou Vautrin arrancando das mãos de
Christophe uma carta na qual leu: À sra. condessa Anastasie de Restaud . — E
você vai? — continuou, entregando a carta a Christophe.
— Rue du Helder. Tenho ordem de só entregar isto aqui à senhora condessa.
— O que é que tem aí dentro? — perguntou Vautrin pondo a carta contra a luz.
— Uma nota? Não. — Entreabriu o envelope. — Uma promissória paga! —
exclamou. — Caramba! É galante, esse velho gaiteiro. Vá, espertinho — ele
disse, cobrindo com a mão larga a cabeça de Christophe, que ele fez girar sobre
si mesmo como um dado —, vai ganhar uma boa gorjeta.
A mesa estava posta. Sylvie fervia o leite. A sra. Vauquer acendia a estufa,
ajudada por Vautrin, que continuava a cantarolar:

Por muito tempo percorri o mundo


E me viram por todo lugar...

Quando estava tudo pronto, a sra. Couture e a sra. Taillefer entraram.


— Mas de onde vem tão madrugadora, minha bela senhora? — perguntou a
sra. Vauquer à sra. Couture.
— Acabamos de fazer nossas devoções na Saint-Étienne-du-Mont, hoje não
devemos ir à casa do sr. Taillefer? Pobrezinha, ela treme como vara verde —
continuou a sra. Couture sentando-se na frente da estufa, à boca da qual
apresentou seus sapatos, que soltaram fumaça.
— Então aqueça-se, Victorine — disse a sra. Vauquer.
— É bom, senhorita, rezar ao bom Deus para enternecer o coração de seu pai
— disse Vautrin levando uma cadeira para a órfã. — Mas isso não basta.
Precisaria de um amigo que se encarregasse de dar uma palavrinha a essa fera,
um selvagem que, dizem, tem três milhões e não lhe dá um dote. Uma bela moça
precisa de dote nos tempos que correm.
— Pobre menina — disse a sra. Vauquer. — Vamos, meu amor, o monstro do
seu pai atrai toda a desgraça para ele.
Diante dessas palavras, os olhos de Victorine se molharam de lágrimas e a
viúva parou a um sinal que lhe fez a sra. Couture.
— Se pelo menos pudéssemos vê-lo, se eu conseguisse falar com ele, entregar-
lhe a última carta de sua mulher — recomeçou a viúva do fiscal de renda. —
Nunca ousei correr o risco de enviá-la pelo correio; ele conhece minha letra…
— Ó mulheres inocentes, infelizes e perseguidas! — exclamou Vautrin
interrompendo —, a que ponto vocês chegaram! Daqui a alguns dias me meterei
em seus negócios, e dará tudo certo.
— Oh! senhor — disse Victorine dando um olhar ao mesmo tempo úmido e
ardente para Vautrin, que não se comoveu —, se souber um meio de chegar a
meu pai, diga-lhe claramente que seu afeto e a honra de minha mãe são mais
preciosos que todas as riquezas do mundo. Se conseguisse que ele suavizasse um
pouco seu rigor, eu rezaria a Deus pelo senhor. Esteja certo de minha gratidão…
— Por muito tempo percorri o mundo — cantou Vautrin em tom irônico.
Nesse momento, Goriot, a srta. Michonneau e Poiret desceram, atraídos talvez
pelo cheiro do refogado que Sylvie preparava para acomodar as sobras do
carneiro. Quando os sete convivas sentaram à mesa desejando-se bom dia, dez
horas soaram, e ouviu-se na rua o passo do estudante.
— Ah, muito bem, sr. Eugène — disse Sylvie —, hoje vai almoçar com todo
mundo.
O estudante cumprimentou os pensionistas e se sentou ao lado do pai Goriot.
— Acaba de me acontecer uma curiosa aventura — disse servindo-se
abundantemente de carneiro e cortando um pedaço de pão que a sra. Vauquer
sempre calculava com os olhos.
— Uma aventura! — disse Poiret.
— Bem, por que se espantaria, velho? — disse Vautrin a Poiret. — O
cavalheiro é feito para tê-las.
A srta. Taillefer desviou timidamente um olhar para o jovem estudante.
— Conte-nos sua aventura — pediu a sra. Vauquer.
— Ontem eu estava no baile da casa da sra. viscondessa de Beauséant, minha
prima, dona de uma casa magnífica, aposentos forrados de seda, enfim, que nos
deu uma festa maravilhosa, onde me diverti como um rei…
— Congo — disse Vautrin, interrompendo-o na hora.
— O que quer dizer, senhor? — Eugène retrucou vivamente.
— Eu digo congo porque os reis-congos se divertem muito mais que os reis.
— É verdade: preferiria ser esse passarinho sem preocupações do que rei,
porque… — disse Poiret, o idemista . 20
— Afinal — continuou o estudante, cortando-lhe a palavra —, danço com uma
das mulheres mais belas do baile, uma condessa encantadora, a criatura mais
deliciosa que já vi. Seu penteado tinha flores de pessegueiro, no ombro o mais
lindo buquê de flores, flores naturais que perfumavam; mas, ah! precisavam tê-la
visto, é impossível pintar uma mulher animada pela dança. Pois bem, hoje de
manhã encontrei essa divina condessa, pelas nove horas, a pé, na Rue des Grès.
Oh! meu coração disparou, eu imaginava…
— Que ela vinha aqui — disse Vautrin dando um olhar profundo para o
estudante. — Ela com certeza ia ver o seu Gobseck, um agiota. Se um dia for
remexer no coração das mulheres em Paris, encontrará o agiota antes do amante.
A sua condessa se chama Anastasie de Restaud e mora na Rue du Helder.
Diante desse nome, o estudante encarou Vautrin. O pai Goriot levantou
bruscamente a cabeça, lançou para os dois interlocutores um olhar luminoso e
cheio de inquietação que surpreendeu os pensionistas.
— Christophe chegará tarde demais, então ela terá ido lá — exclamou
dolorosamente Goriot.
— Adivinhei — disse Vautrin inclinando-se ao ouvido da sra. Vauquer.
Goriot comia mecanicamente e sem saber o que comia. Nunca parecera mais
estúpido e mais absorto do que naquele momento.
— Qual diabo, sr. Vautrin, pôde lhe dizer o nome dela? — perguntou Eugène.
— Ah! Ah! Pois é — respondeu Vautrin. — O pai Goriot o sabia muito bem!
Por que eu não saberia?
— O sr. Goriot! — exclamou o estudante.
— O quê! — disse o pobre velho. — Quer dizer que ontem ela estava muito
bonita?
— Quem?
— A sra. de Restaud.
— Veja só o velho sovina — disse a sra. Vauquer a Vautrin —, como os olhos
dele se acendem.
— Então ele a sustenta? — perguntou a sra. Michonneau ao estudante.
— Ah! Sim, estava furiosamente bela — prosseguiu Eugène, que o pai Goriot
olhava com avidez. — Se a sra. de Beauséant não estivesse lá, minha divina
condessa teria sido a rainha do baile; os rapazes só tinham olhos para ela, eu era
o décimo segundo inscrito em sua lista, ela bailava todas as contradanças. As
outras mulheres se enfureciam. Se ontem uma criatura se sentiu feliz, foi mesmo
ela. Tem toda razão quem diz que não há nada mais bonito do que fragata a todo
pano, cavalo a galope e mulher que dança.
— Ontem no alto da roda, na casa de uma duquesa — disse Vautrin —, hoje de
manhã no mais baixo degrau da escada, na casa de um agiota: assim são as
parisienses. Se o marido não consegue sustentar seu luxo desenfreado, elas se
vendem. Se não sabem se vender, estripam as mães à procura de algo com que
brilhar. Em suma, dão cem mil golpes. É conhecido, conhecido!
O rosto do pai Goriot, que ao ouvir o estudante se iluminara como o sol de um
belo dia, ficou sombrio com essa observação cruel de Vautrin.
— Pois é! — disse a sra. Vauquer —, mas onde está a sua aventura? Falou
com ela? Perguntou-lhe se vinha aprender direito?
— Ela não me viu — disse Eugène. — Mas encontrar uma das mulheres mais
bonitas de Paris na Rue des Grès, às nove horas, uma mulher que deve ter
voltado do baile às duas da manhã, não é curioso? Só mesmo em Paris aventuras
assim acontecem.
— Ora! Conheço umas bem mais engraçadas — exclamou Vautrin.
A srta. Taillefer mal ouvira, tão preocupada estava com a tentativa que ia fazer.
A sra. Couture lhe fez sinal para se levantar e ir se vestir. Quando as duas
mulheres saíram, o pai Goriot fez o mesmo.
— Pois é, vocês o viram? — perguntou a sra. Vauquer a Vautrin e a seus
outros pensionistas. — É óbvio que ele se arruinou por essas mulheres aí.
— Nunca me farão acreditar — exclamou o estudante — que a bela condessa
de Restaud pertence ao pai Goriot.
— Mas — disse-lhe Vautrin interrompendo-o — não fazemos questão que
acredite. Você ainda é muito moço para conhecer bem Paris, mais tarde saberá
que aqui se encontram o que chamamos de homens de paixões … (Diante dessas
palavras, a srta. Michonneau olhou para Vautrin com ar inteligente. Pareceria um
cavalo de regimento ouvindo o som da trombeta.) Ah! Ah! — disse Vautrin
interrompendo-se para lhe lançar um olhar profundo —, quanta paixãozinha
também tivemos ? (A solteirona baixou os olhos como uma freira que vê
estátuas.) Pois muito bem! — ele recomeçou —, essas pessoas encasquetam uma
ideia e não desistem dela. Só têm sede de uma certa água tirada de uma certa
fonte, e em geral estagnada; para bebê-la venderiam mulheres, filhos; venderiam
a alma ao diabo. Para uns, essa fonte é o jogo, a Bolsa, uma coleção de quadros
ou de insetos, a música; para outros, é uma mulher que sabe lhes cozinhar
guloseimas. A eles, você lhes ofereceria todas as mulheres da terra, mas estão
pouco ligando, só querem aquela que satisfaz sua paixão. Essa mulher costuma
não amá-los, maltrata-os, vende-lhes muito caro umas migalhas de satisfações;
pois bem! meus traquinas não se cansam, e poriam no prego o último cobertor
para lhes entregar seu último tostão. O pai Goriot é um desses indivíduos. A
condessa o explora porque ele é discreto, e é isso a aristocracia! O pobre
homenzinho só pensa nela. Fora de sua paixão, como pode ver, é um animal
bruto. Inclua-o nesse capítulo, e o rosto dele cintila como um diamante. Não é
difícil adivinhar esse segredo. Hoje de manhã levou vermeil para fundir, e o vi
entrando na loja do seu Gobseck, na Rue des Grès. Vá me seguindo! Ao voltar,
mandou à casa da condessa de Restaud esse parvo do Christophe, que nos
mostrou o endereço da carta em que havia uma promissória paga. Está claro que,
se a condessa também foi ver o velho agiota, é porque havia urgência. O pai
Goriot financiou galantemente o empréstimo dela. Não é preciso costurar duas
ideias para enxergar claramente esse negócio. Isso lhe prova, meu jovem
estudante, que enquanto a sua condessa ria, dançava, fazia suas macaquices,
balançava as flores de pessegueiro e puxava o vestido, estava em maus lençóis,
como se diz, pensando em suas letras de câmbio protestadas ou nas do amante.
— Isso me dá uma vontade alucinante de saber a verdade. Amanhã irei à casa
da sra. de Restaud — exclamou Eugène.
— É — disse Poiret —, amanhã é preciso ir à casa da sra. de Restaud.
— Talvez encontre por lá o pobre Goriot, que irá receber o pagamento de suas
galanterias.
— Mas — disse Eugène com ar de nojo —, então a Paris dos senhores é um
lamaçal.
— E um lamaçal muito esquisito — continuou Vautrin. — Os que aí se
enlameiam de carro são pessoas honestas, os que aí se enlameiam a pé são uns
pilantras. Tenha a infelicidade de surrupiar alguma coisa, e será exibido na praça
do Palácio da Justiça como uma curiosidade. 21 Roube um milhão, e será
apontado nos salões como um virtuoso. E pagará trinta milhões à Gendarmeria e
à Justiça para manter essa moral. Bonito!
— Como assim? — exclamou a sra. Vauquer. — O pai Goriot teria fundido
seu aparelho de café da manhã de vermeil?
— Não havia duas rolinhas na tampa? — perguntou Eugène.
— É isso mesmo.
— Então gostava muito dela, chorou quando amassou a tigela e o prato. Vi por
acaso — disse Eugène.
— Gostava como de sua própria vida — respondeu a viúva.
— Vejam só o homenzinho, como está apaixonado — exclamou Vautrin. —
Essa mulher sabe titilar sua alma.
O estudante subiu para seu quarto. Vautrin saiu. Instantes depois, a sra.
Couture e Victorine entraram num fiacre que Sylvie foi buscar para elas. Poiret
ofereceu o braço à srta. Michonneau e os dois foram passear no Jardin des
Plantes, durante as duas belas horas do dia.
— Muito bem! Olhem só os dois, estão quase casados — disse a gorda Sylvie.
— Saem juntos hoje pela primeira vez. Os dois são tão secos que, se por acaso se
esbarrarem, farão fogo que nem um isqueiro.
— Ai do xale da srta. Michonneau — disse a sra. Vauquer rindo —, vai pegar
fogo como um pavio.
Às quatro da tarde, quando Goriot voltou, viu, à luz de duas lamparinas
fumegantes, Victorine, cujos olhos estavam vermelhos. A sra. Vauquer escutava
o relato da visita infrutífera feita ao sr. Taillefer durante a manhã. Aborrecido
por receber a filha e aquela velha, Taillefer as deixara chegar até ele para se
explicar com elas.
— Minha cara senhora — dizia a sra. Couture à sra. Vauquer —, imagine que
nem sequer fez sentar Victorine, que ficou o tempo todo em pé. A mim, disse,
sem se enfurecer, muito friamente, para nos pouparmos o trabalho de ir à casa
dele; que a senhorita, sem dizer sua “filha”, se prejudicava em seu espírito ao
importuná-lo (uma vez por ano, esse monstro!); que a mãe de Victorine, tendo
sido desposada sem fortuna, nada tinha a pretender; em suma, as coisas mais
duras, que fizeram essa pobre menina se derramar em lágrimas. Então a garota
se jogou aos pés do pai e lhe disse com coragem que só insistia tanto pela mãe, e
que obedeceria às suas vontades sem um murmúrio; mas que lhe implorava que
lesse o testamento da pobre defunta, e pegou a carta e a apresentou, dizendo as
coisas mais bonitas do mundo e as mais sentidas, não sei de onde as tirou. Deus
as ditava, pois a pobre criança estava tão bem inspirada que, ao ouvi-la, eu
chorava como uma tonta. Sabe o que fazia esse horror de homem?, cortava as
unhas, pegou aquela carta que a pobre sra. Taillefer encharcara de lágrimas e a
jogou na lareira dizendo: “Está bem!”. Quis levantar a filha, que lhe tomava as
mãos para beijá-las, mas ele as puxou. Não é uma perversidade? O grande
palerma do filho dele entrou sem cumprimentar a irmã.
— Então são monstros? — comentou o pai Goriot.
— E depois — disse a sra. Couture sem prestar atenção na exclamação do
pobre homem —, pai e filho foram embora me cumprimentando e me pedindo
para desculpá-los, pois tinham compromissos urgentes. Foi assim nossa visita.
Pelo menos viu a filha. Não sei como pode renegá-la, ela e ele se parecem como
duas gotas d’água.
Os pensionistas, internos e externos, chegaram uns depois dos outros,
desejando-se naturalmente bom dia, e dizendo essas insignificâncias que
constituem, em certas classes parisienses, um espírito divertido em que a tolice
entra como elemento principal e cujo mérito consiste especialmente no gesto ou
na pronúncia. Essa espécie de gíria varia continuamente. A brincadeira que é seu
princípio nunca tem um mês de existência. Um fato político, um processo no
tribunal do júri, uma canção das ruas, as farsas de um ator, tudo serve para
entreter esse jogo de espírito que consiste sobretudo em pegar as ideias e as
palavras como petecas e atirá-las um para o outro com raquetes. A recente
invenção do Diorama, que levava a ilusão de óptica a um grau mais alto que o
dos Panoramas, 22 criara em alguns ateliês de pintura a brincadeira de falar em
rama , espécie de caricatura que um jovem pintor, frequentador da pensão
Vauquer, ali inoculara.
— Muito bem!, senhorre Poiret — disse o empregado do museu —, como vai
essa pequena sauderama ? — E depois, sem esperar a resposta: — As senhoras
estão tristes — disse à sra. Couture e a Victorine.
— Vamos jantarre? — exclamou Horace Bianchon, um estudante de
medicina, amigo de Rastignac —, minha estomaguinha desceu usque ad talones
.
— Está fazendo um friorama horroroso! — disse Vautrin. — Mexa-se, pai
Goriot! Que diabos! Seu pé ocupa toda a boca da estufa.
— Ilustre sr. Vautrin — disse Bianchon —, por que diz friorama ? Tem um
erro, é frioperama .
— Não — disse o empregado do museu —, é frionoperama , pela regra: “estou
com frio nos pés”.
— Ah! Ah!
— Aí está sua excelência o marquês de Rastignac, doutor em direito-torto —
exclamou Bianchon agarrando Eugène pelo pescoço e o apertando de modo a
sufocá-lo. — Ei, vocês aí, ei!
A srta. Michonneau entrou devagarinho, cumprimentou os convivas sem dizer
nada e foi se colocar perto das três mulheres.
— Ela sempre me dá arrepios, essa velha morcega — Bianchon disse baixinho
a Vautrin, apontando para a srta. Michonneau. — Eu, que estudo o sistema de
Gall, 23 encontro nela as protuberâncias de Judas.
— Conheceu-o? — perguntou Vautrin.
— Quem não o encontrou! — respondeu Bianchon. — Palavra de honra, essa
solteirona branquela me dá a impressão desses vermes compridos que acabam
roendo uma viga.
— É isso mesmo, rapaz — disse o quarentão penteando as suíças.

E rosa, ela viveu o que vivem as rosas,


O espaço de uma manhã…

— Ah! Ah! Aqui temos uma ótima sopoirama — disse Poiret ao ver
Christophe entrar trazendo respeitosamente a sopa.
— Desculpe, senhor — disse a sra. Vauquer —, é uma sopa de repolho.
Todos os jovens caíram na gargalhada.
— Perdeu, Poiret!
— Poirrrrrette perdeu!
— Marquem dois pontos para mamãe Vauquer — disse Vautrin.
— Alguém prestou atenção no nevoeiro desta manhã? — perguntou o
empregado.
— Era — disse Bianchon — um nevoeiro frenético e inaudito, um nevoeiro
lúgubre, melancólico, verde, ofegante, um nevoeiro Goriot.
— Goriorama — disse o pintor —, porque ninguém via um palmo na frente do
nariz.
— Ei, lorde Gaoriote, estamo falano de vóis.
Sentado na ponta da mesa, perto da porta pela qual se servia, o pai Goriot
levantou a cabeça farejando um pedaço de pão que deixara debaixo do
guardanapo, por um velho hábito comercial que às vezes reaparecia.
— O que é? — gritou-lhe, áspera, a sra. Vauquer num tom que abafou o ruído
das colheres, dos pratos e das vozes —, será que não está achando bom o pão?
— Ao contrário, senhora — ele respondeu —, é feito com a farinha de
Étampes, primeira qualidade.
— Como é que percebe isso? — perguntou-lhe Eugène.
— Pela brancura, pelo gosto.
— Pelo gosto do nariz, já que o está cheirando — disse a sra. Vauquer. — O
senhor está ficando tão econômico que vai acabar dando um jeito de se alimentar
fungando o ar da cozinha.
— Então registre uma patente de invenção — gritou o empregado do museu
—, fará uma bela fortuna.
— Mas deixe-o, ele faz isso para nos convencer de que foi macarroneiro —
disse o pintor.
— Então o seu nariz é uma retorta? — perguntou ainda o empregado do
museu.
— Re quê? — perguntou Bianchon.
— Re-truque.
— Re-tranca.
— Re-traso.
— Re-treta.
— Re-trós.
— Re-boco.
— Re-clame.
— Re-tortarama.
Essas oito respostas partiram de todos os lados da sala com a rapidez de um
fogo de rastilho, e prestaram-se tanto mais ao riso porque o pai Goriot olhava
para os convivas com cara de bobo, como um homem que tenta compreender
uma língua estrangeira.
— Re? — perguntou a Vautrin, que estava perto dele.
— Revanchismo, meu velho! — disse Vautrin enfiando o chapéu do pai Goriot
com um tapa que lhe deu na cabeça e que o fez descer até os olhos.
O pobre velho, estupefato com esse ataque desabrido, ficou imóvel por um
instante. Christophe levou o prato do homenzinho, acreditando que ele terminara
a sopa; de modo que quando Goriot, depois de levantar o chapéu, pegou sua
colher, acabou batendo na mesa. Todos os convivas caíram na risada.
— O senhor — disse o velhote — é um impertinente, e caso se permita de
novo dar esses socos no meu chapéu…
— E daí, o que, papai? — disse Vautrin interrompendo-o.
— Pois então! Um dia pagará muito caro por isso…
— No inferno, não é? — disse o pintor —, naquele cantinho preto onde se
põem as crianças más!
— E aí, senhorita — disse Vautrin a Victorine —, não está comendo. Então o
papai se mostrou recalcitrante?
— Um horror — disse a sra. Couture.
— É preciso chamá-lo às falas — disse Vautrin.
— Mas — disse Rastignac, que estava pertinho de Bianchon —, essa senhorita
poderia mover uma ação sobre a questão dos alimentos, já que não come. Ei! Ei!
Mas vejam como o pai Goriot examina a srta. Victorine.
O velho esquecia de comer para contemplar a pobre moça, em cujos traços
explodia uma dor verdadeira, a dor da filha não reconhecida que ama o pai.
— Meu caro — disse Eugène baixinho —, nós nos enganamos sobre o pai
Goriot. Não é um imbecil nem um homem sem nervos. Aplique a ele seu sistema
de Gall e diga-me o que pensa. Eu o vi esta noite entortar um prato de vermeil,
como se fosse cera, e nesse momento a expressão de seu rosto trai sentimentos
extraordinários. Sua vida me parece misteriosa demais para não valer a pena ser
estudada. Sim, Bianchon, por mais que você ria, não estou brincando.
— Esse homem é um fato médico — disse Bianchon —, concordo; se quiser,
eu o disseco.
— Não, apalpe a cabeça dele.
— Ah! Bem, a estupidez dele talvez seja contagiosa.
No dia seguinte Rastignac se vestiu todo elegante e foi, lá pelas três da tarde, à
casa da sra. de Restaud, entregando-se no caminho a essas esperanças
irrefletidamente loucas que tornam a vida dos jovens tão bela de emoções: então
eles não calculam os obstáculos nem os perigos, veem em tudo o sucesso,
poetizam sua existência unicamente pelo jogo da imaginação e tornam-se
infelizes ou tristes pela ruína de projetos que só viviam em seus desejos
desenfreados; se não fossem ignorantes e tímidos, o mundo social seria
impossível. Eugène andava com mil precauções para não se enlamear, mas
andava pensando no que diria à sra. de Restaud, abastecia-se de espírito,
inventava as réplicas de uma conversa imaginária, preparava suas tiradas, suas
frases à Talleyrand, supondo pequenas circunstâncias favoráveis à declaração
sobre a qual baseava seu futuro. O estudante se enlameou, foi obrigado a mandar
engraxar as botas e escovar as calças no Palais-Royal. “Se eu fosse rico”, pensou
trocando uma moeda de trinta vinténs que pegara no caso de uma desgraça ,
“teria ido de carruagem, poderia ter pensado à vontade.” Finalmente, chegou à
Rue du Helder e perguntou pela condessa de Restaud. Com a fúria fria de um
homem certo de triunfar um dia, recebeu o olhar de desprezo das pessoas que o
tinham visto atravessar o pátio a pé, sem ter ouvido o barulho de um carro na
porta. Aquele olhar lhe foi mais sensível ainda porque já havia entendido sua
inferioridade ao entrar no pátio, onde bufava um belo cavalo ricamente atrelado
a um desses cabriolés elegantes que exibem o luxo de uma existência dissipadora
e subentendem o hábito de todas as felicidades parisienses. Ficou, por conta
própria, de mau humor. As gavetas abertas de seu cérebro e que ele esperava
encontrar cheias de espírito se fecharam, tornou-se um tolo. Esperando a
resposta da condessa, a quem um mordomo fora dizer o nome do visitante,
Eugène ficou num só pé diante de uma janela da antessala, apoiou o cotovelo
numa cremona e olhou mecanicamente para o pátio. Achava o tempo longo, teria
ido embora se não fosse dotado dessa tenacidade meridional que gera prodígios
quando caminha em linha reta.
— Senhor — disse o mordomo —, a senhora está em seu budoar e muito
ocupada, não me respondeu; mas, se quiser passar ao salão, já há alguém ali.
Admirando o tenebroso poder dessas pessoas que, com uma só palavra, acusam
ou julgam seus patrões, Rastignac abriu deliberadamente a porta pela qual saiu o
mordomo, a fim de, tudo indica, fazer esses insolentes criados acreditarem que
conhecia os moradores da casa; mas, muito atordoado, foi dar num cômodo onde
havia lamparinas, aparadores, um aparelho de aquecer toalhas para o banho, e
que desembocava num corredor escuro e numa escada camuflada. Os risos
abafados que ouviu na antessala levaram seu embaraço ao auge.
— Senhor, o salão é por aqui — disse-lhe o criado com esse falso respeito que
parece um escárnio a mais.
Eugène voltou atrás com tamanha precipitação que bateu numa banheira, mas
felizmente segurou o chapéu para evitar que caísse dentro do banho. Nesse
instante, abriu-se uma porta no fundo do longo corredor iluminado por uma
pequena lamparina, Rastignac ouviu ao mesmo tempo a voz da sra. de Restaud, a
do pai Goriot e o ruído de um beijo. Entrou na sala de jantar, cruzou-a, seguiu o
criado e entrou num primeiro salão onde ficou encostado defronte da janela,
percebendo que tinha vista para o pátio. Queria ver se aquele pai Goriot era
mesmo, realmente, o seu pai Goriot. Seu coração disparava, estranhamente,
lembrava-se das terríveis reflexões de Vautrin. O criado esperava Eugène à porta
do salão, mas de lá saiu de repente um elegante rapaz, que disse impaciente:
— Vou embora, Maurice. Diga à senhora condessa que a esperei mais de meia
hora.
Esse impertinente, que com certeza tinha o direito de sê-lo, cantarolou algum
trinado italiano dirigindo-se à janela onde estacionava Eugène, tanto para ver a
figura do estudante como para olhar o pátio.
— Mas o senhor conde melhor faria se esperasse mais um instante, a senhora
terminou — disse Maurice retornando à antessala.
Nesse momento o pai Goriot aparecia perto da porta-cocheira pela saída da
escadinha. O homem pegava seu guarda-chuva e se preparava para abri-lo, sem
prestar atenção na grande porta que estava aberta para dar passagem a um rapaz
condecorado que dirigia um tílburi. O pai Goriot apenas teve tempo de se jogar
para trás a fim de não ser esmagado. O tafetá do guarda-chuva assustara o
cavalo, que se desviou ligeiramente precipitando-se para a escadaria. Esse rapaz
virou a cabeça com uma expressão de raiva, olhou para o pai Goriot e lhe fez,
antes que ele saísse, uma saudação que retratava a consideração forçada
demonstrada aos agiotas de quem se precisa, ou esse respeito necessário exigido
por um homem corrupto, mas do qual mais tarde sentimos vergonha. O pai
Goriot respondeu com uma saudaçãozinha amistosa, cheia de bonomia. Esses
fatos ocorreram com a rapidez de um raio. Atento demais para perceber que não
estava sozinho, Eugène ouviu de repente a voz da condessa.
— Ah! Maxime, você estava indo embora — ela disse em tom de reprimenda,
ao qual se misturava um pouco de desprezo.
A condessa não prestara atenção na entrada do tílburi. Rastignac se virou
abrupto e viu a condessa sedutoramente vestida com um penhoar de caxemira
branco, laços cor-de-rosa, penteado displicente, como são o das mulheres de
Paris pela manhã; estava perfumada, com certeza tomara banho, e sua beleza,
por assim dizer amaciada, parecia mais voluptuosa; seus olhos estavam úmidos.
O olhar dos jovens sabe ver tudo: seus espíritos se unem aos esplendores da
mulher assim como uma planta aspira no ar substâncias que lhe são próprias,
Eugène sentiu então o frescor desabrochado das mãos daquela mulher sem
precisar tocá-las. Via, através da caxemira, as tonalidades rosadas do corpete que
o penhoar, ligeiramente entreaberto, deixava às vezes a nu, e sobre o qual seus
olhos se espalhavam. O recurso às barbatanas era inútil para a condessa, só a
cintura marcava seu corpo flexível, seu pescoço convidava ao amor, seus pés
eram bonitos dentro das pantufas. Quando Maxime pegou aquela mão para beijá-
la, Eugène então percebeu a presença de Maxime, e a condessa percebeu a de
Eugène.
— Ah!, é o sr. de Rastignac, estou muito contente em vê-lo — disse ela, com
um jeito a que sabem obedecer as pessoas inteligentes.
Maxime olhava alternadamente para Eugène e para a condessa de modo
bastante significativo para fazer o intruso dar no pé. “Ah, essa! Espero, minha
cara, que você vai me pôr esse engraçadinho porta afora!” Essa frase era uma
tradução clara e inteligível dos olhares do rapaz impertinentemente orgulhoso
que a condessa Anastasie chamara de Maxime, e cujo rosto ela consultava com
essa atenção submissa que expressa todos os segredos de uma mulher sem que
ela nem desconfie. Rastignac sentiu um ódio violento daquele rapaz. Primeiro,
os belos cabelos louros e bem frisados de Maxime lhe ensinaram como os seus
eram horríveis. Depois, Maxime tinha botas finas e limpas, ao passo que as suas,
apesar do cuidado que tomara ao andar, estavam marcadas por um leve rastro de
lama. Por fim, Maxime vestia uma sobrecasaca que lhe apertava elegantemente a
cintura e o fazia parecer uma mulher bonita, enquanto Eugène vestia, às duas e
meia, uma casaca preta. O espirituoso filho da Charente sentiu a superioridade
que a roupa dava àquele dândi, esbelto e alto, de olhos claros, tez pálida, um
desses homens capazes de arruinar os órfãos. Sem esperar a resposta de Eugène,
a sra. de Restaud bateu asas e voou para o outro salão, deixando flutuarem as
abas de seu penhoar que se enrolavam e desenrolavam de modo a lhe dar a
aparência de uma borboleta; e Maxime a seguiu. Eugène, furioso, seguiu
Maxime e a condessa. Esses três personagens se viram, portanto, em presença
um do outro, na altura da lareira, no meio do grande salão. O estudante bem
sabia que ia atrapalhar aquele odioso Maxime; mas arriscando-se a desagradar à
sra. de Restaud, quis incomodar o dândi. De repente, lembrando-se de ter visto
aquele rapaz no baile da sra. de Beauséant, adivinhou o que Maxime era para a
sra. de Restaud; e com essa audácia juvenil que faz cometerem-se grandes
besteiras ou obter grandes êxitos, pensou consigo mesmo: “Aí está meu rival,
vou triunfar contra ele”. Imprudente! Ignorava que o conde Maxime de Trailles
deixava-se insultar, atirava em primeiro lugar e matava o adversário. Eugène era
um caçador hábil, mas ainda não tinha conseguido derrubar vinte bonecos dos
vinte e dois existentes num tiro ao alvo. O jovem conde jogou-se numa bergère
ao lado da lareira, pegou as tenazes e remexeu o fogo com um gesto tão violento,
tão rabugento, que o belo rosto de Anastasie se entristeceu subitamente. A jovem
mulher virou-se para Eugène e lhe lançou um desses olhares friamente
interrogativos que dizem tão bem: “Por que não vai embora?”, que as pessoas
bem-educadas logo percebem o que querem dizer essas frases, que deveriam ser
chamadas frases de saída.
Eugène fez uma expressão agradável e disse:
— Senhora, eu estava apressado em vê-la para…
Parou de chofre. Uma porta se abriu. O senhor que dirigia o tílburi surgiu de
repente, sem chapéu, não cumprimentou a condessa, olhou preocupado para
Eugène, estendeu a mão a Maxime dizendo-lhe “Bom dia”, com uma expressão
fraterna que surpreendeu singularmente Eugène. Os rapazes da província
ignoram como é doce a vida a três.
— O sr. de Restaud — disse a condessa ao estudante, apontando-lhe seu
marido.
Eugène fez uma profunda reverência.
— Este — ela continuou, apresentando Eugène ao conde de Restaud — é o sr.
de Rastignac, parente da sra. viscondessa de Beauséant pelos Marcillac, e que
tive o prazer de encontrar em seu último baile.
Parente da sra. viscondessa de Beauséant pelos Marcillac! Essas palavras, que
a condessa pronunciou quase enfaticamente, por conta da espécie de orgulho que
sente uma dona de casa ao provar que só recebe em sua residência pessoas
distintas, tiveram um efeito mágico, o conde abandonou seu ar friamente
cerimonioso e cumprimentou o estudante.
— Muito prazer, senhor — disse —, em poder conhecê-lo.
O próprio conde Maxime de Trailles deu para Eugène um olhar inquieto e de
súbito abandonou seu jeito impertinente. Esse golpe de mágica, decorrente da
poderosa intervenção de um sobrenome, abriu trinta compartimentos no cérebro
do meridional e lhe devolveu o espírito que ele havia preparado. Uma luz súbita
o fez ver claro na atmosfera, para ele ainda tenebrosa, da alta sociedade
parisiense. Então, a Casa Vauquer e o pai Goriot ficaram bem longe de seu
pensamento.
— Eu acreditava que os Marcillac estavam extintos? — comentou o conde de
Restaud com Eugène.
— É, senhor — ele respondeu. — Meu tio-avô, o cavaleiro de Rastignac,
casou-se com a herdeira da família De Marcillac. Só teve uma filha, que se casou
com o marechal de Clarimbault, avó materno da sra. de Beauséant. Somos o
ramo caçula, ramo hoje mais pobre ainda porque meu tio-avô, vice-almirante,
perdeu tudo a serviço do rei. O governo revolucionário não quis admitir nossos
créditos na liquidação que fez da Companhia das Índias.
— O senhor seu tio-avô não comandava o Vengeur antes de 1789?
— Exatamente.
— Então ele conheceu meu avô, que comandava o Warwick .
Maxime deu ligeiramente de ombros ao olhar para a sra. de Restaud, com jeito
de lhe dizer: “Se ele se põe a falar de marinha com esse aí, estamos fritos”.
Anastasie compreendeu o olhar do sr. de Trailles. Com esse admirável poder que
as mulheres têm, ela começou a sorrir dizendo:
— Venha, Maxime; tenho algo a lhe pedir. Senhores, vamos deixá-los navegar
juntos pela mesma rota no Wa rwick e no Vengeur .
Levantou-se e fez um sinal cheio de irônica traição para Maxime, que pegou
com ela a rota do budoar. Mal esse casal morganático , bonita expressão alemã
que não tem equivalente em francês, chegara à porta, o conde interrompeu sua
conversa com Eugène.
— Anastasie! Mas fique, minha querida — exclamou com humor —, você
bem sabe que…
— Já volto, já volto — ela disse interrompendo-o —, só preciso de um
momento para dizer a Maxime o que quero que ele faça.
Voltou prontamente. Como todas as mulheres que, obrigadas a observar o
caráter dos maridos para poderem se comportar segundo suas fantasias, sabem
reconhecer até onde devem ir a fim de não perderem uma confiança preciosa, e
que então jamais se chocam com eles nas pequenas coisas da vida, a condessa
vira pelas inflexões de voz do conde que não haveria nenhuma segurança em
ficar no budoar. Esses contratempos se deviam a Eugène. Assim a condessa
mostrou com uma expressão e com um gesto cheios de desprezo o estudante a
Maxime, que disse, muito satírico, ao conde, à sua mulher e a Eugène:
— Escutem aqui, os senhores estão falando de negócios, não quero atrapalhá-
los; adeus.
E se foi.
— Mas fique, Maxime! — gritou o conde.
— Venha jantar — disse a condessa, que, deixando mais uma vez Eugène e o
conde, seguia Maxime pelo primeiro salão, onde ficaram juntos tempo suficiente
para crer que o sr. de Restaud mandaria Eugène embora.
Rastignac os ouvia sucessivamente caindo na risada, conversando, se calando;
mas o malicioso estudante mostrava-se espirituoso com o sr. de Restaud, o
lisonjeava ou o embarcava em discussões, a fim de rever a condessa e saber
quais eram suas relações com o pai Goriot. Aquela mulher, sem a menor dúvida
apaixonada por Maxime, aquela mulher, senhora de seu marido, ligada
secretamente ao velho macarroneiro, parecia-lhe um mistério total. Queria
penetrar nesse mistério, esperando assim poder reinar como soberano sobre a
mulher tão eminentemente parisiense.
— Anastasie — disse o conde chamando de novo a mulher.
— Vamos, meu pobre Maxime — ela disse ao rapaz —, é preciso se resignar.
Até à noite…
— Espero, Nasie — ele lhe disse ao ouvido —, que você barrará a entrada
desse mocinho cujos olhos se acenderam como brasas quando o seu penhoar se
entreabriu. Ele lhe faria declarações, a comprometeria, e você me forçaria a
matá-lo.
— Está louco, Maxime? — ela disse. — Esses estudantezinhos não são, ao
contrário, excelentes para-raios? Eu o farei, com certeza, tomar birra de Restaud.
Maxime caiu na risada e saiu, seguido pela condessa, que se pôs na janela para
vê-lo subir na carruagem, fazendo o cavalo patear e balançando seu chicote. Só
voltou quando o portão se fechou.
— Mas me diga, minha querida — gritou-lhe o conde quando ela entrou —, a
terra onde vive a família do cavalheiro não é longe de Verteuil, na beira do
Charente. O tio-avô dele e meu avô se conheciam.
— Que prazer saber que somos todos da mesma terra — disse a condessa,
distraída.
— Mais do que imagina — disse baixinho Eugène.
— Como? — ela retrucou com vivacidade.
— Mas — continuou o estudante — acabo de ver sair de sua casa um senhor
que mora porta a porta comigo, na mesma pensão, o pai Goriot.
Diante desse nome embelezado com a palavra “pai”, o conde, que estava
atiçando o fogo, jogou as tenazes no chão, como se lhe tivessem queimado as
mãos, e se levantou.
— O senhor poderia ter dito sr. Goriot! — exclamou.
A condessa, primeiro, empalideceu ao ver a impaciência do marido, depois
enrubesceu e ficou evidentemente embaraçada; respondeu com uma voz que quis
tornar natural, e com ar falsamente distante:
— É impossível conhecer alguém de quem mais gostamos… — Interrompeu-
se, olhou para seu piano como se despertasse nela alguma fantasia, e disse: —
Gosta de música?
— Muito — respondeu Eugène, agora vermelho e pasmo com a
constrangedora ideia de ter cometido uma rematada bobagem.
— Canta? — ela exclamou indo para o piano, tendo atacado intensamente
todas as teclas, remexendo-as desde o dó de baixo até o fá do alto. Rrrahh!!
— Não, senhora.
O conde de Restaud ia de um lado para o outro.
— É uma pena, privou-se de um grande instrumento de sucesso. Ca-a-ro , ca-
a-ro, ca-a-a-a-ro , non du-bita-re — cantou a condessa.
Ao pronunciar o nome do pai Goriot, Eugène dera um golpe de mágica, cujo
efeito no entanto era inverso ao que haviam provocado as palavras: parente da
sra. de Beauséant. Estava na situação de um homem introduzido de favor na casa
de um grande amante de curiosidades e que, tocando por desatenção num
armário cheio de figuras esculpidas, deixa caírem três ou quatro cabeças mal
coladas. Gostaria de se jogar num abismo. O rosto da sra. de Restaud estava
seco, frio, e seus olhos agora indiferentes fugiam daqueles do desastrado
estudante.
— A senhora — ele disse — tem o que conversar com o sr. de Restaud, queira
aceitar minhas homenagens e me permita…
— Sempre que vier — disse precipitadamente a condessa, parando Eugène
com um gesto — esteja certo de que dará, ao sr. de Restaud e a mim, o mais
intenso prazer.
Eugène saudou com reverência o casal e saiu, seguido pelo sr. de Restaud, que,
apesar de suas solicitações, o acompanhou até a antessala.
— Sempre que esse senhor se apresentar — disse o conde a Maurice —, nem a
senhora nem eu estaremos em casa.
Quando Eugène pôs o pé na escadaria, percebeu que chovia. “Ora”, pensou
com seus botões, “vim armar uma trapalhada, cuja causa e cujo alcance ignoro, e
para completar estragarei minha roupa e meu chapéu. Deveria ficar no meu
canto, dando duro no direito, só pensando em me tornar um rude magistrado.
Posso frequentar a sociedade quando, para aí manobrar adequadamente, se
precisa de um monte de cabriolés, botas engraxadas, apetrechos indispensáveis,
correntes de ouro, desde a manhã luvas de camurça brancas que custam seis
francos, e sempre luvas amarelas à noite? Velho esquisito esse pai Goriot, que
coisa!”
Quando se viu à porta da rua, o cocheiro de um carro de aluguel, que
provavelmente acabava de deixar uns recém-casados e não pedia nada melhor do
que roubar de seu patrão algumas corridas de contrabando, fez sinal para
Eugène, vendo-o sem guarda-chuva, de casaca preta, colete branco, luvas
amarelas e botas engraxadas. Eugène estava sob o impacto de uma dessas raivas
surdas que impelem um jovem a se enfiar cada vez mais no abismo em que
entrou, como se ali esperasse encontrar uma feliz saída. Aceitou, com um aceno
de cabeça, a oferta do cocheiro. Sem ter mais que vinte e dois vinténs no bolso,
subiu na carruagem onde alguns grãos de flores de laranjeira e canutilhos
demonstravam a passagem dos noivos.
— Para onde vai? — perguntou o cocheiro, que já não usava suas luvas
brancas.
“Santo Deus!”, pensou Eugène, “já que estou me afundando, que pelo menos
isso me sirva para alguma coisa!” — Vá ao palacete de Beauséant —
acrescentou em voz alta.
— Qual? — disse o cocheiro.
Palavra sublime que confundiu Eugène. Esse novato elegante não sabia que
havia dois palacetes de Beauséant, não imaginava como era rico em parentes que
não se preocupavam com ele.
— O do visconde de Beauséant, à Rue…
— De Grenelle — disse o cocheiro balançando a cabeça e o interrompendo. —
Sabe, ainda há o palacete do conde e do marquês de Beauséant, na Rue Saint-
Dominique — acrescentou levantando o estribo.
— Eu sei perfeitamente — respondeu Eugène em tom seco.
“Todos hoje estão zombando de mim!”, pensou jogando o chapéu sobre as
almofadas dianteiras. “Aí está uma escapada que vai me custar o resgate de um
rei. Mas pelo menos vou fazer uma visita à minha suposta prima de maneira
solidamente aristocrática. O pai Goriot já me custa ao menos dez francos, esse
velho celerado! Palavra de honra, vou contar minha aventura à sra. de
Beauséant, talvez a faça rir. Com certeza ela conhecerá o mistério das ligações
criminosas desse velho rato sem rabo com aquela linda mulher. É melhor
agradar minha prima do que me bater contra essa mulher imoral, que me dá a
sensação de ser bem dispendiosa. Se o nome da bela viscondessa é tão poderoso,
então qual deve ser o peso de sua pessoa? Dirijamo-nos ao alto escalão. Quando
se ataca uma coisa no céu, é preciso visar Deus!”
Essas palavras são a fórmula breve dos mil e um pensamentos entre os quais
ele pairava. Recuperou um pouco de calma e segurança ao ver cair a chuva.
Pensou que, se ia dissipar duas das preciosas moedas de cem vinténs que lhe
restavam, elas seriam felizmente empregadas na conservação de sua roupa, de
suas botas e de seu chapéu. Ouviu não sem um ímpeto de hilaridade o cocheiro
gritando: “A porta, por favor!”. Um porteiro vermelho e dourado fez grunhir as
dobradiças da porta do palacete, e Rastignac viu com doce satisfação seu carro
passando pelo pórtico, virando no pátio e parando sob a marquise da escadaria.
O cocheiro com um grosso capote azul bordado de vermelho foi desdobrar o
estribo. Descendo do carro, Eugène ouviu risos abafados que partiam do
peristilo. Três ou quatro criados já tinham gracejado a respeito daquele carro
vulgar de noiva. O riso deles esclareceu o estudante quando comparou aquela
carruagem com um dos mais elegantes cupês de Paris, atrelado com dois cavalos
fogosos que tinham rosas na orelha, mordiam o travão, e que um cocheiro
empoado e bem engravatado segurava pela rédea como se eles quisessem
escapar. Na Rue Chaussée d’Antin, a sra. de Restaud tinha no pátio o refinado
cabriolé do homem de vinte e seis anos. No Faubourg Saint-Germain, esperava-o
o luxo de um grande aristocrata, uma carruagem que trinta mil francos não
pagariam.
“Mas quem estará aí?”, pensou Eugène entendendo meio tardiamente que
devia haver em Paris bem poucas mulheres desimpedidas, e que a conquista de
uma dessas rainhas custava mais que sangue. “Diachos! minha prima com
certeza também terá seu Maxime.”
Subiu a escadaria desesperado. Quando o viram, a porta envidraçada se abriu;
encontrou os criados sérios como asnos sendo escovados. A festa à qual assistira
ocorrera nos grandes salões de recepção, situados no térreo do palacete de
Beauséant. Como não tivera tempo, entre o convite e o baile, de fazer uma visita
à prima, ainda não penetrara nos aposentos da sra. de Beauséant; assim, ia ver
pela primeira vez as maravilhas daquela elegância pessoal que trai a alma e os
costumes de uma mulher de distinção. Estudo tanto mais curioso na medida em
que o salão da sra. de Restaud lhe fornecia um termo de comparação. Às quatro
e meia a viscondessa estava visível. Cinco minutos mais cedo, não teria recebido
o primo. Eugène, que não sabia nada das diversas etiquetas parisienses, foi
conduzido por uma grande escadaria em tons brancos, cheia de flores, com
rampa dourada, tapete vermelho, até a sra. de Beauséant, cuja biografia verbal
ele ignorava, uma dessas histórias cambiantes que se contam todas as noites de
ouvido em ouvido nos salões de Paris.
A viscondessa era ligada, fazia três anos, a um dos mais célebres e mais ricos
senhores portugueses, o marquês d’Ajuda-Pinto. Era uma dessas ligações
inocentes que têm tantos atrativos para as pessoas assim ligadas, que elas não
conseguem suportar nenhum estranho. Assim, o visconde de Beauséant dera ele
mesmo o exemplo ao público, respeitando, bem ou mal, essa união morganática.
As pessoas que, nos primeiros dias dessa amizade, foram ver a viscondessa às
duas horas, ali encontraram o marquês d’Ajuda-Pinto. A sra. de Beauséant,
incapaz de fechar sua porta, o que teria sido muito inconveniente, recebia tão
friamente as visitas e contemplava com tanta aplicação a cornija de sua casa que
todos compreendiam como a embaraçavam. Quando se soube em Paris que se
incomodava a sra. de Beauséant indo vê-la entre duas e quatro horas, ela se viu
na solidão mais completa. Ia ao Bouffons ou ao Opéra em companhia do sr. de
Beauséant e do sr. d’Ajuda-Pinto; mas, como homem que sabe viver, o sr. de
Beauséant sempre deixava sua mulher e o português depois de instalá-los. O sr.
d’Ajuda devia se casar. Desposava uma srta. de Rochefide. Em toda a alta
sociedade uma só pessoa ainda ignorava esse casamento, essa pessoa era a sra.
de Beauséant. Algumas amigas suas tinham lhe falado vagamente; ela rira,
acreditando que as amigas queriam perturbar uma felicidade invejada. No
entanto, os proclamas iam correr. Embora ele tivesse ido lá para notificar o
casamento à viscondessa, o belo português ainda não ousara dizer uma mísera
palavra a respeito. Por quê? Nada, com certeza, é mais difícil do que notificar a
uma mulher um ultimatum desses. Certos homens se sentem mais à vontade, no
campo de batalha, na frente de um homem que lhes ameaça o coração com uma
espada do que na frente de uma mulher que, depois de ter declamado suas
elegias durante duas horas, faz-se de morta e pede os sais. Portanto, naquele
momento o sr. d’Ajuda-Pinto estava pisando em ovos e queria sair, pensando
que a sra. de Beauséant ficaria sabendo da notícia; ele lhe escreveria, seria mais
cômodo tratar desse galante assassinato por correspondência do que de viva voz.
Quando o criado da viscondessa anunciou o sr. Eugène de Rastignac, fez
estremecer de alegria o marquês d’Ajuda-Pinto. Saibam que uma mulher
apaixonada é ainda mais engenhosa em criar dúvidas do que hábil em variar o
prazer. Quando está prestes a ser deixada, adivinha mais depressa o sentido de
um gesto do que o corcel de Virgílio fareja os longínquos corpúsculos que lhe
anunciam o amor. Assim, tenham em conta que a sra. de Beauséant flagrou esse
estremecimento involuntário, leve, mas ingenuamente aterrador. Eugène
ignorava que nunca ninguém deve se apresentar em qualquer casa em Paris sem
que os amigos da casa lhe tenham contado a história do marido, da mulher ou
dos filhos, a fim de não cometer nenhuma dessas gafes a respeito das quais se
diz pitorescamente na Polônia: “Atrele cinco bois à sua carroça!”, sem dúvida
para tirá-lo do mau passo que vai fazê-lo se atolar. Se essas desgraças da
conversação ainda não têm nenhum nome na França, aqui certamente supõe-se
que elas são impossíveis, devido à enorme publicidade que as maledicências
alcançam. Depois de ter se atolado na casa da sra. de Restaud, que não lhe
deixara nem sequer o tempo de atrelar os cinco bois à sua carroça, só Eugène era
capaz de recomeçar seu ofício de boiadeiro, apresentando-se na casa da sra. de
Beauséant. Mas, se tinha horrivelmente atrapalhado a sra. de Restaud e o sr. de
Trailles, tirou de apuros o sr. d’Ajuda.
— Adeus — disse o português apressando-se em chegar à porta quando
Eugène entrou no salãozinho gracioso, cinza e rosa, em que o luxo parecia ser
apenas elegância.
— Mas até esta noite — disse a sra. de Beauséant virando a cabeça e dando
uma olhadela para o marquês. — Não vamos ao Bouffons?
— Não posso — ele disse pegando a maçaneta da porta.
A sra. de Beauséant se levantou, chamou-o para junto de si, sem prestar a
menor atenção em Eugène, que, em pé, atordoado com as cintilações de uma
riqueza maravilhosa, acreditava na realidade dos contos árabes, e não sabia onde
se meter ao ver-se em presença daquela mulher sem ser notado por ela. A
viscondessa levantara o indicador da mão direita e por um bonito gesto apontava
ao marquês um lugar na frente dela. Houve nesse gesto um tão violento
despotismo de paixão que o marquês largou a maçaneta da porta e se aproximou.
Eugène o olhou, não sem inveja.
“Aí está”, pensou, “o homem do cupê! Mas então é preciso ter cavalos
fogosos, librés e ouro a rodo para obter o olhar de uma mulher de Paris?” O
demônio do luxo o mordeu no coração, a febre do ganho o assaltou, a sede de
ouro secou-lhe a garganta. Ele tinha cento e trinta francos para o seu trimestre.
Seu pai, sua mãe, seus irmãos, suas irmãs, sua tia não gastavam, todos juntos,
duzentos francos por mês. Essa rápida comparação entre sua situação presente e
o objetivo a que era preciso chegar contribuiu para deixá-lo estupefato.
— Por que — disse a viscondessa rindo — não pode ir ao Italiens?
— Negócios! Janto com o embaixador da Inglaterra.
— Abandone-os.
Quando um homem engana, é invencivelmente obrigado a acumular desculpas
em cima de desculpas. O sr. d’Ajuda disse então, rindo:
— Você exige?
— Sim, sem dúvida.
— Era o que eu queria ouvir — respondeu lançando um desses olhares finos
que teriam tranquilizado qualquer outra mulher. Pegou a mão da viscondessa,
beijou-a e foi embora.
Eugène passou a mão nos cabelos e se contorceu para saudá-la, acreditando
que a sra. de Beauséant ia pensar nele; de repente ela se lança, precipita-se pela
galeria, acorre à janela e olha para o sr. d’Ajuda enquanto ele subia na
carruagem; presta atenção na ordem e ouve o empregado repetindo ao cocheiro:
“Para a casa do sr. de Rochefide”. Essas palavras foram o raio e o trovão para
aquela mulher, que retornou, às voltas com apreensões mortais. Na alta
sociedade, as mais terríveis catástrofes são apenas isso. A viscondessa entrou em
seu quarto, sentou-se à sua mesa, pegou um bonito papel.
Tendo em vista , escreveu, que janta com os Rochefide e não na embaixada
inglesa, deve-me uma explicação; espero-o.
Depois de arrumar umas letras desfiguradas pelo tremor convulso de sua mão,
pôs um C, que queria dizer Claire de Bourgogne, e tocou.
— Jacques — disse a seu criado de quarto, que veio logo —, você irá às sete e
meia à casa do sr. de Rochefide, perguntará pelo marquês d’Ajuda. Se o senhor
marquês estiver, lhe entregará este bilhete sem pedir resposta; se não estiver,
voltará e me devolverá a carta.
— A senhora condessa tem alguém que a espera em seu salão.
— Ah, é verdade! — ela disse empurrando a porta.
Eugène começava a se sentir incomodado, quando enfim viu a viscondessa,
que lhe disse num tom cuja emoção remexeu as fibras de seu coração:
— Desculpe, senhor, eu tinha um bilhete para escrever, agora sou toda sua.
Não sabia o que dizia, pois eis o que pensava: “Ah! ele quer se casar com a
srta. de Rochefide. Mas então é livre? Esta noite esse casamento será desfeito, ou
eu… Mas amanhã não se falará mais disso”.
— Minha prima… — respondeu Eugène.
— Hein? — disse a viscondessa dando-lhe um olhar cuja impertinência gelou
o estudante.
Eugène entendeu aquele hein. Fazia três horas que aprendia tantas coisas, que
se sentia pronto para o que desse e viesse.
— Senhora — recomeçou, enrubescendo. Hesitou, depois continuou: —
Desculpe; preciso de tanta proteção que um fiapo de parentesco não seria nada
mau.
A sra. de Beauséant sorriu, mas tristemente; já sentia a desgraça que ressoava
em seu ambiente.
— Se conhecesse a situação em que se encontra minha família — ele
prosseguiu —, iria gostar de fazer o papel de uma dessas fadas fabulosas que se
deliciavam em dissipar os obstáculos em torno de seus afilhados.
— Muito bem, meu primo — ela disse rindo —, em que lhe posso ser útil?
— Mas, e eu sei? Ligar-se à senhora por um laço de parentesco que se perde na
sombra já é toda uma fortuna. A senhora me perturbou, já não sei o que vinha
lhe dizer. É a única pessoa que conheço em Paris. Ah! Gostaria de consultá-la
pedindo que me aceite como um pobre menino que deseja grudar-se em sua saia,
e que seria capaz de morrer por si.
— Mataria alguém por mim?
— Mataria dois — disse Eugène.
— Menino! Sim, você é um menino — ela disse reprimindo umas lágrimas —,
amaria com sinceridade!
— Oh! — ele disse balançando a cabeça.
A viscondessa se interessou profundamente pelo estudante devido a essa
resposta ambiciosa. O meridional estava em seu primeiro cálculo. Entre o budoar
azul da sra. de Restaud e o salão rosa da sra. de Beauséant, fizera três anos desse
direito parisiense do qual não se fala, embora constitua uma alta jurisprudência
social que, bem aprendida e bem praticada, leva a tudo.
— Ah! lembrei-me — disse Eugène. — Eu tinha reparado na sra. de Restaud
durante o seu baile, fui à casa dela hoje de manhã.
— Deve tê-la incomodado bastante — disse sorrindo a sra. de Beauséant.
— É! Sim, sou um ignorante que porá contra si próprio o mundo inteiro, se a
senhora me recusar seu auxílio. Creio que é muito difícil encontrar em Paris uma
mulher jovem, bela, rica, elegante, que esteja livre, e preciso de uma que me
ensine o que vocês mulheres sabem tão bem explicar: a vida. Encontrarei em
toda parte um sr. de Trailles. Portanto, vinha vê-la para lhe pedir a chave de um
enigma e solicitar que me dissesse de que natureza foi a bobagem que cometi por
lá. Falei de um pai…
— A sra. duquesa de Langeais — disse Jacques, cortando a palavra do
estudante, que fez o gesto de um homem violentamente contrariado.
— Se quiser ter êxito — disse a viscondessa em voz baixa —, primeiro não
seja tão demonstrativo.
— Ah! Bom dia, minha cara — ela continuou levantando-se e indo ao encontro
da duquesa, cujas mãos apertou com a efusão carinhosa que poderia mostrar por
uma irmã e à qual a duquesa respondeu com os mais lindos afagos.
“Aí estão duas boas amigas”, pensou Rastignac. “Terei, a partir de então, duas
protetoras; essas duas mulheres devem ter as mesmas afeições, e esta com
certeza se interessará por mim.”
— A que feliz pensamento devo a felicidade de vê-la, minha querida
Antoinette? — perguntou a sra. de Beauséant.
— Mas vi o sr. d’Ajuda-Pinto entrando na casa do sr. de Rochefide e então
pensei que você estaria sozinha.
A sra. de Beauséant não apertou os lábios, não corou, seu olhar permaneceu o
mesmo, sua fronte pareceu se iluminar enquanto a duquesa proferia essas
palavras fatais.
— Se soubesse que estaria ocupada… — acrescentou a duquesa virando-se
para Eugène.
— O cavalheiro é o sr. Eugène de Rastignac, um de meus primos — disse a
viscondessa. — Tem notícias do general Montriveau? — prosseguiu. — Sérizy
me disse ontem que não o viam mais, ele esteve hoje em sua casa?
A duquesa, que diziam ter sido abandonada pelo sr. de Montriveau, por quem
estava perdidamente apaixonada, sentiu no coração a estocada dessa pergunta e
corou ao responder:
— Ele estava ontem no Elysée.
— De serviço — disse a sra. de Beauséant.
— Clara, com certeza você sabe — retomou a duquesa jogando torrentes de
malignidade em seu olhar — que amanhã os proclamas do sr. d’Ajuda-Pinto e da
srta. de Rochefide vão ser publicados?
Esse golpe era violento demais, a viscondessa empalideceu e respondeu rindo:
— Um desses rumores com que os bobos se divertem. Por que o sr. d’Ajuda
levaria para os Rochefide um dos mais belos nomes de Portugal? Os Rochefide
são gente enobrecida ontem.
— Mas Berthe reunirá, dizem, duzentas mil libras de renda.
— O sr. d’Ajuda é muito rico para fazer esses cálculos.
— Mas, minha cara, a srta. de Rochefide é um encanto.
— Ah!
— Em suma, ele janta lá hoje, as condições estão estabelecidas. Muito me
espanta você estar tão estranhamente pouco informada.
— Que tolice, afinal, o senhor fez? — perguntou a sra. de Beauséant. — Esta
pobre criança foi jogada tão recentemente na sociedade, que não entende nada,
minha cara Antoinette, do que dizemos. Seja boa com ele, voltemos a falar disso
amanhã. Amanhã, veja você, tudo provavelmente será oficial, e com toda certeza
você poderá ser oficiosa.
A duquesa desviou para Eugène um desses olhares impertinentes que
envolvem um homem dos pés à cabeça, o achatam e o reduzem a zero.
— Senhora, sem saber enfiei um punhal no coração da sra. de Restaud. Sem
saber, eis meu erro — disse o estudante, a quem seu espírito servira bastante
bem, e que descobrira os mordazes epigramas ocultos nas frases afetuosas
daquelas duas mulheres. — Continuamos a ver, e tememos talvez as pessoas que
conhecem o segredo do mal que nos fazem, ao passo que quem fere ignorando a
profundidade de sua ferida é olhado como um tolo, um canhestro que não sabe
tirar proveito de nada, e todos o desprezam.
A sra. de Beauséant deu para o estudante um desses olhares suaves em que as
almas grandiosas sabem pôr a um só tempo gratidão e dignidade. Esse olhar foi
como um bálsamo que acalmou a chaga que acabava de abrir no coração do
estudante a olhadela de leiloeiro público com que a duquesa o avaliara.
— Imagine que eu acabava — prosseguiu Eugène — de granjear a
benevolência do conde de Restaud; pois — disse, virando-se para a duquesa com
cara ao mesmo tempo humilde e maliciosa — é preciso lhe dizer, senhora, que
ainda não passo de um pobre-diabo de estudante, bem sozinho, bem pobre…
— Não diga isso, sr. de Rastignac. Nós, mulheres, jamais queremos o que
ninguém quer.
— Ora! — disse Eugène —, tenho apenas vinte e dois anos, é preciso saber
suportar as desgraças de sua idade. Aliás, estou me confessando; e é impossível
se pôr de joelhos num confessionário mais bonito: cometemos aqui pecados de
que nos acusamos no outro.
A duquesa assumiu uma expressão fria diante desse discurso antirreligioso,
cujo mau gosto ela proscreveu dizendo à viscondessa:
— Esse senhor está chegando…
A sra. de Beauséant começou a rir abertamente de seu primo e da duquesa.
— Ele está chegando, minha cara, e procura uma professora que lhe ensine o
bom gosto.
— Senhora duquesa — prosseguiu Eugène —, não é natural iniciar-se nos
segredos do que nos encanta? (“Vejamos”, pensou consigo mesmo, “tenho
certeza de que estou lhes dizendo frases de cabeleireiro.”)
— Mas a sra. de Restaud é, creio, aluna do sr. de Trailles — disse a duquesa.
— Eu não sabia de nada, senhora — continuou o estudante. — Assim, joguei-
me estouvadamente entre eles. Em suma, tinha me entendido bastante bem com
o marido, via-me tolerado durante algum tempo pela mulher, quando resolvi lhes
dizer que conhecia um homem que eu acabara de ver saindo por uma escada
oculta e que, no fundo de um corredor, beijara a condessa.
— Quem é? — disseram as duas mulheres.
— Um velho que vive à razão de dois luíses por mês, no fundo do Faubourg
Saint-Marceau, como eu, pobre estudante; um verdadeiro infeliz de quem todo
mundo caçoa, e que nós chamamos de pai Goriot.
— Mas como o senhor é uma criança — exclamou a viscondessa —, a sra. de
Restaud é uma srta. Goriot.
— A filha de um macarroneiro — prosseguiu a duquesa —, uma mulherzinha
que foi apresentada à corte no mesmo dia que a filha de um confeiteiro. Você
não se lembra, Clara? O rei começou a rir, e disse em latim uma pilhéria sobre a
farinha. Pessoas, mas como é mesmo? Pessoas…
— Ejusdem farinae 24 — disse Eugène.
— É isso — disse a duquesa.
— Ah! É o pai dela — retrucou o estudante, fazendo um gesto de horror.
— Isso mesmo; esse homem tem duas filhas por quem é quase louco, embora
uma e outra o tenham praticamente renegado.
— A segunda não é — disse a viscondessa olhando para a sra. de Langeais —
casada com um banqueiro cujo nome é alemão, um barão de Nucingen? Não se
chama Delphine? Não é uma loura que tem um camarote lateral no Opéra, que
também vai ao Bouffons e ri muito alto para se fazer notar?
A duquesa sorriu, dizendo:
— Mas minha cara, eu a admiro. Afinal, por que se ocupa tanto dessa gente?
Era preciso estar loucamente apaixonado, como estava Restaud, para ter se
enfarinhado com a srta. Anastasie. Ah! Vai acabar lhe acontecendo alguma
desgraça! Ela está nas mãos do sr. de Trailles, que a levará à perdição.
— Elas renegaram o pai — repetia Eugène.
— Pois é, sim, o pai delas, o pai, um pai — prosseguiu a viscondessa —, um
bom pai que deu, pelo que dizem, a cada uma quinhentos ou seiscentos mil
francos para fazer a felicidade delas, casando-as bem, e que só reservou para si
mesmo oito a dez mil libras de renda, acreditando que as filhas continuariam a
ser suas filhas, que ele criara na casa delas duas existências, duas casas nas quais
seria adorado, mimado. Em dois anos, seus genros o baniram de seu convívio
como o último dos miseráveis…
Algumas lágrimas rolaram dos olhos de Eugène, recentemente renovado pelas
puras e santas emoções da família, ainda sob o encanto das crenças jovens, e que
estava apenas em seu primeiro dia no campo de batalha da civilização parisiense.
As emoções verdadeiras são tão comunicativas, que por um instante aquelas três
pessoas se olharam em silêncio.
— Ai, meu Deus! — disse a sra. de Langeais —, sim, isso parece bem terrível,
e no entanto é o que vemos todos os dias. Não haveria uma causa para isso?
Diga, minha querida, algum dia já pensou no que é um genro? Um genro é um
homem para quem nós criaremos, você ou eu, uma querida criaturinha à qual
estaremos ligadas por mil laços, que será durante dezessete anos a alegria da
família, que é a sua alma branca, diria Lamartine, e que se tornará a sua peste.
Quando esse homem a tiver agarrado de nós, começará por empunhar seu amor
como um machado, a fim de cortar no coração e no mais íntimo desse anjo todos
os sentimentos pelos quais ela se ligava à família. Ontem, nossa filha era tudo
para nós, éramos tudo para ela; no dia seguinte, torna-se nossa inimiga. Não
vemos essa tragédia se consumando todos os dias? Aqui, a nora demonstra a pior
impertinência com o sogro, que tudo sacrificou por seu filho. Mais adiante, um
genro bota a sogra para fora de casa. Ouço perguntarem o que hoje há de
dramático na sociedade; mas o drama do genro é assustador, sem contar nossos
casamentos, que se tornaram coisas muitíssimo idiotas. Dou-me perfeitamente
conta do que aconteceu com esse velho macarroneiro. Creio me lembrar de que
esse Foriot…
— Goriot, senhora.
— Sim, esse Moriot foi presidente de sua seção 25 durante a revolução;
inteirou-se do segredo da famosa epidemia de fome e começou sua fortuna
vendendo, naquele tempo, farinha por dez vezes o que lhe custava. Ganhou tanto
quanto quis. O intendente de minha avó lhe vendeu quantidades imensas. Esse
Goriot provavelmente dividia tudo, como todas aquelas pessoas, com o Comitê
de Salvação Pública. Lembro-me de que o intendente dizia à minha avó que ela
podia ficar em absoluta segurança em Grandvilliers, porque seus grãos eram uma
excelente carta cívica. Pois bem, esse Loriot, que vendia trigo aos cortadores de
cabeças, teve uma única paixão. Adora, pelo que dizem, as filhas. Pendurou a
mais velha na casa de Restaud, enxertou a outra no barão de Nucingen, um rico
banqueiro que finge ser adepto do rei. Vocês compreendem que, na época do
Império, os dois genros não se escandalizaram muito por ter esse velho Noventa-
e-três 26 na casa deles; com Bonaparte ainda era tolerável. Mas, quando os
Bourbon retornaram, o homem incomodou o sr. de Restaud, e mais ainda o
banqueiro. As filhas, que talvez continuassem a gostar do pai, quiseram jogar
com um pau de dois bicos, o pai e o marido; recebiam o Goriot quando não
tinham ninguém; imaginavam pretextos para a ternura. “Papai, venha, estaremos
melhores, porque estaremos a sós!” etc. Eu, minha cara, creio que os sentimentos
verdadeiros têm olhos e uma inteligência: o coração desse pobre Noventa-e-três,
portanto, sangrou. Viu que as filhas se envergonhavam dele; que, se amavam os
maridos, ele prejudicava os genros. Portanto, era preciso se sacrificar.
Sacrificou-se, porque era pai: baniu-se por conta própria. Ao ver as filhas
contentes, compreendeu que tinha feito bem. Pai e filhas foram cúmplices desse
pequeno crime. Vemos isso por toda parte. Esse pai Goriot não teria sido uma
mancha de gordura no salão das filhas? Ali teria ficado constrangido, teria se
entediado. O que acontece com esse pai pode acontecer com a mais linda mulher
em relação ao homem que ela mais amar: se o aborrece com seu amor, ele se vai,
faz covardias para fugir dela. Todos os sentimentos estão aí. Nosso coração é um
tesouro, esvaziem-no de uma só vez e estarão arruinados. Não perdoamos um
sentimento que se mostrou por inteiro, assim como não perdoamos a um homem
por não ter um vintém. Esse pai dera tudo. Dera, por vinte anos, suas entranhas,
seu amor; dera sua fortuna em um dia. Uma vez o limão bem espremido, suas
filhas deixaram a casca no canto das ruas.
— O mundo é infame — disse a viscondessa desfiando seu xale sem erguer os
olhos, pois estava atingida no seu íntimo pelas palavras que a sra. de Langeais
lhe dissera ao contar essa história.
— Infame! Não — continuou a duquesa —, segue seu caminho, só isso. Se
lhes falo assim é para mostrar que não me deixo ludibriar pelo mundo. Penso
como você — disse apertando a mão da viscondessa. — O mundo é um lamaçal,
tentemos nos manter nas alturas.
Levantou-se, beijou a sra. de Beauséant na testa dizendo-lhe:
— Você está muito bonita agora, minha cara. Tem as cores mais bonitas que já
vi.
Em seguida, saiu, depois de ter inclinado ligeiramente a cabeça ao olhar para o
primo.
— O pai Goriot é sublime! — disse Eugène lembrando-se de tê-lo visto
entortando seu vermeil de noite.
A sra. de Beauséant não ouviu, estava pensativa. Passaram-se uns momentos
de silêncio, e o pobre estudante, por uma espécie de estupor envergonhado, não
ousava ir embora, nem ficar, nem falar.
— O mundo é infame e mau — disse enfim a viscondessa. — Logo que uma
desgraça nos acontece, sempre encontramos um amigo disposto a vir nos contá-
la e a nos dissecar o coração com um punhal fazendo-nos admirar o cabo. Logo
o sarcasmo, logo as zombarias! Ah! Hei de me defender. — Levantou a cabeça
como a grande dama que era, e fagulhas saíram de seus olhos orgulhosos. — Ah!
— disse, vendo Eugène —, o senhor está aí!
— Ainda — ele disse, num estado lastimável.
— Pois bem, sr. de Rastignac, trate este mundo como ele merece sê-lo. Quer
triunfar, vou ajudá-lo. Sondará como é profunda a corrupção feminina, avaliará a
amplidão da miserável vaidade dos homens. Embora eu tenha lido muito bem
esse livro do mundo, havia páginas que me eram, porém, desconhecidas. Agora
sei tudo. Quanto mais friamente calcular, mais longe irá. Bata sem piedade, e
será temido. Só aceite os homens e as mulheres como cavalos de aluguel que
deixará morrer em cada estalagem, assim chegará ao topo de seus desejos. Sabe,
aqui não será nada se não tiver uma mulher que se interesse pelo senhor. Ela
precisa ser jovem, rica, elegante. Mas, se tiver um sentimento verdadeiro,
esconda-o como um tesouro; jamais deixe que desconfiem dele, pois estaria
perdido. Não seria mais o carrasco, iria se tornar a vítima. Se algum dia amar,
guarde bem seu segredo! Não o revele antes de ter sabido muito bem a quem
abrirá o coração. Para reservar de antemão esse amor que ainda não existe,
aprenda a desconfiar deste mundo. Escute-me bem, Miguel… (Ela se enganava
ingenuamente de nome, sem se dar conta.) Existe alguma coisa de mais
assustador que o abandono do pai por suas duas filhas, que gostariam de vê-lo
morto? É a rivalidade de duas irmãs entre si. Restaud tem berço, a mulher dele
foi adotada, foi apresentada; mas a irmã não é mais sua irmã; essas duas
mulheres se renegam entre si como renegam o pai. Assim, a sra. de Nucingen
lamberia toda a lama que há entre a Rue Saint-Lazare e a Rue de Grenelle para
entrar em meu salão. Acreditou que De Marsay a faria alcançar seu objetivo, e
fez-se escrava de De Marsay, ela importuna De Marsay. De Marsay liga muito
pouco para ela. Se o senhor apresentá-la a mim, será seu Benjamim, ela o
adorará. Ame-a, se puder, depois, senão sirva-se dela. Eu a verei uma ou duas
vezes, em bailes de gala, quando houver muita gente; mas jamais a receberei
pela manhã. Eu a cumprimentarei, isso será suficiente. O senhor fechou-se a
porta da condessa por ter pronunciado o nome do pai Goriot. Sim, meu caro, se
for vinte vezes à casa da sra. de Restaud, vinte vezes a encontrará ausente. Foi
barrado. Pois bem, que o pai Goriot o introduza junto da sra. Delphine de
Nucingen. A bela sra. de Nucingen será para si um reclame. Seja o homem que
ela singulariza, as mulheres ficarão loucas pelo senhor. As rivais, as amigas, as
melhores amigas quererão arrancá-lo dela. Há mulheres que amam o homem já
escolhido por outra, assim como há pobres burguesas que, pegando nosso
chapéu, esperam ter nossas maneiras. O senhor acumulará sucessos. Em Paris, o
sucesso é tudo, é a chave do poder. Se as mulheres o acham com espírito,
talento, os homens acreditarão, se não decepcioná-los. Então, poderá querer
tudo, poderá pisar em toda parte. Então, saberá o que é a sociedade, uma reunião
de palermas e vigaristas. Não se ponha entre uns nem entre outros. Dou-lhe meu
sobrenome como um fio de Ariadne para entrar nesse labirinto. Não o
comprometa — ela disse curvando o pescoço e dando um olhar de rainha para o
estudante —, devolva-o limpo. Vá, deixe-me. Nós, mulheres, também temos
nossas batalhas a travar.
— Se precisasse de um homem de boa vontade para pôr fogo numa mina… —
disse Eugène interrompendo-a.
— E então? — ela disse.
Ele bateu no coração, sorriu para o sorriso da prima e saiu. Eram cinco horas.
Eugène estava com fome, temia não chegar a tempo para a hora do jantar. Esse
temor o fez sentir a felicidade de ser rapidamente arrastado por Paris. Esse
prazer puramente mecânico o deixou todo entregue aos pensamentos que o
assaltavam. Quando um rapaz de sua idade é atingido pelo desprezo, exalta-se,
enfurece, ameaça com os punhos a sociedade inteira, quer se vingar e também
duvida de si mesmo. Rastignac estava naquele momento arrasado por estas
palavras: “O senhor fechou-se a porta da condessa”. “Irei lá!”, pensou, “e se a
sra. de Beauséant estiver certa, se eu for barrado… eu… a sra. de Restaud me
encontrará em todos os salões aonde for. Aprenderei a manejar as armas, a atirar
com pistola, matarei o seu Maxime! — E o dinheiro?”, gritava-lhe a sua
consciência, “onde afinal o conseguirá?” De repente a riqueza exibida na casa da
condessa de Restaud brilhou diante de seus olhos. Ali vira o luxo pelo qual uma
srta. Goriot devia ser apaixonada, dourados, objetos de valor em evidência, o
luxo nada inteligente do arrivista, o desperdício da mulher sustentada. Essa
imagem fascinante foi repentinamente esmagada pelo grandioso palacete de
Beauséant. Sua imaginação, transportada para as elevadas regiões da sociedade
parisiense, lhe inspirou mil pensamentos maus no coração, ampliando-lhe a
mente e a consciência. Viu o mundo tal como ele é: as leis e a moral impotentes
para os ricos, e viu na fortuna a ultima ratio mundi . 27 “Vautrin tem razão, a
fortuna é a virtude!”, pensou consigo mesmo.
Chegando à Rue Neuve-Sainte-Geneviève, subiu depressa a seu quarto, desceu
para dar dez francos ao cocheiro e foi para a sala de jantar nauseabunda, onde
viu, como animais numa manjedoura, os dezoito hóspedes se saciando. O
espetáculo daquelas misérias e o aspecto da sala lhe foram horríveis. A transição
era demasiado brusca, o contraste, demasiado completo, para não desenvolver
exageradamente nele a sensação da ambição. De um lado, as frescas e
encantadoras imagens da natureza social mais elegante, figuras jovens, vivas,
emolduradas pelas maravilhas da arte e do luxo, cabeças apaixonadas cheias de
poesia; de outro, sinistros quadros rodeados de lama, e faces nas quais as paixões
deixaram apenas suas cordas e seus mecanismos. Os ensinamentos que a cólera
de uma mulher abandonada arrancara da sra. de Beauséant, suas ofertas
capciosas voltaram-lhe à memória, e a miséria os comentou. Rastignac resolveu
abrir duas trincheiras paralelas para chegar à fortuna, apoiar-se na ciência e no
amor, ser um sábio doutor e um homem na moda. Ainda era muito criança!
Essas duas linhas são tão assimptotas que jamais conseguem se juntar.
— Está bem sombrio, senhor marquês — disse-lhe Vautrin, que lhe lançou um
desses olhares pelos quais esse homem parecia se iniciar nos segredos mais
ocultos do coração.
— Não estou mais disposto a tolerar as brincadeiras dos que me chamam de
senhor marquês — ele respondeu. — Aqui, para ser verdadeiramente marquês, é
preciso ter cem mil libras de renda, e quando se vive na Casa Vauquer não se é
propriamente o favorito da Fortuna.
Vautrin olhou para Rastignac com ar paternal e de desprezo, como se tivesse
dito: “Pirralho!, dou cabo de você com uma dentada!”. Depois respondeu:
— Está de mau humor, porque talvez não tenha tido sucesso com a bela
condessa de Restaud.
— Ela me fechou a porta por ter lhe dito que seu pai comia na nossa mesa —
exclamou Rastignac.
Todos os convivas se entreolharam. O pai Goriot baixou os olhos e se virou
para enxugá-los.
— O senhor me jogou fumaça no olho — ele disse ao vizinho.
— A partir de agora quem humilhar o pai Goriot terá de me enfrentar —
respondeu Eugène olhando para o vizinho do ex-macarroneiro —, ele vale mais
que nós todos. Não falo das senhoras — disse virando-se para a srta. Taillefer.
Essa frase foi um desenlace, Eugène a proferira com uma expressão que impõe
silêncio aos convivas. Só Vautrin lhe disse, escarnecendo:
— Para se responsabilizar pelo pai Goriot e se estabelecer como editor
responsável por ele, é preciso saber manejar bem uma espada e atirar bem com a
pistola.
— Assim farei — disse Eugène.
— Então entrou hoje em campanha militar?
— Talvez — respondeu Rastignac. — Mas não devo satisfação de meus
negócios a ninguém, considerando que não procuro adivinhar o que os outros
fazem durante a noite.
Vautrin olhou atravessado para Rastignac.
— Garoto, quem não quer ser tapeado pelas marionetes tem de entrar para
valer na barraca, e não se contentar em olhar pelos buracos dos bastidores.
Chega de conversa — acrescentou vendo Eugène prestes a se descontrolar. —
Teremos nós dois uma conversinha quando quiser.
O jantar ficou sombrio e frio. O pai Goriot, absorto pela profunda dor que a
frase do estudante lhe causara, não entendeu que as disposições dos espíritos
estavam mudadas a seu respeito, e que um rapaz em condições de impor silêncio
à perseguição tomara sua defesa.
— Então o sr. Goriot — disse a sra. Vauquer baixinho — seria a essa altura o
pai de uma condessa?
— E de uma baronesa — retrucou-lhe Rastignac.
— Ele não tem mais o que fazer — disse Bianchon a Rastignac —, examinei a
cabeça dele: só tem uma protuberância, a da paternidade, será um Pai Eterno .
Eugène estava muito sério para achar graça na brincadeira de Bianchon. Queria
aproveitar os conselhos da sra. de Beauséant, e perguntava-se onde e como
conseguiria dinheiro. Ficou preocupado ao ver as savanas do mundo que se
estendiam diante de seus olhos, a um só tempo vazias e cheias; todos o deixaram
sozinho na sala quando o jantar terminou.
— Então viu minha filha? — perguntou-lhe Goriot num tom emocionado.
Despertado de sua meditação pelo homenzinho, Eugène pegou sua mão e,
contemplando-o com uma espécie de ternura, respondeu:
— O senhor é um homem bravo e digno. Conversaremos mais tarde sobre suas
filhas.
Levantou-se sem querer ouvir o pai Goriot, retirou-se para seu quarto, onde
escreveu à mãe a seguinte carta:

