Você está na página 1de 15

IEB – INSTITUTO DE ESTUDOS BRASILEIROS

A ARTE DA CRÔNICA E DO CONTO

Débora Soares Gil de Oliveira nº USP 8024554 (turma da noite)

ANÁLISE DE “PAI CONTRA MÃE”,

CONTO DE MACHADO DE ASSIS

São Paulo, 28 de Novembro de 2016


Autor de fundamental importância para literatura brasileira, Machado de Assis escreveu
uma vasta obra em diversos gêneros, passando pela crítica, poesia, romance, teatro, crônica e
conto. É sobretudo no romance que se destaca com mais popularidade e reconhecimento, em
seguida está o conto, exemplo em que seu estilo e escrita se apresentam formulados com
qualidade excepcional.

Mais que adequado a proposta de um gênero tão diverso, com as particularidades de um


autor que adicionou seu tom irônico e fortemente critico, seu repertório nas narrativas curtas
é grande e variado. Abordaremos aqui apenas uma narrativa, que não é capaz de expressar a
totalidade de sua obra, mas contem muitas de suas características.

O conto “Pai contra mãe” foi publicado pela Editora Garnier em 1906, no período final de
sua obra, sendo seu ultimo livro de contos publicado em vida. O livro em questão chama-se
“Relíquias da Casa Velha”, cujo titulo é explicado pelo próprio Machado em sua
“ADVERTÊNCIA”, onde o leitor é convidado a se envolver com o texto pelo característico
dialogo provocativo do narrador:

Uma casa tem muita vez as suas relíquias, lembranças de um dia ou de


outro, da tristeza que passou, da felicidade que se perdeu. Supõe que o dono
pense em as arejar e expor para teu e meu desenfado. Nem todas serão
interessantes, não raras serão aborrecidas, mas, se o dono tiver cuidado, pode
extrair uma dúzia delas que mereçam sair cá fora.

Chama-lhe à minha vida uma casa, dá o nome de relíquias aos inéditos e


impressos que aqui vão, ideias, histórias, críticas, diálogos, e verás explicados
o livro e o título. Possivelmente não terão a mesma suposta fortuna daquela
dúzia de outras, nem todas valerão a pena de sair cá fora. Depende da tua
impressão, leitor amigo, como dependerá de ti a absolvição da má escolha.

Assumindo que o conto, tal qual grande parte de sua obra, merece ser ‘posto para fora’,
passemos então a ele.

Em “Pai contra mãe”, a temática da escravidão, que aparece geralmente discreta nas suas
narrativas, se mostra claramente e com destaque, ainda que à maneira Machadiana, em que a
crítica em si aparece nas entrelinhas, com ironias, e na contradição e voz dos próprios
personagens da historia central.

A escravidão foi abolida em 1888, e fora precedida por uma série de leis intermediárias
que cediam pequenos direitos de liberdade, a exemplo da possibilidade de compra de alforria
ou da lei do ventre livre de 1871. Antes e após a assinatura da lei, a mentalidade que
legitimava e naturalizava que negros fossem escravizados por sua condição supostamente não
humana estava presente na consciência coletiva.

Isto, no entanto, expressava diversas contradições sociais posto que a motivação principal
era de natureza econômica mas a ideologia da época já propagava a ideia de liberdade
individual e igualdade cidadã perante a lei. Este foi o contexto da produção do autor, que na
condição de mulato sofreu as influencias do momento em sua vide e obra, retratando de
forma mais ou menos consciente tais elementos.

O enredo é iniciado com uma narração descritiva, em terceira pessoa, sobre algumas
características da escravidão, mais precisamente, os objetos de ‘identificação’ de um escravo,
a saber, correntes e ferramentas diversas de prisão e tortura, cada qual com a sua devida
função.

O tom provocativo aparece desde o parágrafo inicial, e fica difícil supor se a critica se
apresentaria mais explicita caso não houvesse ao fim da sentença um tom "naturalizante". E,
do que se esperaria ouvir algum julgamento, aparece sua justificativa:

(...)Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem


sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel.

