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Suzi Frankl Sperber

Ficção e razão:
Uma retomada das formas simples

2º vol.

Presença do mito

UNICAMP
Instituto de Estudos da Linguagem
Departamento de Teoria Literária
2

2003
3

A noção de mito e o mito grego

Introdução

Há duas formas simples recorrentes na oralidade e na infância: o conto de fadas


e o mito. Tratamos do conto de fadas no primeiro volume deste estudo. Este segundo
volume estará todo ele dedicado ao mito.
A fim de fazer um estudo do mito nas formulações infantis, seria preciso um
registro de que não disponho. Aquele ao qual tive acesso foi o de Freud, que me
permitiu formular os universais: capacidade de simbolização, imaginário e efabulação,
básicos para a pulsão de ficção. A leitura, feita por um adulto, da simbologia empregada
pela criança (ainda que esta tenha traços simples) provém do estudo dos mitos
formulados e coligidos ao longo dos tempos, por diferentes civilizações. Na efabulação
do neto de Freud, analisei como de cunho mítico a repetição, o tema do eterno retorno.
Não sendo psicolingüista ou etnóloga ou antropóloga, não reunindo eu mesma
narrativas orais, forçosamente trabalharei com textos coligidos por algum destes
especialistas. Portanto, o primeiro problema deste estudo é contar sobre a exatidão da
transcrição – e da tradução, já que foram recolhidos mitos por todas as partes do mundo.
Há uma segunda questão: os mitos coligidos provêm todos de adultos – e não de
crianças. Como vou apenas fazer a análise dos textos e a partir daí inferir características
mais gerais do mito, meu recurso é apoiar-me nos estudos e coletâneas existentes, para
ao fim do exame de um material considerado por mim como suficiente, fazer as ilações
possíveis entre a forma mito da fase infantil e a forma mito da fase adulta. Percorrerei
alguns estudos sobre o mito, na busca das noções que possam configurar as funções do
mito. Em verdade já antecipei uma característica básica do mito, que comprovarei ao
longo do percurso que se segue: a de que no mito predomina a pulsão de morte.

O mito conta com as mais diferentes definições, razão pela qual a palavra mito
tem-se prestado para as noções mais diferentes, a ponto de ser difícil de encontrar
conceitos comuns aplicáveis a ele.
4

Segundo André Jolles1, o mito é uma interpretação da natureza, fase preliminar


da filosofia na medida em que procura uma explicação - conhecimento - do mundo2.
Como o mito é a resposta a uma pergunta implícita, esta resposta apreende os elementos
sobre os quais se interroga e os reúne em um acontecimento - que tem função alegórica.
As personagens deste relato-resposta, sendo alegóricas, quer sejam seres humanos, quer
animais, plantas, objetos, ou fenômenos da natureza, não representam nem caricaturas,
nem aspectos de uma psique, mas representações de um terceiro fenômeno, que está
sendo explicado. O salto dos eventos do relato-resposta para a explicação do fenômeno -
em geral natural - dá-se por analogia, fazendo, com que o próprio relato tenha função
metafórica. A linguagem do mito é cifrada, sinalizando o mistério e sua revelação
(saber). Por isto as palavras, no mito, têm função simbólica, cuja interpretação se dá
também por analogias. O tempo mítico, aquele que existe nas narrativas míticas, não é
histórico. Sua ahistoricidade parece-se com a dos contos de fadas, mas não representa a
psique humana. Representa o universo e as condições de existência e de sobrevivência
do ser humano. Segundo Jolles, "o mito [...] designa [ ] 'a crença numa divindade,
crença essa que se enraíza, em graus infinitamente variáveis, em todos os povos' 3.
Apesar desta característica intemporal e atemporal, o mito - como por exemplo o mito
grego - pode ter alguma referência histórica. O espaço mítico representa o espaço do
conhecimento, ou, mais precisamente, do saber; é também ele alegórico, indiciando,
através da generalização, relações, inter-relações, interseções, isto é, um espaço
abstrato. Mesmo que o mito explique o nascimento de uma flor, ou de um pássaro, com
descrições da natureza, esta não é geograficamente localizável, a não ser aquela flor ou
aquele pássaro característicos de um clima, portanto de uma região, referidos também
por analogia ao espaço externo. O foco narrativo está sempre na terceira pessoa, mas
não tem características do foco personal – máscara do eu. É onisciente, unívoco,