Minha querida mãe, veja se não tem um terceiro seio a me oferecer. Estou em
situação de fazer fortuna prontamente. Preciso de mil e duzentos francos, e
necessito-os custe o que custar. Não diga nada de meu pedido a meu pai,
talvez ele se opusesse, e se eu não tivesse esse dinheiro ficaria às voltas com
um desespero que me levaria a dar um tiro na cabeça. Vou lhe explicar meus
motivos assim que a vir, pois seria preciso lhe escrever volumes para fazê-la
entender a situação em que estou. Não joguei, minha boa mãe, não devo
nada; mas, se deseja conservar a vida que me deu, preciso encontrar essa
quantia. Enfim, vou à casa da viscondessa de Beauséant, que me tomou sob
sua proteção. Devo frequentar a sociedade, e não tenho um vintém para ter
luvas limpas. Saberei comer apenas pão, beber apenas água, se necessário
jejuarei; mas não posso dispensar ferramentas com as quais se prepara o
vinhedo aqui nesta terra. Trata-se para mim de abrir meu caminho ou
permanecer na lama. Sei todas as esperanças que depositaram em mim, e
quero realizá-las rapidamente. Minha boa mãe, venda algumas de suas
antigas joias, breve as substituirei. Conheço bastante a situação de nossa
família para saber apreciar esses sacrifícios, e você deve acreditar que não
lhe peço para fazê-los em vão, do contrário eu seria um monstro. Não veja
em meu pedido senão o grito de uma imperiosa necessidade. Nosso futuro
está inteiro nesse subsídio, com o qual devo iniciar a batalha; pois essa vida
de Paris é um combate perpétuo. Se, para completar a quantia, não houver
outros recursos senão vender as rendas de minha tia, diga-lhe que lhe
enviarei mais bonitas. Etc.

Escreveu a cada uma das irmãs pedindo-lhes suas economias, e, para arrancá-las
sem que falassem em família do sacrifício que não deixariam de fazer com
alegria, conquistou a delicadeza delas atacando as cordas da honra, que são tão
bem esticadas e ressoam tão forte nos jovens corações. Quando escreveu essas
cartas, sentiu porém uma trepidação involuntária: ele palpitava, estremecia. Esse
jovem ambicioso conhecia a nobreza imaculada dessas almas ocultas na solidão,
sabia das tristezas que causaria às duas irmãs, e também quais seriam suas
alegrias; com que prazer elas se entreteriam em segredo, no fundo do vinhedo,
sobre aquele irmão bem-amado. Sua consciência ergueu-se luminosa e mostrou-
lhe as duas avaliando em sigilo seu pequeno tesouro; viu-as, exibindo o gênio
malicioso das moças para lhe enviar às escondidas aquele dinheiro, ensaiando
uma primeira mentira para serem sublimes. “O coração de uma irmã é um
diamante de pureza, um abismo de ternura!”, pensou. Envergonhava-se de ter
escrito. Como seriam poderosos seus votos, como seria puro o ímpeto de suas
almas em direção ao céu! Com que volúpias não se sacrificariam? Por qual dor
seria atingida sua mãe, se não pudesse enviar toda a quantia! Esses belos
sentimentos, esses tenebrosos sacrifícios iam lhe servir de escada para chegar a
Delphine de Nucingen. Algumas lágrimas, últimos grãos de incenso jogados no
altar sagrado da família, lhe saíram dos olhos. Andou para lá e para cá, numa
agitação cheia de desespero. O pai Goriot, vendo-o assim por sua porta que
ficara entreaberta, entrou e lhe disse:
— O que há, senhor?
— Ah! meu bom vizinho, ainda sou filho e irmão, como o senhor é pai. Tem
razão de tremer pela condessa Anastasie, ela está com um sr. Maxime de
Trailles, que a perderá.
O pai Goriot se retirou balbuciando umas palavras cujo sentido Eugène não
captou. No dia seguinte, Rastignac foi levar suas cartas ao correio. Hesitou até o
último momento, mas as lançou na caixa pensando: “Vencerei!”. A palavra do
jogador, do grande capitão, palavra fatalista que perde mais homens do que
salva. Dias depois, Eugène foi à casa da sra. de Restaud e não foi recebido. Três
vezes retornou, mais três vezes encontrou a porta fechada, embora se
apresentasse em horas em que o conde Maxime de Trailles não estivesse. A
viscondessa estava certa. O estudante não estudou mais. Ia às aulas para
responder à chamada, e, quando comprovava sua presença, dava no pé. Fizera o
raciocínio que faz a maioria dos estudantes. Reservava seus estudos para quando
se tratasse de fazer os exames; resolvera acumular as matrículas de segundo e
terceiro ano, depois de aprender o direito seriamente e de uma só vez no último
momento. Assim, tinha quinze meses de folga para navegar pelo oceano de
Paris, para aí se entregar ao tráfico de mulheres ou pescar a fortuna. Durante
aquela semana, viu duas vezes a sra. de Beauséant, a cuja casa só ia quando de lá
saía a carruagem do marquês d’Ajuda. Por mais alguns dias essa ilustre mulher,
a mais poética figura do Faubourg Saint-Germain, continuou a ser vitoriosa e
conseguiu suspender o casamento da srta. de Rochefide com o marquês d’Ajuda-
Pinto. Mas esses últimos dias, que o medo de perder a felicidade transformou
nos mais ardentes de todos, iriam precipitar a catástrofe. O marquês d’Ajuda, de
comum acordo com os Rochefide, encarara essa desavença e essa reconciliação
como uma feliz circunstância: esperavam que a sra. de Beauséant se acostumasse
com a ideia daquele casamento e acabasse sacrificando suas manhãs a um futuro
previsto na vida dos homens. Apesar das mais sagradas promessas renovadas
todo dia, o sr. d’Ajuda representava, pois, o papel, e a viscondessa gostava de ser
enganada. “Em vez de pular nobremente pela janela, ela se deixava rolar pelas
escadas”, dizia a duquesa de Langeais, sua melhor amiga. No entanto, esses
últimos clarões brilharam bastante tempo para que a viscondessa permanecesse
em Paris e servisse a seu jovem parente, por quem tinha uma espécie de afeição
supersticiosa. Eugène mostrara-se com ela cheio de dedicação e sensibilidade
numa circunstância em que as mulheres não veem piedade nem consolo
verdadeiro em nenhum olhar. Se então um homem lhes diz palavras doces, ele
lhes diz por especulação.
No desejo de conhecer perfeitamente bem seu tabuleiro antes de tentar o
assalto à casa de Nucingen, Rastignac quis se informar sobre a vida pregressa do
pai Goriot e recolheu informações seguras, que podem se resumir ao que se
segue.
Jean-Joachim Goriot era, antes da Revolução, um simples operário
macarroneiro, hábil, econômico e bastante empreendedor para ter comprado o
negócio de seu patrão, que o acaso tornou vítima do primeiro levante de 1789.
Estabelecera-se na Rue de la Jussienne, perto da Halle-aux-blés, e tivera o
grande bom senso de aceitar a presidência de sua seção, a fim de fazer seu
comércio ser protegido pelas pessoas mais influentes dessa época perigosa. Essa
sabedoria fora a origem de sua fortuna, que começou durante a epidemia de
fome, falsa ou verdadeira, em seguida à qual os grãos alcançaram um altíssimo
preço em Paris. O povo se matava à porta dos padeiros, ao passo que certas
pessoas iam buscar sem tumulto massas da Itália nos armazéns. Durante aquele
ano, 28 o cidadão Goriot amealhou os capitais que mais tarde lhe serviram para
fazer seu comércio com toda a superioridade dada por um grande volume de
dinheiro a quem o possui. Aconteceu-lhe o que acontece com todos os homens
que têm uma capacidade apenas relativa. Sua mediocridade o salvou. Aliás, sua
fortuna só sendo conhecida quando já não havia perigo em ser rico, ele não
excitou a inveja de ninguém. O comércio dos grãos parecia ter absorvido toda a
sua inteligência. Que se tratasse de trigo, farinhas, limpadura, de reconhecer suas
qualidades, proveniências, de cuidar de sua conservação, prever as cotações,
profetizar a abundância ou a penúria das colheitas, conseguir os cereais baratos,
se abastecer na Sicília, na Ucrânia, não havia outro igual a Goriot. Ao vê-lo
conduzir seus negócios, explicar as leis sobre a exportação, sobre a importação
de grãos, estudar seu espírito, perceber seus defeitos, um homem o teria julgado
capaz de ser ministro de Estado. Paciente, ativo, enérgico, constante, rápido em
suas expedições, tinha um olho de águia, antecipava tudo, previa tudo, sabia
tudo, escondia tudo; diplomata para conceber, soldado para marchar. Saindo de
sua especialidade, de sua simples e obscura loja em cuja soleira ficava durante
suas horas de ociosidade, o ombro encostado no batente da porta, voltava a ser o
operário estúpido e grosseiro, o homem incapaz de compreender um raciocínio,
insensível a todos os prazeres do espírito, o homem que adormecia no
espetáculo, um desses Dolibans 29 parisienses, competentes apenas em bobagens.
Quase todas essas naturezas se parecem. Em quase todas vocês encontrariam um
sentimento sublime no coração. Dois sentimentos exclusivos tinham enchido o
coração do macarroneiro, absorvido todo o seu fluido, assim como o comércio
dos grãos empregava toda a inteligência de seu cérebro. Sua mulher, filha única
de um rico fazendeiro da Brie, foi para ele objeto de admiração religiosa, de um
amor sem limites. Goriot admirara nela uma natureza frágil e forte, sensível e
bonita, que contrastava vigorosamente com a sua. Se há um sentimento inato no
coração do homem, não é o orgulho da proteção exercida a todo instante em
favor de um ser fraco? Juntem a isso o amor, esse reconhecimento vivo de todas
as almas francas pelo princípio de seus prazeres, e terão compreendido uma
profusão de esquisitices morais. Depois de sete anos de felicidade sem nuvens,
Goriot, infelizmente para ele, perdeu a mulher: ela começava a exercer
influência sobre ele, fora da esfera dos sentimentos. Talvez ela tivesse cultivado
aquela natureza inerte, talvez tivesse jogado nela a percepção das coisas do
mundo e da vida. Nessa situação, o sentimento da paternidade se desenvolveu
em Goriot até as raias do desatino. Transferiu seus afetos traídos pela morte para
as duas filhas, que, primeiro, satisfizeram plenamente todos os seus sentimentos.
Por mais brilhantes que tivessem sido as propostas que lhe foram feitas por
negociantes ou fazendeiros zelosos de lhe darem suas filhas, quis permanecer
viúvo. Seu sogro, o único homem por quem tivera simpatia, pretendia saber
perfeitamente que Goriot jurara não cometer infidelidade à mulher, mesmo
morta. As pessoas da Halle, incapazes de entender aquela sublime loucura,
fizeram pilhéria e deram a Goriot um apelido grotesco. O primeiro deles que,
bebendo vinho no mercado, resolveu pronunciá-lo recebeu do macarroneiro um
soco no ombro que o despachou, a cabeça em primeiro lugar, para um
paralelepípedo da Rue Oblin. A dedicação impulsiva, o amor suscetível e
delicado que Goriot tinha pelas filhas eram tão conhecidos que, certo dia, um de
seus concorrentes, querendo que ele saísse do mercado para ficar dono do
negócio, disse-lhe que Delphine acabara de ser atropelada por um cabriolé. O
macarroneiro, pálido e assustado, logo saiu da Halle. Ficou doente vários dias,
por causa da reação dos sentimentos contrários em que lhe deixou esse alarme
falso. Se não tascou seu tapa mortal no ombro daquele homem, o expulsou da
Halle obrigando-o, numa circunstância crítica, a ir à falência. A educação das
duas filhas foi, naturalmente, irracional. Rico, com mais de sessenta mil libras de
renda, e só gastando mil e duzentos francos consigo, a felicidade de Goriot era
satisfazer as fantasias das filhas: os professores mais excepcionais foram
encarregados de dotá-las dos talentos que assinalavam uma boa educação;
tiveram uma dama de companhia; felizmente para elas, foi uma mulher de
espírito e de gosto; andavam a cavalo, tinham carro, viviam como teriam vivido
as amantes de um velho cavalheiro rico; bastava-lhes expressar os mais caros
desejos para ver o pai empenhando-se em realizá-los; ele só pedia uma carícia
em troca de suas oferendas. Goriot punha as filhas no nível dos anjos, e
necessariamente acima dele, o pobre homem! Gostava até do mal que lhe
faziam. Quando as filhas chegaram à idade de se casar, puderam escolher o
marido segundo seus gostos: cada uma devia ter como dote a metade da fortuna
do pai. Cortejada por sua beleza pelo conde de Restaud, Anastasie tinha
pendores aristocráticos que a levaram a sair da casa paterna para se lançar nas
altas esferas sociais. Delphine gostava de dinheiro: casou-se com Nucingen,
banqueiro de origem alemã que se tornou barão du Saint-Empire. Goriot
continuou a ser macarroneiro. Suas filhas e seus genros logo se chocaram ao vê-
lo continuar aquele comércio, embora fosse toda a sua vida. Depois de aguentar
por cinco anos as solicitações deles, aceitou retirar-se, com o produto de seu
patrimônio e os lucros dos últimos anos; capital que a sra. Vauquer, com quem
fora se instalar, estimara render de oito a dez mil libras de renda. Jogou-se
naquela pensão devido ao desespero que o agarrara ao ver as duas filhas
obrigadas pelos maridos a recusarem não só que morasse com elas como
também que ali fosse recebido ostensivamente.
Essas informações eram tudo o que sabia um certo sr. Muret sobre o pai
Goriot, cujo negócio ele comprara. As suposições que Rastignac ouvira a
duquesa de Langeais fazer estavam, assim, confirmadas. Aqui termina a
exposição dessa obscura mas pavorosa tragédia parisiense.
Pelo fim dessa primeira semana do mês de dezembro, Rastignac recebeu duas
cartas, uma da mãe, outra da irmã mais velha. Aquelas letras tão conhecidas o
fizeram tanto palpitar de alegria como tremer de terror. Os dois papéis frágeis
continham uma sentença de vida ou morte sobre suas esperanças. Se ele sentia
certo terror ao se lembrar da angústia dos pais, percebera muito bem a predileção
deles para não temer ter aspirado suas últimas gotas de sangue. A carta da mãe
era assim escrita:

Meu querido filho, envio-lhe o que me pediu. Faça bom uso deste dinheiro,
eu não conseguiria, quando se tratasse de salvar a sua vida, encontrar uma
segunda vez quantia tão considerável sem que seu pai fosse informado, o que
perturbaria a harmonia de nosso lar. Para obtê-la, seríamos obrigados a dar
garantias sobre nossa terra. É-me impossível julgar o mérito de projetos que
não conheço; mas, afinal, de que natureza são eles para levá-lo a ter receio de
me contá-los? Essa explicação não requeria volumes, basta-nos, a nós mães,
uma palavra, e essa palavra me teria evitado as angústias da incerteza. Eu não
saberia esconder de você a impressão dolorosa que sua carta me causou. Meu
querido filho, qual é então esse sentimento que o obrigou a jogar tamanho
pavor em meu coração? Você deve ter sofrido bastante ao me escrever, pois
sofri bastante ao lê-lo. Em que carreira se mete então? Sua vida, sua
felicidade estariam ligadas a aparentar o que não é, a ver um mundo que não
poderia frequentar sem fazer despesas de dinheiro que não consegue manter,
sem perder um tempo precioso para seus estudos? Meu bom Eugène, acredite
no coração de sua mãe, os caminhos tortuosos não levam a nada de
grandioso. A paciência e a resignação devem ser as virtudes dos jovens que
estão em sua posição. Não ralho com você, não gostaria de comunicar à
nossa oferta nenhuma amargura. Minhas palavras são as da mãe tão confiante
como previdente. Se sabe quais são suas obrigações, eu sei como seu coração
é puro, como suas intenções são excelentes. Assim, posso lhe dizer sem
receio: Vá, meu bem-amado, ande! Tremo porque sou sua mãe; mas cada um
de seus passos será ternamente acompanhado por nossos olhos e nossas
bênçãos. Seja prudente, querido filho. Deve ser bem-comportado como um
homem, o destino de cinco pessoas que lhe são caras repousa sobre sua
cabeça. Sim, todas as nossas fortunas estão em você, assim como sua
felicidade é a nossa. Nós todos rezamos a Deus para secundá-lo em suas
iniciativas. Sua tia Marcillac foi, nessa circunstância, de uma bondade
inaudita: chegou até a imaginar o que você me diz de suas luvas. Mas ela tem
um fraco pelo mais velho, como me disse alegremente. Meu Eugène, ame
muito sua tia, só lhe direi o que fez por você quando você vencer; do
contrário, o dinheiro dela queimaria os seus dedos. Vocês, filhos, não sabem
o que é sacrificar lembranças! Mas o que não sacrificaríamos? Ela me
encarrega de lhe dizer que o beija na testa, e gostaria de lhe comunicar por
esse beijo a força para você ser muito feliz. Essa boa e excelente mulher teria
lhe escrito se não sofresse de gota nos dedos. Seu pai vai bem. A colheita de
1819 ultrapassa nossas esperanças. Adeus, querido filho. Nada direi de suas
irmãs: Laura lhe escreveu. Deixo a ela o prazer de tagarelar sobre os
pequenos acontecimentos da família. Que o céu permita que você vença! Oh!
Sim, vença, meu Eugène, você me fez conhecer uma dor profunda demais
para que eu consiga suportá-la uma segunda vez. Eu soube o que era ser
pobre, desejando a fortuna para dá-la a meu filho. Bem, adeus. Não nos deixe
sem notícias, e receba aqui o beijo que sua mãe lhe envia.

Quando Eugène acabou de ler essa carta, estava em prantos, pensava no pai
Goriot entortando seu vermeil e o vendendo para ir pagar a letra de câmbio da
filha. “Sua mãe entortou as joias!”, ele pensava. “Sua tia com certeza chorou ao
vender algumas de suas relíquias! Com que direito você amaldiçoaria Anastasie?
Você acaba de imitar pelo egoísmo de seu futuro o que ela fez pelo amante!
Quem, ela ou você, vale mais?” O estudante sentiu-se com as entranhas roídas
por uma intolerável sensação de calor. Queria renunciar ao mundo, queria não
pegar aquele dinheiro. Sentiu os nobres e belos remorsos secretos cujo mérito é
raramente apreciado pelos homens quando julgam seus semelhantes, e quando
costumam fazer os anjos do céu absolverem o criminoso condenado pelos
juristas da Terra. Rastignac abriu a carta da irmã, cujas expressões
inocentemente graciosas lhe refrescaram o coração.

Sua carta chegou bem a calhar, querido irmão. Agathe e eu queríamos


empregar nosso dinheiro de tantas maneiras diferentes que já não sabíamos
por qual compra nos decidir. Você fez como o empregado do rei da Espanha
quando derrubou os relógios de seu senhor, você nos pôs de acordo. De
verdade, estávamos constantemente brigando pelo nosso desejo ao qual
daríamos preferência, e não tínhamos adivinhado, meu bom Eugène, o uso
que incluía todos os nossos desejos. Agathe pulou de alegria. Em suma,
ficamos como duas loucas durante todo o dia, a tal nível (estilo da titia) que
mamãe nos dizia com seu ar severo: “Mas o que é que vocês têm,
senhoritas?”. Se não ralhasse conosco um pouquinho, acho, teríamos ficado
ainda mais contentes. Uma mulher deve ter bastante prazer em sofrer por
quem ama! Só eu estava sonhadora e tristinha no meio de minha alegria.
Serei sem dúvida uma má mulher, sou muito gastadeira. Eu havia comprado
dois cintos, uma linda ponteira para furar os ilhoses de meus corpetes, umas
bugigangas, de modo que tinha menos dinheiro do que essa gorda Agathe,
que é econômica e acumula seus escudos como uma gralha. Ela tinha
duzentos francos! Eu, meu pobre amigo, tenho apenas cinquenta escudos. Fui
bem castigada, gostaria de jogar meu cinto no poço, sempre me será doloroso
usá-lo. Roubei você. Agathe foi um encanto. Disse-me: “Enviemos os
trezentos e cinquenta francos, nós duas!”. Mas não resisti à vontade de lhe
contar as coisas como aconteceram. Sabe como fizemos para obedecer às
suas recomendações? Pegamos nosso glorioso dinheiro, fomos passear, nós
duas, e, quando chegamos à estrada principal, corremos a Ruffec, onde muito
simplesmente demos a quantia ao sr. Grimbert, que cuida do escritório dos
Transportes Reais! Ao voltarmos, estávamos leves como andorinhas. “Será
que a felicidade nos deixaria mais leves?”, me disse Agathe. Nós nos
dissemos mil coisas que não vou repetir para você, senhor parisiense, de
quem falamos muito. Oh! querido irmão, gostamos muito de você, em poucas
palavras, é isso. Quanto ao segredo, segundo minha tia, figurinhas como nós
são capazes de tudo, até de calar. Minha mãe foi misteriosamente a
Angoulême com titia, e as duas guardaram o silêncio sobre a alta política da
viagem, que não ocorreu sem longas conferências das quais fomos banidas,
bem como o senhor barão. Grandes conjecturas ocupam os espíritos no
Estado de Rastignac. O vestido de musselina salpicado de flores de crivo que
as infantas bordam para sua majestade a rainha avança no mais profundo
sigilo. Só restam duas larguras a fazer. Ficou decidido que não se faria um
muro do lado de Verteuil, haverá uma cerca. O povinho miúdo perderá frutas
e espaldeiras, mas ganharemos uma bela vista para os estrangeiros. Se o
herdeiro presuntivo tiver necessidade de lenços, fica avisado que a viúva rica
de Marcillac, remexendo em seus tesouros e malas, designadas pelo nome de
Pompeia e Herculano, descobriu uma peça de belo linho de Holanda, que ela
não sabia que tinha; as princesas Agathe e Laure põem às vossas ordens sua
linha, agulha, e mãos sempre um pouco vermelhas demais. Os dois jovens
príncipes dom Henri e dom Gabriel conservaram o funesto hábito de se
empanturrarem de compota de uvas, de deixarem suas irmãs furiosas, de não
quererem aprender nada, de se divertirem desalojando pássaros dos ninhos,
de fazerem algazarra e de cortar, apesar das leis do Estado, o vime para fazer
chicotes. O núncio do papa, vulgarmente chamado senhor cura, ameaça
excomungá-los se continuarem a trocar os santos cânones da gramática pelos
cânones do sabugueiro belicoso. Adeus, querido irmão, nunca uma carta
levou tantos votos feitos para a sua felicidade, nem tanto amor satisfeito.
Portanto, terá muitas coisas a nos dizer quando chegar! Você me dirá tudo, a
mim, sou a mais velha. Titia nos deixou supor que você estava tendo êxitos
na sociedade.

Fala-se de uma dama e cala-se sobre o resto.

Conosco, entenda-se! Mas diga, Eugène, se quisesse poderíamos dispensar os


lenços e faríamos camisas para você. Responda-me depressa a respeito. Se
precisasse prontamente de belas camisas bem cosidas, seríamos obrigadas a
começar de imediato; e, se houvesse em Paris modelos que não
conhecêssemos, você nos mandaria um molde, sobretudo para os punhos.
Adeus, adeus! Beijo-o na fronte do lado esquerdo, na têmpora que me
pertence exclusivamente. Deixo a outra folha para Agathe, que me prometeu
nada ler do que eu lhe digo. Porém, para ter mais certeza, ficarei perto dela
enquanto escreve. Sua irmã que o ama.
LAURE DE RASTIGNAC

