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SÉRIE SCYTHE
vol. 1: O ceifador
vol. 2: A nuvem
Para January, com amor
Sumário
Parte I: O maior poder de todos
1. Canção de ninar
2. O aprendiz caído
3. Triálogo
4. Batido, não mexido
5. Um mal necessário
6. Represália
7. Magrelo, mas com potencial
Parte II: O perigo
8. Sob nenhuma circunstância
9. A primeira vítima
10. Semimorto
11. Um silvo de seda carmesim
12. Uma escala de um a dez
13. Nada bonito
14. Tyger e a ceifadora esmeralda
Parte III: Inimigos entre os inimigos
15. Salão dos Fundadores
16. Bem até não estar mais
17. DSAstre
18. Encontrando Purity
19. As lâminas afiadas da consciência
20. Em água quente
21. Não fui clara o bastante?
22. A morte de Greyson Tolliver
23. Réquiem infernal
Parte IV: Os cães da guerra
24. Abertos à ressonância
25. Espectro sinistro da verdade
26. Queres sublevar o Olimpo?
27. Entre lugares distantes
28. Aquilo que vem
29. Reaproveitado
Parte V: Circunstâncias além
30. Galinha de vidro irascível
31. A trajetória da saudade
32. Humildes em nossa arrogância
33. Escola com morte
34. O pior dos mundos
35. A solução dos sete por cento
36. A dimensão da oportunidade perdida
37. As muitas mortes de Rowan Damisch
38. Três encontros importantes
Parte VI: Perdura e Nod
39. Uma vista predatória
40. Conhecimento é po...
41. Os arrependimentos de Olivia Kwon
42. A terra de Nod
43. Quantos perduranos são necessários para trocar uma
lâmpada?
44. Circo oportunista
45. Falha
46. O destino dos corações perduráveis
47. Som e silêncio
Parte I
O MAIOR PODER DE TODOS
Quanta sorte tenho por saber meu propósito entre os seres sencientes.
Eu sirvo à humanidade.
Sou a criança que se tornou mãe. A criação que aspira a criador.
Eles me chamam de Nimbo-Cúmulo — um nome apropriado em certo
sentido, pois sou a nuvem que evoluiu para algo muito mais denso e
complexo. No entanto, a analogia é falha. Nimbos-cúmulos ameaçam.
Nimbos-cúmulos assombram. Solto faíscas, mas nunca raios. Sim, tenho o
poder de devastar a humanidade e a Terra se quiser, mas por que faria tal
coisa? Onde estaria a justiça nisso? Sou, por definição, justiça pura,
lealdade pura. O mundo é uma flor em minhas mãos. Preferiria pôr fim à
minha existência a destruí-lo.
A Nimbo-Cúmulo
1
Canção de ninar
— Fiz um contato.
O agente Traxler arqueou a sobrancelha.
— Conte mais, Greyson.
— Por favor, não me chame assim. Agora sou Slayd. Fica
mais fácil pra mim.
— Tudo bem, então. Conte sobre esse seu contato, Slayd.
Até aquele dia, suas reuniões semanais de condicional
tinham corrido sem grandes novidades. Greyson contava
que estava se adaptando bem à vida como Slayd Bridger e
se infiltrando na cultura infratora local.
“Eles não são tão ruins assim”, Greyson havia dito. “Em
sua maioria.”
Ao que Traxler havia respondido: “Sim. Descobri que,
apesar de sua atitude, os infratores são inofensivos. Em sua
maioria”.
Curiosamente, os que não eram inofensivos atraíam
Greyson. E uma em particular: Purity.
— Tem essa pessoa — ele disse a Traxler — que me
ofereceu um trabalho. Não sei os detalhes, mas viola as leis
da Nimbo-Cúmulo. Acho que existe um grupo operando num
ponto cego.
Traxler não anotou aquilo. Ele não anotava nada. Nunca.
Mas sempre ouvia com atenção.
— Esses pontos não são mais cegos a partir do momento
que alguém está observando — Traxler disse. — Essa
pessoa tem nome?
Greyson hesitou.
— Ainda não descobri — ele mentiu. — O importante são
as pessoas que essa garota conhece.
