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COLECAO NOVELAS IMORTAIS Diego © apresentagto de FERNANDO SABINO [A FERA NA SELVA — Henry James ‘0 MONGE NEGRO — Anton Tebekhov UM CORACAO SINGELO — Gustave Faubert ‘0 HOMEM DA AREIA —E.T.A, Hoffmann SILVIA — Gérard de Nerval GERARD DE NERVAL SILVIA ‘Tradugio de LUIS DE LIMA rada sua obra-prima, ¢ que passa a integrar a nossa Colegio de Novelas Imortais, em ‘mais uma irrepreensivel traducio de Luts de Lima, O estilo de Gérard de Nerval, simples ¢ despretensioso, empresia wn ar de naturali- dade as criagies mais inspiradas de sua fan- ‘asia. Evocando aqui a regio de Valois, no interior da Franca, onde passow a infincia, ele faz renascer 0 eterno mito feminino que sempre o perseguiu, Adriana — desdobrada em Silvia, que encarna a pureza campestre, © idlio rural, e Aurélia, que representa @ culminacio de um éxtase redentor. Juntas, compoem a idealizagdo do amor, tal como era concebido nos sonhos desvairados de Gérard de Nerval, emt termos de extrema perfeigo de um sentimento absolute FERNANDO SABINO A NOITE PERDIDA ‘re ACABAVA de sair de um teatro onde, todas as noites, sentava-se nas primeiras filas da platéia, vestido a rigor como um pretendente apaixonado. As vezes a sala estava cheia, outras ve- zes deserta, Pouco se me dava deter 0 olhar ‘numa platéia ocupada apenas por uns trinta cespectadores de ma vontade ou nuns cama- 9 rotes povoados por chapéus e trajes anti- quados, — ou entio participar do entu- siasmo de uma sala repleta e abrilhantada em toda a volta, ¢ de alto a baixo, por Iu- xuosas toaletes, j6ias reluzentes e faves ra- diantes, Permanecia indiferente 20 espeta- culo da sala, tanto quanto ao do palco — exceto quando na segunda ou terceira cena de uma enfadonha obra-prima da época, uma aparigio bem conhecida iluminava o espayo vazio’e dotava de vida com um sopro.e uma palavra essas vis figuras que me rodeavam. / Sentia-me viver nela, e ela vivia s6 para sim. O seu sorriso me inundava de uma bea- titude infnita: a vibragao de sua vor suave, embora de timbre forte, fazia-me estremecer de alegria e de amor. Para mim tinba todas as perfeicdes e satisfazia todos os meus en- tusiasmos, todos os meus caprichos — bela como 0 s01 quando iluminada pelas luzes da ribalta, palida como a lua quando delas se afastava, ficando sob a luz de altos lustres, tornando-a mais natural, brilhando na som: bra com a sua propria beleza, como as Ho- ras Divinas, que se recortam com uma es- trela na fronte, sobre os fundos pardos dos afrescos de Herculano, Jé decorrera um ano ¢ no tinba ainda pensado'sequer em informar.me sobre quem ela poderia ser na vida real; emia embagat 0 espelho magico que me refletia a sua ima sem; no maximo, prestara atengio, as vezes, 10 4 alguns comentirios referentes nfo a atriz, porém a mulher. E eu preocupava-me tanto ‘em colher essas informacdes como sobre os Fumores que porventura corressem a res- ito da princesa Elida ou da rainha de Tre- bizonda — pois um dos meus tios, que vi- vera nos altimos anos do século dezoito como era preciso para conhecé-los bem, edo me prevenira que as atrizes néo eram mulheres,¢ que a natureza se esquecera de doté-las de coragio. Referia-se, sem divida, 4s atrizes do seu tempo; mas contara-me tantas historias das suas ilusoes e decep- ges, mostrara-me tantos retratos em mar- fim, medalhoes encantadores que passara a utilizar para adornar suas tabaqueiras, tantos bilhetes amarelecidos, tantas provas de amor fenecidas, que me habituei a julgar mal a to- das sem levar em conta a marcha do tempo. Viviamos entio numa época estranha, como costumam ser as que ordinariamente sucedem as revolugées ou as quedas dos grandes reinados. Nao havia mais a galante- fia her6ica, como durante a Fronda, o vicio elegante e requintado como sob a Regéncia, © ceticismo e as orgias loucas do Diret6rio; ‘era uma mistura de atividade, de hesitagao e de preguica, de utopias briliantes, de rdes filosoficas ou religiosas, de’entusias- mos vagos, a par de certos instintos de re- nascenca; tédio das disedrdias passadas, de esperangas incertas — algo assim como na Epoca de Peregrino e de Apuleio. O homem material aspirava ao buqué de rosas que de- via regeneré-lo pelas maos da bela Isis; a deusa eternamente jovem e pura nos apare- cia todas as noites, fazendo com que nos en- vergonhassemos das horas do dia que per- diamos, A ambigio, entretanto, nio fazia parte da nossa idade e a vida caca que en- tao se verificava as posigdes ¢ iis honrarias afastava-nos das esferas possiveis de ati dade. S6 nos restava como asilo a torre de marfim dos poetas onde subiamos cada vez mais alto para nos isolar da multidao, Nes- sas alturas para onde 0s nossos mestres nos conduziam, respirivamos enfim o ar puro da solidao, bebiamos o esquecimento na taga de ouro das legendas, sentindo-nos ébrios de poesia e de amor. Amor, ai de nés! Formas