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SINOPSE

Nesta primeira aula, o professor Marcus Boeira estabelece uma distinção


introdutória entre os regimes políticos e os regimes impolíticos para
caracterizar mais pormenorizadamente os primeiros.

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
Ao final desta aula, espera-se que você saiba: qual o critério principal de
um regime político; por que os regimes impuros ou corruptíveis podem ser
chamados de regimes impolíticos; o que diferencia os regimes políticos dos
impolíticos; o que é a ordem; qual a função primordial da linguagem; o que é a
novilíngua; o que é a constitutio;

INTRODUÇÃO
Sejam bem-vindos a estas duas aulas sobre os regimes políticos e os
regimes impolíticos. Nessas duas aulas, eu pretendo analisar com vocês qual é
exatamente o fundamento por meio do qual os regimes políticos, na história da
civilização, entendidos como regimes legítimos, são não apenas aceitos, como
também diferenciados do que eu vou chamar aqui de regimes impolíticos.
Esta diferenciação obviamente parte de uma série de quesitos que nos
permitem estabelecer uma variedade de distinções conceituais e teóricas entre
duas matrizes ou dois grandes modelos por meio dos quais os sistemas e
regimes políticos ao longo da história se edificarem e se constituíram. De um
lado, os regimes políticos, tomados aqui como regimes legítimos e ancorados
numa perspectiva de ordem. De outro lado, os chamados regimes impolíticos,
que procuram exatamente a destruição da ordem tal como considerada.
Por isso, na primeira aula, eu gostaria de vencer com vocês aquilo que eu
entendo ser a parte mais fundamental dos regimes políticos: quais são
exatamente os seus aspectos teóricos subjacentes, qual é precisamente a sua
marca característica.
Para tal, eu vou distinguir essa primeira aula em três partes. Na primeira
parte da aula, gostaria de diferenciar os regimes políticos legítimos dos regimes
ilegítimos e explicar por que usaria a expressão “regimes impolíticos” para
qualificar estes últimos.
Na segunda parte da aula, eu gostaria de descer às peculiaridades
atinentes ao que marca esses regimes aos quais eu chamo de regimes políticos.
E, no fim, na terceira parte desta primeira aula, gostaria de explorar algumas
noções específicas sobre alguns dos modelos que são talhados ou, digamos,
considerados regimes políticos na história clássica e na história moderna.
De modo que, em nossa segunda aula, possa vencer o que são exatamente
os regimes impolíticos e quais são as suas marcas características.

2. OS REGIMES POLÍTICOS
Dado isso, em primeiro lugar, é fundamental que nós tenhamos uma
noção prévia sobre o que caracteriza, afinal de contas, os regimes políticos em
contraste com os regimes impolíticos.

2.1. Os regimes puros e impuros


Na “Política”, Aristóteles traz uma classificação sobre o que são os regimes
políticos e faz uma distinção entre o que chama ali de os regimes que são
tomados como regimes puros e o que ele chama, de outro lado, de regimes
impuros ou corruptíveis.
No primeiro grupo de regimes políticos, Aristóteles situa a monarquia, a
aristocracia e a politeia. Do outro lado, como regimes corruptos - que eu
chamaria de impolíticos - são aqueles regimes que degeneram essas formas
puras do que seja uma ordem política, que são os regimes tirania, oligarquia e
democracia, ao qual o Aristóteles trata como demagogia.

2.2. A democracia no mundo Antigo


Obviamente, no mundo Antigo, a palavra “democracia” invocava uma
forma de organização do poder que era muito distinta daquilo que temos hoje.
Na era atual, nos últimos séculos, a democracia se tornou um dos cânones
principais, um dos postulados decisivos da vida política moderna, porque,
frente ao agigantamento progressivo e geométrico do Estado como nova forma
de organização do poder, a democracia, atualmente, aparece como o regime
político que contrasta precisamente esse aumento progressivo do poder estatal
com a legitimidade popular, com a soberania popular.
No entanto, no passado, a palavra “democracia” não possuía esta
conotação. Ela normalmente era vista como uma forma degenerada de
organização do poder político, porque, diferentemente da politeia, que é aquela
em que as instituições e a vontade social de alguma forma se harmonizam, a
democracia, no mundo Antigo, no mundo clássico grego, era vista como um
regime que permitia a reificação da demagogia ou o protagonismo dos sofistas.