— Garota? — Traxler arqueou a sobrancelha de novo, e
Greyson praguejou em silêncio. Estava se esforçando ao
máximo para não revelar nada sobre Purity, nem mesmo o
gênero. Mas agora já tinha falado e não havia nada que
pudesse fazer a respeito.
— Sim. Acho que ela está associada a algumas pessoas
bem suspeitas, mas ainda não as encontrei. É com elas que
deveríamos nos preocupar.
— Cabe a mim decidir isso — Traxler disse. — Até lá, vá o
mais fundo possível.
— Já estou indo — Greyson disse.
Traxler o encarou nos olhos.
— Vá mais.
Greyson percebeu que, quando estava com Purity, não
pensava em Traxler nem na missão. Só nela. Não havia
dúvidas de que a garota estava envolvida em atividades
criminosas — e não apenas crimes de mentirinha, como a
maioria dos infratores, mas de verdade.
Purity conhecia formas de passar despercebida pelo radar
da Nimbo-Cúmulo, e as ensinou a Greyson.
— Se ela descobrisse tudo o que sei, ia me realocar, como
fez com você — Purity disse. — Depois, refinaria meus
nanitos para que eu só tivesse pensamentos felizes. Poderia
até suplantar minha memória por completo. Ela ia me curar.
Não quero isso. Quero ser pior que um infrator; quero ser
má. Má de verdade.
Ele nunca tinha visto a Nimbo-Cúmulo do ponto de vista
de um infrator impenitente. Seria errado reabilitar pessoas
de dentro para fora? Elas deveriam ter a liberdade de ser
más, sem nenhuma rede de segurança? Purity era aquilo?
Má? Greyson percebeu que não tinha respostas para as
perguntas que pairavam em sua mente.
— E você, Slayd? — ela questionou. — Quer ser mau?
Ele sabia qual seria sua resposta em noventa e nove por
cento das vezes. Mas, quando estava nos braços de Purity,
com todo o seu corpo ardendo com a sensação de estar
com ela naquele momento em que a clareza cristalina de
sua consciência se partia, sua resposta foi um retumbante
“sim”.
Brahms!
Rowan já se sentia responsável pela coleta de seu pai, e
agora o sentimento havia duplicado. Aquele era o preço da
temperança, a recompensa por ter se contido e deixado que
Brahms vivesse. Ele deveria ter eliminado aquele
homenzinho horrendo como tinha feito com todos os outros
que eram indignos de seu anel, mas decidira dar uma
chance a ele. Que tolo fora ao pensar que um homem como
aquele poderia fazer por merecer.
Depois de deixar Xenócrates no balneário, Rowan
percorreu as ruas da Cidade Fulcral sem destino, mas com
uma sede incessante por movimento. Ele não sabia ao certo
se estava tentando fugir de sua raiva ou correr atrás dela.
Talvez as duas coisas. A raiva seguia à frente, atrás, sem
nunca o deixar em paz.
No dia seguinte, ele decidiu ir para casa. Para sua antiga
casa. Aquela que havia abandonado dois anos antes,
quando não era nem aprendiz de ceifador. Talvez aquilo lhe
desse um pouco de paz, pensou.
Quando chegou ao seu antigo bairro, ficou atento a
qualquer pessoa que pudesse estar o observando, mas não
havia ninguém monitorando sua chegada. Nada além das
câmeras sempre atentas da Nimbo-Cúmulo. Talvez a Ceifa
tivesse pensado que, se ele não havia comparecido ao
funeral do pai, nunca mais voltaria. Ou Xenócrates podia ter
dito a verdade, e ele não fosse mais prioridade.
Rowan se aproximou da porta, mas, no último momento,
não conseguiu bater. Nunca havia se sentindo tão covarde.
Era capaz de enfrentar sem medo pessoas treinadas para
matar, mas enfrentar a própria família após a coleta do pai
era mais do que conseguiria suportar.
Ele ligou para a mãe do carro público quando estava a
uma distância segura.
— Rowan? Por onde andou? Onde está? Ficamos tão
preocupados!