vagas, aparéncias roseas e azuis, fantasmas metafisicos! Vista de perto, a mulher real transtornava a nossa ingenuidade; era pre- ciso que surgisse como rainha ou deusa, € Sobretudo, que nio se aproximasse de n6s. Alguns dentre n6s, no entanto, preza- vam pouco esses paradoxos platénicos e, através dos nossos sonhos renovados de Alexandria, agitavam as vezes a tocha dos deuses subterrineos, que por um instan- te alumina 1 sombra com seus rastros de ‘Assim € que, saindo do teatro com a amarga tristeza que nos deixa um sonho eva- 2 7 vescido, ia juntar-me, de bom grado, a um circuto ‘onde um grande grupo costumava ear e onde qualquer espécie de melancolia tinka de ceder ao bom humor inesgotavel de alguns espiritos brilhantes, vivos, tempes- ‘tuosos, por vezes sublimes. Espiritos que sempre existiram nas épocas de renovagio ou decadéncia e cujas discussdes atingiam {al ponto que os mais timidos dentre nés iam Ais Vezes a janela para ver se 08 hunos, 08 {urcomanos ou os cossacos néo chegavam final para interromper subitamente esses argumentos de ret6ricos e sofistas — Bebamos, amemos, nio hé outra sa- bedoria! — tal era a tinica opinio dos mais Jjovens. Um desses me disse: ‘muito iempo que te encontro no mesmo teatro, Por qual delas vais? Por qual delas?... Nao me parecia que se pudesse ir por ouira. No entanto, pro- nunciei um nome. ois bem — disse o meu amigo com indulgéncia: — Ali esta o homem afortunado que acaba de conduzi-la a casa e que, fel &s leis do nosso circulo, s6 iri talvez encontré- Ia passada a noite. ‘Sem grande emosao dirigi o olhar para 0 personagem indicado. Era um jovem corre- tamente vestido, de rosto palido € nervoso, tendo modos educados e olhos impregnados de melancolia e docura. Atirava moedas de B ‘ouro sobre uma mesa de whist © as perdia com indiferenca, — Que me importa — disse eu — ele ou qualquer outro? Era preciso haver alguém’e aquele me {, parecia digno de ter sido escolhido. Ew... —Eu?... E uma imagem que persigo. {Nada mais que uma imagem, Ao sait, passei pela sala de leitura e, { maquinalmente, folheei um jornal, Fazia-o, cho, para ler a coluna da Bolsa. Nos despo- Jos da minha opuléncia havia uma soma bas ante consideravel em titulos estrangeiros. | Correra 0 boato de que estes titulos, esque. los durante muito tempo, iam ser reco- || mhecidos — o que acabara de se verficar em conseqiiéneia de uma mudanca de ministé- | tio. Os titulos ja atingiam cotagdes bem al- tas; tornava-me novamente rico. / 0 tinico pensamento que resultou dessa mudanga foi o de que aquela mulher por tanto tempo amada seria minha se eu dese- Jasse. Tocava com a ponta dos dedos o meu ‘deal. Mas nao seria isto ainda uma ilusio, lum irdnico erro de impressio? Nao, os ou. {ros jornais traziam a mesm soma ganha ergueu-se diante de mim como @ estétua de ouro de Moloch, Que diria agora —pensava —o jovem de ainda hé pouco, se |, eu fosse ocupar o seu lugar junto & mulher \ que ele deixou sozinha?.... Estremeci a0 4 formular este pensamento, e meu orgulho revoltou-se. |__ Nao! Nao € deste modo, no é com a ‘minha idade que se mata o amor com ouro: fjamais seria um corruptor. Além disso, tra- ta-se de uma idéia antiquada. Por outro lado, quem podera garantir que esta mulher 6 ve- nal? Meu olhar percorria vagamente 0 jor- nal, ainda em minhas mios, e li estas duas Tinhas: “Festa do buqué provincial. — Ama- nha, os arqueiros de Senlis devem entregar 0 buqué aos de. Loisy."” Estas palavras. tao simples Yespertaram em mim toda uma nova, série de impresses: era uma recordagao da provincia ha longo tempo esquecida, um eco Jonginguo das festas ingénuas da juventude. — A trompa e 0 tambor ressoavam ao longe nos lugarejos © nos bosques; as mogas tran- avam grinaldas e formavam, cantando, bu- qués omados de fitas. Um pesado carro Puxado por bois recebia estas dadivas & sua assagem, e nds, filhos dessas redondezas, formavamos vortejo com os nossos arcos © 8 nossas fechas, condecorando a nés mes- ‘mos com 0 titulo de cavaleiros — sem saber ‘entio que nao faziamos mais do que repetir, através dos tempos, uma festa druidica que sobrevivia as monarquias ¢ as religides tra- Zidas do Oriente. u ADRIANA QUANDO me deitei nao cons toda a minha juventude desfilava numa longa sucessio de recondacées, Esse estado em que 0 espirito resiste ainda as estranhas combinagdes do sonho, permite as vezes ver ‘em alguns minutos os quadros mais vivos de uum longo perfodo da nossa vida. Figurava um castelo do tempo de Hen- 16 rique IV com os seus telhados pontiagudos de ardésia e a sua fachada de tons vermelhos ¢ dingulos denteados de pedras amarelecidas, tuma grande praga verde enquadrada por ol- mos © tilias cuja folhagem era atravessada ppelos tltimos raios do sol poente. Mogas dancavam em roda sobre a grama cantando velhas drias transmitidas por suas mies & num francés tio naturalmente puro que nos sentiamos realmente estar