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Hélène Beltombe
Capítulo 8
Sonhos de crianças
1
Freud S. A interpretação dos sonhos, volume I. (Tradução do alemão de Renato Zwick). Porto Alegre: L &
PM. 2018, p. 143.
2
Ibid, p.148.
3
Freud S., Introduction à la psychanalyse, Paris, Payot, 1971, p. 78.
4
Ibid.
5
Ibid., p.201.
ALÉM DO SENTIDO, A ABORDAGEM DO REAL
Após, com o Seminário XI, não é mais tanto o sentido que conta, mas o que ele vela, a
saber “um encontro ao qual somos sempre chamados, com um real que escapole7”. E ele toma
então, por exemplo, este sonho que Freud registrou, em A interpretação dos sonhos, do qual ele
extrai este questionamento: “Pai, não vês que estou queimando?8” A primeira ideia que vem ao
ler o texto deste sonho é o pai, quem produz este sonho, realiza o desejo que a criança esteja
sempre perto dele e lhe fale que não está morta. Há um real velado por este desejo que se trata
de ler para restituir ao sujeito a questão que ele coloca graças ao seu sonho: se o pai acorda
durante este sonho, não é somente por causa da inquietude que ele sente ao ouvir um barulho
estranho no cômodo ao lado onde um idoso está encarregado de velar uma criança morta e
onde uma vela parece ter caído acesa sobre o corpo da criança, porque o idoso adormeceu, é
principalmente porque seu sonho contém uma mensagem que ele atribui à criança, uma
mensagem designando sua posição subjetiva em relação à morte de sua criança. Lacan a formula
assim: “Não será que nessas palavras passa a realidade faltosa que causou a morte da criança9?”
“Assim, o encontro, sempre faltoso, se deu entre o sonho e o despertar10.” Esta observação
conduz Lacan a concluir: “O sonho [para Freud] é apenas uma fantasia preenchendo uma
aspiração [...], o filho morto pegando seu pai pelo braço, visão atroz, designa um mais além que
se faz ouvir no sonho. O desejo aí se presentifica pela perda imajada ao ponto mais cruel, do
objeto. É no sonho somente que se pode dar esse encontro verdadeiramente único.11” Em seu
Seminário III, Lacan já enfatizava a este respeito a importância do “termo, umbigo, é empregado
por Freud para designar o ponto em que o sentido do sonho parece acabar num buraco, um nó,
além do qual é verdadeiramente no cerne do ser que parece se prender o sonho12”.
UM SONHO DE CRIANÇA
Tomemos um sonho de criança, aquele de Anna, a filha de Freud, registrado por ele em
A interpretação dos sonhos, dando-o como exemplo um sonho no qual se pode diretamente ler
a realização de um desejo: ela tinha sido posta em dieta no dia anterior, após vomitar. No meio
de um sono agitado, na madrugada que se segue, ela gritou: “Anna F.eud, mo.angos, mo.angos
g.andes, flan, mingau13!” (no original: Anna F.eud, f.aises, g.osses f.aises, flan, bouillie).
6
Lacan J., O Seminário, Livro I, Os escritos técnicos de Freud. Trad. Betty Milan. Rio de Janeiro: Zahar, 2009,
p. 9-10.
7
Lacan J., O Seminário, Livro XI, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Trad. M. D. Magno. Rio
de Janeiro: Zahar, 2008, p. 59.
8
Freud S., L’interpretation des rêves, op. cit., p.57.
9
Lacan J., O Seminário, Livro XI, op. cit., p.62.
10
Ibid. p. 63.
11
Ibid., p.63.
12
Lacan J., O Seminário, Livro III, As psicoses. Trad. A. Menezes. Rio de Janeiro: Zahar, 1988, p. 302.
13
Freud S., L’interprétation des rêves, op. cit., p.120.
Em seu Seminário II, Lacan mostra que este sonho não é uma simples satisfação de uma
vontade que não tinha sido realizada no dia. Ele destaca que “o desejo do sonho, como do
sintoma, é um desejo sexual. [...] Quando a criança desejou cerejas durante o dia, ela não sonha
apenas com cerejas. Anna Freud sonha também com pudim, com bolo... com refeições
pantagruélicas [...] Mesmo o mais simples dos desejos é muito problemático14”.