1. Vide bibliografia.
2. Por outro lado, o Vocabulário de Filosofia aborda o mito sob outro aspecto e desconhece, por seu
turno, uma parte de sua autonomia. O mito, diz-nos a primeira frase, é uma concepção da vida e da
natureza, uma interpretação da natureza. Mas o mito constitui apenas um elemento da religião, numa fase
determinada da sua evolução, e só assim é possível compreendê-lo. A segunda frase ensina-nos que o
mito contém uma cosmovisão "primitiva", sem especificar se devemos entender "primitivo" da acepção
de "original, simples, não elaborado", ou no sentido de "rudimentar", sendo possíveis os dois significados,
segundo Eisler. De qualquer modo, esse "primitivo" faz novamente do mito uma fase preliminar - não
preliminar da História mas da Filosofia - uma "protofilosofia"; mas, ao mesmo tempo, faz do mito a
origem do "desenvolvimento" da ciência e da filosofia. (Jolles 1976: 84).
3. Jolles 1976: 85.
5

procurando, com isto, convencer o leitor-ouvinte acerca da verdade daquilo sobre o qual
se fala.
Sua forma corresponderia à resposta fornecida pelo oráculo (portanto pela
divindade) a uma pergunta formulada pelo homem. Esta resposta (com pergunta
normalmente subentendida) tem um pressuposto: o de que, tendo como fonte o oráculo,
corresponde a uma predição implícita. Trata-se, nesta perspectiva, de verdade
inquestionável que relaciona o passado e o futuro, apontando para o sentido de destino,
irremissível, da existência humana.
O ser humano é obrigado a enxergar o seu limite e a sua fragilidade; precisa
reconhecer que é finito e destrutível, mesmo sendo herói ou semi-deus. Como nas
linguagens cifradas, as falas do oráculo (ou de videntes e parapsicólogos), apresentam o
conjunto de símbolos como chave para o entendimento do que não está expresso. Esta
simbologia tem um valor correlato: cada um dos elementos simbolizados faz parte de
uma cosmogonia. Os objetos referidos no mito estão carregados de um poder implícito e
encarnam a totalidade da forma representada. Este é o seu sentido holístico.
Apesar deste sentido de totalidade de cada mito - ou talvez exatamente por isto -
o conjunto de mitos não chega a representar um sistema completo e abrangente,
esclarecedor de todo o universo e que desvendaria os seus mistérios para aqueles que
têm acesso a este conjunto. Cada mito, ainda que constate apenas um fenômeno e tenha
apenas uma resposta, sendo holístico apresenta o evento examinado e a generalização
que, partindo do evento, aponta para uma explicação do universo. A resposta, que
examina o constante e o múltiplo, converte-os em conjunto num evento único, onde
ambos encontram o sentido de sua multiplicidade e de sua constância4. Pergunta e
resposta são construídos em uma unidade a partir da curiosidade do homem, cujos
conhecimentos não são suficientes para explicar o que observou, mas que propiciam
"uma configuração simultaneamente sólida e dinâmica no seio do evento, que se torna
então destino e predestinação"5.
O mito explica um fenômeno através de uma narrativa, cujos aspectos
desconhecidos - misteriosos - assumem caráter mágico. A ilusão de conhecimento é
construída a partir da homologia entre os diferentes fenômenos naturais.

4. Jolles 1976: 100.


5. Jolles 1976: 101.
6

Apesar de as mais freqüentes definições de mito referirem a explicação de


fenômenos da natureza, para Joseph Campbell o mito não explica tão somente um
fenômeno da natureza6, mas aspectos muito mais profundos - espirituais - do ser
humano. A ansiedade humana diante da morte inevitável7 levaria o ser humano a
procurar Deus8. No passado e no presente. E mesmo que não o queiramos, o mito
permeia a vida humana.