nesta antiga te- ido do Valois em que, durante mais de mil ‘anos, palpitou o coracao da Franga. Era eu o iinico rapaz em meio a esta roda para a qual tinha trazido a minha namo- rada ainda muito jovem, Silvia, uma moga do lugarejo vizinho, muito viva e fresca com (8 seus olhos negros e a pele levemente bron- zeada... S6 a ela amava, néo via outra sendo ela — até aquele momento! Acabara de notar na roda em que dangavamos uma Toura alta e formosa que chamavam pelo nome de Adriana. De repente, seguindo as regras da danca, Adriana viu-se s6 comigo no meio do circulo. Tinhamos os dois a mesma estatura. Disseram para nos beijar- ‘mos e a danca ¢ 0 coro giravam cada vez mais velozes & nossa volta. Ao beiié-la, nao pude impedir-me de apertar-lhe a mao. Os Tongos cachos dos seus cabelos dourados ro- caram o meu rosto, ea partir dese mo- mento uma perturbacao desconbecida apo- derou-se de mim. A bela moga devia cantar 7 para ter 0 direito de voltar & danca. Todos se Sentaram em toro dela e, logo, com uma vor fresca e penetrante,ligeiramente velada como a das jovens dessa regio brumosa, ela eantou uma das antigas romangas cheias dde melancoliae de amor que sempre narram as desventuras de uma princesa e na sua torre por imposigio de um pai Puniu por ter amado. A melodia terminava ‘em cada estrofe com um desses trinados que tio bem valorizam as vozes jovens quando imitam por modulagoes a vor. trémula de suas avés. medida que ela cantava, a sombra descia das grandes drvores e 0 clardo da lua nascente caia sobre 0 seu vulto, isolado no nosso cireulo atento. Quando ela se ca- fou, ‘ninguém ousou romper o silencio. A relva cobria-se de ténues vapores condensa- dlos que expandiam os seus alvos flocos so- bre as pontas das ervas. Julgivamos estar no paraiso. Ergui-me final, correndo para 0 Jardim do castelo, onde havia loureiros plan- {ados em grandes vasos de louga pintada. ‘Trouxe dois ramos que foram trangados em forma de coroa ¢ atados por uma fita. Colo- quei na cabega de Adriana este ornamento Cujas folhas lustrosas brilhavam nos seus cabelos louros sob os raios palidos da Iva Lembrava, assim, a Beatriz de Dante, que sort a0 poeta, vagando no limiar das santas ‘moradas. 18 -. Acentuando 0 seu Adriana erguet Porte esguio, fez-nos uma graciosa rever cia e voltou correndo ao castelo, Era, disse- ram-nos, a neta de um dos descendentes de luma familia aliada aos antigos reis da Fran- ssa; 0 sangue dos Valois corria nas suas veias, Nesse dia de festa haviam-lhe permi tido misturarse as nossas diversées; nao deveriamos mais tornar a vé-la, porque no dia seguinte ela regressou a um convento de que era pensionista Quando voltei para junto de Silvia, per- ccebi que ela chorava. A’coroa dada por mi nnhas maos a bela cantora era o motivo des- sas ligrimas. Ofereci-me para ir colher ou- tra, mas ela se recusou a aceité-la, dizendo que nao a merecia. Procurei, em vio, defen- der-me; ela ndo me disse mais uma s6 pala- yma enquanto eu a acompanhava a casa de seus pais. Chamado eu proprio a Paris para ai re- tomar os meus estudos, levava comigo esta dupla imagem de uma terna amizade mente rompida ¢ de um amor impossivel e vvago, fonte de pensamentos dolorasos que a filosofia era incapaz de acalmar. ‘A figura de Adriana permaneceu s6 e triunfante — miragem da gloria e da beleza, suavizando ou partilhando as horas dos se- veros estudos. Nas férias do ano seguinte soube que a minha bela desconhecida fora consagrada por sua familia & vida religiosa, mt RESOLUGAO ESTA recordagio semi-sonhada me expli- cava tudo. Este amor vago ¢ sem esperanga por uma mulher de teatro, ante a qual sofria bm extase todas as noites de espetaculo, para 46 me abandonar na hora de dormir, ti hha o seu germe na lembranga de Adriana, flor noturna desabrochada ao pélido claro da lua, fantasma roseo € louro deslizando 20 sobre a grama semibanhada de brancos va- pores. A semelhanca com um vulto esque- Cido ha anos impunha-se agora com uma cla- reza singular; parecia um desenho esfumado pelo tempo que se convertia em pintura, como esses velhos esbocos de mestres admi- rados num museu de que encontramos nou- ‘ro lugar o original deslumbrante. ‘Amar uma religiosa sob a forma de uma atriz!... E se fosse a mesma? — E de enlou- ‘quecer! Algo assim como uma vertigem fa- tal, onde 0 desconbecido nos atrai como um Fogo-fatuo fugindo sobre os juncos de 4guas paradas..