“Ah! sim”, pensou Eugène, “sim, a fortuna a qualquer preço! Tesouros não
pagariam essa dedicação. Gostaria de lhes levar todas as felicidades juntas. Mil
quinhentos e cinquenta francos!”, disse para si mesmo depois de uma pausa.
“Cada moeda deve dar resultado! Laure tem razão. Ah, essas mulheres! Só tenho
camisas de pano grosso. Pela felicidade de outro, uma moça se torna tão esperta
quanto um ladrão. Inocente para ela e previdente para mim, é como o anjo do
céu que perdoa as faltas da Terra sem compreendê-las.”
O mundo era dele! Já seu alfaiate tinha sido convocado, sondado, conquistado.
Ao ver o sr. de Trailles, Rastignac entendera a influência que os alfaiates
exercem na vida dos jovens. Infelizmente, não existe média entre esses dois
termos: um alfaiate é um inimigo mortal ou um amigo dado pela fatura! 30
Eugène encontrou no seu um homem que entendera a paternidade de seu
comércio, e que se considerava um traço de união entre o presente e o futuro dos
jovens. Assim, Rastignac, grato, fez a fortuna desse homem por uma dessas
tiradas com que, mais tarde, ele brilharia:
— Conheço — dizia — duas calças dele que fizeram casamentos de vinte mil
libras de renda.
Mil e quinhentos francos e roupas à vontade! Naquele momento o pobre
meridional não duvidou de mais nada, e desceu para o almoço com o ar
indefinível que dá a um rapaz a posse de uma quantia qualquer. No instante em
que o dinheiro desliza para o bolso de um estudante, ergue-se nele mesmo uma
coluna fantástica na qual se apoia. Anda melhor que antes, sente-se um ponto de
apoio para sua alavanca, tem o olhar pleno, direto, os movimentos ágeis; na
véspera, humilde e tímido, teria recebido golpes; no dia seguinte, os daria a um
primeiro-ministro. Passam-se nele fenômenos incríveis: quer tudo e pode tudo,
deseja a torto e a direito, é alegre, generoso, expansivo. Enfim, o pássaro outrora
sem asas reencontrou sua envergadura. O estudante sem dinheiro abocanha uma
gota de prazer assim como um cão que rouba um osso, depois de mil perigos,
quebra-o, chupa seu tutano e corre mais; mas o jovem que sacode em seu bolso
do colete umas fugazes moedas de ouro degusta seus prazeres, conta-as, balança-
se no céu, já não sabe o que significa a palavra “miséria”. Paris inteira lhe
pertence. Idade em que tudo é brilhante, em que tudo cintila e flameja! Idade de
força alegre que ninguém aproveita, nem o homem nem a mulher! Idade das
dívidas e dos profundos temores que decuplicam todos os prazeres! Quem não
frequentou a margem esquerda do Sena, entre a Rue Saint-Jacques e a Rue des
Saint-Pères, nada conhece da vida humana! “Ah! se as mulheres de Paris
soubessem”, pensava Rastignac devorando as peras cozidas, a um vintém cada,
servidas pela sra. Vauquer, “elas viriam ser amadas aqui!” Nesse momento, um
carteiro dos Transportes Reais se apresentou na sala de jantar, depois de ter
tocado à porta de postigo. Perguntou pelo sr. Eugène de Rastignac, a quem
entregou duas sacolas e um registro para assinar. Rastignac foi então vergastado
como por uma chicotada pelo olhar profundo que Vautrin lhe lançou.
— Terá como pagar as aulas de armas e as sessões de tiro — disse-lhe aquele
homem.
— Os galeões chegaram — disse-lhe a sra. Vauquer olhando para as sacolas.
A srta. Michonneau temeu jogar os olhos sobre o dinheiro, receando mostrar
sua cobiça.
— O senhor tem uma boa mãe — disse a sra. Couture.
— O cavalheiro tem uma boa mãe — repetiu Poiret.
— É, a mamãe se sangrou — disse Vautrin. — Agora pode fazer suas farras,
frequentar a sociedade, pescar dotes, dançar com condessas que têm flores de
pessegueiro no cabelo. Mas acredite em mim, rapaz, aprenda a atirar.
Vautrin fez o gesto de um homem que visa seu adversário. Rastignac quis dar
uma gorjeta ao carteiro e não encontrou nada no bolso. Vautrin vasculhou o seu
e jogou vinte vinténs para o homem.
— Você tem bom crédito — retrucou, olhando para o estudante.
Rastignac foi obrigado a agradecer, embora desde as palavras asperamente
trocadas, no dia em que voltara da casa da sra. de Beauséant, aquele homem lhe
fosse insuportável. Durante aqueles oito dias Eugène e Vautrin tinham ficado
silenciosamente em presença, e se observavam um ao outro. O estudante se
perguntava, em vão, por quê. Talvez as ideias se projetassem em razão direta da
força com que são concebidas, e fossem bater ali para onde o cérebro as envia,
por uma lei matemática comparável à que dirige as bombas ao saírem do
morteiro. Diversos são os efeitos disso. Se há naturezas ternas em que as ideias
se alojam e que elas destroem, há também naturezas vigorosamente guarnecidas,
crânios com bastiões de bronze contra os quais as vontades dos outros se
esmagam e caem como balas diante de uma muralha; e também há naturezas
frouxas e algodoadas em que as ideias alheias vão morrer como balas de canhão
que amortecem na terra mole das fortificações. Rastignac tinha uma dessas
cabeças cheias de pólvora que explodem ao menor choque. Era demasiado vivaz
e jovem para não ser acessível a essa projeção de ideias, a esse contágio dos
sentimentos de que tantos fenômenos estranhos nos atingem sem nos darmos
conta. Sua visão moral tinha o alcance lúcido de seus olhos de lince. Cada um de
seus duplos sentidos possuía essa extensão misteriosa, essa flexibilidade de ir e
voltar que nos maravilha nas pessoas superiores, esgrimistas hábeis em captar o
defeito de todas as couraças. Aliás, fazia um mês que se desenvolvera em
Eugène tantas qualidades quanto defeitos. Seus defeitos, a sociedade e a
realização de seus crescentes desejos os suscitaram. Entre suas qualidades estava
essa vivacidade meridional que faz ir direto à dificuldade para resolvê-la, e que
não permite a um homem de além-Loire permanecer numa incerteza qualquer;
qualidade que as pessoas do Norte chamam de defeito: para elas, se isso foi a
origem da fortuna de Murat, foi também a causa de sua morte. 31 Daí se deveria
concluir que, quando um meridional sabe unir a astúcia do Norte à audácia de
além-Loire, é completo e acaba sendo rei da Suécia. 32 Rastignac não podia,
portanto, ficar muito tempo sob o fogo das baterias de Vautrin sem saber se
aquele homem era seu amigo ou inimigo. De quando em quando, parecia-lhe que
aquele personagem singular penetrava em suas paixões e lia em seu coração, ao
passo que nele tudo era tão bem fechado que aparentava ter a profundidade
imóvel de uma esfinge que sabe e vê tudo mas nada diz. Sentindo-se com o
bolso bem recheado, ele se amotinou.
— Dê-me o prazer de esperar — disse a Vautrin, que se levantava para sair,
depois de ter saboreado os últimos goles de seu café.
— Por quê? — perguntou o quarentão pondo seu chapéu de abas largas e
pegando uma bengala de ferro com a qual costumava fazer círculos, como
homem que não temeria ser assaltado por quatro ladrões.
— Vou lhe pagar — continuou Rastignac, que prontamente abriu uma sacola e
contou cento e quarenta francos para a sra. Vauquer. — Boas contas fazem bons
amigos — disse à viúva. — Estamos quites até a São Silvestre. Troque-me estes
cem vinténs.
— Bons amigos fazem boas contas — repetiu Poiret olhando para Vautrin.
— Aqui estão vinte vinténs — disse Rastignac entregando uma moeda à
esfinge de peruca.
— Até parece que tem medo de me dever alguma coisa! — exclamou Vautrin,
afundando um olhar adivinhador na alma do rapaz, para quem deu um desses
sorrisos zombeteiros e diogênicos 33 com que Eugène estivera prestes a se zangar
cem vezes.
— Mas… é — respondeu o estudante, que segurava na mão as duas sacolas e
se levantara para subir até seu quarto.
Vautrin saía pela porta que dava para o salão, e o estudante se preparava para
sair por aquela que dava para o patamar da escada.
— Saiba, sr. marquês de Rastignacorama, que o que me diz não é exatamente
cortês — disse então Vautrin chicoteando a porta do salão e se dirigindo ao
estudante, que o olhou friamente.
Rastignac fechou a porta da sala de jantar, levando Vautrin para o pé da
escada, até o patamar que separava a sala de jantar da cozinha, onde havia uma
porta maciça que dava para o jardim e tendo ao alto uma vidraça comprida com
grades de ferro. Ali, o estudante disse na frente de Sylvie, que surgiu de sua
cozinha:
— Monsieur Vautrin, não sou marquês, e não me chamo Rastignacorama.
— Eles vão se duelar — disse a srta. Michonneau com uma expressão
indiferente.
— Duelar-se! — repetiu Poiret.
— Que nada — respondeu a sra. Vauquer acariciando sua pilha de escudos.
— Mas estão indo para debaixo das tílias — gritou a srta. Victorine
levantando-se para olhar o jardim. — Aquele pobre rapaz tem razão.
— Vamos subir, minha queridinha — disse a sra. Couture —, esses negócios
não nos dizem respeito.
Quando a sra. Couture e Victorine se levantaram, encontraram na porta a gorda
Sylvie, que lhes barrou a passagem.
— Mas que que há afinal? — ela perguntou. — O sr. Vautrin disse para o sr.
Eugène: “Vamos nos entender!”. Aí ele o pegou pelo braço e olhem lá eles
andando em cima das nossas alcachofras.
Nesse instante Vautrin apareceu.
— Mamãe Vauquer — disse sorrindo —, não se apavore com coisa nenhuma,
vou testar minhas pistolas debaixo das tílias.
— Ah! senhor — disse Victorine juntando as mãos —, por que quer matar o sr.
Eugène?
Vautrin deu dois passos atrás e contemplou Victorine.
— É outra história — exclamou num tom brincalhão que fez a pobre moça
enrubescer. — Esse rapaz aí é muito bonzinho, não é? — continuou. — A
senhorita está me dando uma ideia. Farei a felicidade de vocês dois, minha bela
menina.
A sra. Couture pegara sua pupila pelo braço e a arrastara dizendo-lhe ao
ouvido:
— Mas Victorine, esta manhã você está impossível.
— Não quero que disparem tiros de pistola na minha casa — disse a sra.
Vauquer. — Não vá assustar toda a vizinhança e trazer a polícia a esta hora!
— Que nada, calma, mamãe Vauquer — respondeu Vautrin. — Não, não,
tranquilinhos, nós iremos ao tiro. — Foi encontrar Rastignac, que pegou com
intimidade pelo braço: — Se eu lhe tivesse provado que a trinta e cinco passos
meto cinco vezes seguidas minha bala num ás de espadas — ele lhe disse —,
isso não tiraria a sua coragem. Parece-me um pouco raivoso, e se deixaria matar
como um imbecil.
— Está recuando — disse Eugène.
— Não me esquente a bílis — respondeu Vautrin. — Esta manhã não faz frio,
vamos nos sentar ali — disse mostrando as cadeiras pintadas de verde. — Lá
ninguém nos ouvirá. Temos que conversar. Você é um bom rapazote e não lhe
quero mal. Gosto de você, palavra de Enganad… (diachos!), palavra de Vautrin.
Vou lhe dizer por que gosto de você. Entretanto, conheço-o como se o tivesse
feito, e vou lhe provar. Ponha suas sacolas aí — continuou, mostrando-lhe a
mesa redonda.
Rastignac pôs seu dinheiro em cima da mesa e sentou-se, vítima de uma
curiosidade resultante, no mais alto grau, da mudança súbita operada nas
maneiras daquele homem que, depois de ter falado em matá-lo, posava de seu
protetor.
— Gostaria de saber quem eu sou, o que fiz ou o que faço — prosseguiu
Vautrin. — Você é muito curioso, meu filho. Bem, calma. Vai ouvir muitas
histórias! Conheci desgraças. Primeiro me ouça, e me responderá depois. Aqui
está minha vida pregressa em poucas palavras. Quem sou eu? Vautrin. Que faço?
O que me agrada. Passemos. Quer conhecer meu caráter? Sou bom com aqueles
que me fazem o bem ou cujo coração fala ao meu. Para esses tudo é permitido,
podem me dar pontapés nos ossos das pernas sem que eu lhes diga: “Tomem
cuidado!”. Mas, macacos me mordam! Sou malvado como o diabo com os que
me importunam ou com aqueles que não engulo. E é bom que fique sabendo que
me preocupo tanto em matar um homem como com isso! — disse lançando um
jato de cuspe. — Só que me esforço para matar com limpeza, quando é
absolutamente necessário. Sou o que chamam de artista. Li as Memórias de
Benvenuto Cellini, sim senhor, eu mesmo, e em italiano, para completar!
Aprendi com esse homem, que era um tremendo sujeito, a imitar a Providência
que nos mata a torto e a direito, e a amar o belo em qualquer lugar onde se
encontre. Aliás, não é uma bela partida a jogar essa de estar só contra todos os
homens e ter sorte? Refleti bastante sobre a constituição atual de sua desordem
social. Meu filho, o duelo é uma brincadeira de criança, uma bobagem. Quando,
de dois homens vivos, um deve desaparecer, é preciso ser imbecil para se
entregar ao acaso. O duelo? Cara ou coroa! É isso. Meto cinco balas seguidas
num ás de espadas reenfiando cada nova bala uma em cima da outra, e para
completar a trinta e cinco passos! Quando se é dotado desse talentozinho, pode-
se ter certeza de matar um homem. Pois bem, atirei num homem a vinte passos e
não acertei. O engraçadinho nunca na vida tinha manejado uma pistola. Veja! —
disse esse homem extraordinário desabotoando o colete e mostrando o peito
peludo como o dorso de um urso mas coberto por um pelame ruivo que causava
um certo nojo mesclado de pavor —, aquele pirralho me queimou o pelo —
acrescentou pondo o dedo de Rastignac num buraco que tinha no peito. — Mas
naquele tempo eu era uma criança, tinha a sua idade, vinte e um anos. Ainda
acreditava em alguma coisa, no amor de uma mulher, num monte de besteiras
nas quais você vai se enrolar. Nós teríamos nos duelado, não é verdade? Você
poderia ter me matado. Suponha que eu estivesse no chão, onde você estaria?
Teria de dar no pé, ir para a Suíça, comer o dinheiro do papai, que não o tem.
Vou lhe esclarecer, eu, a posição em que está; mas vou fazê-lo com a
superioridade de um homem que, depois de ter examinado as coisas deste
mundo, viu que só havia duas decisões a tomar: ou uma obediência estúpida ou a
revolta. Não obedeço a nada, está claro? Sabe de quanto precisa, no ritmo em
que está indo? Um milhão, e depressa; sem o quê, com nossa cabecinha,
poderíamos flanar entre as redes de Saint-Cloud, 34 para ver se existe um Ser
supremo. Esse milhão, eu vou lhe dar. — Fez uma pausa olhando para Eugène.
— Ah! Ah! Está fazendo uma cara melhor para o seu papaizinho Vautrin! Ao
ouvir essa palavra, ficou como uma mocinha a quem se diz: “Até à noite”, e que
se arruma toda lambendo-se como um gato que bebe leite. Ainda bem! Ora essa!
A nós dois! Eis a sua conta, rapaz. Temos, lá longe, papai, mamãe, tia-avó, duas
irmãs (dezoito e dezessete anos), dois irmãozinhos (quinze e dez anos), esta é a
lista de controle da tripulação. A tia educa suas irmãs. O cura vai ensinar latim
aos dois irmãos. A família come mais mingau de castanhas do que pão branco, o
papai economiza as calças, mamãe se dá apenas um vestido de inverno e um
vestido de verão, nossas irmãs fazem o que podem. Eu sei tudo, estive no Sul.
As coisas são assim na sua casa, se lhe enviam mil e duzentos francos por ano, e
se a sua terrinha só rende três mil francos. Temos uma cozinheira e um
empregado, é preciso manter o decoro, papai é barão. Quanto a nós, temos
ambição, temos os Beauséant como aliados e andamos a pé, queremos fortuna e
não temos um tostão, comemos os ensopadinhos da mamãe Vauquer e gostamos
dos belos jantares do Faubourg Saint-Germain, dormimos num catre e queremos
um palacete! Não critico as suas vontades. Ter ambição, meu benzinho, não é
dado a todos. Pergunte às mulheres quais homens procuram, são os ambiciosos.
Os ambiciosos têm os rins mais fortes, o sangue mais rico em ferro, o coração
mais quente que os outros homens. E a mulher fica tão feliz e tão bela nas horas
em que é forte, que ela prefere a todos os homens aquele cuja força é enorme,
ainda que se arriscando a ser quebrada por ele. Faço o inventário dos seus
desejos a fim de lhe formular a pergunta. Essa pergunta, ei-la. Temos uma fome
de lobo, nossos dentinhos são afiados, como faremos para abastecer a marmita?
Temos primeiro o Código para comer, não é divertido, e não ensina nada; mas é
preciso. Vá lá. Viramos advogados, para nos tornarmos presidente de um
tribunal do júri, mandar os pobres-diabos que valem mais que nós com um TF 35
no ombro, a fim de provar aos ricos que podem dormir em paz. Primeiro, dois
anos mofando em Paris, olhando, sem poder tocar, as gulodices que adoramos. É
cansativo desejar o tempo todo sem nunca se satisfazer. Se você fosse pálido e
da natureza dos moluscos, não teria nada a temer; mas temos o sangue febril dos
leões e um apetite para fazer vinte besteiras por dia. Portanto, sucumbirá a esse
suplício, o mais horrível que vimos no inferno do bom Deus. Admitamos que
seja comportado, que beba leite e faça elegias; generoso como é, terá de
começar, depois de muitos aborrecimentos e privações de deixar raivoso um cão,
por tornar-se o substituto de algum sujeitinho, num buraco de cidade onde o
governo lhe jogará mil francos de ordenado, assim como se joga uma sopa a um
dogue de açougueiro. Lata diante dos ladrões, defenda o rico, mande guilhotinar
pessoas bondosas. Que remédio! Se não tiver proteções, apodrecerá no seu
tribunal de província. Por volta dos trinta anos, será juiz com mil e duzentos
francos por ano, se ainda não tiver jogado fora sua toga. Quando chegar aos
quarenta, se casará com alguma filha de moleiro, rica, com cerca de seis mil
libras de renda. Obrigado. Tenha pistolões, e será procurador do rei aos trinta
anos, com mil escudos de ordenado, e se casará com a filha do prefeito. Se fizer
algumas dessas pequenas baixezas políticas, como ler numa cédula eleitoral
Villèle em vez de Manuel (dá rima, deixa a consciência em paz), será, aos
quarenta anos, procurador-geral, e poderá se tornar deputado. Repare, meu caro
menino, que teremos dado uns arranhões na nossa conscienciazinha, que teremos
tido vinte anos de aborrecimentos, de misérias secretas, e que nossas irmãs terão
ficado para titia. Tenho a honra de fazê-lo observar, além disso, que só há vinte
procuradores-gerais na França, e que vocês são vinte mil aspirantes ao posto,
entre os quais se encontram farsantes que venderiam a família para subir um
degrau. Se a profissão o repugna, vejamos outra coisa. O barão de Rastignac
quer ser advogado? Ah! beleza. É preciso penar por dez anos, gastar mil francos
por mês, ter uma biblioteca, um gabinete, frequentar a sociedade, beijar a toga de
um procurador para conseguir causas, varrer o tribunal com a língua. Se essa
profissão o levasse a bom porto, eu não diria não; mas encontre-me em Paris
cinco advogados que, aos cinquenta anos, ganham mais de cinquenta mil francos
por ano? Ora! mais do que me enfraquecer assim a alma, eu preferiria virar
corsário. Aliás, onde pegar os escudos? Nada disso é engraçado. Temos um
recurso no dote de uma mulher. Quer se casar? Será colocar uma pedra no
pescoço; além do mais, na hipótese de se casar por dinheiro, onde vão parar
nossos sentimentos de honra, nossa nobreza? Melhor começar hoje a sua revolta
contra as convenções humanas. Não seria nada deitar-se como uma serpente
diante de uma mulher, lamber os pés da mãe, fazer baixezas de dar nojo a uma
porca, bergh!, se ao menos encontrasse a felicidade. Mas será infeliz como as
pedras de esgoto com uma mulher que tiver desposado assim. Ainda mais vale
guerrear com os homens do que lutar com a mulher. É essa a encruzilhada da
vida, rapaz, escolha. Já escolheu: foi à casa de nossa prima de Beauséant, e lá
farejou o luxo. Foi à casa da sra. de Restaud, a filha do pai Goriot, e lá farejou a
parisiense. Naquele dia voltou com uma palavra escrita na testa, e que eu soube
ler muito bem: “Vencer!”. Vencer a qualquer preço. Bravo!, pensei, aí está um
rapaz que me cai bem. Precisou de dinheiro. Onde pegá-lo? Sangrou as irmãs.
Todos os irmãos ludibriam mais ou menos as irmãs. Os seus mil e quinhentos
francos arrancados, Deus sabe como!, numa terra onde se encontram mais
castanhas que moedas de cem vinténs, vão sumir como soldados na hora da
pilhagem! Depois, o que fará? Trabalhará? O trabalho, compreendido como o
compreende agora, dá, nos velhos dias, um apartamento na pensão de mamãe
Vauquer a uns sujeitos do naipe de Poiret. Uma rápida fortuna é o problema que
neste momento se propõem a resolver cinquenta mil jovens que se encontram,
todos, na sua situação. Você é uma unidade dessa soma. Considere os esforços
que tem de fazer e a sanha do combate. Terão de comer uns aos outros como
aranhas dentro de um pote, considerando que não há cinquenta mil bons cargos.
Sabe como se abre caminho aqui? Pelo brilho do gênio ou pela habilidade da
corrupção. É preciso entrar nessa massa de homens como uma bala de canhão,
ou aí se esgueirar como uma peste. A honestidade não serve para nada. As
pessoas se dobram sob o poder do gênio, odeiam-no, tentam caluniá-lo, porque
ele pega sem dividir; mas se dobram se ele persiste; em suma, o adoram de
joelhos quando não conseguiram enterrá-lo na lama. A corrupção é copiosa, o
talento é raro. Assim, a corrupção é a arma da mediocridade que abunda, e você
sentirá por toda parte sua pontada. Verá mulheres cujos maridos têm seis mil
francos de ordenado como única renda, e que gastam mais de dez mil francos
com suas toaletes. Verá empregados com mil e duzentos francos comprarem
terras. Verá mulheres se prostituirem para andar na carruagem do filho de um
par da França, que pode correr em Longchamp pela pista do meio. Você viu o
pobre idiota do pai Goriot obrigado a pagar a letra de câmbio endossada pela
filha, cujo marido tem cinquenta mil libras de renda. Desafio-o a dar dois passos
em Paris sem encontrar trapaças infernais. Eu apostaria minha cabeça por um pé
desta alface que você vai cair num vespeiro com a primeira mulher que lhe
agradar, se for rica, bonita e jovem. Todas estão presas às leis, em guerra com o
marido a respeito de tudo. Eu não acabaria nunca se tivesse de lhe explicar as
tramoias que se fazem por causa de amantes, de roupas, de filhos, pelo lar ou
pela vaidade, raramente por virtude, esteja certo. Assim, o homem honesto é o
inimigo comum. Mas o que pensa que é um homem honesto? Em Paris, o
homem honesto é aquele que se cala e se recusa a dividir. Não lhe falo desses
pobres hilotas que em toda parte fazem sua labuta sem jamais ser recompensados
por seus trabalhos, e que eu chamo de confraria dos chinelos do bom Deus. Sem
dúvida, aí está a virtude em toda a flor de sua idiotice, mas aí está a miséria.
Vejo daqui a careta dessa brava gente se Deus nos fizesse a brincadeira de mau
gosto de se ausentar do juízo final. Portanto, se quer a fortuna prontamente, é
preciso já ser rico ou parecê-lo. Para enriquecer, trata-se aqui de armar grandes
jogadas; do contrário, é afanar, e passe bem. Se nas cem profissões que puder
abraçar houver dez homens que vencerem depressa, o público os chamará de
ladrões. Tire suas conclusões. Eis a vida como ela é. Isso não é mais bonito que
a cozinha, fede da mesma maneira, e temos que sujar as mãos se quisermos nos
deliciar; saiba pelo menos limpar-se direito: aí está toda a moral de nossa época.
Se lhe falo assim do mundo, é porque ele me deu esse direito, eu o conheço.
Pensa que o recrimino? De jeito nenhum. Ele sempre foi assim. Os moralistas
jamais o mudarão. O homem é imperfeito. Às vezes é mais ou menos hipócrita, e
então os tolos dizem que tem ou não tem bons costumes. Não acuso os ricos em
favor do povo: o homem é o mesmo no alto, embaixo, no meio. Encontram-se
para cada milhão desse gado superior dez sujeitos que se põem acima de tudo,
até mesmo das leis: sou um deles. Você, se for um homem superior, ande em
linha reta e de cabeça erguida. Mas será preciso lutar contra a inveja, a calúnia, a
mediocridade, contra todo mundo. Napoleão encontrou um ministro da Guerra
que se chamava Aubry, e que quase o mandou para as colônias. Sonde-se! Veja
se poderá se levantar todas as manhãs com mais vontade do que tinha na
véspera. Nessa conjuntura, vou lhe fazer uma proposta que ninguém recusaria.
Ouça bem. Eu, sabe, tenho uma ideia. Minha ideia é ir viver a vida patriarcal no
meio de uma grande propriedade, cinquenta mil hectares, por exemplo, nos
Estados Unidos, no Sul. Quero virar fazendeiro, ter escravos, ganhar uns bons
milhõezinhos vendendo meus bois, meu fumo, minhas madeiras, vivendo como
um soberano, fazendo minhas vontades, levando uma vida inconcebível aqui,
onde a gente se esconde numa toca de gesso. Sou um grande poeta. Minhas
poesias, não as escrevo; consistem em ações e sentimentos. Possuo neste
momento cinquenta mil francos que me dariam apenas quarenta negros. Preciso
de duzentos mil francos, porque quero duzentos negros, a fim de satisfazer meu
gosto pela vida patriarcal. Negros, sabe?, são filhos já prontos com os quais
fazemos o que queremos, sem que um curioso procurador do rei chegue lhe
pedindo satisfação. Com esse capital negro, em dez anos terei três ou quatro
milhões. Se eu vencer, ninguém me perguntará: “Quem é você?”. Serei o sr.
Quatro-Milhões, cidadão dos Estados Unidos. Terei cinquenta anos, ainda não
estarei podre, me divertirei a meu modo. Em poucas palavras, se eu lhe
conseguir um dote de um milhão, você me dará duzentos mil francos? Vinte por
cento de comissão, hein!, é muito alto? Você se fará amar por sua mulherzinha.
Uma vez casado, manifestará inquietações, remorsos, bancará o triste durante
quinze dias. Uma noite, depois de algumas macaquices, declarará à sua mulher,
entre um beijo e outro, duzentos mil francos de dívidas, dizendo-lhe: “Meu
amor!”. Esse vaudeville é representado todos os dias pelos rapazes mais
distintos. Uma jovem mulher não recusa sua bolsa àquele que lhe toma o
coração. Pensa que perderá com isso? Não. Dará um jeito de ganhar novamente
seus duzentos mil francos num negócio. Com seu dinheiro e seu espírito,
amealhará uma fortuna tão considerável quanto puder desejá-la. Ergo , terá feito,
em seis meses, a sua felicidade, a de uma mulher adorável e a do seu papai
Vautrin, sem contar a de sua família, que sopra nos dedos, durante o inverno, por
falta de lenha. Não se espante com o que lhe proponho nem com o que lhe peço!
De sessenta belos casamentos que acontecem em Paris, há quarenta e sete que
dão lugar a combinações semelhantes. A Câmara dos Notários forçou o
cavalheiro…
— O que devo fazer? — disse avidamente Rastignac, interrompendo Vautrin.
— Quase nada — respondeu aquele homem, deixando escapar um gesto de
alegria parecido com a surda expressão de um pescador que sente o peixe na
ponta da linha. — Ouça-me bem! O coração de uma pobre moça infeliz e
miserável é a esponja mais ávida a se encher de amor, uma esponja seca que se
dilata assim que ali cai uma gota de sentimento. Cortejar uma jovem que se acha
em condições de solidão, desespero e pobreza sem que ela desconfie de sua
fortuna futura! valha-me!, é uma trinca e um par na mão, é saber os números
premiados na loteria, é jogar com as ações conhecendo as notícias. Você
construirá um casamento sobre pilotis, um casamento indestrutível. Milhões
virão para essa jovem, ela os jogará a seus pés, como se fossem pedras. “Tome,
meu bem-amado! Tome, Adolphe! Alfred! Tome, Eugène!”, dirá se Adolphe,
Alfred ou Eugène tiveram a boa inteligência de se sacrificar por ela. O que
entendo por sacrifícios é vender uma velha casaca a fim de ir ao Cadran-Bleu
comerem juntos uma torta de cogumelo; de lá, à noite, para o Ambigu-Comique;
é pôr seu relógio no prego para lhe dar um xale. Não lhe falo das garatujas do
amor nem das bobices a que as mulheres tanto se apegam, como por exemplo
espalhar gotas d’água no papel de carta como se fossem lágrimas quando
estamos longe delas: você tem cara de conhecer perfeitamente o jargão do
coração. Paris, veja, é como uma floresta do Novo Mundo, na qual se agitam
vinte espécies de tribos selvagens, os Illinois, os Hurões, que vivem do produto
dado pelas diferentes caças sociais; você é um caçador de milhões. Para pegá-
los, use armadilhas, alçapões, chamarizes. Há várias maneiras de caçar. Uns
caçam o dote; outros caçam o momento de liquidar as ações; estes pescam
consciências, aqueles vendem, pés e mãos atados, seu jornal. Quem volta com a
algibeira bem fornida é saudado, festejado, recebido na boa sociedade. Façamos
justiça a este solo hospitaleiro, você está lidando com a cidade mais
condescendente que existe no mundo. Se as orgulhosas aristocracias de todas as
capitais da Europa se recusam a admitir em suas fileiras um milionário infame,
Paris lhe abre os braços, corre às suas festas, come seus jantares e brinda à sua
infâmia.
— Mas onde encontrar uma moça? — perguntou Eugène.
— Ela é sua, está na sua frente!
— A srta. Victorine?
— Exato!
— Ei! Como?
— Ela já o ama, a sua pequena baronesa de Rastignac!
— Ela não tem um tostão — retrucou Eugène, espantado.
— Ah! Chegamos ao que interessa. Mais duas palavrinhas — disse Vautrin —
e tudo se esclarecerá. O pai Taillefer é um velho maroto que dizem ter
assassinado um de seus amigos durante a Revolução. É um de meus sujeitos que
têm independência em suas opiniões. É banqueiro, principal sócio da casa
Frédéric Taillefer e companhia. Tem um filho único, a quem quer deixar seus
bens, em prejuízo de Victorine. Não gosto dessas injustiças. Sou como dom
Quixote, gosto de tomar a defesa do fraco contra o forte. Se a vontade de Deus
fosse lhe retirar o filho, Taillefer pegaria de volta a filha; gostaria de um herdeiro
qualquer, uma dessas besteiras que está na natureza, e não pode mais ter filhos,
eu sei. Victorine é meiga e gentil, breve terá dobrado o pai, e o fará girar como
um pião da Alemanha, com a corda do sentimento! Ela será muito sensível ao
seu amor para esquecê-lo, e você se casará com ela. Encarrego-me do papel da
Providência, farei com que o bom Deus o queira. Tenho um amigo a quem me
mostrei dedicado, um coronel do Exército do Loire que acaba de se empregar na
guarda real. Ele ouve minhas opiniões e se fez ultramonarquista: não é um
desses imbecis que se aferram às próprias opiniões. Se ainda tenho um conselho
a lhe dar, meu anjo, é não se aferrar mais às suas opiniões do que às suas
palavras. Quando as pedirem, venda-as. Um homem que se gaba de nunca mudar
de opinião é um homem que se impõe andar sempre em linha reta, um bobo que
acredita na infalibilidade. Não há princípios, há apenas fatos; não há leis, há
apenas circunstâncias: o homem superior desposa os fatos e as circunstâncias
para conduzi-los. Se houvesse princípios e leis fixas, os povos não os mudariam
como mudamos de camisas. O homem não é obrigado a ser mais sensato que
toda uma nação. O homem que prestou menos serviços à França é um fetiche
venerado por ter sempre visto tudo vermelho, ele serve no máximo para ser
posto no Conservatório, entre as máquinas, com a etiqueta La Fayette; 36 ao
passo que o príncipe em quem todos atiram pedra, e que despreza bastante a
humanidade para lhe cuspir no rosto tantos juramentos quantos ela pedir,
impediu a divisão da França no Congresso de Viena; a ele devem-se coroas,
jogam-lhe lama. Ah! conheço os negócios! Sei dos segredos de muitos homens!
Basta. Terei uma opinião inquebrantável no dia em que tiver encontrado três
cabeças de acordo sobre o emprego de um princípio, e esperarei muito tempo!
Não se encontram nos tribunais três juízes que tenham a mesma opinião sobre
um artigo de lei. Volto ao meu homem. Ele reporia Jesus Cristo na cruz se eu lhe
pedisse. A uma só palavra de seu papai Vautrin ele vai procurar briga com
aquele engraçadinho que não manda nem mesmo cem vintens à sua pobre irmã,
e… — Aqui Vautrin se levantou, pôs-se em posição de defesa e fez o gesto de
um mestre de armas que riposta. — E debaixo da terra! — acrescentou.
— Que horror! — disse Eugène. — Está brincando, sr. Vautrin?
— Não, não, não, calma — prosseguiu aquele homem. — Não banque a
criança: no entanto, se isso pode diverti-lo, enfureça-se, arrebate-se! Diga que
sou um infame, um facínora, um malandro, um bandido, mas não me chame de
escroque, nem de espião! Ande, diga, solte sua saraivada de insultos! Eu o
perdoo, é tão natural na sua idade! Já fui assim! Só que reflita. Fará pior um dia
desses. Irá pavonear-se para alguma mulher bonita e receberá dinheiro. Já
pensou nisso? — disse Vautrin. — Pois como vencerá, se não cobrar por seu
amor? A virtude, meu caro estudante, não se cinde: ela é ou não é. Falam-nos de
fazer penitência por nossos erros. Mais um lindo sistema, esse em virtude do
qual ficamos quite de um crime com um ato de contrição! Seduzir uma mulher
para conseguir se colocar em determinado degrau da escada social, semear a
cizânia entre os filhos de uma família, em suma todas as infâmias que se
praticam por baixo do pano ou de outra forma com um objetivo de prazer ou
interesse pessoal, você acredita que sejam atos de fé, de esperança e de caridade?
Por que dois meses de prisão para o dândi que, numa noite, tira de uma criança a
metade de sua fortuna, e por que trabalhos forçados para um pobre-diabo que
rouba uma nota de mil francos com circunstâncias agravantes? Essas são as suas
leis. Não há um artigo que não leve ao absurdo. O homem de luvas e palavras
amarelas cometeu assassinatos em que não se derrama sangue, mas em que se dá
o sangue; o assassino abriu uma porta com um pé de cabra: duas coisas
tenebrosas! Entre o que lhe proponho e o que você fará um dia, a única diferença
é o sangue a menos. Acredita em algo fixo nesse mundo? Portanto, despreze os
homens, e veja as malhas por onde se pode passar na rede do Código. O segredo
das grandes fortunas sem causa aparente é um crime esquecido, porque foi
cometido com limpeza.
— Silêncio, senhor, não quero mais ouvir, pois me faria duvidar de mim
mesmo. Neste momento o sentimento é toda a minha ciência.
— Como quiser, belo menino. Eu o julgava mais forte — disse Vautrin —, não
lhe direi mais nada. Uma última palavra, porém. — Olhou fixamente para o
estudante. — Você conhece o meu segredo — disse-lhe.
— Um jovem que o recusa saberá perfeitamente esquecê-lo.
— Disse-o muito bem, isso me agrada. Um outro, veja bem, seria menos
escrupuloso. Lembre-se do que quero fazer por você. Dou-lhe quinze dias. É
pegar ou largar.
“Mas que cabeça fria tem esse homem!”, pensou Rastignac, vendo Vautrin ir
embora tranquilamente, com a bengala debaixo do braço. “Ele me disse
cruamente o que a sra. de Beauséant me dizia cheia de rodeios. Rasgou-me o
coração com garras de aço. Por que eu quero ir à casa da sra. de Nucingen?
Adivinhou meus motivos assim que os imaginei. Em poucas palavras, esse
bandido me disse mais coisas sobre a virtude do que me disseram os homens e
os livros. Se a virtude não sofre capitulação, quer dizer que roubei minhas
irmãs?”, pensou, jogando a sacola em cima da mesa. Sentou-se e ficou ali,
mergulhado numa atordoante meditação. “Ser fiel à virtude, sublime martírio!
Ora! Todo mundo acredita na virtude; mas quem é virtuoso? Os povos têm a
liberdade como ídolo; mas onde existe na terra um povo livre? Minha juventude
ainda é azul como um céu sem nuvem: querer ser grande ou rico não é decidir-se
a mentir, dobrar-se, rastejar-se, reerguer-se, bajular, dissimular? Não é consentir
fazer-se de criado daqueles que mentiram, dobraram-se, rastejaram-se? Antes de
ser cúmplice deles, é preciso servi-los. Pois bem, não. Quero trabalhar
nobremente, santamente; quero trabalhar dia e noite, só dever minha fortuna à
minha labuta. Será a mais lenta das fortunas, mas todo dia minha cabeça
repousará no travesseiro sem um pensamento ruim. O que há de mais belo do
que contemplar sua vida e achá-la pura como um lírio? Eu e a vida, somos como
um jovem e sua noiva. Vautrin me fez ver o que acontece depois de dez anos de
casamento. Diachos! Minha cabeça está se perdendo. Não quero pensar em nada,
o coração é um bom guia.”
Eugène foi tirado de seu devaneio pela voz da gorda Sylvie, que lhe anunciou
seu alfaiate, diante do qual se apresentou segurando as duas sacolas de dinheiro,
e não se zangou que fosse essa a circunstância. Depois que provou suas roupas
de noite, tornou a vestir a nova toalete matutina, que o metamorfoseava por
completo. “Até que valho tanto quanto o sr. de Trailles”, pensou. “Finalmente
estou com jeito de um fidalgo!”
— O senhor — disse o pai Goriot ao entrar no quarto de Eugène — me
perguntou se eu conhecia as casas aonde vai a sra. de Nucingen?
— É.
— Pois bem, na próxima segunda-feira ela vai ao baile do marechal de
Carigliano. Se puder estar lá, me dirá se minhas duas filhas se divertiram
bastante, como estavam vestidas, em suma, tudo.
— Como soube disso, meu bom pai Goriot? — perguntou Eugène fazendo-o
sentar-se perto de sua lareira.
— A camareira dela me disse. Sei tudo o que fazem por Thérèse e por
Constance — continuou com ar alegre. O velho parecia um amante ainda
bastante jovem para ficar feliz com um estratagema que o põe em contato com a
amante sem que ela possa desconfiar. — O senhor as verá! — disse expressando
com ingenuidade uma dolorosa inveja.
— Não sei — respondeu Eugène. — Vou à casa da sra. de Beauséant
perguntar-lhe se pode me apresentar à senhora do marechal.
Eugène pensava com uma espécie de alegria interior em aparecer na casa da
viscondessa vestido como agora sempre estaria. O que os moralistas chamam de
abismos do coração humano são unicamente os pensamentos ilusórios, os
movimentos involuntários do interesse pessoal. Essas peripécias, objeto de tantas
declamações, essas reviravoltas súbitas são cálculos feitos em benefício de
nossos prazeres. Vendo-se bem vestido, bem enluvado, bem calçado, Rastignac
esqueceu sua virtuosa decisão. A juventude não ousa se olhar no espelho da
consciência quando se inclina para o lado da injustiça, ao passo que a idade
madura ali já se viu: é onde jaz toda a diferença entre essas duas fases da vida.
Fazia alguns dias que os dois vizinhos, Eugène e o pai Goriot, tinham se tornado
bons amigos. Sua amizade secreta decorria das razões psicológicas que haviam
gerado sentimentos contrários entre Vautrin e o estudante. O ousado filósofo que
quiser verificar os efeitos de nossos sentimentos no mundo físico encontrará
certamente mais de uma prova de sua efetiva materialidade nas relações que eles
criam entre nós e os animais. Qual fisiognomonista está mais capacitado para
adivinhar o caráter do que um cachorro o está para saber se um desconhecido
gosta ou não gosta dele? Os átomos de aço , 37 expressão proverbial que todos
usam, são um desses fatos que ficam nas linguagens para desmentir as tolices
filosóficas que ocupam os que gostam de peneirar as peles das palavras
primitivas. Sentimo-nos amados. O sentimento se imprime em todas as coisas e
atravessa os espaços. Uma carta é uma alma, é um eco tão fiel da voz que fala,
que os espíritos delicados a incluem entre os mais ricos tesouros do amor. O pai
Goriot, cujo sentimento irrefletido se elevava ao sublime da natureza canina,
farejara a compaixão, a admirativa bondade, as simpatias juvenis que se haviam
comovido por ele no coração do estudante. No entanto, aquela união nascente
ainda não levara a nenhuma confidência. Se Eugène manifestara o desejo de ver
a sra. de Nucingen, não era porque contasse com o velhote para que o
introduzisse na casa dela; mas esperava que uma indiscrição pudesse ajudá-lo. O
pai Goriot só lhe falara das filhas a propósito do que ele se permitira dizer
publicamente delas no dia de suas duas visitas.
— Meu caro senhor — ele lhe dissera no dia seguinte —, como pôde acreditar
que a sra. de Restaud tenha lhe querido mal por ter pronunciado meu nome?
Minhas duas filhas gostam muito de mim. Sou um pai feliz. Só que meus dois
genros se comportaram mal comigo. Não quis que essas queridas criaturas
sofressem por minhas dissensões com seus maridos, e preferi vê-las escondido.
Esse mistério me dá mil prazeres que não compreendem os outros pais que
podem ver suas filhas quando querem. Eu, eu não posso, entende? Então, quando
faz tempo bom, vou ao Champs-Elysées, depois de ter perguntado às camareiras
se minhas filhas vão sair. Espero-as no caminho, meu coração dispara quando as
carruagens chegam, admiro-as em suas toaletes, elas me jogam, ao passar, um
sorrisinho que me doura a natureza como um raio que caísse de um belo sol. E
ali permaneço, elas devem retornar. Vejo-as de novo! O ar lhes fez bem, estão
rosadas. Ouço dizerem ao meu redor: “Olhem que bela mulher!”. Isso me alegra
o coração. Não é meu sangue? Gosto dos cavalos que as transportam, e gostaria
de ser o cãozinho que levam no colo. Vivo dos prazeres delas. Cada um tem seu
modo de amar, o meu, porém, não causa mal a ninguém, por que o mundo se
ocupa de mim? Sou feliz à minha maneira. Acaso é contra as leis ir ver minhas
filhas, à noite, quando saem de casa para irem ao baile? Que tristeza para mim se
chego tarde demais e me dizem: “A senhora já saiu”. Uma noite esperei até as
três da manhã para ver Nasie, que fazia dois dias que eu não via. Quase morri de
contentamento! Peço-lhe encarecidamente, não fale de mim senão para dizer o
quanto minhas filhas são boas. Elas querem me cobrir de presentes de toda
espécie; não permito, digo-lhes: “Mas guardem seu dinheiro! O que querem que
eu faça com isso? Não preciso de nada!”. De fato, meu caro senhor, que sou eu?
Um feio cadáver cuja alma está em todo lugar onde estão minhas filhas. Quando
tiver visto a sra. de Nucingen, me dirá qual das duas prefere — disse o
homenzinho depois de um instante de silêncio, vendo que Eugène se preparava
para sair e ir passear nas Tuileries, à espera da hora de se apresentar na casa da
sra. de Beauséant.
Esse passeio foi fatal para o estudante. Algumas mulheres repararam nele. Era
tão bonito, tão jovem, e com uma elegância de tão bom gosto! Vendo-se objeto
de uma atenção quase admirativa, não pensou mais nas irmãs nem na tia
espoliadas, nem em suas virtuosas repugnâncias. Vira passar acima de sua
cabeça aquele demônio que é tão fácil confundir com um anjo, aquele Satã de
asas furta-cores, que semeia rubis, joga flechas de ouro na fachada dos palácios,
purpureia as mulheres, reveste com um brilho estúpido os tronos, tão simples em
sua origem; escutara o deus dessa vaidade crepitante cujo brilho falso nos parece
um símbolo de poder. As palavras de Vautrin, por mais cínicas que fossem, se
alojaram em seu coração assim como na lembrança de uma virgem grava-se o
perfil ignóbil de uma velha vendedora de joias que lhe disse: “Ouro e amor aos
borbotões!”. Depois de ter flanado indolente, pelas cinco horas Eugène se
apresentou na casa da sra. de Beauséant e recebeu um desses golpes terríveis
contra os quais os jovens corações estão desarmados. Até então encontrara a
viscondessa cheia dessa amenidade polida, dessa graça melíflua dada pela
educação aristocrática, e que só está completa se vem do coração.
Quando entrou, a sra. de Beauséant fez um gesto seco e disse-lhe num tom
apressado:
— Sr. de Rastignac, é impossível vê-lo, pelo menos neste momento! Estou
tratando de negócios…
Para um observador, e Rastignac prontamente se tornara um deles, essa frase, o
gesto, o olhar, a inflexão de voz eram a história do caráter e dos hábitos da casta.
Percebeu a mão de ferro sob a luva de veludo; a personalidade, o egoísmo, sob
os bons modos; a madeira, sob o verniz. Entendeu enfim o EU O REI que começa
sob os penachos do trono e termina sob a cimeira do último gentil-homem.
Eugène se deixara com demasiada facilidade, baseado em suas palavras,
acreditar nas nobrezas da mulher. Como todos os infelizes, assinara de boa-fé o
delicioso pacto que deve ligar o benfeitor ao apadrinhado, e cujo primeiro artigo
consagra entre os grandes corações uma completa igualdade. A benevolência,
que junta dois seres num só, é uma paixão celeste também incompreendida, tão
rara quanto é o verdadeiro amor. Uma e outro são a prodigalidade das belas
almas. Rastignac queria chegar ao baile da duquesa de Carigliano, e engoliu
aquela borrasca.
— Senhora — disse com voz emocionada —, se não se tratasse de uma coisa
importante não teria vindo importuná-la; seja bastante gentil para me permitir
vê-la mais tarde, aguardarei.
— Muito bem! Venha jantar comigo — ela disse um pouco envergonhada com
a dureza que pusera em suas palavras; pois aquela mulher era realmente tão boa
quanto grande.
Embora tocado com essa reviravolta súbita, Eugène pensou, ao ir embora:
“Rasteje, suporte tudo. O que devem ser as outras se, num instante, a melhor das
mulheres apaga as promessas de sua amizade, deixa-o ali como um sapato
velho? Então é cada um por si? É verdade que sua casa não é uma loja, e que
estou errado em precisar dela. É necessário, como diz Vautrin, ser bala de
canhão”. As amargas reflexões do estudante logo foram dissipadas pelo prazer
que se prometia jantando na casa da viscondessa. Assim, por uma espécie de
fatalidade, os menores acontecimentos de sua vida conspiraram para empurrá-lo
na carreira em que, seguindo as observações da terrível esfinge da Casa
Vauquer, ele deveria, como num campo de batalha, matar para não ser morto,
enganar para não ser enganado; em que deveria deixar na cancela a sua
consciência, o seu coração, pôr uma máscara, escarnecer sem piedade dos
homens, e, como na Lacedemônia, agarrar sua sorte sem ser visto, para merecer
a coroa. Quando voltou à casa da viscondessa, encontrou-a cheia dessa bondade
graciosa que sempre lhe demonstrara. Os dois foram para uma sala de jantar
onde o visconde esperava a mulher e onde resplandecia esse luxo de mesa que,
durante a Restauração, foi levado, como todos sabem, ao mais alto grau. O sr. de
Beauséant, como tantas pessoas indiferentes, já não tinha outros prazeres além
dos da boa mesa; na verdade, em matéria de comilança, era da escola de Luís
XVIII e do duque d’Escars. 38 Portanto, sua mesa oferecia um duplo luxo, o do
continente e o do conteúdo. Nunca um espetáculo desses impressionara os olhos
de Eugène, que jantava pela primeira vez numa dessas casas onde as grandezas
sociais são hereditárias. A moda acabava de suprimir as ceias que outrora
encerravam os bailes do Império, quando os militares precisavam ganhar forças
para se preparar para todos os combates que os esperavam, tanto dentro como
fora. Eugène até então só assistira a bailes. O desembaraço que o distinguiu mais
tarde de modo tão eminente, e que ele já começava a demonstrar, o impediu de
se assombrar como um parvo. Mas ao ver aquela prataria lavrada e os mil
requintes de uma mesa suntuosa, ao admirar pela primeira vez um serviço feito
sem ruído, era difícil para um homem de ardorosa imaginação não preferir essa
vida constantemente elegante à vida de privações que pela manhã ele queria
abraçar. Seu pensamento o jogou de novo, por um instante, na sua pensão
burguesa; sentiu um horror tão profundo que jurou a si mesmo abandoná-la no
mês de janeiro, tanto para se instalar numa casa limpa como para fugir de
Vautrin, cuja mão larga sentia em seu ombro. Quando se chega a pensar nas mil
formas que a corrupção, falada ou muda, assume em Paris, um homem de bom
senso se pergunta por qual aberração o Estado aí instala escolas e reúne jovens,
como as mulheres bonitas aí são respeitadas, como o ouro exposto pelos
cambistas em vasilhas não desaparece magicamente. Mas quando se chega a
pensar que há poucos exemplos de crimes, até mesmo de delitos cometidos pelos
jovens, que respeito não devemos demonstrar por esses pacientes Tântalos que
combatem a si mesmos, e quase sempre são vitoriosos! Se ele fosse bem pintado
em sua luta com Paris, o pobre estudante forneceria um dos temas mais
dramáticos de nossa civilização moderna. A sra. de Beauséant olhava em vão
para Eugène a fim de convidá-lo a falar, mas ele não quis dizer nada na presença
do visconde.
— Esta noite vai me levar ao Italiens? — perguntou a viscondessa ao marido.
— Não pode duvidar do prazer que eu teria em obedecê-la — ele respondeu
com uma galanteria zombeteira que enganou o estudante —, mas devo ir
encontrar alguém no Variétés.
“Sua amante”, ela pensou.
— Então esta noite não tem D’Ajuda? — perguntou o visconde.
— Não — ela respondeu de mau humor.
— Pois bem, se precisar inevitavelmente de um braço, tome o do sr. de
Rastignac!
A viscondessa olhou sorrindo para Eugène.
— Será bem comprometedor para si — disse.
— O francês gosta do perigo porque nele encontra a glória , disse o sr. de
Chateaubriand — respondeu Rastignac inclinando-se.
Momentos depois foi levado, ao lado da sra. de Beauséant, num cupê rápido,
para o teatro da moda, e acreditou em alguma fantasmagoria quando entrou num
camarote de frente e viu-se alvo de todos os binóculos junto com a viscondessa,
cuja toalete era deliciosa. Ele ia de encantamento em encantamento.
— Tem algo para me falar — disse-lhe a sra. de Beauséant. — Ah! Veja, ali
está a sra. de Nucingen, a três camarotes do nosso. A irmã dela e o sr. de Trailles
estão do outro lado.
Ao dizer essas palavras a viscondessa olhava para o camarote onde devia estar
a srta. de Rochefide, e, não vendo ali o sr. d’Ajuda, seu rosto tomou um brilho
extraordinário.
— Ela é encantadora — disse Eugène depois de olhar para a sra. de Nucingen.
— Tem os cílios brancos.
— Sim, mas que linda cinturinha!
— Tem mãos grossas.
— Belos olhos!
— Tem o rosto comprido.
— Mas a forma longa tem distinção.
— Feliz dela que tenha essa distinção. Veja como pega e larga o lorgnon! O
Goriot transparece em todos os seus movimentos — disse a viscondessa, para
grande espanto de Eugène.
De fato, a sra. de Beauséant olhava de soslaio para a sala e parecia não prestar
atenção na sra. de Nucingen, de quem, no entanto, não perdia um gesto. A
plateia estava deliciosamente bela. Delphine de Nucingen não se sentia pouco
lisonjeada por ocupar exclusivamente o jovem, o belo, o elegante primo da sra.
de Beauséant, que só olhava para ela.
— Se continuar a cobri-la de olhares, provocará escândalo, sr. de Rastignac.
Não conseguirá nada atirando-se assim na cabeça das pessoas.
— Minha cara prima — disse Eugène —, já me protegeu bastante; se quiser
completar sua obra, não lhe peço mais do que me fazer um favor que lhe dará
pouco trabalho e me fará grande bem. Eis-me agarrado.
— Já?
— Já.
— E por essa mulher?
— Então minhas pretensões seriam ouvidas em outro lugar? — ele disse
lançando um olhar penetrante para a prima. — A sra. duquesa de Carigliano é
ligada à duquesa de Berry — recomeçou depois de uma pausa —, a senhora
deve ir vê-la, faça a bondade de me apresentá-la e de me levar ao baile que ela
oferece na segunda-feira. Lá encontrarei a sra. de Nucingen e terei minha
primeira escaramuça.
— Com prazer — ela disse. — Se já se sente atraído por ela, seus negócios
amorosos vão muito bem. Olhe De Marsay no camarote da princesa
Galathionne. A sra. de Nucingen está sofrendo horrores, está despeitada. Não há
melhor momento para se aproximar de uma mulher, mais ainda de uma mulher
de banqueiro. Todas essas damas da Chaussée d’Antin gostam de vingança.
— Mas o que faria num caso desses?
— Eu, eu sofreria calada.
Nesse instante o marquês d’Ajuda se apresentou no camarote da sra. de
Beauséant.
— Fiz mal os meus negócios a fim de vir encontrá-la — ele disse —, e
informo-lhe a respeito para que não seja um sacrifício.
Os esplendores do rosto da viscondessa ensinaram Eugène a reconhecer as
expressões de um verdadeiro amor, e a não confundi-las com os salamaleques do
coquetismo parisiense. Admirou a prima, ficou mudo e cedeu o lugar ao sr.
d’Ajuda, suspirando. “Que nobre, que sublime criatura é uma mulher que ama
assim!”, pensou. “E esse homem a trairia com uma boneca! Como é possível
traí-la?” Sentiu-se no centro de uma raiva de criança. Gostaria de se enrolar aos
pés da sra. de Beauséant, desejava o poder dos demônios a fim de levá-la para
seu coração, assim como uma águia leva da planície para seu ninho uma
cabritinha branca que ainda mama. Sentia-se humilhado por estar nesse grande
Museu da Beleza sem seu quadro, sem uma amante sua. “Ter uma amante é uma
posição quase régia”, pensava, “é o signo do poder!” E olhou para a sra. de
Nucingen como um homem insultado olha para seu adversário. A viscondessa se
virou para ele a fim de lhe dirigir com sua discrição mil agradecimentos, num
piscar de olhos. O primeiro ato terminara.
— Mas ela ficará encantada de ver o cavalheiro — disse o marquês.
O belo português se levantou e pegou o braço do estudante, que num piscar de
olhos se viu ao lado da sra. de Nucingen.
— Senhora baronesa — disse o marquês —, tenho a honra de apresentar-lhe o
cavalheiro Eugène de Rastignac, primo da viscondessa de Beauséant. A senhora
causou-lhe tão viva impressão, que quis completar sua felicidade aproximando-o
de seu ídolo.
Essas palavras foram ditas com um certo quê de troça que transmitia um
pensamento um pouco brutal, mas que, bem expressado, jamais desagrada a uma
mulher. A sra. de Nucingen sorriu e ofereceu a Eugène o lugar de seu marido,
que acabava de sair.
— Não ouso lhe propor ficar a meu lado, senhor — disse-lhe. — Quando se
tem a felicidade de estar ao lado da sra. de Beauséant, ali se permanece.
— Mas — Eugène lhe disse baixinho — parece-me, senhora, que se eu quiser
agradar à minha prima ficarei perto de si. Antes da chegada do senhor marquês,
falávamos da senhora e da distinção de toda a sua pessoa — disse em voz alta.
O sr. d’Ajuda se retirou.
— Realmente, senhor — disse a baronesa —, vai ficar comigo? Então
poderemos nos conhecer, a sra. de Restaud já havia me dado o mais intenso
desejo de vê-lo.
— Então ela é muito falsa, pois me barrou à sua porta.
— Como?
— Senhora, terei a consciência de lhe dizer a razão; mas exijo toda a sua
indulgência confiando-lhe um segredo desses. Sou vizinho do senhor seu pai.
Ignorava que a sra. de Restaud fosse filha dele. Cometi a imprudência de falar
disso muito inocentemente, e aborreci a senhora sua irmã e o marido dela. Nem
imagina como a sra. duquesa de Langeais e minha prima acharam de mau gosto
essa apostasia filial. Contei-lhes a cena, riram como loucas. Foi então que,
fazendo um paralelo entre a senhora e sua irmã, a sra. de Beauséant me falou a
seu respeito em ótimos termos e me disse o quanto era excelente para o meu
vizinho, o sr. Goriot. De fato, como não o amaria? Ele a adora tão
apaixonadamente que já estou com ciúme. Falamos de si de manhã por duas
horas. Depois, todo imbuído do que seu pai me contou, esta noite, jantando com
minha prima, eu lhe dizia que a senhora não podia ser tão bela quanto era
amorosa. Querendo na certa favorecer uma admiração tão ardente, a sra. de
Beauséant me trouxe aqui, dizendo-me com sua graça habitual que eu a veria.
— Como, senhor — disse a mulher do banqueiro —, eu já lhe devo gratidão?
Mais um pouco e vamos ser velhos amigos.
— Embora perto de si a amizade deva ser um sentimento pouco vulgar —
disse Rastignac —, não quero nunca ser seu amigo.
Essas tolices estereotipadas para uso dos iniciantes sempre parecem fascinantes
às mulheres, e só são pobres se lidas a frio. O gesto, o tom, o olhar de um rapaz
lhes dão valores incalculáveis. A sra. de Nucingen achou Rastignac um encanto.
Depois, como todas as mulheres, não podendo dizer nada sobre questões tão
vigorosamente formuladas como a do estudante, respondeu a outra coisa.
— Sim, minha irmã está errada pela maneira como se comporta com esse
pobre pai, que realmente foi um deus para nós. Foi preciso que o sr. de Nucingen
me ordenasse terminantemente que eu só visse meu pai de manhã para que eu
cedesse nesse ponto. Mas por muito tempo fiquei um bocado infeliz. Chorava.
Essas violências, vindas depois das brutalidades do casamento, foram uma das
razões que mais perturbaram minha vida conjugal. Sou, sem dúvida, a mulher de
Paris mais feliz aos olhos da sociedade, na realidade a mais infeliz. Vai me achar
louca por lhe falar assim. Mas conhece meu pai e, por essa razão, não me pode
ser um estranho.
— Jamais encontrará alguém — disse-lhe Eugène — que seja motivado por
um desejo mais profundo de lhe pertencer. O que todas vocês procuram? A
felicidade — ele recomeçou com uma voz que ia à alma. — Pois bem, se, para
uma mulher, a felicidade é ser amada, adorada, ter um amigo a quem possa
confiar seus desejos, suas fantasias, suas tristezas, suas alegrias; mostrar-se na
nudez de sua alma, com seus lindos defeitos e suas belas qualidades, sem temer
ser traída; creia-me, esse coração devotado, sempre ardente, só pode se encontrar
num homem jovem, cheio de ilusões, capaz de morrer a um só de seus sinais,
que ainda não sabe nada do mundo e não quer saber nada, porque a senhora
passa a ser o mundo para ele. Eu, veja, e vai rir de minha ingenuidade, chego do
fundo de uma província, inteiramente novo, só tendo conhecido belas almas, e
contava permanecer sem amor. Aconteceu-me ver minha prima, que me pôs
perto demais de seu coração; ela me fez adivinhar os mil tesouros da paixão;
sou, como Querubim, o amante de todas as mulheres, esperando que possa me
dedicar a alguma delas. Ao vê-la, quando entrei, senti-me transportado até a
senhora como por uma corrente. Já tinha pensado tanto em si! Mas não
imaginava que fosse tão bela como é na realidade. A sra. de Beauséant me
mandou não olhá-la tanto. Ela não sabe o que há de atraente em ver seus lindos
lábios vermelhos, sua pele branca, seus olhos tão suaves. Também estou lhe
dizendo loucuras, mas deixe-me dizê-las.
Nada agrada mais às mulheres do que ouvir essas doces palavras serem
proferidas. A devota mais severa as escuta, mesmo quando não deve responder.
Depois de ter assim começado, Rastignac desfiou seu rosário com uma voz
graciosamente surda; e a sra. de Nucingen encorajava Eugène com sorrisos,
olhando de vez em quando para De Marsay, que não saía do camarote da
princesa Galathionne. Rastignac ficou com a sra. de Nucingen até o momento
em que seu marido foi buscá-la para partirem.
— Senhora — disse-lhe Eugène —, terei o prazer de ir vê-la antes do baile da
duquesa de Carigliano.
— Chá que a senhorra se gompromete a recepê-lo — disse o barão, gordo
alsaciano cuja cara redonda anunciava uma perigosa sagacidade —, tenha
zerteza que zerá bem-findo!
“Meus negócios estão indo bem, pois ela não se intimidou ao me ouvir lhe
dizer: ‘Gostará de mim?’. Meu animal já está com a brida, agora é pular em cima
e governá-lo”, pensou Eugène indo cumprimentar a sra. de Beauséant, que se
levantava e se retirava com D’Ajuda. O pobre estudante não sabia que a
baronesa era distraída e esperava de De Marsay uma dessas cartas decisivas que
dilaceram a alma. Muito feliz com seu falso triunfo, Eugène acompanhou a
viscondessa até o peristilo, onde todos esperam seus carros.
— Seu primo já não parece o mesmo — disse o português rindo para a
viscondessa quando Eugène os deixou. — Vai explodir o banco. É ágil como
uma enguia, e creio que vai longe. Só você poderia ter-lhe escolhido a dedo uma
mulher no momento em que é preciso consolá-la.
— Mas — disse a sra. de Beauséant — é preciso saber se ela ainda ama aquele
que a abandona.
O estudante voltou a pé do Théâtre-Italien até a Rue Neuve-Sainte-Geneviève,
fazendo os mais doces projetos. Reparara muito bem na atenção com que a sra.
de Restaud o examinara, fosse no camarote da viscondessa, fosse no da sra. de
Nucingen, e presumiu que a porta da condessa não lhe ficaria mais fechada.
Assim, já quatro notáveis relações, pois contava agradar à esposa do marechal,
iam ser conquistadas no coração da alta sociedade parisiense. Sem explicar
demais os meios, adivinhava de antemão que, no jogo complicado dos interesses
desse mundo, devia se agarrar a uma engrenagem para se colocar no alto da
máquina, e sentia a força de travar a roda. “Se a sra. de Nucingen se interessar
por mim, vou lhe ensinar a governar seu marido. Esse marido faz negócios de
ouro, poderá me ajudar a amealhar de uma só vez uma fortuna.” Não pensava
isso cruamente, ainda não era político o suficiente para avaliar uma situação,
apreciá-la e calculá-la; essas ideias pairavam no horizonte na forma de nuvens
ligeiras, e embora não tivessem a dureza das de Vautrin, se fossem submetidas à
prova da consciência, não teriam resultado em nada de muito puro. Os homens
chegam, por uma série de transações do gênero, a essa moral relaxada professada
pela época atual, em que é mais raro que nunca encontrarmos esses homens
retangulares, essas belas vontades que jamais se dobram ao mal, para quem o
menor desvio da linha reta parece um crime: magníficas imagens da probidade
que nos valeram duas obras-primas, o Alceste de Molière e, mais recentemente,
Jenny Deans e seu pai, na obra de Walter Scott. 39 Talvez a obra oposta, a pintura
das sinuosidades em que um homem mundano, um ambicioso faz rolar sua
consciência, tentando caminhar ao lado do mal, a fim de chegar a seu objetivo
mantendo as aparências, não seria menos bonita nem menos dramática. Ao
chegar à porta da pensão, Rastignac estava apaixonado pela sra. de Nucingen,
que lhe parecera esbelta, fina como uma andorinha. A inebriante doçura de seus
olhos, o tecido delicado e sedoso de sua pele sob a qual ele imaginara ver correr
o sangue, o som encantador de sua voz, seus cabelos louros, ele se lembrava de
tudo; e talvez a caminhada, pondo seu sangue em movimento, ajudasse a essa
fascinação. O estudante bateu rudemente à porta do pai Goriot.
— Meu vizinho — disse —, vi a sra. Delphine.
— Onde?
— No Italiens.
— Ela se divertia bastante? Mas entre! — E o homenzinho, que se levantara de
camisa, abriu a porta e voltou a se deitar depressa. — Então me fale dela —
pediu.
Eugène, que entrava pela primeira vez no quarto do pai Goriot, não controlou
um gesto de perplexidade ao ver o tugúrio onde vivia o pai, depois de ter
admirado a toalete da filha. A janela não tinha cortinas; o papel colado nas
paredes soltava-se em vários lugares por causa da umidade e enrugava-se
deixando aparecer o gesso amarelado pela fumaça. O homem deitava-se sobre
uma cama ordinária, tinha apenas um cobertor fino e uma coberta acolchoada
feita com os bons retalhos dos velhos vestidos da sra. Vauquer. O chão
ladrilhado era úmido e cheio de pó. Defronte da janela via-se uma dessas velhas
cômodas de pau-rosa, bojudas, que têm puxadores de cobre torcido na forma de
sarmentos decorados com folhas ou flores; um velho móvel com tampo de
madeira sobre o qual havia um jarro de água dentro de uma bacia e todos os
utensílios necessários para fazer a barba. Num canto, os sapatos; na cabeceira da
cama, uma mesinha sem porta nem mármore; no canto da lareira, onde não havia
vestígio de fogo, achava-se a mesa quadrada, em nogueira, cujo tampo servira ao
pai Goriot para deformar sua tigela de vermeil. Uma escrivaninha ordinária
sobre a qual estava o chapéu do bom homem, uma poltrona escura de palha e
duas cadeiras completavam essa mobília miserável. A haste do cortinado, presa
no teto por um trapo, sustentava uma faixa de tecido vagabundo xadrez
vermelho e branco. O sótão do mais pobre moço de recados não era, com
certeza, tão mal mobiliado como o quarto do pai Goriot na pensão da sra.
Vauquer. O aspecto daquele quarto dava frio e apertava o coração, parecia a
mais triste cela de uma prisão. Ainda bem que Goriot não viu a expressão que se
estampou na fisionomia de Eugène quando este pousou a vela na mesa de
cabeceira. O homenzinho se virou para seu lado, continuando coberto até o
queixo.
— Pois então, quem prefere, a sra. de Restaud ou a sra. de Nucingen?
— Prefiro a sra. Delphine — respondeu o estudante — porque ela gosta mais
do senhor.
Diante dessas palavras ditas calorosamente, o bom homem tirou o braço da
cama e apertou a mão de Eugène.
— Obrigado, obrigado — respondeu o velho comovido. — Então o que lhe
disse de mim?
O estudante repetiu as palavras da baronesa, embelezando-as, e o velho o
ouviu como se ouvisse a palavra de Deus.
— Caro menino! É, é, ela gosta muito de mim. Mas não acredite no que lhe
disse de Anastasie. As duas irmãs têm ciúmes uma da outra, sabe?, é mais uma
prova da ternura delas. A sra. de Restaud também gosta muito de mim. Eu sei.
Um pai é com seus filhos como Deus é conosco, vai até o fundo dos corações, e
julga as intenções. As duas são igualmente amorosas. Oh! Se eu tivesse tido
bons genros, seria muito feliz. Com certeza não há felicidade completa neste
mundo. Se tivesse vivido com elas! Mas só de ouvir suas vozes, saber que estão
ali, vê-las andar, sair, como quando moravam comigo, isso faria meu coração dar
cambalhotas. Estavam bem vestidas?
— Estavam — disse Eugène. — Mas, sr. Goriot, como, tendo filhas tão
ricamente instaladas como estão as suas, pode ficar num pardieiro como este?
— De que me adiantaria estar em lugar melhor, palavra de honra? — disse
com ar aparentemente despreocupado. — Não posso lhe explicar essas coisas;
não sei dizer corretamente duas palavras seguidas. Tudo está aqui — acrescentou
batendo no coração. — Minha vida, a minha, está em minhas duas filhas. Se elas
se divertem, se estão felizes, elegantemente vestidas, se caminham em cima de
tapetes, o que importa com que tecido estou vestido, e como é o lugar onde me
deito? Não sinto frio se elas estão no calor, nunca me entedio se elas riem. Só
tenho as tristezas que são as delas. Quando for pai, quando disser para si mesmo,
ouvindo seus filhos balbuciarem: “Saíram de mim!”, quando sentir essas
criaturinhas ligadas a cada gota de seu sangue, do qual elas foram a fina flor,
pois é isso!, aí se sentirá ligado à pele delas, e acreditará estar sendo movido
pelos passos delas! A voz das duas me responde em qualquer canto. Um olhar
delas, quando é triste, me paralisa o sangue. Um dia saberá que somos muito
mais felizes com a felicidade dos filhos que com a nossa própria. Não consigo
lhe explicar isso: são movimentos interiores que espalham o contentamento por
todo lado. Enfim, eu vivo três vezes. Quer que lhe diga uma coisa curiosa? Pois
bem! Quando fui pai, compreendi Deus. Ele está inteiro em toda parte, já que a
criação saiu dele. Sou assim com minhas filhas, senhor. Só que gosto mais de
minhas filhas do que Deus gosta do mundo, porque o mundo não é tão belo
como Deus, e minhas filhas são mais belas que eu. Estão tão ligadas à minha
alma que eu tinha a intuição de que o senhor as veria esta noite. Meu Deus! Um
homem que tornasse minha pequena Delphine tão feliz como uma mulher é
quando é bem-amada! Pois eu lhe engraxaria as botas, faria as compras para ele.
Soube por sua camareira que aquele pequeno sr. de Marsay é um desalmado.
Tive vontade de lhe torcer o pescoço. Não amar uma joia de mulher, uma voz de
rouxinol, e bem-feita como um manequim! O que foi que ela enxergou para se
casar com aquele alsaciano casca-grossa? As duas precisavam de jovens bonitos
bem amáveis. Em suma, seguiram o próprio capricho.
O pai Goriot era sublime. Nunca Eugène pudera vê-lo iluminado com os fogos
de sua paixão paterna. Uma coisa digna de observação é o poder de infusão que
os sentimentos possuem. Por mais grosseira que seja uma criatura, assim que
exprime uma afeição forte e verdadeira, exala um fluido especial que modifica a
fisionomia, anima o gesto, colore a voz. Volta e meia o ser mais estúpido
alcança, sob o esforço da paixão, a mais alta eloquência na ideia, se não for na
linguagem, e parece mover-se numa esfera luminosa. Naquele momento, havia
na voz e no gesto do bom homem a força comunicativa que assinala o grande
ator. Mas nossos belos sentimentos não são as poesias da vontade?
— Pois é, talvez não fique aborrecido se souber — disse-lhe Eugène — que ela
provavelmente vai romper com esse De Marsay. Esse emperiquitado a deixou
para se ligar à princesa Galathionne. Quanto a mim, esta noite caí apaixonado
pela sra. Delphine.
— Ora, ora! — disse o pai Goriot.
— Sim. Não a desagradei. Conversamos sobre o amor durante uma hora, e
devo ir vê-la depois de amanhã, sábado.
— Ah!, como o apreciaria, meu caro, se agradasse a ela. O senhor é bom, não a
atormentaria. Se a traísse, eu lhe cortaria o pescoço, primeiro. Uma mulher não
tem dois amores, sabe? Meu Deus! Mas estou dizendo bobagens, sr. Eugène. Faz
frio aqui para o senhor. Meu Deus! Então a ouviu, o que ela lhe disse para mim?
“Nada”, pensou Eugène consigo mesmo.
— Disse-me — respondeu em voz alta — que lhe mandava um beijo de filha.
— Adeus, meu vizinho, durma bem, tenha lindos sonhos; os meus são todos
feitos com essas palavras. Que Deus o proteja em todos os seus desejos! Foi para
mim esta noite como um bom anjo, trazendo-me o ar de minha filha.
“Pobre homem”, pensou Eugène ao se deitar, “tem como tocar corações de
mármore. A filha pensou tanto nele como no sultão da Turquia.”
Desde essa conversa, o pai Goriot viu no vizinho um confidente inesperado,
um amigo. Estabelecera-se entre eles as únicas relações pelas quais aquele
velhote podia se ligar a algum outro homem. As paixões nunca fazem cálculos
falsos. O pai Goriot se via um pouco mais perto da filha Delphine, via-se mais
bem recebido por ela, se Eugène se tornasse estimado pela baronesa. Aliás,
confiara-lhe uma de suas dores. A sra. de Nucingen, a quem mil vezes por dia
desejava a felicidade, não conhecera as doçuras do amor. Sem dúvida, Eugène
era, para recorrer à sua expressão, um dos jovens mais gentis que ele jamais vira,
e parecia pressentir que lhe daria todos os prazeres de que ela fora privada. O
bom homem tomou-se, portanto, de uma amizade por seu vizinho que foi
crescendo, e sem a qual teria provavelmente sido impossível conhecer o
desfecho desta história.
Na manhã seguinte, na hora do almoço, a afetação com que o pai Goriot olhava
para Eugène, ao lado de quem se colocou, as poucas palavras que lhe disse e a
mudança de sua fisionomia, em geral parecida com uma máscara de gesso,
surpreenderam os hóspedes. Vautrin, que revia o estudante pela primeira vez
desde sua conversa, parecia querer ler em sua alma. Lembrando-se do projeto
daquele homem, Eugène, que à noite, antes de dormir, calculara o vasto campo
que se abria a seus olhares, pensou necessariamente no dote da srta. Taillefer e
não pôde se impedir de olhar para Victorine como o mais virtuoso rapaz olha
para uma rica herdeira. Por acaso, seus olhos se encontraram. A pobre moça não
deixou de achar Eugène encantador em seu novo traje. O olhar que trocaram foi
bastante significativo para que Rastignac não duvidasse ser para ela o objeto
desses desejos confusos que atingem todas as moças e que elas ligam ao
primeiro ser sedutor. Uma voz lhe gritava: “Oitocentos mil francos!”. Mas de
repente tornou a se jogar em suas lembranças da véspera, e pensou que sua
paixão simulada pela sra. de Nucingen era o antídoto de seus maus pensamentos
involuntários.
— Ontem apresentavam no Italiens O barbeiro de Sevilha , de Rossini. Eu
nunca tinha ouvido música tão deliciosa — disse. — Meu Deus! que felicidade
ter um camarote no Italiens.
O pai Goriot agarrou no voo essas palavras, como um cachorro agarra um
gesto de seu dono.
— Vocês têm a vida que pediram a Deus — disse a sra. Vauquer —, vocês,
homens, fazem tudo o que gostam.
— Como voltou? — perguntou Vautrin.
— A pé — respondeu Eugène.
— Eu — prosseguiu o tentador —, eu não gostaria de semiprazeres; gostaria
de ir lá na minha carruagem, no meu camarote, e voltar bem confortavelmente.
Tudo ou nada!, essa é a minha divisa.
— E que é boa — retrucou a sra. Vauquer.
— Talvez o senhor vá ver a sra. de Nucingen — Eugène disse baixinho a
Goriot. — Com toda certeza ela o receberá de braços abertos; quererá saber mil
pequenos detalhes a meu respeito. Soube que daria tudo no mundo para ser
recebida por minha prima, a sra. viscondessa de Beauséant. Não esqueça de lhe
dizer que a amo demais para não pensar em lhe conseguir essa satisfação.
Rastignac foi rapidamente para a Escola de Direito, queria ficar o mínimo
possível naquela odiosa casa. Perambulou durante quase o dia todo, às voltas
com aquela febre que conheceram os jovens afetados por esperanças muito
intensas. Os argumentos de Vautrin o faziam refletir na vida social, quando
encontrou seu amigo Bianchon no Jardin du Luxembourg.
— De onde tirou esse ar grave? — perguntou o estudante de medicina
pegando-lhe pelo braço para passearem defronte do palácio.
— Estou atormentado por más ideias.
— De que gênero? As ideias se curam.
— Como?
— Sucumbindo a elas.
— Você ri sem saber do que se trata. Leu Rousseau?
— Li.
— Lembra-se do trecho em que ele pergunta a seu leitor o que faria caso
pudesse enriquecer matando na China, só por sua vontade, um velho mandarim,
sem sair de Paris?
— Lembro.
— E então?
— Ora! Estou no meu trigésimo terceiro mandarim.
— Não brinque. Bem, se lhe fosse provado que a coisa é possível e que lhe
bastasse um aceno de cabeça, você o faria?
— Ele é muito velho, o mandarim? Mas, qual! Moço ou velho, paralítico ou
em forma, pensando bem... Diachos! Pois é, não.
— Você é um bom rapaz, Bianchon. Mas se amasse uma mulher a ponto de
por ela virar a alma pelo avesso, e se precisasse de dinheiro, de muito dinheiro
para sua roupa, para seu carro, para todas as suas fantasias, e então?
— Mas você me tira a razão e quer que eu raciocine.
— Pois é, Bianchon, estou louco, cure-me. Tenho duas irmãs que são anjos de
beleza, de candura, e quero que sejam felizes. Onde pegar duzentos mil francos
para o dote delas daqui a cinco anos? Há circunstâncias na vida, sabe, em que é
preciso jogar apostando alto e não gastar sua felicidade para ganhar uns vinténs.
— Mas você coloca a questão que se apresenta para qualquer pessoa no
ingresso da vida, e quer cortar o nó górdio com a espada. Para agir assim, meu
caro, é preciso ser Alexandre, do contrário se vai para os trabalhos forçados. Eu,
de meu lado, estou feliz com a vidinha que levarei na província, onde muito
simplesmente sucederei a meu pai. As afeições do homem se satisfazem no
menor círculo tão plenamente como numa imensa circunferência. Napoleão não
jantava duas vezes, e não podia ter mais amantes que as que tem um estudante de
medicina quando é residente no Capucins. Nossa felicidade, meu caro, sempre
caberá entre a planta dos pés e nosso occipital; e que custe um milhão por ano ou
cem luíses, sua percepção intrínseca é a mesma dentro de nós. Concluo pela vida
do chinês.
— Obrigado, você me fez bem, Bianchon! Sempre seremos amigos.
— Mas me diga — prosseguiu o estudante de medicina, saindo do curso de
Cuvier 40 no Jardin des Plantes —, acabo de avistar a Michonneau e o Poiret
conversando num banco com um senhor que vi durante os tumultos do ano
passado nos arredores da Câmara dos Deputados, e que me deu a impressão de
ser um homem da polícia disfarçado de honrado burguês vivendo de rendas.
Estudemos aquele casal: e lhe direi por quê. Adeus, vou responder à minha
chamada das quatro horas.
Quando Eugène voltou para a pensão, encontrou o pai Goriot esperando por
ele.
— Tome — disse o bom homem —, aqui está uma carta dela. Bela letra, hein!
Eugène quebrou o lacre da carta e leu.