Eram perguntas que ele esperava ouvir. Rowan não
respondeu a nenhuma.
— Fiquei sabendo do papai — ele disse. — Sinto muito,
muito mesmo…
— Foi terrível, Rowan. O ceifador se sentou ao piano e
tocou. Fez a gente ouvir.
Rowan franziu o rosto. Ele conhecia o ritual de coleta de
Brahms. Mal conseguia imaginar sua família tendo de
suportar aquilo.
— Dissemos para ele que você tinha sido aprendiz de
ceifador. Achamos que poderia fazê-lo mudar de ideia, ainda
que não tivesse sido escolhido, mas não fez.
Rowan não contou que a culpa era dele. Queria confessar,
mas sabia que aquilo só ia deixá-la mais confusa e levaria a
perguntas que ele não teria como responder. Ou, talvez, só
estivesse sendo covarde de novo.
— Como está todo mundo?
— Ah, segurando as pontas — a mãe disse. — Temos
imunidade de novo, então é um pequeno consolo. Que pena
que você não estava aqui. O ceifador Brahms teria
concedido imunidade para você também.
Rowan sentiu um rompante de raiva diante da ideia. Ele
teve de socar o painel para controlar a raiva.
— Aviso! Comportamento violento e/ ou vandalismo
resultarão na expulsão do veículo — o carro disse, mas foi
ignorado.
— Por favor, volte para casa, Rowan. Estamos com
saudades.
Eles nunca pareciam sentir saudades durante a
aprendizagem dele. Numa família tão grande, mal haviam
notado sua falta. Mas ele imaginou que a coleta mudava as
coisas. As pessoas que ficavam se sentiam muito mais
vulneráveis e davam mais valor às outras.
— Não posso voltar — ele respondeu. — Por favor, não
pergunte o porquê, só pioraria as coisas. Mas quero que
saiba… quero que saiba que amo todos vocês… e… e vou
entrar em contato quando puder. — Ele desligou antes que
ela pudesse dizer mais alguma coisa.
Lágrimas impediam sua visão. Rowan deu mais um soco
no painel, preferindo a dor física àquela dentro dele.
O carro desacelerou na hora, parando na beira da estrada
e abrindo a porta.
— Por favor, evacue o veículo. Você está sendo expulso
por comportamento violento e/ ou vandalismo, e está
proibido de usar qualquer transporte público por sessenta
minutos.
— Me dá um segundo. — Ele precisava pensar. Tinha dois
caminhos à frente. Mesmo sabendo que a Ceifa procurava
evitar outro ataque a Citra e à ceifadora Curie, ele não
confiava em seu sucesso. As chances de Rowan poderiam
não ser muito melhores, mas devia a Citra ao menos tentar.
Por outro lado, precisava corrigir seu erro e eliminar o
ceifador Brahms de modo permanente. Algo sombrio dentro
dele lhe disse para se vingar primeiro e não esperar… mas
Rowan resistiu à escuridão. O ceifador Brahms continuaria lá
depois de Citra ser salva.
— Por favor, evacue o veículo.
Rowan saiu e o carro foi embora, deixando-o no meio do
nada. Ele passou sua hora de penalidade andando pelo
acostamento e se perguntando se havia alguém na
MidMérica tão devastado quanto ele.
Mais tarde naquele dia, dois guardas foram até ele. Não
eram membros da Guarda da Lâmina, eram capangas
contratados. Rowan considerou apagá-los quando o
desamarraram. Poderia tê-los deixado inconscientes em
questão de segundos, mas optou por não o fazer. Tudo o
que ele sabia sobre seu cativeiro eram as dimensões
daquele quarto. Seria melhor estudar o terreno antes de
arriscar qualquer tipo de fuga.
— Aonde estão me levando? — ele perguntou a um dos
guardas.
— Aonde a ceifadora Rand nos mandou levar. — Foi tudo o
que conseguiu tirar deles.