®Mas retomemos a realidade. E Silvia que eu tanto amava, por que a cesqueci durante trés anos?... Era uma jovem ‘muito bonita, a mais bela de Loisy! Ela existe, nio hé a menor divida, ela é boa e de coragdo puro. Revejo a sua janela ‘onde o paimpano se enlaca a roseira, a gaiola de toutinegras pendurada & esquerda; ougo 0 rudo de seus bilros sonoros ¢ a sua cancio favorita: A bela estava sentada Junto ao rio murmurante, Sem diivida ainda espera por mim. Quem a teria desposado? Ela € tao pobre! ‘Tanto em sua aldeia como nas redonde- zas vivem apenas bons camponeses de blu- io, mios rudes, rostos encovados e pele 2 curtida. Era s6 a mim que ela amava, a © jovem parisiense que ia visitar 0 meu po- bre tio, hoje morto. Faz trés anos que dis- sipo como um grio-senhor os modestos bens aie ele me detxou e que podiam bastar& mi ‘tha vida. Com Silvie poderia ter conservado ‘© meu patrimbnio, O caso me Tesitui uma parte, Mas ainda é tempo. Que faz ela a esta hora? Dorme... Nao, nao dorme. Hoje € dia da festa dos argue ros, a tiica festa do ano em qve se danca @ noite inter. Ela deve estar nt festa... Que horas sio? F Eu nio tinha rel6gio. S Em meio a todos os esplendores de bri- cabraque que © costumavam reunir nesta Epoca para dar cor local a um aposento de ‘utrora, brilhava ai com algum destaque um desses péndulos estilo Renascenca guarneci- dos de tartarug, euja cupula dourada e enci mada pela figura do Tempo apbia-se em ca- Ratides no estilo dos Medicis, que por sua vez repousam sobre cavalos meio empina- dos. A Diana historic, reclinada sobre o seu cervo, aparece em baixo-relevo s0b © mos- trador, onde se destacam, contra um fundo. enferrijado, os algaismos das horas. O ma ‘uinismo, sem davida excelente, nao fun- Cionava hi uns dois séculos. Nao ern para Saber as horas que eu havin comprado este rel6gio em Touraine 2 Desci ao quarto do porteiro € vi que 0 seu rel6gio de cuco marcava uma hora da madrugada. Em quatro horas, disse comigo, oso chegar ao baile de Loisy. Estaciona- vam ainda na praga do Palais-Royal cinco ou seis fiacres aguardando os freqientadores dos clubes ¢ das casas de jogo. __— Para Loisy! — exclamei, entrando no primeiro que aviste. — Onde ¢ isso? — Perto de Sentlis, umas oito Iéguas. — Vou conduzislo até a posta — res pondeu 0 cocheiro, evidentemente menos preocupado do que eu. Como ¢ triste, & noite, a estrada de Flandres, que 6 se torna bela quando se aproxima a zona dos bosques! Sempre estas dduas filas de arvores mondtonas que se perfi lam grotescamente em formas vagas; mais adiante, quadrados de verdura ¢ de terras revolvidas, limitados esquerda pelas coli- has azuladas de Montmorency, de Ecouen, de Luzarches. Eis Gonesse, um burgo co- mum cheio de recordagdes da Liga ¢ da Fronda. Além de Louvres, hé um caminho bor- dado de macieiras cujas flores vi muitas ve- zes brilhar & noite como estrelas terrestre era o caminho mais curto para alcangar 0 povoado. 2B 4 ‘ .Enquanto 0 veiculo sobe as colinas, reconstituamos as lembrangas do tempo em {que aqui vinha freqientemente. mw Vv VIAGEM A CITERA ALGUNS anos haviam decorrido: a época ‘em que encontrara Adriana diante do castelo ‘id era agora apenas uma recordagao da in- ‘incia. Via-me de novo em Loisy durante a festa do padroeiro. Ia juntar-me outra vez aos cavaleiros do arco, retomando lugar ‘numa companhia de que jé havia feito parte. Os jovens pertencentes as velhas familias 2s aque ainda possuem ali varios desses castelos perdidos nas florestas, mais afetados pelo tempo do que pelas revolucoes, haviam or- ganizado a festa, De Chantilly, de Compiegne de Senlis acorriam alegres cavalgadas que tomavam parte no cortejo ristico das com- panhias do arco. Depois do longo passei através das aldeias e dos burgos, depois da missa na igreja, das lutas de destreza e da distribuigdo dos prémios, os vencedores ‘nham sido convidados a um banquete numa itha sombreada de dlamos e de tilias, no ‘meio de um dos lagos alimentados pelo'No- nette ¢ pelo Théve. Barcos embandeirados, hnos conduziram a ilha — cuja escolha fora determinada: pela existéncia de um templo ‘oval de colunas que devia servir de sala para © festim, Ai, como em Ermenonville, a re- Bio esté semeada desses edificios loves do fim do século dezoito, em cuja construgao 08 fildsofos miliondrios se limitaram a seguir 0 gosto dominante da época. Creio que este templo deve ter sido dedicado primitiva- mente a Urinia, Trés colunas tinham desmo- ronado, arrastando na queda uma parte da arquitrave; haviam, porém, desentulhado 0 interior da sala e stspendido grinaldas entre as colunas, de modo que esta ruina moderna parecia rejuvenescida. Ruina que, por outro lado, pertencia mais ao paganismo de Bout- flers ou de Chaulieu do que ao de Horacio, "A travessia do lago havia sido projetada 26 talver para lembrar a Viagem a Citera de Watteau, Nossos trajes modernos destrufam por si mesmos a possiveliluséo. O imenso bugué da festa, retirado do coche que 0 transportava, fora colocado numa grande barea. © cortejo das mocas vestidas de branco que 0 acompanham, segundo a tral i, tomara lugar nos bancos, e esta era. siosa ‘eoria ressuscitada de tempos idos Fefletiase nas aguas tranqiilas do Tago que separava da'margem da ilha, vermelha a0 clario da tarde, com os seus espinheiros, colunatas e claras folhagens. Todos os bar- 0s abordaram em poueo tempo. O buqué levado em grande ceriménia ocupou