O que muitos não sabem - é que os vestígios desses [deuses gregos e] "quejandos" se
alinham ao longo dos muros de nosso sistema interior de crenças, como cacos de cerâmica
partida num sítio arqueológico9.

Para Campbell o mito - território narrativo em que são representados deuses e


demônios - é uma espécie de carnaval de máscaras destes deuses ou demônios, um jogo
curioso de "faz de conta". Cada mito vem a ser uma das diferentes máscaras de deus,
porque o deus pode estar em diferentes lugares simultaneamente, e porque cada
representação é ao mesmo tempo máscara e o deus em si. Em cada caso em que deixa
de ser mera "representação", este deus poderá ser reverenciado e vivido como
verdadeira manifestação divina.

6. [...] esse imenso e cacofônico coral começou quando nossos primeiros ancestrais contaram histórias
uns aos outros, a respeito dos animais, que eles matavam para comer, e a respeito do mundo sobrenatural,
para onde os animais pareciam ir quando morriam. "Lá fora, em alguma parte", para além do plano
visível da existência, estava o "senhor dos animais", que exercia sobre os seres humanos o poder de vida
ou morte se ele deixasse de mandar de volta as feras, para serem novamente sacrificadas, os caçadores e
sua prole morreriam de inanição. Por isso as sociedades primitivas aprenderam que "a essência da vida
subsiste graças ao matar e comer; esse é o grande mistério que os mitos têm que enfrentar". A caça
tornou-se um ritual de sacrifício, e os caçadores encenavam atos de expiação diante dos espíritos dos
animais que partiam, esperando coagi-los a retornar, para serem sacrificados de novo. As feras eram
vistas como enviadas do outro mundo, e Campbell admitiu "um mágico, maravilhoso acordo" gestando-se
entre o caçador e a caça, como se eles estivessem aprisionados num círculo "místico atemporal", de
morte, sepultamento e ressurreição. Sua arte - pinturas nas paredes das cavernas - e sua literatura oral
deram forma ao impulso que passou a se chamar religião.
Quando estes indivíduos primitivos passaram da caça ao plantio, as histórias que contavam para
explicar os mistérios da vida mudaram, também. Então, a semente se tornou o símbolo mágico do ciclo
infinito. A planta morria, era enterrada e sua semente renascia. Campbell mostrou-se fascinado pelo fato
de esse símbolo ter sido incorporado pelas grandes religiões do mundo, como a revelação da verdade
eterna - a vida provém da morte, ou, como ele dizia: "A bem-aventurança provém do sacrifício".
(Campbell 1990: XI).
7. "A causa secreta de todo sofrimento é a própria mortalidade, condição primordial da vida. Quando se
trata de afirmar a vida, a mortalidade não pode ser negada". Campbell 1990: VII.
8. O objetivo último da busca não será nem evasão nem êxtase, para si mesmo, mas a conquista da
sabedoria e do poder para servir aos outros. (Campbell-Moyers 1990: VIII).
9. Campbell-Moyers 1990: VIII.
7

Mesmo contendo traços mais tardios e distantes do ritual de origem, ou sendo


encontrado em lugares em que o último já não existe, Propp 10 considera que nas origens
do mito estaria o sagrado, com o qual o mito mantém relações, até mesmo na sua
estrutura.
Mircea Eliade define o mito do seguinte modo:

"... o mito conta uma história sagrada; relata um acontecimento que teve lugar no tempo
primordial, no tempo fabuloso das origens. Por outras palavras, o mito conta como, graças
aos atos dos seres sobrenaturais, uma realidade teve existência, quer seja a realidade total, o
Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento
humano, uma instituição. É, pois, sempre uma narrativa de uma criação: conta-se como
qualquer coisa foi produzida, como começou a ser. O mito não fala senão naquilo que
aconteceu realmente, naquilo que se manifestou completamente, as personagens do mito
são Seres Sobrenaturais"11.

