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O sonho começa com uma conversa entre Freud e sua paciente Irma sobre o fracasso de
seu tratamento, por conta de uma injeção infectada. No curso da conversa, Freud
aproxima-se dela, de seu rosto, e examina sua boca aberta, dando com a visão horrível da
carne viva e rubra. Nesse ponto de horror insuportável, altera-se a tonalidade do sonho, o
horror se transforma em comédia: três médicos, amigos de Freud, aparecem e começam a
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enumerar, num ridículo jargão pseudo-profissional, as múltiplas (e contraditórias) razões
pelas quais a infecção de Irma não fora culpa de ninguém (não houvera injeção nenhuma,
a injeção estava limpa etc.). De modo que o desejo no sonho, o “pensamento latente” que
se articula nele, não era nem sexual nem inconsciente, mas sim o desejo que Freud tinha
de obliterar sua responsabilidade pelo fracasso do tratamento de Irma. Como, então, isso
se encaixa com a tese sobre a natureza sexual e inconsciente do desejo expresso nos
sonhos?
É aqui que se deve introduzir uma distinção crucial: o desejo inconsciente expresso no
sonho não é o pensamento latente traduzido na textura explícita do sonho, mas sim o
desejo inconsciente que se inscreve por meio da distorção do pensamento latente na
textura explícita do sonho. Reside aí o paradoxo do trabalho onírico, do “Traumarbeit”:
queremos nos livrar de um certo pensamento premente e perturbador, do qual somos
perfeitamente conscientes, e para isso nós o distorcemos, traduzindo-o no hieróglifo
onírico; contudo, é por meio dessa distorção do pensamento onírico que um outro desejo,
bem mais fundamental, se inscreve no sonho, e esse desejo é inconsciente e sexual. No
caso da “injeção de Irma”, o próprio Freud fornece indicações sobre esse desejo
inconsciente: ele se vê como o “pai primordial”, que quer possuir as mulheres que
aparecem em seu sonho.
A tríade lacaniana — o imaginário, o real e o simbólico— pode ser de ajuda aqui. Como
vimos, o próprio Freud volta sua atenção para o pensamento onírico, para seu desejo
“superficial” (inteiramente consciente) de obliterar sua responsabilidade pelo fracasso do
tratamento de Irma; em termos lacanianos, esse desejo pertence claramente ao domínio
do imaginário. Além disso, Freud fornece algumas indicações sobre o real em seu sonho:
o desejo inconsciente do sonho é o do próprio Freud como “pai primordial”, que quer
possuir as três mulheres que aparecem no sonho. Mas isso é tudo? Lacan intervém aqui,
propondo (em seu segundo seminário) uma leitura puramente simbólica: o significado
último do sonho é simplesmente a garantia de que os sonhos têm significado, de que há
uma fórmula (da trimetilamina) que assegura a presença e a consistência do significado
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de um sonho. Mas há um outro enigma nesse sonho: de quem é o desejo que o sonho vem
realizar? Alguns documentos recentemente publicados estabelecem claramente que o
verdadeiro foco desse sonho era o desejo de salvar Fliess (amigo íntimo e colaborador
que, naquele momento, era para Freud “o sujeito que devia saber”, o objeto de sua
transferência) de qualquer culpa ou responsabilidade: Fliess era o verdadeiro culpado
pelo fracasso da operação nasal de Irma, e o desejo do sonho não é o de desculpar o
sonhador (Freud), mas o grande Outro do sonhador: trata-se de demonstrar que o outro
não era culpado de erro médico, que seu conhecimento não era insuficiente — em suma,
que o imperador não estava nu. Assim sendo, o sonho de fato realiza o desejo de Freud,
mas apenas na medida em que seu desejo já é o desejo do Outro (Fliess). Chegamos à
fórmula bem conhecida de Lacan: o desejo é o desejo do Outro.
