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_10 NOVEMBRO. 2023

SONHOS E FANTASMAS[1] NA
CRIANÇA
_Daniel Roy

Introdução à 8a jornada do Institut


psychanalytique de l'Enfant du Champ
freudien *

Tenho o prazer de apresentar-lhes o


tema da próxima Jornada de estudo do
Instituto Psicanalítico da Criança do
Campo Freudiano. Como acontece a
cada dois anos, ele resulta de um
intercâmbio com Jacques-Alain Miller
Obra: "Entrando"
e este ano, dentre as temáticas que Artista visual-fotógrafa: Valeria Paula Erlijman
circularam, a preferência ficou com:
"Sonhos e fantasmas na criança".

Um diferencial
Por que essa preferência? Nesse título, se evidencia um diferencial fenomenológico
entre sonho e fantasma que cabe a nós esclarecer.

De fato, facilmente se diz que uma criança sonha; ocasionalmente isto encanta o seu
entorno, ou o inquieta, se o sonho assume a forma de pesadelo. As próprias
crianças, desde muito cedo, falam de seus sonhos. Os praticantes que somos, muitas
vezes questionamos as crianças que encontramos acerca do conteúdo de seus
sonhos.
Em contrapartida, seja no discurso corrente ou no discurso erudito, não se diz [em
francês] que uma criança construa seu fantasma. O termo fantasma [fantasme], na
língua [francesa], foi aspirado pelo campo semântico das fantasias sexuais, tal como
estaria hoje condensado em um catálogo erótico-pornográfico da internet.
Consideramos que há aí a indicação de um deslocamento e de uma condensação de
um valor de gozo em relação a uma representação imaginária.

Contudo, uma psicanalista colocou muito cedo o fantasma no centro da vida


psíquica das crianças e de seu tratamento: Melanie Klein, essa "mulher de talento"
[2], tal como a designa Lacan, que soube identificar o valor de gozo de certas
representações imaginárias. Em um texto de 1936 intitulado "Sevrage", ela escreve:
"o trabalho analítico mostrou que os bebês de alguns meses de idade entregam-se
definitivamente à construção fantasmática.

Acredito que seja a atividade mental mais primitiva e que as fantasias ocupam o
espírito da criança pequenininha, mais ou menos desde o seu nascimento"[3] Esse
caráter radical da posição kleiniana não assusta Lacan. Pelo contrário, aponta,
segundo ele, um caminho possível para considerar o fantasma como uma pequena
máquina por meio da qual se efetua um enlace entre a gramática do inconsciente e
sua dimensão pulsional, tal como indicam suas inúmeras referências a M. Klein nos
Seminários 4, 5 e 6.

Os caminhos do sonho, que conduzem o sujeito para a realidade


e o desejo
Em relação ao sonho, acontece de uma criança passar facilmente do relato de seu
sonho para um relato que nos parece tomado de empréstimo de histórias ouvidas,
contos, filmes e até jogos eletrônicos, todo tipo de histórias que podemos então
considerar como material associativo cuja forma desdobrada é muitas vezes
designada pejorativamente como fabulação. Que indicações isto nos dá?
Constatamos primeiramente que o relato do sonho e suas associações, que
constituem um segundo relato, têm a mesma estrutura, uma estrutura de "ficção".
Notemos, contudo, que nem todas as associações são da mesma ordem: algumas
seguem o rastro dos significantes que se isolaram no relato do sonho, que as
sublinham e trabalham para fazê-las significar no campo da subjetividade, ou seja,
do desejo; outras difratam o efeito de significação, impossibilitando encontrar o
caminho de um desejo, o que é chamado de fabulação, e mesmo de mitomania.
Neste segundo caso, encontramos não mais vestígios legíveis, decifráveis, mas
linhas de fuga que apontam para algo que aparentemente escapa ao trabalho do
sonho, o de tornar "apresentáveis" as coisas "pouco apresentáveis", mas podendo
também indicar um modo primário de cernir, de circunscrever o irrepresentável: o
que Freud nomeou como umbigo do sonho. Remeto-os aqui à resposta de Lacan a
Marcel Ritter[4].

Existem, portanto, dois caminhos para o trabalho do sonho que se abrem a partir do
material significante: o do desejo, por meio do qual a realidade se constrói; e aquele
que cava o buraco por onde toda realidade escapa em direção a um impossível de
representar.

Notemos que a própria criança ocupa esses dois lugres: o voto de tornar
apresentável na realidade o desejo de seus genitores; o temor de vir a apresentar
um contratempo à trama de seus ideais. São duas faces da mesma moeda, com a
qual se paga o preço da angústia.