Esta visão plural do mito servirá para analisar alguns deles em especial, partindo
da hipótese de que a estrutura narrativa do mito tem características próprias, não direta e
obrigatoriamente identificáveis com o rito, como propõe Propp.
Ainda que estejam dentre os primeiros registros conhecidos, os mitos pertencem
ao campo da ficção, portanto do imaginário, diferente da reflexão acerca de
propriedades abstratas de objetos físicos, que ocuparão inicialmente os objetivos da
filosofia, ou da doxa12. Isto não impede que este imaginário tenha um poder de intuição
e compreensão para além da ciência, capaz de encontrar sentidos - inclusive holísticos -
para aspectos ou dados empíricos que a ciência ainda não conseguia decifrar.
A fim de entender melhor os mitos, mas ao mesmo tempo fazer tarefa adstrita
aos limites deste trabalho, estudarei mitos gregos, procedendo à leitura de alguns textos
primários, isto é, de mitos propriamente ditos e não os estudos sobre os mitos. O risco
da ilusão da primeira mão, da abordagem direta e que ignora a literatura secundária,
crítica, histórica sobre o material a ser examinado creio que fica afastado visto que o
princípio desta abordagem do mito partiu de diferentes conceitos sobre ele, tendo sido
lida bastante vasta bibliografia secundária. A esperança é que o texto primário possa

10. Les correspondances totales entre mythe et rite ont une existence plus longue que le rite. Comme il a
été indiqué, les mythes ont été parfois notés dans des lieux où le rite avait disparu. Pour cette raison, le
mythe contient des traits plus tardifs, des traits d'incompréhension, de déformation et de modification.
(Propp 1983: 299-300).
11. Eliade 1963: 15.
12. Havelock 1963: 250-1 e 270.
8

abrir portas para a compreensão de alguma característica universal que sem a análise
microscópica não seria possível.

Os mitos gregos

Os mitos que nos chegaram provêm de registros feitos em momentos diferentes


da história da humanidade, fruto de autores tais como Homero (que aproveitou mitos na
Ilíada e na Odisséia, mas não sistematicamente um número grande de mitos do panteon
grego); Heródoto; Ovídio, ou Hesíodo. Não são produto infantil, ainda que possam
recuperar aspectos importantes - internos - nomeáveis ficcionalmente. Pareceria que o
mito, enquanto produto cultural com formulação completa, narrativa, precisa de um
momento de vida adulta para ser formulado. Aliás, algo semelhante corresponde aos
contos de fadas e aos símbolos mais complexos inseridos tanto em contos de fadas
quanto em mitos.
Tomemos o Mito de Narciso na versão de Ovídio, em As Metamorfoses.
O mito de Narciso contido em Metamorfoses, de Ovídio, é precedido pelo
episódio de Tirésias, que fora escolhido como árbitro de uma discussão havida entre
Júpiter e Juno, acerca do prazer sentido pela mulher. A razão da escolha deste árbitro se
deve à sua história. Tirésias, ao passear por uma floresta, surpreende duas grandes
serpentes. Ele bate com seu cajado nas duas, interrompendo a sua união. Elas se vingam
transformando-o em mulher. Ele vive durante 8 anos como mulher, até encontrar as
mesmas serpentes copulando. Bate nelas de novo e consegue recobrar sua forma
masculina. Com a experiência do prazer venéreo de ambos os sexos, Tirésias,
interrogado, confirma a opinião de Júpiter (Zeus) de que a mulher sente maior prazer
que o homem. Juno (Hera), despeitada, cega Tirésias. Júpiter, para consolá-lo, lhe
confere "o dom de predizer o futuro, abrandando o castigo com esse prêmio"13. A este
episódio segue o de Eco e Narciso. Tirésias prevê o futuro do filho de Liríope e Céfiso:
Narciso. Ele viveria muito se não se conhecesse. Narciso cresce belíssimo, desejado por
jovens homens e mulheres e amado especialmente por Eco. Narciso é soberbo e não se
interessa por ninguém. Eco cansa Juno por ser tagarela - e por isto retê-la nos momentos
em que Juno poderia surpreender Júpiter deitado com alguma ninfa. Como

13. Ovídio 1983: 57.


9

conseqüência, Juno pune Eco, fazendo-a perder a capacidade de falar, salvo a de repetir
palavras: "Com essa língua, que tanto me fez ser iludida, pouco poderás fazer e terás um
uso brevíssimo das palavras". Eco, já punida, segue Narciso, por quem continua estando
perdidamente apaixonada.