Senhor, meu pai me disse que gostava de música italiana. Ficaria feliz se
quisesse me dar o prazer de aceitar um lugar em meu camarote. Teremos
sábado a Fodor e Pellegrini, portanto tenho certeza de que não me recusará.
O sr. de Nucingen une-se a mim para lhe pedir que venha jantar conosco sem
cerimônia. Se aceitar, o fará muito feliz por não ter de cumprir seu dever
conjugal me acompanhando. Não me responda, venha, e receba meus
cumprimentos.
D. DE N.
— Mostre-me — disse o homem a Eugène quando ele leu a carta. — Irá, não
é? — acrescentou depois de ter cheirado o papel. — Que cheiro bom! Os dedos
dela tocaram isso!
“Uma mulher não se joga assim em cima de um homem”, pensava o estudante.
“Quer se servir de mim para trazer De Marsay de volta. Só o despeito provoca
essas coisas.”
— Bem — disse o pai Goriot —, então, em que está pensando?
Eugène não conhecia o delírio de vaidade que assaltava certas mulheres nesses
momentos, e não sabia que, para abrir uma porta no Faubourg Saint-Germain, a
mulher de um banqueiro era capaz de todos os sacrifícios. Nessa época, a moda
começava a pôr acima de todas as mulheres aquelas que eram admitidas na
sociedade do Faubourg Saint-Germain, chamadas as damas do Petit Château, 41
entre as quais a sra. de Beauséant, sua amiga, a duquesa de Langeais, e a
duquesa de Maufrigneuse ocupavam o primeiro lugar. Só Rastignac ignorava o
furor que acometera as mulheres da Chaussée d’Antin para entrar no círculo
superior onde brilhavam as constelações de seu sexo. Mas sua desconfiança bem
que o serviu, pois lhe deu frieza, e o triste poder de impor condições em vez de
recebê-las.
— Sim, irei — respondeu.
Assim, a curiosidade o levava à casa da sra. de Nucingen, ao passo que, se essa
mulher o tivesse desprezado, é provável que tivesse sido levado pela paixão. No
entanto, não esperou sem uma espécie de impaciência o dia seguinte e a hora de
partir. Para um rapaz, existe em sua primeira aventura tantos encantos talvez
quanto os que se encontram num primeiro amor. A certeza de triunfar gera mil
felicidades que os homens não confessam, e que fazem todo o charme de certas
mulheres. O desejo nasce igualmente da dificuldade como da facilidade dos
triunfos. Todas as paixões dos homens são muito certamente excitadas ou
mantidas por uma ou outra dessas duas causas, que dividem o império amoroso.
É possível que essa divisão seja uma consequência da grande questão dos
temperamentos, que domina, diga o que se disser, a sociedade. Se os
melancólicos precisam do tônico das coqueterias, talvez as pessoas nervosas ou
sanguíneas fujam, se a resistência durar demais. Em outras palavras, a elegia é
tão essencialmente linfática como o ditirambo é biliar. 42 Fazendo sua toalete,
Eugène saboreou todas essas pequenas alegrias de que não ousam falar os
jovens, temerosos de que zombem deles, mas que titilam o amor-próprio.
Arrumava o cabelo pensando que o olhar de uma mulher bonita deslizaria sob
seus cachos pretos. Permitiu-se macaquices infantis assim como faria uma moça
se vestindo para o baile. Olhou com condescendência para sua cintura fina,
alisando a casaca. “Com certeza”, pensou, “é possível encontrar outros piores!”
Depois, desceu na hora em que todos os frequentadores da pensão estavam à
mesa e recebeu alegremente os hurras e as tolices que sua roupa elegante
suscitou. Um traço dos costumes peculiares das pensões burguesas é o assombro
que causa um traje bem cuidado. Ninguém ali veste roupa nova sem que alguém
faça um comentário.
— Poct, poct, poct, poct — fez Bianchon estalando a língua no palato, como
para estimular um cavalo.
— Jeito de duque e de par de França! — disse a sra. Vauquer.
— O cavalheiro sai em conquista? — observou a srta. Michonneau.
— Cocoricó! — gritou o pintor.
— Meus cumprimentos à senhora sua esposa — disse o empregado do museu.
— Tem uma esposa? — perguntou Poiret.
— Uma esposa com compartimentos, que boia na água, boa pele garantida,
com preços de vinte e quatro a quarenta, estampados xadrez na última moda,
podendo ser lavada, belo aspecto, metade linha, metade algodão, metade lã,
curando dor de dentes e outras doenças aprovadas pela Academia Real de
Medicina! Excelente, aliás, para as crianças! Melhor ainda contra as dores de
cabeça, as repleções e outras doenças do esôfago, dos olhos e dos ouvidos —
exclamou Vautrin com a loquacidade cômica e a pronúncia de um operador. 43
— Mas quanto é essa maravilha, os senhores me perguntarão? Dois vinténs!
Não. Absolutamente nada. É um resto das provisões compradas do Grão-
Mongol, e que todos os soberanos da Europa, inclusive o grrrrrrão-duque de
Bade, quiseram ver! Entrem, sempre em frente, e passem ao pequeno escritório.
Andem, música! Brum, lá-lá, trimm! lá-lá, bum-bum! O senhor da clarineta está
desafinando — ele prosseguiu com voz rouca —, vou bater nos seus dedos.
— Meu Deus! Como esse homem é agradável — disse a sra. Vauquer à sra.
Couture —, jamais me aborreceria com ele.
Em meio aos risos e às brincadeiras, cujo sinal foi esse discurso comicamente
proferido, Eugène conseguiu captar o olhar furtivo da srta. Taillefer, que se
inclinou para a sra. Couture, dizendo-lhe umas palavras ao ouvido.
— O cabriolé chegou — disse Sylvie.
— Mas onde ele vai jantar? — perguntou Bianchon.
— Na casa da sra. baronesa de Nucingen.
— A filha do sr. Goriot — respondeu o estudante.
Diante desse nome, os olhares se viraram para o antigo macarroneiro, que
contemplava Eugène com uma espécie de inveja.
Rastignac chegou à Rue Saint-Lazare, a uma dessas casas leves, de colunas
finas, pórticos mesquinhos, que constituem o bonito em Paris, uma verdadeira
casa de banqueiro, cheia de requintes caros, estuques, patamares de escada em
mosaico de mármore. Encontrou a sra. de Nucingen num salãozinho com
pinturas italianas cuja decoração parecia a dos cafés. A baronesa estava triste. Os
esforços que fez para esconder sua tristeza interessaram mais intensamente
Eugène na medida em que não tinham nada de fingido. Pensava em tornar uma
mulher alegre por sua presença, e a encontrava no desespero. Esse
desapontamento espicaçou seu amor-próprio.
— Tenho bem poucos direitos à sua confiança, senhora — disse depois de tê-la
alfinetado sobre sua preocupação —, mas se a incomodo conto com sua boa-fé, e
me diga francamente.
— Fique — ela disse —, eu me sentiria sozinha se fosse embora. Nucingen
janta fora, e não gostaria de me ver só, preciso de distração.
— Mas o que tem?
— O senhor é a última pessoa a quem eu diria — exclamou.
— Quero saber, senão devo ter algo a ver com esse segredo.
— Talvez! Mas não — retrucou —, são brigas conjugais que devem ser
sepultadas no fundo do coração. Eu não lhe dizia anteontem? Não sou feliz. As
correntes de ouro são as mais pesadas.
Quando uma mulher diz a um rapaz que é infeliz, se esse rapaz é inteligente,
bem-posto, se tem mil e quinhentos francos ociosos no bolso, deve pensar o que
pensava Eugène, e torna-se presunçoso.
— O que pode desejar? — ele respondeu. — É bela, amada, rica.
— Não falemos de mim — ela disse fazendo um sinistro gesto de cabeça. —
Jantaremos juntos, a sós, iremos ouvir a música mais deliciosa. Estou a seu
gosto? — continuou, levantando-se e mostrando o vestido de caxemira branca
com motivos persas, da mais alta elegância.
— Gostaria que fosse inteiramente minha — disse Eugène. — Está adorável.
— Teria uma triste propriedade — ela disse sorrindo com amargura. — Nada
aqui lhe anuncia a desgraça, e no entanto, apesar dessas aparências, estou no
desespero. Minhas tristezas me tiram o sono, vou ficar feia.
— Oh! Isso é impossível — disse o estudante. — Mas estou curioso para
conhecer esses sofrimentos que um amor dedicado não apagaria.
— Ah! Se eu os contasse, o senhor me fugiria — ela disse. — Ainda não me
ama senão por uma galanteria que é de praxe nos homens; mas, se me amasse,
cairia num desespero terrível. Está vendo que devo me calar. Por favor —
continuou —, falemos de outra coisa. Venha ver meus aposentos.
— Não, fiquemos aqui — respondeu Eugène, sentando-se numa conversadeira
à frente da lareira, ao lado da sra. de Nucingen, cuja mão ele pegou com
segurança.
Ela o deixou pegá-la e até a apoiou sobre a do rapaz com um desses gestos de
força concentrada que traem fortes emoções.
— Escute — disse-lhe Rastignac —, se sente tristezas, deve me contá-las.
Quero lhe provar que a amo por si mesma. Ou falará e me contará seus pesares
para que eu possa dissipá-los, ainda que seja preciso matar seis homens, ou sairei
para nunca mais voltar.
— Pois bem — ela exclamou, tomada por um pensamento de desespero que a
levou a bater na própria testa —, vou pô-lo à prova neste instante.
“Sim”, disse consigo mesma, “só resta esse meio.” Tocou a campainha.
— O carro do senhor está atrelado? — perguntou a seu criado de quarto.
— Está, senhora.
— Vou pegá-lo. Dê-lhe o meu e meus cavalos. Só sirva o jantar às sete horas.
Ande, venha — disse a Eugène, que pensou estar sonhando ao se ver dentro do
cupê do sr. de Nucingen, ao lado daquela mulher. — Para o Palais-Royal — ela
disse ao cocheiro —, perto do Théâtre-Français.
No caminho, pareceu agitada e negou-se a responder às mil perguntas de
Eugène, que não sabia o que pensar daquela resistência muda, compacta, obtusa.
“Num instante ela me escapa”, pensou.
Quando o carro parou, a baronesa olhou para o estudante de um jeito que
impôs silêncio a suas alucinantes palavras; pois ele se arrebatara.
— Gosta mesmo de mim? — perguntou.
— Gosto — ele respondeu escondendo a inquietação que o invadia.
— Não pensará nada de mal a meu respeito, apesar do que eu possa lhe pedir?
— Não.
— Está disposto a me obedecer?
— Cegamente.
— Foi algumas vezes jogar? — perguntou com voz trêmula.
— Nunca.
— Ah! Antes isso. Conhecerá a felicidade. Aqui está minha bolsa — ela disse.
— Mas pegue-a! Há cem francos, é tudo o que possui esta mulher tão feliz. Suba
a uma casa de jogo, não sei onde ficam, mas sei que há no Palais-Royal.
Arrisque os cem francos num jogo que se chama roleta, e perca tudo, ou traga-
me seis mil francos. Na sua volta lhe contarei minhas tristezas.
— Quero que o diabo me carregue se estou entendendo alguma coisa do que
vou fazer, mas vou obedecê-la — ele disse com uma alegria provocada por esse
pensamento: “Ela se compromete comigo, não me recusará nada”.
Eugène pega a linda bolsa, corre ao número NOVE , depois que um vendedor de
roupas lhe indicou a casa de jogo mais próxima. Sobe, deixa que peguem o seu
chapéu; mas entra e pergunta onde fica a roleta. Para espanto dos frequentadores,
o moço da sala o leva diante de uma mesa comprida. Eugène, seguido por todos
os espectadores, pergunta sem pejo onde deve pôr a aposta.
— Se puser um luís num único desses trinta e seis números, e ele sair, terá
trinta e seis luíses — diz-lhe um velho respeitável de cabelos brancos.
Eugène joga os cem francos no número de sua idade, vinte e um. Ouve-se um
grito de espanto sem que ele tenha tempo de se identificar. Ganhou sem
perceber.
— Mas retire seu dinheiro — diz-lhe o velho cavalheiro —, não se ganha duas
vezes desse jeito.
Eugène pega um rodo que o velho lhe estica, puxa para si os três mil e
seiscentos francos e, sempre sem entender nada do jogo, coloca-os sobre o
vermelho. Os jogadores o olham com inveja, vendo que continua a jogar. A roda
gira, ele ganha de novo, e a banca lhe joga novamente três mil e seiscentos
francos.
— Tem sete mil e duzentos francos seus — diz-lhe ao ouvido o velho. —
Acredite em mim, vá embora, deu vermelho oito vezes. Se for caridoso,
reconhecerá esse bom conselho aliviando a miséria de um antigo prefeito de
Napoleão que enfrenta as piores dificuldades.
Rastignac, atordoado, deixa que o homem de cabelos brancos lhe tome dez
luíses e desce com os sete mil francos, ainda sem entender nada do jogo, mas
estupefato com sua felicidade.
— Ah, essa! Para onde me levará agora? — disse mostrando os sete mil
francos à sra. de Nucingen quando a portinhola se fechou.
Delphine o apertou com um abraço alucinante e o beijou vivamente, mas sem
paixão.
— Salvou-me!
Lágrimas de alegria correram abundantes em suas faces.
— Vou lhe dizer tudo, meu amigo. Porque será meu amigo, não é? Está me
vendo rica, opulenta, nada me falta ou aparento não precisar de nada! Pois bem,
saiba que o sr. de Nucingen não me deixa dispor de um tostão: paga tudo na
casa, meus carros, meus camarotes; atribui-me para minhas toaletes uma quantia
insuficiente, reduz-me a uma miséria secreta por cálculo. Sou orgulhosa demais
para lhe implorar. Não seria eu a última das criaturas se comprasse seu dinheiro
pelo preço que ele quer me vendê-lo? Como eu, rica, com setecentos mil francos,
deixei-me espoliar? Por orgulho, por indignação. Somos tão jovens, tão
ingênuas, quando começamos a vida conjugal! A palavra com a qual eu
precisava pedir dinheiro a meu marido me dilacerava a boca; eu jamais ousava,
comia o dinheiro de minhas economias e aquele que meu pobre pai me dava;
depois, me endividei. O casamento é para mim a mais horrível decepção, não
posso lhe falar a respeito: que lhe baste saber que me jogaria pela janela se
tivesse de viver com Nucingen de outra maneira senão tendo cada um aposentos
separados. Quando foi preciso lhe declarar minhas dívidas de jovem mulher, as
joias, as fantasias (meu pobre pai tinha nos acostumado a não nos recusar nada),
sofri o martírio; mas, enfim, encontrei a coragem de lhe dizer. Não tinha uma
fortuna minha? Nucingen se enfureceu, disse-me que eu o arruinaria, horrores!
Eu gostaria de estar a trinta metros debaixo da terra. Como ele havia pegado meu
dote, pagou; mas estipulando dali em diante, para minhas despesas pessoais, uma
pensão à qual me resignei, a fim de ter paz. Desde então, quis responder ao
amor-próprio de alguém que o senhor conhece — ela disse. — Se fui enganada
por ele, serei malvista caso não faça justiça à nobreza de seu caráter. Mas, afinal,
ele me deixou, indignamente! Nunca se deve abandonar uma mulher a quem se
jogou, num dia de desespero, um monte de ouro! Sempre se deve amá-la! O
senhor, bela alma de vinte e um anos, jovem e puro, me perguntará como uma
mulher pode aceitar ouro de um homem? Meu Deus! Não é natural dividir tudo
com o ser a quem devemos nossa felicidade? Quando nos demos totalmente,
quem poderia se preocupar com uma parcela desse tudo? O dinheiro só se torna
alguma coisa quando o sentimento não existe mais. Não estamos ligados para
toda a vida? Quem de nós prevê uma separação acreditando ser bem-amada?
Vocês nos juram um amor eterno, como ter, então, interesses distintos? Não tem
ideia do que sofri hoje, quando Nucingen se recusou, terminantemente, a me dar
seis mil francos, ele que os dá todo mês à amante, uma corista do Opéra! Eu
queria me matar. As ideias mais loucas me passaram pela cabeça. Houve
momentos em que invejava a sorte de uma criada, de minha camareira. Ir
encontrar meu pai, loucura! Anastasie e eu o degolamos: meu pobre pai teria se
vendido se pudesse valer seis mil francos. Eu teria ido desesperá-lo em vão. O
senhor me salvou da vergonha e da morte, eu estava ébria de dor. Ah! senhor, eu
lhe devia essa explicação: fui bem insensatamente louca consigo. Quando me
deixou, e que o perdi de vista, queria fugir a pé… para onde? não sei. Eis a vida
de metade das mulheres de Paris: um luxo exterior, preocupações cruéis na alma.
Conheço pobres criaturas ainda mais infelizes que eu. Porém, há mulheres
obrigadas a pedir faturas falsas a seus fornecedores. Outras são forçadas a roubar
seus maridos: uns acreditam que caxemiras de cem luíses se vendem por
quinhentos francos, outros, que uma caxemira de quinhentos francos vale cem
luíses. Encontram-se pobres mulheres que fazem seus filhos jejuarem e se
metem em tramoias para ter um vestido. Eu sou pura quanto a essas odiosas
enganações. Eis minha última angústia. Se certas mulheres se vendem a seus
maridos para governá-los, eu ao menos sou livre! Poderia fazer Nucingen me
cobrir de ouro, e prefiro chorar com a cabeça encostada no peito de um homem
que eu possa estimar. Ah! Esta noite o sr. de Marsay não terá o direito de me
olhar como uma mulher a quem pagou. — Pôs o rosto entre as mãos, para não
mostrar as lágrimas a Eugène, que lhe descobriu o rosto para contemplá-la, ela
estava sublime assim. — Misturar o dinheiro com os sentimentos, não é
horrível? O senhor não poderá me amar — disse.
Essa mistura de bons sentimentos, que tornam as mulheres tão grandiosas, e
dos erros que a constituição atual da sociedade as força a cometer transtornava
Eugène, que dizia palavras meigas e de consolo ao admirar aquela linda mulher,
tão ingenuamente imprudente em seu grito de dor.
— O senhor não se servirá disso contra mim — ela disse —, prometa-me.
— Ah, senhora! Sou incapaz disso — ele disse.
Pegou-lhe a mão e a colocou sobre o peito, com um gesto cheio de gratidão e
gentileza.
— Graças a si eis-me novamente livre e alegre. Vivia oprimida por uma mão
de ferro. Agora quero viver simplesmente, não gastar nada. Vai me achar bem da
maneira como eu serei, não vai, meu amigo? Guarde isto — disse, pegando
apenas seis notas. — Tenho consciência de que lhe devo mil escudos, pois
considero que é metade para cada um.
Eugène se defendeu como uma virgem. Mas tendo a baronesa lhe dito: “Olho-o
como meu inimigo se não for meu cúmplice”, pegou o dinheiro.
— Será um capital para investir em caso de desgraça — ele lhe disse.
— Eis a expressão que eu temia — ela exclamou empalidecendo. — Se quiser
que eu seja alguma coisa para si, jure-me nunca tornar a jogar. Meu Deus! Eu,
corrompê-lo! Morreria de dor — disse.
Tinham chegado. O contraste entre aquela miséria e essa opulência atordoava o
estudante, em cujos ouvidos as sinistras palavras de Vautrin foram ecoar.
— Ponha-se aí — disse a baronesa entrando em seu quarto e mostrando uma
conversadeira perto da lareira —, vou escrever uma carta bem difícil!
Aconselhe-me.
— Não escreva — disse-lhe Eugène —, enrole as notas, ponha o endereço e
envie-as pela sua criada de quarto.
— Mas o senhor é um amor de homem — ela disse. — Ah! Eis o que é ter sido
bem-educado! Isso é Beauséant em estado puro — disse sorrindo.
“Ela é um encanto”, pensou Eugène, que se afeiçoava cada vez mais. Olhou
para aquele quarto onde transpirava a voluptuosa elegância de uma rica cortesã.
— Agrada-lhe? — ela disse tocando a campainha para a camareira. —
Thérèse, leve isso, pessoalmente, ao sr. de Marsay, e entregue a ele mesmo. Se
não o encontrar, traga-me a carta de volta.
Thérèse não saiu sem dar uma olhada maliciosa para Eugène. O jantar estava
servido. Rastignac deu o braço à sra. de Nucingen, que o levou para uma
deliciosa sala de jantar, onde encontrou o luxo de mesa que admirara na casa da
prima.
— Nos dias de Italiens — ela disse —, virá jantar comigo e me acompanhará.
— Eu me acostumaria a essa doce vida se ela tivesse de durar; mas sou um
pobre estudante que tem sua fortuna para fazer.
— Ela se fará — ela disse rindo. — Está vendo, tudo se arranja: eu não
esperava ser tão feliz.
Está na natureza das mulheres provar o impossível pelo possível e destruir os
fatos por pressentimentos. Quando a sra. de Nucingen e Rastignac entraram em
seu camarote no Bouffons, ela exibiu um ar de contentamento que a tornava tão
bela, que todos se permitiram essas caluniazinhas contra as quais as mulheres
não têm defesa, e que costumam fazer com que se acredite em desordens
inventadas à vontade. Quando se conhece Paris, não se acredita em nada do que
ali se diz, e não se diz nada do que ali se faz. Eugène pegou a mão da baronesa e
os dois se falaram por pressões mais ou menos intensas, comunicando-se as
sensações que lhes dava a música. Para eles, aquela noite foi inebriante. Saíram
juntos, e a sra. de Nucingen quis acompanhar Eugène até a Pont-Neuf, negando-
lhe, durante todo o caminho, um dos beijos que lhe prodigalizara tão
calorosamente no Palais-Royal. Eugène lhe recriminou essa inconsequência.
— À tarde era o reconhecimento por uma dedicação inesperada — ela
respondeu —, agora seria uma promessa.
— E não quer me fazer nenhuma, ingrata.
Ele se zangou. Fazendo um desses gestos de impaciência que maravilham um
amante, ela lhe deu a mão para beijar, que ele pegou com uma má vontade que a
encantou.
— Até segunda-feira, no baile — ela disse.
E indo embora a pé, sob um belo luar, Eugène caiu em sérias reflexões. Estava
ao mesmo tempo feliz e descontente: feliz com uma aventura cujo desfecho
provável lhe dava uma das mais lindas e mais elegantes mulheres de Paris,
objeto de seus desejos; descontente ao ver derrubados seus projetos de fortuna; e
foi então que sentiu a realidade dos pensamentos indecisos aos quais se entregara
na antevéspera. O insucesso sempre nos revela a força de nossas pretensões.
Quanto mais Eugène desfrutava da vida parisiense, menos queria continuar a ser
obscuro e pobre. Amarrotava sua nota de mil francos dentro do bolso, fazendo
mil raciocínios capciosos para se apropriar dela. Finalmente chegou à Rue
Neuve-Sainte-Geneviève, e quando estava no alto da escada viu luz. O pai
Goriot deixara sua porta aberta e a vela acesa, a fim de que o estudante não
esquecesse de lhe contar sua filha , segundo sua expressão. Eugène não lhe
escondeu nada.
— Mas — exclamou o pai Goriot num violento desespero de ciúme — elas
acreditam que estou arruinado: ainda tenho mil e trezentas libras de renda! Meu
Deus! A pobrezinha, por que não vinha aqui! Eu teria vendido meus títulos,
teríamos tirado do capital, e o resto eu teria transformado em renda vitalícia. Por
que não veio me contar que estava em apuros, meu bom vizinho? Como teve a
coragem de ir arriscar no jogo os pobres cem franquinhos dela? É de partir a
alma. É assim que são os genros! Oh! Se eu os pegasse, apertaria o pescoço
deles. Meu Deus! Chorar, ela chorou?
— A cabeça sobre meu colete — disse Eugène.
— Oh! Dê-me seu colete — disse o pai Goriot. — Como! Aqui houve lágrimas
de minha filha, de minha querida Delphine, que nunca chorava quando era
pequena! Oh! Comprarei outro para o senhor, não o use mais, deixe-o comigo.
Ela deve, segundo seu contrato, usufruir de seus bens. Ah! Vou encontrar
Derville, um advogado, já amanhã. Vou exigir o investimento de sua fortuna.
Conheço as leis, sou uma velha raposa, vou recuperar meus dentes.
— Tome, pai, aqui estão mil francos que ela quis me dar de nosso ganho.
Guarde-os, dentro do colete.
Goriot olhou para Eugène, estendeu-lhe a mão para pegar a dele, na qual
deixou cair uma lágrima.
— O senhor terá sucesso na vida — disse-lhe o velho. — Deus é justo, sabe?
Eu cá me conheço em probidade, e posso lhe garantir que há bem poucos
homens que se parecem consigo. Portanto, quer ser também meu querido filho?
Vá, durma. Pode dormir, ainda não é pai. Ela chorou, fico sabendo disso, eu, que
estava ali tranquilamente comendo como um imbecil, enquanto ela sofria; eu, eu
que venderia o Pai, o Filho e o Espírito Santo para lhes evitar uma lágrima, às
duas!
“Por minha fé!”, pensou Eugène ao se deitar, “creio que serei homem honesto
toda a minha vida. Há prazer em seguir as inspirações de sua consciência.”
Talvez apenas os que acreditam em Deus é que fazem o bem em segredo, e
Eugène acreditava em Deus. No dia seguinte, na hora do baile, Rastignac foi à
casa da sra. de Beauséant, que o levou para apresentá-lo à duquesa de
Carigliano. Recebeu a mais graciosa acolhida da esposa do marechal, em cuja
casa encontrou a sra. de Nucingen. Delphine se enfeitara com a intenção de
agradar a todos para melhor agradar a Eugène, de quem esperava
impacientemente um olhar, pensando esconder sua impaciência. Para quem sabe
adivinhar as emoções de uma mulher, esse momento é repleto de delícias. Quem
não se deliciou várias vezes em fazer esperarem sua opinião, em disfarçar com
faceirice seu prazer, em buscar confissões na inquietação causada, em desfrutar
dos temores que serão dissipados por um sorriso? Durante aquela festa, o
estudante avaliou de repente o alcance de sua situação, e compreendeu que tinha
uma bela posição na sociedade sendo primo declarado da sra. de Beauséant. A
conquista da sra. baronesa de Nucingen, que já lhe era atribuída, o punha tão
bem em relevo, que todos os jovens lhe lançavam olhares de inveja; flagrando
alguns, provou os primeiros prazeres da fatuidade. Passando de um salão a outro,
cruzando os grupos, ouviu elogiarem sua felicidade. Todas as mulheres lhe
previam sucessos. Delphine, temendo perdê-lo, prometeu não lhe recusar à noite
o beijo que tanto se impedira lhe dar na antevéspera. Nesse baile, Rastignac
recebeu vários convites. Foi apresentado por sua prima a algumas mulheres que,
todas, tinham pretensões à elegância, e cujas casas passavam por ser agradáveis;
viu-se lançado na maior e mais bela sociedade de Paris. Portanto, essa noite teve
para ele os encantos de uma brilhante estreia, e ele iria recordá-la até em seus
velhos dias, como uma moça se lembra do baile em que teve triunfos. No dia
seguinte, quando, almoçando, contou seus êxitos ao pai Goriot diante dos
pensionistas, Vautrin começou a sorrir de um jeito diabólico.
— E acredita — exclamou esse lógico feroz — que um rapaz na moda pode
morar na Rue Neuve-Sainte-Geneviève, na Casa Vauquer? Pensão infinitamente
respeitável em todos os aspectos, certamente, mas que é tudo menos fashionable
. É opulenta, é bela em sua abundância, é orgulhosa de ser o solar momentâneo
de um Rastignac; mas, afinal, fica na Rue Neuve-Sainte-Geneviève, e ignora o
luxo, porque é puramente patriarcalorama . Meu jovem amigo — Vautrin
prosseguiu com um ar paternalmente debochado —, se quiser ter boa estampa
em Paris, precisa de três cavalos e de um tílburi para a manhã, um cupê para a
noite, no total nove mil francos para o veículo. Seria indigno de seu destino se
não gastasse três mil francos com seu alfaiate, seiscentos francos com seu
perfumista, cem escudos com o boteiro, cem escudos com o chapeleiro. Quanto
à sua lavadeira, lhe custará mil francos. Os jovens na moda não podem deixar de
ser muito bons no quesito da roupa de baixo: não é o que mais frequentemente se
examina neles? O amor e a igreja querem belas toalhas em seus altares. Estamos
em catorze mil. Não lhe falo do que perderá no jogo, em apostas, em presentes; é
impossível não contar com dois mil francos de dinheiro miúdo. Levei essa vida,
conheço o que é preciso desembolsar. Acrescente a essas primeiras necessidades
trezentos luíses para a comida, mil francos para um teto. Vamos lá, meu filho, já
estamos nos vinte e cinco milzinhos por ano nos ombros, ou então caímos na
lama, deixamos que zombem de nós, e somos privados de nosso futuro, de
nossos sucessos, de nossas amantes! Esqueço o criado de quarto e o moço de
recados! É Christophe que levará suas cartas de amor? Vai escrevê-las no papel
que usa? Seria suicidar-se. Acredite num velho cheio de experiência! —
prosseguiu fazendo um rinforzando em sua voz de baixo. — Ou seja deportado
para uma virtuosa mansarda e case-se ali com o trabalho, ou pegue outro
caminho.
E Vautrin piscou o olho, de soslaio, para a srta. Taillefer, de modo a lembrar e
resumir nesse olhar os argumentos sedutores que semeara no coração do
estudante para corrompê-lo. Vários dias se passaram durante os quais Rastignac
levou a vida mais dissipada. Jantava quase todo dia com a sra. de Nucingen, que
acompanhava em sociedade. Voltava às três ou quatro horas da madrugada,
levantava-se ao meio-dia para fazer sua toalete, ia passear no bosque com
Delphine, quando estava tempo bom, prodigalizando assim seu tempo sem saber
seu preço, e aspirando todos os ensinamentos, todas as seduções do luxo com o
ardor de que é tomado o impaciente cálice de uma tamareira fêmea pelos grãos
fecundantes de seu himeneu. Apostava alto, perdia ou ganhava muito, e acabou
se habituando à vida exorbitante dos jovens de Paris. De seus primeiros ganhos,
devolveu mil e quinhentos francos à mãe e às irmãs, acompanhando a restituição
com lindos presentes. Embora tivesse anunciado querer largar a Casa Vauquer,
ainda estava lá nos últimos dias do mês de janeiro e não sabia como sair dali.
Quase todos os jovens são submetidos a uma lei aparentemente inexplicável,
mas cuja razão vem de sua própria juventude e da espécie de fúria com que se
precipitam no prazer. Ricos ou pobres, nunca têm dinheiro para as necessidades
da vida, ao passo que sempre o encontram para seus caprichos. Pródigos em tudo
o que se obtém a crédito, são avaros para tudo o que se paga no mesmo instante,
e parecem se vingar do que não têm, dissipando tudo o que podem ter. Assim,
para colocar a questão claramente, um estudante toma muito mais cuidado com
seu chapéu do que com sua casaca. A enormidade do ganho torna o alfaiate
essencialmente credor, ao passo que a modicidade da quantia faz do chapeleiro
um dos seres mais intratáveis entre aqueles com quem é obrigado a parlamentar.
Se o rapaz sentado no balcão de um teatro oferece ao binóculo das lindas
mulheres coletes assombrosos, é duvidoso que esteja calçando meias; o
vendedor de malhas é mais um desses carunchos que destroem seu bolso.
Rastignac estava nesse ponto. Sempre vazia para a sra. Vauquer, sempre cheia
para as exigências da vaidade, sua bolsa tinha reveses e êxitos lunáticos em
desacordo com os pagamentos mais naturais. A fim de sair da pensão fétida e
ignóbil onde se humilhavam periodicamente suas pretensões, não era preciso
pagar um mês à sua hospedeira e comprar móveis para seu apartamento de
dândi? Era o que continuava a ser impossível. Se, para conseguir o dinheiro
necessário ao jogo, Rastignac sabia comprar com seu joalheiro relógios e
correntes de ouro pagas muito caro com seus ganhos, e que levava à casa de
penhor, esse sombrio e discreto amigo da juventude, via-se sem imaginação e
sem audácia quando se tratava de pagar sua comida, sua moradia, ou de comprar
as ferramentas indispensáveis para a exploração da vida elegante. Uma
necessidade vulgar, dívidas contraídas pelas necessidades satisfeitas já não o
inspiravam. Como a maioria dos que conheceram essa vida incerta, esperava o
último instante para saldar empréstimos sagrados aos olhos dos burgueses, como
fazia Mirabeau, que só pagava seu pão quando se apresentava sob a forma
exasperante de uma letra de câmbio. Por essa época Rastignac perdera seu
dinheiro e se endividara. O estudante começava a entender que lhe seria
impossível continuar essa existência sem ter recursos fixos. Mas, embora
gemendo sob os prejuízos constrangedores de sua situação precária, sentia-se
incapaz de renunciar aos prazeres excessivos dessa vida, e queria continuá-la a
qualquer preço. Os acasos com que contara para sua fortuna tornavam-se
quiméricos, e os obstáculos reais cresciam. Iniciando-se nos segredos
domésticos do sr. e sra. de Nucingen, percebera que, para converter o amor em
instrumento de fortuna, teria de beber toda a vergonha e renunciar às nobres
ideias que são a absolvição dos erros da juventude. Desposara essa vida
exteriormente esplêndida, mas corroída por todas as tênias do remorso, e cujos
prazeres fugazes eram a duras penas expiados por persistentes angústias; nela se
enrolava ao fazer, como o Distraído de La Bruyère, uma cama na lama do fosso;
mas como o Distraído, até então só sujava suas roupas.
— Então matamos o mandarim? — disse-lhe um dia Bianchon, saindo da
mesa.
— Ainda não — ele respondeu —, mas está nos estertores.
O estudante de medicina tomou essa expressão como uma brincadeira, mas não
era. Eugène, que pela primeira vez depois de muito tempo jantara na pensão,
mostrou-se pensativo durante a refeição. Em vez de sair à sobremesa, ficou na
sala sentado perto da srta. Taillefer, para quem de vez em quando dava olhares
expressivos. Alguns hóspedes ainda estavam à mesa e comiam nozes, outros
andavam, continuando discussões iniciadas. Como quase todas as noites, cada
um falava segundo sua fantasia, segundo o grau de interesse que tinha pela
conversa ou segundo o maior ou menor peso que lhe causava a digestão. No
inverno, era raro que a sala de jantar ficasse inteiramente vazia antes das oito
horas, momento em que as quatro mulheres se viam sozinhas e se vingavam do
silêncio que seu sexo lhes impunha em meio àquela reunião masculina.
Impressionado com a preocupação que dominava Eugène, Vautrin permaneceu
na sala de jantar, embora de início parecesse apressado para sair, e manteve-se o
tempo todo de modo a não ser visto por Eugène, que deve ter acreditado que ele
saíra. Depois, em vez de acompanhar os pensionistas que eram os últimos a se ir,
estacionou sub-repticiamente no salão. Lera na alma do estudante e pressentia
um sintoma decisivo. Na verdade, Rastignac estava numa situação de
perplexidade que muitos jovens devem ter conhecido. Amorosa ou coquete, a
sra. de Nucingen fizera Rastignac passar por todas as angústias de uma paixão
verdadeira, exibindo-lhe os recursos da diplomacia feminina em uso em Paris.
Depois de ter se comprometido diante do público, mantendo perto de si o primo
da sra. de Beauséant, ela hesitava em lhe dar realmente os direitos de que ele
parecia usufruir. Fazia um mês que excitava tão bem os sentidos de Eugène, que
acabava atacando seu coração. Se nos primeiros momentos de sua ligação, o
estudante acreditara ser o senhor, a sra. de Nucingen se tornara a mais forte, com
a ajuda dessa manobra que em Eugène punha em marcha todos os sentimentos,
bons ou maus, dos dois ou três homens que existem num jovem de Paris. Seria,
nela, um cálculo? Não; as mulheres são sempre verdadeiras, mesmo em meio a
suas maiores falsidades, porque cedem a algum sentimento natural. Talvez
Delphine, depois de deixar o jovem ter de repente tanto domínio sobre ela, e de
ter lhe mostrado demasiada afeição, obedecesse a um sentimento de dignidade
que a fazia recuar em suas concessões ou divertir-se em suspendê-las. É tão
natural numa parisiense, no próprio instante em que a paixão a arrasta, hesitar
em sua queda, pôr à prova o coração daquele a quem vai entregar seu futuro!
Todas as esperanças da sra. de Nucingen tinham sido traídas uma primeira vez, e
sua fidelidade a um jovem egoísta acabava de ser ignorada. Podia estar
desconfiada, com muita razão. Talvez tivesse percebido nas maneiras de Eugène,
que seu rápido sucesso tornara fátuo, uma espécie de menosprezo causado pelas
bizarrices da situação de ambos. Sem dúvida desejava parecer imponente a um
homem daquela idade, e achar-se grande diante dele depois de ter sido tão
pequena diante daquele por quem fora abandonada. Não queria que Eugène a
imaginasse uma conquista fácil, justamente porque ele sabia que ela pertencera a
De Marsay. Enfim, depois de ter sofrido o degradante prazer de um verdadeiro
monstro, um libertino jovem, sentia tanta doçura em passear pelas regiões
floridas do amor que sem a menor dúvida era um encanto admirar todos os seus
aspectos, escutar longamente seu estremecimento e deixar-se por muito tempo
acariciar por brisas castas. O verdadeiro amor pagava pelo falso. Infelizmente,
esse contrassenso será frequente enquanto os homens não souberem quantas
flores ceifam na alma de uma jovem mulher os primeiros golpes da traição.
Fossem quais fossem suas razões, Delphine brincava com Rastignac e se divertia
em brincar com ele, talvez porque se soubesse amada e certa de fazer cessar as
tristezas de seu amante, segundo seu soberano bel-prazer de mulher. Por respeito
a si mesmo, Eugène não queria que seu primeiro combate terminasse com uma
derrota, e persistia em persegui-lo, como um caçador que quer a todo custo
matar uma perdiz em sua primeira festa de Saint-Hubert. Suas ansiedades, seu
amor-próprio ofendido, seus desesperos, falsos ou verdadeiros, o prendiam cada
vez mais àquela mulher. Toda Paris lhe atribuía a sra. de Nucingen, junto a quem
ele não estava mais adiantado do que no primeiro dia em que a vira. Ignorando
ainda que o coquetismo de uma mulher oferece às vezes mais benefícios que o
prazer dado por seu amor, caía em raivas tolas. Se a estação durante a qual uma
mulher disputa com o amor oferecia a Rastignac o butim de suas primícias, estas
se tornavam tão difíceis quanto eram verdes, azedinhas e deliciosas de saborear.
Às vezes, vendo-se sem um tostão, sem futuro, ele pensava, apesar da voz de sua
consciência, nas chances de fortuna cuja possibilidade um casamento com a srta.
Taillefer Vautrin lhe demonstrara. Ora, estava então num momento em que sua
miséria falava tão alto, que cedeu quase involuntariamente aos artifícios da
terrível esfinge cujos olhares costumavam fasciná-lo. Quando Poiret e a srta.
Michonneau subiram para seus quartos, Rastignac, pensando estar sozinho entre
a sra. Vauquer e a sra. Couture, que tricotava mangas de lã cochilando perto da
estufa, olhou para a srta. Taillefer de um jeito tão meigo que a fez baixar os
olhos.
— Andaria tendo desgostos, sr. Eugène? — perguntou-lhe Victorine depois de
um instante de silêncio.
— Qual homem não tem desgostos! — respondeu Rastignac. — Se nós,
jovens, tivéssemos certeza de ser amados, com uma dedicação que nos
recompensasse os sacrifícios que estamos sempre dispostos a fazer, talvez nunca
tivéssemos desgostos.
A srta. Taillefer lhe lançou, como única resposta, um olhar que não era
equívoco.
— A senhorita se sente segura de seu coração hoje; mas responderia que
jamais mudaria?
Um sorriso foi percorrer os lábios da pobre moça como um raio jorrando de
sua alma, e fez tão bem reluzir seu rosto que Eugène se assustou por ter
provocado uma explosão tão intensa de sentimento.
— Pois é! Se amanhã fosse rica e feliz, se uma imensa fortuna lhe caísse das
nuvens, ainda amaria o rapaz pobre que lhe teria agradado durante seus dias de
infortúnio?
Ela fez um lindo aceno de cabeça.
— Um rapaz bem infeliz?
Novo aceno.
— Mas que bobagens está dizendo aí? — exclamou a sra. Vauquer.
— Deixe-nos — respondeu Eugène —, nós nos entendemos.
— Então estaria havendo promessa de casamento entre o sr. cavalheiro Eugène
de Rastignac e a srta. Victorine Taillefer? — disse Vautrin com sua voz grossa,
mostrando-se de repente na porta da sala de jantar.
— Ah!, o senhor nos meteu medo — disseram ao mesmo tempo a sra. Couture
e a sra. Vauquer.
— Eu poderia fazer escolha pior — respondeu rindo Eugène, em quem a voz
de Vautrin causou a mais cruel emoção que ele jamais sentiu.
— Nada de brincadeiras de mau gosto, senhores! — disse a sra. Couture. —
Minha filha, vamos subir para nosso quarto.
A sra. Vauquer seguiu as duas pensionistas, a fim de economizar sua vela e sua
lareira, passando a noite com elas. Eugène se viu sozinho e frente a frente com
Vautrin.
— Eu tinha certeza que conseguiria — disse-lhe o homem, mantendo um
imperturbável sangue-frio. — Mas, ouça! Tenho delicadezas, como qualquer
outro. Não se decida neste momento, não está nos seus melhores dias. Tem
dívidas. Não quero que seja a paixão, o desespero, mas a razão que o determine a
vir até mim. Talvez precise de alguns milhares de escudos. Tome, deseja-os?
Esse demônio pegou no bolso uma carteira e tirou três notas, que fez cintilarem
diante dos olhos do estudante. Eugène estava na mais cruel situação. Devia ao
marquês d’Ajuda e ao conde de Trailles cem luíses apostados sob palavra. Não
os tinha, e não ousava passar a noite na casa da sra. de Restaud, onde era
esperado. Era uma dessas reuniões sem cerimônia, em que se comem docinhos,
em que se bebe chá, mas em que se podem perder seis mil francos no uíste.
— Senhor — disse-lhe Eugène, escondendo dificilmente um tremor convulso
—, depois do que me contou deve entender que para mim é impossível ter
obrigações consigo.
— Pois é, teria me dado pena falar de outra maneira — retrucou o tentador. —
Você é um belo rapaz, delicado, altivo como um leão e meigo como uma moça.
Seria uma bela presa para o diabo. Gosto dessa qualidade dos jovens. Mais duas
ou três reflexões sobre a alta política e verá o mundo como ele é. Representando
aí algumas pequenas cenas de virtude, o homem superior satisfaz todas as suas
fantasias sob grandes aplausos dos parvos da plateia. Dentro de poucos dias você
será nosso. Ah! se quisesse se tornar meu aluno eu o faria conseguir tudo. Não
formularia um desejo que não fosse satisfeito no mesmo instante, pouco importa
o que pudesse desejar: honra, fortuna, mulheres. Toda a civilização lhe seria
reduzida a uma ambrosia. Seria nosso filho mimado, nosso Benjamim,
exterminaríamos a todos por você, com prazer. Tudo o que lhe criasse obstáculo
seria eliminado. Se mantém escrúpulos, então é porque me toma por um
celerado? Pois bem, o sr. de Turenne, homem que tinha tanta probidade como
você ainda pensa ter, fazia, sem se imaginar comprometido, uns negocinhos com
bandidos. 44 Não quer ser agradecido a mim, hein? Não seja por isso —
continuou Vautrin deixando escapar um sorriso. — Pegue esses trapos e me
ponha aí em cima — disse tirando um selo —, aí, na transversal: Aceito pela
soma de três mil e quinhentos francos, pagável em um ano . E date! O juro é
bastante alto para lhe tirar qualquer escrúpulo; pode me chamar de judeu e se ver
livre de qualquer declaração de dívida. Permito-lhe desprezar-me ainda hoje,
certo de que mais tarde gostará de mim. Encontrará em mim esses imensos
abismos, esses vastos sentimentos concentrados que os estúpidos chamam
vícios; mas nunca me achará covarde nem ingrato. Enfim, não sou um peão nem
um bispo, mas uma torre, meu filho.
— Que homem é o senhor, afinal? — exclamou Eugène. — Foi criado para me
atormentar.
— Que nada, sou um bom homem que quer se sujar para que você esteja
protegido da lama até o resto de seus dias. Pergunta-se por que essa dedicação?
Pois bem, vou lhe dizer bem baixinho, um dia, no seu canal auditivo. Primeiro o
surpreendi mostrando-lhe o carrilhão da ordem social e o jogo da máquina; mas
o seu primeiro pavor passará como o do recruta no campo de batalha, e se
acostumará com a ideia de considerar os homens soldados decididos a morrer a
serviço dos que se autoconsagram reis. Os tempos mudaram muito. Outrora se
dizia a um pistoleiro: “Aqui estão cem escudos, mate-me o senhor fulano de tal”,
e se jantava tranquilamente depois de ter posto um homem na cova por tudo e
por nada. Hoje proponho lhe dar uma bela fortuna contra um aceno de cabeça
que não lhe compromete em nada, e você hesita. O século é muito mole.
Eugène assumiu a promissória e a trocou pelas notas de dinheiro.
— Muito bem, vejamos, falemos com a razão — continuou Vautrin. — Quero
partir daqui a alguns meses para a América, ir plantar meu fumo. Vou lhe enviar
os charutos da amizade. Se ficar rico, o ajudarei. Se não tiver filhos (caso
provável, não tenho a menor curiosidade de ser replantado aqui a partir de uma
muda), pois bem, vou lhe legar minha fortuna. Não é isso ser amigo de um
homem? Mas gosto de você. Tenho paixão de me dedicar a um outro. Já fiz isso.
Veja só, meu pequeno, vivo numa esfera mais elevada que a dos outros homens.
Considero as ações como meios, e vejo apenas o objetivo. O que é um homem
para mim? Isto! — disse estalando a unha do polegar num de seus dentes. Um
homem é tudo ou nada. É menos que nada quando se chama Poiret; podemos
esmagá-lo como um percevejo; é achatado e fede. Mas um homem é um deus
quando parece com você: não é mais uma máquina coberta de pele; e sim um
teatro no qual se excitam os mais belos sentimentos, e eu só vivo pelos
sentimentos. Um sentimento não é o mundo em um pensamento? Veja o pai
Goriot: suas duas filhas são para ele todo o universo, são o fio com que ele se
dirige na criação. Pois bem, para mim, que cavei bem a vida, só existe um
sentimento real, uma amizade de homem a homem. Pierre e Jaffier, é essa a
minha paixão. Sei de cor A salvação de Veneza . 45 Já viu pessoas destemidas o
suficiente para, quando um companheiro diz: “Vamos enterrar um corpo!”, irem
sem dar um pio nem aborrecê-lo com lição de moral? Mas você, você é um
homem superior, a gente pode lhe dizer tudo, você sabe compreender tudo. Não
chafurdará muito tempo nos pântanos onde vivem esses sapos que nos cercam
aqui. Pois então, estamos combinados. Você se casará. Puxemos cada um nossas
espadas! A minha é de ferro e não amolece nunca, rá, rá!
Vautrin saiu sem querer ouvir a resposta negativa do estudante, a fim de deixá-
lo à vontade. Parecia conhecer o segredo dessas pequenas resistências, desses
combates que os homens se atribuem, para si mesmos, e que lhes servem para
justificar suas ações repreensíveis.
“Que ele faça como quiser, com certeza não me casarei com a srta. Taillefer!”,
pensou Eugène.
Depois de ter sofrido o mal-estar de uma febre interior causado pela ideia de
um pacto feito com aquele homem por quem tinha horror, mas que a seu ver
crescia pelo próprio cinismo de suas ideias e pela audácia com que estreitava a
sociedade, Rastignac se vestiu, pediu um carro e foi à casa da sra. de Restaud.
Fazia alguns dias que essa mulher redobrara as atenções com um rapaz cujos
passos eram um progresso rumo ao cerne da alta sociedade, e cuja influência, um
dia, parecia se tornar temível. Ele pagou ao sr. de Trailles e ao sr. d’Ajuda, jogou
uíste uma parte da noite, e ganhou de novo o que tinha perdido. Supersticioso
como a maioria dos homens cujo caminho está para ser feito e que são mais ou
menos fatalistas, quis ver em sua felicidade uma recompensa do céu por sua
perseverança em permanecer no bom caminho. Na manhã seguinte, apressou-se
em perguntar a Vautrin se ainda estava com sua letra de câmbio. Diante de uma
resposta afirmativa, devolveu-lhe os três mil francos, manifestando um prazer
bastante natural.
— Vai tudo bem — disse-lhe Vautrin.
— Mas não sou seu cúmplice — disse Eugène.
— Eu sei, eu sei — respondeu Vautrin, interrompendo-o. — Continua a fazer
criancices. Detém-se nas aparências sem importância.
Dois dias depois, Poiret e a srta. Michonneau estavam sentados num banco, ao
sol, numa alameda solitária do Jardin des Plantes, e conversavam com o senhor
que parecia, com razão, suspeito para o estudante de medicina.
— Senhorita — dizia o sr. Gondureau —, não vejo de onde nascem seus
escrúpulos. Sua excelência o senhor ministro da Polícia Geral do reino…
— Ah! Sua excelência o senhor ministro da Polícia Geral do reino… — repetiu
Poiret.
— Sim, sua excelência cuida desse caso — disse Gondureau.
A quem não parecerá inverossímil que Poiret, antigo funcionário, talvez
homem de virtudes burguesas, embora destituído de ideias, continuasse a ouvir o
pretenso rentista da Rue de Buffon, no momento em que pronunciava a palavra
“polícia”, deixando assim ver a fisionomia de um agente da Rue de Jérusalem 46
atrás de sua máscara de homem honesto? No entanto, nada era mais natural.
Todos entenderão melhor a espécie peculiar a que pertencia Poiret na grande
família dos parvos, depois de uma ponderação já feita por certos observadores,
mas que até o presente não foi publicada. Ele é de uma nação plumígera,
comprimida no orçamento entre o primeiro grau de latitude que comporta os
salários de mil e duzentos francos — uma espécie de Groenlândia administrativa
— e o terceiro grau, onde começam os salários um pouco mais quentes, de três a
seis mil francos, região temperada, onde se aclimata a gratificação, onde ela
floresce apesar das dificuldades da cultura. Um dos traços característicos que
melhor trai a enfermiça estreiteza dessa raça subalterna é uma espécie de
respeito involuntário, mecânico, instintivo, por esse grande lama de todo
ministério, conhecido do funcionário por uma assinatura ilegível e pelo nome de
SUA EXCELÊNCIA, O SENHOR MINISTRO , cinco palavras que equivalem a Il Bondo
Cani do Califa de Bagdá 47 e que, para esse povo esmagado, representa um
poder sagrado, inapelável. Como o papa para os cristãos, o senhor ministro é
administrativamente infalível aos olhos do funcionário; o brilho que lança se
comunica a seus atos, a suas palavras, àquelas ditas em seu nome; ele tudo
acoberta com suas presepadas e legaliza as ações que ordena; seu nome de
excelência, que atesta a pureza de suas intenções e a santidade de suas vontades,
serve de passaporte para as ideias menos admissíveis. O que essa pobre gente
não faria em seu próprio interesse empenha-se em realizar assim que a expressão
“sua excelência” é proferida. As repartições têm sua obediência passiva, assim
como o exército tem a sua: sistema que abafa a consciência, aniquila um homem
e acaba, com o tempo, adaptando-o, como um parafuso ou uma porca, à máquina
governamental. Assim, o sr. Gondureau, que parecia ser especialista em homens,
distinguiu prontamente em Poiret um desses palermas burocráticos, e fez sair o
deus ex machina, a expressão talismânica de sua excelência, no momento em
que era necessário, assestando suas baterias, deslumbrando o Poiret, que lhe
parecia o macho da Michonneau, assim como a Michonneau lhe parecia a fêmea
do Poiret.
— A partir do momento em que sua excelência em pessoa, sua excelência o
senhor...! Ah, é muito diferente — disse Poiret.
— A senhora está ouvindo o cavalheiro, em cujo julgamento parece ter
confiança — prosseguiu o falso rentista, dirigindo-se à srta. Michonneau. —
Pois bem, sua excelência agora tem a mais completa certeza de que o suposto
Vautrin, alojado na Casa Vauquer, é um galé foragido da prisão de Toulon, onde
é conhecido pelo nome de Engana-a-Morte.
— Ah! Engana-a-Morte! — disse Poiret. — Ele é muito feliz, se merece esse
nome.
— Mas é claro — continuou o agente. — Esse apelido se deve à felicidade que
teve de nunca perder a vida nas façanhas extremamente audaciosas que
executou. Esse homem é perigoso, vejam bem! Tem qualidades que o tornam
extraordinário. Sua condenação é até mesmo uma coisa que lhe deu, em seu
ramo, uma honra infinita…
— Então é isso um homem de honra? — perguntou Poiret.
— À sua maneira. Aceitou assumir o crime de outro, uma falsificação
cometida por um rapaz belíssimo de quem gostava muito, um jovem italiano,
jogador inveterado, que desde então ingressou no serviço militar, onde aliás se
comportou perfeitamente bem.
— Mas, se sua excelência o ministro da Polícia tem certeza de que o sr.
Vautrin é Engana-a-Morte, por que então precisaria de mim? — perguntou a
srta. Michonneau.
— Ah, é! — disse Poiret —, se de fato o ministro, como nos deu a honra de
nos dizer, tem alguma certeza…
— Certeza não é a palavra; apenas se desconfia. Vocês vão entender a questão.
Jacques Collin, vulgo Engana-a-Morte, tem toda a confiança das três prisões de
galés que o escolheram para ser seu agente e seu banqueiro. Ganha muito em
cuidar de negócios desse tipo, que necessariamente exigem um homem de
marca.
— Ah! Ah! Entende o trocadilho, senhorita? — perguntou Poiret. — O
cavalheiro o chama de homem de marca porque ele foi marcado.
— O falso Vautrin — continuou o agente — recebe os capitais dos senhores
forçados, os investe, os guarda e os mantém à disposição dos que se evadem, ou
de suas famílias, quando eles assim dispõem por testamento, ou de suas amantes,
quando tiram dele para elas.
— De suas amantes? Quer dizer de suas mulheres? — observou Poiret.
— Não, senhor. O forçado em geral só tem esposas ilegítimas, a quem
chamamos de concubinas.
— Então todos vivem em estado de concubinagem?
— Consequentemente.
— Pois é — disse Poiret —, eis aí uns horrores que o senhor ministro não
deveria tolerar. Já que tem a honra de ver sua excelência, cabe ao senhor, que me
parece ter ideias filantrópicas, esclarecê-lo sobre a conduta imoral dessa gente,
que dá um péssimo exemplo para o resto da sociedade.
— Mas, senhor, o governo não os põe lá para oferecer um modelo de todas as
virtudes.
— É verdade. Porém, permita-me, senhor…
— Mas deixe afinal o senhor falar, meu benzinho — disse a srta. Michonneau.
— Compreenda, senhorita — prosseguiu Gondureau. — O governo pode ter
grande interesse em pôr a mão num caixa ilícito, que dizem elevar-se a um total
um bocado grande. Engana-a-Morte recebe valores consideráveis receptando não
só quantias possuídas por alguns de seus companheiros mas também as que
provêm da Sociedade dos Dez Mil…
— Dez mil ladrões! — exclamou Poiret, apavorado.
— Não, a Sociedade dos Dez Mil é uma associação de ladrões de escol, gente
que trabalha em alto nível e não se mete em negócio em que não há pelo menos
dez mil francos a ganhar. Essa sociedade se compõe de tudo o que existe de mais
distinto entre os nossos homens que vão direto para um tribunal do júri.
Conhecem o Código, e nunca se arriscam a pegar uma pena de morte quando são
apanhados. Collin é o homem de confiança deles, é o conselheiro. Com a ajuda
de seus imensos recursos, esse homem soube criar uma polícia sua, relações
muito extensas que ele envolve num mistério impenetrável. Embora há um ano o
tenhamos cercado de espiões, ainda não conseguimos enxergar claramente seu
jogo. Portanto, seu caixa e seus talentos servem constantemente para pagar o
vício, fazer reservas para o crime, e mantêm a salvo do perigo um exército de
sujeitos perigosos que estão em perpétuo estado de guerra com a sociedade.
Agarrar Engana-a-Morte e se apossar de seu banco será cortar o mal pela raiz.
Assim, essa expedição se tornou um negócio de Estado e de alta política, capaz
de honrar os que cooperarão para seu êxito. O senhor mesmo poderia voltar a ser
empregado na administração, tornar-se secretário de um delegado de polícia,
funções que não o impediriam de receber sua pensão de aposentadoria.
— Mas por que — disse a srta. Michonneau — Engana-a-Morte não vai
embora com a caixa?
— Oh! — disse o agente —, aonde ele for será seguido por um homem
encarregado de matá-lo, caso roube a prisão. Além disso, uma caixa não se
sequestra tão facilmente como se sequestra uma senhorita de boa família. Aliás,
Collin é um sujeito incapaz de fazer um lance desses, pois se acreditaria
desonrado.
— Tem razão — disse Poiret —, ele ficaria totalmente desonrado.
— Nada disso nos explica por que o senhor não vai, pura e simplesmente,
agarrá-lo — ponderou a srta. Michonneau.
— Pois bem, senhorita — vou responder… Mas — disse-lhe ao ouvido —
impeça o seu homem de me interromper ou jamais terminaremos. Esse velho aí
deve ter uma fortuna imensa para ser ouvido. Engana-a-Morte, vindo aqui, vestiu
a pele de um homem honesto, fez-se bom burguês de Paris, foi morar numa
pensão sem aparência; é esperto, convenhamos! Jamais o pegarão desprevenido.
Portanto, o sr. Vautrin é um homem considerado, que faz negócios
consideráveis.
— Naturalmente — disse Poiret para si mesmo.
— Se nos enganássemos prendendo um verdadeiro Vautrin, o ministro não
quer ter contra ele o comércio de Paris nem a opinião pública. O senhor chefe de
polícia está dubitativo, tem inimigos. Se houvesse erro, os que querem seu lugar
aproveitariam os mexericos e os escarcéus liberais para fazê-lo pular fora. Trata-
se aqui de proceder como no caso de Coignard, o falso conde de Sainte-Hélène;
48 se tivesse sido um verdadeiro conde de Saint-Hélène, estaríamos em maus
lençóis. Portanto, é preciso verificar!
— É, mas o senhor precisa de uma mulher bonita — disse com vivacidade a
srta. Michonneau.
— Engana-a-Morte não se deixaria abordar por uma mulher — disse o agente.
— Saiba de um segredo: ele não gosta de mulheres.
— Mas então não vejo em que eu seria útil numa verificação dessas, algo que
eu aceitaria fazer por dois mil francos.
— Nada mais fácil — disse o desconhecido. — Vou lhe entregar um frasco
contendo uma dose de licor preparado para provocar uma congestão que não tem
o menor perigo e simula uma apoplexia. Essa droga pode ser misturada
igualmente no vinho e no café. De imediato a senhorita transportará o seu
homem para uma cama e o despirá a fim de saber se ele não está morrendo.
Quando estiver sozinha, lhe dará um tapa no ombro, paf!, e verá as letras
aparecerem.
— Mas isso não é nada — disse Poiret.
— Pois então, aceita? — perguntou Gondureau à solteirona.
— Mas, meu caro senhor — disse a srta. Michonneau —, caso não existam
letras, eu teria os dois mil francos?
— Não.
— Então qual será o pagamento?
— Quinhentos francos.
— Fazer uma coisa dessas por tão pouco. O mal é o mesmo na consciência, e
tenho minha consciência para serenar, senhor.
— Afirmo-lhe — disse Poiret — que a senhorita tem muita consciência, além
de ser uma pessoa amabilíssima e muito engenhosa.
— Pois então — retrucou a srta. Michonneau —, dê-me três mil francos se for
Engana-a-Morte, e nada se for um burguês.
— Está bem — disse Gondureau —, mas com a condição de que o negócio
seja feito amanhã.
— Ainda não, meu caro senhor, preciso consultar meu confessor.
— Espertinha! — disse o agente se levantando. — Então até amanhã. E, se
tiver pressa de falar comigo, vá à pequena Rue Sainte-Anne, no fundo do pátio
da Sainte-Chapelle. Só há uma porta sob a cúpula. Pergunte pelo sr. Gondureau.
Bianchon, que voltava do curso de Cuvier, tivera a atenção fixada na expressão
um tanto original de “Engana-a-Morte” e ouviu o “Está bem” do famoso chefe
da polícia de segurança.
— Por que não termina logo isso, seriam trezentos francos de renda vitalícia —
disse Poiret à srta. Michonneau.
— Por quê? — ela perguntou. — Mas é preciso refletir. Se o sr. Vautrin fosse
esse Engana-a-Morte, talvez fosse mais vantagem se arranjar com ele. Porém,
lhe pedir dinheiro seria preveni-lo, e ele seria homem de dar no pé de graça .
Seria um fiasco abominável.
— Mesmo que fosse prevenido — prosseguiu Poiret —, esse senhor não nos
disse que ele estava sendo vigiado? Mas você, você perderia tudo.
— Aliás — pensou a srta. Michonneau —, não gosto nada desse homem! Só
sabe me dizer coisas desagradáveis.
— Mas — continuou Poiret — seria melhor que fizesse. Assim como disse
esse cavalheiro, que me parece muito correto, além de estar muito bem coberto,
é um ato de obediência às leis livrar a sociedade de um criminoso, por mais
virtuoso que seja. Quem fez voltará a fazer. E se lhe desse na veneta assassinar
todos nós? Mas, que diabo! Seríamos culpados por esses assassínios, sem contar
que seríamos as primeiras vítimas.
A preocupação da srta. Michonneau não lhe permitia ouvir as frases caindo
uma a uma da boca de Poiret, como gotas d’água que pingam da torneira mal
fechada de uma pia. Já que, quando começara a série de suas frases, a srta.
Michonneau não o parou, o velhote continuava a falar, parecendo um
mecanismo no qual tivessem dado corda. Depois de ter iniciado um primeiro
assunto, era levado por seus parênteses a tratar de outros totalmente opostos, sem
nada concluir. Chegando à Casa Vauquer, enfiara-se por uma série de trechos e
citações fugazes que o levaram a contar seu depoimento no caso do sr.
Ragoulleau e da sra. Morin, 49 em que ele comparecera na qualidade de
testemunha de defesa. Ao entrar, sua companheira não deixou de notar Eugène
de Rastignac envolvido com a srta. Taillefer numa conversa íntima cujo interesse
era tão palpitante que o casal não prestou a menor atenção na passagem dos dois
velhos hóspedes quando atravessaram a sala de jantar.
— Isso devia acabar assim — disse a srta. Michonneau a Poiret. — Há oito
dias se olhavam ternamente, a se arrancarem a alma.
— É — ele respondeu. — Assim ela foi condenada.
— Quem?
— A sra. Morin.
— Estou lhe falando da srta. Victorine — disse a srta. Michonneau ao entrar
sem perceber no quarto de Poiret — e você me responde com a sra. Morin.
Quem é essa mulher aí?
— Mas de que seria culpada a srta. Victorine? — perguntou Poiret.
— Ela é culpada de amar o sr. Eugène de Rastignac, e vai em frente sem saber
aonde isso a levará, pobre inocente!
Durante a manhã, Eugène fora reduzido ao desespero pela sra. de Nucingen.
Em seu foro íntimo, abandonara-se completamente a Vautrin, sem querer sondar
os motivos da amizade que lhe demonstrava aquele homem extraordinário nem o
futuro de uma união dessas. Só mesmo um milagre para tirá-lo do abismo onde
já pusera o pé fazia uma hora, trocando com a srta. Taillefer as mais doces
promessas. Victorine acreditava ouvir a voz de um anjo, os céus se abriam para
ela, a Casa Vauquer se enfeitava com as tonalidades fantásticas que os
decoradores dão aos palácios de teatro: ela amava, era amada, ao menos
acreditava ser! E que mulher não acreditaria da mesma forma, ao ver Rastignac,
ao ouvi-lo durante aquela hora roubada de todos os espiões da casa? Debatendo-
se contra sua consciência, sabendo que agia mal e querendo agir mal, dizendo-se
que redimiria esse pecado venial pela felicidade de uma mulher, ele se
embelezara com o próprio desespero e resplandecia com todos os fogos do
inverno que tinha no coração. Felizmente para ele, o milagre aconteceu: Vautrin
entrou muito alegre e leu a alma dos dois jovens que ele casara pelas
combinações de seu gênio infernal, mas cuja alegria perturbou de repente
cantando com seu vozeirão galhofeiro:

Minha Fanchette é um encanto


Em sua simplicidade…
Victorine fugiu levando tanta felicidade quanto fora a infelicidade que tivera até
então na vida. Pobre menina! Um aperto de mãos, sua face roçada pelos cabelos
de Rastignac, uma palavra dita tão perto de seu ouvido que ela sentira o calor
dos lábios do estudante, a pressão de sua cintura por um braço trêmulo, um beijo
em seu pescoço, foram os esponsais de sua paixão, que a vizinhança da gorda
Sylvie, ameaçando entrar naquela radiosa sala de jantar, tornou mais ardentes,
mais intensos, mais insinuantes do que os mais belos testemunhos de dedicação
contados nas mais célebres histórias de amor. Esses pequenos sufrágios ,
seguindo uma bonita expressão de nossos antepassados, pareciam ser crimes
para uma moça devota que se confessava a cada quinze dias! Naquela hora, ela
prodigalizara mais tesouros da alma do que mais tarde, rica e feliz, teria dado ao
se entregar inteiramente.
— O negócio está feito — disse Vautrin a Eugène. — Nossos dois dândis
brigaram. Tudo se passou nos conformes. Caso de opinião. Nosso pombinho
insultou meu falcão. Amanhã, no reduto de Clignancourt. Às oito e meia, a srta.
Taillefer herdará o amor e a fortuna do pai, enquanto estiver ali tranquilamente
molhando no café suas fatias de pão com manteiga. Não é engraçado pensar
isso? Aquele pequeno Taillefer é muito bom na espada, é confiante como uma
trinca e um par; mas será sangrado por um golpe que inventei, uma maneira de
levantar a espada e espetar a testa do outro. Vou lhe mostrar essa estocada, pois
é furiosamente útil.
Rastignac ouvia com ar aparvalhado e não conseguia responder nada. Nesse
instante o pai Goriot, Bianchon e alguns outros pensionistas chegaram.
— Assim é que eu gostaria que você fosse — disse-lhe Vautrin. — Sabe o que
está fazendo. Bem, minha pequena águia! 50 Você governará os homens; é forte,
firme, valente; tem minha estima.
Quis pegar sua mão. Rastignac retirou vivamente a sua e caiu numa cadeira,
empalidecendo; pensava ver uma poça de sangue diante de si.
— Ah! Ainda temos umas pequenas fraldas manchadas de virtude — disse
Vautrin baixinho. — Papai Doliban tem três milhões, conheço a fortuna dele.
Seu dote o deixará branco como um vestido de noiva, você verá com seus
próprios olhos.
Rastignac não hesitou mais. Resolveu ir avisar à noite os srs. Taillefer, pai e
filho. Nesse momento, tendo Vautrin o deixado, o pai Goriot lhe disse ao
ouvido:
— Está triste, meu filho! Vou alegrá-lo. Venha!
E o velho macarroneiro acendeu sua vela numa das lamparinas. Eugène o
seguiu, muito emocionado e curioso.
— Entremos no seu quarto — disse o bom homem, que pedira a Sylvie a chave
do estudante. — Hoje de manhã pensou que ela não gostava de você, hein! —
continuou. — Ela o despachou à força, e você foi embora zangado, desesperado.
Pateta! Ela esperava por mim. Entende? Devíamos ir acabar de arrumar uma joia
de apartamento onde você vai morar daqui a três dias. Não me denuncie. Ela
quer lhe fazer uma surpresa; mas não faço questão de esconder-lhe o segredo por
muito tempo. Você vai morar na Rue d’Artois, a dois passos da Rue Saint-
Lazare. Lá estará como um príncipe. Nós lhe conseguimos móveis como para
uma noiva. Fizemos as coisas muito bem, há um mês, não lhe dizendo nada.
Meu advogado saiu em campo, minha filha terá seus trinta e seis mil francos por
ano, os juros de seu dote, e vou exigir a aplicação de seus oitocentos mil francos
em bons bens ao sol.
Eugène estava mudo e andava, de braços cruzados, de um lado a outro, dentro
de seu pobre quarto em desordem. O pai Goriot aproveitou um instante em que o
estudante lhe dava as costas e pôs sobre a lareira uma caixa de marroquim
vermelho, na qual estavam gravadas em ouro as armas de Rastignac.
— Meu querido filho — dizia o pobre homenzinho —, meti-me em tudo isso
até o pescoço. Mas veja, havia em mim bastante egoísmo, estou interessado em
sua mudança de bairro. Você não vai me recusar, hein!, se eu lhe pedir uma
coisa?
— O que deseja?
— Acima de seu apartamento, no quinto andar, há um quarto que depende
dele, morarei lá, não é mesmo? Estou envelhecendo, estou muito longe de
minhas filhas. Não o atrapalharei. Apenas ficarei ali. O senhor me falará dela
toda noite. Diga-me se isso não vai contrariá-lo? Quando voltar para casa,
quando eu estiver em minha cama, vou escutar e pensarei: “Ele acaba de ver
minha pequena Delphine. Levou-a ao baile, ela está feliz com ele”. Se eu
estivesse doente, escutá-lo voltar, se mexer, sair seria como um bálsamo em meu
coração. Haverá tanto de minha filha no senhor! Só terei de dar um passo para
chegar aos Champs-Elysées, onde elas passam todo dia, vou vê-las, enquanto às
vezes chego tarde demais. E além disso ela talvez venha vê-lo! Vou ouvi-la, vê-
la em seu capote acolchoado matinal, saltitando, andando gentilmente como uma
gatinha. Faz um mês que voltou a ser o que era, mocinha, alegre, faceira. Sua
alma está em convalescença, ela lhe deve a felicidade. Oh! por si eu faria o
impossível. Ela me dizia há pouco, voltando: “Papai, estou muito feliz!”.
Quando me chamam cerimoniosamente: Meu pai , me congelam; mas, quando
me chamam de papai , parece-me ainda vê-las pequenas, elas me devolvem
todas as minhas lembranças. Sou mais pai delas. Acho que ainda não pertencem
a ninguém! (O bom homem enxugou os olhos, chorava.) Há muito tempo eu não
ouvia essa frase, muito tempo que ela não me dava o braço. Ah! sim, faz bem
dez anos que não andava lado a lado com uma de minhas filhas. Como é bom
esfregar no vestido dela, acompanhar seus passos, partilhar seu calor! Enfim, de
manhã levei Delphine para todo lado. Entrava com ela nas lojas. E a acompanhei
de volta até a casa dela. Oh! mantenha-me perto de si. Às vezes precisará de
alguém para lhe prestar um favor, aqui estarei. Oh! se o casca-grossa daquele
alsaciano morresse, se sua gota tivesse a inteligência de subir para o estômago,
minha pobre filha seria feliz! O senhor seria meu genro, seria ostensivamente
seu marido. Pois é! Ela é tão infeliz por não conhecer nada dos prazeres deste
mundo, que a absolvo de tudo. O bom Deus deve estar do lado dos pais que
amam. Ela o ama demais! — disse balançando a cabeça depois de uma pausa. —
Quando caminhava, falava do senhor comigo: “Ele é bom, não é, meu pai? Fala
de mim?”. Da Rue d’Artois até a Passage des Panoramas, contou-me montes de
coisas, só vendo! Despejou enfim seu coração no meu. Durante toda essa boa
manhã deixei de ser velho, não pesava nem uma onça. Disse a ela que o senhor
tinha me entregado a nota de mil francos. Oh! a minha querida, comoveu-se até
as lágrimas. Mas o que tem aí sobre a sua lareira? — perguntou enfim o pai
Goriot, que morria de impaciência ao ver Rastignac imóvel.
Eugène, completamente atordoado, olhava para seu vizinho com uma
expressão perplexa. Aquele duelo, anunciado por Vautrin para o dia seguinte,
contrastava tão violentamente com a realização de suas mais queridas
esperanças, que ele enfrentava todas as sensações do pesadelo. Virou-se para a
lareira, viu a caixinha quadrada, abriu-a e dentro encontrou um papel que cobria
um relógio Breguet. Nesse papel estavam escritas estas palavras:

Quero que pense em mim a toda hora, porque…


DELPHINE.