Para que se tenha uma idéia do alcance de “A Interpretação dos Sonhos”, é preciso
acrescentar mais uma complicação: por que sonhamos? A resposta de Freud é
enganosamente simples: a função última do sonho é permitir que o sonhador prolongue
seu sono. Em geral, aplica-se essa fórmula aos sonhos que temos logo antes do despertar,
quando alguma perturbação externa (ruídos) ameaça nos acordar. Numa tal situação, o
sujeito rapidamente imagina, sob a forma de sonho, uma situação que incorpora o
estímulo externo e assim consegue prolongar o sono por mais algum tempo; quando o
sinal externo se faz forte demais, ele finalmente desperta... Mas serão as coisas tão
simples assim? Em outro sonho de “A Interpretação dos Sonhos”, a propósito de um
despertar, um pai cansado, que passara a noite ao lado do caixão de seu filhinho, cai no
sono e sonha que seu filho se aproxima envolto em chamas, dirigindo-lhe a terrível
reprimenda: “Pai, não vê que estou ardendo?”. Logo depois, o pai desperta e descobre
que uma vela caída incendiara o sudário do filho: a fumaça que ele detectara enquanto
dormia fora incorporada ao sonho de modo a prolongar seu sono. Quer dizer então que o
pai despertou quando o estímulo externo (fumaça) se tornou forte demais para caber no
cenário onírico? Mas não terá ocorrido o contrário? O pai constrói o sonho de modo a
prolongar seu sono, isto é, de modo a evitar o despertar desagradável; mas o que ele
encontra no sonho é a questão literalmente candente. O espectro sinistro de seu filho que
o repreende é muito mais insuportável que a realidade externa, de modo que o pai
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desperta, escapa para a realidade externa. Por quê? Para continuar a sonhar, para evitar o
trauma insuportável de sua própria culpa pela morte de seu filho.
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necessidade de acreditar é consubstancial à subjetividade humana, é o que torna
problemático o argumento padrão invocado pelos crentes de modo a desarmar seus
oponentes: só quem acredita é capaz de entender o que isso significa, o que a priori
desqualifica os ateus que argumentam contra a crença... Mas a premissa é falsa: o ateísmo
não é o grau zero que qualquer um poderia entender, uma vez que ele significa apenas a
ausência de (crença em) Deus — e talvez não haja nada mais difícil do que sustentar essa
posição, do que ser um verdadeiro materialista. Na medida em que a estrutura da crença é
a mesma da cisão e da rejeição fetichistas (“Sei que não há nenhum grande Outro, mas
mesmo assim... acredito secretamente nele”), só o psicanalista que endossa a inexistência
do grande Outro é um verdadeiro ateu. Até mesmo os stalinistas eram crentes, na medida
em que sempre invocaram o Juízo Final da história, que determinaria o “sentido objetivo”
de nossos atos. Até mesmo um transgressor radical como Sade não era um ateu
conseqüente: a lógica secreta de sua transgressão é um ato de desafio a Deus, isto é, a
inversão da lógica padrão da cisão fetichista: “Muito embora saiba que Deus existe, estou
pronto a desafiá-lo, a violar suas proibições, a agir como se ele não existisse!”. Fora da
psicanálise (a freudiana, em contraste com o desvio junguiano), Heidegger foi
provavelmente o único que, em “Ser e Tempo”, desdobrou a noção atéia de existência
humana em um horizonte finito e contingente, com a morte como possibilidade última.
Em seu vigésimo seminário, Lacan propõe uma visão da economia libidinal de nossas
sociedades capitalistas tardias ao falar da proliferação de sintomas, dos tiques particulares
e contingentes que dão corpo ao gozo e que estão mais bem exemplificados pelos
inumeráveis aparelhos com os quais a tecnologia nos bombardeia todos os dias. Na
perversão generalizada do capitalismo tardio, a própria transgressão é solicitada, somos
bombardeados com aparelhos e formas sociais que não apenas nos permitem viver com
nossas perversões mas também conjuram diretamente novas perversões. »