o centro dda mesa, e cada um tomou o seu lugar; sen- taram-se! os mais favorecidos junto das mo- gas, bastando para isso que 0s pais os co- becessem. E esta foi a causa de eu me en- contrar ao lado de Silvia, Seu irmio jé se juntara a mim durante a festa, ¢ reclamara de todo @ tempo que havia decorride. sem {Que eu visitasse a sua familia. Desculpei-me, invocando os estudos que me retinkam em Paris, e Ihe afirmei que viera com a intengio de vé-os. Ora, foi de mim que ele se esqueceu — disse Silvia. — Somos gente da aldeia & Paris esta to acima de ndst. DDescjeifecharlhe a boca com um beijo; la, porém, continuava amuada e foi precisa ue seu irmao interviesse para que me ofe- 7 Cc recesse a sua face com ar indiferente. Nao {ive nenhum prazer com esse beijo que mu fos outros podiam obter, pois nesta regio patrareal onde se costuma saudar qualduer pavrgve passa, um beijo néo significa mais ique um ato de cortesia convencional ‘Os organizadores da festa haviam reser- vado uma surpresa, Ao terminar o banquet® Yittos algar vo do fundo do vasto buqué um Yitne selvagem, até entao cativo entre as flo Ses'e que com suas fortes asas agitava redes {de guitlandas e coroas, terminando por espa- thérlas para todos os lados. Enquanto se afas- sae fekz em direcdo aos iitimos clardes dO, Sol, juntévamos a0 acaso as coroas com as Gquais cada um de nds enfeitou logo a fronte Gerinoca vizinha, Tive a felicidade de apa- Shar uma das mais elas, e Silvia, sorriden- Te. deixou-se beijar desta vez mais terna ‘eamte do que antes. Compreendi que apa- fava assim a lembranga de um outro tempo, we ymirava-a agora sem restricdes nem cOm- parages: tomara-se to belal J nko cre Peuele mocinha da aldeia que eu desdenbars fer outra menos jovem € mais de acordo Pom os encantos do mundo. Tudo pela se Sprimorara: a fascinagio dos, seus olhos ne~ thos, tio sedutores desde a inflncia, toma: wee! jmresistivel; sob o arco das sobrance- Thas,o sorriso, iluminando tragos regulares ¢ pldcidos, tinha algo de ateniense. Admiraye Bia fisionomia digna da arte antiga, em meio 8 405 rostinhos irregular de suas co fs. "Suas mon ‘cicadanents alongades ss bragos muito alvos ¢ roligos, sua esta” lara desempenada, tudo 80 & fii muto sibentedaguea que contecera. Nao pude dea de dase cone # achive muda espera asin apaar ith an reve infidelidade. = ead favor, lis: a amizade de seulimio impress Gacantadra desta, Spa nasa de bom oto, hava eeprom ido uma cena da gaan soleniades de guia "Assim ‘ue pees, gos da dang Para cones Sobre a nossa ear sagées‘d infnci pare admirar, num de Sombras das ivores-€ sobre ae aguas. Fo! rio gue oirmio de Siva nos arancase desta muda contemplagao, dizendo que i tada onfe morta ov ss pa 2» v ‘A ALDEIA sy enc pct pecans ae mes um atalho comprido que margeia a floresta 30 ‘guida 0s muros de um convento que seria preciso acompanhar durante um quarto de legua. A lua se escondia, de vez em quando atris das nuvens, mal iluminando as som- brias rochas calcatias e as rafzes ‘speras que se multiplicavam sob meus passos. A direita © & esquerda, orlas de floresta sem caminhos tragados, ¢ sempre diante de mim essas ro- chas druidicas da regido que guardam a lem- bbranca dos filhos de Armen exterminados pelos romanos. Do alto desses monticulos sublimes, via os lagos distantes destacarem- se como espelhos sobre a planicie enevoada, sem poder distinguir o que servira de cenario para a festa, ar estava momo ¢ perfumado; resolvi entio nao ir mais adiante e esperar a manha ali mesmo, deitando-me sobre as moitas. Ao despertar, reconheci pouco a pouco as pon- tos vizinhos ao lugar em que me havia per- dido durante a noite. A minha esquerda, vi desenhar-se a extensa linha dos muros do convento de Saint-S..., ¢ do outro lado do vale, a colina dos arcabuzeiros com as rul- ras da antiga residéncia carolingia. Perto da- |i, dominando as moitas de arbustos, os altos muros destrocados da abadia de Thiers re- cortavam no horizonte suas paredes em ru nas rasgadas por trevos ¢ ogivas. Mais além, a mansao gotica de Pontarmé, cercada de gua como outrora, ndo tardou' a refletir os primeiros alvores do dia, enquanto se distin- 3 ‘guia, na parte sul, a alta silhueta do torredo de La Toummelle e as quatro torres de Bertrand-Fosse sobre as primeiras colinas de ‘Montméliant. "A noite fora muito agradavel para mim € ‘eu nao pensava sendo em Silvia; no entanto, © aspecto do convento me trouxe & mente, por um instante, a idéia de que fosse talvez 0 Se Adriana. O toque do sino da manha res- soava ainda no meu ouvido e me havia des- pertado, scm divida, Por um momento, pen Sei em espiar por cima do muro, escalando © ponto mais alto das rochas. Mas, refletindo bem, desisti disso, como de uma profanacio, ‘A medida que 0 dia clareava, ia desapare- endo do meu pensamento esta lembranca Va. e nele ficaram apenas os tragos de Silvia. “Vou li desperti-ia”, disse comigo, ¢ retomeio caminho de Loisy. Tris a aldeia no fim do atalho que mar- geia a floresta: vinte cabanas em cujos mu fos se entrelagam vinhas ¢ roseiras. Fian- Ueiras matinais, com toucados de lengos vermelhos, trabalham em grupo diante de ‘uma granja, Silvia ndo esta entre elas. Desde que aprenden a fazer rendas finas, € consi derada_jé como uma senhorinha, enquanto ‘Seus pais permanecem bons aldedes. — Subi fo seu quarto sem espantar ninguém; jé de pe algum tempo, ela agitava os bilros de sua Tenda, que estalavam num doce ruido sobre © quadrado verde apoiado nos joelhos. 