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Partículas elementares
Michel Houellebecq
Editora Sulina, 1999
Título original: Les Particules élémentaires, 1998
Tradução de Juremir Machado
© Flammarion, 1998 © Editora Sulina, 1999
Contracapa
Michel, pesquisador em biologia, rigorosamente
determinista, incapaz de amar, administra o declínio de sua
sexualidade dedicando-se ao trabalho, às compras no
supermercado do bairro e aos tranquilizantes. Um ano
sabático dá a suas pesquisas um rumo que sacudirá a face
da terra. Bruno, por seu lado, obstina-se na busca
desesperada do prazer sexual. Uma temporada no Espaço
da Mudança, camping pós-68, tendência New Age, mudará
a vida dele? Uma noite, na piscina, uma desconhecida de
boca ousada deixa-o entrever a possibilidade prática da
felicidade. Através de trajetórias familiares e sentimentais
caóticas, os dois — irmãos por parte de mãe — ilustram, de
modo exemplar, o suicídio ocidental — a não ser que
anunciem a iminência de uma mutação jamais imaginada
pela ficção. Poeta e romancista, Michel Houellebecq
publicou Extensão do domínio da luta (1997) antes de
explodir com Partículas elementares (1998), romance que o
transformou num fenômeno cultural internacional, objeto da
maior polêmica literária da década de 90 na França. Depois,
lançou Plataforma e A possibilidade de uma ilha. A ironia
nunca se dobra.
Prólogo
Este livro é, antes de tudo, a história de um homem que
viveu a maior parte da sua vida, durante a segunda metade
do século XX, na Europa ocidental. Geralmente só, esteve,
entretanto, de longe em longe, em relação com outros
homens. Viveu em tempos infelizes e conturbados. O país
em que nascera deslizava, lenta mas inexoravelmente, para
a zona econômica dos países intermediários;
frequentemente acossados pela miséria, os homens da sua
geração passaram, além disso, a vida na solidão e na
amargura. Os sentimentos de amor, de ternura e de
fraternidade humana tinham, em ampla medida,
desaparecido; nas relações entre eles, os seus
contemporâneos demonstravam, quase sempre, indiferença
ou mesmo crueldade. No momento do seu
desaparecimento, Michel Dzerjinski era considerado, por
unanimidade, como um biólogo de primeiro plano e
pensava-se, seriamente, nele para o Nobel; a sua
verdadeira importância só se revelaria um pouco mais
tarde. À época em que viveu Dzerjinski, considerava-se, na
maior parte do tempo, a filosofia como sendo destituída de
qualquer importância prática e até mesmo de objeto. Na
realidade, a visão de mundo dominante, em dado momento,
numa sociedade, determina-lhe a economia, a política e os
costumes. As mutações metafísicas — ou seja, as
transformações radicais e globais da visão de mundo
adotada pela maioria — são raras na história da
humanidade. Pode-se, por exemplo, citar o surgimento do
cristianismo.
Desde que uma mutação metafísica acontece, ela se
desenvolve, sem encontrar resistência, até as últimas
consequências. Varre, sem mesmo prestar-lhes atenção, os
sistemas econômicos e políticos, os julgamentos estéticos,
as hierarquias sociais. Nenhuma força humana pode
interromper-lhe o curso — a não ser o aparecimento de uma
nova mutação metafísica. Não se pode dizer que as
mutações metafísicas atacam, especialmente, as
sociedades enfraquecidas, em declínio. Quando o
cristianismo apareceu, o império romano encontrava-se no
apogeu; supremamente organizado, dominava o universo
conhecido; a sua superioridade técnica e militar era
incomparável; dito isso, ele não tinha nenhuma chance.
Quando a ciência moderna apareceu, o cristianismo
medieval constituía um sistema completo de compreensão
do homem e do universo; servia de base ao governo dos
povos, produzia conhecimentos e obras, decidia sobre a paz
e a guerra, organizava a produção e a repartição das
riquezas; nada disso conseguiria impedi-lo de desabar.