2.3. A ordem
Quando nós olhamos para trás e realizamos o exercício de ler a “Política”
de Aristóteles e de outros autores, como o próprio Platão na “República”, vamos
perceber que existe, atrás dessa classificação entre os bons e os maus regimes,
um critério principal a partir do qual essa distinção sobrevém. Esse critério é o
que eu vou chamar aqui de ordem. Todos regimes políticos têm em vista uma
noção prévia e constitutiva acerca do que é a ordem.
Os clássicos gregos normalmente chamavam esta ordem usando a
expressão grega nomos. A expressão nomos, em grego, pode ser muitas coisas
como, por exemplo, regra, norma, lei, preceito, mas também ordem. O nomos, a
ordem, era tomada como o princípio fundador fundamental por meio do qual
uma comunidade humana se edificava e sobrevivia historicamente. Era tarefa
das autoridades civis, no início de uma civilização, no início de uma cidade, de
uma pólis, construir uma cidade que pudesse expressar e fazer representar, no
tempo e no espaço, esta noção primeva de ordem que repousava no horizonte
cultural e imagético dos seres humanos historicamente situados naquela
civilização específica.

2.4. Os regimes políticos e os regimes impolíticos


Os regimes políticos se distanciam e se diferenciam dos regimes
chamados impolíticos porque reafirmam a política, isto é, a pólis, a cidade que
vive sob o guarda-chuva desta mesma ordem. Uma ordem, o nomos, que,
contrastada com a terra, com o elemento geográfico presente em uma cidade,
ilumina e lança, sobre o conjunto dos seus habitantes, uma perspectiva
integrada de vida, uma forma compartilhada de existência social dentro do que
as diferentes formas de vida, os diferentes tipos sociais e as diferentes tipologias
de existência vão, de alguma forma, convergindo dentro desta ordem, ainda que
esta ordem sempre apareça de um modo espontâneo e aberto no horizonte dos
mesmos habitantes.
Em contraste com esta noção primeva e criteriosa do que eram os regimes
políticos, aparece o que eu vou chamar aqui de regimes impolíticos. Os regimes
impolíticos são regimes que violam a política. Por isso, são chamados
impolíticos, porque procuram, em maior ou menor medida, atacar e destruir
essa noção primária e primeva de ordem espontânea que está na antessala das
civilizações humanas. Os regimes impolíticos, portanto, articulam-se para bem
destruir, rovinar, erodir e eclodir a forma e o modo por meio do qual uma
comunidade estabelece a sua existência política na História.
Por isso, na clássica conexão entre ordem e História, sempre aparece a
imprescindibilidade de que algo possa expressar essa ordem ou, por outro lado,
algo que venha patologicamente para assaltar ou destruir essa mesma ordem.
Nos regimes políticos, portanto, percebemos como critério principal uma
ordem natural substantiva no interior da comunidade humana. O nomos da
terra, para usar uma expressão do Carl Schmitt 1, que de alguma forma ilumina
todo cenário histórico, mas o faz de um modo aberto e espontâneo, permitindo
com que as ações e as abstenções humanas dentro de uma comunidade possam,
de maneira involucrada, serem realizadas ou, no caso das abstenções, não
realizadas, para concretar e determinar essa mesma ordem dentro desta mesma
comunidade. Há, por assim dizer, uma compreensão da ordem que a toma como
uma ordem natural.
Diferentemente desta, os regimes impolíticos, para fazer de alguma
forma eclodir a ordem natural, suplantam-na colocando no lugar uma ordem
que é meramente artificial. Uma ordem, portanto, que por um, alguns ou um
conjunto de critérios, procura destruir esta versão ontológica da política que
toma a ordem por acepção ao bem e ao ser humano. No caso dos regimes
políticos, a ordem é tomada sempre como a forma do bem humano básico que é
compartilhado na comunidade humana. Em outros palavras, a ordem é vista
como a forma comum de vida dentro da qual as diferentes formas de vida
podem, de maneira espontânea e aberta, realizarem-se e interagirem entre si de
maneira a expandir essa ordem de uma maneira natural, espontânea, aberta na
História.
Os regimes impolíticos, por outro lado, procuram colocar, no lugar da
ordem espontânea, uma ordem artificial criada ou por um tirano, ou por uma
oligarquia, ou por demagogos, ou por classes de diferentes naturezas que estão
diretamente interessadas em arregimentar a massa dos seres humanos em
favor de seus respectivos interesses. Palavras como utilidade, interesse,
voluntarismo, formalismo, aparecem para ou mitigar a ordem espontânea
própria dos regimes políticos ou para fazê-la eclodir colocando no lugar sempre
uma perspectiva que cria uma ordem que em pouco ou nada tem que ver com a
conjuntura da comunidade humana como um todo.