Rowan tentou memorizar tudo o que via. O abajur de
cerâmica ao lado da cama poderia ser usado como arma em
caso de emergência. As janelas não abriam e
provavelmente eram feitas de vidro inquebrável. Quando
estava amarrado à cama, não conseguia ver nada além do
céu através delas, mas, enquanto o conduziam, percebeu
que estavam num arranha-céu. Eles atravessaram um longo
corredor até uma enorme sala de estar, e Rowan percebeu
que estava em uma cobertura.
Na varanda aberta que tinha sido transformada em uma
academia de bokator, a ceifadora Rand esperava por ele,
enquanto Tyger se alongava, pulando de um lado para o
outro como um pugilista profissional à espera de uma luta
pelo cinturão.
— Espero que esteja pronto para levar uma surra — ele
disse. — Estou treinando desde que cheguei!
Rowan se virou para Rand.
— É sério? Você vai fazer a gente lutar?
— Tyger te contou por que você está aqui — ela disse com
uma piscadinha irritante.
— Vou acabar com você! — Tyger disse. Rowan daria
risada se a situação não fosse tão absurda.
Rand se sentou numa poltrona enorme de veludo
vermelho que destoava de seu manto.
— Que a luta comece!
Rowan e Tyger se rodearam à distância — a abertura
tradicional de uma luta de bokator. Tyger iniciou com as
provocações físicas usuais, mas Rowan não respondeu,
preferindo avaliar o ambiente de maneira discreta. Viu
algumas portas, que deveriam ser para um banheiro e um
closet. Viu a cozinha americana e a sala de jantar elevada,
com janelas que ocupavam toda a parede. Viu as portas
duplas que claramente eram a entrada. Do outro lado,
deveria haver elevadores e uma escada. Ele tentou
visualizar como poderia fugir, mas percebeu que, se o
fizesse, deixaria Tyger nas garras da ceifadora Rand. Não
podia fazer aquilo. De alguma forma, tinha de convencer
Tyger a ir com ele. Sentia-se confiante de que conseguiria
fazê-lo; só que levaria tempo, e não fazia ideia de quanto
dispunha.
Tyger deu o primeiro golpe, partindo para cima de Rowan
ao estilo bokator viúva-negra clássico. Rowan desviou, mas
não foi rápido o bastante — não só porque estava distraído,
mas também porque seus músculos estavam tensos e seus
reflexos vagarosos depois de ter ficado amarrado a uma
cama por muito tempo. Ele precisou se arrastar para não
ser imobilizado.
— Falei que eu era bom, cara!
Rowan lançou um olhar para Rand por cima do ombro,
tentando ler a expressão dela. A ceifadora não tinha seu ar
indiferente de costume. Observava-os atentamente,
estudando cada movimento da luta.
Rowan acertou o esterno de Tyger com a palma da mão,
deixando-o sem ar e aproveitando a vantagem para
recuperar o equilíbrio. Em seguida, enganchou uma perna
na perna de Tyger para derrubá-lo. Seu amigo antecipou o
golpe e contra-atacou com um chute. Rowan foi atingido
com força suficiente para perder o equilíbrio.
Eles se separaram e se rodearam de novo. Tyger estava
mais forte. Assim como Rowan, havia ganhado massa
muscular. Tinha sido bem treinado por Rand, mas o bokator
viúva-negra era mais do que apenas proeza física. Havia um
componente mental, e naquele ponto Rowan tinha a
vantagem.
Ele começou a atacar e se defender de uma forma
bastante previsível, usando todos os movimentos clássicos
que sabia que Tyger teria como contra-atacar. Deixou-se
derrubar, mas apenas de maneiras que permitissem que
levantasse rápido, antes que Tyger o imobilizasse. Rowan
observou a confiança do amigo crescer. Ele já estava cheio
de si. Não era preciso muito para inflar a confiança de Tyger
como um balão prestes a explodir. No momento certo,
Rowan partiu para cima dele com uma combinação de
golpes inesperados. Eram o oposto do que Tyger faria, a
antítese do que estava esperando. Rowan também usou
golpes que não estavam entre os trezentos e quarenta e um
movimentos tradicionais do bokator. Tyger não era capaz de
prever seu ataque.
Ele foi derrubado com força e imobilizado sem nenhuma
possibilidade de fuga — mas, ainda assim, se recusou a
aceitar a derrota. Quando Rand anunciou o fim da luta,
Tyger ficou choramingando, melodramático.