Michel Dzerjinski não foi o primeiro nem o principal
artífice dessa terceira mutação metafísica, sob muitos
aspectos a mais radical, que abriria um período novo na
história do mundo; mas por causa de certas circunstâncias,
bastante particulares, da sua vida, foi um dos artífices mais
conscientes, mais lúcidos.
________________
1 Na França, exame e diploma que sancionam o fim dos
O animal ômega
REGIME STANDARD
Verão de 75
(Oseias, 5, 4)
Encontro Deus
No solário,
Ele tem belos olhos,
Come maçãs
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1 Principal emissora (privada) de televisão da França: a
Conversa de trailer
Julian e Aldous
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1 Espécie de balas, muito populares, que trazem na
________________
1 Talon rouge: designação dos nobres elegantes do
A hipótese MacMillan
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1 Filé de arenque enrolado, ao molho de vinho branco,
Alsácia (N.T.).
16
Reencontro
Ela saiu do hospital dez dias mais tarde. Bruno estava lá.
Agora, a situação era diferente. A vida caracteriza-se por
longos períodos de tédio e indefinição. Em geral, é bem
morna. De repente, surge uma bifurcação que se torna
definitiva. Christiane obteve uma pensão por invalidez.
Nunca mais precisaria trabalhar. Tinha direito até mesmo a
uma empregada doméstica. Ainda desajeitada, moveu a
cadeira de rodas até Bruno. Faltavam-lhe forças nos braços.
Depois de beijá-la no rosto e na boca, Bruno disse: "Agora,
vens morar comigo, em Paris". Ergueu o rosto e olhou-o nos
olhos, sem que ele pudesse suportar. "Tens certeza?",
perguntou com doçura. "É isso mesmo que queres?" Bruno
não respondeu. Ao menos, custou a fazê-lo. Depois de 30
segundos de silêncio, ela acrescentou: "Nada te obriga.
Ainda te resta um pouco tempo para viver. Não precisas
desperdiçá-lo com uma inválida". Os elementos da
consciência contemporânea não se adaptam mais à nossa
condição de mortais. Jamais, em qualquer outra época e em
qualquer outra civilização, pensou-se tanto na idade. Cada
um tem na cabeça uma perspectiva simples de futuro:
chegará o momento em que a soma dos prazeres físicos
restantes será menor do que a soma das dores (em resumo,
sente, no fundo de si mesmo, os ponteiros girarem —
sempre no mesmo sentido). Esse balanço racional dos
prazeres e das dores que cada um, cedo ou tarde, acaba por
fazer, desemboca, inexoravelmente, a partir de certa idade,
no suicídio. É engraçado observar, a respeito disso, que
Deleuze e Debord, dois intelectuais respeitados deste final
de século, suicidaram-se sem razão precisa, simplesmente
porque não suportavam a perspectiva da própria
decadência física. Esses suicídios não provocaram nenhuma
surpresa, nenhum comentário; em geral, os suicídios de
pessoas idosas, de longe os mais frequentes, parecem-nos
absolutamente lógicos. Pode-se também observar, como
traço sintomático, a reação do público diante da
possibilidade de um atentado terrorista: na quase totalidade
dos casos, as pessoas preferem morrer na hora do que ficar
aleijadas ou desfiguradas. Em parte, claro, porque estão
saturadas da vida, mas sobretudo porque nada, inclusive a
morte, parece pior do que viver num corpo mutilado.
Contornou perto de La Chapelle-en-Serval. Teria sido
mais simples se jogar numa árvore ao atravessar a floresta
de Compiègne. Tinha hesitado alguns segundos a mais:
pobre Christiane. Ainda hesitara alguns dias a mais antes de
telefonar. Sabia que ela estava só com o filho em seu
edifício popular. Podia imaginá-la na cadeira de rodas, perto
da televisão. Nada o forçava a cuidar de uma inválida, tinha
dito ela. Sabia que ela estava morta sem ódio. Encontraram
a cadeira fechada, perto das caixas de correio, junto à
escada. Estava com o rosto inchado e o pescoço quebrado.