Através dessas duas faces, o caminho do significante aberto pelos sonhos da criança,
permite-nos apreender esta frase de Lacan que J.-A. Miller destacou: "Foi por aí que
Freud caminhou. Ele considerou que tudo não passa de sonho, e que [...] todo mundo
é louco, ou seja, delirante"[5]. "Tudo não passa de sonho": entendo nisto a indicação
positiva de levar em consideração as falas da criança como tendo o mesmo valor
que os significantes do sonho, o valor de fazer o sujeito nascer ao mesmo tempo
para a realidade e para o desejo.

O Caminho do objeto: o fantasma como ancoragem do corpo


falante
Nos primeiros capítulos do Seminário 14, A lógica do fantasma, recentemente
publicado pelas edições Seuil e pela editora do Campo Freudiano, Lacan construiu
para o fantasma, logicamente, uma superfície prêt-à-porter[6]. Superfície que ele diz
ter dois nomes: "desejo e realidade"[7]. Superfície que ele metaforiza como um
"estofo [...] tecido de tal modo que se passa de um lado a outro sem dar-se conta
disto, pois é sem corte e sem costura". Eis sobre qual superfície significante se
desloca a criança quando faz o relato de seu sonho e nele dá "explicas"[8]. Explicas é
uma bela palavra, um neologismo – substantivo proposto por Lacan na sua
"Conferência de Genebra sobre o sintoma" – que condensa 'explicação' e 'réplica', ou
seja, o que responde ao apelo dos significantes que se formaram no sonho. Por meio
dessas explicas, o significante "engendra o que não está lá, na origem, [a saber] o
próprio sujeito"[9].

Nesse movimento, recolhemos da boca da criança ao mesmo tempo os rastros que


vão constituir os caminhos de seu desejo – ou seja, os significantes que delimitam os
cruzamentos, que descrevem uma paisagem, que sublinham os traços de um
personagem, de um animal devorador, que localizam o olhar que se isola ou a voz
que se faz ouvir – e os mesmos significantes que vão balizar a realidade na qual seu
corpo se insere. Essa realidade "humana" não é, portanto "nada além de uma
montagem do simbólico e do imaginário"[10], os semblantes que delimitam a
moldura na qual circula e se fixa o desejo. Lacan define então a realidade como o
"pronto-para-usar [pret-à-porter] o fantasma". Deste modo a realidade se edifica
sobre os mesmos semblantes que o desejo, mas é uma moldura que tem
vazamentos, resíduos que formam o "núcleo elaborável do gozo[11]" que o
fantasma acolhe.

"Sujeito ao gozo"
Esse trabalho do fantasma é o que recolhemos nos jogos da criança, nas suas
pantomimas, nos seus desenhos, e ganharemos ao tratá-los com o mesmo rigor
gramatical que demonstram ter Freud, Lacan e Miller nas suas análises do fantasma
"Bate-se em uma criança". Veremos então aparecer mais claramente o objeto em
questão, pois está em vias de ser perdido. Mais uma vez, o pequeno Hans será nosso
guia: evoquemos aqui a fantasia das duas girafas, a grande e a pequena, a que é
"amarrotada"[12] por Hans e na qual ele se senta, provocando gritos da grande. E
notemos o recurso que o menininho encontra em seu sobrenome, Graf, como apoio
para essa fantasia.

No final de seu Seminário 14, Lacan define o fantasma da seguinte forma: O


fantasma tem duas características – a presença de um objeto a e, por outro lado,
nada mais do que aquilo que engendra o sujeito como $, a saber, uma frase"[13].
Uma criança faz a grande girafa gritar, faz seu pai gritar, e a voz surge, aquela que a
criança convoca através de seus votos para encontrar seu lugar no desejo que a leva
em direção à sua mãe, doravante inter-dita, desde o sonho de angústia da entrada
na sua fobia, que fazia da mãe uma mamãe que tinha ido embora[14], a partir de
então inacessível.

Esse objeto a, "impossível de eliminar"[15], nós o veremos deste modo surgir ao


longo das cadeias significantes que a criança articula nos seus sonhos e
brincadeiras, desde que lhe tenhamos dado o seu devido lugar, o de ser portador
desse "valor de gozo [que] está no princípio da economia do inconsciente"[16].