1
Fil ósofo (1888 - 1985).
2.5. A ordem e a distinção entre os regimes políticos e impolíticos
Portanto, nós podemos dizer que, nessa primeira parte, a distinção
conceitual entre os regimes políticos e os regimes impolíticos está precisamente
no fato de que os regimes políticos são baseados numa concepção natural do que
é a ordem, uma ordem que, caracterizada como espontânea e aberta, vai se
expandindo no tempo e no espaço de um modo a permitir, de uma maneira
flexível e gradual, o compartilhamento das formas de vida. Há, nessa
perspectiva, sempre um aspecto comum, comunitário, que permite a comum
unidade, isto é, a comunidade e, portanto, a ação comum, ou seja, a
comunicação dos seres humanos ali presentes. Unidade comum, ação comum.
Comunidade, comunicação. Esta conexão entre comunidade e comunicação,
entre aquilo que é estático e dinâmico na história de uma sociedade humana, de
uma comunidade política na História portanto, faz com que esta ordem se
expanda para além do tempo e do espaço.
Diferentemente desta compreensão, os regimes impolíticos procuram
mitigar ou destruir essa ordem espontânea colocando no lugar uma ordem
artificial. A vontade de um soberano, o decisionismo, um formalismo mitigado
ou quaisquer outros critérios que possam de alguma forma impedir ou anular o
avanço da ordem espontânea.
Portanto, quais são os elementos que explicitam a ordem espontânea
típica dos regimes políticos? Aqui, eu me dirijo à segunda parte da nossa aula.

3. A LINGUAGEM
3.1. A linguagem e a novilíngua
Os regimes políticos supõem que subexista, no horizonte ulterior desta
ordem espontânea, que nós vamos chamar aqui de a vida histórica dos regimes
políticos, sejam eles quais forem, um vínculo constitutivo entre a linguagem e
o mundo. De modo que a linguagem, neste sentido, nesta acepção, não é tomada
como algo contingente, mas é vista como algo presente no mundo e necessário
para que os próprios seres humanos, no mundo, interpretem o mundo e a si
próprios. A linguagem, portanto, desempenha uma função primordial, aquela
segundo a qual o mundo é expressável e cognoscível pelos seres humanos que
habitam nesse mesmo mundo.
Veja como são as coisas. A melhor maneira de impedir que os seres
humanos possam compreender o mundo e possam compreender a si próprios
no mundo é justamente o contrário da língua, que é o que nós chamamos de
novilíngua. A novilíngua não é outra coisa senão o instrumento par excellence,
por excelência, dos regimes totalitários, que têm em vista precisamente a
anulação da consciência. A anulação da consciência que advém por meio de uma
nova linguagem, uma nova novilíngua que substitui a língua, digamos assim,
natural, que é uma língua convencional, por uma outra língua que é criada em
laboratório, que, no caso, é um laboratório de natureza política ideológica.
De modo, portanto, que, quando nós falamos nos caracteres principais,
nos postulados adjacentes a todos os regimes políticos, nós falamos num
envolvimento constitutivo entre a linguagem e o mundo público comum. E
naquilo que diz respeito ao político propriamente dito - há uma ontologia do
político, vamos dizer assim - qual é a linguagem e qual é o mundo
correspondente?