Bruno constava na lista de "pessoas a avisar em caso de
acidente". Morreu antes de chegar ao hospital.
O complexo funerário ficava logo depois de Noyon, na
estrada de Chauny, e devia virar justo após Baboeuf. Dois
funcionários de macacão azul esperavam num pré-fabricado
branco, quente demais, com vários aquecedores, mais ou
menos como numa sala de aula de escola técnica. Os vidros
davam para prédios baixos, modernos, de uma zona
semirresidencial. O caixão, ainda aberto, repousava sobre
uma mesa com cavaletes. Bruno se aproximou, viu o corpo
de Christiane e caiu para trás. A cabeça bateu
violentamente no chão. Os empregados levantaram-no com
cuidado. "Chore! Precisa chorar!", incitou-o o mais velho,
com uma voz aflita. Sacudiu a cabeça. Sabia que não
conseguiria. O corpo de Christiane não se mexeria mais, não
respiraria, não falaria. O corpo de Christiane não poderia
mais amar. Não havia mais nenhum destino possível para
aquele corpo e a culpa era dele. Todas as cartas tinham sido
tiradas, todos os dados lançados, o último jogo feito:
fracasso definitivo. Tanto quanto seus pais, não fora capaz
de amar. Num estranho estado de desprendimento
sensorial, como se flutuasse alguns centímetros acima do
chão, viu os homens aparafusando a tampa do caixão.
Seguiu-os até o "muro do silêncio", uma parede cinza de
concreto, com três metros de altura, onde ficavam as
gavetas funerárias. Metade estava vazia. O empregado mais
velho consultou as instruções e dirigiu-se para a 632. Seu
colega empurrava o carrinho com o caixão. A atmosfera
estava úmida e fria; começou mesmo a chover. A gaveta
632 ficava a meia altura, cerca de um metro e meio acima
do chão. Com um movimento ágil e eficaz, que não durou
mais de alguns segundos, levantaram o caixão e o fizeram
desaparecer na fenda. Com uma pistola, vaporizaram
cimento de secagem ultrarrápida na abertura. Bruno
assinou o registro. Podia, se quisesse, ficar um pouco ali.
Tomou a autoestrada A1 e chegou pelas 11 horas na
entrada de Paris. Pedira um dia de licença. Não esperava
que a cerimônia fosse tão curta. Entrou por Châtillon e
estacionou na rua Albert Sorel, bem na frente do edifício da
ex-mulher. Não precisou esperar muito tempo; dez minutos
depois, seu filho surgiu com uma mochila nas costas.
Parecia inquieto e falava sozinho enquanto caminhava. Em
que pensaria? Era um garoto meio solitário, dissera-lhe
Anne; em vez de almoçar com os outros, no colégio, preferia
voltar para casa e esquentar o prato deixado por ela antes
de sair pela manhã. Teria sentido a sua falta?
Provavelmente, mas nunca disse nada. As crianças
suportam o mundo construído para eles pelos adultos.
Tentam se adaptar da melhor maneira. Depois, em geral,
reproduzem-no. Victor chegou à porta, digitou o código.
Estava a alguns metros do carro, mas não via Bruno, que se
mexeu no banco e estendeu a mão para descer. A porta do
edifício bateu atrás da criança. Bruno permaneceu imóvel
alguns segundos, antes de desabar. O que poderia dizer ao
filho, que mensagem transmitir? Nada. Não tinha nada.
Sabia que sua vida estava acabada, mas não compreendia o
fim. Tudo continuava escuro, doloroso e confuso.
Saorge — Terminal
________________
1 Ex-primeiro-ministro francês. Homem de direita,
Inscrito na carne
Para sempre sacrificada
Nas montanhas, no ar
E na água dos rios,
No céu modificado.
Alguns dizem:
"A civilização que construímos ainda é frágil,
Estamos apenas saindo da noite,
Dos últimos séculos de infelicidade, ainda
carregamos a imagem hostil;
Não seria melhor que tudo isso continuasse
escondido?"