O uso do adjetivo “grotesco”, contudo, não esconde a postura critica do narrador e é


posto em contraste com o discurso seguinte, de aspecto neutro, gerando assim a ironia como
figura de linguagem predominante enquanto recurso estilístico.

É possível notar a explícita ironia também no seguinte trecho:

Há meio século, os escravos fugiam com freqüência. Eram muitos, e nem


todos gostavam da escravidão. Sucedia ocasionalmente apanharem pancada, e
nem todos gostavam de apanhar pancada. Grande parte era apenas
repreendida; havia alguém de casa que servia de padrinho, e o mesmo dono
não era mau; além disso, o sentimento da propriedade moderava a ação,
porque dinheiro também dói.
Para desenvolver o conto, o narrador que gosta de mostrar-se como arbitrário interventor
da história, dá o salto sequencial no enredo de maneira ágil: "Mas não cuidemos de
máscaras". A partir daí insere, ainda em caráter descritivo, informações do funcionamento,
naquele período, da busca recompensada de escravos fugidos.

Em seguida, apresenta um dos personagens:

Cândido Neves, — em família, Candinho, — é a pessoa a quem se liga a


história de uma fuga, cedeu à pobreza, quando adquiriu o ofício de pegar
escravos fugidos

De principio a relação com a escravidão já se insere no texto. Ao apresentar desde a


abertura do conto um conhecimento que será útil no decorrer da história, demonstra-se a
habilidade característica de um narrador que domina todo o conteúdo narrado, ou seja, de um
escritor que, segundo o critério teórico de Edgar Allan Poe em “Filosofia da composição”, se
adéqua aos artifícios do gênero.

Na sequência, o foco narrativo se afasta desta primeira parte mais descritiva (de
ambientação histórica) para focar nos acontecimentos mais particulares da trama de
Candinho e sua família, formada pela moça Clara e sua tia Mônica.

O personagem Cândido é apresentado em relação a seu trabalho, mas mais ao longo sua
personalidade é descrita de outra maneira:

Tinha um defeito grave esse homem, não aguentava emprego nem ofício,
carecia de estabilidade;

Começou por querer aprender tipografia, mas viu cedo que era preciso
algum tempo para compor bem, e ainda assim talvez não ganhasse o bastante;
foi o que ele disse a si mesmo. O comércio chamou-lhe a atenção, era carreira
boa. Com algum esforço entrou de caixeiro para um armarinho. A obrigação,
porém, de atender e servir a todos feria-o na corda do orgulho, e ao cabo de
cinco ou seis semanas estava na rua por sua vontade. Fiel de cartório, contínuo
de uma repartição anexa ao Ministério do Império, carteiro e outros empregos
foram deixados pouco depois de obtidos.

Pegar escravos fugidos trouxe-lhe um encanto novo. Não obrigava a estar


longas horas sentado

Novamente, para dar continuidade ao enredo, o narrador é econômico e preciso na sua


intenção:
Veio a paixão da moça Clara (...) Quando a moça viu Cândido Neves, sentiu
que era este o possível marido, o marido verdadeiro e único. O encontro deu-se
em um baile; tal foi — para lembrar o primeiro ofício do namorado, — tal foi a
página inicial daquele livro, que tinha de sair mal composto e pior brochado. O
casamento fez-se onze meses depois.

A ficção avança aos saltos no tempo, e da maneira como é retratada a aproximação do


casal, também se diz da sua dificuldade financeira, das opiniões da tia, e da felicidade da
família em meio a todas estas questões. Como algo que faz parte do andamento da vida, surge
então a intenção de um filho:

A alegria era comum aos três. O casal ria a propósito de tudo. Os mesmos
nomes eram objeto de trocados, Clara, Neves, Cândido; não davam que comer,
mas davam que rir, e o riso digeria-se sem esforço. Ela cosia agora mais, ele
saía a empreitadas de uma coisa e outra; não tinha emprego certo. Nem por
isso abriam mão do filho.

