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« A fuga para o real» por Slavoj Zizek

? Zizek S., A fuga para o real, In Folha de São Paulo,


Caderno MAIS, 8 de abril de 2001.

« Se pedirmos a um intelectual mediano que nos explique sumariamente “A Interpretação


dos Sonhos” (1900), de Freud, ele provavelmente dirá: para Freud, o sonho é a realização
fantasmática de algum desejo inconsciente e censurado do sonhador, o que vem a ser uma
regra da natureza sexual. Retornemos, com essa definição em mente, ao início da
“Interpretação dos Sonhos”, em que Freud oferece uma interpretação detalhada de seu
próprio sonho sobre a “injeção de Irma”: é razoável supor que Freud sabia o que estava
fazendo e escolheu cuidadosamente o exemplo que introduziria sua teoria dos sonhos.
Mas é justamente aí que damos com a primeira surpresa: a interpretação de Freud
inevitavelmente faz pensar na velha piada soviética na rádio Ierevan (“Rabinovitch
ganhou um carro novo na loteria estatal?. Em princípio, ganhou. Só que não era um carro,
era uma bicicleta; não era nova, mas velha; e ele não ganhou nada, ela foi roubada
dele!”). O sonho é a realização de um desejo sexual inconsciente do sonhador? Em
princípio, sim. Só o que o desejo no sonho que Freud escolheu para demonstrar sua teoria
dos sonhos não é nem sexual nem inconsciente e nem sequer é um desejo de Freud...

O sonho começa com uma conversa entre Freud e sua paciente Irma sobre o fracasso de
seu tratamento, por conta de uma injeção infectada. No curso da conversa, Freud
aproxima-se dela, de seu rosto, e examina sua boca aberta, dando com a visão horrível da
carne viva e rubra. Nesse ponto de horror insuportável, altera-se a tonalidade do sonho, o
horror se transforma em comédia: três médicos, amigos de Freud, aparecem e começam a

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enumerar, num ridículo jargão pseudo-profissional, as múltiplas (e contraditórias) razões
pelas quais a infecção de Irma não fora culpa de ninguém (não houvera injeção nenhuma,
a injeção estava limpa etc.). De modo que o desejo no sonho, o “pensamento latente” que
se articula nele, não era nem sexual nem inconsciente, mas sim o desejo que Freud tinha
de obliterar sua responsabilidade pelo fracasso do tratamento de Irma. Como, então, isso
se encaixa com a tese sobre a natureza sexual e inconsciente do desejo expresso nos
sonhos?

O hieróglifo onírico de Freud

É aqui que se deve introduzir uma distinção crucial: o desejo inconsciente expresso no
sonho não é o pensamento latente traduzido na textura explícita do sonho, mas sim o
desejo inconsciente que se inscreve por meio da distorção do pensamento latente na
textura explícita do sonho. Reside aí o paradoxo do trabalho onírico, do “Traumarbeit”:
queremos nos livrar de um certo pensamento premente e perturbador, do qual somos
perfeitamente conscientes, e para isso nós o distorcemos, traduzindo-o no hieróglifo
onírico; contudo, é por meio dessa distorção do pensamento onírico que um outro desejo,
bem mais fundamental, se inscreve no sonho, e esse desejo é inconsciente e sexual. No
caso da “injeção de Irma”, o próprio Freud fornece indicações sobre esse desejo
inconsciente: ele se vê como o “pai primordial”, que quer possuir as mulheres que
aparecem em seu sonho.
A tríade lacaniana — o imaginário, o real e o simbólico— pode ser de ajuda aqui. Como
vimos, o próprio Freud volta sua atenção para o pensamento onírico, para seu desejo
“superficial” (inteiramente consciente) de obliterar sua responsabilidade pelo fracasso do
tratamento de Irma; em termos lacanianos, esse desejo pertence claramente ao domínio
do imaginário. Além disso, Freud fornece algumas indicações sobre o real em seu sonho:
o desejo inconsciente do sonho é o do próprio Freud como “pai primordial”, que quer
possuir as três mulheres que aparecem no sonho. Mas isso é tudo? Lacan intervém aqui,
propondo (em seu segundo seminário) uma leitura puramente simbólica: o significado
último do sonho é simplesmente a garantia de que os sonhos têm significado, de que há
uma fórmula (da trimetilamina) que assegura a presença e a consistência do significado

