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Universidade de São Paulo

IEB - Instituto de Estudos Brasileiros

História, Cultura Popular e Folhetos de Cordel

O BOI MISTERIOSO
DE LEANDRO GOMES DE BARROS
– ENREDO –

Débora Soares Gil de Oliveira nº USP 8024554

São Paulo, 16 de dezembro de 2016


Como bem sugere o título, a narrativa de Leandro Gomes de Barros conta a história de um boi
cercado por mistérios. Seu nascimento, precedido pelo encontro de uma vaca - também chamada
misteriosa - um touro negro e duas belas mulheres, é seguido por uma série de outros
acontecimentos sem explicação, envolvendo sumiços e aparições imprevistas. Além disso, é
sobretudo a força e habilidade de corrida do boi (que superava todos o cavalos e vaqueiros
renomados) que faz sua fama. São narradas diferentes situações em que a busca pelo bicho se dava,
contudo nunca bem sucedidas. Um boi saudável em um contexto de seca só poderia existir por
forças de alguma outra natureza.

O momento de sua morte se dá na presença de um caboclo antes desconhecido por todos, em uma
cena de encruzilhada, onde abre-se uma fenda no chão e ambos desaparecem. Surge depois uma
águia e dois urubus, que contribui junto com diversos elementos sugeridos anteriormente, para que
o mistério do boi se associe a uma força demoníaca. No fim, nada se explica, e na permanência do
mistério, o narrador conta que o coronel, antigo dono do boi, nunca mais criou gado e é inaugurada
uma espécie de lenda na qual se diz que passaram a ser vistas pelos arredores uma vaca e duas
mulheres chorando pelo acontecido.

A ideia de uma historia lendária é posta desde o inicio. O narrador antecipa que vai falar no presente
sobre um boi de tempos atras - ou, nas suas palavras, da "antiguidade" - que não conseguiu nunca
ser pego. Embora a narrativa seja linear, pois os fatos contados são revelados de maneira encadeada
temporalmente, no inicio são antecipadas pelo narrador algumas informações que serão depois
retomadas "contarei mais adiante/ como quarenta vaqueiros,/ correram atras desse boi/ quase dois
dias inteiros/ onde perdeu-se o cavalo,/ flor dos cavalos mineiros"

O começo do texto já chama a atenção do leitor para que se fixe na historia, isto é feito não só pela
via do diálogo direto: "leitor, vou narrar um fato (...)", mas pela curiosidade que o mistério desperta,
pela demonstração enfática da grandeza do boi. Essa grandeza será construída ao longo da narrativa
pelos repetidos feitos do bicho. São narradas diferentes tentativas de busca em que vaqueiros da
mais notável qualidade e quantidade se frustram. A cada tentativa que se repete, se acrescenta uma
investida maior por parte do coronel e mais elementos da coragem do vaqueiro ou da força do
cavalo que sairá a procura do bicho. Isto porque quanto mais difícil a busca, mais notável a
resistência do animal e portanto, seu caráter extraordinário.

Sobre a facilidade que o boi tem de fugir, tem se alguns exemplos:

“Na garganta de uma serra,


acharam ele deitado,
à sombra de uma arueira,
estando ele ali tão descuidado
pulou instantaneamente,
na rapidez de um veado”

“O boi com facilidade


o trancadilho rompeu,
quase no centro do vale
o vaqueiro conheceu
o cavalo ‘Perigoso”
de carreria adoeceu”

E da decepção dos vaqueiros que nunca o pegavam:

“Zé Preto do Boqueirão


foi quem mais se aproximou
inda pegou-lhe a cauda,
porém não o derrubou
ficou tão contrariado
que depois disso chorou”

A grandeza do boi, se constrói no texto também pelo recurso da listagem. Este, que é característico
do estilo narrativo de diversos cordéis, menciona os numerosos vaqueiros em determinado
momento e pouco depois, volta a nomeá-los acrescentando um apresentação de seus cavalos:

Veio Noberto de Palmeira


Ismael do Riachão,
Calisto do pé da Serra
Félix da Demarcação
Be[n]venuto do Desterro
Zé preto do Boqueirão

Noberto tinha um cavalo


chamado “Rosa do Campo”
Calisto do Pé da Serra,
um chamado “Pirilampo”
o de Apolinário “Cisne”
era da raça de pampo

O do vaqueiro Ismael
chama-se “Persiano”
o do índio Be[n]venuto
chamava-se “Soberano”
Félix tinha um poltro preto
chamado “Riso do ano”