À ideia do filho, soma-se uma carga elevada de valoração. O significado da criança que é
referida como ‘o fruto abençoado’ e ‘a aurora do dia grande’ é importante para o efeito final
do texto.

Em concomitância ao que se apresenta como o problema supostamente central da história,


a possibilidade de nascimento da criança, o tema da escravidão volta a aparecer enquanto
parte das dificuldades financeiras, posto que procurar escravos fugidos era algo instável:

Como o negócio crescesse, mais de um desempregado pegou em si e numa


corda, foi aos jornais, copiou anúncios e deitou-se à caçada. No próprio bairro
havia mais de um competidor.

Comia-se fiado e mal; comia-se tarde. O senhorio mandava pelo aluguéis.


Clara não tinha sequer tempo de remendar a roupa ao marido, tanta era a
necessidade de coser para fora. Tia Mônica ajudava a sobrinha, naturalmente.
Quando ele chegava à tarde, via-se-lhe pela cara que não trazia vintém.
Jantava e saía outra vez, à cata de algum fugido. Já lhe sucedia, ainda que
raro, enganar-se de pessoa, e pegar em escravo fiel que ia a serviço de seu
senhor; tal era a cegueira da necessidade. Certa vez capturou um preto livre;
desfez-se em desculpas, mas recebeu grande soma de murros que lhe deram os
parentes do homem.
Junto com a gravidez e a expectativa, aumentam também as necessidades e a pressão da
tia, como podemos observar:

Cândido quisera efetivamente fazer outra coisa, não pela razão do


conselho, mas por simples gosto de trocar de ofício; seria um modo de mudar
de pele ou de pessoa. O pior é que não achava à mão negócio que aprendesse
depressa. A natureza ia andando, o feto crescia, até fazer-se pesado à mãe,
antes de nascer. Chegou o oitavo mês, mês de angústias e necessidades, menos
ainda que o nono, cuja narração dispenso também. Melhor é dizer somente os
seus efeitos. Não podiam ser mais amargos.

E:

Foi na última semana do derradeiro mês que a tia Mônica deu ao casal o
conselho de levar a criança que nascesse à Roda dos enjeitados. Em verdade,
não podia haver palavra mais dura de tolerar a dois jovens pais que
espreitavam a criança, para beijá-la, guardá-la, vê-la rir, crescer, engordar,
pular... Enjeitar quê? enjeitar como? Candinho arregalou os olhos para a tia, e
acabou dando um murro na mesa de jantar. A mesa, que era velha e
desconjuntada, esteve quase a se desfazer inteiramente.

O tempo segue e as dificuldades crescem ao ponto de ficaram ameaçados de perder a casa,


o tom da narrativa impõe uma atmosfera de pressão ao personagem Cândido. Com o
nascimento da criança e esta situação-limite, a sugestão cruel da tia se torna, com tanta
insistência, a única opção viável ao pai:

O pai, não obstante o acordo feito, mal pôde esconder a dor do espetáculo.
Não quis comer o que tia Mônica lhe guardara; não tinha fome, disse, e era
verdade. Cogitou mil modos de ficar com o filho; nenhum prestava.

E é no momento derradeiro em que a criança era levada embora que o personagem vê uma
escrava fugida cujo anuncio constava com uma recompensa maior que o costume. Esta se
mostra como a chance de conseguir ficar com o filho tão querido e ele não hesita:

Cândido Neves não lhe deu tempo de dizer nada; saiu rápido, atravessou a
rua até ao ponto em que pudesse pegar a mulher sem dar alarma. No extremo
da rua, quando ela ia a descer a de S. José, Cândido Neves aproximou-se dela.
Era a mesma, era a mulata fujona.

— Arminda! bradou, conforme a nomeava o anúncio.