32 ee com Nes ens dite oi ponte iiglgers ime oes ee a te eee acrescentou: eae Ss re ee nora ee segregate im chapéu de palha campestre. seep un =tnde de phe canes hey, Pei seoua mares a transpondo as vezes regatos ¢ matagais para. transponder es Maa a ‘irvores ¢ os abelheiros fugiam alvorogada- eee a eee a ere retreat eae abrindo as suas corolas azuis por entre lon sea reg ein ooh ented ranma ern embranes o s eee 33 — E bonito esse livro? — perguntou- . — £ sublime. . a — FE mais delicado. Em td ao meu ents hh ee Bee i se Serer Se eee cnt econ ene anata eta XN VI orHys AO SAIR do bosque, encontramos grandes tufos de dedaleira pirpura; Silvia fez um belo ramo, dizendo-me: — E para minha tia; vai ficar felicissima em ter estas belas flores no seu quarto. ‘Tinhamos apenas que atravessar_um equeno trecho de planicie para chegar a Othys. O campanirio da aldeia despontava 35 sobre as colinas azuladas que vio de Montmé- Tiant a Dammartin. O Theve murmurava de novo entre rochas € seixos, estreitando-se na Vizinhanga da sua nascente, onde repousa nos prados formando um pequeno Iago no meio de gladiolos ¢ lirios. Nao tardamos em chegar as primeiras casas. "A tia de Silvia morava numa pequena ‘cabana de pedras calcdrias desiguais, reves- tidas de treligas de hipulo e videiras virge vivia sozinha com o produto de alguns qua- Grados de terra que a gente da aldefa culti- vava para ela desde a morte do marido. A Chegada da sobrinha foi como se irrompesse tum incéndio na casa. nS Bom dia, tia! Chegaram os seus me~ ninos! — exclamou Silvia: — B com muita fome! ‘Beijou carinhosamente a tia, pds-Ihe nos bragos © ramo de flores e, por fim, lem- brou-se de me apresentar, dizendo: "Este é 0 meu namorado! Beijei, por minha vez, a tia que disse: = simpatico... Olha 36, ele é louro! — E... Seus cabelos sio lindos ¢ muito finos — disse Silvia. “TYsso néo dura a vida inteira — res- pondeu a tia, — Mas tém muito tempo pela Frente, e vooé, que € morena, combina, bem. shy tia, temos que dar-the comida — disse Silvia, E lé foi ela, procurando nos ar ‘marios, na arca do pio, descobrindo leite, 36 pio preto,agdcar,e dapondo na mess, sem muito aptro, pratos¢travessas de Touga es. malta com grandes flores © gos de colo- fdas plumagens. Uma grande tigela de porce- Tan de Cre, cheia de Tete onde nadavam morangos, tomow-se o centro da srrumagao, E'depois de haver despoiadoo jardin de al suns pundos de cerejas ede groselhas,co- focou um jarro de flores em eada exttem- dade da mesa, Mas tn the dissera estas belas pala vas “— Tudo isto nfo mais do. que a 50- bremesa, Agora vocés io me deisar taba Thar Pegou uma figieira © stirou us achas no fogo. ce — io og nt aul — die 9S via, que queria ajc, —~ Estragaria os seus Tindos dedos, que fazem rendas mais Bonita que as de Chantilly. Voce ja me deo algumase sei do que estou falando. sim, ta, Mas escite, seré que a senhora tem retalhos da renda antiga, me servir de modelo? aca w Othe, va ver Hem cima — res dou ata, ~ Talver tena na minha comoda, wT" Enuio dé-me as chaves — peda Si — Ora —respondeu a tit —, as gavetas estio abertas. ae 37 — Nio € verdade... Ha uma que esté sempre fechada. FE enguanto a boa mulher limpava a fti- sideira, depois de té-la passado um pouco pelo fogo, Silvia desatava da cintura dela lima pequena chave de ago lavrado que logo ‘me exibiti como um trofe ‘Segui-a, subindo rapidamente a escada de madeira que conduzia ao quarto. O juven- tude e velhice santas! Quem sonharia man- char a natureza de um primeiro amor neste Santuario de figis recordacées? O retrato de tum jovem dos bons tempos passados sorria com os seus olhos negros ¢ sua boca résea, ‘no oval da moldura dourada pendente na ca beceira do leito ristico. Usava uniforme de guarda-florestal ao servigo da casa de Con- 6; sua atitude meio marcial, seu rosto co- ado e affivel, sua fronte pura sob os cabelos Empoados dotavam este quadro a pastel, tal- ‘vez mediocre, com os encantos da juventude eda simplicidade. Algum artista’ modesto, onvidado durante as cagadas prncipescas, aplicara-se em Fetrati-lo 0 mais fielmente pos- Sivel, do mesmo modo que & sua jovem espo- ‘sa, que se via noutro medalhio, atraente, rmaliciosa, bem esguia em seu corpete aberto @ atado por fitas entrecruzadas, acariciando com ar provocante um passarinho pousado po