Esta última palavra provavelmente fazia alusão a alguma cena que ocorrera entre
eles, Eugène ficou enternecido. Suas armas estavam internamente esmaltadas no
ouro da caixa do relógio. Aquela joia tão longamente invejada, a corrente, a
chave, seu feitio, os desenhos respondiam a todos os seus desejos. O pai Goriot
estava radiante. Talvez tivesse prometido à filha lhe relatar os menores efeitos
em Eugène da surpresa causada pelo presente, pois ele era uma testemunha
dessas jovens emoções e não parecia o menos feliz. Já gostava de Rastignac
tanto por sua filha como por si mesmo.
— Vai vê-la esta noite, ela o espera. O gordo estúpido do alsaciano ceia na
casa de sua bailarina. Ah! Ah! ele ficou um tanto desconcertado quando meu
advogado lhe expôs sua situação. Não pretende amar minha filha até a adoração?
Que toque nela e eu o mato. A ideia de saber minha Delphine a… (ele suspirou)
me faria cometer um crime; mas não seria um homicídio, pois ele é uma cabeça
de bezerro em cima de um corpo de porco. Vocês me levarão consigo, não é?
— Sim, meu bom pai Goriot, bem sabe que gosto muito do senhor…
— Estou vendo, não tem vergonha de mim! Deixe-me lhe dar um beijo. (E
apertou o estudante nos braços.) O senhor a fará muito feliz, prometa-me! Irá lá
esta noite, não é?
— Ah, sim! Devo sair para uns negócios que é impossível adiar.
— Posso lhe ser útil em alguma coisa?
— Pensando bem, sim! Enquanto eu for à casa da sra. de Nuncingen, vá à do
sr. Taillefer pai, dizer-lhe para me conceder uma hora à noite a fim de lhe falar
de um negócio da maior importância.
— Então seria verdade, jovem? — disse o pai Goriot mudando de fisionomia.
— Estaria fazendo a corte à filha dele, como dizem esses imbecis lá embaixo?
Por todos os deuses! Não sabe o que é um tabefe à moda de Goriot. E se nos
enganasse, seria o caso para uns bons socos. Oh! não é possível.
— Juro-lhe que só amo uma mulher no mundo — disse o estudante —, e só sei
disso há pouco tempo.
— Ah, que felicidade! — disse o pai Goriot.
— Mas — prosseguiu o estudante — o filho de Taillefer se duela amanhã, e
ouvi dizer que ele seria morto.
— E o que tem a ver com isso? — perguntou Goriot.
— É preciso lhe dizer para impedir que o filho dele vá lá — exclamou Eugène.
Nesse momento, foi interrompido pela voz de Vautrin, que se fez ouvir na
soleira da porta, onde cantava:

Ó, Ricardo, ó meu rei!


O universo te abandona…

Brum! brum! brum! brum! brum!

Por muito tempo percorri o mundo,


E me viram… 51

Tra, lá, lá, lá, lá…

— Senhores — gritou Christophe —, a sopa os espera, e todos estão à mesa.


— Taí — disse Vautrin —, venha tomar uma garrafa de meu vinho de
Bordeaux.
— Acha bonito, o relógio? — perguntou o pai Goriot. — Ela tem bom gosto,
hein!
Vautrin, o pai Goriot e Rastignac desceram juntos e se viram, devido a seu
atraso, sentados lado a lado, à mesa. Eugène demonstrou a maior frieza com
Vautrin durante o jantar, embora nunca esse homem, tão amável aos olhos da
sra. Vauquer, tivesse se mostrado tão espirituoso. Foi brilhante em suas tiradas, e
soube animar todos os convivas. Essa segurança, esse sangue-frio consternaram
Eugène.
— Mas que bicho lhe mordeu hoje? — perguntou-lhe a sra. Vauquer. — Está
alegre como um boêmio.
— Sempre fico alegre quando faço bons negócios.
— Negócios? — perguntou Eugène.
— Pois é, sim. Entreguei uma partida de mercadorias que me valerá uns bons
trocados de comissão. Srta. Michonneau — disse percebendo que a solteirona o
examinava —, tenho no rosto algum traço que lhe desagrada, para que me lance
o olho de águia ? É preciso dizê-lo! E o mudarei para lhe ser agradável.
— Poiret, não vamos nos zangar por isso, hein? — disse olhando de soslaio
para o velho funcionário.
— Pilantra! Deveria posar para um Hércules Farsante — disse o jovem pintor a
Vautrin.
— Tudo bem, palavra!, se a srta. Michonneau quiser posar como Vênus do
Père-Lachaise — respondeu Vautrin.
— E Poiret? — perguntou Bianchon.
— Ah! Poiret posará de Poiret. Será o deus dos jardins! — exclamou Vautrin.
— Poiret deriva de pera…
— Mole! — retrucou Bianchon. — Então o senhor ficaria entre a pera e o
queijo.
— Tudo isso são tolices — disse a sra. Vauquer —, e seria melhor nos darem
seu vinho de Bordeaux, cuja pontinha da garrafa estou vendo. Isso manterá nossa
alegria, além do mais é bom para o estômaco.
— Senhores — disse Vautrin —, a senhora presidente nos chama à ordem. A
sra. Couture e a srta. Victorine não se ofenderão com seus discursos jocosos;
mas respeitem a inocência do pai Goriot. Proponho-lhes uma pequena
garraforama de vinho de Bordeaux, que o nome de Laffitte torna duplamente
ilustre, diga-se sem alusão política. 52 Vamos, chinês! — disse olhando para
Christophe, que não se mexeu. — Aqui, Christophe! Como você não ouve seu
nome? Chinês, traga os líquidos!
— Aqui estão, senhor — disse Christophe apresentando-lhe a garrafa.
Depois de encher o copo de Eugène e o do pai Goriot, serviu-se lentamente de
algumas gotas, que degustou enquanto seus dois vizinhos bebiam, e de repente
fez careta.
— Diacho! Diacho! Está com gosto de rolha. Pegue isso para você, Christophe,
e vá nos buscar outra: à direita, você sabe! Somos dezesseis, desça oito garrafas.
— Já que está desembolsando — disse o pintor —, eu pago uma centena de
castanhas.
— Oba! Oba!
— Buuuuuuh!
— Prrrr!
Todos soltaram exclamações que partiram como foguetes de uma girândola.
— Vamos, mamãe Vauquer, duas de champanhe — gritou-lhe Vautrin.
— Quien , era o que faltava! Por que não pedir a casa? Duas de champanhe!
Mas isso custa doze francos! Eu não ganho isso não! Mas, se o sr. Eugène quiser
pagá-las, ofereço licor de cassis.
— Lá vem o cassis dela que purga que nem o maná — disse baixinho o
estudante de medicina.
— Quer calar a boca, Bianchon? — exclamou Rastignac —, não posso ouvir
falar de maná sem que o estômago… Está bem, vá lá para o champanhe, eu pago
— acrescentou o estudante.
— Sylvie — disse a sra. Vauquer —, sirva os biscoitos e os bolinhos.
— Seus bolinhos são grandes demais — disse Vautrin —, já criaram barba.
Mas quanto aos biscoitos, passe para cá.
Num instante o vinho de Bordeaux circulou, os convivas se animaram, a
alegria redobrou. Foram risos furiosos, em meio aos quais pipocaram imitações
das diversas vozes de animais. Como o empregado do museu resolveu reproduzir
um pregão dos ambulantes de Paris que tinha analogia com o miado do gato
apaixonado, logo oito vozes berraram simultaneamente as seguintes frases:
“Amolador de facas! — Morrião-dos-passarinhos! — Olhem o beijo de moça,
senhoras, olhem o beijo de moça! — Conserta-se louça! — Na barcaça! Na
barcaça! — Bata em suas mulheres, bata suas roupas! — Roupas velhas, galões
velhos, chapéus velhos à venda! — Olha a cereja, da doce!”. O prêmio foi para
Bianchon pelo sotaque anasalado com que gritou: “Vendedor de guarda-
chuvas!”. Em poucos instantes foi uma gritaria de estourar a cabeça, uma
conversa cheia de disparates, uma verdadeira ópera que Vautrin dirigia como um
maestro, vigiando Eugène e o pai Goriot, que já pareciam bêbados. Com as
costas apoiadas na cadeira, os dois contemplavam essa desordem inusual com
um ar grave, bebendo pouco; estavam preocupados com o que tinham a fazer
durante a noite, e no entanto se sentiam incapazes de se levantar. Vautrin, que
acompanhava as mudanças de suas fisionomias lançando-lhes olhares de soslaio,
percebeu o momento em que seus olhos vacilaram e pareceram querer se fechar,
e inclinou-se ao ouvido de Rastignac para lhe dizer:
— Meu garotinho, não somos suficientemente espertos para lutar com nosso
papai Vautrin, e ele gosta demais de você para deixá-lo fazer bobagens. Quando
decidi alguma coisa, só o bom Deus é bastante forte para me barrar o caminho.
Ah! queríamos ir avisar ao seu Taillefer, cometer erros de criança! O forno está
quente, a farinha está amassada, o pão está na pá; amanhã faremos pular as
migalhas por cima de nossa cabeça ao mordê-lo; e nós íamos impedir de pô-lo
no forno?… não, não, tudo será cozido! Se sentirmos uns remorsozinhos, a
digestão os levará. Enquanto tirarmos nossa sonequinha, o coronel conde
Franchessini lhe abrirá a sucessão de Michel Taillefer com a ponta de sua
espada. Ao herdar do irmão, Victorine terá quinze mil franquinhos de renda. Já
colhi informações e sei que a herança da mãe chega a mais de trezentos mil…
Eugène ouvia essas palavras sem conseguir responder: sentia a língua colada
no céu da boca e estava às voltas com uma sonolência invencível; só via a mesa
e os rostos dos convivas através de uma bruma luminosa. Logo o barulho
sossegou, os pensionistas se foram, um a um. Depois, quando só sobraram a sra.
Vauquer, a sra. Couture, a srta. Victorine, Vautrin e o pai Goriot, Rastignac
percebeu, como se tivesse sonhado, a sra. Vauquer ocupada em esvaziar as
garrafas para pegar os restos e encher outras.
— Ah! Eles são loucos, são jovens! — dizia a viúva.
Foi a última frase que Eugène conseguiu ouvir.
— Só mesmo o sr. Vautrin para fazer essas brincadeiras — disse Sylvie. —
Ora vejam, aí está Christophe roncando como um porco.
— Adeus, mamãe — disse Vautrin. — Vou ao bulevar admirar o sr. Marty em
Le Mont Sauvage , uma grande peça tirada de Le Solitaire . 53 Se quiser, levo-a
comigo, bem como essas senhoras.
— Agradeço-lhe — disse a sra. Couture.
— Como, minha vizinha! — exclamou a sra. Vauquer —, nega-se a ir ver uma
peça tirada de Le Solitaire , obra escrita por Atala de Chateaubriand, 54 e que
gostávamos tanto de ler, e que é tão linda que chorávamos como Madalenas a
respeito de Élodie, debaixo das tílhias neste último verão, em suma, uma obra
moral que pode ser capaz de instruir a sua senhorita?
— Estamos proibidas de ir ao teatro — respondeu Victorine.
— Vamos, esses aí já foram — disse Vautrin remexendo de modo cômico a
cabeça do pai Goriot e a de Eugène.
Pondo a cabeça do estudante sobre a cadeira, para que ele pudesse dormir
comodamente, beijou-o calorosamente na testa, cantando:

Durmam, meus queridos amores!


Por vocês velarei sempre.

— Temo que ele esteja doente — disse Victorine.


— Então fique para cuidar dele — retrucou Vautrin. — É seu dever de mulher
submissa — soprou-lhe ao ouvido. — Esse rapaz a adora, e a senhorita será sua
mulherzinha, estou prevendo. Enfim — disse em voz alta — foram respeitados
em todo o país, viveram felizes e tiveram muitos filhos . Eis como acabam todos
os romances de amor. Vamos, mamãe — disse virando-se para a sra. Vauquer,
que ele abraçou —, ponha o chapéu, o belo vestido florido, a echarpe da
condessa. Vou lhe buscar um fiacre.
E saiu cantando:

Sol, sol, divino sol,


Tu que fazes amadurecer as abóboras … 55

— Meu Deus! Puxa vida, sra. Couture, esse homem aí me faria viver feliz e
contente. Vejamos — ela disse virando-se para o macarroneiro —, o pai Goriot
já se foi. Esse velho pão-duro nunca teve ideia de me levar para lugar ninhum .
Mas ele vai cair no chão, meu Deus! Ai, como é indecente para um homem de
idade perder a razão! A senhora vai me dizer que não se perde aquilo que não se
tem. Sylvie, suba com ele até o quarto.
Sylvie pegou o homenzinho por baixo do braço, o fez andar e o jogou todo
vestido, como um embrulho, atravessado em sua cama.
— Pobre rapaz — dizia a sra. Couture afastando os cabelos de Eugène que lhe
caíam nos olhos —, está como uma moça, não sabe o que é um excesso.
— Ah! Bem posso dizer que há trinta e um anos que tenho minha pensão —
disse a sra. Vauquer —, me passaram muitos jovens pelas mãos, como se diz;
mas nunca vi um tão gentil, tão distinto como o sr. Eugène. Como é bonito
quando dorme! Mas ponha a cabeça dele no seu ombro, sra. Couture. Nossa, ele
está caindo sobre o da srta. Victorine: existe um deus para as crianças. Mais um
pouco e ele rachava a cabeça no encosto da cadeira. Os dois juntos formariam
um casal bem bonito.
— Mas cale a boca, minha vizinha — exclamou a sra. Couture —, a senhora
diz cada coisa…
— Ora essa! — disse a sra. Vauquer, ele não está ouvindo. Vamos, Sylvie,
venha me vestir. Vou pôr meu grande espartilho.
— Ah, sei! Seu grande espartilho, depois de ter jantado, senhora — disse
Sylvie. – Não, procure alguém para apertá-la, não vou ser eu a sua assassina. A
senhora cometeria uma imprudência que lhe custaria a vida.
— Para mim tanto faz, preciso honrar o sr. Vautrin.
— Então gosta muito dos seus herdeiros?
— Vamos, Sylvie, nada de discussão — disse a viúva indo embora.
— Na idade dela — disse a cozinheira mostrando sua patroa para Victorine.
A sra. Couture e sua pupila, em cujo ombro dormia Eugène, ficaram sozinhas
na sala de jantar. Os roncos de Christophe ressoavam na casa silenciosa, e
realçavam o sono sereno de Eugène, que dormia tão graciosamente como uma
criança. Feliz de poder se permitir um desses atos de caridade pelos quais se
derramam todos os sentimentos da mulher, e que a fazia sentir sem pecado o
coração do rapaz batendo contra o seu, Victorine tinha na fisionomia algo
maternalmente protetor que a tornava orgulhosa. Através dos mil pensamentos
que se elevavam em seu coração, varava um tumultuado gesto de volúpia
excitado pela troca de um calor jovem e puro.
— Pobre menina querida! — disse a sra. Couture apertando sua mão.
A velha senhora admirava aquela figura cândida e sofredora, sobre a qual
descera a auréola da felicidade. Victorine parecia uma dessas pinturas ingênuas
da Idade Média nas quais todos os acessórios são negligenciados pelo artista,
que reservou a magia de um pincel calmo e altivo para o rosto de tom amarelo,
mas onde o céu parece se refletir com suas tonalidades douradas.
— E olhe que ele não bebeu mais que dois copos, mamãe — disse Victorine
passando os dedos pela cabeleira de Eugène.
— Mas se fosse um farrista, minha filha, teria suportado o vinho como todos
esses outros. Sua embriaguez lhe serve de elogio.
O barulho de um carro ecoou na rua.
— Mamãe — disse a mocinha —, o sr. Vautrin está aí. Pegue então o sr.
Eugène. Não gostaria de ser vista assim por esse homem, ele tem expressões que
sujam a alma, e olhares que encabulam uma mulher, como se lhe tirassem seu
vestido.
— Não — disse a sra. Couture —, você se engana! O sr. Vautrin é um homem
de bem, um pouco no gênero do finado sr. Couture, brusco mas bom, um
intratável bondoso.
Nesse momento Vautrin entrou bem de mansinho, e olhou para o quadro
formado por aquelas duas crianças que o clarão da lamparina parecia acariciar.
— Muito bem — disse cruzando os braços —, eis uma dessas cenas que teriam
inspirado belas páginas a esse bom Bernardin de Saint-Pierre, autor de Paul e
Virginie . A juventude é muito bonita, sra. Couture. Pobre menino, durma —
disse contemplando Eugène —, às vezes o bem chega quando se dorme. Senhora
— prosseguiu dirigindo-se à viúva —, o que me liga a este rapaz, o que me
comove é saber que a beleza de sua alma está em harmonia com a de seu rosto.
Veja, não é um querubim colocado no ombro de um anjo? Esse aí é digno de ser
amado! Se eu fosse mulher, gostaria de morrer (não, não ia ser tão bobo!), de
viver por ele. Admirando-os assim, senhora — disse baixinho inclinando-se para
o ouvido da viúva —, não posso me impedir de pensar que Deus os criou para
serem um do outro. A Providência tem caminhos bem ocultos, ela sonda os
flancos e os corações — exclamou em voz alta. — Vendo-os unidos, minhas
crianças, unidos por uma mesma pureza, por todos os sentimentos humanos,
digo-me que é impossível que um dia sejam separados no futuro. Deus é justo.
Mas — disse à moça — parece-me ter visto na senhorita linhas de prosperidade.
Dê-me sua mão, srta. Victorine? Conheço-me em quiromancia, muitas vezes li a
sorte. Ande, não tenha medo. Oh! que entrevejo? Palavra de honra, a senhorita
será em breve uma das mais ricas herdeiras de Paris. Encherá de felicidade
aquele que a ama. Seu pai a chama perto de si. Vai se casar com um homem com
título de nobreza, jovem, belo, que a adora.
Nesse momento, os passos pesados da faceira viúva que descia interromperam
as profecias de Vautrin.
— Olhem a mamãe Vauquerre bela como um astrrro, amarrada como uma
cenoura. Não estamos sufocando um pouquinho? — ele lhe disse pondo a mão
no alto da armação. — Os peitos estão bem apertados, mamãe. Se chorarmos,
haverá explosão; mas catarei os restos com o cuidado de um arqueólogo.
— Esse aí conhece a linguagem da galanteria francesa! — disse a viúva se
inclinando ao ouvido da sra. Couture.
— Adeus, crianças — prosseguiu Vautrin virando-se para Eugène e Victorine.
— Abençoo-os — disse impondo-lhes as mãos acima de suas cabeças. — Creia-
me, senhorita, é uma grande coisa os votos de um homem honrado, eles devem
trazer felicidade, Deus os escuta.
— Adeus, minha querida amiga — disse a sra. Vauquer para a sua pensionista.
— Acredita — ela acrescentou baixinho — que o sr. Vautrin tenha intenções
relativas à minha pessoa?
— Hum... hum...
— Ah! minha querida mãe — disse Victorine suspirando e olhando para suas
mãos, quando as duas mulheres ficaram sozinhas —, se esse bom sr. Vautrin
falasse a verdade!
— Mas para isso basta uma coisa — respondeu a velha senhora —, somente
que seu monstro de irmão caia de um cavalo.
— Ah, mamãe.
— Meu Deus, talvez seja pecado desejar mal a seu inimigo — prosseguiu a
viúva. — Pois bem, me penitenciarei. Na verdade, de bom grado levarei flores a
seu túmulo. Maldito coração! Ele não tem a coragem de falar em nome da mãe,
de cuja herança se apropria graças a intrigas, e em prejuízo seu. Minha prima
tinha uma bela fortuna. Para sua desgraça, nunca se levou em conta a parte dela
no contrato de casamento.
— Minha felicidade me seria sempre difícil de suportar se custasse a vida a
alguém — disse Victorine. — E se para eu ser feliz meu irmão tivesse de morrer,
preferiria ficar aqui para sempre.
— Meu Deus, como diz esse bom sr. Vautrin, que, você está vendo, é muito
religioso — prosseguiu a sra. Couture —; tive o prazer de saber que ele não é
incrédulo como os outros, que falam de Deus com menos respeito do que o
Diabo tem por ele. Pois bem, quem pode saber por que caminhos a Providência
se apraz em nos conduzir?
Auxiliadas por Sylvie, as duas mulheres acabaram transportando Eugène ao
seu quarto, o deitaram na cama, e a cozinheira tirou suas roupas para pô-lo à
vontade. Antes de sair, quando sua protetora estava de costas, Victorine deu um
beijo na testa de Eugène com toda a felicidade que devia lhe causar esse furto
criminoso. Olhou para o quarto, apanhou por assim dizer num só pensamento as
mil felicidades daquele dia, e fez com elas um quadro que contemplou muito
tempo, e adormeceu como a mais feliz criatura de Paris. O festejo em favor do
qual Vautrin fizera Eugène e o pai Goriot beberem vinho narcotizado decidiu a
perda desse homem. Bianchon, semiembriagado, esqueceu de interrogar a srta.
Michonneau sobre Engana-a-Morte. Se tivesse pronunciado esse nome,
certamente teria despertado a prudência de Vautrin, ou, para lhe dar seu nome
verdadeiro, de Jacques Collin, uma das celebridades da prisão dos forçados.
Além disso, o apelido de Vênus do Père-Lachaise decidiu a srta. Michonneau a
entregar o foragido no momento em que, confiante na generosidade de Collin,
avaliava se não era melhor preveni-lo e fazê-lo fugir durante a noite. Ela acabava
de sair, acompanhada por Poiret, para ir encontrar o famoso chefe da polícia de
segurança, na pequena Rue Sainte-Anne, pensando ainda estar tratando com um
funcionário superior chamado Gondureau. O diretor da polícia judiciária a
recebeu de braços abertos. Depois de uma conversa em que tudo foi acertado, a
srta. Michonneau pediu a poção com a qual devia fazer a verificação da
tatuagem. Pelo gesto de contentamento que fez o grande homem da pequena Rue
Sainte-Anne, procurando um frasco numa gaveta de sua mesa, a srta.
Michonneau adivinhou que havia nessa captura algo mais importante que a
detenção de um simples foragido. De tanto apertar os miolos, desconfiou que a
polícia esperava, segundo algumas revelações feitas pelos traidores da prisão,
chegar a tempo para pôr a mão em quantias consideráveis. Quando expressou
essas conjecturas àquela raposa, esta se pôs a sorrir e quis desviar as suspeitas da
solteirona.
— Engana-se — ele respondeu. — Collin é a sorbonne mais perigosa que
algum dia já se viu para os lados dos ladrões. É só isso. Os malandros sabem
muito bem; é a bandeira deles, seu suporte, seu Bonaparte, em suma; todos
gostam dele. Esse engraçadinho nunca nos deixará sua mufa ser executada na
Place de Grève. 56
A srta. Michonneau não entendia, Gondureau lhe explicou as duas palavras da
gíria que usara. “Sorbonne” e “mufa” são duas expressões enérgicas da
linguagem dos ladrões, que foram os primeiros a sentir a necessidade de
considerar a cabeça humana sob dois aspectos. A “sorbonne” é a cabeça do
homem vivo, seu consultor, seu pensamento. A “mufa” é uma palavra de
desprezo destinada a expressar como a cabeça se torna pouca coisa quando é
cortada.
— Collin está brincando com a gente — ele prosseguiu. — Quando
encontramos esses homens que são como barras de aço temperado à inglesa,
temos o recurso de matá-los se, durante a detenção, resolvem opor a menor
resistência. Contamos com algumas alternativas que cheguem às vias de fato
para matar Collin amanhã de manhã. Assim evitam-se o processo, as despesas de
guarda, a alimentação, e isso livra a sociedade. Os procedimentos, as intimações
das testemunhas, suas indenizações, a execução, tudo o que deve legalmente nos
livrar desses patifes custa mais que os mil escudos que a senhorita vai ganhar.
Há economia de tempo. Dando um bom golpe de baioneta na pança de Engana-
a-Morte, impediremos uma centena de crimes e evitaremos a corrupção de
cinquenta maus sujeitos que se manterão muito comportados nos arredores do
tribunal correcional. Isso é polícia bem-feita. Segundo os verdadeiros
filantropos, conduzir-se assim é prevenir os crimes.
— E é servir seu país — disse Poiret.
— Pois é — retrucou o chefe —, agora à tarde está dizendo coisas sensatas.
Sim, sem dúvida, servimos o país. O mundo também é muito injusto conosco.
Prestamos à sociedade grandes serviços ignorados. Enfim, cabe a um homem
superior pôr-se acima dos preconceitos, e a um cristão adotar as desgraças que o
bem arrasta consigo quando não é feito segundo as ideias preconcebidas. Paris é
Paris, sabe? Essas palavras explicam minha vida. Tenho a honra de
cumprimentá-la, senhorita. Amanhã estarei com minha gente no Jardin du Roi.
Mande Christophe à Rue de Buffon, à casa do sr. Gondureau, ali onde eu estava.
Cavalheiro, sou seu servidor. Se acaso alguma coisa lhe for roubada, recorra a
mim para encontrá-la, estou à sua disposição.
— Muito bem — disse Poiret à srta. Michonneau —, encontram-se imbecis
diante de quem a palavra “polícia” fica de pernas para o ar. Esse senhor é muito
amável, e o que lhe pede é simples como dar bom-dia.
O dia seguinte deveria se destacar entre os dias mais extraordinários da história
da Casa Vauquer. Até então o acontecimento mais notável daquela vida pacata
fora o aparecimento meteórico da falsa condessa de l’Ambermesnil. Mas tudo
iria empalidecer diante das peripécias daquele grande dia, que seria eternamente
assunto nas conversas da sra. Vauquer. Primeiro, Goriot e Eugène de Rastignac
dormiram até onze horas. A sra. Vauquer, voltando à meia-noite do Gaîté, ficou
até dez e meia na cama. O longo sono de Christophe, que terminara o vinho
oferecido por Vautrin, causou atrasos no serviço da casa. Poiret e a srta.
Michonneau não se queixaram de o almoço ter atrasado. Quanto a Victorine e à
sra. Couture, dormiram até tarde. Vautrin saiu antes das oito, e retornou no exato
momento em que o almoço foi servido. Portanto, ninguém reclamou quando, por
volta das onze e quinze, Sylvie e Christophe foram bater em todas as portas,
dizendo que o almoço esperava. Enquanto Sylvie e o criado se ausentaram, a
srta. Michonneau, sendo a primeira a descer, derramou o licor no copo de prata
que pertencia a Vautrin, e no qual o leite para o seu café estava aquecendo em
banho-maria, no meio de todos os outros. A solteirona contara com essa
particularidade da pensão para dar seu golpe. Não foi sem algumas dificuldades
que os sete pensionistas se viram reunidos. Quando Eugène, que se
espreguiçava, foi o último de todos a descer, um mensageiro lhe entregou uma
carta da sra. de Nucingen. Essa carta estava escrita assim:

Não tenho falsa vaidade nem raiva de você, meu amigo. Esperei-o até as duas
horas depois de meia-noite. Esperar um ser que se ama! Quem conheceu esse
suplício não o impõe a ninguém. Bem vejo que ama pela primeira vez. O que
aconteceu afinal? A inquietação me assaltou. Se eu não tivesse receado
entregar os segredos de meu coração, teria ido saber o que lhe acontecia de
feliz ou infeliz. Mas sair a essa hora, seja a pé, seja de carro, não era se
perder? Senti a desgraça de ser mulher. Tranquilize-me, explique-me por que
não veio, depois do que meu pai lhe disse. Ficarei zangada mas o perdoarei.
Está doente? Por que morar tão longe? Uma palavra, por favor! Até breve,
não é? Uma palavra me bastará, se está ocupado. Diga: “Estou chegando”, ou
“estou doente”. Se estivesse passando mal, meu pai teria vindo me dizer!
Então, o que aconteceu?…

— Sim, o que aconteceu? — exclamou Eugène, que se precipitou para a sala


de jantar amassando a carta, sem terminá-la. — Que horas são?
— Onze e meia — disse Vautrin adoçando seu café.
O forçado foragido lançou para Eugène o olhar friamente fascinante que certos
homens eminentemente magnéticos têm o dom de lançar, e que, dizem, acalma
os loucos furiosos nos asilos de alienados. Eugène tremeu todos os seus
membros. O barulho de um fiacre foi ouvido na rua e um criado com a libré do
sr. Taillefer, e que a sra. Couture reconheceu imediatamente, entrou às pressas
com ar assustado.
— Senhorita — exclamou —, o senhor seu pai está lhe chamando. Aconteceu
uma grande desgraça. O sr. Frédéric bateu-se em duelo, recebeu um golpe de
espada na testa, os médicos estão sem esperança de salvá-lo: a senhorita apenas
terá tempo de lhe dar adeus, ele já está sem consciência.
— Pobre rapaz! — exclamou Vautrin. — Como alguém se disputa quando tem
trinta boas mil libras de renda? Decididamente a juventude não sabe se
comportar.
— Senhor! — gritou-lhe Eugène.
— Pois bem, o quê, meninão? — disse Vautrin acabando de beber
tranquilamente seu café, operação que a srta. Michonneau seguia com o olhar,
demasiado atenta para se emocionar com o acontecimento extraordinário que
espantava a todos. — Não há duelos todas as manhãs em Paris?
— Vou com você, Victorine — disse a sra. Couture.
E as duas mulheres saíram voando, sem xale nem chapéu. Antes de ir,
Victorine, com lágrimas nos olhos, dirigiu a Eugène um olhar que lhe dizia:
“Não pensava que nossa felicidade devesse me causar lágrimas!”.
— Nossa! Então é profeta, sr. Vautrin? — perguntou a sra. Vauquer.
— Eu sou tudo — disse Jacques Collin.
— Isso é que é singular! — retrucou a sra. Vauquer, enfiando uma série de
frases insignificantes sobre esse acontecimento. — A morte nos pega sem nos
consultar. Os jovens costumam ir embora antes dos velhos. Somos felizes, nós
mulheres, por não estarmos sujeitas ao duelo; mas temos outras doenças que os
homens não têm. Fazemos filhos, e o mal materno dura muito tempo! Que
bilhete premiado para Victorine! O pai dela é obrigado a adotá-la.
— É isso! — disse Vautrin olhando para Eugène —, ontem ela não tinha um
tostão, hoje de manhã está rica, com vários milhões.
— Puxa vida, sr. Eugène — exclamou a sra. Vauquer —, o senhor pôs a mão
no lugar certo.
Diante dessa interpelação, o pai Goriot olhou para o estudante e viu em sua
mão a carta amassada.
— Você não a terminou! O que é que isso quer dizer? Você seria como os
outros? — perguntou-lhe.
— Senhora, nunca me casarei com a srta. Victorine — disse Eugène dirigindo-
se à sra. Vauquer com um sentimento de horror e repugnância que surpreendeu
os presentes.
O pai Goriot segurou a mão do estudante e a apertou. Gostaria de beijá-la.
— Oh, oh! — disse Vautrin. — Os italianos têm uma boa expressão: col
tempo!
— Espero a resposta — disse a Rastignac o mensageiro da sra. de Nucingen.
— Diga que irei.
O homem foi embora. Eugène estava num violento estado de irritação que não
lhe permitia ser prudente. “Que fazer?”, se dizia em voz alta, falando consigo
mesmo. “Não há provas!”
Vautrin se pôs a sorrir. Nesse instante a poção absorvida pelo estômago
começava a agir. No entanto, o forçado era tão robusto que se levantou, olhou
para Rastignac, disse-lhe com voz cavernosa:
— Jovem, o bem nos vem quando dormimos.
E caiu duro, morto.
— Então existe uma justiça divina — disse Eugène.
— Mas afinal, o que é que ele tem, esse pobre querido sr. Vautrin?
— Uma apoplexia — gritou a srta. Michonneau.
— Sylvie, vamos, minha filha, vá buscar o médico — disse a viúva. — Ah!, sr.
Rastignac, então corra depressa à casa do sr. Bianchon; Sylvie pode não
encontrar nosso médico, o sr. Grimpel.
Rastignac, feliz de ter um pretexto para sair daquela pavorosa caverna, deu no
pé, correndo.
— Christophe, ande, vá trotando até o boticário pedir alguma coisa contra a
apoplexia.
Christophe saiu.
— Mas, pai Goriot, afinal, me ajude a transportá-lo lá para cima, para o quarto
dele.
Vautrin foi agarrado, manobrado pela escada e posto em sua cama.
— Não lhe sou útil para nada, vou ver minha filha — disse o pai Goriot.
— Velho egoísta! — exclamou a sra. Vauquer. — Vá, desejo que morra como
um cachorro.
— Mas então vá ver se tem éter — disse à sra. Vauquer a srta. Michonneau
que, ajudada por Poiret, tirara as roupas de Vautrin.
A sra. Vauquer desceu para seu quarto e deixou a srta. Michonneau como dona
do campo de batalha.
— Ande, tire então a camisa dele e vire-o rápido! Mas faça alguma coisa de
útil me evitando ver sua nudez — ela disse a Poiret. — Você fica aí como um
bobalhão.
Com Vautrin virado, a srta. Michonneau tascou no ombro do doente um tapa
muito forte, e as duas letras fatais reapareceram em branco, no meio da região
vermelha.
— Pronto, ganhou bem depressa sua gratificação de três mil francos —
exclamou Poiret segurando Vautrin em pé, enquanto a srta. Michonneau lhe
vestia a camisa. — Ufa! Ele é pesado — prosseguiu ao deitá-lo.
— Cale-se. E se houvesse um cofre? — disse prontamente a solteirona, cujos
olhos pareciam perfurar as paredes, de tanto que examinava com avidez os
menores móveis do quarto. — Se conseguíssemos abrir essa escrivaninha, com
uma desculpa qualquer? — continuou.
— Talvez não fosse correto — respondeu Poiret.
— Não. Dinheiro roubado, como foi de todo mundo, não é de mais ninguém.
Mas não temos tempo — ela respondeu. — Estou ouvindo a Vauquer.
— Aqui está o éter — disse a sra. Vauquer. — Positivamente, hoje é o dia das
aventuras. Deus! Esse homem aí não pode estar doente, está branco como um
frango.
— Como um frango? — repetiu Poiret.
— Seu coração bate regularmente — disse a viúva pondo a mão sobre o
coração.
— Regularmente? — perguntou Poiret, espantado.
— Ele está muito bem.
— Acha? — perguntou Poiret.
— Nossa! Parece estar dormindo. Sylvie foi chamar um médico. Xi, srta.
Michonneau, ele está fungando o éter. Ora, é um se-passo (espasmo)! O pulso
dele está bom. É forte como um mouro. Mas veja só, senhorita, como é peludo
na barriga; vai viver cem anos, esse homem aí! A peruca dele está bem presa,
mesmo assim. Veja, é colada, e, quanto a essa história de que é ruivo, tem
cabelos postiços... Dizem que os ruivos são totalmente bons ou totalmente ruins!
Então ele seria bom?
— Bom para ser enforcado — disse Poiret.
— O senhor quer dizer no pescoço de uma mulher bonita! — exclamou com
vivacidade a srta. Michonneau. — Mas vá embora, sr. Poiret. É problema nosso,
de nós mulheres, cuidar de vocês quando estão doentes. Aliás, considerando
aquilo em que sabe ser útil, pode muito bem ir passear — acrescentou. — A sra.
Vauquer e eu cuidaremos direitinho deste querido sr. Vautrin.
Poiret foi embora devagarinho e sem reclamar, como um cachorro a quem o
dono dá um pontapé. Rastignac tinha saído para andar, para tomar ar, pois
sufocava. Aquele crime cometido em hora marcada, ele quisera impedi-lo na
véspera. O que tinha acontecido? O que devia fazer? Tremia por ser seu
cúmplice. O sangue-frio de Vautrin ainda o apavorava.
“E se, no entanto, Vautrin morresse sem falar?”, pensava Rastignac.
Ia pelas alamedas do Luxembourg, como se estivesse sendo perseguido por
uma matilha de cães, e parecia-lhe ouvir seus latidos.
— Muito bem — gritou-lhe Bianchon —, leu Le Pilote ?
Le Pilote era um jornal radical dirigido pelo sr. Tissot 57 e que fornecia à
província, algumas horas depois dos jornais matutinos, uma edição em que havia
as notícias do dia, que então chegavam aos departamentos com vinte e quatro
horas de antecipação em relação aos outros jornais.
— Tem aí uma ótima história — disse o residente do Hospital Cochin. — O
Taillefer filho bateu-se em duelo com o conde Franchessini, da velha guarda,
que lhe meteu duas polegadas de ferro na testa. Eis a pequena Victorine como
um dos mais ricos partidos de Paris. Hein? Se tivéssemos sabido disso? Que
roleta que é a morte! É verdade que Victorine olhava com bons olhos para você?
— Cale a boca, Bianchon, nunca me casarei com ela. Amo uma mulher
deliciosa, sou amado por ela, eu…
— Você diz isso como se tivesse fazendo das tripas coração para não ser infiel.
Mostre-me então uma mulher que valha o sacrifício da fortuna do sr. Taillefer.
— Quer dizer que todos os demônios andam atrás de mim? — exclamou
Rastignac.
— Atrás de quem você estaria? Está louco? Então me dê sua mão — disse
Bianchon — para que eu tome o seu pulso. Está com febre.
— Então vá ver a mãe Vauquer — disse-lhe Eugène —, esse celerado do
Vautrin acaba de cair como morto.
— Ah! — disse Bianchon, deixando Rastignac sozinho —, você me confirma
suspeitas que quero verificar.
O longo passeio do estudante de direito foi solene. De certa forma, ele deu a
volta em sua consciência. Se flutuou, se examinou a si próprio, se hesitou, pelo
menos sua probidade saiu fortalecida dessa discussão áspera e terrível, como
uma barra de ferro que resiste a todas as experiências. Lembrou-se das
confidências que o pai Goriot lhe fizera na véspera, lembrou-se do apartamento
escolhido para ele ao lado de Delphine, na Rue d’Artois; pegou de novo a carta,
a releu, a beijou. “Um amor desses é minha âncora de salvação”, pensou. “Esse
pobre velho teve muitos sofrimentos amorosos. Não diz nada de suas tristezas,
mas quem não adivinharia! Pois bem, cuidarei dele como de um pai, darei a ele
mil alegrias. Se ela me ama, virá muitas vezes à minha casa passar o dia perto
dele. Essa grande condessa de Restaud é uma infame, transformaria o pai num
porteiro. Querida Delphine! Ela é melhor para o bom homem, é digna de ser
amada. Ah! esta noite, portanto, serei feliz!” Puxou o relógio, admirou-o. “Tudo
deu certo comigo! Quando amamos para sempre, podemos nos ajudar, portanto
posso receber isso. Aliás, vencerei, com certeza, e poderei devolver tudo, ao
cêntuplo. Nessa ligação não há crime nem nada que possa fazer a virtude mais
severa franzir o cenho. Quantas pessoas honestas contraem uniões semelhantes!
Não enganamos ninguém; e o que nos avilta é a mentira. Mentir não significa
abdicar? Há muito tempo ela se separou do marido. Aliás, vou dizer a esse
alsaciano para me ceder uma mulher que lhe é impossível fazer feliz.”
O combate de Rastignac durou muito tempo. Se bem que a vitória devesse se
ater às virtudes da juventude, ele foi, porém, levado por uma invencível
curiosidade, por volta das quatro e meia, quando caía a noite, à Casa Vauquer,
que jurara a si mesmo abandonar para sempre. Queria saber se Vautrin estava
morto. Depois de ter tido a ideia de lhe ministrar um vomitivo, Bianchon
mandara levar a seu hospital as matérias vomitadas por Vautrin, a fim de analisá-
las quimicamente. Vendo a insistência da srta. Michonneau em querer jogá-las
fora, suas desconfianças se reforçaram. Vautrin, aliás, se restabeleceu rápido
demais para que Bianchon não desconfiasse de algum complô contra o alegre
galhofeiro da pensão. Na hora em que Rastignac retornou, Vautrin estava,
portanto, em pé, ao lado da estufa na sala de jantar. Atraídos mais cedo que de
costume pela notícia do duelo de Taillefer filho, os pensionistas, curiosos em
conhecer os detalhes do caso e a influência que tivera sobre o destino de
Victorine, estavam reunidos, menos o pai Goriot, e conversavam sobre essa
aventura. Quando Eugène entrou, seus olhos encontraram os do imperturbável
Vautrin, cujo olhar penetrou tão fundo em seu coração e mexeu tão fortemente
algumas cordas fracas, que ele estremeceu.
— Muito bem, caro menino — disse-lhe o forçado foragido —, a Parca vai se
dar mal comigo por muito tempo. Segundo essas damas, aguentei vitoriosamente
uma congestão que deveria ter matado um boi.
— Ah! pode muito bem dizer um touro — exclamou a viúva Vauquer.
— Então estaria aborrecido por me ver em vida? — perguntou Vautrin ao
ouvido de Rastignac, cujos pensamentos teve a impressão de adivinhar. — Seria
para matar um homem tremendamente forte!
— Ah, palavra! — disse Bianchon —, a srta. Michonneau falava anteontem de
um senhor apelidado de Engana-a-Morte ; esse nome lhe cairia bem.
Essa expressão produziu em Vautrin o efeito de um raio: empalideceu e
cambaleou, seu olhar magnético caiu como um raio de sol sobre a srta.
Michonneau, a quem esse choque de firmeza paralisou os jarretes. A solteirona
se deixou afundar numa cadeira. Poiret adiantou-se prontamente entre ela e
Vautrin, compreendendo que ela estava em perigo, de tal maneira o rosto do
forçado ficou ferozmente significativo ao arrancar a máscara benigna sob a qual
se escondia sua verdadeira natureza. Sem ainda entenderem nada desse drama,
todos os hóspedes ficaram perplexos. Nesse momento, ouviu-se o passo de
vários homens e o barulho de alguns fuzis que soldados bateram no calçamento
da rua. No instante em que Collin procurava mecanicamente uma saída, olhando
para as janelas e as paredes, quatro homens se mostraram à porta da sala. O
primeiro era o chefe da polícia de segurança, os três outros eram oficiais de paz.
— Em nome da Lei e do Rei — disse um dos oficiais cujo discurso foi abafado
por um murmúrio de espanto.
Logo reinou silêncio na sala de jantar, os hóspedes se afastaram para dar
passagem a três desses homens, que, todos, tinham a mão no bolso lateral e
empunhavam uma pistola armada. Dois guardas que seguiam os agentes
ocuparam a porta do salão, e dois outros se mostraram naquela que saía pela
escada. O passo e os fuzis de vários soldados ressoaram no calçamento
pedregoso que margeava a fachada. Qualquer esperança de fuga foi, assim,
impossível para Engana-a-Morte, em quem todos os olhares pararam
irresistivelmente. O chefe foi direto até ele, começou por lhe dar na cabeça um
tapa aplicado tão violentamente que fez a peruca pular e devolveu à cabeça de
Collin todo o seu horror. Acompanhadas por cabelos vermelho-tijolo e curtos
que lhes davam um pavoroso caráter de força mesclada à astúcia, aquela cabeça
e aquela face, em harmonia com o torso, foram inteligentemente iluminadas
como se os fogos do inferno as tivessem iluminado. Cada hóspede compreendeu
todo Vautrin, seu passado, seu presente, seu futuro, suas doutrinas implacáveis, a
religião de seu bom prazer, a realeza que lhe davam o cinismo de seus
pensamentos, de seus atos, e a força de uma organização disposta a tudo. O
sangue lhe subiu ao rosto e seus olhos brilharam como os de um gato selvagem.
Ele pulou sobre si mesmo com um movimento impregnado de uma energia tão
feroz, ele rugiu tão bem, que arrancou gritos de terror de todos os pensionistas.
Diante desse gesto de leão, e apoiando-se no clamor geral, os agentes sacaram
suas pistolas. Collin compreendeu o perigo vendo brilhar o gatilho de cada arma,
e deu de repente a prova da mais alta força humana. Horrível e majestoso
espetáculo! Sua fisionomia apresentou um fenômeno que só pode ser comparado
com o da caldeira cheia desse vapor fumegante que levantaria montanhas, e que
uma gota de água fria dissolve num piscar de olhos. A gota d’água que esfriou
sua raiva foi uma reflexão rápida como um raio. Ele começou a sorrir e olhou
sua peruca.
— Você não está em seus dias de gentileza — disse ao chefe da polícia de
segurança. E esticou as mãos para os guardas, chamando-os com um sinal de
cabeça. — Senhores guardas, ponham-me as algemas ou os grilhões. Pego os
presentes como testemunhas de que não estou resistindo.
Um murmúrio admirativo, arrancado pela rapidez com que a lava e o fogo
saíram e entraram nesse vulcão humano, ecoou na sala.
— Por essa você não esperava, senhor beleguim — continuou o forçado
olhando para o famoso diretor da polícia judiciária.
— Ande, vamos tirando a roupa — disse-lhe o homem da pequena Rue Sainte-
Anne com uma expressão cheia de desprezo.
— Por quê? — perguntou Collin. — Há senhoras. Não nego nada, e me rendo.
Fez uma pausa e olhou para a plateia como um orador que vai dizer coisas
surpreendentes.
— Escreva, papai Lachapelle — disse dirigindo-se a um velhotinho de cabelo
branco que se sentara na ponta da mesa depois de ter tirado de uma pasta a
ordem de prisão. — Reconheço ser Jacques Collin, vulgo Engana-a-Morte,
condenado a vinte anos de cadeia; e acabo de provar que não roubei meu
apelido. Se eu tivesse ao menos levantado a mão — disse aos pensionistas —,
esses três dedos-duros aí espalhariam todo o meu sangue no piso doméstico de
mamãe Vauquer. Esses engraçadinhos se metem a armar ciladas!
A sra. Vauquer se sentiu mal ao ouvir essas palavras.
— Meus Deus! Isso é deixar doente; e eu, que ontem estava no Gaîté com ele
— disse a Sylvie.
— Filosofia, mamãe — continuou Collin —, é uma desgraça ter ido ao meu
camarote ontem, no Gaîté? — exclamou. — A senhora é melhor que nós?
Temos menos infâmia nos ombros do que vocês têm no coração, vocês,
membros flácidos de uma sociedade gangrenada: o melhor de vocês não
resistiria a mim.
Seus olhos pararam em Rastignac, a quem dirigiu um sorriso gracioso que
contrastava singularmente com a rude expressão de seu rosto.
— Nosso negocinho continua valendo, meu anjo, em caso de aceitação, porém!
Está sabendo, não está?
E cantou:

Minha Fanchette é um encanto


Em sua simplicidade.

— Não fique constrangido — continuou —, sei fazer minhas cobranças.


Temem-me muito para me passarem para trás , a mim!
A prisão de trabalhos forçados, com seus costumes e sua linguagem, com suas
bruscas transições entre o divertido e o horrível, sua pavorosa grandeza, sua
familiaridade, sua baixeza, foi de repente representada naquela interpelação e
por aquele homem, que não foi mais um homem, mas o tipo de toda uma nação
degenerada, de um povo selvagem e lógico, brutal e ágil. Num instante Collin
tornou-se um poema infernal em que se pintaram todos os sentimentos humanos,
menos um, o do arrependimento. Seu olhar era o do arcanjo decaído que quer a
guerra o tempo todo. Rastignac baixou os olhos, aceitando esse parentesco
criminal como uma expiação de seus maus pensamentos.
— Quem me traiu? — perguntou Collin passando seu olhar terrível pela
plateia. E detendo-o na srta. Michonneau: — Foi você — disse-lhe —, sua velha
alcagueta, você me provocou uma falsa congestão, sua curiosa! Dizendo duas
palavras eu poderia fazer cortar o seu pescoço daqui a uma semana. Perdoo-a,
sou cristão. Aliás, não foi você que me vendeu. Mas quem? Ah! Ah! Vocês estão
vasculhando lá em cima — exclamou ao ouvir os oficiais da polícia judiciária
que abriam seus armários e pegavam seus pertences. — Os passarinhos saíram
do ninho, voaram ontem. E vocês nada saberão. Meus livros de registro estão
aqui — disse batendo na testa. — Agora sei quem me vendeu. Só pode ser esse
patife do Fio-de-Seda. Não é verdade, papai agarrador? — disse ao chefe de
polícia. — Isso combina bem demais com a permanência de nossas cédulas
bancárias lá em cima. Acabou-se, meus pequenos dedos-duros. Quanto a Fio-de-
Seda, vai ser apagado em quinze dias, mesmo que vocês o fizessem ser vigiado
por toda a sua polícia. O que deram a essa Michonnette? — perguntou aos
homens da polícia —, alguns milhares de escudos? Eu valia mais que isso,
Ninon cariada, Pompadour maltrapilha, Vênus do Père-Lachaise. 58 Se você
tivesse me avisado, teria ganhado seis mil francos. Ah! você não desconfiava,
velha vendedora de carne, sem o que teria me dado a preferência. Sim, eu teria
lhe dado esse dinheiro para evitar uma viagem que me contraria e que me faz
perdê-lo — disse enquanto lhe passavam as algemas. — Essa gente aí vai ter o
maior prazer em me arrastar um tempo infinito para me atazanar. Se me
mandassem imediatamente para as galés, eu logo estaria entregue aos meus
afazeres, apesar de nossos curiosinhos do Quai des Orfèvres. Lá, todos vão virar
a alma pelo avesso para fazer com que o general deles, esse bom Engana-a-
Morte, consiga se evadir! Há algum de vocês que possua, como eu, a riqueza de
mais de dez mil irmãos prontos para fazer tudo por vocês? — perguntou com
orgulho. — Tem coisa boa aqui — disse batendo no coração —; nunca traí
ninguém! Sabe, alcagueta, veja-os — disse dirigindo-se à solteirona. — Eles
olham para mim aterrorizados, mas você lhes dá engulhos de nojo. É o que você
merece.
Fez uma pausa contemplando os pensionistas.
— Vocês são umas bestas! Nunca viram um forçado? Um forçado da estirpe de
Collin, aqui presente, é um homem menos covarde que os outros, e que protesta
contra as profundas decepções do contrato social, como diz Jean-Jacques, de
quem me glorifico ser aluno. Em suma, estou sozinho contra o governo com seu
monte de tribunais, de guardas, de orçamentos, e os tapeio.
— Diachos! — disse o pintor. — Ele é bonito à beça para ser desenhado.
— Diga-me, donzel do Senhor Carrasco, governador da Viúva (nome cheio de
terrível poesia que os forçados dão à guilhotina) — acrescentou virando-se para
o chefe da polícia de segurança —, seja bom menino, diga-me se foi Fio-de-Seda
que me vendeu! Não gostaria que ele pagasse por outro, não seria justo.
Nesse momento os agentes que tinham aberto tudo e inventoriado tudo no
quarto dele entraram e falaram baixinho ao chefe da expedição. O mandado de
prisão estava cumprido.
— Senhores — disse Collin dirigindo-se aos pensionistas —, eles vão me
levar. — Vocês todos foram muito amáveis comigo durante minha temporada
aqui, serei grato por isso. Recebam meu adeus. E me permitirão enviar-lhes figos
da Provence.
Deu uns passos e virou-se para olhar Rastignac.
— Adeus, Eugène — disse com voz suave e triste que contrastava
singularmente com o tom brusco de seus discursos. — Se ficar em apuros,
deixo-lhe um amigo dedicado.
Apesar de suas algemas, conseguiu se pôr em guarda, fez um sinal de mestre
de armas e gritou:
— Um, dois! — e ficou em posição de ataque. — Em caso de desgraça, dirija-
se para cá. Homem e dinheiro, pode dispor de tudo.
Esse singular personagem deu um toque bastante burlesco a essas últimas
palavras para que elas não pudessem ser compreendidas senão por Rastignac e
por ele. Quando a casa foi evacuada pelos guardas, soldados e agentes da polícia,
Sylvie, que esfregava vinagre nas têmporas da patroa, olhou para os pensionistas
espantados.
— Pois é — disse —, apesar de tudo, era um bom homem.
Essa frase quebrou o encanto que produziam em cada um a afluência e a
diversidade dos sentimentos excitados por aquela cena. Nesse momento, os
pensionistas, depois de terem se examinado entre si, viram todos ao mesmo
tempo a srta. Michonneau franzina, seca e fria tanto quanto uma múmia,
agachada perto da estufa, de olhos baixos, como se estivesse temendo que a
sombra de sua viseira não fosse bastante forte para esconder a expressão de seu
olhar. Essa figura, que havia tanto tempo lhes era antipática, foi de repente
explicada. Um murmúrio, que por sua perfeita unidade de som traía uma
repugnância unânime, ressoou surdamente. A srta. Michonneau o ouviu e
permaneceu onde estava. Bianchon foi o primeiro a se inclinar para seu vizinho.
— Levanto acampamento se essa mulher tiver de continuar a jantar conosco —
disse a meia-voz.
Num piscar de olhos, todos, menos Poiret, aprovaram a proposta do estudante
de medicina, que, contando com a adesão geral, adiantou-se até o velho
pensionista.
— O senhor, que está especialmente ligado à srta. Michonneau — disse-lhe —,
fale com ela, faça-a compreender que deve ir embora neste exato instante.
— Neste exato instante? — repetiu Poiret, espantado.
Depois foi para perto da velha, e disse-lhe ao ouvido algumas palavras.
— Mas meu aluguel está pago, estou aqui por causa de meu dinheiro, como
todo mundo — ela disse lançando um olhar de víbora para os pensionistas.
— Não seja por isso, nós nos cotizaremos para devolvê-lo — disse Rastignac.
— O cavalheiro apoia Collin — ela respondeu lançando para o estudante um
olhar venenoso e interrogativo —, não é difícil saber por quê.
Diante dessas palavras, Eugène pulou como para se precipitar em cima da
solteirona e estrangulá-la. Esse olhar, cujas perfídias ele compreendeu, acabava
de jogar uma terrível luz em sua alma.
— Mas deixa-a para lá — exclamaram os pensionistas.
Rastignac cruzou os braços e ficou mudo.
— Acabemos com a srta. Judas — disse o pintor dirigindo-se à sra. Vauquer.
— Senhora, se não puser na porta a Michonneau, todos nós deixaremos o seu
barraco, e diremos por todo lado que aqui só há espiões e forçados. Caso
contrário, todos nós nos calaremos sobre esse acontecimento, que, no final das
contas, poderia acontecer nas melhores sociedades, até que os condenados às
galés sejam marcados na testa e que os proíbam de se disfarçar de burguês de
Paris e de bancarem tão ingenuamente os farsantes, como todos são.
Diante desse discurso, a sra. Vauquer recuperou milagrosamente a saúde,
endireitou-se, cruzou os braços, abriu os olhos claros e sem aparência de
lágrimas.
— Mas, meu caro senhor, então quer a ruína de minha casa? Veja o sr.
Vautrin… Oh! meu Deus — disse interrompendo-se —, não posso me impedir
de chamá-lo por seu nome de homem honesto! Veja — prosseguiu —, um
apartamento vazio, e querem que eu fique com dois a mais para alugar numa
época em que todo mundo está alojado.
— Senhores, peguemos os nossos chapéus, e vamos jantar na Place Sorbonne,
no Flicoteaux — disse Bianchon.
A sra. Vauquer calculou com um único olhar a decisão mais vantajosa, e andou
até a srta. Michonneau.
— Vamos, minha querida lindinha, você não deseja a morte de meu
estabelecimento, não é? Veja a que situação extrema me reduzem esses
senhores; por esta noite, suba para o seu quarto.
— De jeito nenhum, de jeito nenhum — gritaram os pensionistas —, queremos
que ela saia imediatamente.
— Mas ela não jantou, essa pobre senhorita — disse Poiret num tom lastimoso.
— Irá jantar onde quiser — gritaram várias vozes.
— No olho da rua, essa dedo-duro!
— No olho da rua, os dedos-duros!
— Senhores — exclamou Poiret, que se alçou de repente à altura da coragem
que o amor confere aos carneiros —, respeitem uma pessoa do sexo frágil!
— Os dedos-duros não têm sexo — disse o pintor.
— Tremendo sexorama!
— No olhorama da rua!
— Senhores, isso é indecente. Quando se mandam as pessoas embora, é
preciso respeitar as regras. Nós pagamos, nós ficamos — disse Poiret cobrindo-
se com o boné e colocando-se numa cadeira ao lado da srta. Michonneau, a
quem a sra. Vauquer aconselhava.
— Malvado — disse-lhe o pintor com um ar cômico —, seu malvadinho, vá!
— Vamos, se os senhores não forem, nós é que iremos — disse Bianchon.
E os pensionistas fizeram em massa um movimento rumo ao salão.
— Senhorita, mas o que quer afinal? — exclamou a sra. Vauquer. — Estou
arruinada. Não pode ficar, vão chegar a atos de violência.
A srta. Michonneau se levantou.
“Ela vai embora! — Ela não vai embora! — Ela vai embora! — Ela não vai
embora!” Essas palavras ditas alternadamente e a hostilidade dos comentários
que começavam a fazer a seu respeito obrigaram a srta. Michonneau a partir,
depois de algumas estipulações feitas baixinho com a hospedeira.
— Vou para a pensão da sra. Buneaud — ela disse com ar ameaçador.
— Vá para onde quiser, senhorita — disse a sra. Vauquer, que viu uma cruel
injúria na escolha que fazia de uma casa com a qual ela rivalizava, e que
consequentemente lhe era odiosa. — Vá para a Buneaud, terá um vinho que faz
as cabras dançarem e pratos feitos com restos!
Os pensionistas se puseram em duas filas, no maior silêncio. Poiret olhou tão
ternamente para a srta. Michonneau, mostrou-se tão ingenuamente indeciso, sem
saber se devia segui-la ou ficar, que os pensionistas, felizes com a partida da
srta. Michonneau, começaram a rir entreolhando-se.
— Xô, xô, xô, Poiret — gritou-lhe o pintor. — Vamos, upa, upa!
O empregado do museu começou a cantar comicamente este início de uma
conhecida romança:

Partindo para a Síria


O jovem e belo Dunois …

— Vamos, ora, você está morrendo de vontade, trahit sua quemque voluptas —
disse Bianchon.
— Cada um segue a sua tradução livre e particular de Virgílio — disse o
repetidor. 59
Como a srta. Michonneau tinha feito o gesto de pegar o braço de Poiret, ao
olhá-lo, ele não conseguiu resistir a esse apelo e foi dar seu apoio à velha.
Aplausos irromperam, e houve uma explosão de risos.
— Bravo, Poiret!
— Esse velho Poiret!
— Apolo-Poiret!
— Marte-Poiret!
— Corajoso Poiret!
Nesse momento, um mensageiro entrou, entregou uma carta à sra. Vauquer,
que escorregou na cadeira, depois de lê-la.
— Mas só falta queimarem minha casa, os raios estão caindo. O Taillefer filho
morreu às três horas. Estou sendo um bocado castigada por ter desejado bem a
essas senhoras em prejuízo desse pobre rapaz. A sra. Couture e Victorine me
pedem de volta seus pertences, vão ficar na casa do pai dela. O sr. Taillefer
permite à filha manter a viúva Couture como dama de companhia. Quatro
apartamentos desocupados, cinco pensionistas a menos!
Sentou-se e pareceu prestes a chorar.
— A desgraça entrou em minha casa — exclamou.
As rodas de um carro que parava ecoaram de repente na rua.
— Mais alguma desgraceira — disse Sylvie.
Goriot mostrou de repente uma fisionomia brilhante e colorida de felicidade,
que podia fazer crer em sua regeneração.
— Goriot de fiacre — disseram os pensionistas —, o fim do mundo chegou!
O homem foi direto até Eugène, que permanecia pensativo num canto, e
pegou-o pelo braço:
— Venha — disse-lhe com ar alegre.
— Então não sabe o que está acontecendo? — perguntou-lhe Eugène. —
Vautrin era um forçado que acabam de prender, e o Taillefer filho morreu.
— Pois bem, e o que temos a ver com isso? — respondeu o pai Goriot. —
Janto com minha filha, na casa de vocês, está entendendo? Ela o espera, venha!
Puxou tão violentamente Rastignac pelo braço que o fez andar à força e
pareceu sequestrá-lo, como se fosse sua amante.
— Jantemos — gritou o pintor.
Nesse momento cada um pegou sua cadeira e sentou-se à mesa.
— Decididamente — disse a gorda Sylvie —, hoje só dá desgraça, meu
ensopado de carneiro grudou na panela. Arre! vocês vão comê-lo queimado,
azar!
A sra. Vauquer não teve coragem de dizer uma palavra ao ver apenas dez
pessoas em vez de dezoito em torno de sua mesa; mas todos tentaram consolá-la
e alegrá-la. Se primeiro os externos conversaram sobre Vautrin e os
acontecimentos do dia, logo obedeceram ao jeito sinuoso da conversa e se
puseram a falar de duelos, das galés, da justiça, das leis a refazer, das prisões.
Depois se encontraram a mil léguas de Jacques Collin, de Victorine e de seu
irmão. Embora fossem apenas dez, gritaram como vinte, e pareciam ser mais
numerosos que de costume; foi a única diferença que houve entre aquele jantar e
o da véspera. A despreocupação habitual desse mundo egoísta que, no dia
seguinte, deveria ter nos fatos cotidianos de Paris outra presa a devorar levou a
melhor, e a própria sra. Vauquer se deixou acalmar pela esperança, que se serviu
da voz da grossa Sylvie.
Esse dia deveria ser até de noite uma fantasmagoria para Eugène, que, apesar
da força de seu caráter e da bondade de seu espírito, não sabia como classificar
suas ideias quando se viu dentro do fiacre, ao lado do pai Goriot, cujos discursos
traíam uma alegria inabitual e ecoavam em seu ouvido, depois de tantas
emoções, como as palavras que ouvimos em sonho.
— Acabou-se o que aconteceu de manhã. Vamos nós três jantar juntos, juntos!
Entende? Faz quatro anos que não jantei com minha Delphine, minha pequena
Delphine. Vou tê-la para mim durante uma noite toda. Estamos na sua casa
desde hoje de manhã. Trabalhei como um operário, em mangas de camisa. Eu
ajudava a carregar os móveis. Ah! Ah! não sabe como ela é boazinha à mesa, vai
cuidar de mim: “Tome, papai, coma isto, está bom”. E então nem vou conseguir
comer. Oh! faz tanto tempo que não me vejo sossegado ao lado dela como
vamos estar!
— Mas — disse-lhe Eugène —, então hoje o mundo está de cabeça para baixo?
— De cabeça para baixo? — disse o pai Goriot. — Mas em nenhuma época o
mundo esteve tão bem. Só vejo rostos alegres nas ruas, pessoas que se dão
apertos de mão e que se beijam; pessoas felizes como se todas fossem jantar na
casa de suas filhas, papar um bom jantarzinho que ela encomendou na minha
frente ao chefe do Café des Anglais. Mas, para quê! Perto dela o fel seria doce
como o mel.
— Tenho a impressão de voltar à vida — disse Eugène.
— Mas ande logo, cocheiro — gritou o pai Goriot abrindo o vidro da frente. —
Ande mais depressa, lhe darei cem vinténs para beber se me levar em dez
minutos lá onde você sabe.
Ao ouvir essa promessa, o cocheiro atravessou Paris com a rapidez de um raio.
— Ele não está bom, esse cocheiro — dizia o pai Goriot.
— Mas aonde afinal está me levando? — perguntou-lhe Rastignac.
— À sua casa — disse o pai Goriot.
O carro parou na Rue d’Artois. O homenzinho desceu primeiro e jogou dez
francos para o cocheiro, com a prodigalidade de um viúvo que, no paroxismo de
seu prazer, não presta atenção em nada.
— Vamos subir — disse a Rastignac fazendo-o atravessar um pátio e levando-
o à porta de um apartamento situado no terceiro andar, nos fundos de um prédio
novo e de bela aparência. O pai Goriot não precisou tocar a campainha. Thérèse,
a camareira da sra. de Nucingen, lhes abriu a porta. Eugène viu-se num delicioso
apartamento de rapaz, composto de uma antessala, um salãozinho, um quarto de
dormir e um gabinete com vista para um jardim. No salãozinho, cuja mobília e
decoração podiam suportar a comparação com o que havia de mais bonito, de
mais gracioso, avistou, à luz das velas, Delphine, que se levantou de uma
conversadeira, ao lado da lareira, pôs a tela de proteção na frente do fogo e lhe
disse, com uma entonação e voz carregada de ternura:
— Então foi preciso ir buscá-lo, senhor que não entende nada.
Thérèse saiu. O estudante pegou Delphine em seus braços, apertou-a
intensamente e chorou de alegria. Esse último contraste entre o que ele via e o
que acabava de ver, num dia em que tantas irritações tinham cansado seu
coração e sua cabeça, foi determinante em Rastignac para um acesso de
sensibilidade nervosa.
— Eu bem sabia que ele a amava — disse baixinho o pai Goriot à filha
enquanto Eugène, abatido, jazia na conversadeira sem conseguir pronunciar uma
palavra nem se dar conta ainda da maneira como este último golpe de mágica
fora feito.
— Mas venha ver — disse-lhe a sra. de Nucingen pegando-o pela mão e
levando-o para um quarto cujos tapetes, móveis e mínimos detalhes lhe
lembraram, em proporções menores, o de Delphine.
— Falta uma cama — disse Rastignac.
— Sim, senhor — ela disse enrubescendo e apertando-lhe a mão.
Eugène olhou para ela e entendeu, jovem ainda, tudo o que havia de pudor
verdadeiro num coração de mulher apaixonada.
— A senhora é uma dessas criaturas que devemos adorar sempre — ele lhe
disse ao ouvido. — Sim, ouso lhe dizer, já que nos entendemos tão bem: quanto
mais profundo e sincero é o amor, mais deve ser velado, misterioso. Não
revelemos nosso segredo a ninguém.
— Oh! eu não serei ninguém — disse o pai Goriot resmungando.
— O senhor sabe que é nós , ora…
— Ah! era isso que eu queria. Vocês não vão prestar atenção em mim, não é?
Irei, voltarei como um bom espírito que está em toda parte, e que sabemos estar
ali sem vê-lo. Pois bem, Delphinette, Ninette, Dedel! Eu não estava certo ao lhe
dizer: “Tem um lindo apartamento na Rue d’Artois, vamos mobiliá-lo para
ele!”? Você não queria. Ah! Sou eu o autor da sua alegria, como sou o autor dos
seus dias. Os pais devem sempre dar para serem felizes. Dar sempre, é o que faz
com que sejamos pai.
— Como? — disse Eugène.
— Sim, ela não queria, temia que dissessem bobagens, como se o mundo
valesse a felicidade! Mas todas as mulheres sonham em fazer o que ela faz…
O pai Goriot falava sozinho, a sra. de Nucingen levara Rastignac para o
gabinete, onde o ruído de um beijo ecoou, por mais levemente que tenha sido
dado. Esse aposento estava no mesmo nível da elegância do apartamento, no
qual, aliás, nada faltava.
— Adivinhamos bem os seus desejos? — disse ela voltando para o salão a fim
de se pôr à mesa.
— Sim, bem demais — disse ele. — Infelizmente, sinto que esse luxo tão
completo, esses lindos sonhos realizados, todas as poesias de uma vida jovem,
elegante, são demais e não os mereço; mas não posso aceitá-los da senhora, e
ainda sou muito pobre para…
— Ah! Ah! já está me resistindo — ela disse com um arzinho de autoridade
zombeteiro, fazendo um desses lindos muxoxos que as mulheres fazem quando
querem escarnecer de algum escrúpulo para melhor dissipá-lo.
Eugène se questionara com muita solenidade durante aquele dia, e a prisão de
Vautrin, mostrando-lhe a profundidade do abismo em que ele quase rolara,
acabava de corroborar muito bem seus sentimentos nobres e sua delicadeza para
que cedesse a essa acariciante refutação de suas ideias generosas. Uma profunda
tristeza tomou conta dele.
— Como! — disse a sra. de Nucingen. — Recusaria? Sabe o que significa uma
recusa dessas? Duvida do futuro, não ousa ligar-se a mim! Então tem medo de
trair meu afeto? Se me ama, se eu… o amo, por que recua diante de obrigações
tão tênues? Se soubesse o prazer que tive em cuidar de todo esse apartamento de
rapaz, não hesitaria, e me pediria perdão. Eu tinha dinheiro que era seu, e o
empreguei bem, é só isso. O senhor imagina ser grande, e é pequeno. Pede bem
mais… (Ah! — disse ela captando um olhar de paixão em Eugène) e fica cheio
de dedos por umas bobagens. Se não me ama, oh!, sim, não aceite. Meu destino
está contido numa palavra. Fale! Mas, meu pai, dê então a ele algumas boas
razões — acrescentou virando-se para o pai, depois de uma pausa. — Será que
ele acredita que sou menos suscetível quanto à nossa honra?
O pai Goriot exibia o sorriso fixo de um teriaki 60 ao ver, ao ouvir aquela linda
rusga.
— Criança! Você está no começo da vida — ela recomeçou, pegando a mão de
Eugène — e encontra uma barreira intransponível diante de muitas pessoas, a
mão de uma mulher lhe abre caminho, e você recua! Mas vencerá, fará uma
brilhante fortuna, o sucesso está escrito em sua bela fronte. Não poderá então me
devolver o que lhe empresto hoje? Antigamente as damas não davam a seus
cavaleiros armaduras, espadas, capacetes, cotas de malha, cavalos, a fim de que
pudessem ir combater em nome delas nos torneios? Pois bem, Eugène, as coisas
que lhe ofereço são as armas da época, ferramentas necessárias a quem quer ser
alguma coisa. É bonito o sótão em que você se encontra, se se parece com o
quarto de papai. Mas afinal, então não vamos jantar? Quer me entristecer?
Responda então? — disse sacudindo sua mão. — Meu Deus, papai, decida-o
logo, ou vou sair e não o reverei nunca mais.
— Vou fazê-lo se decidir — disse o pai Goriot saindo de seu êxtase. — Meu
caro sr. Eugène, vai pedir dinheiro emprestado aos judeus, não vai?
— Não há outro jeito — ele disse.
— Bem, agora está amarrado — recomeçou o bom homem pegando uma
carteira ordinária de couro já bem gasto. — Fiz-me de judeu, paguei todas as
faturas, ei-las. O senhor não deve um centavo por tudo o que se encontra aqui.
Isso não perfaz uma grande quantia, no máximo cinco mil francos. Empresto-os!
Não vai me recusar, não sou uma mulher. Vai me fazer um reconhecimento de
dívida num pedaço de papel e me devolverá mais tarde.
Algumas lágrimas rolaram ao mesmo tempo dos olhos de Eugène e de
Delphine, que se fitaram com surpresa. Rastignac estendeu a mão ao bom
homem e a apertou.
— Pois é, ora essa! Vocês não são meus filhos? — disse Goriot.
— Mas, meu pobre pai — disse a sra. de Nucingen —, como foi então que o
senhor fez?
— Ah! chegamos ao ponto — ele respondeu. — Quando convenci você a
trazê-lo para perto, quando vi você comprando coisas como se fosse uma noiva,
pensei cá comigo: “Ela vai se ver em apuros!”. O advogado pretende que o
processo a mover contra o seu marido, para fazê-lo devolver sua fortuna, durará
mais de seis meses. Bem. Vendi minhas mil trezentas e cinquenta libras de renda
perpétua; consegui, com quinze mil francos, mil e duzentos francos de rendas
vitalícias bem hipotecadas, e paguei aos seus fornecedores com o resto do
capital, meus filhos. Quanto a mim, tenho lá em cima um quarto de cinquenta
escudos por ano, posso viver como um príncipe com quarenta soldos por dia, e
ainda me sobrará troco. Não gasto nada, quase não preciso de roupas. Faz quinze
dias que estou rindo comigo mesmo ao pensar: “Como eles vão ser felizes!”.
Pois bem, não estão felizes?
— Oh, papai, papai! — disse a sra. de Nucingen pulando sobre o pai, que a
recebeu em seu colo. Ela o cobriu de beijos, ele lhe acariciou as faces com seus
cabelos louros e derramou lágrimas sobre aquele belo rosto feliz, brilhante. —
Papai querido, o senhor é um bom pai! Não, não existem sob o céu dois pais
como o senhor. Eugène já gostava muito de si, como será agora?
— Mas, meus filhos — disse o pai Goriot, que fazia dez anos não sentia o
coração de sua filha bater contra o seu —, mas, Delphinette, então quer me
matar de alegria? Meu pobre coração está se partindo. Bem, sr. Eugène, já
estamos quites!
E o velho apertou a filha com um abraço tão selvagem, tão delirante que ela
disse:
— Ai, está me machucando!
— Estou machucando! — ele disse, empalidecendo. Olhou para ela com um ar
sobre-humano de dor. Para bem pintar a fisionomia desse Cristo da Paternidade,
seria preciso ir buscar comparações nas imagens que os príncipes da palheta
inventaram para pintar a paixão sofrida em benefício dos mundos pelo Salvador
dos homens. O pai Goriot beijou muito suavemente a cintura que seus dedos
tinham apertado demais. — Não, não, não a machuquei — continuou,
questionando-a com um sorriso —, foi você que me machucou com seu grito.
Isso custa mais caro — disse ao ouvido da filha, beijando-a com precaução —,
mas é preciso agarrá-lo, sem o que ele se zangaria.
Eugène estava petrificado pela inesgotável dedicação daquele homem, e o
contemplava expressando essa ingênua admiração que, na juventude, é o mesmo
que fé.
— Serei digno de tudo isto — exclamou.
— Ó, meu Eugène, é bonito o que acaba de dizer. — E a sra. de Nucingen
beijou o estudante na testa.
— Por você, ele recusou a srta. Taillefer e seus milhões — disse o pai Goriot.
— Sim, ela o amava, a pequena; e com o irmão morto, ei-la rica como Creso.
— Oh! Por que dizer isso? — exclamou Rastignac.
— Eugène — disse-lhe Delphine ao ouvido —, agora sinto um remorso por
esta noite. Ah! vou amá-lo! E para sempre.
— Eis o mais belo dia que tive desde o casamento de vocês — exclamou o pai
Goriot. — O bom Deus pode me fazer sofrer o quanto quiser, desde que não seja
por vocês, e pensarei: “Em fevereiro deste ano fui por um momento mais feliz
que os homens podem ser durante toda sua vida”. Olhe para mim, Fifine! —
disse à filha. — Ela é bem bonita, não é? Mas me diga, já encontrou muitas
mulheres que tenham as lindas cores e a covinha que ela tem? Não, não é
mesmo? Pois é, fui eu que fiz esse amor de mulher. De agora em diante, sendo
feliz por seu intermédio, ela se tornará mil vezes melhor. Posso ir para o inferno,
meu vizinho — disse —, se precisar da minha parte de paraíso eu lhe darei.
Vamos comer, vamos comer — prosseguiu, não sabendo mais o que estava
dizendo —, tudo isto é nosso.
— Esse pobre pai!
— Se soubesse, minha filha — ele disse levantando-se e indo até ela, pegando-
lhe a cabeça e beijando-a entre as tranças de seu cabelo —, como consegue me
fazer feliz por tão pouco! Venha me ver de vez em quando, estarei lá em cima,
você só terá de dar um passo. Prometa-me, diga!
— Prometo, pai querido.
— Diga de novo.
— Prometo, meu bom pai.
— Cale-se, eu a faria dizer cem vezes se eu me escutasse. Vamos jantar.
A noite inteira foi empregada em criancices, e o pai Goriot não foi quem se
mostrou o menos louco dos três. Deitava-se aos pés da filha para beijá-los;
olhava muito tempo para os olhos dela; esfregava a cabeça contra o vestido dela;
por fim, fazia loucuras como teria feito o amante mais jovem e mais carinhoso.
— Está vendo? — perguntou Delphine a Eugène —, quando meu pai está
conosco tenho de ser inteiramente dele. No entanto, às vezes será bem
constrangedor.
Eugène, que já sentira várias vezes ímpetos de ciúme, não podia censurar essas
palavras, que encerravam o princípio de todas as ingratidões.
— E quando o apartamento ficará pronto? — perguntou Eugène olhando em
torno do quarto. — Então teremos de nos separar esta noite?
— Sim, mas amanhã virá jantar comigo — ela disse com ar sutil. — Amanhã é
dia do Italiens.
— Quanto a mim, irei na plateia — disse o pai Goriot.
Era meia-noite. O carro da sra. de Nucingen estava esperando. O pai Goriot e o
estudante retornaram à Casa Vauquer conversando sobre Delphine com um
entusiasmo crescente que produziu um curioso combate de expressões entre
aquelas violentas paixões. Eugène não conseguia esconder de si mesmo que o
amor do pai, que nenhum interesse pessoal manchava, esmagava o seu pela
persistência e extensão. Para o pai, o ídolo era sempre belo e puro, e sua
adoração crescia tanto com todo o passado como com o futuro. Encontraram a
sra. Vauquer ao lado da estufa, entre Sylvie e Christophe. A velha proprietária
estava ali como Mário sobre as ruínas de Cartago. 61 Esperava os dois únicos
pensionistas que lhe restavam, consolando-se com Sylvie. Embora Lord Byron
tenha atribuído lamentações muito bonitas a Tasso, elas estão bem longe da
profunda verdade das que escapavam da sra. Vauquer.
— Então só serão três xícaras de café para preparar amanhã de manhã, Sylvie.
Ai, ai! Minha casa deserta, não é de partir o coração? O que é a vida sem meus
pensionistas? Rigorosamente nada. Eis minha casa desmobiliada de seus
homens. A vida está toda nos móveis. Que fiz eu ao céu para ter atraído todos
esses desastres? Nossas provisões de vagens e batatas são para vinte pessoas. A
polícia na minha pensão! Então só vamos comer batatas! Então vou demitir
Christophe!
O rapaz da Savoia, que dormia, acordou de repente e disse:
— Senhora?
— Pobre rapaz! É que nem um cão — disse Sylvie.
— Uma estação morta, todo mundo está alojado. De onde me cairão
pensionistas? Perderei a cabeça. E essa sibila da Michonneau que me raptou o
Poiret! O que é que afinal ela fazia para esse homem ter se ligado a ela e a
seguido como um totó?
— Ah, nossa! — disse Sylvie balançando a cabeça —, essas solteironas, essas
aí conhecem todas as espertezas.
— Esse pobre sr. Vautrin que eles transformaram num forçado — prosseguiu a
viúva —, pois é, Sylvie, é mais forte que eu, ainda não acredito. Um homem
alegre desse jeito, que tomava café com aguardente a quinze francos por mês, e
que pagava religiosamente!
— E que era generoso! — disse Christophe.
— Tem um erro aí — disse Sylvie.
— Que nada, ele mesmo confessou — continuou a sra. Vauquer. — E dizer
que todas essas coisas aí aconteceram na minha casa, num bairro onde não passa
nem um gato! Palavra de mulher honesta, estou sonhando! Pois, veja você,
vimos Luís XVI ter seu acidente, vimos o imperador cair, o vimos voltar e cair de
novo, tudo isso estava na ordem das coisas possíveis; ao passo que não há contra
as pensões burguesas essas probabilidades: é possível ficar sem rei, mas sempre
se tem que comer; e quando uma mulher honesta, De Conflans em solteira, serve
jantar com todas as boas coisas, a não ser que chegue o fim do mundo… Mas é
isso, é o fim do mundo.
— E pensar que a srta. Michonneau, que lhe causa todo esse problema, vai
receber, pelo que dizem, mil escudos de renda — exclamou Sylvie.
— Nem me fale nisso, ela não passa de uma facínora! — disse a sra. Vauquer.
— E vai ficar com a Buneaud, para completar! Mas é capaz de tudo, deve ter
feito horrores, em sua época matou, roubou. Devia ir para a prisão das galés no
lugar desse pobre querido homem…
Nesse instante Eugène e o pai Goriot tocaram a campainha.
— Ah! Eis meus dois fiéis — disse a viúva suspirando.
Os dois fiéis, que tinham apenas uma levíssima lembrança dos desastres da
pensão burguesa, anunciaram sem cerimônia à anfitriã que iam morar na
Chaussée d’Antin.
— Ah! Sylvie — disse a viúva —, este era meu último trunfo. Os senhores me
deram o golpe de misericórdia! Isso me atingiu no estômago. Estou com uma
bola aqui. É o tipo do dia que me põe mais dez anos na cabeça! Vou
enlouquecer, palavra de honra! Que fazer das vagens? Ah! bem, se eu ficar
sozinha aqui, você irá embora amanhã, Christophe. Adeus, senhores, boa noite.
— Mas o que ela tem? — perguntou Eugène a Sylvie.
— Virgem! É que todo mundo foi embora por causa dos negócios. Isso lhe
perturbou a cabeça. Arre, a estou ouvindo chorar. Vai fazer bem a ela abrir o
berreiro . Essa aí, é a primeira vez que esvazia os olhos desde que trabalho para
ela.
No dia seguinte a sra. Vauquer tinha, segundo sua expressão, escutado a voz
da razão . Se pareceu aflita como uma mulher que perdera todos os pensionistas,
e cuja vida estava transtornada, mantinha todo o bom senso e mostrou o que era
a verdadeira dor, uma dor profunda, a dor causada pelo interesse ofendido, pelos
hábitos desfeitos. Sem dúvida, o olhar que um apaixonado lança para os lugares
habitados por sua amante, ao deixá-los, não é mais triste do que foi o da sra.
Vauquer para sua mesa vazia. Eugène a consolou dizendo-lhe que Bianchon,
cuja residência terminava dali a alguns dias, iria com certeza substituí-lo; que o
empregado do museu várias vezes manifestara o desejo de ter o apartamento da
sra. Couture, e que em poucos dias ela teria refeito sua clientela.
— Deus o ouça, meu caro senhor! Mas a desgraça está aqui. Antes de dez dias
a morte chegará, o senhor vai ver — disse-lhe dando um olhar lúgubre para a
sala de jantar. — Quem ela pegará?
— Ainda bem que estamos de mudança — disse baixinho Eugène ao pai
Goriot.
— Senhora — disse Sylvie acorrendo assustada —, faz três dias que não vi
Mistigris.
— Ah! bem, se meu gato morreu, se nos deixou, eu…
A pobre viúva não terminou, juntou as mãos e jogou-se no encosto de sua
poltrona, prostrada por esse terrível prognóstico.
Por volta do meio-dia, hora em que os carteiros chegavam ao bairro do
Panthéon, Eugène recebeu uma carta elegantemente envelopada, lacrada com as
armas de Beauséant. Continha um convite dirigido ao sr. e à sra. de Nucingen
para o grande baile anunciado havia um mês, e que devia se realizar na casa da
viscondessa. A esse convite estava anexado um bilhetinho para Eugène:

Pensei, senhor, que se encarregaria com prazer de ser o intérprete de meus


sentimentos junto à sra. de Nucingen; envio-lhe o convite que me pediu, e
ficarei encantada em conhecer a irmã da sra. de Restaud. Assim, traga-me
essa linda pessoa, e faça com que ela não tome toda a sua afeição, pois o
senhor me deve muita, em troca da que lhe tenho.
Viscondessa DE BEAUSÉANT .

“Mas”, pensou Eugène ao reler esse bilhete, “a sra. de Beauséant me diz muito
claramente que não quer saber do barão de Nucingen.” Foi prontamente à casa
de Delphine, feliz em poder lhe proporcionar uma alegria cuja recompensa
decerto receberia. A sra. de Nucingen estava no banho. Rastignac esperou no
budoar, às voltas com impaciências naturais num rapaz ardente e apressado em
tomar posse de uma amante, objeto de um ano de desejos. São emoções que não
se encontram duas vezes na vida dos jovens. A primeira mulher realmente
mulher a quem um homem se afeiçoa, isto é, aquela que se apresenta a ele no
esplendor dos complementos que a sociedade parisiense requer, essa aí nunca
tem rival. O amor em Paris em nada se parece com os outros amores. Ali nem os
homens nem as mulheres deixam-se enganar pelas demonstrações enfeitadas de
lugares-comuns que cada um estende por decência sobre seus afetos
supostamente desinteressados. Nessa terra, uma mulher não deve satisfazer
somente o coração e os sentidos, sabe perfeitamente que tem obrigações maiores
a cumprir com as mil vaidades que compõem a vida. Ali, sobretudo o amor é
essencialmente fanfarrão, insolente, esbanjador, charlatão e faustuoso. Se todas
as mulheres da corte de Luís XIV invejaram a sra. de La Vallière pelo ímpeto de
paixão que fez esse grande príncipe esquecer que cada um de seus punhos de
renda custava mil escudos quando ele os rasgou para facilitar ao duque de
Vermandois sua entrada no palco do mundo, 62 o que se pode pedir ao resto da
humanidade? Sejam jovens, ricos e com títulos de nobreza, sejam melhores
ainda se puderem; quanto mais grãos de incenso levarem para queimar perante o
ídolo, mais este lhes será favorável, se todavia tiverem um ídolo. O amor é uma
religião, e seu culto deve custar mais caro que o de todas as outras religiões; ele
passa prontamente, e passa como uma criança que quer marcar sua passagem por
devastações. O luxo do sentimento é a poesia das mansardas; sem essa riqueza,
ali o que seria do amor? Se há exceções a essas leis draconianas do código
parisiense, encontram-se na solidão, entre as almas que não se deixaram arrastar
pelas doutrinas sociais, que vivem perto de alguma fonte de águas claras,
fugidias mas incessantes; que, fiéis às suas sombras verdes, felizes por ouvirem a
linguagem do infinito, escrita para elas em todas as coisas e que elas encontram
em si mesmas, esperam pacientemente suas asas, lamentando as da terra. Mas
Rastignac, semelhante à maioria dos jovens que, de antemão, provaram suas
grandezas, queria se apresentar todo armado na liça da sociedade; sentira sua
febre, e talvez se sentisse com a força de dominá-la, mas sem conhecer os meios
nem o objetivo dessa ambição. Na falta de um amor puro e sagrado, que
preenche a vida, essa sede pelo poder pode se tornar uma bela coisa; basta
despojar-se de todo interesse pessoal e propor-se a grandeza de um país como
objeto. Mas o estudante ainda não chegara ao ponto de onde o homem é capaz de
contemplar o curso da vida e julgá-la. Até então, sequer sacudira por completo o
encanto das frescas e suaves ideias que envolvem como uma folhagem a
juventude das crianças criadas na província. Hesitara continuamente em cruzar o
rubicão parisiense. Apesar de suas ardentes curiosidades, sempre conservara
alguns preconceitos da vida feliz que o verdadeiro fidalgo leva dentro de seu
castelo. No entanto, seus derradeiros escrúpulos haviam desaparecido na
véspera, quando se viu em seu apartamento. Desfrutando das vantagens
materiais da fortuna, como desfrutava havia muito tempo das vantagens morais
dadas pelo berço, despojara-se de sua pele de homem de província e se instalara
suavemente numa situação de onde descobria um belo futuro. Assim, enquanto
esperava Delphine, indolentemente sentado naquele lindo budoar que se tornava
um pouco o seu, via-se tão longe do Rastignac chegado no ano anterior a Paris
que, espiando-o por um efeito de ótica moral, indagava se naquele momento se
assemelhava a si mesmo.
— A senhora está no quarto — Thérèse foi dizer a ele, o que o fez estremecer.
Encontrou Delphine deitada na conversadeira, ao lado da lareira, fresca,
repousada. Ao vê-la assim estendida sobre montes de musselina, era impossível
não compará-la com essas belas plantas da Índia cujo fruto vem dentro da flor.
— Pois é, aqui estamos — ela disse com emoção.
— Adivinhe o que lhe trago — disse Eugène, sentando-se perto dela e
pegando-lhe o braço para beijar sua mão.
A sra. de Nucingen fez um gesto de alegria ao ler o convite. Virou para Eugène
seus olhos rasos e jogou os braços em seu pescoço para atraí-lo para si, num
delírio de vaidosa satisfação.
— E é ao senhor (você — disse-lhe ao ouvido —, mas Thérèse está no meu
gabinete de toalete, sejamos prudentes!), é ao senhor que devo essa felicidade?
Sim, ouso chamar isso de felicidade. Obtido por seu intermédio, não é mais que
um triunfo de amor-próprio? Ninguém quis me apresentar a essa sociedade.
Talvez neste momento me ache pequena, frívola, leviana como uma parisiense;
mas pense, meu amigo, que estou disposta a tudo lhe sacrificar, e que, se desejo
mais ardentemente que nunca ir ao Faubourg Saint-Germain, é porque está lá.
— Não acha — disse Eugène — que a sra. de Beauséant tem jeito de nos dizer
que não espera ver o barão de Nucingen em seu baile?
— Mas claro — disse a baronesa devolvendo a carta a Eugène. — Essas
mulheres têm o gênio da impertinência. Mas pouco importa, irei. Minha irmã
deve estar lá, sei que prepara uma roupa deliciosa. Eugène — continuou
baixinho —, ela vai lá para dissipar pavorosas suspeitas. Não sabe os rumores
que correm a respeito? Nucingen veio me dizer de manhã que ontem se falava
dela no Círculo, sem o menor constrangimento. A que se agarra, meu Deus, a
honra das mulheres e das famílias! Senti-me atacada, ferida por causa de minha
pobre irmã. Segundo certas pessoas, o sr. de Trailles teria subscrito letras de
câmbio que se elevam a cem mil francos, quase todas vencidas, e pelas quais ele
iria ser processado. Diante desse extremo, minha irmã teria vendido seus
diamantes a um judeu, aqueles belos diamantes que você deve ter visto nela, e
que vêm da mãe da sra. de Restaud. Enfim, há dois dias só se fala disso.
Imagino, então, que Anastasie tenha mandado fazer um vestido de lamê e queira
atrair para si todos os olhares na casa da sra. de Beauséant, aparecendo em todo
o seu brilho e com seus diamantes. Mas não quero ficar abaixo dela. Ela sempre
procurou me esmagar, nunca foi boa para mim, que lhe fazia tantos favores, que
sempre tinha dinheiro para lhe dar quando ela não tinha. Mas deixemos a
sociedade, hoje quero ser muito feliz.
À uma da manhã Rastignac ainda estava na casa da sra. de Nucingen, que,
prodigalizando-o com o adeus dos amantes, esse adeus cheio de alegrias
vindouras, disse com uma expressão de melancolia:
— Sou tão medrosa, tão supersticiosa, dê a meus pressentimentos o nome que
quiser, pois tremo de medo de pagar minha felicidade com alguma catástrofe
terrível.
— Menina — disse Eugène.
— Ah! Eu é que sou a criança esta noite — ela disse rindo.
Eugène voltou para a Casa Vauquer com a certeza de abandoná-la no dia
seguinte, e portanto se entregou, no caminho, a esses lindos sonhos que fazem
todos os jovens quando ainda têm nos lábios o gosto da felicidade.
— E então? — perguntou-lhe o pai Goriot quando Rastignac passou defronte
de sua porta.
— E então? — respondeu Eugène —, amanhã lhe direi tudo.
— Tudo, não é? — gritou o homenzinho. — Vá dormir. Amanhã vamos
começar nossa vida feliz.
No dia seguinte, Goriot e Rastignac não esperavam mais nada além da boa
vontade de um mensageiro para partir da pensão burguesa, quando por volta de
meio-dia o barulho de uma carruagem que parou exatamente na porta da Casa
Vauquer ressoou na Rue Neuve-Sainte-Geneviève. A sra. de Nucingen desceu de
seu carro, perguntou se o pai ainda estava na pensão. Diante da resposta
afirmativa de Sylvie, subiu rapidamente a escada. Eugène estava em seu quarto
sem que seu vizinho soubesse. Ao almoçar, ele pedira ao pai Goriot para levar
seus pertences, dizendo-lhe que se encontrariam às quatro horas na Rue d’Artois.
Mas enquanto o homenzinho fora buscar uns carregadores, Eugène, tendo
prontamente respondido à chamada na escola, voltara sem que ninguém
percebesse, para acertar as contas com a sra. Vauquer, não querendo deixar essa
tarefa para Goriot, que em seu fanatismo com certeza teria pagado para ele. A
proprietária tinha saído. Eugène tornou a subir para o quarto a fim de ver se não
esquecera nada, e congratulou-se por ter tido esse pensamento ao ver na gaveta
de sua mesa o aceite em branco, subscrito a Vautrin, que ele jogara ali
displiscentemente no dia em que pagara o que devia. Não tendo lareira, ia rasgá-
lo em pedacinhos quando, reconhecendo a voz de Delphine, não quis fazer
nenhum barulho e parou para ouvi-la, pensando que ela não devia ter nenhum
segredo para ele. Depois, desde as primeiras palavras, achou a conversa entre pai
e filha muito interessante para não escutá-la.
— Ah! papai — ela disse —, Deus queira que o senhor tenha tido a ideia de
pedir contas de minha fortuna suficientemente a tempo para que eu não esteja
arruinada! Posso falar?
— Pode, a casa está vazia — disse o pai Goriot com voz alterada.
— Mas o que tem, meu pai? — continuou a sra. de Nucingen.
— Você acaba de me dar — respondeu o velho — uma machadada na cabeça.
Deus a perdoe, minha filha! Não sabe como a amo; se soubesse, não me teria
dito abruptamente essas coisas, sobretudo se nada é desesperador. O que afinal
aconteceu de tão premente para que tenha vindo me procurar aqui quando em
poucos instantes estaríamos na Rue d’Artois?
— Ei, meu pai, somos senhores de nosso primeiro movimento numa
catástrofe? Estou louca! Seu advogado nos fez descobrir um pouco mais cedo a
desgraça que provavelmente explodirá mais tarde. Sua velha experiência
comercial vai nos ser necessária, e vim correndo buscá-lo como quem se agarra a
um galho quando se afoga. Quando o sr. Derville viu Nucingen lhe opor mil
chicanas, ameaçou-o com um processo dizendo-lhe que a autorização do
presidente do tribunal seria prontamente obtida. Nucingen veio de manhã à
minha casa para me perguntar se eu queria sua ruína e a minha. Respondi-lhe
que não entendia nada disso, que tinha uma fortuna, que devia estar em posse de
minha fortuna, e que tudo o que tinha a ver com esse litígio se referia a meu
advogado, pois eu estava na ignorância total e na impossibilidade de entender
alguma coisa sobre o assunto. Não era o que o senhor me recomendara dizer?
— Bem — respondeu o pai Goriot.
— Pois é — continuou Delphine —, ele me pôs a par de seus negócios. Jogou
todos os seus capitais e os meus em empresas que estão começando, e nas quais
ainda foi preciso investir grandes quantias externas. Se eu o forçasse a me
prestar contas de meu dote, seria obrigado a decretar falência; ao passo que, se
eu quiser esperar um ano, compromete-se, dando sua palavra, a me devolver
uma fortuna dupla ou tripla da minha investindo meu capital em operações
territoriais ao fim das quais serei dona de todos os bens. Meu pai querido, ele era
sincero, me assustou. Pediu-me perdão por seu comportamento, me devolveu
minha liberdade, permitiu que me comportasse como bem entendesse, contanto
que o deixasse inteiramente livre para gerir os negócios em meu nome.
Prometeu-me, para me provar sua boa-fé, chamar o sr. Derville sempre que eu
quisesse, para julgar se os atos em virtude dos quais me instituiria proprietária
estariam convenientemente redigidos. Enfim, pôs-se em minhas mãos, de pés e
punhos atados. Pede-me ainda, durante dois anos, a condução da casa, e me
suplicou que nada gaste comigo além do que me concede. Provou-me que tudo o
que podia fazer era manter as aparências, que tinha despachado sua dançarina, e
que seria obrigado à mais estrita, porém mais severa, economia, a fim de chegar
ao término de suas especulações sem alterar seu crédito. Eu o maltratei, pus tudo
em dúvida a fim de pô-lo contra a parede e conhecer mais a história: mostrou-me
seus livros e por fim chorou. Nunca vi um homem num estado desses. Perdeu a
cabeça, falava em se matar, delirava. Deu-me pena.
— E você acredita nessas lorotas? — exclamou o pai Goriot. — É um ator!
Encontrei alemães nos negócios: essas pessoas aí são quase todas de boa-fé,
cheias de candura; mas quando, sob seu ar de franqueza e bonomia, começam a
ser espertas e charlatãs, são mais que as outras. Seu marido a está enganando.
Sente-se pressionado de perto, faz-se de morto, quer permanecer mais dono de
tudo sob o seu nome do que é sob o dele. Vai aproveitar essa circunstância para
se pôr ao abrigo dos acasos de seu comércio. É tão astuto quanto pérfido; é um
mau sujeito. Não, não, não irei para o Père-Lachaise deixando minhas filhas
desprovidas de tudo. Ainda me conheço um pouco nos negócios. Ele
comprometeu — disse — os fundos próprios nas empresas, pois bem, os
interesses dele são representados por valores, por reconhecimentos de dívidas,
por contratos! Que os mostre e salde as contas com você. Escolheremos as
melhores especulações, correremos os riscos, e teremos os títulos exequíveis em
nosso nome, de Delphine Goriot, casada em separação de bens com o barão de
Nucingen . Mas esse aí nos toma por imbecis? Pensa que consigo suportar por
dois dias a ideia de deixá-la sem fortuna, sem pão? Eu não suportaria nem um
dia, nem uma noite, nem duas horas! Se essa ideia fosse verdadeira, eu não
sobreviveria. Ei, afinal!, terei trabalhado durante quarenta anos de minha vida,
terei carregado sacas nas costas, terei suado em bicas, terei me privado toda a
minha vida por vocês, meus anjos, que me tornavam todo trabalho e todo fardo
leves, e hoje minha fortuna, minha vida iriam em fumaça? Isso me faria morrer
de raiva. Por tudo que há de mais sagrado na terra e no céu, vamos tirar isso a
limpo, verificar os livros, o cofre, as empresas! Não durmo, não me deito, não
como, até que me seja provado que sua fortuna está aí, inteira. Graças a Deus,
você é casada com separação de bens; terá o dr. Derville como advogado,
felizmente um homem honesto. Santo Deus! Guardará seu bom milhãozinho,
suas cinquenta mil libras de renda, até o fim de seus dias, ou eu armo um bafafá
em Paris, ah! ah! Mas eu me dirigiria às câmaras se os tribunais nos
prejudicassem. Saber que você está tranquila e feliz quanto a dinheiro, esse
pensamento aliviaria todos os meus males e acalmaria minhas tristezas. O
dinheiro é a vida. A moeda faz tudo. O que então nos está armando esse casca-
grossa do alsaciano? Delphine, não faça uma concessão de nem um quarto de
vintém a esse bestalhão, que a acorrentou e a tornou infeliz. Se precisa de você,
vamos cobri-lo de pauladas para valer, e o faremos andar na linha. Meu Deus,
minha cabeça está escaldante, sinto no crânio alguma coisa que me queima.
Minha Delphine na miséria! Oh, minha Fifine, você! Com os diabos! Onde estão
minhas luvas? Vamos sair, quero ir ver tudo, os livros, os negócios, o cofre, a
correspondência, neste instante. Só me acalmarei quando me for provado que
sua fortuna não corre mais riscos, e que eu a vir com meus olhos.
— Meu querido pai! Vá com cautela. Se pusesse a menor veleidade de
vingança nesse negócio, e se mostrasse intenções demasiado hostis, eu estaria
perdida. Ele o conhece, achou muito natural que, sob sua inspiração, eu me
inquietasse por minha fortuna; mas juro ao senhor, ele a tem entre as mãos, e
quis mantê-la. É homem de fugir com todos os capitais e de nos deixar aí, esse
celerado! Ele bem sabe que eu mesma não desonrarei o nome que carrego
processando-o. É ao mesmo tempo forte e fraco. Examinei tudo muito bem. Se o
encurralarmos, estou arruinada.
— Mas então é um patife?
— Pois bem, sim, meu pai — disse jogando-se numa cadeira, aos prantos. —
Eu não queria confessar-lhe para poupá-lo da tristeza de ter me casado com um
homem dessa espécie! Costumes secretos e consciência, a alma e o corpo, tudo
nele se harmoniza! É pavoroso: eu o odeio e o desprezo. Sim, não consigo mais
estimar esse vil Nucingen depois de tudo o que me disse. Um homem capaz de
se jogar nos arranjos comerciais que me contou não tem a menor delicadeza, e
meus temores vêm do que li perfeitamente em sua alma. Propôs-me claramente,
ele, meu marido, a liberdade; sabe o que isso significa, se eu quisesse ser, em
caso de desgraça, um instrumento em suas mãos, em suma, se quisesse lhe servir
de testa de ferro?
— Mas as leis estão aí! Mas há uma Place de Grève para os genros dessa
espécie — exclamou o pai Goriot —, mas eu mesmo o guilhotinaria se não
houvesse um carrasco.
— Não, meu pai, não há leis contra ele. Escute em duas palavras a linguagem
dele, destituída dos circunlóquios com que a envolvia: “Ou está tudo perdido,
você não tem um tostão, está arruinada, pois eu não escolheria como cúmplice
outra pessoa que não você; ou me deixará conduzir como quero minhas
empresas”. Está claro? Ainda está ligado a mim. Minha probidade de mulher o
tranquiliza; sabe que lhe deixarei sua fortuna e me contentarei com a minha. É
uma associação desonesta e de ladroagem à qual devo consentir sob pena de
ficar arruinada. Compra minha consciência e paga por ela deixando-me ser, à
vontade, a mulher de Eugène. “Permito-lhe cometer erros, deixe-me cometer
crimes arruinando a pobre gente!” Essa linguagem não é bastante clara? Sabe o
que ele chama “fazer operações”? Compra terrenos baldios em seu nome, depois
manda construir casas, por testas de ferro. Esses homens fecham os contratos
para as construções com todos os empreendedores, a quem pagam em títulos a
longo prazo, e aceitam, mediante uma pequena quantia, dar quitação a meu
marido, que então se torna dono das casas, enquanto esses homens se livram dos
empreendedores tapeados indo à falência. O nome da casa de Nucingen serviu
para deslumbrar os pobres construtores. Isso eu entendi. Entendi também que,
para comprovar, caso necessário, o pagamento de quantias enormes, Nucingen
enviou valores consideráveis a Amsterdam, a Londres, a Nápoles, a Viena.
Como os penhoraremos?
Eugène ouviu o som pesado dos joelhos do pai Goriot, que provavelmente caiu
nos ladrilhos do quarto.
— Meu Deus, o que lhe fiz? Minha filha entregue a esse miserável, ele exigirá
tudo dela, se quiser. Desculpe, minha filha! — gritou o velho.
— Sim, se estou num abismo, talvez seja um pouco culpa sua — disse
Delphine. — Temos tão pouco juízo quando nos casamos! Acaso conhecemos o
mundo, os negócios, os homens, os costumes? Os pais deveriam pensar por nós.
Pai querido, nada o recrimino, desculpe-me essas palavras. Nisso o erro é todo
meu. Não, não chore, papai — disse beijando a testa do pai.
— Não chore tampouco, minha pequena Delphine. Dê seus olhos, para que os
enxugue beijando-os. Ande! Vou recuperar minha cachola e desenrolar a meada
dos negócios que seu marido enrolou.
— Não, deixe-me fazer; saberei manobrá-lo. Ele me ama, pois então vou me
servir de minha influência sobre ele para levá-lo a investir prontamente alguns
capitais meus em propriedades. Talvez o faça comprar em meu nome Nucingen,
na Alsácia, ele gosta de lá. Venha só amanhã para examinar os livros, os
negócios dele. O sr. Derville não entende nada do que é comercial. Não, não
venha amanhã. Não quero me amofinar. O baile da sra. de Beauséant acontece
depois de amanhã, quero me cuidar para estar bela, descansada, e honrar meu
querido Eugène! Vamos então ver seu quarto!
Nesse instante um carro parou na Rue Neuve-Sainte-Geneviève, e ouviu-se na
escada a voz da sra. de Restaud, que dizia a Sylvie: “Meu pai está aí?”. Essa
circunstância, felizmente, salvou Eugène, que já meditava em se jogar na cama e
fingir estar dormindo.
— Ah, meu pai!, falaram-lhe de Anastasie? — disse Delphine ao reconhecer a
voz da irmã. — Parece que também lhe acontecem coisas singulares em seu
casamento.
— Como é mesmo? — disse o pai Goriot. — Então seria meu fim. Minha
pobre cabeça não aguentará uma dupla desgraça.
— Bom dia, papai — disse a condessa ao entrar. — Ah, ei-la aqui, Delphine.
A sra. de Restaud pareceu constrangida ao encontrar a irmã.
— Bom dia, Nasie — disse a baronesa. — Então acha minha presença
extraordinária? Vejo papai todo dia.
— Desde quando?
— Se viesse aqui, saberia.
— Não implique comigo, Delphine — disse a condessa num tom lamentável.
— Estou um bocado infeliz, estou perdida, meu pobre pai! Oh, desta vez, bem
perdida!
— O que você tem, Nasie? — exclamou o pai Goriot. — Conte-nos tudo,
minha filha.
Ela empalideceu.
— Vamos, Delphine, acuda-a, ora, seja boa com ela, gostarei ainda mais de
você, se conseguir!
— Minha pobre Nasie — disse a sra. de Nucingen sentando a irmã —, fale.
Veja em nós as duas únicas pessoas que sempre a amarão o bastante para
perdoar-lhe tudo. As afeições familiares são as mais seguras, sabe?
Ela a fez respirar uns sais, e a condessa voltou a si.
— Morrerei por causa disso — disse o pai Goriot. — Vejamos — continuou
remexendo seu fogo de torrões de turfa —, aproximem-se vocês duas. Estou com
frio. O que tem, Nasie? Diga logo, está me matando…
— Pois bem — disse a pobre mulher —, meu marido sabe tudo. Imagine, meu
pai, que há algum tempo, lembra-se daquela letra de câmbio de Maxime? Pois é,
não era a primeira. Eu já tinha pagado muitas. Pelo início de janeiro, o sr. de
Trailles me parecia muito triste. Não me dizia nada; mas é tão fácil ler no
coração de quem amamos, basta um nadinha: além disso, há os pressentimentos.
Por fim, estava mais amoroso, mais terno do que jamais o tinha visto, e eu me
sentia cada vez mais feliz. Pobre Maxime! Em seu pensamento, me dava adeus,
conforme me disse; queria dar um tiro nos miolos. Finalmente, tanto o
atormentei, tanto supliquei, fiquei duas horas ajoelhada diante dele. Disse-me
que devia cem mil francos! Oh, papai, cem mil francos! Fiquei louca. O senhor
não os tinha, eu havia devorado tudo.
— Não — disse o pai Goriot —, eu não poderia produzi-los, a não ser que
fosse roubá-los. Mas teria ido, Nasie! Irei!
Diante dessas palavras largadas de modo lúgubre, como um som de estertor de
um moribundo, e que indicava a agonia do sentimento paterno reduzido à
impotência, as duas irmãs fizeram uma pausa. Que egoísmo teria ficado frio a
esse grito de desespero que, semelhante a uma pedra lançada num abismo, lhe
revelava a profundeza?
— Encontrei-os dispondo daquilo que não me pertencia, meu pai — disse a
condessa, desfazendo-se em lágrimas.
Delphine ficou comovida e chorou pondo a cabeça sobre o pescoço da irmã.
— Então é tudo verdade — disse-lhe.
Anastasie baixou a cabeça, a sra. de Nucingen agarrou todo seu corpo, beijou-a
carinhosamente e, apertando o coração, disse-lhe:
— Aqui você será sempre amada sem ser julgada.
— Meus anjos — disse Goriot com uma voz fraca —, por que a união de vocês
se deve à infelicidade?
— Para salvar a vida de Maxime, em suma, para salvar toda a minha felicidade
— retomou a condessa encorajada por esses testemunhos de uma ternura cálida e
palpitante —, levei a esse agiota que vocês conhecem, um homem fabricado pelo
inferno, que nada é capaz de enternecer, esse sr. Gobseck, os diamantes de
família aos quais o sr. de Restaud é tão apegado, os dele, os meus, tudo, e os
vendi. Vendi! Entendem? Ele foi salvo! Mas eu, eu estou morta. Restaud soube
de tudo.
— Por quem? Como? Que eu o mato! — gritou o pai Goriot.
— Ontem, mandou me chamar a seu quarto. Fui… “Anastasie”, disse-me com
uma voz… (ah! bastou sua voz, adivinhei tudo), “Onde estão seus diamantes? —
Comigo. — Não”, disse me olhando, “estão aí, na minha cômoda.” E me
mostrou o estojo, que cobrira com seu lenço. “Sabe de onde vêm?”, perguntou.
Caí diante de seus joelhos… chorei, perguntei-lhe de que morte queria me ver
morrer.
— Você disse tudo isso! — exclamou o pai Goriot. — Pelo sagrado nome de
Deus, aquele que fizer mal a uma ou a outra, enquanto eu for vivo, pode ter
certeza de que o queimarei a fogo brando! Sim, o despedaçarei como…
O pai Goriot se calou, as palavras expiravam em sua garganta.
— Enfim, minha querida, ele me pediu alguma coisa mais difícil de fazer do
que morrer. Que o céu preserve qualquer mulher de ouvir o que ouvi!
— Assassinarei esse homem — disse o pai Goriot tranquilamente. — Mas ele
só tem uma vida, e me deve duas. Enfim, o que foi? — retrucou olhando para
Anastasie.
— Pois bem — prosseguiu a condessa, depois de uma pausa —, me olhou e
disse: “Anastasie, enterro tudo no silêncio, permaneceremos juntos, temos filhos.
Não matarei o sr. de Trailles, poderia não acertá-lo, e para me desfazer dele de
outra maneira poderia esbarrar na justiça humana. Matá-lo em seus braços seria
desonrar as crianças. Mas, para não ver morrerem os seus filhos nem o pai deles
nem eu, imponho-lhe duas condições. Responda: Tenho um filho meu?”. Eu
disse sim. “Qual?”, perguntou. — Ernest, nosso primogênito. — Bem —
respondeu. “Agora, jure-me obedecer-me, a partir de hoje, num único ponto.”
Jurei. “Você assinará a venda de seus bens quando eu lhe pedir.”
— Não assine — gritou o pai Goriot. — Jamais assine isso. Ah! Ah!, sr. de
Restaud, não sabe o que é tornar feliz uma mulher, ela vai buscar a felicidade lá
onde esta se encontrar, e o senhor a castiga com sua tola impotência?… Mas
estou aqui, alto lá! Esse aí vai me encontrar em seu caminho. Nasie, fique
sossegada. Ah, ele é afeiçoado a seu herdeiro! Bom, bom. Agarrarei seu filho,
que, raios me partam, é meu neto. Posso, afinal, ver esse pirralho? Meto-o na
minha aldeia, cuidarei dele, fique muito tranquila. Farei capitular esse monstro
aí, dizendo-lhe: “Agora, nós dois! Se quiser ter seu filho, devolva à minha filha
os bens dela, e deixe-a se comportar como bem entender”.
— Meu pai!
— Sim, seu pai! Ah! Sou um verdadeiro pai. Que esse grande nobre
engraçadinho não maltrate minhas filhas. Diachos! Não sei o que tenho nas
veias; tenho aí o sangue de um tigre, gostaria de devorar esses dois homens. Ó,
minhas crianças! Esta é então a vida de vocês? Mas é a minha morte. Então o
que será de vocês quando eu não estiver mais aqui? Os pais deveriam viver tanto
quanto os filhos. Meus Deus, como o teu mundo é mal-arranjado! E no entanto
tens um filho, pelo que nos dizem. Devias nos impedir de sofrermos em nossos
filhos. Pois é, meus queridos anjos! Só devo a presença de vocês às suas dores.
Vocês só me fazem conhecer as suas lágrimas. Bem, sim, me amam, estou
vendo. Venham, venham se queixar aqui! Meu coração é grande, pode tudo
receber. Sim, por mais que vocês o trespassem, os destroços ainda formarão um
coração de pai. Gostaria de pegar as suas penas, sofrer por vocês. Ah! Quando
eram pequenas, eram muito felizes…
— Nós só tivemos aqueles tempos de bom — disse Delphine. — Onde estão os
momentos em que degringolávamos do alto das sacas no grande sótão?
— Meu pai! Não é só isso — disse Anastasie ao ouvido de Goriot, que deu um
pulo. — Os diamantes não foram vendidos por cem mil francos. Maxime está
sendo processado. Não temos mais que doze mil francos para pagar. Ele me
prometeu se comportar, parar de jogar. Não me resta mais nada no mundo além
do amor dele, e por ele paguei muito caro para não morrer se me escapasse.
Sacrifiquei-lhe fortuna, honra, repouso, filhos. Oh! faça com que ao menos
Maxime fique livre, honrado, com que possa permanecer na sociedade, onde
saberá conseguir uma posição. Agora ele não me deve apenas a felicidade, temos
filhos que ficariam sem fortuna. Tudo estará perdido se ele for posto na Sainte-
Pélagie. 63
— Não os tenho, Nasie. Nada, mais nada, mais nada! É o fim do mundo. Oh! o
mundo vai desabar, é certo. Vá embora, salve-se antes! Ah! Ainda tenho minhas
argolas de prata, seis talheres, os primeiros que tive na vida. Enfim, não tenho
mais que mil e duzentos francos de renda vitalícia…
— Que fez então de suas rendas perpétuas?
— Vendia-as, reservando-me esse pouquinho de renda para minhas
necessidades. Eu precisava de doze mil francos para arrumar um apartamento
para Fifine.
— Sua casa, Delphine? — perguntou à irmã a sra. de Restaud.
— Oh! o que isso pode mudar! — retrucou o pai Goriot —, os doze mil
francos estão empregados.
— Adivinho — disse a condessa. — Para o sr. de Rastignac. Ah! minha pobre
Delphine, pare. Veja a que ponto cheguei.
— Minha querida, o sr. de Rastignac é um moço incapaz de arruinar sua
amante.
— Obrigada, Delphine. Na crise em que me encontro, esperava mais de você;
mas você nunca gostou de mim.
— Sim, ela gosta de você, Nasie — gritou o pai Goriot —, me dizia isso há
pouco. Falávamos de você, ela me afirmava que você era bela e que, quanto a
ela, era apenas bonita.
— Ela! — repetiu a condessa —, ela é de uma beleza fria.
— Ainda que fosse isso — disse Delphine corando —, como se comportou
comigo? Você me renegou, me fez fecharem as portas de todas as casas aonde
eu desejava ir, em suma, jamais perdeu a menor ocasião para me fazer sofrer. E
eu vim como você extorquir deste pobre pai, de mil em mil francos, sua fortuna
e reduzi-lo ao estado em que ele se encontra? Aí está a sua obra, minha irmã.
Quanto a mim, vi meu pai tanto quanto pude, não o pus no olho da rua, e não
vim lhe lamber as mãos quando precisava dele. Somente não sabia que ele havia
empregado esses doze mil francos para mim. Sou organizada!, você sabe. Aliás,
quando papai me deu presentes, nunca os mendiguei.
— Era mais feliz que eu: o sr. de Marsay era rico, você sabe algo a respeito.
Você sempre foi vil como o ouro. Adeus, não tenho nem irmã, nem…
— Cale-se, Nasie! — gritou o pai Goriot.
— Só uma irmã como você pode repetir aquilo em que nem a sociedade já não
acredita, você é um monstro — disse-lhe Delphine.
— Minhas filhas, minhas filhas, calem-se, ou me mato diante de vocês.
— Bem, Nasie, eu a perdoo — disse a sra. de Nucingen, continuando —, você
é uma pobre coitada. — Mas sou melhor que você. Dizer-me isso no momento
em que me sentia capaz de tudo para socorrê-la, até mesmo entrar no quarto de
meu marido, o que não faria nem por mim nem por… Isso é digno de todo o mal
que cometeu contra mim há nove anos.
— Minhas filhas, minhas filhas, beijem-se! — disse o pai. — Vocês são dois
anjos.
— Não, deixe-me — gritou a condessa, que Goriot pegara pelo braço e que se
livrou do abraço do pai. — Ela tem menos pena de mim do que teria meu
marido. Não se diria que é a imagem de todas as virtudes!
— Ainda prefiro ser vista como quem deve dinheiro ao sr. de Marsay do que
confessar que o sr. de Trailles me custa mais de duzentos mil francos —
respondeu a sra. de Nucingen.
— Delphine! — gritou a condessa dando um passo em sua direção.
— Eu lhe digo a verdade enquanto você me calunia — retrucou friamente a
baronesa.
— Delphine! Você é uma…
O pai Goriot se lançou, segurou a condessa e a impediu de falar cobrindo-lhe a
boca com a mão.
— Meu Deus! Meu pai, no que o senhor esteve remexendo hoje de manhã? —
perguntou-lhe Anastasie.
— Pois é, sim, estou errado — disse o pobre pai enxugando as mãos na calça.
— Mas não sabia que vocês viriam, estou me mudando.
Ele estava feliz por ter atraído uma crítica que desviava para si a raiva da filha.
— Ah! — prosseguiu, sentando-se — vocês me partiram o coração. Estou
morrendo, minhas filhas. Meu crânio está assando internamente como se tivesse
fogo. Então sejam boazinhas e amem-se! Vocês me matariam. Delphine, Nasie,
vamos, estavam certas, estavam erradas, as duas. Vejamos, Dedel — continuou
virando para a baronesa, olhos cheios de lágrimas —, ele precisa de doze mil
francos, vamos procurá-los. Não se olhem assim.
Pôs-se de joelhos diante de Delphine.
— Peça-lhe desculpas para me dar prazer — disse-lhe ao ouvido —, ela é a
mais infeliz, não é mesmo?
— Minha pobre Nasie — disse Delphine apavorada com a selvagem e
alucinada expressão que a dor imprimia no rosto do pai —, errei, beije-me…
— Ah! Vocês estão pondo um bálsamo no coração — gritou o pai Goriot. —
Mas onde encontrar doze mil francos? E se eu me propusesse como substituto?
64
— Ah! Meu pai! — disseram as duas filhas, cercando-o —, não, não.
— Deus o recompensará por esse pensamento, nossa vida não bastaria!, não é,
Nasie? — continuou Delphine.
— E além disso, pobre pai, seria uma gota d’água — a condessa observou.
— Mas então nada podemos fazer com nosso próprio sangue? — gritou o
velho, desesperado. — Devoto-me àquele que a salvar, Nasie! Matarei um
homem por ele. Farei como Vautrin, irei para as galés! Eu… — Parou como se
tivesse sido fulminado. — Mais nada! — disse arrancando os cabelos. — Se
soubesse aonde ir para roubar, mas ainda assim é difícil encontrar um roubo para
fazer. E, além disso, seria preciso gente e tempo para assaltar o Banco de França.
Pois é, devo morrer, só me resta morrer. Sim, já não sirvo para nada, não sou
mais pai! Não. Ela me pede, ela precisa! E eu, miserável, não tenho nada. Ah!
você conseguiu rendas vitalícias, velho celerado, e tinha filhas! Mas então não as
ama? Morra, morra como um cão que é! Sim, estou mais baixo que um cão, um
cão não se comportaria assim! Oh, minha cabeça! Está fervendo!
— Mas papai — gritaram as duas jovens mulheres que o cercavam para
impedi-lo de bater a cabeça contra as paredes —, seja, afinal, sensato!
Ele soluçava. Eugène, apavorado, pegou a letra de câmbio subscrita em favor
de Vautrin, e cujo selo comportava uma quantia maior; corrigiu o algarismo,
transformou-a numa letra de câmbio regular de doze mil francos em nome de
Goriot e entrou.
— Aqui está todo o seu dinheiro, senhora — disse apresentando o papel. — Eu
estava dormindo, sua conversa me acordou, pude assim saber o que eu devia ao
sr. Goriot. Aqui está o título que poderá descontar, vou pagá-lo fielmente.
A condessa, imóvel, segurava o papel.
— Delphine — disse ela, pálida e trêmula de cólera, de fúria, de raiva —, eu
lhe perdoaria tudo, Deus é testemunha, mas isto! Como? Este senhor estava aí, e
você sabia! Teve a mesquinharia de se vingar deixando-me entregar a ele meus
segredos, minha vida, a de meus filhos, minha vergonha, minha honra! Saiba,
você não é mais nada para mim, odeio-a, vou lhe fazer todo o mal possível, eu…
— A raiva lhe cortou a palavra, e sua garganta secou.
— Mas é meu filho, nosso filho, seu irmão, seu salvador — gritava o pai
Goriot. — Beije-o, ora essa, Nasie! Veja, eu o beijo — continuou apertando
Eugène com uma espécie de furor. — Oh, meu filho! Serei mais que um pai para
você, quero ser uma família. Gostaria de ser Deus, vou jogar o universo a seus
pés. Mas beije-o, afinal, Nasie! Não é um homem, mas um anjo, um verdadeiro
anjo.
— Deixe-a, meu pai, ela está louca neste momento — disse Delphine.
— Louca! Louca! E você, o que está? — perguntou a sra. de Restaud.
— Minhas filhas, vou morrer se continuarem — gritou o velho caindo na cama
como que ferido por uma bala. “Elas me matam!”, pensou.
A condessa olhou para Eugène, que permanecia imóvel, perplexo com a
violência daquela cena:
— Senhor — ela lhe disse interrogando-o com o gesto, com a voz e o olhar,
sem prestar atenção no pai, cujo colete foi rapidamente desabotoado por
Delphine.
— Senhora, pagarei e me calarei — ele respondeu sem esperar a pergunta.
— Você matou nosso pai, Nasie! — disse Delphine mostrando à irmã, que
escapuliu, o velho desmaiado.
— De fato a perdoo — disse o bom homem abrindo os olhos —, sua situação é
terrível e transtornaria uma cabeça mais assentada. Console Nasie, seja meiga
com ela, prometa a seu pobre pai, que está morrendo — pediu a Delphine
apertando sua mão.
— Mas o que o senhor tem? — ela perguntou muito assustada.
— Nada, nada — respondeu o pai —, isso vai passar. Tenho alguma coisa que
me comprime a testa, uma enxaqueca. Pobre Nasie, que futuro!
Nesse momento a condessa voltou, jogou-se aos pés do pai:
— Perdão! — gritou.
— Ora — disse o pai Goriot —, você me faz ainda mais mal agora.
— Senhor — disse a condessa a Rastignac, com os olhos banhados de lágrimas
—, a dor me tornou injusta. — Será um irmão para mim? — prosseguiu
estendendo-lhe a mão.
— Nasie — disse-lhe Delphine apertando-a —, minha pequena Nasie,
esqueçamos tudo.
— Não — disse ela —, hei de me lembrar!
— Anjos — exclamou o pai Goriot —, vocês me tiram a cortina que eu tinha
sobre os olhos, suas vozes me reanimam. Então beijem-se de novo. Pois bem,
Nasie, esta letra de câmbio a salvará?
— Espero. Mas diga, papai, quer pôr sua assinatura nela?
— Ora, como sou tolo, esquecer isso! Mas é que passei mal, Nasie, não brigue
comigo. Mande me dizer que está fora de apuros. Não, eu irei. Mas não, não irei,
não posso mais ver seu marido, o mataria na hora. Quanto a alterar a natureza de
seus bens, lá estarei. Vá depressa, minha filha, e faça com que Maxime se
comporte direito.
Eugène estava perplexo.
— Essa pobre Anastasie sempre foi violenta — disse a sra. de Nucingen —,
mas tem bom coração.
— Ela voltou para o endosso — disse Eugène ao ouvido de Delphine.
— Acha?
— Eu gostaria de não acreditar. Desconfie dela — respondeu levantando os
olhos como para confiar a Deus pensamentos que não ousasse expressar.
— Sim, sempre foi um pouco artista, e meu pobre pai se deixa enganar por
seus dramas.
— Como vai, meu bom pai Goriot? — perguntou Rastignac ao velhote.
— Tenho vontade de dormir — ele respondeu.
Eugène ajudou Goriot a se deitar. Depois, quando o bom homem adormeceu
segurando a mão de Delphine, sua filha se retirou.
— Esta noite no Italiens — ela disse a Eugène —, você me dirá como ele vai.
Amanhã se mudará, cavalheiro. Vejamos seu quarto. Oh! Que horror! — ela
disse ao entrar. — Mas estava pior que meu pai. Eugène, você se comportou
bem. Gostaria ainda mais de você se isso fosse possível; mas, meu menino, se
quer fazer fortuna, não deve jogar assim doze mil francos pela janela. O conde
de Trailles é jogador. Minha irmã não quer enxergar isso. Ele teria ido buscar
seus doze mil francos ali onde sabe perder ou ganhar montes de ouro.
Um gemido os fez voltar ao quarto de Goriot, que encontraram aparentemente
adormecido; mas, quando os dois amantes se aproximaram, ouviram estas
palavras: “Elas não são felizes!”. Que ele dormisse ou estivesse acordado, o tom
dessa frase feriu tão profundamente o coração de sua filha que ela se aproximou
do catre sobre o qual jazia o pai e o beijou na fronte. Ele abriu os olhos dizendo:
— É Delphine!
— Pois é, como está? — ela perguntou.
— Bem — ele disse. — Não fique preocupada, vou sair. Andem, andem, meus
filhos, sejam felizes.
Eugène acompanhou Delphine à casa dela; mas, aflito com o estado em que
deixara Goriot, recusou-se a jantar com ela e voltou para a Casa Vauquer.
Encontrou o pai Goriot de pé e pronto para se sentar à mesa. Bianchon se
instalara de maneira a bem examinar o rosto do macarroneiro. Quando o viu
pegar seu pão e o cheirar para julgar a farinha com que era feito, o estudante,
tendo observado nesse movimento uma ausência total do que se poderia chamar
de consciência do ato, fez um gesto sinistro.
— Mas venha para perto de mim, senhor residente do Hospital Cochin — disse
Eugène.
Bianchon se transferiu para o lado dele com mais satisfação ainda porque ia
ficar perto do velho pensionista.
— O que ele tem? — perguntou Rastignac.
— A menos que me engane, está frito! Deve ter ocorrido alguma coisa de
extraordinário com ele, que me parece estar prestes a ter uma apoplexia serosa
iminente. Embora a parte inferior do rosto esteja bastante serena, as feições
superiores repuxam para a testa, involuntariamente, veja! Além disso, os olhos
se encontram no estado especial que denota a invasão do soro no cérebro. Não
aparentam estar cheios de uma poeira fina? Amanhã de manhã saberei mais.
— Haveria algum remédio?
— Nenhum. Talvez se possa retardar sua morte se encontrarmos os meios de
conseguir uma reação nas extremidades, nas pernas; mas, se amanhã de noite os
sintomas não desaparecerem, o pobre homem está perdido. Sabe qual
acontecimento causou a doença? Ele deve ter recebido um golpe violento sob o
qual seu estado de espírito terá sucumbido.
— Sim — disse Rastignac, lembrando-se de que as filhas tinham batido sem
sossego no coração do pai.
“Pelo menos”, pensava Eugène, “ela, Delphine, ama o pai!”
À noite, no Italiens, Rastignac tomou algumas precauções a fim de não alarmar
demais a sra. de Nucingen.
— Não se aflija — ela respondeu às primeiras palavras que Eugène lhe disse
—, meu pai é forte. Só que de manhã nós o sacudimos um pouco. Nossas
fortunas estão em jogo, imagina a extensão dessa desgraça? Eu não viveria se
seu afeto não me tornasse insensível ao que outrora eu veria como angústias
mortais. Hoje não há mais que um só temor, uma só infelicidade para mim:
perder o amor que me fez sentir o prazer de viver. Fora desse sentimento, tudo
me é indiferente, nada mais amo no mundo. Você é tudo para mim. Se sinto a
felicidade de ser rica, é para melhor agradá-lo. Sou, para minha vergonha, mais
amante que filha. Por quê? Não sei. Toda a minha vida está em você. Meu pai
me deu um coração, mas você o fez bater. O mundo inteiro pode me censurar,
que me importa!, se você, que não tem o direito de me querer mal, me absolve
por crimes a que me condenou um sentimento irresistível? Acredita que sou uma
filha desnaturada? Oh, não, é impossível não amar um pai tão bom como é o
nosso. Podia eu impedir que ele não visse enfim a continuação natural de nossos
deploráveis casamentos? Por que não os impediu? Não cabia a ele refletir por
nós? Hoje, eu sei, sofre tanto quanto nós; mas que podíamos fazer? Consolá-lo!
Não o consolaríamos de nada. Nossa resignação lhe causava mais dor que nossas
críticas e nossas queixas lhe causariam mal. Há situações na vida em que tudo é
amargura.
Eugène ficou mudo, transido de ternura pela expressão ingênua de um
sentimento verdadeiro. Se as parisienses costumam ser falsas, ébrias de vaidade,
individualistas, coquetes, frias, é certo que quando amam realmente sacrificam
mais sentimentos que as outras mulheres às suas paixões; engrandecem com
todas as suas mesquinharias e tornam-se sublimes. Além disso, Eugène estava
impressionado com o espírito profundo e judicioso que a mulher exibe para
julgar os sentimentos mais naturais, quando uma afeição privilegiada a separa
deles, afastando-a. A sra. de Nucingen se chocou com o silêncio que Eugène
mantinha.
— Mas em que está pensando? — perguntou.
— Ainda escuto o que me disse. Até aqui acreditei amá-la mais do que você
me amava.
Ela sorriu e se armou contra o prazer que sentiu, para deixar a conversação nos
limites impostos pelas conveniências. Nunca tinha ouvido as expressões
vibrantes de um amor jovem e sincero. Mais algumas palavras, e já não teria se
contido.
— Eugène — disse mudando de conversa —, então não sabe o que se passa?
Toda Paris estará amanhã na casa da sra. de Beauséant. Os Rochefide e o
marquês d’Ajuda se entenderam para que nada transpire; mas o rei assina
amanhã o contrato de casamento, e sua pobre prima ainda não sabe de nada. Ela
não poderá deixar de receber, e o marquês não comparecerá a seu baile. Só se
fala dessa aventura.
— E a sociedade ri de uma infâmia, e dela é cúmplice! Então não sabe que a
sra. de Beauséant morreria por causa disso?
— Não — disse Delphine sorrindo —, você não conhece as mulheres desse
tipo. Mas toda Paris irá à casa dela, e lá estarei! E devo-lhe essa felicidade.
— Mas — disse Rastignac — não é um desses boatos absurdos como os tantos
que fazem circular em Paris?
— Amanhã saberemos a verdade.
Eugène não voltou para a Casa Vauquer. Não conseguiu tomar a decisão de
não desfrutar de seu novo apartamento. Se, na véspera, fora forçado a deixar
Delphine a uma hora da madrugada, foi Delphine que o deixou por volta das
duas horas para voltar para casa. Ele dormiu no dia seguinte até bem tarde,
esperou até cerca de meio-dia pela sra. de Nucingen, que foi almoçar com ele.
Os jovens são tão ávidos por essas lindas alegrias que ele quase esquecera o pai
Goriot. Foi uma longa festa para que ele se habituasse com cada uma dessas
coisas elegantes que lhe pertenciam. A sra. de Nucingen estava ali, dando a tudo
um novo valor. No entanto, pelas quatro horas os dois amantes pensaram no pai
Goriot imaginando a felicidade que prometia a si mesmo ao ir morar naquela
casa. Eugène observou que era necessário transportar para lá o velhote, depressa,
se ele estivesse doente, e largou Delphine para correr à Casa Vauquer. Nem o pai
Goriot nem Bianchon estavam à mesa.
— Pois é — disse-lhe o pintor —, o pai Goriot está estropiado. Bianchon está
lá em cima com ele. O homem viu uma das filhas, a condessa de Restaurama.
Depois quis sair e sua doença piorou. A sociedade vai ficar privada de um de
seus belos ornamentos.
Rastignac lançou-se pela escada.
— Ei! sr. Eugène!
— Sr. Eugène! A senhora o chama — gritou Sylvie.
— O sr. Goriot — disse-lhe a viúva — e o senhor deviam sair no dia 15 de
fevereiro. Já há três dias o quinze passou, estamos no dezoito; será preciso me
pagar um mês inteiro para o senhor e para ele, mas, se quiser se responsabilizar
pelo pai Goriot, sua palavra me bastará.
— Por quê? Não tem confiança?
— Confiança! Se o homenzinho ficasse de miolo mole e morresse, suas filhas
não me dariam um tostão, e toda a roupa velha dele não vale dez francos. Hoje
de manhã levou seus últimos talheres, não sei por quê. Estava vestido como um
rapaz. Deus me perdoe, acho que tinha passado ruge, pareceu-me rejuvenescido.
— Eu respondo por tudo — disse Eugène, arrepiando-se de horror e
preocupando-se com uma catástrofe.
Subiu para o quarto do pai Goriot. O velho jazia em sua cama, e Bianchon
estava perto dele.
— Bom dia, pai — disse-lhe Eugène.
O homem lhe sorriu suavemente e respondeu revirando-lhe os olhos vidrosos:
— Como ela vai?
— Bem. E o senhor?
— Vou indo.
— Não o canse — disse Bianchon arrastando Eugène para um canto do quarto.
— E então? — perguntou Rastignac.
— Só se salva por um milagre. A congestão sanguínea ocorreu, ele está com
sinapismos; felizmente os sente, estão agindo.
— É possível transportá-lo?
— Impossível. É preciso deixá-lo aqui, evitar-lhe qualquer movimento físico e
qualquer emoção…
— Meu bom Bianchon — disse Eugène —, nós dois cuidaremos dele.
— Já mandei vir o médico-chefe de meu hospital.
— E aí?
— Ele se pronunciará amanhã à noite. Prometeu-me vir no final de seu
expediente. Infelizmente esse pobre velho cometeu hoje de manhã uma
imprudência sobre a qual não quer se explicar. É teimoso como uma mula.
Quando falo com ele, faz de conta que não ouve, e dorme para não me
responder; ou então, se está de olhos abertos, começa a gemer. Saiu de manhã,
andou a pé por Paris, não se sabe onde. Levou tudo o que possuía de valioso, foi
fazer algum tráfico esquisito que esgotou suas forças! Uma das filhas veio aqui.
— A condessa? — perguntou Eugène. — Uma morena alta, de olhar vivo e
bem-feita, lindo pé, cintura ágil?
— É.
— Deixe-me a sós um momento com ele — disse Rastignac. — Vou confessá-
lo, a mim dirá tudo.
— Enquanto isso vou jantar. Só tente não agitá-lo muito; ainda temos alguma
esperança.
— Fique tranquilo.
— Elas se divertirão bastante amanhã — disse o pai Goriot a Eugène quando
ficaram a sós. — Vão a um grande baile.
— Mas o que fez hoje de manhã, papai, para estar passando tão mal esta noite
e precisar ficar de cama?
— Nada.
— Anastasie veio? — perguntou Rastignac.
— Veio — respondeu o pai Goriot.
— Muito bem, não me esconda nada. O que mais ela lhe pediu?
— Ah! — prosseguiu reunindo forças para falar —, ela estava muito infeliz,
sabe, meu filho! Nasie não tem um tostão desde o caso dos diamantes. Tinha
encomendado para esse baile um vestido de lamê que deve lhe cair como uma
joia. Sua costureira, uma infame, não quis lhe fazer crédito, e sua camareira
pagou mil francos de sinal pela toalete. Pobre Nasie, chegar a esse ponto! Isso
me dilacerou o coração. Mas a camareira, vendo aquele Restaud perder toda a
confiança em Nasie, ficou com medo de perder seu dinheiro, e se entendeu com
a costureira para que só entregasse o vestido se os mil francos fossem
devolvidos. O baile é amanhã, o vestido está pronto, Nasie está desesperada. Ela
quis me pegar emprestados meus talheres para pô-los no prego. O marido quer
que vá a esse baile para mostrar a toda Paris os diamantes que dizem ter sido
vendidos por ela. Acaso ela pode dizer a esse monstro: “Devo mil francos,
pague-os”? Não. Eu entendi isso. Sua irmã, Delphine, irá com uma toalete
maravilhosa. Anastasie não deve ficar abaixo da irmã mais moça. E, além do
mais, está tão afogada em lágrimas, minha pobre filha! Fui tão humilhado por
não ter tido ontem doze mil francos que eu teria dado o resto de minha miserável
vida para redimir esse erro. Está entendendo? Tive a força de tudo suportar, mas
minha última falta de dinheiro me partiu o coração. Oh! Oh! Nem uma nem
duas, me aprumei, me emperiquitei; vendi por seiscentos francos talheres e
argolas, depois penhorei, por um ano, meu título de renda vitalícia por
quatrocentos francos pagos de uma vez, ao papai Gobseck. Ora bolas! Comerei
pão! Isso me bastava quando eu era moço, ainda pode bastar. Pelo menos ela terá
uma bela noite, a minha Nasie. Estará elegantíssima. Estou com a nota de mil
francos ali, debaixo de minha cabeceira. Ter sob minha cabeça o que dará prazer
à pobre Nasie é algo que me conforta. Ela poderá pôr no olho da rua sua
malvada Victoire. Onde já se viu domésticos não terem confiança em seus
patrões! Amanhã estarei bem, Nasie vem às dez horas. Não quero que me achem
doente, não iriam ao baile, ficariam cuidando de mim. Nasie me beijará amanhã
como a seu filho, suas carícias me curarão. Enfim, eu não teria gastado mil
francos no boticário? Prefiro dá-los ao meu Cura-Tudo, à minha Nasie. Vou
consolá-la na sua miséria, ao menos. Isso me absolve do erro de ter comprado
uma renda vitalícia. Ela está no fundo do poço, e já não sou forte o suficiente
para tirá-la de lá. Oh! vou me reinstalar no comércio. Irei a Odessa para comprar
grãos. Lá o trigo vale três vezes menos do que custa o nosso. Se a introdução dos
cereais in natura é proibida, as bravas pessoas que fazem as leis não sonharam
em proibir a fabricação dos produtos à base de trigo. He, he!… Descobri isso
hoje de manhã! Há belos negócios a fazer com os amidos.
“Ele está louco”, pensou Eugène olhando para o velho.
— Vamos, fique descansando, não fale…
Eugène desceu para jantar quando Bianchon subiu. Em seguida, os dois
passaram a noite cuidando do doente em revezamento, e se ocupando, um em ler
seus livros de medicina, o outro em escrever para a mãe e as irmãs. No dia
seguinte, os sintomas que se declararam foram, segundo Bianchon, de favorável
augúrio; mas exigiram cuidados contínuos de que só os dois estudantes eram
capazes, e em cujo relato é impossível comprometer a pudibunda fraseologia da
época. As sanguessugas aplicadas no corpo definhado do velho foram
acompanhadas de cataplasmas, banhos de pé, manobras médicas para as quais,
de resto, precisava-se da força e da dedicação dos dois rapazes. A sra. de
Restaud não apareceu; mandou buscar a quantia por um mensageiro.
— Achei que ela viria pessoalmente. Mas não é um mal, teria se inquietado —
disse o pai, parecendo feliz com essa circunstância.
Às sete horas da noite, Thérèse foi levar uma carta de Delphine.