Arminda voltou-se sem cuidar malícia. Foi só quando ele, tendo tirado o
pedaço de corda da algibeira, pegou dos braços da escrava, que ela
compreendeu e quis fugir. Era já impossível. Cândido Neves, com as mãos
robustas, atava-lhe os pulsos e dizia que andasse. A escrava quis gritar, parece
que chegou a soltar alguma voz mais alta que de costume, mas entendeu logo
que ninguém viria libertá-la, ao contrário. Pediu então que a soltasse pelo
amor de Deus.

A razão para a voz da mulher ‘ser mais alta que de costume’, é revelada em drama na
sequencia:

— Estou grávida, meu senhor! exclamou. Se Vossa Senhoria tem algum


filho, peço-lhe por amor dele que me solte; eu serei tua escrava, vou servi-lo
pelo tempo que quiser. Me solte, meu senhor moço!

No entanto, e aí se dá um grande choque, o pai em nada se comove diante da aflição da


mulher escrava que também seria mãe. Esta contradição, sugerida desde o título, é
enfaticamente sinalizada na narrativa:

Houve aqui luta, porque a escrava, gemendo, arrastava-se a si e ao


filho. Quem passava ou estava à porta de uma loja, compreendia o que
era e naturalmente não acudia. Arminda ia alegando que o senhor era
muito mau, e provavelmente a castigaria com açoites, — coisa que, no
estado em que ela estava, seria pior de sentir. Com certeza, ele lhe
mandaria dar açoites.

— Você é que tem culpa. Quem lhe manda fazer filhos e fugir depois?
perguntou
Cândido Neves.

Não estava em maré de riso, por causa do filho que lá ficara na


farmácia, à espera dele.

A escrava é entregue a seu dono, Cândido recebe finalmente sua recompensa pelo serviço
e ali mesmo, a cena de escrava abortando é então descrita.

O conto põe a contradição em evidencia usando a estrategia do contraste da bondade de


'um pai' versus sua indiferença com a situação de 'uma mãe'. Não a toa são usadas palavras
que referem a parentesco, que deste ponto de vista os colocaria em pé de igualdade, não fosse
a mãe ser uma escrava e por isso destituída de sua humanidade.
A estrutura do enredo é construída em detalhes desde o início para gerar esse choque, o
amor tocante do pai é reiterado a todo momento e a ironia extraída disso que gera a critica e a
consequente qualidade do texto:

O pai recebeu o filho com a mesma fúria com que pegara a escrava fujona
de há pouco, fúria diversa, naturalmente, fúria de amor.

Machado, neste conto, coloca um tom critico a aspectos distintos da escravatura, a


violência, sem dúvidas é um deles. Embora não seja apontado com todas as letras pelo
narrador, é possível identificar uma posição que implica um nível de julgamento negativo,
mas muito sofisticado, pois não o faz "apontando o dedo".

Não cabe nenhum tipo de moralismo, ainda que seja inegável que ao destacar o “ingenuo”
afeto de um em detrimento da vida de outro, uma injustiça é vista, mas disto não se encena
um vilão, e sim uma figura que carrega as contradições de um pensamento que, egoísta, é
compartilhado socialmente, e com algo acertadamente humano. Para o leitor, o papel
acusativo se complica pois o personagem realmente não enxerga, pela sua consciência
medíocre, algo condenável na sua ação, sendo ele próprio moralista em sua visão:

Disse, é verdade, algumas palavras duras contra a escrava, por causa do


aborto, além da fuga.

Cândido Neves, beijando o filho, entre lágrimas, verdadeiras, abençoava a


fuga e não se lhe dava do aborto.

— Nem todas as crianças vingam, bateu-lhe o coração.

Chama a atenção a maneira refinada com que o autor desvela sua intenção na escrita. Seu
estilo particular se apresenta bem acabado, é certeiro, e por isto mesmo é tão reconhecido. O
fim do conto é de uma secura que não tem como leitor não se impactar. Como escreveu
Cortázar, em um conto que acaba com um verdadeiro “knock out”.

Você também pode gostar