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O conto “Pai contra mãe” foi publicado pela Editora Garnier em 1906, no período final de
sua obra, sendo seu ultimo livro de contos publicado em vida. O livro em questão chama-se
“Relíquias da Casa Velha”, cujo titulo é explicado pelo próprio Machado em sua
“ADVERTÊNCIA”, onde o leitor é convidado a se envolver com o texto pelo característico
dialogo provocativo do narrador:
Assumindo que o conto, tal qual grande parte de sua obra, merece ser ‘posto para fora’,
passemos então a ele.
Em “Pai contra mãe”, a temática da escravidão, que aparece geralmente discreta nas suas
narrativas, se mostra claramente e com destaque, ainda que à maneira Machadiana, em que a
crítica em si aparece nas entrelinhas, com ironias, e na contradição e voz dos próprios
personagens da historia central.
A escravidão foi abolida em 1888, e fora precedida por uma série de leis intermediárias
que cediam pequenos direitos de liberdade, a exemplo da possibilidade de compra de alforria
ou da lei do ventre livre de 1871. Antes e após a assinatura da lei, a mentalidade que
legitimava e naturalizava que negros fossem escravizados por sua condição supostamente não
humana estava presente na consciência coletiva.
Isto, no entanto, expressava diversas contradições sociais posto que a motivação principal
era de natureza econômica mas a ideologia da época já propagava a ideia de liberdade
individual e igualdade cidadã perante a lei. Este foi o contexto da produção do autor, que na
condição de mulato sofreu as influencias do momento em sua vide e obra, retratando de
forma mais ou menos consciente tais elementos.
O enredo é iniciado com uma narração descritiva, em terceira pessoa, sobre algumas
características da escravidão, mais precisamente, os objetos de ‘identificação’ de um escravo,
a saber, correntes e ferramentas diversas de prisão e tortura, cada qual com a sua devida
função.
O tom provocativo aparece desde o parágrafo inicial, e fica difícil supor se a critica se
apresentaria mais explicita caso não houvesse ao fim da sentença um tom "naturalizante". E,
do que se esperaria ouvir algum julgamento, aparece sua justificativa:
Na sequência, o foco narrativo se afasta desta primeira parte mais descritiva (de
ambientação histórica) para focar nos acontecimentos mais particulares da trama de
Candinho e sua família, formada pela moça Clara e sua tia Mônica.
O personagem Cândido é apresentado em relação a seu trabalho, mas mais ao longo sua
personalidade é descrita de outra maneira:
Tinha um defeito grave esse homem, não aguentava emprego nem ofício,
carecia de estabilidade;
Começou por querer aprender tipografia, mas viu cedo que era preciso
algum tempo para compor bem, e ainda assim talvez não ganhasse o bastante;
foi o que ele disse a si mesmo. O comércio chamou-lhe a atenção, era carreira
boa. Com algum esforço entrou de caixeiro para um armarinho. A obrigação,
porém, de atender e servir a todos feria-o na corda do orgulho, e ao cabo de
cinco ou seis semanas estava na rua por sua vontade. Fiel de cartório, contínuo
de uma repartição anexa ao Ministério do Império, carteiro e outros empregos
foram deixados pouco depois de obtidos.
A alegria era comum aos três. O casal ria a propósito de tudo. Os mesmos
nomes eram objeto de trocados, Clara, Neves, Cândido; não davam que comer,
mas davam que rir, e o riso digeria-se sem esforço. Ela cosia agora mais, ele
saía a empreitadas de uma coisa e outra; não tinha emprego certo. Nem por
isso abriam mão do filho.
À ideia do filho, soma-se uma carga elevada de valoração. O significado da criança que é
referida como ‘o fruto abençoado’ e ‘a aurora do dia grande’ é importante para o efeito final
do texto.
E:
Foi na última semana do derradeiro mês que a tia Mônica deu ao casal o
conselho de levar a criança que nascesse à Roda dos enjeitados. Em verdade,
não podia haver palavra mais dura de tolerar a dois jovens pais que
espreitavam a criança, para beijá-la, guardá-la, vê-la rir, crescer, engordar,
pular... Enjeitar quê? enjeitar como? Candinho arregalou os olhos para a tia, e
acabou dando um murro na mesa de jantar. A mesa, que era velha e
desconjuntada, esteve quase a se desfazer inteiramente.
O pai, não obstante o acordo feito, mal pôde esconder a dor do espetáculo.
Não quis comer o que tia Mônica lhe guardara; não tinha fome, disse, e era
verdade. Cogitou mil modos de ficar com o filho; nenhum prestava.
E é no momento derradeiro em que a criança era levada embora que o personagem vê uma
escrava fugida cujo anuncio constava com uma recompensa maior que o costume. Esta se
mostra como a chance de conseguir ficar com o filho tão querido e ele não hesita:
Cândido Neves não lhe deu tempo de dizer nada; saiu rápido, atravessou a
rua até ao ponto em que pudesse pegar a mulher sem dar alarma. No extremo
da rua, quando ela ia a descer a de S. José, Cândido Neves aproximou-se dela.
Era a mesma, era a mulata fujona.
Arminda voltou-se sem cuidar malícia. Foi só quando ele, tendo tirado o
pedaço de corda da algibeira, pegou dos braços da escrava, que ela
compreendeu e quis fugir. Era já impossível. Cândido Neves, com as mãos
robustas, atava-lhe os pulsos e dizia que andasse. A escrava quis gritar, parece
que chegou a soltar alguma voz mais alta que de costume, mas entendeu logo
que ninguém viria libertá-la, ao contrário. Pediu então que a soltasse pelo
amor de Deus.
A razão para a voz da mulher ‘ser mais alta que de costume’, é revelada em drama na
sequencia:
— Você é que tem culpa. Quem lhe manda fazer filhos e fugir depois?
perguntou
Cândido Neves.
A escrava é entregue a seu dono, Cândido recebe finalmente sua recompensa pelo serviço
e ali mesmo, a cena de escrava abortando é então descrita.
O pai recebeu o filho com a mesma fúria com que pegara a escrava fujona
de há pouco, fúria diversa, naturalmente, fúria de amor.
Não cabe nenhum tipo de moralismo, ainda que seja inegável que ao destacar o “ingenuo”
afeto de um em detrimento da vida de outro, uma injustiça é vista, mas disto não se encena
um vilão, e sim uma figura que carrega as contradições de um pensamento que, egoísta, é
compartilhado socialmente, e com algo acertadamente humano. Para o leitor, o papel
acusativo se complica pois o personagem realmente não enxerga, pela sua consciência
medíocre, algo condenável na sua ação, sendo ele próprio moralista em sua visão:
Chama a atenção a maneira refinada com que o autor desvela sua intenção na escrita. Seu
estilo particular se apresenta bem acabado, é certeiro, e por isto mesmo é tão reconhecido. O
fim do conto é de uma secura que não tem como leitor não se impactar. Como escreveu
Cortázar, em um conto que acaba com um verdadeiro “knock out”.