Mas o que faz, meu amigo? Apenas amada, já serei negligenciada? Você me
mostrou, nessas confidências despejadas de coração a coração, uma alma
bela demais para não ser desses que permanecem sempre fiéis ao verem
quantos matizes têm os sentimentos. Como disse ao ouvir a prece de Moisés:
65 “Para uns é uma mesma nota, para outros é o infinito da música!”.

Lembre-se de que o espero esta noite para ir ao baile da sra. de Beauséant.


Decididamente, o contrato do sr. d’Ajuda foi assinado hoje de manhã na
corte, e a pobre viscondessa só soube às duas horas. Toda Paris vai se
apresentar na casa dela, assim como o povo abarrota a Place de Grève
quando deve haver uma execução. Não é horrível ir ver se essa mulher
esconderá sua dor, se saberá morrer dignamente? Eu decerto não iria, meu
amigo, se já tivesse estado na casa dela; mas com certeza ela não mais
receberá, e todos os esforços que fiz seriam supérfluos. Minha situação é bem
diferente da dos outros. Aliás, vou também para vê-lo. Espero-o. Se não
estiver perto de mim daqui a duas horas, não sei se o perdoaria por essa
traição.

Rastignac pegou uma pena e respondeu assim:

Aguardo um médico para saber se seu pai ainda deve viver. Está moribundo.
Irei levar-lhe a sentença, e temo que seja uma sentença de morte. Você verá
se poderá ir ao baile. Mil ternuras.

O médico chegou às oito e meia, e, sem dar uma opinião favorável, não pensou
que a morte fosse iminente. Anunciou melhoras e recaídas alternadas das quais
dependeriam a vida e a razão do velho.
— Seria melhor que morresse rapidamente — foram as últimas palavras do
médico.
Eugène confiou o pai Goriot aos cuidados de Bianchon e saiu para ir levar à
sra. de Nucingen as tristes notícias que, em seu espírito ainda imbuído dos
deveres de família, deveriam suspender toda alegria.
— Diga-lhe que se divirta assim mesmo — gritou-lhe o pai Goriot, que parecia
adormecido, mas se recostou no momento em que Rastignac saiu.
O rapaz se apresentou a Delphine desolado de dor, e encontrou-a penteada,
calçada, tendo apenas que pôr o vestido de baile. Mas, semelhantes às pinceladas
com que os pintores terminam seus quadros, os últimos preparativos exigiam
mais tempo que demandavam o próprio fundo da tela.
— O quê, não está vestido? — ela disse.
— Mas, senhora, seu pai…
— Ainda meu pai — ela exclamou interrompendo-o. — Mas não me ensinará
o que devo a meu pai. Conheço meu pai há muito tempo. Nem uma palavra,
Eugène. Só o escutarei quando tiver feito sua toalete. Thérèse preparou tudo em
seu apartamento; meu carro está pronto, pegue-o; e volte. Conversaremos sobre
meu pai na ida para o baile. É preciso partir cedo, se ficarmos presos na fila dos
carros, teremos muita sorte se entrarmos só às onze horas.
— Senhora!
— Ande! Nem uma palavra — ela disse correndo ao budoar para pegar um
colar.
— Mas vá logo, sr. Eugène, para a senhora não se zangar — disse Thérèse
empurrando o rapaz, apavorado com esse elegante parricídio.
Foi se vestir fazendo as mais tristes, as mais desanimadoras reflexões. Via o
mundo como um oceano de lama no qual um homem mergulhava até o pescoço
se ali molhasse o pé. “Aí só se cometem crimes mesquinhos!”, pensou. “Vautrin
é maior.” Ele vira as três grandes expressões da sociedade: a Obediência, a Luta
e a Revolta; a Família, a Sociedade e Vautrin. E não ousava tomar partido. A
Obediência era maçante, a Revolta, impossível, e a Luta, incerta. Seu
pensamento o levou para o seio de sua família. Lembrou-se das puras emoções
daquela vida calma, rememorou os dias passados em meio a seres por quem era
querido. Conformando-se às leis naturais do lar doméstico, aquelas queridas
criaturas ali encontravam uma felicidade plena, contínua, sem angústias. Apesar
de seus bons pensamentos, não se sentiu com coragem de ir confessar a fé das
almas puras para Delphine, ordenando-lhe a Virtude em nome do Amor. Sua
educação iniciada já dera seus frutos. Já amava egoisticamente. Seu tato lhe
permitira reconhecer a natureza do coração de Delphine. Pressentia que ela era
capaz de andar sobre o corpo do pai para ir ao baile, e ele não tinha a força de
representar o papel de um argumentador, nem a coragem de lhe desagradar, nem
a virtude de abandoná-la. “Ela jamais me perdoaria ter tido razão contra ela
nessa circunstância”, pensou. Depois, interpretou as palavras dos médicos,
gostou de pensar que o pai Goriot não estava tão perigosamente doente quanto
acreditava; por último, acumulou argumentos assassinos para justificar Delphine.
Ela não conhecia o estado em que o pai se encontrava. O próprio homenzinho a
mandaria para o baile se ela fosse vê-lo. Muitas vezes a lei social, implacável em
sua fórmula, condena ali onde o crime aparente é desculpado pelas inúmeras
modificações que a diferença dos caracteres, a diversidade dos interesses e das
situações introduzem no seio das famílias. Eugène queria se enganar, estava
disposto a sacrificar para sua amante o sacrifício da própria consciência. Fazia
dois dias que tudo mudara em sua vida. A mulher nela jogara suas desordens,
fizera a família empalidecer, tudo confiscara em seu proveito. Rastignac e
Delphine tinham se encontrado nas condições requeridas para sentirem um pelo
outro os mais profundos prazeres. A bem preparada paixão entre eles crescera
graças ao que mata as paixões, graças à fruição. Possuindo aquela mulher,
Eugène percebeu que até então apenas a desejara, e só a amou no dia seguinte da
felicidade: o amor talvez seja apenas o reconhecimento do prazer. Infame ou
sublime, adorava aquela mulher pelas volúpias que lhe levara como dote, e por
todas as que dela recebera; da mesma maneira, Delphine amava Rastignac tanto
quanto Tântalo teria amado o anjo que teria vindo satisfazer sua fome, ou matar
a sede de sua garganta ressecada.
— E então, como vai meu pai? — perguntou-lhe a sra. de Nucingen quando ele
estava de volta e em traje de baile.
— Extremamente mal — respondeu —, se quer me dar uma prova de sua
afeição, corramos vê-lo.
— Pois bem, sim — ela disse —, mas depois do baile. Meu bom Eugène, seja
gentil, não me dê lição de moral, venha.
Partiram. Eugène ficou calado durante parte do caminho.
— Mas o que tem? — ela perguntou.
— Estou ouvindo o estertor de seu pai — ele respondeu em tom do amuo. E
pôs-se a contar, com a calorosa eloquência da juventude, o ato feroz a que a sra.
de Restaud fora impelida pela vaidade, a crise mortal que a derradeira dedicação
do pai causara, e quanto custaria o vestido de lamê de Anastasie. Delphine
chorava.
“Vou estar feia”, pensou. Suas lágrimas secaram.
— Irei cuidar de meu pai, não abandonarei sua cabeceira — continuou.
— Ah! ei-la como a queria — exclamou Rastignac.
As lanternas de quinhentos carros iluminavam os arredores do palacete de
Beauséant. De cada lado da porta iluminada havia um guarda montado a cavalo.
A grande sociedade afluía tão abundantemente, e todos punham tanto empenho
em ver aquela grande mulher no momento de sua queda, que os salões, situados
no térreo do palacete, já estavam lotados quando a sra. de Nucingen e Rastignac
se apresentaram. Desde o momento em que toda a corte se precipitou à casa da
Grande Mademoiselle, cujo amante Luís XIV lhe arrancara, 66 nenhum desastre
amoroso foi mais rumoroso que o da sra. de Beauséant. Nessa circunstância, a
última filha da quase real casa de Bourgogne mostrou-se superior a seu mal, e
dominou até o último momento a sociedade cujas vaidades ela só aceitara para
pô-las a serviço do triunfo de sua paixão. As mais belas mulheres de Paris
animavam os salões com suas toaletes e seus sorrisos. Os homens mais distintos
da corte, os embaixadores, os ministros, as pessoas ilustres de todo tipo,
enfeitadas de cruzes, placas, cordões multicoloridos, espremiam-se em torno da
viscondessa. A orquestra fazia ecoarem os motivos de sua música sob os lambris
dourados daquele palácio, deserto para sua rainha. A sra. de Beauséant
mantinha-se de pé diante de seu primeiro salão para receber seus pretensos
amigos. Vestida de branco, sem nenhum enfeite em seus cabelos simplesmente
trançados, parecia calma e não exibia dor, nem orgulho, nem falsa alegria.
Ninguém podia ler em sua alma. Poderia se dizer uma Níobe de mármore. Seu
sorriso para os amigos íntimos foi por vezes escarnecedor; mas a todos pareceu
como sempre foi, e mostrou-se tão bem como era quando a felicidade a
ornamentava com seus raios, quando os mais insensíveis a admiraram, assim
como as jovens romanas aplaudiam o gladiador que sabia sorrir ao expirar. O
mundo parecia ter se enfeitado para dar adeus a uma de suas soberanas.
— Eu tremia de medo que não viesse — disse a Rastignac.
— Senhora — ele respondeu com voz emocionada, tomando essas palavras
como uma crítica —, vim para ser o último a ir embora.
— Bem — ela disse pegando sua mão. — Talvez seja aqui o único em quem
posso me fiar. Meu amigo, ame uma mulher que possa amar para sempre. Não
abandone nenhuma.
Pegou o braço de Rastignac e levou-o para um sofá no salão onde jogavam.
— Vá — disse-lhe — à casa do marquês. Jacques, meu criado de quarto, o
conduzirá e lhe entregará uma carta para ele, a quem peço minha
correspondência. Ele a entregará integralmente, prefiro acreditar nisso. Quando
estiver com minhas cartas, suba a meu quarto. Vão me prevenir.
Levantou-se para ir ao encontro da duquesa de Langeais, sua melhor amiga,
que também estava chegando. Rastignac partiu, mandou chamar o marquês
d’Ajuda no palacete de Rochefide, onde ele devia passar a noite, e onde o
encontrou. O marquês o levou à sua casa, entregou ao estudante uma caixa e lhe
disse:
— Estão todas aqui.
Pareceu querer falar com Eugène, fosse para questioná-lo sobre os
acontecimentos do baile e sobre a viscondessa, fosse para lhe confessar que
talvez já estivesse desesperado com o casamento, como ficou mais tarde; mas
um lampejo de orgulho brilhou em seus olhos, e ele teve a deplorável coragem
de manter segredo sobre seus mais nobres sentimentos.
— Não lhe diga nada de mim, meu caro Eugène.
Apertou a mão de Rastignac com um gesto afetuosamente triste, e lhe fez sinal
para partir. Eugène voltou ao palacete de Beauséant e foi introduzido no quarto
da viscondessa, onde viu os preparativos de uma partida. Sentou-se perto da
lareira, olhou a caixinha de cedro e caiu numa profunda melancolia. Para ele, a
sra. de Beauséant tinha as proporções das deusas da Ilíada.
— Ah, meu amigo! — disse a viscondessa ao entrar e apoiando a mão no
ombro de Rastignac.
Ele viu sua prima em lágrimas, os olhos erguidos, a mão trêmula, a outra
levantada. Ela pegou de repente a caixa, colocou-a no fogo e a viu queimar.
— Eles estão dançando! Vieram todos, rigorosamente, ao passo que a morte
virá mais tarde. Pssiu, meu amigo! — disse pondo um dedo sobre a boca de
Rastignac, prestes a falar. — Nunca mais verei Paris nem a sociedade. Às cinco
da manhã vou partir para ir me enterrar no fundo da Normandia. Desde as três da
tarde fui obrigada a fazer meus preparativos, assinar atos, ver os negócios; não
podia enviar ninguém à casa de…
Parou.
— Ele tinha certeza de que o encontrariam na casa de…
Parou de novo, prostrada de dor. Nesses momentos tudo é sofrimento, e certas
palavras são impossíveis de pronunciar.
— Finalmente — prosseguiu — eu contava com o senhor esta noite para este
último favor. Gostaria de lhe dar uma prova de minha amizade. Pensarei muitas
vezes em si, que me pareceu bom e nobre, jovem e cândido no meio deste
mundo em que essas qualidades são tão raras. Desejo que pense em mim de vez
em quando. Tome — disse dando uma olhadela ao redor —, aqui está a caixa
onde eu punha minhas luvas. Todas as vezes que a peguei antes de ir ao baile ou
ao espetáculo, senti-me bela, porque estava feliz, e só tocava nela para aí deixar
algum pensamento gracioso: há muito de mim aí dentro, há toda uma sra. de
Beauséant que não existe mais, aceite-a, providenciarei para que a levem à sua
casa, na Rue d’Artois. A sra. de Nucingen está muito bem esta noite, ame-a
bastante. Se não nos virmos mais, meu amigo, tenha certeza de que farei votos
para si, que foi bom comigo. Desçamos, não quero deixá-los crer que estou
chorando. Tenho a eternidade pela frente, ficarei sozinha e ninguém me pedirá
contas de minhas lágrimas. Um último olhar para este quarto.
Parou. Em seguida, depois de ter escondido um instante os olhos com a mão,
enxugou-os, banhou-os de água fresca e pegou o braço do estudante.
— Vamos! — disse.
Rastignac ainda não sentira emoção tão violenta como foi o contato com
aquela dor tão nobremente contida. Ao entrar no baile, Eugène deu uma volta
com a sra. de Beauséant, última e delicada atenção daquela mulher graciosa.
Logo avistou as duas irmãs, a sra. de Restaud e a sra. de Nucingen. A condessa
estava magnífica com todos os seus diamantes à mostra, que, para ela, sem
dúvida eram ardentes, pois usava-os pela última vez. Por mais poderosos que
fossem seu orgulho e seu amor, não sustentava muito bem os olhares do marido.
Esse espetáculo não era capaz de tornar menos tristes os pensamentos de
Rastignac. Se ele tinha revisto Vautrin no coronel italiano, 67 reviu então, sob os
diamantes das duas irmãs, o catre em que jazia o pai Goriot. Tendo sua atitude
melancólica enganado a viscondessa, ela lhe retirou seu braço.
— Vá! não quero lhe custar um prazer — ela disse.
Eugène foi logo reclamado por Delphine, feliz com o efeito que produzia, e
desejando pôr aos pés do estudante as homenagens que recolhia naquela
sociedade, pela qual esperava ser adotada.
— Como acha que está Nasie? — perguntou-lhe.
— Ela já gastou por conta, até a morte do pai — disse Rastignac.
Por volta das quatro da manhã, a multidão dos salões começava a clarear. Logo
a música não se fez mais ouvir. A duquesa de Langeais e Rastignac viram-se a
sós no grande salão. A viscondessa, pensando ali só encontrar o estudante,
dirigiu-se para lá depois de dar adeus ao sr. de Beauséant, que foi dormir lhe
repetindo:
— Está errada, minha cara, de ir se isolar assim, na sua idade! Fique conosco!
— Adivinhei suas intenções, Clara — disse a sra. de Langeais. — Está
partindo para não mais voltar; mas não partirá sem ter me ouvido e sem que nos
tenhamos entendido. — Pegou a amiga pelo braço, levou-a para o salão contíguo
e ali, olhando-a com lágrimas nos olhos, apertou-a nos braços e beijou-a nas
faces. — Não quero deixá-la friamente, minha cara, seria um remorso muito
pesado. Pode contar comigo como consigo mesma. Esta noite você foi
grandiosa, senti-me digna de si, e quero provar-lhe. Cometi erros consigo, nem
sempre me comportei bem, perdoe-me, minha cara: renego tudo o que pôde tê-la
ferido, gostaria de retomar minhas palavras. Uma mesma dor uniu nossas almas,
e não sei quem de nós será a mais infeliz. O sr. de Montriveau não estava aqui
esta noite, entende? Quem a viu durante este baile, Clara, jamais a esquecerá.
Quanto a mim, tento um último esforço. Se fracassar, irei para um convento!
Para onde vai?
— Para a Normandia, Courcelles, amar, rezar, até o dia em que Deus me retirar
deste mundo.
— Venha, sr. de Rastignac — disse a viscondessa com voz emocionada,
pensando que aquele rapaz estava esperando. O estudante se ajoelhou, pegou a
mão de sua prima e a beijou. — Antoinette, adeus! — prosseguiu a sra. de
Beauséant —, seja feliz. Quanto ao senhor, é feliz, é jovem, pode acreditar em
alguma coisa — disse ao estudante. — Quando partir deste mundo, terei tido,
como alguns moribundos privilegiados, religiosas e sinceras emoções ao meu
redor!
Rastignac foi embora por volta das cinco horas, depois de ter visto a sra. de
Beauséant em sua berlinda de viagem, depois de ter recebido seu derradeiro
adeus molhado de lágrimas que provavam que as pessoas mais elevadas não
estão excluídas da lei do coração e não vivem sem tristezas, como certos
cortesãos do povo gostariam de fazê-lo crer. Eugène voltou a pé para a Casa
Vauquer, com um tempo úmido e frio. Sua educação se concluía.
— Não salvaremos o pai Goriot — disse-lhe Bianchon quando Rastignac
entrou no quarto de seu vizinho.
— Meu amigo — disse-lhe Eugène depois de olhar para o velhinho
adormecido —, vá, persiga o destino modesto ao qual você limita seus desejos.
De meu lado, estou no inferno, e aí devo permanecer. Seja qual for o mal que lhe
contarem da sociedade, acredite! Não há Juvenal que consiga pintar o seu horror
coberto de ouro e pedrarias.
No dia seguinte, Rastignac foi acordado pelas duas da tarde por Bianchon, que,
obrigado a sair, lhe pediu para cuidar do pai Goriot, cujo estado piorara muito
durante a manhã.
— O homenzinho não tem dois dias, talvez não tenha seis horas de vida —
disse o estudante de medicina —, e no entanto não podemos parar de combater a
doença. Será preciso lhe ministrar cuidados caros. Nós é que iremos cuidar dele;
mas não tenho um tostão. Revirei os bolsos dele, remexi nos armários: zero
vezes zero. Interroguei-o num momento em que estava lúcido, disse-me não ter
um vintém com ele. Quanto você tem?
— Restam-me vinte francos — respondeu Rastignac —; mas irei apostá-los, e
ganharei.
— E se perder?
— Pedirei dinheiro a seus genros e a suas filhas.
— E se não lhe derem? — retrucou Bianchon. — O mais urgente neste
momento não é encontrar dinheiro, é necessário envolver o homem num
sinapismo fervendo, dos pés até o meio das coxas. Se ele gritar, ainda haverá
remédio. Você sabe como se faz. Aliás, Christophe o ajudará. Passarei no
boticário para me responsabilizar por todos os remédios que pegaremos com ele.
É triste que o pobre homem não possa ser transportado para nosso hospital, lá
estaria melhor. Vamos, venha para que eu o instale, e não o largue até que eu
volte.
Os dois rapazes entraram no quarto onde jazia o velho. Eugène ficou
apavorado com a mudança daquela face convulsa, branca e profundamente fraca.
— E então, papai? — disse-lhe inclinando-se sobre o catre.
Goriot levantou para Eugène olhos vazios e o fitou muito atentamente sem
reconhecê-lo. O estudante não aguentou essa cena, lágrimas umedeceram seus
olhos.
— Bianchon, não seria bom ter cortinas nas janelas?
— Não. As circunstâncias atmosféricas já não o afetam. Seria bom demais se
ele sentisse calor ou frio. No entanto, precisamos fogo para fazer as infusões e
preparar várias coisas. Vou lhe enviar feixes de gravetos que nos servirão até
termos lenha. Ontem e esta noite queimei a sua e todos os torrões de turfa do
pobre homem. Estava úmido, a água escorria pelas paredes. Mal pude secar o
quarto. Christophe o varreu, é realmente uma pocilga. Queimei zimbro, pois
estava fedendo muito.
— Meu Deus! — disse Rastignac. — Mas as filhas dele!
— Tome, se ele pedir algo para beber, dê-lhe isto — disse o residente
mostrando a Rastignac um grande jarro branco. — Se ouvi-lo gemer e se o
ventre estiver quente e duro, peça a Christophe para ajudá-lo a ministrar-lhe…
você sabe. Se por acaso ele tiver uma grande exaltação, se falar muito, se tiver,
em suma, um tantinho de demência, deixe-o estar. Não será um mau sinal. Mas
mande Christophe ao Hospital Cochin. Nosso médico, meu colega ou eu viremos
lhe aplicar as moxas. Fizemos de manhã, enquanto você dormia, uma grande
consulta com um aluno do dr. Gall, com um médico-chefe do Hôtel-Dieu e o
nosso. Esses senhores pensaram reconhecer curiosos sintomas, e vamos
acompanhar os avanços da doença a fim de esclarecer vários pontos científicos
bem importantes. Um desses senhores pretende que a pressão do sangue, caso se
desse mais sobre um órgão que sobre outro, poderia desenvolver fatos
particulares. Portanto, escute-o bem, caso ele fale, a fim de verificar a que
gênero de ideias pertenceriam seus discursos: se são efeitos de memória, de
penetração, de julgamento; se ele se ocupa de materialidades ou de sentimentos;
se calcula, se volta ao passado; enfim, ponha-se em condição de nos fazer um
relatório exato. É possível que a invasão ocorra em bloco, ele morrerá imbecil
como está neste momento. Tudo é muito esquisito nas doenças desse tipo! Se a
bomba estourasse por aqui — disse Bianchon mostrando o occipital do doente
—, há exemplos de fenômenos singulares: o cérebro recobre algumas de suas
faculdades, e a morte é mais lenta a se declarar. As serosidades podem se desviar
do cérebro, pegar caminhos cujo curso só se conhece pela autópsia. Há nos
Incurables um velho idiota em quem o derrame seguiu a coluna vertebral; sofre
terrivelmente, mas está vivo.
— Elas se divertiram bastante? — perguntou o pai Goriot, que reconheceu
Eugène.
— Oh! só pensa nas filhas — disse Bianchon. — Disse-me mais de cem vezes
esta noite: “Elas estão dançando! Ela está com seu vestido”. Chamava-as pelos
nomes. Ele me fazia chorar, que o diabo me carregue!, com suas entonações:
“Delphine!, minha pequena Delphine! Nasie!”. Palavra de honra — disse o
estudante de medicina —, era de se debulhar em lágrimas.
— Delphine — disse o velho —, ela está aí, não está? Eu bem que sabia. — E
seus olhos recuperaram uma atividade alucinada para olhar as paredes e a porta.
— Desço para dizer a Sylvie que prepare os sinapismos — gritou Bianchon —,
o momento é favorável.
Rastignac ficou sozinho ao lado do velho, sentado ao pé da cama, com os olhos
fixos naquela cabeça assustadora e dolorosa de ver.
“A sra. de Beauséant foge, este aqui morre”, ele pensou. “As belas almas não
podem ficar muito tempo neste mundo. De fato, como os grandes sentimentos se
aliariam a uma sociedade mesquinha, pequena, superficial?”
As imagens da festa à qual assistira se representaram em sua lembrança e
contrastaram com o espetáculo daquele leito de morte. Bianchon reapareceu de
repente.
— Ouça bem, Eugène, acabo de ver nosso médico-chefe, e voltei correndo. Se
se manifestarem sintomas de razão, se ele falar, deite-o sobre um longo
sinapismo, de maneira a envolvê-lo com mostarda desde a nuca até abaixo da
cintura, e mande nos chamar.
— Querido Bianchon — disse Eugène.
— Oh! Trata-se de um fato científico — prosseguiu o estudante de medicina
com todo o ardor do neófito.
— Ora — disse Eugène —, serei então o único a cuidar deste pobre velhinho,
por afeição.
— Se tivesse me visto hoje de manhã, não diria isso — retrucou Bianchon,
sem se ofender com o comentário. — Os médicos que praticam só veem a
doença; eu ainda vejo o doente, meu querido rapaz.
Foi embora, deixando Eugène a sós com o velho, e no temor de uma crise que
não demorou a se declarar.
— Ah, é você, meu querido filho — disse o pai Goriot reconhecendo Eugène.
— Sente-se melhor? — perguntou o estudante, pegando-lhe a mão.
— Sim, eu sentia a cabeça apertada como num torno, mas está se soltando. Viu
minhas filhas? Elas vão chegar logo, virão correndo assim que souberem que
estou doente, cuidaram tanto de mim na Rue de la Jussienne! Meu Deus!
Gostaria que meu quarto estivesse limpo para recebê-las. Há um rapaz que me
queimou todas as minhas turfas.
— Estou ouvindo Christophe — disse-lhe Eugène —, ele está subindo com a
lenha que esse rapaz lhe envia.
— Que bom! Mas como pagar a lenha? Não tenho um tostão, meu filho. Dei
tudo, tudo. Estou dependendo da caridade. Pelo menos o vestido de lamê era
bonito? (Ah! estou com dor!) Obrigado, Christophe. Deus o recompensará, meu
menino; não tenho mais nada.
— Vou lhe pagar bem, a você e a Sylvie — Eugène cochichou para o rapaz.
— Minhas filhas lhe disseram que viriam, não disseram, Christophe? Vá lá de
novo, lhe darei cem vinténs. Diga a elas que não me sinto bem, que gostaria de
beijá-las, de vê-las mais uma vez antes de morrer. Diga-lhes isso, mas sem
assustá-las demais.
Christophe partiu, a um sinal de Rastignac.
— Elas vão vir — prosseguiu o velhote. — Eu as conheço. Essa boa Delphine,
se eu morrer, que tristeza lhe causarei! Nasie também. Não gostaria de morrer,
para não fazê-las chorar. Morrer, meu bom Eugène, é não vê-las mais. Lá para
onde se vai vou me aborrecer um bocado. Para um pai, o inferno é ficar sem
filhos, e já fiz meu aprendizado desde que se casaram. Meu paraíso era na Rue
de la Jussienne. Mas me diga, se eu for para o paraíso, poderei voltar para a terra
como espírito, ao redor delas. Ouvi contar coisas assim. Serão verdadeiras?
Acredito vê-las neste momento, tais como eram na Rue de la Jussienne. Desciam
de manhã. “Bom dia, papai”, diziam. Eu as pegava no colo, lhes fazia mil
provocações, pregava-lhes peças. Elas me acariciavam, gentis. Almoçávamos
toda manhã, juntos, jantávamos, em suma, eu era pai, desfrutava de minhas
filhas. Quando estavam na Rue de la Jussienne, não argumentavam, não sabiam
nada do mundo, gostavam muito de mim. Meu Deus! Por que não continuaram
para sempre a ser pequenas? (Oh, estou sofrendo, a cabeça me repuxa.) Ah! Ah!
desculpe, minhas filhas! Estou sofrendo horrivelmente, e é preciso que seja dor
de verdade, pois vocês me tornaram um tanto resistente à dor. Meu Deus! Se
pelo menos tivesse as mãos delas nas minhas, não sentiria minha dor. Acha que
virão? Christophe é tão bobo! Eu deveria ter ido pessoalmente. Ele vai vê-las.
Mas ontem você esteve no baile. Então me diga como estavam? Elas não sabiam
nada da minha doença, não é mesmo? Não teriam dançado, pobrezinhas! Oh!
Não quero mais ficar doente. Ainda precisam muito de mim. As fortunas delas
estão comprometidas. E a que maridos estão entregues! Cure-me, cure-me! (Ai!
como estou sofrendo! Ai! Ai! Ai!) Tenho que me curar, sabe, porque elas
precisam de dinheiro, e sei onde ir ganhá-lo. Vou fazer amido em Odessa. Sou
esperto, ganharei milhões. (Oh! Estou sofrendo demais!)
Goriot ficou calado por um instante, parecendo fazer todos os esforços para
juntar suas forças e suportar a dor.
— Se estivessem aqui eu não me queixaria — disse. — Então, por que me
queixar?
Caiu num cochilo leve, que durou muito tempo. Christophe voltou. Rastignac,
que pensava que o pai Goriot dormia, deixou o rapaz lhe prestar contas de sua
missão em voz alta.
— Senhor — ele disse —, primeiro fui à casa da senhora condessa, com quem
me foi impossível falar, estava em altos negócios com o marido. Como insisti, o
sr. de Restaud veio pessoalmente e me disse assim: “O sr. Goriot está morrendo,
pois bem, é o que tem de melhor a fazer. Preciso da sra. de Restaud para concluir
negócios importantes, ela irá quando tudo estiver terminado”. Parecia estar
furioso, esse senhor aí. Eu ia sair quando a senhora entrou na antessala por uma
porta que eu não estava vendo e me disse: “Christophe, diga a meu pai que estou
em discussão com meu marido, não posso deixá-lo; trata-se de vida ou morte de
meus filhos; mas, assim que tudo terminar, irei”. Quanto à senhora baronesa,
outra história! Não a vi e não pude falar com ela. “Ah!”, me disse a camareira,
“a senhora voltou do baile às cinco e quinze, está dormindo; se a acordar antes
do meio-dia, ralhará comigo. Eu lhe direi que o pai piorou quando ela me
chamar. Sempre é hora de lhe dar uma má notícia.” Por mais que eu tivesse
pedido, ah, hã-hã! Pedi para falar com o senhor barão, tinha saído.
— Nenhuma das filhas virá — exclamou Rastignac. — Vou escrever às duas.
— Nenhuma — respondeu o velhote se erguendo. — Têm negócios, dormem,
não virão. Eu sabia. É preciso morrer para saber o que são os filhos. Ah, meu
amigo, não se case, não tenha filhos! Você lhes dá a vida, eles lhe dão a morte.
Você os faz entrar no mundo, eles daí o expulsam. Não, não virão! Sei disso há
dez anos. Eu me dizia isso às vezes, mas não ousava acreditar.
Uma lágrima rolou de cada um de seus olhos, da borda vermelha, sem cair.
— Ah, se eu fosse rico, se tivesse mantido minha fortuna, se não lhes tivesse
dado, estariam aqui, me lamberiam as faces com seus beijos! Eu moraria num
palacete, teria belos aposentos, domésticos, fogo para mim; e estariam em
prantos, com seus maridos, seus filhos. Eu teria tudo isso. Mas qual o quê. O
dinheiro compra tudo, até mesmo filhas. Oh! meu dinheiro, onde está? Se tivesse
tesouros para deixar, cuidariam de mim, me curariam; eu as escutaria, as veria.
Ah, meu querido filho, meu único filho, prefiro meu abandono e minha miséria!
Pelo menos, quando um pobre coitado é amado, está bem seguro de que o amam.
Sim, gostaria de ser rico, eu as veria. Pensando bem, quem sabe? As duas têm
coração de pedra. Eu tinha amor demais por elas para que o tivessem por mim.
Um pai deve ser sempre rico, deve manter os filhos em rédea curta como cavalos
manhosos. Eu ficava de joelhos diante delas. As miseráveis! Elas coroam
dignamente seu comportamento comigo há dez anos. Se soubesse como eram
cheias de atenções comigo nos primeiros tempos de seus casamentos! (Oh! estou
sofrendo um cruel martírio!) Eu acabava de dar a cada uma quase oitocentos mil
francos, não podiam, nem tampouco seus maridos, ser rudes comigo. Recebiam-
me: “Meu bom pai” aqui; “meu querido pai” ali. Meu lugar estava sempre posto
à mesa delas. Em suma, jantava com seus maridos, que me tratavam com
consideração. Eu ainda parecia ter alguma coisa. Por que isso? Eu não tinha dito
nada de meus negócios. Um homem que dá oitocentos mil francos às filhas era
um homem a ser cuidado. E desdobravam-se em atenções, mas era para meu
dinheiro. O mundo não é bonito. Eu vi isso! Levavam-me de carruagem ao
espetáculo, e eu ficava à vontade nas festas. Enfim, diziam-se minhas filhas e me
admitiam como pai delas. Ainda tenho minha perspicácia, sabe, e nada me
escapou. Tudo foi feito com essa habilidade e me trespassou o coração. Eu via
muito bem que eram fingimentos; mas o mal não tinha remédio. Na casa delas só
me sentia à vontade na mesa de baixo. Eu não sabia dizer nada. Assim, quando
algumas daquelas pessoas da sociedade perguntavam ao ouvido de meus genros:
“Quem é aquele senhor ali?”, diziam “É o pai dos escudos, é rico. — Ah,
diachos!”, e me olhavam com o respeito devido aos escudos. Mas, se às vezes eu
os constrangia um pouco, compensava muito bem meus defeitos! Aliás, quem
afinal é perfeito? (Minha cabeça está uma chaga!) Sofro neste momento o que é
preciso sofrer para morrer, meu querido sr. Eugène, pois bem, isso não é nada
em comparação com a dor que me causou o primeiro olhar pelo qual Anastasie
me fez compreender que eu acabava de dizer uma besteira que a humilhava; seu
olhar me cortou todas as veias. Eu gostaria de saber tudo, mas o que soube muito
bem é que estava sobrando nesta terra. No dia seguinte fui à casa de Delphine
para me consolar, e eis que ali faço uma besteira que a deixou furiosa. Fiquei
como louco. Passei oito dias não mais sabendo o que devia fazer. Não ousei ir
vê-las, de medo de suas reprimendas. E eis-me no olho da rua das casas de
minhas filhas. Ó, meu Deus! Já que conheces as misérias, os sofrimentos que
tolerei; já que contaste as punhaladas que recebi, neste tempo que me
envelheceu, me mudou, me matou, me embranqueceu, por que então estás me
fazendo sofrer hoje? Expiei muito bem o pecado de amá-las demais. Vingaram-
se muito bem de meu afeto, torturaram-me como carrascos. Pois bem, os pais
são tão tolos! Amava-as tanto que voltei lá, assim como um jogador volta ao
jogo. Minhas filhas eram meu vício; eram minhas amantes, em suma, tudo! As
duas precisavam de alguma coisa, de joias; suas camareiras me diziam, e eu lhes
dava, para ser bem recebido! Mas mesmo assim me deram umas liçõezinhas
sobre minha maneira de me comportar em sociedade. Oh! Não esperavam o dia
seguinte. Começaram a sentir vergonha de mim. Eis o que é bem educar os
filhos. Na minha idade eu não podia, porém, ir à escola. (Estou sofrendo
horrivelmente, meu Deus! Os médicos! Os médicos! Se me abrissem a cabeça,
sofreria menos.) Minhas filhas, minhas filhas, Anastasie, Delphine! Quero vê-
las. Mande buscá-las pelos guardas, à força! A justiça está comigo, tudo está do
meu lado, a natureza, o código civil. Eu protesto. A pátria sucumbirá se os pais
forem pisoteados. Isso está claro. A sociedade e o mundo funcionam graças à
paternidade, tudo desaba se os filhos não amam os pais. Oh! vê-las, ouvi-las, não
importa o que me dirão, contanto que eu escute suas vozes, isso acalmará minhas
dores, Delphine sobretudo. Mas diga a elas, quando estiverem aqui, para não me
olharem friamente como olham. Ah! meu bom amigo, sr. Eugène, não sabe o
que é encontrar o ouro do olhar mudado de repente em chumbo cinza. Desde o
dia em que os olhos delas pararam de brilhar para mim, sempre estive no inverno
aqui; nunca mais tive senão tristezas a devorar, e devorei-as! Vivi para ser
humilhado, insultado. Amo-as tanto, que engolia todas as afrontas com que me
vendiam uma pobre fruiçãozinha vergonhosa. Um pai esconder-se para ver suas
filhas! Dei-lhes minha vida, não me darão uma hora hoje! Tenho sede, tenho
fome, o coração me queima, não virão refrescar minha agonia, pois estou
morrendo, sinto. Mas então não sabem o que é andar sobre o cadáver do próprio
pai! Há um Deus nos céus, ele nos vinga, a nós pais, sem que desejemos. Oh!
elas virão! Venham, minhas queridas, venham me beijar ainda, um derradeiro
beijo, o viático de seu pai, que pedirá a Deus por vocês, que lhe dirá que foram
boas filhas, que as defenderá! Afinal de contas, vocês são inocentes. Elas são
inocentes, meu amigo. Diga-o a todo mundo, que não as inquietem por minha
causa. Tudo é culpa minha, habituei a me pisotearem. Gostava disso. Ninguém
tem nada com isso, nem a justiça humana, nem a justiça divina. Deus seria
injusto se as condenasse por minha causa. Eu não soube me conduzir, fiz a
besteira de abdicar de meus direitos. Teria me aviltado por elas! O que quer? O
mais belo caráter, as melhores almas teriam sucumbido à corrupção dessa
facilidade paterna. Sou um miserável, sou punido com justiça. Só eu é que causei
as desordens de minhas filhas, mimei-as. Hoje querem o prazer, como
antigamente queriam balas. Sempre lhes permiti satisfazerem suas fantasias de
mocinhas. Aos quinze anos, tinham carruagem! Nada lhes resistiu. Só eu sou
culpado, mas culpado por amor. As vozes delas me abriam o coração. Ouço-as,
estão vindo. Oh, sim, virão! Reza a lei que se venha ver o pai morrer, a lei está
do meu lado. Além do mais, isso custará apenas uma corrida. Pagarei. Escreva-
lhes que tenho milhões para lhes deixar! Palavra de honra. Irei fazer massas
italianas em Odessa. Conheço o modo de fazer. No meu projeto há milhões a
ganhar. Ninguém pensou nisso. Não se estragarão no transporte, como o trigo ou
como a farinha. Eh, eh, o amido? Haverá milhões aí! Não minta, diga-lhes
milhões e, mesmo que venham por avareza, prefiro ser enganado, mas as verei.
Quero minhas filhas! Eu as fiz! Elas são minhas! — disse erguendo-se,
mostrando a Eugène uma cabeça de cabelos brancos esparsos e que ameaçava
com tudo o que podia expressar ameaça.
— Vamos — disse-lhe Eugène —, deite-se de novo, meu bom pai Goriot, vou
escrever a elas. Assim que Bianchon voltar irei lá, se não vierem.
— Se não vierem? — repetiu o velhote soluçando. — Mas terei morrido,
morrido de um acesso de raiva, de raiva! A raiva está me invadindo! Neste
momento, vejo minha vida inteira. Sou um palerma! Elas não me amam, nunca
me amaram! Isso está claro. Se não vieram, não virão mais. Quanto mais
demorarem, menos se decidirão a me dar essa alegria. Conheço-as. Nunca
souberam adivinhar nada de minhas tristezas, de minhas dores, de minhas
necessidades, tampouco adivinharão minha morte; não conhecem o segredo de
minha ternura. Sim, estou vendo, para elas o hábito de abrir minhas entranhas
tirava o valor de tudo o que eu fazia. Teriam pedido para me furar os olhos, eu
lhes teria dito: “Furem-nos!”. Sou muito tolo. Acreditam que todos os pais são
como o delas. É preciso sempre se valorizar. Os filhos delas me vingarão. Mas é
interesse delas virem aqui. Portanto, previna-as que estão comprometendo a
própria agonia. Cometem todos os crimes num só. Mas vá logo, diga-lhes então
que não vir é um parricídio! Já cometeram o suficiente, sem precisar acrescentar
esse aí. Grite então como eu: “Ei, Nasie! Ei, Delphine! Venham ver seu pai, que
foi tão bom para vocês e está sofrendo!”. Nada, ninguém. Então morrerei como
um cão? Eis minha recompensa, o abandono. São infames, umas celeradas;
abomino-as, amaldiçoo-as; hei de me levantar, à noite, de meu caixão para
amaldiçoá-las de novo, pois, enfim, meus amigos, estou errado? Elas se
conduzem muito mal! Hein? O que estou dizendo? Não me avisou que Delphine
está aqui? É a melhor das duas. Você é meu filho, Eugène! Ame-a, seja um pai
para ela. A outra é muito infeliz. E as fortunas delas! Ai, meu Deus! Estou
expirando, sofrendo um pouco demais! Corte-me a cabeça, deixe-me somente o
coração.
— Christophe, vá buscar Bianchon — exclamou Eugène apavorado com o
aspecto que tomavam as queixas e os gritos do velho — e traga-me um cabriolé.
— Vou buscar suas filhas, meu bom pai Goriot, vou trazê-las.
— À força, à força! Chame a guarda, a infantaria, tudo! tudo — ele disse
dando para Eugène um último olhar em que brilhou a razão. — Diga ao governo,
ao procurador do rei, que me tragam as duas, eu quero!
— Mas o senhor as amaldiçoou.
— Quem foi que disse isso? — respondeu o velho, estupefato. — Sabe muito
bem que as amo, as adoro! Fico curado se puder vê-las… Ande, meu bom
vizinho, meu querido filho, vá, você é bom; gostaria de lhe agradecer, mas não
tenho nada a lhe dar além das bênçãos de um moribundo. Ah! gostaria ao menos
de ver Delphine para lhe dizer que salde minha dívida consigo. Se a outra não
puder, traga-me essa aí. Diga-lhe que não a amará mais se ela não quiser vir. Ela
o ama tanto que virá. Algo para beber, as entranhas me queimam! Ponha-me
alguma coisa sobre a cabeça. A mão de minhas filhas, isso aí me salvaria, eu
sinto… Meu Deus! quem refará as fortunas delas se eu me for? Quero ir a
Odessa por elas, a Odessa, fazer massas.
— Beba isto — disse Eugène levantando o moribundo e pegando-o com seu
braço esquerdo enquanto com o outro segurava uma xícara cheia de chá.
— Você deve amar seu pai e sua mãe! — disse o velhinho apertando com as
mãos enfraquecidas a mão de Eugène. — Compreende que vou morrer sem vê-
las, as minhas filhas? Ter sempre sede e não beber, eis como vivi por dez anos…
Meus dois genros mataram minhas filhas. Sim, não tive mais filhas depois que se
casaram. Pais, digam às câmaras para fazerem uma lei sobre o casamento!
Enfim, não casem suas filhas se as amarem. O genro é um celerado que estraga
tudo numa filha, tudo conspurca. Chega de casamentos! É o que nos tira nossas
filhas, e deixamos de tê-las quando estamos morrendo. Façam uma lei sobre a
morte dos pais. Isso é pavoroso! Vingança! São meus genros que as impedem de
vir. Matem-nos! Morte a Restaud, morte ao alsaciano, são meus assassinos! A
morte ou minhas filhas! Ah! acabou, estou morrendo sem elas! Elas! Nasie,
Fifine, vamos, venham logo! O papai de vocês está indo…
— Meu bom pai Goriot, acalme-se, vejamos, fique tranquilo, não se agite, não
pense.
— Não vê-las, é esta a agonia!
— Vai vê-las!
— Verdade! — exclamou o velho, perdido. — Oh! revê-las! Vou revê-las,
ouvir suas vozes. Morrerei feliz. Pois bem! Sim, já não peço para viver, não
fazia mais questão, meus sofrimentos estavam aumentando. Mas vê-las, tocar
nos vestidos delas, ah!, só nos vestidos é muito pouco; mas que eu cheire alguma
coisa delas! Pegue-me os cabelos… belos…
Sua cabeça caiu sobre o travesseiro como se recebesse uma bordoada. Suas
mãos se agitaram sobre a coberta como para pegar os cabelos das filhas.
— Abençoo-as — disse fazendo um esforço —, abençoo.
Caiu, de repente. Neste instante Bianchon entrou.
— Encontrei Christophe — ele disse —, vai lhe trazer um carro.
Depois, olhou para o doente, levantou-lhe à força as pálpebras, e os dois
estudantes viram um olho sem calor e baço.
— Não voltará a si — disse Bianchon —, não creio. — Pegou o pulso,
apalpou-o, pôs a mão no coração do homenzinho.
— A máquina continua a bater; mas na sua situação é uma desgraça, seria
melhor que morresse!
— Pois é — disse Rastignac.
— Mas o que você tem? Está pálido como a morte.
— Meu amigo, acabo de ouvir gritos e queixumes. Há um Deus! Oh, sim! Há
um Deus, e ele nos fez um mundo melhor, ou nossa terra é um disparate. Se isso
não fosse tão trágico, eu me desfaria em lágrimas, mas estou com o coração e o
estômago terrivelmente apertados.
— Sabe, precisaremos de muitas coisas; onde pegar o dinheiro?
Rastignac tirou seu relógio.
— Tome, ponha-o logo no prego. Não quero parar no caminho, pois temo
perder um minuto que seja, e espero Christophe. Não tenho um tostão, e terei de
pagar meu cocheiro na volta.
Rastignac se desabalou pela escada e partiu para ir à Rue du Helder, à casa da
sra. de Restaud. No caminho, sua imaginação, chocada com o horrível
espetáculo de que fora testemunha, aqueceu sua indignação. Quando chegou à
antessala e perguntou pela sra. de Restaud, responderam-lhe que não podia
atender.
— Mas — ele disse ao mordomo —, venho da parte de seu pai, que está
morrendo.
— Senhor, temos as ordens mais severas do senhor conde…
— Se o sr. de Restaud está, diga-lhe em que circunstância se encontra seu
sogro e previna-o de que preciso lhe falar neste instante.
Eugène esperou por muito tempo.
“Talvez ele esteja morrendo neste momento”, pensou.
O mordomo o introduziu no primeiro salão, onde o sr. de Restaud recebeu de
pé o estudante, sem mandá-lo sentar, diante de uma lareira em que não havia
fogo.
— Senhor conde — disse-lhe Rastignac —, o senhor seu sogro expira neste
momento numa espelunca infame, sem um tostão para comprar lenha; está
realmente à morte e pede para ver a filha…
— O senhor — respondeu-lhe com frieza o conde de Restaud — deve ter
percebido que tenho muito pouca ternura pelo sr. Goriot. Ele comprometeu com
seu caráter a sra. de Restaud, fez a desgraça de minha vida, vejo nele o inimigo
de meu sossego. Que morra, que viva, tudo me é perfeitamente indiferente. Eis
meus sentimentos a seu respeito. O mundo poderá me criticar, desprezo a
opinião pública. Tenho agora coisas mais importantes a fazer que me ocupar do
que pensarão de mim os néscios ou os indiferentes. Quanto à sra. de Restaud,
não está em condições de sair. Aliás, não quero que saia de sua casa. Diga ao pai
dela que assim que tiver cumprido seus deveres comigo, com meu filho, irá vê-
lo. Se ama o pai, pode se liberar em alguns instantes…
— Senhor conde, não me cabe julgar seu comportamento, o senhor é o chefe
de sua mulher; mas posso contar com sua lealdade? Pois bem! Prometa-me
somente lhe dizer que o pai dela não tem um dia de vida, e já a amaldiçoou ao
não vê-la à sua cabeceira!
— Diga-lhe isso o senhor mesmo — respondeu o sr. de Restaud, chocado com
sentimentos de indignação que o tom de Eugène traía.
Conduzido pelo conde, Rastignac entrou no salão onde a condessa
habitualmente ficava: encontrou-a afogada em lágrimas, e afundada numa
bergère como uma mulher que quisesse morrer. Ela lhe deu pena. Antes de olhar
para Rastignac, ela dirigiu ao marido olhares temerosos que anunciavam uma
prostração completa de suas forças esmagadas por uma tirania moral e física. O
conde balançou a cabeça, ela se imaginou estimulada a falar.
— Ouvi tudo, senhor. Diga a meu pai que, se conhecesse a situação em que
estou, ele me perdoaria. Eu não contava com esse suplício, está acima de minhas
forças, senhor, mas resistirei até o fim — disse ao marido. — Sou mãe. Diga a
meu pai que sou irrepreensível com ele, apesar das aparências — gritou para o
estudante, desesperada.
Eugène cumprimentou os esposos, adivinhando a terrível crise em que a
mulher estava, e se retirou, pasmo. O tom do sr. de Restaud lhe demonstrara a
inutilidade de sua iniciativa, e compreendeu que Anastasie já não era livre.
Correu à casa da sra. de Nucingen e a encontrou na cama.
— Estou doente, meu pobre amigo — ela lhe disse. — Peguei frio ao sair do
baile, temo estar com pneumonia, estou esperando o médico…
— Ainda que tivesse a morte nos lábios — disse-lhe Eugène interrompendo-a
—, é preciso se arrastar para junto de seu pai. Ele a chama! Se pudesse ouvir o
mais leve de seus gritos, não se sentiria mais doente.
— Eugène, meu pai talvez não esteja tão doente como você diz; mas ficaria
desesperada de cometer o menor erro aos seus olhos, e me conduzirei como você
quiser. Ele, eu sei, morreria de tristeza se minha doença se tornasse mortal por
causa dessa saída. Pois bem, irei assim que meu médico vier. Ah! Por que está
sem o seu relógio? — disse, não vendo mais a corrente. Eugène enrubesceu. —
Eugène! Eugène, se já a vendeu, perdeu… oh! isso seria muito ruim!
O estudante se inclinou sobre a cama de Delphine e disse-lhe ao ouvido:
— Quer saber? Pois então saiba! Seu pai não tem com o que comprar a
mortalha em que o colocarão esta noite. Seu relógio está penhorado, eu não
possuía mais nada.
Delphine pulou de repente para fora da cama, correu à escrivaninha, pegou sua
bolsa, entregou-a a Rastignac. Tocou a campainha e exclamou:
— Vou lá, vou lá, Eugène. Deixe que eu me vista; eu seria um monstro! Vá,
chegarei antes de você! Thérèse — gritou para a camareira —, diga ao sr. de
Nucingen que suba para falar comigo agora mesmo.
Eugène, feliz de poder anunciar ao moribundo a presença de uma de suas
filhas, chegou quase alegre à Rue Neuve-Sainte-Geneviève. Remexeu na bolsa
para poder pagar imediatamente o cocheiro. A bolsa daquela jovem mulher, tão
rica, tão elegante, continha setenta francos. Chegando ao alto da escada,
encontrou o pai Goriot segurado por Bianchon e sendo operado pelo cirurgião do
hospital, diante dos olhos do médico. Queimavam-lhe as costas com moxas,
último remédio da ciência, remédio inútil.
— Sente-as? — indagou o médico.
O pai Goriot, tendo entrevisto o estudante, respondeu:
— Elas vêm, não é?
— Ele pode se safar — disse o cirurgião —, está falando.
— Vêm — respondeu Eugène —, Delphine está chegando.
— Pois é! — disse Bianchon —, ele falava das filhas, pelas quais grita como
um homem empalado grita por água, segundo dizem...
— Pare — disse o médico ao cirurgião —, não há mais nada a fazer, não o
salvaremos.
Bianchon e o cirurgião recolocaram o moribundo estendido sobre o catre
infecto.
— Mas seria preciso trocar sua roupa de cama — disse o médico. — Embora
não haja nenhuma esperança, é preciso respeitar sua natureza humana. Voltarei,
Bianchon — ele disse ao estudante. — Se ele ainda se queixar, ponha-lhe ópio
sobre o diafragma.
O cirurgião e o médico saíram.
— Vamos, Eugène, coragem, meu filho! — disse Bianchon a Rastignac
quando ficaram a sós —, trata-se de lhe pôr uma camisa branca e fazer a cama.
Vá dizer a Sylvie para subir uns lençóis e vir nos ajudar.
Eugène desceu e encontrou a sra. Vauquer ocupada em pôr a mesa com Sylvie.
Às primeiras palavras que Rastignac lhe disse, a viúva foi até ele, assumindo o
jeito azedamente meloso de uma comerciante desconfiada que não gostaria de
perder seu dinheiro nem de aborrecer o freguês.
— Meu caro sr. Eugène — ela respondeu —, sabe bem como eu que o pai
Goriot não tem mais um tostão. Dar lençóis a um homem que está esticando a
canela é perdê-los, tanto mais que será preciso sacrificar um para a mortalha.
Assim, o senhor já me deve cento e quarenta e quatro francos, ponha mais
quarenta francos de lençóis e algumas outras coisinhas, a vela que Sylvie lhe
dará, tudo isso soma ao menos duzentos francos, que uma pobre viúva como eu
não está em condição de perder. Nossa mãe! Seja justo, sr. Eugène, já perdi
bastante nesses cinco dias em que a urucubaca se alojou na minha casa. Teria
dado dez escudos para que esse homenzinho aí tivesse ido embora nestes dias,
como o senhor dizia. Isso choca meus pensionistas. Por uma coisinha à toa eu o
mandaria levar ao hospital. Enfim, ponha-se no meu lugar. Meu estabelecimento
acima de tudo, é minha vida, a minha.
Eugène tornou a subir, rapidamente, para o quarto do pai Goriot.
— Bianchon, o dinheiro do relógio?
— Está ali em cima da mesa, restam trezentos e sessenta e poucos francos. Do
que me deram paguei tudo o que devíamos. O recibo da casa de penhor está
debaixo do dinheiro.
— Tome, senhora — disse Rastignac depois de despencar pela escada,
horrorizado —, liquide as nossas contas. O sr. Goriot não tem muito tempo a
ficar na sua pensão, e eu…
— Sim, ele sairá daqui de pés juntos, pobre velho — ela disse contando
duzentos francos, com um ar meio alegre, meio melancólico.
— Terminemos — disse Rastignac.
— Sylvie, dê os lençóis e vá ajudar esses senhores lá em cima.
— O senhor não se esquecerá de Sylvie — disse a sra. Vauquer ao ouvido de
Eugène —, já são duas noites em que ela está de vigília.
Assim que Eugène virou as costas, a velha correu até sua cozinheira:
— Pegue os lençóis virados do avesso, número sete. Por Deus, são bastante
bons para um morto — disse-lhe ao ouvido.
Eugène, que já subira alguns degraus da escada, não ouviu as palavras da velha
hospedeira.
— Vamos — disse-lhe Bianchon — vestir-lhe a camisa. Segure-o reto.
Eugène se pôs na cabeceira da cama e segurou o moribundo, de quem
Bianchon tirou a camisa, e o velho fez um gesto como para guardar alguma coisa
sobre o peito, e deu gritos queixosos e desarticulados, à maneira dos animais que
têm uma grande dor a manifestar.
— Oh! Oh! — disse Bianchon —, ele quer uma correntinha de cabelos com
um medalhão que nós lhe retiramos há pouco para pôr as moxas. Pobre homem!
Temos de colocá-la de novo. Está em cima da lareira.
Eugène foi pegar uma corrente trançada com cabelos louro-acinzentados,
provavelmente os da sra. Goriot. Leu de um lado do medalhão: Anastasie; e do
outro: Delphine. Imagem de seu coração que repousava sempre sobre seu
coração. Os cachos contidos ali dentro eram de tal finura que deviam ter sido
cortados durante a primeira infância das duas filhas. Quando o medalhão
encostou em seu peito, o velho fez um hã prolongado que anunciava uma
satisfação terrível de ver. Era um dos derradeiros ecos de sua sensibilidade, que
parecia se retirar para o centro desconhecido de onde partem e para onde se
dirigem nossas simpatias. Seu rosto convulsionado ficou com uma expressão de
alegria doentia. Os dois estudantes, impressionados com aquele terrível brilho de
uma força de sentimento que sobrevivia ao pensamento, soltaram, cada um,
lágrimas quentes sobre o agonizante, que deu um grito agudo de prazer.
— Nasie! Fifine! — disse.
— Ele ainda vive — disse Bianchon.
— Para que isso lhe serve? — disse Sylvie.
— Para sofrer — respondeu Rastignac.
Depois de fazer ao amigo um sinal para lhe dizer que o imitasse, Bianchon se
ajoelhou para passar os braços sob as pernas do doente, enquanto Rastignac fazia
o mesmo do outro lado da cama a fim de passar as mãos sob as costas. Sylvie
estava ali, pronta para retirar os lençóis, quando o moribundo fosse levantado, e
substituí-los pelos que ela trazia. Enganado talvez pelas lágrimas, Goriot usou
suas derradeiras forças para estender as mãos, encontrou de cada lado da cama as
cabeças dos estudantes, agarrou-os violentamente pelos cabelos e ouviu-se um
som fraco:
— Ah! meus anjos!
Duas palavras, dois murmúrios acentuados pela alma que levantou voo depois
dessas palavras.
— Pobre homem querido — disse Sylvie enternecida com essa exclamação em
que se pintava um sentimento supremo que a mais horrível, a mais involuntária
das mentiras exaltava uma derradeira vez.
O último suspiro desse pai devia ser um suspiro de alegria. Esse suspiro foi a
expressão de toda sua vida, ele mais uma vez se enganava. O pai Goriot foi
piedosamente recolocado sobre seu catre. A partir desse momento, sua
fisionomia manteve a dolorosa marca do combate que se travava entre a morte e
a vida numa máquina que não tinha mais essa espécie de consciência cerebral de
que resulta a sensação do prazer e da dor para o ser humano. Para a destruição,
não era mais que uma questão de tempo.
— Ele vai ficar assim algumas horas, e morrerá sem que se perceba, sequer
terá os estertores. O cérebro deve estar completamente invadido.
Nesse instante ouviram na escada os passos de uma jovem mulher ofegante.
— Ela está chegando tarde demais — disse Rastignac.
Não era Delphine, mas Thérèse, sua camareira.
— Sr. Eugène — ela disse —, armou-se uma cena violenta entre o senhor e a
senhora, a respeito do dinheiro que essa pobre senhora pedia para o pai. Ela
desmaiou, o médico chegou, foi preciso sangrá-la, ela gritava: “Meu pai está
morrendo, quero ver papai!”. Em suma, gritos de partir a alma.
— Chega, Thérèse. Mesmo que viesse, agora seria supérfluo. O sr. Goriot já
perdeu a consciência.
— Pobre querido senhor, está tão mal assim! — disse Thérèse.
— Os senhores não precisam mais de mim, tenho que ir ver o meu jantar, são
quatro e meia — disse Sylvie, que quase deu um encontrão no alto da escada
com a sra. de Restaud.
Foi uma aparição grave e terrível essa da condessa. Olhou para o leito de
morte, mal iluminado por uma única vela, e derramou lágrimas ao perceber a
máscara de seu pai na qual ainda palpitavam os derradeiros estremecimentos da
vida. Bianchon se retirou, por discrição.
— Não escapei cedo o suficiente — disse a condessa a Rastignac.
O estudante fez um sinal afirmativo de cabeça, cheio de tristeza. A sra. de
Restaud pegou a mão do pai e a beijou.
— Perdoe-me, meu pai! O senhor dizia que minha voz lhe lembrava um
túmulo; pois bem, volte um momento à vida para abençoar sua filha arrependida.
Escute-me. Isso é um pavor! Sua bênção é a única que agora posso receber aqui.
Todos me odeiam, só o senhor me ama. Meus próprios filhos me odiarão. Leve-
me consigo, eu o amarei, cuidarei de si. Ele não está mais ouvindo, estou louca.
Caiu de joelhos e contemplou aquele destroço com uma expressão de delírio.
— Nada falta à minha desgraça — disse olhando para Eugène. — O sr. de
Trailles foi embora, deixando aqui dívidas enormes, e soube que ele me
enganava. Meu marido nunca me perdoará, e deixei-o como senhor de minha
fortuna. Perdi todas as minhas ilusões. Ai de mim! Por quem traí o único coração
(apontou para o pai) pelo qual era adorada! Conheci-o mal, rejeitei-o, causei-lhe
mil sofrimentos, infame que sou!
— Ele sabia disso — disse Rastignac.
Nesse instante o pai Goriot abriu os olhos, mas pelo efeito de uma convulsão.
O gesto que revelava a esperança da condessa não foi menos horrível de ver do
que o olho do moribundo.
— Estaria me ouvindo? — gritou a condessa. — Não — disse para si mesma,
sentando-se ao lado da cama.
Como a sra. de Restaud manifestou o desejo de velar pelo pai, Eugène desceu
para comer alguma coisa. Os pensionistas já estavam reunidos.
— E então — disse-lhe o pintor —, parece que vamos ter um pequeno
mortorama lá em cima?
— Charles — disse Eugène —, parece-me que deveria brincar com algum
assunto menos lúgubre.
— Então não podemos mais rir aqui? — retrucou o pintor. — O que tem isso
de mais, já que Bianchon diz que o velho perdeu a consciência?
— Pois bem — prosseguiu o empregado do museu —, ele morrerá como terá
vivido.
— Meu pai morreu — gritou a condessa.
Diante desse grito terrível, Sylvie, Rastignac e Bianchon subiram e
encontraram a sra. de Restaud desfalecida. Depois de fazê-la voltar a si,
transportaram-na para o fiacre que a esperava. Eugène a entregou aos cuidados
de Thérèse, ordenando-lhe que a levasse para a casa da sra. de Nucingen.
— Ah! ele está mesmo morto — disse Bianchon ao descer.
— Vamos, senhores, à mesa — disse a sra. Vauquer —, a sopa vai esfriar.
Os dois estudantes se puseram lado a lado.
— Que é preciso fazer agora? — perguntou Eugène a Bianchon.
— Eu fechei os olhos dele, e o arrumei de forma adequada. Quando o médico
da prefeitura tiver atestado o óbito que iremos declarar, vamos envolvê-lo dentro
de uma mortalha e o enterraremos. O que quer que aconteça com ele?
— Ele não vai mais farejar seu pão assim — disse um pensionista imitando a
careta do velho.
— Santo Deus, senhores — disse o repetidor —, mas deixem o pai Goriot, e
não nos façam mais engoli-lo, pois faz uma hora que ele é servido neste jantar.
Um dos privilégios da bela cidade de Paris é que é possível nascer aqui, viver
aqui, morrer aqui sem que ninguém preste atenção em você. Aproveitemos,
portanto, as vantagens da civilização. Há sessenta mortos hoje, querem se
condoer dessas hecatombes parisienses? Que o pai Goriot tenha batido as botas,
melhor para ele! Se o adoram, vão velá-lo e nos deixem, nós aqui, comer em
paz.
— Oh!, sim — disse a viúva —, melhor para ele que tenha morrido! Parece
que o pobre homem teve muitos desgostos na vida.
Foi a única oração fúnebre de um ser que, para Eugène, representava a
Paternidade. Os quinze pensionistas começaram a conversar como de costume.
Quando Eugène e Bianchon acabaram de comer, o barulho dos garfos e colheres,
os risos da conversa, as diversas expressões daqueles rostos glutões e
indiferentes, sua despreocupação, tudo os gelou de horror. Saíram para buscar
um padre que velasse e rezasse durante a noite ao lado do morto. Precisaram
calcular os últimos deveres a cumprir com o velhote a partir do pouco dinheiro
de que poderiam dispor. Lá pelas nove da noite o corpo foi posto sobre um
suporte, amarrado, entre duas velas, naquele quarto nu, e um padre foi se sentar
perto dele. Antes de se deitar, Rastignac, tendo pedido informações ao
eclesiástico sobre o preço do ofício religioso e do cortejo fúnebre, escreveu um
bilhete ao barão de Nucingen e ao conde de Restaud solicitando-lhes que
enviassem seus funcionários para prover a todas as despesas do enterro.
Despachou-lhes Christophe, depois se deitou e dormiu, moído de cansaço. Na
manhã seguinte Bianchon e Rastignac foram obrigados a ir declarar
pessoalmente o óbito, que pelo meio-dia foi atestado. Duas horas depois nenhum
dos dois genros enviara dinheiro, ninguém se apresentara em nome deles, e
Rastignac já fora obrigado a pagar as despesas do padre. Tendo Sylvie pedido
dez francos para enrolar o homenzinho na mortalha e costurá-la, Eugène e
Bianchon calcularam que, se os parentes do morto não quisessem se envolver em
nada, eles mal teriam como assumir as despesas. Portanto, o estudante de
medicina se encarregou de pôr ele mesmo o cadáver num caixão de pobre, que
mandou vir de seu hospital, onde o conseguiu por um preço mais em conta.
— Pregue uma peça nesses engraçadinhos aí — ele disse a Eugène. — Vá
comprar um lote, por cinco anos, no Père-Lachaise, e encomende um ofício
religioso de terceira classe na igreja e na funerária. Se os genros e as filhas se
recusarem a reembolsá-lo, você mandará gravar na sepultura: “Aqui jaz o sr.
Goriot, pai da condessa de Restaud e da baronesa de Nucingen, enterrado às
custas de dois estudantes”.
Eugène só seguiu o conselho do amigo depois de ter ido em vão à casa do sr. e
da sra. de Nucingen e à do sr. e da sra. de Restaud. Não foi mais longe que a
porta. Os dois porteiros tinham ordens severas.
— O senhor e a senhora — disseram — não estão recebendo ninguém; o pai da
senhora morreu, e eles estão afundados na dor mais profunda.
Eugène tinha bastante experiência do mundo parisiense para saber que não
devia insistir. Seu coração se apertou estranhamente quando se viu na
impossibilidade de chegar perto de Delphine.
“Venda uma joia”, escreveu-lhe no aposento do porteiro, “para que seu pai seja
decentemente levado à última morada.”
Lacrou esse bilhete e pediu ao porteiro do barão que o entregasse a Thérèse,
para sua patroa; mas o porteiro o entregou ao barão de Nucingen, que o jogou no
fogo. Depois de ter tomado todas as providências, Eugène voltou lá pelas três
para a pensão burguesa, e não conseguiu segurar uma lágrima quando avistou
naquela porta secundária o caixão mal e mal coberto por um pano preto, posto
sobre duas cadeiras naquela rua deserta. Um aspersório ordinário, no qual ainda
ninguém tocara, estava mergulhado num prato de cobre prateado cheio de água
benta. A porta nem sequer estava coberta de preto. Era a morte dos pobres, que
não tem fausto, nem acompanhantes, nem amigos, nem parentes. Bianchon,
obrigado a ficar no hospital, escrevera um bilhete a Rastignac para lhe prestar
contas do que providenciara quanto à igreja. O residente lhe comunicava que
uma missa era caríssima, que era preciso se contentar com o ofício mais barato
das vésperas, e que ele enviara Christophe à funerária, com um bilhete. No
momento em que Eugène acabava de ler o rabisco de Bianchon, viu entre as
mãos da sra. Vauquer o medalhão rodeado de ouro em que estavam os cabelos
das duas filhas.
— Como a senhora ousou pegar isso? — perguntou-lhe.
— Por Deus! Tinha que enterrá-lo com isso? — respondeu Sylvie. — É de
ouro.
— Com certeza! — prosseguiu Eugène indignado —, que ao menos ele leve
consigo a única coisa que pode representar suas duas filhas.
Quando o rabecão chegou, Eugène fez levantarem o caixão, o despregou e
colocou religiosamente sobre o peito do velho uma imagem que se referia a um
tempo em que Delphine e Anastasie eram jovens, virgens e puras, e não
argumentavam , como ele dissera entre seus gritos de agonizante. Só Rastignac e
Christophe acompanharam, com dois papa-defuntos, o carro que levava o pobre
homem à Saint-Étienne-du-Mont, igreja perto da Rue Neuve-Sainte-Geneviève.
Lá chegando, o corpo ficou exposto numa pequena capela baixa e escura, em
torno da qual o estudante procurou em vão as duas filhas do pai Goriot ou seus
maridos. Ele estava sozinho, com Christophe, que se imaginava obrigado a
prestar os derradeiros serviços a um homem que o fizera ganhar algumas boas
gorjetas. Esperando os dois padres, o menino do coro e o sacristão, Rastignac
apertou a mão de Christophe, sem conseguir pronunciar uma palavra.
— Sim, sr. Eugène — disse Christophe —, era um bravo e honrado homem,
que nunca disse uma palavra mais alta que outro, que não prejudicava ninguém e
nunca fez nenhum mal.
Os dois padres, o menino do coro e o sacristão chegaram e deram tudo o que se
pode dar por setenta francos numa época em que a religião não é rica o bastante
para rezar de graça. Os clérigos cantaram um salmo, o Libera , o De profundis .
O ofício durou vinte minutos. Só havia um carro de luto para um padre e um
menino do coro, que aceitaram levar com eles Eugène e Christophe.
— Não há séquito — disse o padre —, poderemos ir depressa, a fim de não
demorarmos, já são cinco e meia.
Contudo, quando o corpo foi posto no rabecão, duas carruagens armoriadas,
mas vazias, a do conde de Restaud e a do barão de Nucingen, se apresentaram e
seguiram o cortejo até o Père-Lachaise. Às seis horas, o corpo do pai Goriot
desceu à sua cova, em torno da qual estavam os empregados de suas filhas, que
desapareceram junto com o clero, tão logo foi dita a curta oração em intenção do
bom homem em troca do dinheiro que o estudante pôde pagar. Quando os dois
coveiros jogaram algumas pás de terra sobre o caixão para escondê-lo,
levantaram-se e um deles, dirigindo-se a Rastignac, pediu-lhe a gorjeta. Eugène
revirou seu bolso e não encontrou nada, foi obrigado a pedir emprestado vinte
vinténs a Christophe. Esse fato, tão insignificante em si mesmo, determinou em
Rastignac um acesso de horrível tristeza. O dia caía, um crepúsculo úmido
irritava os nervos, ele olhou para a sepultura e ali enterrou sua última lágrima de
rapaz, essa lágrima arrancada pelas santas emoções de um coração puro, uma
dessas lágrimas que, da terra onde caem, tornam a jorrar rumo ao céu. Cruzou os
braços, contemplou as nuvens, e ao vê-lo assim Christophe o deixou.
Ao ficar sozinho, Rastignac deu uns passos até o alto do cemitério e viu Paris
tortuosamente deitada ao longo das duas margens do Sena, onde as luzes
começavam a brilhar. Seus olhos se prenderam quase avidamente entre a coluna
da Place Vendôme e a cúpula dos Invalides, ali onde vivia aquela bela sociedade
em que ele quisera penetrar. Lançou sobre essa colmeia zunindo um olhar que
parecia de antemão extrair-lhe o mel, e disse estas palavras grandiosas:
— Agora, somos nós dois!
E como primeiro ato do desafio que lançou à Sociedade, Rastignac foi jantar
na casa da sra. de Nucingen.