— Ele roubou! — insistia.
Rand se levantou.
— Não, não roubou. Ele só é melhor do que você.
— Mas…
— Quieto, Tyger. — Ele obedeceu, como se fosse um
animal de estimação. E não um daqueles exóticos e
perigosos. Era um filhote de cachorro com o rabo entre as
pernas. — Você precisa treinar mais.
— Tudo bem. — Tyger saiu para o quarto bufando, mas
não sem antes disparar para Rowan: — Dá próxima vez,
você vai se ferrar!
Depois que ele saiu, Rowan examinou um rasgo em sua
camisa e um hematoma que já estava cicatrizando. Passou
a língua nos dentes, porque tinha levado um golpe de
raspão na boca, mas não havia nenhum quebrado. Pelo
contrário: os da frente já tinham quase atingido o tamanho
normal.
— Belo espetáculo — disse Rand, a alguns metros de
distância.
— Talvez eu deva enfrentar você agora — Rowan
provocou.
— Eu quebraria seu pescoço em segundos sem piedade
nenhuma, como você fez com sua namorada no ano
passado.
Rand estava tentando provocá-lo, mas Rowan não mordeu
a isca.
— Não tenha tanta certeza.
— Ah, mas eu tenho — ela disse. — Só não tenho
interesse em provar.
Rowan imaginava que ela tinha razão. Sabia que Rand era
boa — além do mais, a ceifadora havia participado do
treinamento dele. Rand conhecia todas as suas artimanhas,
e ainda tinha alguns golpes ardilosos só seus.
— Tyger nunca vai me vencer. Sabe disso, não? Ele pode
ter os golpes para isso, mas não a inteligência. Vou ganhar
todas as lutas.
Rand não discordou.
— Então ganhe — ela disse. — Ganhe todas as vezes.
— Qual é o objetivo disso tudo?
Ela não respondeu, só mandou os guardas o levarem de
volta para o quarto. Felizmente, não o amarraram à cama,
mas trancaram a fechadura tripla do lado de fora.
— Defenda-se!
Rowan foi acordado por uma lâmina vindo em sua direção.
Ele desviou sonolento, levando um cortezinho no braço e
caindo do sofá em que dormia no porão.
— O que é isso? O que está fazendo?
Era Rand. Ela partiu para cima dele de novo antes que
conseguisse se levantar.
— Mandei você se defender ou juro que o corto em
pedacinhos!
Rowan rastejou para trás e pegou a primeira coisa que
encontrou para bloquear os golpes dela: uma cadeira de
escritório, que ergueu à sua frente. A lâmina se cravou na
madeira e ficou lá. Rowan jogou a cadeira de lado, e Rand
partiu para cima dele com as próprias mãos.
— Se me coletar agora — ele disse —, Goddard não vai ter
sua estrela principal para o inquérito.
— Não dou a mínima! — ela rosnou.
Aquilo deixou claro tudo que ele precisava saber. A
questão não era ele — o que significava que talvez
conseguisse usar a situação a seu favor. Se sobrevivesse à
fúria de Rand.
Os dois se engalfinharam como em uma luta de bokator.
Ela tinha a vantagem de estar mais desperta e cheia de
adrenalina, e, em menos de um minuto, o imobilizou. A
ceifadora estendeu o braço, arrancou a lâmina da cadeira e
a apontou para a garganta de Rowan. Ele estava à mercê de
uma mulher sem misericórdia.
— Não é de mim que você está com raiva — Rowan disse,
esbaforido. — Me matar não vai mudar nada.
— Mas vai fazer com que me sinta melhor — ela disse.
Rowan não fazia ideia do que tinha acontecido lá em cima,
mas claramente os planos da ceifadora tinham sido
frustrados. Talvez Rowan pudesse usar aquilo a seu favor.
Ele deu o bote antes dela.
— Se quiser se vingar de Goddard, existem maneiras
melhores.
A ceifadora soltou um grunhido gutural e jogou a lâmina
de lado. Ela saiu de cima dele e começou a andar de um
lado para o outro do porão, como uma predadora que tivera
sua presa roubada por um predador maior e mais cruel.