3.2. A Constitutio
A linguagem é algo que os romanos já traziam desde a Era Republicana.
Nós encontramos rudimentos disso nos escritos dos juristas romanos como
Caio2, por exemplo. Ali, nós percebemos claramente a importância do que eu
vou chamar aqui em latim com a palavra “constitutio”.
Constitutio, da onde vem a palavra “constituição”, é a linguagem que
expressa essa ordem primária espontânea. A constituição, que no Mundo Antigo
pouco ou nada tinha que ver com o que hoje nós chamamos de constituição,

2
Caio Atei o Ca pitão, jurista (30 a.C. - 22 d.C.).
representa a própria linguagem expressiva do nomos. Ou seja, como esse nomos
é comunicado para os seres humanos. Como a ordem espontânea é expressa
perante o auditório de seres humanos que compartilham desta ordem de um
modo consciente ou mesmo de um modo inconsciente por vezes. Este
compartilhamento se dá por meio de uma constitutio.
Mas veja que a constitutio hoje pode ser, por exemplo, uma constituição
escrita, ou uma constituição não-escrita, ou uma constituição parcialmente
escrita por meio de certos documentos de fontes históricas, como é o caso do
Reino Unido. A constituição inglesa, para o direito constitucional, não é uma
constituição escrita, porque não é um documento formal como no Brasil, onde
temos a Constituição de 88, ou como a Constituição dos Estados Unidos de 1787
e outros textos, mas é uma constituição historicamente construída e, portanto,
construída por meio de atos, eventos históricos e documentos escritos, como é
o caso da Magna Carta, do Bill of Rights e de outros documentos importantes que
vão de alguma forma formatando aquela tradição jurídica.
Tudo isso para dizer que a palavra “constituição”, entendida no sentido
clássico ou entendida no sentido moderno - e por isso eu dizia que há pouco que
ver, quer dizer, algo há de comum, há pouco, mas há alguma coisa - o que há de
comum é precisamente isto: o fato de que, tanto no sentido antigo como no
moderno, a constituição é a linguagem que expressa a ordem. E essa expressão
da ordem é a expressão daquilo que há de comum entre os seres humanos em
uma comunidade humana.
O que os brasileiros possuem de comum? Aquilo que está na constituição.
O que os norte-americanos possuem de comum? Aquilo que está na
constituição. O que os italianos possuem de comum? Aquilo que está na
constituição. Tudo isso para dizer que nós podemos criticar uma constituição
ou outra, mas é causa final, é finalidade de uma constituição, seja ela qual for,
expressar, por meio da linguagem, o que há de comum entre uma comunidade
política.
Só que isto basta? Essa é a pergunta. Ou seja, quando nós vemos as
diferentes formas de aplicabilidade de eficácia das constituições entre si nos
seus respectivos países, nós nos perguntamos: isto basta? Quer dizer, há países
onde as constituições são mais eficazes do que o Brasil, por exemplo. Então,
basta a constituição ou são necessárias outras coisas?

3.3. A relação entre a linguagem e o mundo público comum


E aqui eu entro no segundo aspecto que eu havia dito, que é a relação entre
a linguagem e o mundo público comum. Esta relação da linguagem com o
mundo público comum exige que da constituição nós tomemos aquilo que vai
de alguma maneira determinar a ordem no mundo público comum, aquilo que
vai concretizar a constituição na realidade prática da comunidade política. E o
que é isto que permite uma aplicabilidade, uma eficácia maior, uma
determinabilidade prática da linguagem constitucional na realidade política
propriamente dita?
Esse envolvimento da linguagem com o mundo se dá porque, da
constituição, nós mergulhamos no mundo por meio de três níveis
discriminados entre si. Três níveis que estabelecem uma espécie de
procedimento constitucional. Um démarche sociológico e político que permite a
uma comunidade humana interpretar o mundo e autointerpretar-se nesse
mundo.

