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“Pai não vês que estou queimando?

” – Encontro com o
real entre o sonho e o despertar
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e-o-despertar/

Fernanda Costa-Moura – 2000

Freud acabava de escrever A Interpretação dos Sonhos, obra que forneceria “uma base segura para a teoria do
inconsciente” e poderia prover-lhe um “método de abordagem”: o sonho, a via régia. Depois de dois anos de
trabalho intenso, permeado por hesitações, interrupções e dificuldades pessoais ligadas a auto-análise, o livro
iria culminar, finalmente, no capítulo final sobre a psicologia dos processos oníricos – escrito “como num sonho”
(2) , em apenas duas semanas do ano de 1898. E eis que, justamente neste ponto, Freud – que ao longo da

obra tinha se perguntado laboriosamente sobre a natureza dos desejos manifestados no sonho e terminara por
concluir pela tese famosa de que o sonho realizava um desejo inconsciente para que o sujeito pudesse
continuar dormindo, – escolhe para introduzir sua “psicologia”, do modo mais enigmático, o relato indireto de um
sonho de fonte desconhecida – um sonho de angústia, destinado a despertar o sonhador.

Trata-se do sonho que ficou conhecido pela frase cortante que ele faz ressoar – “Pai, não vês que estou
queimando?” (3) Com este sonho – “cujo sentido” para Freud “está dado sem disfarce” (4) , mas o qual, ele
reconhece, “conserva as características essenciais pelas quais os sonhos diferem notavelmente dos
pensamentos de vigília e engendram em nós a necessidade de explica-los” – Freud passa além dos problemas
da interpretação que até então tinham sido seu objeto, e chega mesmo a advertir o leitor: aqui acaba o caminho
fácil.

“[...] por todos os caminhos que empreendemos até agora, chegamos à luz, ao esclarecimento, à compreensão
[...] a partir deste momento (em que pretendemos penetrar mais a fundo nos processos anímicos envolvidos no
sonho) todas as sendas desembocam na obscuridade. Tropeçamos na impossibilidade de esclarecer o sonho
como fato psíquico, [...] pois não há nenhum conhecimento psicológico a que pudéssemos subordinar o que
cabe distinguir [...] a partir do exame psicológico dos sonhos.” FREUD, S., 1900 A Interpretação dos sonhos;
p.506 AE – interpolação e grifo do autor.

Apesar da engenhosa interpretação que corrobora e coroa sua tese – a de que mesmo um sonho como este,
essencialmente traumático realizava afinal o desejo do sonhador de prolongar, ainda que por um breve
momento, a vida do filho que o pai não pode salvar – Freud deixa no ar um mistério: por que, ele pergunta,
sobreveio o sonho como resultado da percepção do clarão da luz das chamas – que efetivamente consumiam
já o corpo do jovem morto no quarto ao lado – quando o mais indicado teria sido o despertar?

A partir deste ponto que restou em suspenso no texto de Freud – e já ali relacionado à defasagem entre “a vida
conscientemente percebida do dia” e uma “atividade psíquica que permanece inconsciente” e que só pode se
fazer notar durante o sonho – Lacan retoma o relato do sonho para falar da relação do sujeito a esta defasagem
que lhe afeta, mas de que ele não se apropria e para ressaltar o encontro com o real que se dá como o átimo
que quase não há entre o sonho e o despertar.

Procuro repousar, conta-nos Lacan (e aqui ele fala em primeira pessoa), batem à porta, com as batidas faço um
sonho, um sonho que manifesta outra coisa que não essas batidas, outra cena, da qual desperto de modo a
reconstituir “em torno” das batidas na porta, diz Lacan, a rotina das representações – e sei que estou Knocked;
enfim, desperto. Porém, pergunta Lacan: O que sou eu (5) antes que eu [não] desperte? O que se passa neste
momento que ele nota, é imediatamente anterior e tão afastado, daquele em que finalmente volto à rede, ao
automaton das representações?

Lacan faz depender o próprio surgimento da realidade representada “ao fenômeno, à distância, à hiância
mesma que constitui o despertar”. No só-depois da batida do despertar – na medida em que minha consciência
se reconstitui em torno das batidas na porta e que, num “reflexo involutivo” só encontro lá minha própria
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representação (“é apenas minha representação que eu apreendo”) – e passo a só poder me sustentar numa
relação com a representação. O despertar faz de mim, aparentemente, apenas consciência.