Opor-se ao despejo da criança, do mundo dos semblantes


Seja nos tratamentos que conduzimos ou nas instituições em que acolhemos e
acompanhamos crianças, com a finalidade de educá-las ou de tratá-las, para aquelas
que mais sofrem, estas indicações de Lacan são um convite a nos formarmos nesta
lógica do fantasma. É nossa oportunidade e a oportunidade a dar às crianças que
encontramos. A oportunidade de se deslocar nos discursos de dominação que
buscam assujeitá-las e a ocasião de encontrar um lugar para os objetos gadgets que
nossa civilização lhes oferece aos montes. Como? Pois bem, explorando com cada
criança os significantes-mestres que fazem dela sujeito, e o sonho permanece aqui a
"via régia" [17], na medida em que lhe damos lugar "nessa parte reservada do corpo
em que o gozo pode se refugiar"[18], que se chama objeto a.

Trata-se efetivamente de forjar as ferramentas para nos opormos ao despejo das


crianças do mundo dos semblantes – tal como se articulam entre sonhos e
fantasmas – pelas normas e avaliações, despejo pelas identidades impostas, despejo
pelo desprezo à fala da criança, na medida em que ela se tece entre enigma e
fixação de gozo.

No mercado dos discursos de nosso tempo, o discurso analítico traz algo novo, pelo
que somos responsáveis, e para estar em pé de igualdade, impõe-se a nós uma
sólida formação, análise pessoal e intercâmbios com "alguns outros", para levar em
conta que uma criança, como todo falasser, está "sujeita ao gozo", como diz Lacan
em algum lugar que estamos "sujeitos ao pensamento ou sujeitos à vertigem"[19].

O Institut Psychanalytique de l'Enfant continua a se inscrever nessa perspectiva, que


é ao mesmo tempo clínica, epistêmica e política.

Tradução: Teresinha N. M. Prado

NOTAS

1. N.T. Dadas as diferenças linguísticas entre francês e português, foi adotada nesta tradução uma diferenciação
entre fantasia (no sentido de fabulação, devaneios) e fantasma (no sentido do enlace fundamental descrito pelo
matema $<>a, outrora traduzido como fantasia fundamental). Isto nos permite manter a tradução (consagrada
pelo uso), do termo fantasmatique por fantasmático.
2. * Introdução à 8a jornada do Instituto Psicanalítico da Criança do Campo freudiano, que acontecerá em maio de
2025, apresentada no encerramento da 7a, em 18 de março de 2023. Texto estabelecido com Romain Aubé e Ève
Miller-Rose.
. Lacan J., " A psicanálise e seu ensino ", Escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar ed., 1998, p. 449.
3. Klein M., "Sevrage ", in Thomas M.-C., Lacan, lecteur de Melanie Klein, Toulouse, Érès, 2012, p. 338.
4. Lacan, J. "O umbigo do sonho é um furo". Opção Lacaniana, nº 82, abril-2020, p.13-20.
5. Lacan, J. "Transferência para Saint Denis? Diário de Ornicar? Lacan a favor de Vincennes! ". Correio, nº 65, 2010,
p.31.
6. Cf. Lacan J., Le Séminaire, livre XIV, La Logique du fantasme, texte établi par J.-A. Miller, Paris, Seuil / Le Champ
freudien, 2023, p. 16-20.
7. Ibid., p. 17.
8. Lacan, J. "Conferência em Genebra sobre o sintoma". Opção Lacaniana, nº 23, dezembro-1998, p. 9. No original:
"C'est du Freud, mais ça prouve quand même que là Freud, tout de même, a dû s'apercevoir que l'énoncé d'un
acte manqué ne prend sa valeur que des expliques d'un sujet." Embora na tradução apareça como "explicações",
vemos que no original há o neologismo "expliques" comentado por D. Roy em seguida.
9. Lacan J., Le Séminaire, livre XIV, La Logique du fantasme, op. cit., p.23.
10. Ibid., p. 20.
11. Lacan, J., "A Terceira", in Lacan, J., A Terceira & Miller, J.-A., Teoria de lalíngua, Rio de Janeiro, Zahar, 2023, p.21.
12. Freud S., " Análise de uma fobia em um menino de cinco anos (O pequeno Hans) ", Obras Completas, V. X, Rio de
Janeiro, IMAGO, 1970, p. 47.
13. Lacan J., Le Séminaire, livre XIV, La Logique du fantasme, op. cit., p. 419.
14. Cf. Freud S., "Análise de uma fobia … ", op. cit., p. 34.
15. Lacan J., Le Séminaire, livre XIV, La Logique du fantasme, op. cit., p. 419.
16. Ibid., p. 273.
17. Freud S., Cinco lições de Psicanálise, Obras Completas, V. XI, Rio de Janeiro, IMAGO, 1970, p. 32.
18. Lacan J., Le Séminaire, livre XIV, La Logique du fantasme, op. cit., p. 421.
19. Ibid., p. 397.

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