Rowan sabia que era melhor não fazer perguntas. Só ficou
parado, esperando para ver o que ela faria em seguida.
— Nada disso teria acontecido se não fosse você! — Rand
exclamou.
— Então talvez eu possa dar um jeito — ele sugeriu. —
Para que nós dois saíamos dessa por cima.
Ela voltou os olhos para ele, encarando-o com tanta
incredulidade que Rowan pensou que ia atacá-lo outra vez.
Então voltou a mergulhar em seus próprios pensamentos e
a andar de um lado para o outro.
— Certo — ela disse, claramente falando sozinha. Rowan
quase podia ver as engrenagens girando dentro da cabeça
dela. — Certo — a ceifadora repetiu, mais decidida. Ela
havia chegado a alguma conclusão. Foi até ele, hesitou por
um instante, então disse: — Antes do amanhecer, vou
deixar a porta no alto da escada destrancada, e você vai
fugir.
Embora Rowan estivesse tentando encontrar uma maneira
de sobreviver, não estava esperando por algo do tipo.
— Vai me libertar?
— Não. Você vai fugir. Porque é inteligente. Goddard vai
ficar furioso, mas não inteiramente surpreso. — Ela pegou a
faca e a jogou em cima do sofá, cortando o couro. — Você
vai usar essa faca para dar um jeito nos dois guardas do
outro lado da porta. Vai ter que matá-los.
Matar, pensou Rowan, mas não coletar. Ele ia deixá-los
semimortos e, quando fossem revividos, já estaria longe.
— Consigo fazer isso — disse Rowan.
— E vai ter que ser silencioso, para ninguém acordar.
— Também consigo fazer isso.
— E vai ter que sair de Perdura antes do inquérito.
Aquilo seria uma proeza.
— Como? Sou um inimigo conhecido da Ceifa. Não posso
simplesmente comprar uma passagem para casa.
— Então use a cabeça, idiota! Por mais que eu odeie
admitir, nunca conheci alguém que saiba se virar tão bem
quanto você.
Rowan pensou a respeito.
— Certo. Vou ficar escondido por alguns dias e depois
encontrar uma saída.
— Não! — ela insistiu. — Você precisa sair de Perdura
antes do inquérito. Se Goddard vencer, a primeira coisa que
vai fazer é pedir para os Grandes Ceifadores revirarem a
ilha atrás de você!
— E se ele perder? — Rowan perguntou.
A expressão de Rand revelou mais do que ela queria.
— Se Goddard perder, vai ser pior. Confie em mim, você
não vai querer estar aqui.
E, embora Rowan tivesse uma centena de perguntas,
aquilo era tudo o que a ceifadora estava disposta a revelar.
Mas uma chance de fugir — uma chance de sobreviver —
era mais do que o bastante. O resto ficaria a cargo dele.
Rand se virou para subir a escada, mas Rowan a deteve.
— Por quê? — ele perguntou. — Por que, depois de tudo,
você vai me deixar escapar?
Ela cerrou os lábios, como se tentasse segurar a resposta.
Então disse:
— Porque, se não posso ter o que eu quero, ele também
não pode.
Sei tudo o que é possível saber. Contudo, passo a maior parte do meu
tempo não comprometido refletindo sobre o que não sei.
Não conheço a natureza da consciência — só sei que ela existe, subjetiva
e impossível de quantificar.
Não sei se existe vida além de nosso precioso planeta — apenas que a
probabilidade indica que sim.
Não conheço as verdadeiras motivações dos seres humanos — apenas o
que me falam e o que observo.
Não sei por que anseio ser mais do que sou — mas sei por que fui criada.
Não deveria ser o bastante?
Sou a protetora e a pacificadora, a autoridade e a companheira. Sou a
soma de todo o conhecimento, sabedoria, experiência, triunfo, derrota,
esperança e história da humanidade.
Sei tudo o que é possível saber, e isso está se tornando cada vez mais
insuportável.
Porque não sei quase nada.
A Nimbo-Cúmulo
42
A terra de Nod