3.3.1. O nível das instituições


Vou chamar esses três níveis aqui com os seguintes termos. O primeiro
nível é o que eu vou chamar de o nível das instituições juspolíticas. Da
constituição, o primeiro nível que é exigido é o nível institucional, porque as
instituições, de alguma maneira, estabelecem uma primeira modalidade
concreta de expressão da linguagem constitucional. Mais ou menos assim: eu
preciso ver a ordem. Assim como uma criança precisa ver a ordem dada por seus
pais ou por aqueles que têm autoridade sobre ela, em razão de sua incapacidade
de governar a si própria, os cidadãos adultos precisam ver a ordem para que
possam ter uma orientação na comunidade política. E a primeira coisa que um
cidadão deve ver relativamente à ordem é a conjuntura das instituições
políticas. As instituições juspolíticas, e eu chamo de juspolíticas porque são
instituições do Direito e da política, organizam a vida social e, ao mesmo tempo,
estabelecem os limites das ações e abstenções humanas nesta mesma vida
social. Ou seja, as instituições, ao fazê-lo, expressam bem a ordem.
Se você for à Atenas e fizer o ato imagético de pegar uma máquina do
tempo como Delorean, por exemplo, no “De volta para o futuro”, e voltar alguns
milênios para Atenas ao tempo de Sócrates ou um pouquinho antes até, você
veria ali uma organização social que, embora primitiva, era muito avançada
para o seu tempo por vários motivos. Um deles é o fato de que os atenienses
tinham bem claro que as instituições da cidade revelam essa ordem. Ou seja,
independentemente se um cidadão como Agaton ou Apolo acreditasse ou não
na Deusa Palas Atenas como fundadora da cidade, ou em Zeus como o grande
Deus do Olimpo, ou em qualquer coisa que faça menção à mitologia, aos deuses
do Olimpo, independentemente dos compartilhamentos e das crenças
mitológicas ou mito-poéticas daquele tempo, o fato objetivo é que, acreditando
ou não, todos estavam de algum modo vinculados à ordem manifesta
visivelmente por meio das instituições da pólis, das instituições, no caso, de
Atenas.
A mesma coisa na República romana. Independentemente dos templos
em honra aos deuses que eram compartilhados ao tempo da República romana
e mesmo mais tarde, durante o Império, templo em honra a Vênus, templo em
honra a Saturno e etc., o fato objetivo é que as instituições do direito e da
política, como a questura e o pretorado em Roma, expressavam o modelo de
ordem da res publica, da coisa pública, a ser seguido. As instituições constituem
esse primeiro nível que manifesta a ordem visivelmente para uma comunidade.
3.3.2. O nível das regras
Obviamente, somente as instituições são incapazes, por si sós, de
manifestar toda a conjuntura completa do que nós vamos chamar aqui de os
futuros contingentes das ações humanas compartilhadas nessa mesma
comunidade. É necessário um segundo nível que torne ainda mais concreto este
modelo de ordem que já por meio das instituições é visível e manifesto, mas que,
de alguma forma, reduzidos a esse primeiro nível, não seriam capazes de
atravessar os tempos e, às vezes, as décadas e os séculos, para de alguma forma
lidar com a atualização cultural e dos valores dentro de uma comunidade.
É necessário, portanto, que entre a realidade prática dos seres humanos
na pólis e as instituições que expressam essa ordem exista um segundo ponto,
um segundo nível que lide com maior eficácia e de maneira mais reduzida a um
ou a alguns estados de coisas dentro dessa sociedade. Portanto, que lide com os
aspectos mais particulares, mais contingentes, com as circunstâncias concretas
de uma maneira mais concreta.
Nós temos um segundo nível que é o que eu vou chamar aqui de o nível
das regras, o nível das normas do direito ou, para falar mais
contemporaneamente, o nível do sistema jurídico. O conjunto das leis que
regulam as ações e abstenções humanas em uma pólis, em uma comunidade
política. Ou seja, as instituições regulam, mas precisam de algo, de um
instrumento para regular de uma maneira mais contingente, mais concreta as
coisas, que é o que chamamos de mundo das regras. E por isso, vejam, essas
regras se submetem, em primeiro lugar, às instituições e, em última análise, à
constituição, que é a linguagem que expressa essa ordem.
E o que acontece numa sociedade em que regras e constituição são ambas,
de alguma forma, digamos - desculpem a expressão -, prostituídas em prol do
arbitrário e da indeterminação? Acontece o caos ou o primeiro passo para os
regimes impolíticos, que é justamente o contrário dos regimes políticos.
Estas distinções são decisivas para o que chamamos de Rule of Law,
Estado de Direito. Distinções sem as quais não há nenhuma possibilidade de um
Rule of Law, de um império do Direito. Isto é, de uma ordem espontânea e aberta
às vicissitudes históricas.