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de um sonho. Mas há um outro enigma nesse sonho: de quem é o desejo que o sonho vem
realizar? Alguns documentos recentemente publicados estabelecem claramente que o
verdadeiro foco desse sonho era o desejo de salvar Fliess (amigo íntimo e colaborador
que, naquele momento, era para Freud “o sujeito que devia saber”, o objeto de sua
transferência) de qualquer culpa ou responsabilidade: Fliess era o verdadeiro culpado
pelo fracasso da operação nasal de Irma, e o desejo do sonho não é o de desculpar o
sonhador (Freud), mas o grande Outro do sonhador: trata-se de demonstrar que o outro
não era culpado de erro médico, que seu conhecimento não era insuficiente — em suma,
que o imperador não estava nu. Assim sendo, o sonho de fato realiza o desejo de Freud,
mas apenas na medida em que seu desejo já é o desejo do Outro (Fliess). Chegamos à
fórmula bem conhecida de Lacan: o desejo é o desejo do Outro.

Para que se tenha uma idéia do alcance de “A Interpretação dos Sonhos”, é preciso
acrescentar mais uma complicação: por que sonhamos? A resposta de Freud é
enganosamente simples: a função última do sonho é permitir que o sonhador prolongue
seu sono. Em geral, aplica-se essa fórmula aos sonhos que temos logo antes do despertar,
quando alguma perturbação externa (ruídos) ameaça nos acordar. Numa tal situação, o
sujeito rapidamente imagina, sob a forma de sonho, uma situação que incorpora o
estímulo externo e assim consegue prolongar o sono por mais algum tempo; quando o
sinal externo se faz forte demais, ele finalmente desperta... Mas serão as coisas tão
simples assim? Em outro sonho de “A Interpretação dos Sonhos”, a propósito de um
despertar, um pai cansado, que passara a noite ao lado do caixão de seu filhinho, cai no
sono e sonha que seu filho se aproxima envolto em chamas, dirigindo-lhe a terrível
reprimenda: “Pai, não vê que estou ardendo?”. Logo depois, o pai desperta e descobre
que uma vela caída incendiara o sudário do filho: a fumaça que ele detectara enquanto
dormia fora incorporada ao sonho de modo a prolongar seu sono. Quer dizer então que o
pai despertou quando o estímulo externo (fumaça) se tornou forte demais para caber no
cenário onírico? Mas não terá ocorrido o contrário? O pai constrói o sonho de modo a
prolongar seu sono, isto é, de modo a evitar o despertar desagradável; mas o que ele
encontra no sonho é a questão literalmente candente. O espectro sinistro de seu filho que
o repreende é muito mais insuportável que a realidade externa, de modo que o pai

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desperta, escapa para a realidade externa. Por quê? Para continuar a sonhar, para evitar o
trauma insuportável de sua própria culpa pela morte de seu filho.

Encontro traumático De modo a captar o peso do paradoxo, comparemos esse sonho ao


da injeção de Irma. Em ambos há um encontro traumático (a visão da carne rubra de
Irma, a visão do filho em chamas); mas no segundo sonho o sonhador desperta nesse
ponto, ao passo que no primeiro o horror é substituído pelo espetáculo vazio das
desculpas profissionais. Esse paralelo nos fornece a chave para a teoria freudiana dos
sonhos: o despertar no segundo sonho (o pai desperta para a realidade de modo a escapar
do horror de seu sonho) tem a mesma função que a virada cômica no primeiro, isto é,
nossa realidade comezinha tem precisamente a estrutura desse diálogo vazio que nos
permite evitar o encontro com o verdadeiro trauma. E é claro que isso nos conduz a mais
uma distinção lacaniana, desta vez entre a realidade e o real traumático.

