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SONHOS E FANTASMAS[1] NA
CRIANÇA
_Daniel Roy
Um diferencial
Por que essa preferência? Nesse título, se evidencia um diferencial fenomenológico
entre sonho e fantasma que cabe a nós esclarecer.
De fato, facilmente se diz que uma criança sonha; ocasionalmente isto encanta o seu
entorno, ou o inquieta, se o sonho assume a forma de pesadelo. As próprias
crianças, desde muito cedo, falam de seus sonhos. Os praticantes que somos, muitas
vezes questionamos as crianças que encontramos acerca do conteúdo de seus
sonhos.
Em contrapartida, seja no discurso corrente ou no discurso erudito, não se diz [em
francês] que uma criança construa seu fantasma. O termo fantasma [fantasme], na
língua [francesa], foi aspirado pelo campo semântico das fantasias sexuais, tal como
estaria hoje condensado em um catálogo erótico-pornográfico da internet.
Consideramos que há aí a indicação de um deslocamento e de uma condensação de
um valor de gozo em relação a uma representação imaginária.
Acredito que seja a atividade mental mais primitiva e que as fantasias ocupam o
espírito da criança pequenininha, mais ou menos desde o seu nascimento"[3] Esse
caráter radical da posição kleiniana não assusta Lacan. Pelo contrário, aponta,
segundo ele, um caminho possível para considerar o fantasma como uma pequena
máquina por meio da qual se efetua um enlace entre a gramática do inconsciente e
sua dimensão pulsional, tal como indicam suas inúmeras referências a M. Klein nos
Seminários 4, 5 e 6.
Existem, portanto, dois caminhos para o trabalho do sonho que se abrem a partir do
material significante: o do desejo, por meio do qual a realidade se constrói; e aquele
que cava o buraco por onde toda realidade escapa em direção a um impossível de
representar.
Notemos que a própria criança ocupa esses dois lugres: o voto de tornar
apresentável na realidade o desejo de seus genitores; o temor de vir a apresentar
um contratempo à trama de seus ideais. São duas faces da mesma moeda, com a
qual se paga o preço da angústia.
Através dessas duas faces, o caminho do significante aberto pelos sonhos da criança,
permite-nos apreender esta frase de Lacan que J.-A. Miller destacou: "Foi por aí que
Freud caminhou. Ele considerou que tudo não passa de sonho, e que [...] todo mundo
é louco, ou seja, delirante"[5]. "Tudo não passa de sonho": entendo nisto a indicação
positiva de levar em consideração as falas da criança como tendo o mesmo valor
que os significantes do sonho, o valor de fazer o sujeito nascer ao mesmo tempo
para a realidade e para o desejo.
"Sujeito ao gozo"
Esse trabalho do fantasma é o que recolhemos nos jogos da criança, nas suas
pantomimas, nos seus desenhos, e ganharemos ao tratá-los com o mesmo rigor
gramatical que demonstram ter Freud, Lacan e Miller nas suas análises do fantasma
"Bate-se em uma criança". Veremos então aparecer mais claramente o objeto em
questão, pois está em vias de ser perdido. Mais uma vez, o pequeno Hans será nosso
guia: evoquemos aqui a fantasia das duas girafas, a grande e a pequena, a que é
"amarrotada"[12] por Hans e na qual ele se senta, provocando gritos da grande. E
notemos o recurso que o menininho encontra em seu sobrenome, Graf, como apoio
para essa fantasia.
No mercado dos discursos de nosso tempo, o discurso analítico traz algo novo, pelo
que somos responsáveis, e para estar em pé de igualdade, impõe-se a nós uma
sólida formação, análise pessoal e intercâmbios com "alguns outros", para levar em
conta que uma criança, como todo falasser, está "sujeita ao gozo", como diz Lacan
em algum lugar que estamos "sujeitos ao pensamento ou sujeitos à vertigem"[19].
NOTAS
1. N.T. Dadas as diferenças linguísticas entre francês e português, foi adotada nesta tradução uma diferenciação
entre fantasia (no sentido de fabulação, devaneios) e fantasma (no sentido do enlace fundamental descrito pelo
matema $<>a, outrora traduzido como fantasia fundamental). Isto nos permite manter a tradução (consagrada
pelo uso), do termo fantasmatique por fantasmático.
2. * Introdução à 8a jornada do Instituto Psicanalítico da Criança do Campo freudiano, que acontecerá em maio de
2025, apresentada no encerramento da 7a, em 18 de março de 2023. Texto estabelecido com Romain Aubé e Ève
Miller-Rose.
. Lacan J., " A psicanálise e seu ensino ", Escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar ed., 1998, p. 449.
3. Klein M., "Sevrage ", in Thomas M.-C., Lacan, lecteur de Melanie Klein, Toulouse, Érès, 2012, p. 338.
4. Lacan, J. "O umbigo do sonho é um furo". Opção Lacaniana, nº 82, abril-2020, p.13-20.
5. Lacan, J. "Transferência para Saint Denis? Diário de Ornicar? Lacan a favor de Vincennes! ". Correio, nº 65, 2010,
p.31.
6. Cf. Lacan J., Le Séminaire, livre XIV, La Logique du fantasme, texte établi par J.-A. Miller, Paris, Seuil / Le Champ
freudien, 2023, p. 16-20.
7. Ibid., p. 17.
8. Lacan, J. "Conferência em Genebra sobre o sintoma". Opção Lacaniana, nº 23, dezembro-1998, p. 9. No original:
"C'est du Freud, mais ça prouve quand même que là Freud, tout de même, a dû s'apercevoir que l'énoncé d'un
acte manqué ne prend sa valeur que des expliques d'un sujet." Embora na tradução apareça como "explicações",
vemos que no original há o neologismo "expliques" comentado por D. Roy em seguida.
9. Lacan J., Le Séminaire, livre XIV, La Logique du fantasme, op. cit., p.23.
10. Ibid., p. 20.
11. Lacan, J., "A Terceira", in Lacan, J., A Terceira & Miller, J.-A., Teoria de lalíngua, Rio de Janeiro, Zahar, 2023, p.21.
12. Freud S., " Análise de uma fobia em um menino de cinco anos (O pequeno Hans) ", Obras Completas, V. X, Rio de
Janeiro, IMAGO, 1970, p. 47.
13. Lacan J., Le Séminaire, livre XIV, La Logique du fantasme, op. cit., p. 419.
14. Cf. Freud S., "Análise de uma fobia … ", op. cit., p. 34.
15. Lacan J., Le Séminaire, livre XIV, La Logique du fantasme, op. cit., p. 419.
16. Ibid., p. 273.
17. Freud S., Cinco lições de Psicanálise, Obras Completas, V. XI, Rio de Janeiro, IMAGO, 1970, p. 32.
18. Lacan J., Le Séminaire, livre XIV, La Logique du fantasme, op. cit., p. 421.
19. Ibid., p. 397.