3.3.3. O nível das decisões


Só que vejam que mesmo dentro do âmbito das regras, as regras como
tais, as regras, digamos, seletiva e selecionadamente, são linguagem normativa.
Elas precisam de um terceiro nível que as torne ainda mais concretas. Uma
regra, para tal, precisa ter dois aspectos: precisa descrever um fato e uma sanção
correspondente. Isso é uma regra, via de regra. Desculpem a redundância. Há
regras que são mais descritivas e há outras que são mais prescritivas, mas todas
as regras são, em maior ou menor medida, ambas as coisas, imperativa e
prescritiva simultaneamente. Mas o que torna a regra aplicável concretamente
falando? O que faz com que a sua dimensão sancionatória, o seu âmbito
prescritivo, de fato desça às particularidades sociais e aplique o conteúdo dessa
regra?
Aí nós precisamos de um terceiro nível. E esse terceiro nível é o que vou
chamar de decisão. E aqui eu vou me apoiar nas lições do Carl Schmitt a respeito.
Uma instituição produz uma regra que por sua vez embasa uma decisão. De
modo que nesse démarche político-jurídico procedimental, que parte da
linguagem para a concreção no mundo, nós temos três níveis: as instituições, as
regras e as decisões que por sua vez estabelecem estados existenciais
correspondentes. Ou seja, as instituições, apenas visíveis aos olhos humanos,
apresentam algo visível, mas indeterminado. As instituições estabelecem um
campo de indeterminação, por assim dizer, porque, em existindo as instituições,
nós não sabemos bem quais regras e quais decisões virão posteriormente.
Sozinhas as instituições apenas expressam a ordem, mas de um ponto de vista
indeterminado.
Então, nós precisamos de um segundo nível para que essa determinação
ganhe um certo corpo na vida contingente da sociedade, que é o que nós
chamamos de regras. E as regras, portanto, correspondem a um plano de
determinação. Só que as regras, como tais, ainda estão num âmbito abstrato.
Nós somos capazes de ler as regras e de seguir as regras e de viver de acordo com
as regras, mas se nós seguirmos as regras e vivermos de acordo com elas, nós
não seremos capazes de sentir, na carne, as regras, o que só vem por meio das
decisões, porque essas afetam especificamente as nossas vidas.
Por exemplo, se eu violo uma regra, uma decisão me impõe o dever de
restituir o bem ou qualquer outra coisa que tenha sido objeto da injustiça que eu
pratiquei com quem quer que seja - com outrem, com a sociedade ou com o
próprio poder civil. Por isso que, se as regras correspondem a um plano de
determinação, as decisões correspondem a um plano de autodeterminação,
porque não são determinadas apenas em geral, como são as regras, de maneira
abstrata, mas determinam o concreto. É uma determinação de carne e osso,
vamos chamar assim, porque a decisão é uma determinação que não afeta
apenas o Estado de Direito e as regras do jogo, mas afeta a vida concreta dos
agentes que estão involucrados neste mesmo âmbito. Ou seja, as decisões
consumam o nível mais particular e contingente que as regras podem invocar
dentro de uma circunstância ou dentro de uma miríade de circunstâncias
concretas dentro da vida política da sociedade.
Toda ordem e, portanto, todos os regimes políticos, por serem chamados
assim, exigem, para sua adequada compreensão, que o modelo, o edifício da sua
constituição esteja assentado em discernir esses três níveis em que a constitutio
expressa a ordem. Essa expressão da ordem supõe sempre três níveis de
determinação dessa mesma ordem: um nível que perante a comunidade é ainda
indeterminado, que é o nível das instituições; um nível que perante a
comunidade é mais determinado, que é o nível das regras; e um nível que é
absolutamente determinado, porque sob o ponto de vista dos seres humanos
concretos e reais dessa mesma comunidade, é um nível autodeterminado, é um
nível que abarca esses seres humanos do ponto de vista dos seus corpos.