Na mesma temática, um outro cordel de Fabião das Queimadas, tem a peculiaridade de o narrador
não ser em terceira pessoa ou um vaqueiro, mas sim um animal, algo que inverte toda a ótica da
situação. Neste caso, o uso da listagem é elaborada por via da repetição da mesma frase no inicio
de mais de uma estrofe e aparece no enredo como gerador de um efeito humorístico de deboche,
pois zomba dos cavalos que são deixados para trás:

Dê-me lembrança ao cavalo


De Zé lopes da Condessa,

Dê-me lembrança ao cavalo


Do senhor José Lebora

Dê-me lembrança ao cavalo


“Veneno” da Serrra Azu

Lembrança ao cavalo Velho


“Castanho” da Divisão

Lembrança aos vaqueiros todos


que vinham em bons cavalo
Lembrança a José Ribeiro
e também a Aureliano

Dê-me lembrança a Ovídio,


Filho do senhor Macio

Em alguma medida, é possível generalizar em diversos cordéis se apresentam algum tipo de recurso
repetitivo na sua estrutura sintática, seja lista, refrão, vocabulário e etc. Mesmo em "O Boi
Misterioso", o recurso da repetição aparece no texto de diversas maneiras e contribui para sua
extensão. Algumas vezes, para solucionar a necessidade de rima: EXEMPLO.

Os encadeamentos contribuem, em conformidade com papel das rimas, para a elaboração de um


ritmo fluente para o texto. Isto se relaciona com a proximidade do cordel com um contexto oral, em
que as repetições não são consideradas redundantes, uma vez que funcionam como recurso de
memorização. Sabe-se que era prática comum, em especial naquele momento, em razão da alta taxa
analfabetismo na população, a leitura dos folhetos em voz alta por uma pessoa diante de um grupo
de ouvintes. As próprias historias antes de serem escritas, já eram frequentemente conhecidas por
todos, com uma ou outra variação, cabendo ao poeta a arte de arranjá-las em um enredo próprio.

Este universo com características fortes de


“O leitor deve saber
do estilo do sertão, oralidade tem como pressuposto um ambiente coletivo, e isto é algo muito
presente no enredo em questão. A exemplo dos importantes eventos sociais retratados com a
situação de Vaquejada e da festa de São João:

o que não fizer fogueira


na noite de São Joã
fica odiado do povo
tem fama de má cristão”

“todas classes junto"

A quantidade de pessoas (e animais, posto que também fazem parte deste contexto compartilhado),
é notavelmente grande para uma narrativa tão breve. Mais do que isso, as pessoas que aparecem, na
maioria das vezes apenas citadas, mesmo não ganhando todas um status de personagem mais
elaborado, também cumprem papel fundamental na narrativa. Este, consiste na condução dos fatos
narrados ou, em outras palavram, são diversas pessoas quem motivam os acontecimentos e
decisões. Por exemplo, a primeira tentativa de capturar o boi, quando o dono deste ainda não se
importava com o fato, foi de "um vaqueiro", seu funcionário.

Se vaca e boi misteriosos, Coronel Sisenando, Índio, e o corajoso vaqueiro Sérgio de MG podem
compor o que chamaríamos "protagonistas", reside no plano de fundo da história um "falatório
popular", de figuras mais genéricas como "um vaqueiro" que viu ou ouviu algo, uma pessoa que
leva uma mensagem, “já tinham ido dizer na fazenda”, "um escravo", e assim por diante... É a
circulação das informações no boca a boca que esta presente ou mesmo conduz alguns dos
elementos estruturais do enredo.

Aqui, refiro a existência do próprio mistério, que é motivada desta maneira desde o primeiro
momento em que os acontecimentos sem explicação vão se espalhando, ganhando versões e
explicações das pessoas: "Isso de misteriosa/ ficou o povo a chamar,/ porque um vaqueiro disse/ viu
isso que vou narrar", “Por isso essa vaca/ diziam que era a alma/ de um boi que morreu de fome”,
“Um vaqueiro da fazenda assistiu nascer/ contou aos outros vaqueiros/ o q se tinha passado/
dizendo aquele boi/ só sendo bicho encantado”, "Tudo ali observou/ o caso como se deu,/ dizem que
a terra se abriu/ e o campo estremeceu/ pela abertura da terra/ viram quando o boi desceu"

Também quando desparece o índio: “um dizia ele morreu/ outro: que tinha caído/ outro dizia: o
vaqueiro/ arrisca ter fugido” e “a velha fiandeira vizinha diz/ conversa com boi não pode direito
ouvir” (...)