Antes porém que eu [não] desperte, meu próprio modo de presença é este não – que Lacan diz que não é
expletivo – que é antes um excesso na linguagem, excesso negativizado, elemento dispensável à comunicação,
e que por isso mesmo, traduz, indica a implicação, a paradoxal presença do sujeito na sua fala.

É assim com o sonho do pai infeliz que dorme no quarto ao lado do filho morto. Lacan diz que se trata de um
encontro do sujeito com aquilo que faz a sua condição. Tropeço, encontrão, fisgamento “entre aquele que dorme
ainda e cujo sonho não conheceremos e aquele que só sonhou para não despertar”.

Entre o sonho e o despertar é o desejo como hiância que se presentifica para este pai através do encontro
inesperado com o que mal chega a ser percebido, com este ponto que é ao mesmo tempo evanescente e o
mais real (“ponto mais cruel do objeto”), com uma realidade que “permanece sempre em seu lugar”, sob o giro, o
automaton dos significantes.

É por essa apreensão de algo fugidio que no entanto aguarda en souffrance e só se mostra à consciência a
posteriori, como representação, que o sujeito desperta. E é por isso que Freud tem problemas com este sonho
– porque ele desperta o sonhador, ele não satisfaz a tese do sonho guardião do sono.

Antes que ele [não] desperte – aí neste [não] que não se diz, que é apenas pontilhado, aí mesmo se encontra o
sonhador. E se ele finalmente desperta, faz ver Lacan, não é pelo barulho, pelo choque, oknocking de um clarão
feito para chamá-lo ao real. Antes é este barulho que traduz (dá palavra, imagem, representação) algo que se
passa e desperta, não o sujeito, mas uma outra realidade que se mostra no sonho – a realidade que se introduz
com a frase eloqüente: “Pai, não vês, que estou queimando?”

Lacan indica que há mais realidade nesta mensagem que o sonho é – (que ele veicula, imaginariza, encena) –
do que no barulho pelo qual o pai, então desperto, afinal identifica o que se passa no quarto ao lado. É portanto
esta outra realidade – uma realidade que se passa na ruptura entre percepção e consciência, que constitui o
inconsciente – essa Outra cena é que desperta o sujeito.

E que realidade é esta, mais real que o barulho ou o clarão das chamas? Lacan responde dizendo que é uma
realidade que queima – a partir da frase que a introduz e que é “ela própria uma tocha” ateando fogo no que
está en souffrance aguardando “por baixo” (Unterlegt, Untertragen), “no real”. O sonho queima – trata-se de um
sonho de angústia – por fornecer a esta outra realidade, ao real foracluído do simbólico uma imagem: “perda
imajada no ponto mais cruel”. Por homenagear a realidade faltosa que causou a morte da criança ao repetir,
retomando, em relação ao que se passa ao lado, este inevitável “tarde demais” que acompanha a ação do pai
em direção a seu filho. E pela falha do pai se paga com angústia.

“A ação por mais pressurosa [pressante – (também rápida, urgente)] que ela seja, conforme toda
verossimilhança, de acudir o que se passa na peça vizinha – não é ela talvez também sentida como de todo
modo, agora, tarde demais – em relação ao de que se trata, à realidade psíquica que se manifesta na frase
pronunciada? O sonho prosseguido, não é ele a homenagem à realidade faltosa – a realidade que não pode
mais se dar a não ser repetindo-se infinitamente, num infinitamente jamais atingido despertar?”

“Ninguém pode dizer o que seja a morte de um filho – senão o pai enquanto pai”, diz Lacan, e completa: “isto é,
nenhum ser consciente” (6)

Entendo que este “pai enquanto pai” não se confunde com nenhum ser consciente porque “enquanto pai” ele
opera uma transmissão, ele é efetivamente relais. A representação do sujeito na maquinaria do sonho, podemos
dize-lo com Lacan, está na imagem da criança – que pede, que puxa, que fustiga o pai. Do outro lado o que há
é, não um outro sujeito (o pai como o ser consciente que cumpre esta função), mas os objetos que podem
causá-lo,– o olhar e a voz emoldurados pela porta do quarto contíguo deixada aberta. A criança tem seu lugar
na transmissão, mas neste sonho trágico o que desperta, o que se faz ouvir é o fracasso do pai – no ponto
mesmo em que esta transmissão é interrompida pelo irredutível do real da morte. “Deus é inconsciente” afirma
Lacan, neste ponto, corrigindo Freud – que protege o pai, a ponto de sonhar que “ele estava morto e não
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sabia”. A defasagem que há aí é inassimilável.