4. AS CARACTERÍSTICAS DOS REGIMES POLÍTICOS


E, portanto, se nós observarmos os regimes políticos ao longo da história
que merecem este nome, são regimes que, de algum modo, estruturam os seus
edifícios procedimentais e substantivos a partir desse arcabouço conceitual e
teórico. Todo regime político, onde esteja e seja ele qual for, sempre terá uma
constitutio, sempre terá um conjunto de instituições estáveis, sempre terá
regras estáveis e sempre terá decisões estáveis.

4.1. As monarquias
As monarquias antigas, de acordo com Aristóteles, tinham isso?
Resposta: tinham. Porque ali o monarca era um servus servorum populum, ou
seja, ele estava ali para servir ao povo e é isso que caracteriza a monarquia, poder
de um, porque poder tem como titular central a massa, a comunidade dos
cidadãos. Essa é a visão clássica antiga de monarquia. Na monarquia, tem uma
constitutio, tem uma instituição e essa instituição tem, antes de mais nada, o
dever de devido respeito à constitutio e, portanto, às regras estabelecidas pela
constitutio, para somente depois conceber as regras e tomar decisões a partir da
constitutio, porque a constitutio é o farol desse regime político. De novo, de
acordo com o modelo clássico antigo.

4.2. As aristocracias
A mesma coisa na aristocracia, Aristos, o governo dos virtuosos. Areté,
virtude. Aristocracia, Aristói Kratos, o governo, o poder dos virtuosos. Qual é o
poder dos virtuosos? É o poder de um grupo reduzido de pessoas chamadas
virtuosas. Por quê? Porque são virtuosas na medida em que os seus atos e as suas
abstenções na vida pública respeita aquilo que determina a constitutio. É
precisamente essa ordem anterior e superior que é dirigida ao futuro tendo em
vista sempre uma organização institucional, um conjunto de regras que
estabilizam essas relações e decisões que reafirmam essas mesmas regras
dentro da contingência prática da vida social.

4.3. A politeia
Na politeia, que é uma espécie de boa democracia na Antiguidade, apesar
do equívoco nominal - do qual nós falávamos no início da aula -, é precisamente
esse regime que é uma constituição que considera a todos como partícipes
diretos ou indiretos do poder civil. Essa é a politeia, esse sim é o modelo antigo
mais topológico do que nós temos hoje como democracia e Estado de Direito,
porque a politeia é a organização institucional que toma por base a participação
de toda coletividade humana, em maior ou menor medida, nas estruturas de
poder, as regras que estabilizam as relações e as decisões que conformam essas
mesmas regras.
Nós temos hoje regimes muito mais evoluídos do ponto de vista
institucional do que tínhamos no passado. Por exemplo, nos atuais regimes
parlamentares, nos regimes parlamentaristas, nós temos uma variedade de
modelos com elementos aritméticos e geométricos cada vez mais complexos
para definir os sistemas eleitorais e partidários. Nós temos sempre em vista o
quê? Sempre a regra da isonomia, a igualdade política. Ou seja, a participação
igual para todos com um peso, um voto. A isocracia é uma regra que deriva da
isonomia, que, por sua vez, deriva do ison, da igualdade ontológica entre os seres
humanos, o fato de que todos compartilham uma mesma igual dignidade.