Chama a atenção neste ponto, ainda que sem aprofundamento, a maneira que é apresentada a figura
do índio, também cercada de misticismo, desde seu aparecimento enquanto figura mais velha, que
aconselha e duvida desde sempre da possibilidade de capturar o bicho e, mais uma vez, pela sua
relação com dito pelo resto da população “então o povo dizia que o índio era feiticeiro e fada pediu
que não fosse (…), transformou ele num veado galheiro”. A aproximação do índio, e mesmo do
caboclo demonstra algo que aparenta ser fruto de certo imaginário comum em relação a esse tipo
social.

Com isso, observa-se uma construção de enredo, no marco de um imaginário compartilhado, em


que o próprio mistério do boi não provém de uma narrativa de suspense, mas sim pelo relato de
fatos não explicados. E, ao serem ditos pelas pessoas, ganham proporção e mantem viva a narrativa,
enquanto transmissão de conhecimento pela via da oralidade, própria do contexto.

Nem mesmo quem narra, presenciou algo, a historia esta sendo recontada, o que está referenciado
desde o começo, na própria situação da narrativa, pois o narrador do cordel conta uma história que
fora contada para ele há 30 anos do momento da escrita do cordel: "eu estava na flor da idade,/ uma
noite conversando/ com um velho da antiguidade/ em conversa ele contou-me,/ o que viu na
mocidade". Ou seja, o ambiente de contação de historia, repassado de uma geração para outra está
retratado também no conteúdo do texto e com proposta de fidedignidade "contou-me um velho,/
cousa alguma eu acrescento"

Destaco um trecho da construção desse enredo que o discurso passa do narrador para a voz direta do
vaqueiro que viu a cena do nascimento. “Disse o vaqueiro: eu estava em cima de um arvoredo,
quando chegou esse vaca (...)” para retomar, com eficiência, o narrador mistura uma maneira
engenhosa a um certo improviso, para conduzir novamente a historia. Resume em versos “depois
veio a onça e ele atirou e ela caiu” com isso, fazendo o leitor entender que, sendo a caça o interesse
do vaqueiro, acabava também ali o que ele tinha visto no caminho pra contar.

Da mesma maneira, o narrador se faz perceber intervindo em outros momentos para mudar o rumo
do enredo: “Agora caro leitor/ entremos no conteúdo/ o livro tem pouco espaço/ para contar-se a
meúdo/ só num livro muito grande, /poderá se escrever tudo”A narrativa, contudo acaba por se
tornar relativamente longa, isso se deve a quantidade de pequenos acontecimentos que é descrito
sequencialmente, e pela maneira como são usadas as repetições e uma preocupação demasiada na
descrição temporal, com o uso de datas, horas, meses e anos, que montam a sequencia da história.

Tal preocupação é de fundamental importância para compreensão do cordel, pois nele consta que “o
caso foi em 1827” e antes, 1825, havia uma seca horrorosa. Uma seca particularmente destrutiva de
fato existiu, em um momento em que eram sucessivas no nordeste. Essa contextualização elaborada
pelo cordelista, junto com sua aparente neutralidade (uma vez que o narrador põe o ocorrido na
boca dos personagens e não na sua) somada a distância temporal entre fato e relato contribui para
gerar um tom aproximado de um relato histórico, mais confiável inclusive, devido a precisão de
datas anteriormente referida.

Em determinado momento, a palavra “historiador” aparece no próprio texto, abrindo possibilidade


para uma interpretação ambígua (profissional formado, ou apenas “quem conta uma historia”) no
entanto, mais curioso que isso é a visão positiva da ciência e do presente, porque no passado, que
situa o boi e inclui a seca, “todo a povo só conhecia o atraso”.

As profundas mudanças, característica da transição pelo qual o nordeste brasileiro passava no


período vivido por Leandro Gomes de Barros, e abrangido nos estudos de cordel de Ruth Terra,
ajudam a pensar na origem desta visão. (USAR TRECHO)

Dentro deste contexto amplo de mudanças, está um outro pequeno universo que é sertanejo e
pecuário, onde o tema do boi de da seca são recorrentes pela sua presença na vida compartilhada
por algumas pessoas do sertão nordestino, embora representem apenas um pedaço limitado também
destro desta noção, mas que é onde se pode situar um pouco do percurso do cordel. No enredo de
“O Boi Misterioso”, estão presentes e foram apontadas aqui, algumas características (com
delimitação histórica e temática) dentro da obra de Leandro Gomes de Barros, e embora não
consigam abranger em sua complexidade, oferecem uma apresentação breve, do ponto de vista
literário, com intuito de demonstrar sua amplitude.

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