No sonho se vê que todas as lembranças e associações que Freud especula que poderiam estar ligadas a ele,
todas as imagens sobredeterminadas, todas as cadeias significantes que compõem o sonho – como diz Freud
– numa árvore genealógica apontam, repetem a realidade deste ponto não simbolizável. “Umbigo” para onde os
sonhos convergem – e que neste sonho representa-se na morte como limite que só pode ser concebido no
campo da fala e na linguagem através de repetições que desfazem insistentemente o tecido da cadeia dos
significantes.

Essa realidade que se repete, que permanece “por baixo”, en souffrance é o que faz deste sonho o “avesso da
representação” de que fala Lacan. O sonho não é apenas uma fantasia preenchendo um voto, uma aspiração.
Antes ele dá lugar ao real nesse encontro vivo, necessariamente faltoso, com o filho morto. Real que se deu
unicamente na medida em que a chama, a angústia, vindo como por acaso (tiquê) a se juntar ao corpo inerte do
filho morto causou o sonho que testemunhou pelo sujeito – “neste mundo sonolento” – que a voz, se fez ouvir
na invocação do olhar do pai (“Pai, não vês?” Estou queimando).

É pois o encontro do barulho/clarão, eventos em si mesmos contingentes e banais, com um significante que faz
o sonho – o “queimando” que evoca a Freud a febre da criança – que adquire a posteriori valor traumático. O
traumatismo indicando que se trata, neste encontro com o real, de desejo. Encontro faltoso sem sentido
imanente.

O desejo portanto emerge no sonho não pelo breve prolongamento da vida do filho na fantasia, no voto do pai;
mas por esta “perda imajada” – por este gesto com o qual o filho, pegando seu pai pelo braço, designa um real
que se faz ouvir no sonho (7) .

Mas se o sonho como rito significante pode promover este encontro com o que está mais-além da
representação – o desejo, o real – é inevitável, por outro lado, a constatação de Lacan de que despertamos
dele para continuar dormindo. Somos todos feitos do que é feito o sonho – diz uma quadrinha de Shakespeare
(8) . E despertamos para evitar o encontro com aquilo que nos causa e reencontrar na realidade a fantasia que
vela o choque do real. Escapulimos, deixamos, nos esquivamos de nosso lugar na transmissão – lugar do
sujeito diante do que lhe causa, lugar que é defasagem, angústia – até que a repetição de uma vela pondo fogo
no corpo nos lance no desejo de que somos feitos.

Notas

1. Trabalho que terminou por se constituir na abertura propriamente dita da Jornada do Tempo Freudiano sobre
o Seminário Os quatro conceitos, pois foi apresentado, em outubro de 2000, como trabalho preparatório para o
encontro com o Cartel para a América Latina, da Association freudienne internationale, que se realizou em
novembro de 2000, no Rio de Janeiro, na sede do Tempo Freudiano.
2. FREUD,S. em carta a Fliess, 20/06/1898.
3. Cf. o relato do sonho na introdução ao Capítulo VII de A Interpretação dos Sonhos (1900); ESB vol. Ve AE.
vol. V p. 504.
4. Ibid. p. 505 AE
5. LACAN,J. (1964) Seminário Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, p.58; Ed. Zahar. [“il me faut
bien m’interroger sur ce que je suis à ce moment-lá” (p. 67 ed. de bolso Seuil– grifo meu). Este “ ce que je suis”
foi traduzido em português por “como eu estou”.
6. LACAN,J. Op. Cit. p. 60.
7. E é neste sentido, aponta Lacan, que Freud pode encontrar aí uma confirmação da sua teoria do desejo,
mesmo que o sonho traumático contradiga a tese mais evidente do sonho como garante do desejo de dormir.
8. Trata-se de uma quadrinha da peça A Tempestade: “We are made of such stuff / as dreams are made of / and
our little life / is rounded with a sleep.”

Trabalho publicado na Revista Tempo Freudiano No 1 , maio de 2002:


O Seminário de Lacan: travessia – Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise.

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