No cenário ligeiramente diverso do segundo sonho de Freud, pode-se facilmente imaginar


um sobrevivente do Holocausto sonhando que seu filho morto (que ele não pudera salvar
do crematório) vem assombrá-lo com a reprimenda: “Pai, não vê que estou ardendo?”.
Em “É Isto um Homem?”, Primo Levi dá um outro final a esse sonho e se lembra de
como descobriu, para seu espanto, que a maioria dos prisioneiros de Auschwitz tinha um
mesmo sonho: depois de sobreviver miraculosamente ao campo, estão em casa, contando
suas experiências terríveis para amigos e familiares quando subitamente notam que os
ouvintes estão completamente indiferentes e entediados, conversando entre si como se o
sobrevivente não estivesse ali ou simplesmente houvesse abandonado a mesa. Essa cena
repetida da “história-que-ninguém-escuta” não nos conduz ao fato de que “o grande
Outro não existe”, que não há testemunha ideal disposta a registrar nossa experiência?
Assumir a inexistência do grande Outro é, para Lacan, a fórmula última do materialismo.
Em nossa cultura secular, pós-tradicional, hedonística e oficialmente atéia, na qual
ninguém está pronto a confessar publicamente suas crenças, a estrutura subjacente à
crença é particularmente ubíqua: todos nós acreditamos, secretamente. A posição de
Lacan é clara e inequívoca: “Deus é inconsciente”, ou seja, é natural que as criaturas
humanas sucumbam à tentação da crença. A predominância da crença, o fato de que a

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necessidade de acreditar é consubstancial à subjetividade humana, é o que torna
problemático o argumento padrão invocado pelos crentes de modo a desarmar seus
oponentes: só quem acredita é capaz de entender o que isso significa, o que a priori
desqualifica os ateus que argumentam contra a crença... Mas a premissa é falsa: o ateísmo
não é o grau zero que qualquer um poderia entender, uma vez que ele significa apenas a
ausência de (crença em) Deus — e talvez não haja nada mais difícil do que sustentar essa
posição, do que ser um verdadeiro materialista. Na medida em que a estrutura da crença é
a mesma da cisão e da rejeição fetichistas (“Sei que não há nenhum grande Outro, mas
mesmo assim... acredito secretamente nele”), só o psicanalista que endossa a inexistência
do grande Outro é um verdadeiro ateu. Até mesmo os stalinistas eram crentes, na medida
em que sempre invocaram o Juízo Final da história, que determinaria o “sentido objetivo”
de nossos atos. Até mesmo um transgressor radical como Sade não era um ateu
conseqüente: a lógica secreta de sua transgressão é um ato de desafio a Deus, isto é, a
inversão da lógica padrão da cisão fetichista: “Muito embora saiba que Deus existe, estou
pronto a desafiá-lo, a violar suas proibições, a agir como se ele não existisse!”. Fora da
psicanálise (a freudiana, em contraste com o desvio junguiano), Heidegger foi
provavelmente o único que, em “Ser e Tempo”, desdobrou a noção atéia de existência
humana em um horizonte finito e contingente, com a morte como possibilidade última.
Em seu vigésimo seminário, Lacan propõe uma visão da economia libidinal de nossas
sociedades capitalistas tardias ao falar da proliferação de sintomas, dos tiques particulares
e contingentes que dão corpo ao gozo e que estão mais bem exemplificados pelos
inumeráveis aparelhos com os quais a tecnologia nos bombardeia todos os dias. Na
perversão generalizada do capitalismo tardio, a própria transgressão é solicitada, somos
bombardeados com aparelhos e formas sociais que não apenas nos permitem viver com
nossas perversões mas também conjuram diretamente novas perversões. »

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