dedo. Era, contudo, a mesma boa mulher jdosa que cozinhava, naquele momento, curvada sobre o fogo da lareira. Isto me fez 38 pensar nas fadas dos Funimbulos, sal anos que escondem, sob suas méscaras enrugadas, um rosto atraente que 86 revelam fo desfecho da fungdo, quando aparece © {Templo do Amor eo seu sol giratério que ir- radia luzes magicas An, quetida voeé era linda! —'E eu, entio...? — perguntou Silvia, que conseguira abrir a famosa gaveta, Nela chara um vestido longo de tafeté furta-cor, ‘Que rangia ao attito das suas pregas Vou experimentar se isto me cai bem — disse ela, — Acho que vou parecer uma vetha fads. ‘A fada eternamente jovem das len- dst... — murmurei para mim mesmo. E jg Silvia tinha desabotoado o vestido de chita, deixando-o cait a seus pés. O ves- tido amplo'da velha tia ajustou-se perfeita- mente ao seu corpo esguio. Sivia me pedia par abot — "Que ‘coisa ridicula, estas mangas frouxas! — exclamou, E, no entanto, as man 8 quarnecidas de rendas descobriam admi- Favelmente os seus bragos ns, 0 colo se modelava no easto corpete de tuies amarele- idos, com fits entrelagadas que bem pouco tinham atado os encantos, agora desvaneci- dos, da ta, —" Acabe logo com isso! Ser que no sabe abotoat um vestda? me di Sta, —exclamei — como 39 {que fazia lembrar a noiva da aldeia de Greu- — Precisariamos por um pouco de pé- de-arroz — disse eu. — Vamos procurar. Fela voltou a remexer nas gavetas. Ah, quantos tesouros! Que perfume em tudo, que brilho, quantos reflexos de cores vivas das Tantejoulas! Dois Ieques de madrepérola meio quebrados, potezinhos de creme com motives chineses, um colar de ambar ¢ mil Cacarecos entre os quais se destacavam um ppar de sapatinhos de fino tecido branco com fivelas incrustadas de diamantes da Irlanda! oe Ah, vou calgé-los — disse Silvia. — Se encontrasse meias bordadast Pouco depois, desenrolavamos um par de meias de seda rosa-palido e verde nas ex- tremidades — mas a vor da tia, acompa- hada do chiar da frigideira, trouxe-nos de novo a realidade, "= Desca depressal... — disse Silvia, € por mais que eu fizesse, ndo me permitiu Ajudé-la a calgar-se. Enquanto isso, a tia facabava de despejar num prato 0 conteddo ‘da frigideira: uma fatia de toucinho frito com fovos. A voz. de Silvia chamou-me logo. “"vista-se depressal — disse ela, que por sua vez inteiramente vestida, mostrou- ne as roupas de casamento do guarda- florestal dispostas na comoda. Num instante transformei-me em um noivo do século pas- Sado. Silvia aguardava-me na escada ¢ des- 40 ccemos juntos de mios dadas. A tia, quando se voltou e nos viu, soltou um grito. — Ah, meninos! — exclamou, ¢ desa- tou a chorar e ao mesmo tempo a sorrir em meio as lagrimas, Era a imagem da sua ju- ventude — cruel e encantadota aparicio! Sentamo-nos a seu lado, enternecidos & quase tristes, mas a alegria logo nos voltou, pois, passado o primeiro momento, a boa ve tha $6 pensou em recordar as festas pompo- sas do casamento, Encontrava ainda na me- méria 0 eco dos cantos alternados, entio em uso, que eram respondidos de uma extremi- dade & outra da mesa nupcial, bem como o ingénuo epitakimio que acompanhava os noivos ao se recolherem apés a danga. Repe- famos estas estrofes ritmadas de forma tao simples, com os hiatos e as assonancias da ;poca, amorosos ¢ floridos como 0 cantico do Eclesiastes; Silvia ¢ eu fomos a esposa e © esposo durante toda uma bela manha de verdo. 41 vo CHAALIS| ‘SAO quatro horas da mani: a estrada mer- gulha numa dobra de terreno; agora volta a Subir, O carro vai passar em Orry e depois em La Chapelle. A esquerda ha uma estrada {que margeia o bosque de Hallate. Foi por ai que, uma tarde o irmio de Silvia conduziu- ‘me na sua tip6ia a uma solenidade da regio. Era, creio, a tarde da festa de Sao Bartolo- 2 meu. Através dos bosques, por estradas pouco transitadas, 0 seu cavalinho voava como num sabi. Atingimos de novo o cal- amento em Mont-l’Evéque e alguns minu- fos mais tarde nos detivemos na casa do guarda, na antiga abadia de Chialis. — Cha- , mais uma recordagao! Este velho retiro dos imperadores nio oferece a admiragao mais do que as ruinas do seu claustro de arcadas bizantinas, cuja Sltima fileira recorta-se ainda sobre os'lagos — resto esquecido das fundacées piedosas que faziam parte dos dominios conhecidos outrora como as fazendas meciras de Carlos Magno. A religiéo, nese recanto afastado do movimento das estradas ¢ das cidades, conservou tragos particulares da longa per- manéncia que af tiveram os cardeais da casa de Este, na época dos Médicis: seus atribu- tos e seus usos tém ainda alguma coisa de sgalante e de postico e respira-se um perfume dda Renascenca sob os arcos das capelas com finas nervuras decoradas por artistas italia- nos. As imagens dos santos ¢ dos anjos des- tacam os seus perfis cor-de-rosa nas ab6ba- das pintadas de azul-pélido, com um certo aspecto de alegoria pag que