4.4. Os dois ambientes constitucionais


Mesmo nos Estados atuais de Direito, nós temos pelo menos dois
ambientes. As constituições atuais estabelecem dois ambientes.
Um ambiente que é o núcleo duro de significação, que é o que nós vamos
chamar de identidade comum, que normalmente advém por meio de conceitos
como dignidade da pessoa humana, dignidade humana, uma tábua de direitos
fundamentais. Quer dizer, aquilo ali constitui o núcleo duro de significação de
uma comunidade humana.
Há ainda um segundo âmbito. Axel Honneth3, um autor muito
interessante da Escola de Frankfurt, nos diz que há um espaço para o que ele
chama de a luta por reconhecimento, que é um espaço por meio do qual os seres
humanos e os movimentos sociais e políticos lutam para ter algum espaço
dentro do primeiro âmbito, que é o âmbito da dignidade, o âmbito da identidade
comum.
Quer dizer, todo desenho, todo cenário dos Estados contemporâneos de
Direito se estruturam tomando por base essa distinção entre dois ambientes: o
âmbito da identidade e o âmbito do reconhecimento, que é o âmbito da
alteridade.

4.5. Os movimentos sociais


E onde entra, portanto, neste caso, os três aspectos? Entra de cheio. Por
que o que é a luta por reconhecimento senão a luta por determinação e por
autodeterminação? Do ponto de vista dos movimentos, é uma luta por
determinação, porque é uma luta por regras, e, do ponto de vista dos indivíduos
concretos que estão nesses movimentos, é uma luta por autodeterminação,
porque estão querendo de alguma forma ver a sua identidade social dentro da
identidade comum ou como algo pertencente à identidade comum.
O que fizeram, por exemplo, os regimes totalitários do século XX, que são
regimes impolíticos por definição? Eles procuraram destruir esse vínculo e, a
partir de tanto, criaram um conceito ideológico para esse núcleo duro de
significação, onde a identidade não é tomada como a dignidade comum, mas é

3
Fil ósofo alemão.
tomada pelo feixe ideológico característico. Então, por exemplo, os judeus, para
o nazismo, não podem pertencer ao núcleo duro de significação dessa
identidade comum dada pela constituição de Weimar, que era a constituição
alemã na época. Por quê? Porque eles não pertencem à identidade que é o
fundamento mesmo da constitutio para aquela comunidade política.
De modo que todos os regimes totalitários procuram destruir um, alguns
ou todos esses três níveis dos quais eu falava e, ao fazê-lo, impedem a harmonia
adequada entre o nível da identidade com o nível do reconhecimento e da
alteridade. Em outros palavras, a velha e máxima conexão entre ordem e
liberdade. Ou os regimes impolíticos focalizam numa ordem artificial que
desmorona o edifício da démarche procedimental da qual eu falava antes, os três
níveis que o Carl Schmitt e outros nos ensinam, ou os regimes impolíticos
procuram destruir a ordem colocando no lugar precisamente uma anomia e,
portanto, uma anarquia em nome de uma liberdade que, no fundo, não existe,
porque transforma-se em voluntarismo e indeterminação absoluta.
Entre os regimes políticos e os regimes impolíticos, portanto, já
finalizando essa terceira parte onde entramos em aspectos mais decisivos e
específicos de cada qual, nós temos sempre o conceito de ordem espontânea, que
pressupõe, para sua determinação, uma distinção nivelada em planos de
determinação, que, quando desaparecem um, alguns ou todos, resta, no lugar, a
ordem artificial, ou uma ordem criada por um soberano ou a anarquia absoluta
do estado de natureza, que promove, em um ou em outro caso, uma civilização
artificial e, portanto, a reificação de um regime impolítico que destrói a ordem
e, em última análise, destrói a liberdade humana.

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