Saché, setembro de 1834.


Notas

PREFÁCIO DA SEGUNDA EDIÇÃO WERDET


(1835)
1 No romance, Balzac escreve a palavra com minúscula.
2 A Revue du théâtre e o Le Courrier français foram as duas publicações que mais fizeram essa acusação,
em 1835, quando o romance saiu. Mas o Journal des femmes de 1o de julho de 1835 e, no ano
seguinte, a Revue du XIX è siècle retomaram a acusação.
3 Mais tarde, Balzac vai enumerar os diversos tipos de paternidade que descreveu: “Há a paternidade
ciumenta e terrível de Bartholomeo di Piombo, a paternidade fraca e indulgente do conde de Fontaine,
a paternidade partilhada do conde de Granville, a paternidade toda aristocrática do duque de Chaulieu,
a imponente paternidade do barão du Guénic, a paternidade doce, aconselhadora e burguesa do sr.
Mignon, a paternidade dura de Grandet, a paternidade nominal do sr. de la Baudraye, a paternidade
nobre e iludida do marquês d’Esgrignon, a paternidade muda do sr. de Mortsauf, a paternidade de
instinto, de paixão e no estado de vício do pai Goriot, a paternidade parcial do velho juiz Blondet, a
paternidade burguesa de César Birotteau” (Lov . A 159, fo 24).
4 O romance seguinte de Balzac, O lírio no vale , começou a ser publicado como folhetim na Revue de
Paris em novembro de 1835, mas a publicação foi interrompida por uma desavença entre Balzac e a
direção da revista.
N. T. Esta e todas as notas seguintes são da tradutora, feitas a partir do texto original seguido nesta
tradução: Honoré de Balzac, Le Père Goriot . La Comédie humaine III . Paris: Gallimard, 1999.
Bibliothèque de la Pléiade.
O PAI GORIOT
1 O ídolo de Jaggernaut designa o ídolo do deus Jagannata conservado em Puri, à beira do golfo de
Bengala. É um dos nomes do deus Vishnu, e era levado todo ano num carro sob o qual iam se jogar os
fiéis para merecer o favor de terem acesso, numa nova vida, a uma casta superior. Muitas vezes os
devotos morriam nessa cerimônia.
2 Pierre-Georges Castex, organizador da obra A comédia humana de Balzac na Bibliothèque de la Pléiade,
inventariou pelos anuários da época diversas pensões e instituições na antiga Rue Neuve-Sainte-
Geneviève, atual Rue Tournefort: a pensão Bardot para “doentes e válidos”; as Beneditinas da
Adoração do Santo Sacramento; a pensão Caron; a pensão Crouzet, no número 24, no lugar onde teria
sido a pensão Vauquer que inspirou Balzac; as Religiosas da Misericórdia; a instituição das srtas.
Leroy-Frémont.
3 Em 1834, época em que escreveu O pai Goriot , Balzac morou perto das Catacumbas de Paris, um ossário
que se calcula conter os restos mortais de seis milhões de pessoas, transferidos para essas galerias a
dezenove metros de profundidade à medida que foram sendo fechados diversos cemitérios da cidade.
Chega-se às Catacumbas, abertas à visitação, por uma escada de noventa degraus.
4 “Pensão para os dois sexos” era expressão corrente na época em Paris. Quanto a “outros”, admite-se que
Balzac teria lido uma notícia de jornal mencionando uma pensão, perto de onde ele localiza a pensão
Vauquer, que aceitava homens, mulheres e outros. Cf. Le Père Goriot , ed. cit., p. 1224.
5 No Hospital des Capucins, conhecido como Venéreos , instalado em 1784 no antigo convento dos
Capuchinhos, no atual Boulevard du Port-Royal.
6 Ao voltar de Ferney, Voltaire foi triunfalmente recebido em Paris em 10 de fevereiro de 1778. Esses dois
versos, escritos para o jardim do presidente do castelo de Maisons, também se encontravam nos de
Cirey e Sceaux.
7 Havia na época dois hospitais des Incurables, um para homens e outro para mulheres, que recebiam não
só doentes incuráveis, mas velhos, indigentes e aleijados.
8 Georges Cadoudal, chefe do movimento monarquista da Vendeia, e Charles Pichegru, ex-general da
Revolução, foram para Paris em 1803 para matar Napoleão, escaparam muito tempo da polícia mas
acabaram sendo entregues. A alusão aos dois daria a entender que a sra. Vauquer é informante da
polícia.
9 Segundo a Bíblia, de Jafé, um dos filhos de Noé, descendem todos os europeus, persas e indianos (os
indo-europeus). Mais provável, porém, é que Balzac faça referência a um famoso verso de Horácio
(Odes , I , 3), e que “a raça audaciosa dos filhos de Jafé” seja uma tradução de audax Iapeti genus . Na
ode de Horácio, a descendência de Jápeto designa não só seu filho Prometeu, mas todos os homens,
considerados filhos de Prometeu. Balzac teria confundido Japhet (Jafé) com Japet (Jápeto). Ver Le
Père Goriot , op. cit., p. 1230.
10 Balzac tinha conhecido meses antes o carrasco Sanson. A cesta onde caía a cabeça do guilhotinado era
forrada com farelo de trigo; as cordas passavam por polias para o manejo do jogo das lâminas.
11 Referência a La Fontaine, cuja fábula “O macaco e o gato” (Fábulas , IX , 16) mostra Raton tirando as
castanhas do fogo para o esperto Bertrand.
12 Café com aguardente.
13 O qual, segundo César Birotteau, outro personagem de Balzac, achava que nos armários é que os
burgueses guardavam seu ouro , donde a pronúncia.
14 Fumo da Martinica.
15 Restaurante na Rue du Lycée, perto do Palais-Royal, cuja tabuleta mostrava um boi com xales e um
chapéu, que portanto estava na moda.
16 Goriot trocara o chapéu por um boné igual ao de Poiret.
17 Todos são personagens dos romances de Balzac que compõem A comédia humana .
18 Provável alusão de Balzac ao relato de Voltaire L’Histoire de Charles XII , em que o autor conta que o
rei Augusto II da Polônia tinha uma “força corporal inacreditável” a ponto de ter matado com uma
rede e um bastão um urso “de um tamanho descomunal”.
19 Por volta de 1820, quando se passa a história, era corrente almoçar às dez horas, embora mais
frequentemente às onze, e na alta sociedade ao meio-dia. Todos se levantavam mais cedo que hoje.
20 Neologismo de Balzac a partir da palavra “idem”, e referindo-se ao personagem que repete a fala dos
outros. Poucos anos antes, o escritor Louis Desnoyers escrevera em “Os beócios de Paris” (1831) a
caricatura de um “idemista”, então chamado de “homem-eco”.
21 Alusão à pena infamante da golilha, em que o criminoso era preso por um colar de ferro e condenado à
exposição pública. Essa pena só foi abolida em 1848.
22 No Panorama, inventado por Robert Fulton, a tela transparente, onde eram exibidas as cenas pintadas de
paisagens e cerimônias, se mexia. No Diorama, era a sala que girava diante de uma tela imóvel. O
Diorama foi construído segundo os planos de Daguerre e Bouton, perto da atual Place de la
République, em 1822.
23 Joseph Gall (1758-1828), médico e anatomista alemão, inventou a frenologia, teoria que afirma ser
possível estudar o caráter e a tendência à criminalidade pela conformação craniana.
24 Da mesma farinha. O rei era Luís XVIII , conhecido por suas tiradas espirituosas.
25 As 48 “seções” de Paris substituíram, em 1790, depois da Revolução Francesa, as paróquias. As seções
serão, em 1795, substituídas pelos atuais “arrondissements”.
26 A expressão insultante se refere ao ano de 1793, ano do Terror, quando os revolucionários liderados por
Robespierre, entre outras ações violentas, executaram em 31 de outubro um grupo de deputados
girondinos, que eram republicanos mais moderados.
27 O último argumento do mundo, alusão à divisa gravada por Luís XIV em seus canhões.
28 Foi em 1793 que a fome mais ameaçou Paris.
29 O sr. d’Oliban, protagonista da comédia O surdo ou o Albergue cheio , de Choudart-Desforges, criada
em 1790, é um pai idiota que por pouco não arrasta a filha para o infortúnio.
30 O provérbio francês é “un ami donné par la nature ”, a natureza , que Balzac deforma para fatura . Em
vários romances ele explora esse jogo de palavras.
31 Joachim Murat (1767-1815) nasceu em La Bastide-sur-Lot. Sua ambição e seu talento o levaram a fazer
fortuna mas também a perdê-la. Cunhado de Napoleão, rei de Nápoles, quis em 1815 reconquistar seu
reino, aliando-se aos independentistas, mas esse excesso de audácia o levou a ser preso e fuzilado.
32 Balzac alude a Jean-Baptiste Bernadotte (1763-1844), nascido em Pau, nos Pirineus franceses, portanto
de origem meridional, e que foi o único marechal ligado a Napoleão que atravessou a Revolução e o
Império e terminou num trono, como rei da Suécia.
33 Insolente e cínico. O adjetivo aludindo ao filósofo Diógenes parece um neologismo de Balzac.
34 Essas redes, estendidas sobre o Sena na altura do subúrbio de Saint-Cloud, prendiam os cadáveres de
assassinados ou suicidas que desciam pelo rio, e dali eram transportados ao necrotério. O próprio
Balzac, na juventude, desesperado por seus fracassos, teria pensado em se suicidar no Sena.
35 “Trabalhos forçados”, inscrição tatuada na pele dos condenados às galés.
36 Essa é a opinião do próprio Balzac sobre La Fayette (1757-1838), general que participou da
Independência dos Estados Unidos. O autor o chama de “detrito” nas Cartas sobre Paris . O
Conservatório de Artes e Ofícios, criado em 1794, possui coleções de autômatos, relojoaria e
máquinas de todo tipo. O príncipe em que todos jogam pedra é Talleyrand, por quem Balzac tinha
grande admiração.
37 Em francês, “atomes crochus ”. Referência à filosofia de Demócrito (c. 460 a.C.-c. 370 a.C.), que na
classificação dos átomos cita os de aço, em forma de ganchos. que os prendem solidamente entre si. A
expressão “avoir atomes crochus ” utilizada na relação com alguém significa ter afinidades, simpatizar
espontaneamente com essa pessoa. A expressão entrou na moda na época de Balzac. Em outros títulos
da Comédia humana , como em Louis Lambert , Balzac também discorre sobre os fenômenos de
simpatia e antipatia.
38 No período da Restauração (1814-30), quando os Bourbon voltam a reinar, a gastronomia esteve em alta,
com o célebre Antonin Carême (1784-1833), cozinheiro de James de Rothschild, e Brillat-Savarin
(1755-1826), autor do famoso livro Fisiologia do gosto , admirado por Balzac. O duque d’Escars
(1747-1822) era o primeiro maître do rei e morreu, dizem, de indigestão, depois de banquetear-se com
Luís XVIII , o qual teria dito: “Pobre d’Escars! Eu bem sabia que ele tinha pior estômago que eu!”.
39 Alceste é o protagonista de O misantropo , de Molière; Jenny Deans e seu pai, o cultivador Davie Deans,
são os heróis do romance The Heart of Midlothian [O coração de Midlothian], de Walter Scott, e
pertencem à seita puritana.
40 O naturalista Georges Cuvier (1769-1832) era desde 1802 professor do Museu de História Natural,
instalado no Jardin des Plantes. É provável que Balzac, que muito o admirava, tivesse assistido às
aulas desse famoso cientista.
41 Este era o nome, na vida real, de um pequeno círculo de senhoras muito ilustres que formavam uma
espécie de corte pessoal de Monsieur , como era chamado o irmão do rei Luís XVIII e futuro rei
Carlos X , grande defensor dos princípios aristocráticos do Antigo Regime.
42 Ainda nessa época era corrente a classificação feita por Hipócrates dos quatro temperamentos humanos:
o bilioso, o linfático, o nervoso e o sanguíneo. Rastignac é tipicamente um temperamento nervoso.
43 O operador era, na época, o charlatão que vendia remédios em praça pública com esse tipo de discurso
que Vautrin imita.
44 Referência a Henri de La Tour-d’Auvergne (1611-75), visconde de Turenne, marechal do rei. Vautrin
deforma um pouco o episódio, pois Turenne, tendo caído nas mãos de um bando de ladrões, prometeu-
lhes cem luíses de ouro para ficar com um anel. No dia seguinte os ladrões foram cobrar a promessa e
Turenne não só lhes deu o dinheiro como esperou que se afastassem antes de prevenir a polícia,
alegando que “um homem honesto nunca devia faltar com a palavra, ainda que dada a bandidos”.
45 A salvação de Veneza é uma tragédia do inglês Thomas Otway (1652-85). A ação se passa em 1618, ano
da conjuração dos espanhóis contra Veneza, em que o veneziano Jaffier e o soldado estrangeiro Pierre,
envolvido na conspiração, se ligam por uma profunda amizade.
46 A Rue de Jerusalém era transversal ao Quai des Orfèvres, onde até hoje fica a sede dos serviços de
polícia em Paris.
47 Ópera de François-Adrien Boieldieu (1775-1834), criada em 1800. Il Bondocani é o nome que usa o
califa Isauun para percorrer disfarçado as ruas de Bagdá.
48 Pierre Coignard, um forçado foragido, tornara-se tenente-coronel com a identidade usurpada do conde de
Saint-Hélène, até ser reconhecido por um ex-condenado e preso pelo chefe de polícia Vidocq, em
1818.
49 Esse caso verdadeiro, famoso na época, era o de Victoire Tarin, condenada a vinte anos de trabalhos
forçados em 1812 por tentativa de extorsão de assinatura e tentativa de assassinato de Ragoulleau.
50 Referência irônica de Vautrin, já que Aiglon , nome do filhote da águia, era também o apelido do
herdeiro de Napoleão Bonaparte.
51 Versos do primeiro ato de Ricardo Coração de Leão , ópera-cômica do compositor belga André Gretry,
que Napoleão, a caminho da ilha de Elba, uma noite, sozinho, teria cantado.
52 O banqueiro e político liberal Jacques Laffitte (1767-1844) chegará a primeiro-ministro, bem mais tarde
que a ação do romance. Seu nome não tem a ver com o famoso Château-Lafite, vinho de Bordeaux.
53 Le Solitaire (1821) é um melodrama de Charles-Victor d’Arlincourt (1788-1856), conhecido como o
príncipe dos românticos. Grande sucesso na época, o drama, cuja heroína é Élodie, inspirou seis
óperas e doze peças de teatro. Marty era um ator de dramalhões, com fama de desonesto.
54 Para acentuar a ignorância e a pretensão da sra. Vauquer, Balzac lhe atribui a afirmação de que Le
Solitaire é de François-René de Chateaubriand, autor de outro romance de grande sucesso, Atala
(1801).
55 As Citrouilles eram não só abóboras mas também um serrote usado em oficinas na época da
Restauração.
56 A Place de Grève, atual praça do Hôtel de Ville, à beira do Sena, era onde havia as execuções e os
suplícios públicos, desde o século XII até a Revolução Francesa, quando ali se instalou a primeira
guilhotina.
57 Pierre-François Tissot (1768-1854), professor do Collège de France demitido pela Restauração, publicou
a partir de 1821 o jornal de oposição Le Pilote , no qual escreviam amigos e colaboradores do jovem
Balzac.
58 Ninon de Lenclos (1620-1705) foi escritora e famosa cortesã francesa; madame de Pompadour (1721-
64), amante de Luís XV , foi uma das mais célebres cortesãs do século XVIII .
59 Virgílio, Bucólicas , II , 65. “Cada um se deixa arrastar por seu prazer.”
60 Fumante de ópio.
61 Mário (157-86 a.C.), general e cônsul romano durante as guerras púnicas, foi proscrito por Sila e chegou
a Cartago, onde foi logo notificado por um lictor que deveria abandonar o solo africano. Proferiu então
sua frase famosa: “Diz a teu senhor que viste Mário errante e proscrito, sentado sobre as ruínas de
Cartago”.
62 Balzac se lembra do relato feito por Bussy-Rabutin, não do nascimento do conde de Vermandois, mas do
parto, em 1663, do primeiro filho de Louise de La Vallière, ao qual o rei esteve presente, “suando
como um boi”, para “apoiar La Vallière em suas dores que foram bastante cruéis a ponto de lhe rasgar
uma renda de mil luíses ao se pendurar no pescoço do rei”.
63 A prisão de Sainte-Pélagie era destinada em especial aos devedores. Ficava no 5è Arrondissement, entre
as atuais Rue de la Clef e Rue Larrey, perto da pensão que teria servido de modelo à Casa Vauquer.
64 No Exército. Evidentemente, o pai Goriot é velho demais para ser convocado, e sua observação é sinal
de que seu delírio começou.
65 Mose in Egitto , ópera de Rossini, foi criada no Teatro San Carlo de Nápoles na quaresma de 1810. Em
1819 Rossini acrescentou a famosa prece de Moisés. A obra foi representada pela primeira vez em
Paris em 20 de outubro de 1822, no Teatro Louvois, pela trupe do Théâtre-Italien.
66 Luís XIV deu seu consentimento, em 16 de dezembro de 1670, para o casamento de Anne-Marie Louise
d’Orléans, a Grande Mademoiselle, sua prima, de quarenta e três anos, com o duque de Lauzun, seis
anos mais moço. Mas mudou de ideia três dias depois, deixando a senhorita desarvorada, e mandou
trancafiar o duque numa cidadela, de onde só saiu dez anos depois, para se casar secretamente com a
pretendente.
67 Nesta versão do romance, Balzac suprimiu do texto o encontro de Rastignac com o coronel Franchessini
(assassino do filho Taillefer) no baile da sra. de Beauséant. Mas esqueceu de suprimir este trecho de
frase.
Cronologia

1797 Bernard-François Balzac, de uma família de camponeses do Tarn, diretor de mantimentos de uma
divisão militar de Tours, casa-se aos cinquenta anos com Anne-Charlotte-Laure Sallambier, dezoito
anos, de uma família de ricos comerciantes de tecidos de Paris.
1799 20 DE MAIO Nascimento de Honoré Balzac em Tours, segundo filho do casal. Seus irmãos são Laure
(1800), Laurence (1802) e Henri-François (1807), filho adulterino da sra. Balzac com Jean de
Margonne, castelão de Saché.
Napoleão Bonaparte derruba o Diretório e se torna primeiro cônsul da França.
1803 Depois de quatro anos vivendo com a ama de leite, Honoré volta para a família.
1804 Matriculado no pensionato Le Guay, em Tours, de onde sairá em 1807.
Napoleão Bonaparte sagra-se imperador e começa a conquista da Europa.
1807 Interno no Colégio de Vendôme, dos oratorianos, onde fica até 1813. Em seis anos só recebe duas
visitas da mãe.
1814 A família se muda para Paris, instalando-se no Marais.
Napoleão abdica e se torna rei de Elba. Primeira restauração, com a ascensão de Luís XVIII ao trono.
1815 Estudos secundários em Paris, no Instituto Lepître e no Instituto Ganzer.
Napoleão regressa triunfante a Paris, governa cem dias e é derrotado em Waterloo. Luís XVIII volta a
ocupar o trono da França.
1816 Matricula-se na faculdade de direito da Sorbonne. Estágio no escritório do advogado Guillonnet-
Merville, até março de 1818.
1818 Estágio com o tabelião Victor Passez, amigo da família. Reúne notas para um tratado sobre A
imortalidade da alma .
1819 Recebido no bacharelato de direito. O pai se aposenta e a família se muda para Villeparisis. Balzac vai
morar sozinho numa mansarda da Rue Lesdiguières, 9, perto da Bastilha, decidido a ser escritor.
Escreve Cromwell , tragédia em versos em cinco atos, que será mal recebida pelo acadêmico
Andrieux, amigo da família.
1820 Trabalha no romance medieval Agathise , no estilo de Walter Scott.
1822 Começa a escrever com pseudônimos. A herdeira de Birague , Jean-Louis , Clotilde de Lusignan ou le
beau Juif , Le centenaire , são assinados por Lord R’Hoone [Honoré]. O vigário das Ardennes ,
assinado por Horace de Saint-Aubin, é recolhido por imoralidade. Inicia a ligação com Laure de
Berny, vinte e dois anos mais velha, e que terá grande papel na sua formação.
1823 O Teatro de la Gaîté recusa seu melodrama Le Nègre.
1824 Muda-se para a Rue de Tournon, 2. Atividade jornalística em Feuilleton littéraire e La Lorgnette .
Continua a publicar com pseudônimo.
Morte de Luís XVIII , substituído pelo rei Carlos X .
1825 Primeiros trabalhos como editor, reeditando as obras completas de La Fontaine e de Molière. Início da
ligação com Laure Junot, duquesa d’Abrantes, quinze anos mais velha. Pensa numa grande História
da França pitoresca .
1826 Obtém a patente de impressor e se endivida para comprar uma tipografia na Rue des Marais-Saint-
Germain, 17, atual Rue Visconti.
1827 Para expandir a Tipografia H. Balzac, compra uma fundição de tipos gráficos, com a ajuda financeira
de Laure de Berny. Conhece Victor Hugo.
1828 O sócio André Barbier sai do negócio. Vende a fundição a um filho de Laure de Berny, que dispensa o
reembolso. Muda-se para a Rue Cassini, 1, perto do Observatório.
16 DE AGOSTO Liquidação da tipografia, que lhe deixa 60 mil francos de dívidas (cerca de 200 mil
euros), sendo 50 mil com a família.
1829 Introduzido pela duquesa d’Abrantes, frequenta os salons da aristocracia. Início da amizade e da
correspondência com Zulma Carraud. Morte do pai.
Fisiologia do casamento ; O último Chouan ou a Bretanha em 1800, primeiro romance assinado
Honoré Balzac.
1830 Intensa atividade jornalística, em Le feuilleton des journaux politiques , Revue de Paris , Revue des
Deux-Mondes , La mode.
MAIO-SETEMBRO Temporada com Laure de Berny na Touraine.
O elixir de longa vida ; Sarrasine ; Uma paixão no deserto ; Gobseck.
Revolução de Julho. Abdicação de Carlos X . Monarquia de Julho. Luís Filipe no trono da França.
1831 Vida mundana. Incorpora definitivamente a partícula de , indicativa de nobreza, a seu sobrenome.
Temporada em Angoulême com os Carraud.
Pele de onagro , sucesso imediato; A estalagem vermelha .
1832 FEVEREIRO Recebe a primeira carta de Eveline Hanska (1803-82), condessa polonesa que se assina
A estrangeira , e com quem se casará dezoito anos depois. Temporadas em Angoulême, com Zulma
Carraud, e em Aix-les-Bains, com a marquesa de Castries. Junta-se ao partido legitimista
(ultraconservador).
O coronel Chabert , início de Contos jocosos ; Novos contos filosóficos.
1833 Terceira e última temporada com os Carraud, em Angoulême. Ligação secreta com Maria du Fresnay
(1809-92), com quem terá uma filha no ano seguinte.
25 DE SETEMBRO Primeiro encontro com Madame Hanska, em Neuchâtel. Contrato para a
publicação da coleção Estudos de costumes no século XIX , em doze volumes. Natal com Madame
Hanska, em Genebra.
História intelectual de Louis Lambert ; Ferragus ; O médico rural; Eugénie Grandet.
1834 Tomos X e XI de Estudos de costumes no século XIX ; A duquesa de Langeais ; A procura do
absoluto ; início de Serafita .
SETEMBRO Começa a escrever no castelo de Saché a primeira e segunda parte de O pai Goriot ,
romance a partir do qual vão reaparecer sistematicamente seus personagens.
14 DE DEZEMBRO Publicada na Revue de Paris a primeira das quatro partes do romance. As três
seguintes sairão em 28 de dezembro desse ano, 18 de janeiro e 1o de fevereiro de 1835.
1835 Ligação com a condessa Guidoboni-Visconti. Instala-se na Rue des Batailles, 13, em Chaillot. Três
semanas em Viena com Madame Hanska, que ele só tornará a ver oito anos depois; é recebido por
Metternich. Sócio majoritário e diretor de Chronique de Paris , revista política e literária que só dura
seis meses.
Tomos I a XII de Estudos de costumes ; O lírio no vale na Revue de Paris .
11 DE MARÇO Publicação em livraria de O pai Goriot , que figurará em A comédia humana , de
acordo com o Catálogo de 1845, como um título de “Cenas da vida privada”.
1836 Nascimento de Lionel-Richard Lowell, suposto filho com a condessa Guidoboni-Visconti. Morte de
Laure de Berny. Liquidação da revista Chronique de Paris. Perseguido por credores e oficiais de
justiça, viaja à Itália e depois vive escondido em Chaillot.
A missa do ateu ; início de O gabinete das antiguidades.
1837 Compra a Villa des Jardies, em Sèvres, origem de novas e pesadas dívidas. Esconde-se na casa da
condessa Guidoboni-Visconti, que paga suas dívidas e lhe evita a prisão. Seu tílburi é confiscado pela
justiça. Exibição de seu retrato, com roupa de monge, por Louis Boulanger.
César Birotteau ; tomos VII e VIII de Estudos de costumes , contendo a primeira parte de Ilusões
perdidas .
1838 FEVEREIRO-MARÇO Temporada em Nohant, na casa de George Sand. Viagem à Sardenha, onde
espera enriquecer especulando com as minas de prata. Instala-se em Les Jardies. Inscreve-se na recém-
criada Société des gens de lettres.
A Casa Nucingen ; A Torpedo.
1839 16 DE AGOSTO Presidente da Société des gens de lettres. Campanhas pela proteção da propriedade
literária e dos direitos autorais.
2 DE DEZEMBRO Candidatura à Academia Francesa, retirando-a depois em favor de Victor Hugo,
que não é eleito.
Um grande homem de província em Paris , segunda parte de Ilusões perdidas ; Uma filha de Ève , em
folhetim.
1840 9 DE JANEIRO Cede a Victor Hugo a presidência da Société des gens de lettres.
14 DE MARÇO Criação de Vautrin no Teatro de la Porte-Saint-Martin; a peça é proibida no dia
seguinte.
25 DE JULHO Lança a Revue parisienne , mensal, que só terá três números.
SETEMBRO Les Jardies é penhorada. Muda-se com a mãe e Louise Breugniet, governanta e amante,
para a Rue Basse, 19 (atual Rue Raynouard), em Passy, onde hoje é a Maison de Balzac. O contrato de
aluguel é feito em nome de Louise.
1841 2 DE OUTUBRO Assina com os livreiros Furne, Hetzel, Dubochet e Paulin o contrato para a
publicação de suas obras completas sob o título geral, imaginado no ano anterior, de A comédia
humana . Os dezessete volumes, revistos pelo autor (edição Furne corrigida), são publicados de 1842 a
1848, e completados postumamente, em 1855, por mais três.
NOVEMBRO Morte de Wenceslas Hanski, marido de Madame Hanska, com quem Balzac retoma a
correspondência.
Um caso tenebroso ; Ursule Mirouet ; Memórias de duas jovens esposas.
1842 19 DE MARÇO Criação no Teatro de l’Odéon de Ressources de Quinola , que tem apenas dezenove
representações.
JULHO Escreve o prólogo de A comédia humana , em que compara os tipos humanos com as espécies
animais. Retrato feito por um daguerreotipista.
Os dois irmãos ; início de Esplendores e misérias das cortesãs , no jornal Le Parisien.
1843 JULHO-OUTUBRO Em São Petersburgo, com Madame Hanska.
26 DE SETEMBRO Criação de Paméla Giraud no Teatro de la Gaîté, que tem apenas 28
representações. David d’Angers termina o busto de Balzac.
Ilusões perdidas , edição completa publicada no tomo VIII de A comédia humana (v. IV de Cenas da
vida de província ).
1844 Faz o “Catálogo das obras que comporão A comédia humana ”, em que ainda figuram quarenta obras
a escrever. Problemas de saúde. Coleciona móveis e pinturas.
Modeste Mignon , em folhetim no Journal des débats ; David Séchard, a terceira parte de Ilusões
perdidas, em edição separada.
1845 Cavaleiro da Legião de Honra. Viagem a Alemanha, França, Holanda, Bélgica e Itália, com Madame
Hanska, sua filha Anne e o futuro genro.
1846 Viagem de Roma a Frankfurt com Madame Hanska. Testemunha de casamento de Anne Hanska com
o conde Georges Mniszech, em Wiesbaden.
AGOSTO Conclusão de A comédia humana, com a venda dos volumes que faltavam.
28 DE SETEMBRO Compra a prestação da casa da Rue Fortunée, atual Rue Balzac.
NOVEMBRO Madame Hanska dá à luz um menino natimorto, que se chamaria Victor-Honoré.
Desespero de Balzac.
Esplendores e misérias das cortesãs (terceira parte) em L’époque ; A prima Bette em Le
Constitutionnel .
1847 Madame Hanska, em Paris, exige que Balzac se separe da governanta.
15 DE ABRIL Instalam-se na Rue Fortunée. Balzac lega a Madame Hanska todos os seus bens e os
manuscritos, por ele corrigidos, de A comédia humana.
SETEMBRO Temporada de cinco meses no castelo de Wierzschownia, na Ucrânia, com Madame
Hanska.
1848 15 DE FEVEREIRO Volta para Paris. Presencia o saque às Tuileries, durante a revolução de fevereiro
de 1848, que lhe causa medo e aversão. Cogita em se candidatar nas eleições legislativas. Pensa em
adaptar seus romances para o teatro.
25 DE MAIO Criação de A madrasta no Teatro Historique, com apenas seis apresentações. Primeiros
sintomas da doença cardíaca.
SETEMBRO Volta para Wierzchownia, onde fica até abril de 1850.
Revolução de fevereiro. Segunda República. Luís Bonaparte é eleito presidente.
1849 11 DE JANEIRO Nova candidatura à Academia Francesa, quando só consegue quatro votos, entre
eles os de Victor Hugo e Lamartine. Passa todo o ano na Ucrânia.
1850 14 DE MARÇO Casamento em Berditchev, Ucrânia, com Madame Hanska, que abriu mão, segundo
decisão do czar, de seus bens pessoais para poder se casar com um estrangeiro. Doente, Balzac volta
com ela para Paris.
18 DE AGOSTO, 23H 30 Morte de Balzac, na casa da Rue Fortunée. Victor Hugo, que o visitara
nesse dia, faz o elogio fúnebre no cemitério do Père-Lachaise, três dias depois, lembrando o caráter
“revolucionário” de sua obra.
1882 Morte de Madame Hanska.
Outras leituras

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O PAI GORIOT
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Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.
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Edição baseada em Honoré de Balzac, Le Père Goriot . La Comédie humaine III . Paris: Gallimard, 1999.
Bibliothèque de la Pléiade.
TÍTULO ORIGINAL
Le Père Goriot
PREPARAÇÃO
Maria Fernanda Alvares
REVISÃO
Carmen T. S. Costa
Thaís Totino Richter
ISBN 978-85-438-0278-7

Todos os direitos desta edição reservados à


EDITORA SCHWARCZ S.A.
Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 32
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A mulher de trinta anos
Balzac, Honoré de
9788543802831
240 páginas

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Balzac, que vê a faixa dos trinta anos como o auge poético da


vida das mulheres, faz um elogio à maturidade feminina no
livro que consagrou a expressão "balzaquiana".
Antes de Emma Bovary, antes de Anna Kariênina, existiu Julie.
Contrariando os conselhos do pai, ela julga-se apaixonada e
decide se casar ainda muito jovem com um coronel do exército
napoleônico. Em pouquíssimo tempo, descobre-se infeliz no
casamento e na maternidade, presa a obrigações que não
pretende abandonar.

A isso se seguem as paixões por outros homens, e anuncia-se


o destino trágico da protagonista. Mas A mulher de trinta anos
não é a história particular de Julie, e sim a de alguém em quem
convergem as contradições do que representava ser mulher no
século XIX e, por extensão, as contradições da própria
sociedade moderna.

Com sua reputação de grande conhecedor do coração


feminino, Balzac, que deveu sua formação às diversas
mulheres mais velhas com quem se relacionou, aponta neste
livro para a profundidade da alma que só pode vir da
experiência. Esta edição do mais famoso texto de Cenas da
vida privada, subdivisão de A comédia humana, traz uma
introdução da escritora, ensaísta e crítica literária Eliane Robert
Moraes.
Moraes.

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Madame Bovary
Flaubert, Gustave
9788580864168
496 páginas

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Reconhecido por autores como Henry James como "o romance


perfeito", Madame Bovary é a obra fundamental de Gustave
Flaubert (1821-80). Trata-se de um raridade, mesmo em um
clássico, um exercício meticuloso de escrita que igualmente
clássico, um exercício meticuloso de escrita que igualmente
desafiava as estruturas literárias e as convenções sociais. Não
à toa, a época de lançamento o impacto foi duplo: um sucesso
de público e a reação feroz do governo francês, que levou o
autor a julgamento sob a acusação de imoralidade.

Flaubert inventou um estilo totalmente novo e moderno,


praticando uma escrita que, ao longo dos cinco anos que levou
para terminar o livro, literalmente avançou palavra a palavra.
Cada frase devia refletir o esforço em obtê-la, sendo reescrita e
reescrita ad infinitum. Mestre do realismo, o autor documenta a
paisagem e o cotidiano da segunda metade do século XIX,
ironizando os romances sentimentais e folhetins, gêneros que
considerava obsoletos. A história faz um ataque à burguesia,
desmoralizando-a com a descrição exuberante de sua
banalidade. Em um tempo em que as mulheres eram
submissas, Emma Bovary encontra nos tolos romances dos
livros o antídoto para o tédio conjugal e inaugura uma galeria
de famosas esposas adúlteras atormentadas na literatura.

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O grande Gatsby
Fitzgerald, F. Scott
9788580862676
256 páginas

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Nos tempos de Jay Gatsby, o jazz é a música do momento, a


riqueza parece estar em toda parte, o gim é a bebida nacional
(apesar da lei seca) e o sexo se torna uma obsessão
americana. O protagonista deste romance é um generoso e
americana. O protagonista deste romance é um generoso e
misterioso anfitrião que abre a sua luxuosa mansão às festas
mais extravagantes. O livro é narrado pelo aristocrata falido
Nick Carraway, que vai para Nova York trabalhar como corretor
de títulos. Passa a conviver com a prima, Daisy, por quem
Gatsby é apaixonado, o marido dela, Tom Buchanan, e a
golfista Jordan Baker, todos integrantes da aristocracia
tradicional.

Na raiz do drama, como nos outros livros de Fitzgerald, está o


dinheiro. Mas o romantismo obsessivo de Gatsby com relação
a Daisy se contrapõe ao materialismo do sonho americano,
traduzido exclusivamente em riqueza. Aclamado pelos críticos
desde a publicação, em 1925, O grande Gatsby é a obra-prima
de Scott Fitzgerald, ícone da "geração perdida" e dos
expatriados que foram para a Europa nos anos 1920.

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Memórias do sobrinho do meu tio
de Macedo, Joaquim Manuel
9788563397997
376 páginas

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"O diabo é que em política no século XIX quem fecha uma


porta abre outra, e quando não quer abrir, às vezes o povo
arromba", observa o debochado e autocomplacente narrador
de Memórias do sobrinho de meu tio, romance de Joaquim
de Memórias do sobrinho de meu tio, romance de Joaquim
Manuel de Macedo escrito entre os anos 1867 e 1868. Fraude
eleitoral, jornalistas a mando de poderosos e alianças espúrias
são alguns dos temas da prosa ligeira dessa sátira política. O
sr. F. , narrador destas memórias, herda uma pequena fortuna,
logo acrescida pelos outros tantos contos de réis de sua prima
Chiquinha, com quem se casa. Juntos, os dois empreendem
uma busca voraz por mais dinheiro e poder, este último
representado pela eleição de F. a presidente de província (hoje
o equivalente a governador). No meio do caminho, conchavos,
amizades interesseiras e lances rocambolescos que parecem
exemplificar a interpretação do crítico Antonio Candido sobre a
obra de Macedo, que apresentaria duas tendências: o realismo
e o tom folhetinesco. Egoísta, anárquico e paradoxalmente um
moralista, o protagonista parece antecipar as vestes do conto
"Teoria do medalhão", de Machado de Assis, em que a busca
de poder e prestígio no Brasil parece estar acima de tudo,
inclusive e principalmente da honestidade.

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Essencial Padre Antônio Vieira
Vieira, Padre Antônio
9788580863994
760 páginas

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O enfático juízo de Fernando Pessoa sobre Antônio Vieira


contido num verso de Mensagem conserva sua plena validade
neste início de século XXI. O perfeito domínio das sutilezas da
retórica seiscentista, a impressionante erudição bíblica e
retórica seiscentista, a impressionante erudição bíblica e
literária e a inigualada capacidade de instruir, comover e
deleitar simultaneamente continuam a fazer da prosa do
"imperador da língua portuguesa" um clássico absoluto nas
duas margens do Atlântico, mais de três séculos após sua
primeira publicação.

Embora o mundo monárquico, escravista e radicalmente


dogmático de Vieira já tenha há muito desaparecido, sua
extensa obra continua a iluminar a história e a literatura da
lusofonia. Jesuíta, político e pregador, confessor de reis e
profeta do Quinto Império, autor de centenas de sermões e de
uma riquíssima correspondência, Vieira foi um homem de
múltiplos interesses, unificados por sua fé inquebrantável e
pela crença nos altos destinos de Portugal. Essencial Padre
Antônio Vieira é uma generosa amostra de sua eloquente
produção literária, incluindo alguns de seus melhores sermões,
cartas e textos proféticos, além de uma esclarecedora
introdução de Alfredo Bosi, membro da Academia Brasileira de
Letras, e do texto inédito em português A chave dos profetas.

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