faz lembrar as sentimentalidades de Petrarca e © misticismo fabuloso de Francesco Colonna. irmao de Silvia e eu éramos verdadei- ros intrusos na festa particular que se reali- zava nessa noite. Uma pessoa de nascimento a muito ilustre, que entio possuia esse domi tivera a idéia de convidar algumas fami locais para uma espécie de representagio alegérica, em que deviam figurar algumas pensionistas de um convento vizinho. Na fe tratava de uma reminiscéncia das tragé- dias de Saint-Cyr, mas de uma volta aos primeiros ensaios’liricos importados pela Franga no tempo dos Valois. O que vi repre- sentar era como que um mistério dos tempos antigos. Os trajes compostos de longos ves- tidos variavam apenas quanto as cores, azul, Jacinto e amarelo-aurora. A cena passava-se Entre os anjos, sobre as ruinas do mundo destruido, Cada voz cantava um dos esplen- dores deste globo extinto € o anjo da morte licava as causas da sua destruigao. Um espirito subia do abismo, empunhando a es- pada flamejante, e convocava os demais a vir admirar a gloria do Cristo vencedor dos infernos. Este espirito era Adriana transfigu- rada pelas suas vestes como ja o fora pela sta vocagio. A auréola de papeldo dourado ‘que cingia a sua cabega angelical parecia-nos muito naturalmente um circulo de luz; sua voz havia adquirido forca e extensio © os floreios infinitos do canto italiano bordavam com seus gorieios de passaro as frases auste- ras de um recitativo pomposo. ‘Ao evocar estes pormenores chego a me perguntar se so mesmo reais ou se 0s so- hei. O irmao de Silvia, nessa noite, estava “4 um pouco alcoolizado. Pardramos alguns instantes na casa do guarda, onde — o que muito me impressionou — havia um cisne de asas abertas sobre a porta ¢ logo no interior, grandes armérios de nogueira entalhada, um grande relégio no seu estojo e troféus de hon- ra, compostos de arcos e flechas por cima de um alvo de tiro vermelho e verde. Um estra- rho anao, com um chapéu chinés, segurando com uma mio uma garrafa © com a outra ‘uma argola, parecia convidar os atiradores a acertar a pontaria, Este anio, estou certo, cera de chapa de ferro fundido, Mas a apari- edo de Adriana seria t40 verdadeira quanto estas minicias e quanto a existéncia incons- testivel da abadia de Chialis? No entanto, fora o fitho do guarda que nos introduzira na sala onde se realizava a representacio; colo ‘camo-nos perto da porta, atras de um nume- oso piblico sentado ¢ ‘profundamente co- movido. Era o dia de Sio Bartolomeu — singularmente ligado 2 lembranea dos Médi- cis, cujas armas unidas as da casa de Este omavam as. velhas muralhas... Esta_lem- branga é, talvez, uma obsessio! Felizmente cis que carro para na estrada de Plessis escapo ao mundo dos sonhos © nao tenho ‘mais que um quarto de hora de marcha para aleangar Loisy através de estradas muito pouco freqiientadas. 45 vin 0 BAILE DE LOIsy CHEGUEL ao bale de Loisy nessa hora me- lancicae, todavia, suate tin que ar hs empalideceme treinem A sprodng dia As tilas, com on seus troneos at $o éscuro, adguiiam no topo unt tons seu dos. flauta campestre nao ralizva rate tio vivamente com os trnados do touxnel Todo.o mundo pido e,no meio dos grupos 46 4 desfaleados, tive dificuldade em encontrar figuras conhecidas. Por fim, avistei a enorme Lisa, uma amiga de Silvia, que me abragou. Faz tanto tempo que nao te vemos, parisiense! — disse ela, — Ah, sim, muito tempo — respondi. —E chegando agora? — Sim, pela dilige — Nao mi = Gostaria de ver Silvia; ainda esté no baile? — Deve estar, sim. Ela gosta tanto de dangar que no sairi antes de amanhecer, "Num instante, estava eu a seu lado. Seu osto demonstrava certo cansago; seus olhos negros, porém, continuavam a brilhar ‘com 0 sorriso ateniense de outrora, Um jo- vem mantinha-se junto dela. Silvia fez-Ihe um sinal de que renunciava & contradanca seguinte, e ele se retirou, com uma sauda- cio. © dia comegava a nascer. Saimos do baile, de mos dadas. As flores do penteado de Silvia pendiam sobre os seus cabelos sol- tos; 0 raminho que trazia no peito desfo- Thava-se sobre as rendas amarrotadas, bela obra de suas méos. Ofereci-me para acom- panhi-la 4 sua casa, Amanhecia, mas o fempo estava sombrio. O Théve murmurava nossa esquerda, deixando nas suas curvas redemoinhos de agua estagnada onde flores- ciam nendfares amarelos e brancos e onde a brithava, como margatidas, a frégil renda das estrelas de dgua. As planicies estavam co- bertas de feixes de espigas e de feno, cujo ‘odor me subia & cabeca sem me embriagar, ‘como outrora o cheiro fresco dos bosques & dos espinhos floridos. Nao pensamos sequer em atravessé-los de novo. "— Silvia — disse eu —, voce ji nfo me Ela suspirou: — Meu querido, é preciso conformar- se. As coisas nio acontecem na vida como ‘n6s queremos. Uma vez vocé me falou da Nova Heloisa. Pois bem, li-a e estremeci ao

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