Além disso, nesta sucessão de palavras, há uma ordem: o nome do sujeito que sonha,
Anna, seguido de seu nome de família que tem um lugar primordial e é uma letra de seu
sobrenome que falta nas palavras que se seguem. O sobrenome, através desta letra faltante, se
infiltrou nas palavras que concernem o desejo do sujeito. Freud interpreta o lugar do sobrenome
no início da frase como a tomada da posse de um menu desejável. Ele interpreta a insistência
“duas formas de morango [como] uma manifestação contra a polícia sanitária doméstica” que
“tinha colocado sua indisposição na conta de uma grande refeição feita de morangos; ela tinha
no sonho sua revanche sobre esta avaliação inoportuna15”. Lacan destaca que estes objetos
estão numa “função posicional que os coloca em posição de equivalência16”. E o nome no início
da ordem das palavras marca a lei, organiza a cadeia de significante. Ele puxa uma lei geral sobre
os sonhos que são todos da ordem desta articulação metonímica que é também a mesma
articulação do desejo. É só sobre esta base metonímica que se articula a lei ao desejo, que a
metáfora pode se produzir. Se os sonhos de crianças podem parecer mais claros, é justamente
porque eles são mais próximos da articulação metonímica ligada ao objeto do desejo. De fato,
as “imagens do sonho que intervêm numa escrita, isto é, não para serem lidas, mas
simplesmente para trazerem ao que deve ser lido, um expositor sem o qual isto continuaria
sendo enigmático17”.
“O que deve ser lido”, isto quer dizer o que se manifesta no plano simbólico a partir de
uma imagem. É toda a questão da relação entre o objeto e o significante. A criança faz apelo a
um objeto e “se o apelo é fundamental, fundador na ordem simbólica, é na medida em que
aquilo que é chamado pode ser rejeitado. O apelo já é uma introdução, totalmente engajada na
ordem simbólica, à palavra. [...] O apelo se faz escutar quando o objeto não está lá. Quando está
lá, o objeto se manifesta essencialmente como sendo apenas sinal do dom, isto é, como nada
em termos de objeto de satisfação. Ele está lá justamente para ser rejeitado na medida em que
é este nada. Este jogo simbólico tem, portanto, um caráter fundamentalmente decepcionante.
[...] A criança anula o que há de decepcionante no jogo simbólico, na captura oral do objeto real
de satisfação, no caso, o seio. O que a adormece nessa satisfação é justamente sua decepção,
sua frustração, a recusa que, na ocasião, ela experimentou. [...] Vejam o sonho, pretensamente
arqui-simples, que é o sonho infantil, aquele, por exemplo, da pequena Anna Freud. Ela diz em
sonho: Framboesa, flan, etc. Todos estes objetos são para ela objetos transcendentes. Eles já
entraram, doravante, na ordem simbólica, e tão bem que são todos, justamente, objetos
interditos. [...] O que se mantém no sonho como um desejo, certamente expresso sem disfarce,
14
Lacan J., O Seminário, Livro II, O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. Trad. M. C. Laznik
Penot e A. L. Quinet. Rio de Janeiro: Zahar, 2010 1978, pp. 305-306. Pantagruel é um personagem gigante
de romances de Rabelais, séc. XVI.
15
Freud S., L’interprétation des rêves, op.cit., p.120.
16
Lacan J., O Seminário, Livro III, op. cit., p. 267.
17
Ibid., p. 289.
mas com toda a transposição da ordem simbólica, é o desejo do impossível18”19, com a finalidade
de entreter o desejo da insatisfação que é característico da estrutura histérica.
Assim, enquanto no sonho de sua filha Anna, Freud põe na frente a vontade de gozo que
se fixa no sonho sobre o plano oral para compensar a satisfação que tinha sido impossível de ser
saciada no dia anterior, Lacan destaca a exigência do sujeito de deslocar a questão ao nível
simbólico: há equivalência metonímica entre seu nome e seus objetos do desejo, o que dá aos
objetos seu valor eminentemente simbólico de desejo impossível à altura do sujeito enquanto
nomeado, habitado pela falta, e não mais como satisfação imaginária de uma necessidade.
Deste modo, a interpretação do sonho permite decifrar o sentido sexual, mas além disso,
confronta com o fato de que não há relação sexual, o que leva Lacan a dizer: “Lá está o real que
comanda, mais do que qualquer outra coisa, nossas atividades, e é a psicanálise que o designa
para nós20”.
Tradução de Bruna Rafaele, sem autorização da autora, para uso exclusivo no Seminário
Psicanálise com Crianças e Sexualidade Feminina, coordenado na Escola Brasileira de Psicanálise
- Seção Rio por Ana Martha Wilson Maia (EBP/ AMP)
18
Lacan J., O Seminário, Livro IV, A relação de objeto, Rio de Janeiro, Zahar, 1995, p. 186.
19
Nota da tradutora: Na citação do texto original de Lacan, está escrito “cereja” e “flanco” ao invés da
tradução empregada pela editora Zahar, framboesa e flan.
20
Lacan J., O Seminário, Livro XI, op. cit., p. 65.