Por acaso, o adolescente, separado do grupo fiel de seus companheiros,


perguntara: "Aqui não há alguém?" "Há alguém", respondeu Eco. Ele se admira e olha em
torno. "Vem!", grita muito alto; Eco repete o convite. Ele olha para trás, e, não vendo
ninguém aproximar-se, pergunta: "Por que foges de mim?" E ouve as mesmas palavras que
dissera. Insiste, e, iludido pela voz que responde à sua, convida: "Vem para junto de mim,
unamo-nos! A anda Eco respondera com mais boa vontade: "Unamo-nos!" Ajunta o gesto à
palavra e, saindo da floresta, avança para abraçar o desejado. Ele foge, e diz, ao fugir:
"Afasta-te de mim, nada de abraços! Prefiro morrer, não me entrego a ti!" Eco repetiu
somente: "Me entrego a ti!"14.

Desdenhada, ferida, Eco se refugia na floresta. "As preocupações incansáveis


consomem seu pobre corpo, a magreza lhe encolhe a pele, a própria essência do corpo
se evapora no ar. Sobrevivem, no entanto, a voz e os ossos. A voz persiste; os ossos,
dizem, assumiram o aspecto de pedra. Assim, ela se esconde nas florestas, e não é vista
nas montanhas. É ouvida por todos; é o som que ainda vive nela"15.
Narciso decepciona as expectativas amorosas de muitos, não só de Eco. Um dos
jovens ignorados, despeitado, "ergueu as mãos para o céu, exclamando: "Que ele ame,
por sua vez, e não possa possuir o objeto amado!" Disse. A deusa de Ramnonte atendeu
a essa justa prece"16.
Neste ponto do relato mítico de Ovídio entra um trecho traduzido por Haroldo de
Campos17. Transcrevo-o, porque as boas traduções poéticas são capazes de dar outra
dimensão ao mito.

A MORTE DE NARCISO
(Metamorfoses III, 407-510)

Ovídio

Fonte sem limo, pura prata em ondas límpidas


jorrava. Nem pastor se achega, nem pastando
seu rebanho montês, ou gado avulso, acode.

14. Ovídio 1983: 58.


15. Ovídio 1983: 58.
16. Ovídio 1983: 59.
17. In "Mais!", Folha de São Paulo, domingo, 21.08.1994.
10

Nem pássaro, nem fera, nem, tombando, um ramo


perturba a úmida grama que o frescor irriga.18
O bosque impede o sol de aquentar este sítio.
Da caça e do calor exausto, aqui vem dar
Narciso, seduzido pela fonte amena.19
Se inclina, vai beber, mas outra sede o toma;
enquanto bebe o embebe a forma do que vê.20
Ama a sombra sem corpo, a imagem, quase-corpo.
Se embevece de si, e no êxtase pasmo,
é um signo marmóreo, uma estátua de Paros.21
De bruços, vê dois sóis, astros gêmeos, seus olhos
Contempla seus cabelos dignos de Apolo
ou de Baco; suas faces, seu pescoço branco,
a elegância da boca; a tez, neve e rubor.22
No mirar-se, admira o que nele admiram.23
Deseja-se a si próprio, a si mesmo se louva,
súplice e suplicado, ateia o fogo e arde.
Quantos beijos vazios deu na mentira d'água!
Quantas vezes tentou captar o simulacro
e mergulhou os braços abraçando nada!
Não sabe o que está vendo, mas no ver se abrasa:
o que ilude seus olhos mais o açula ao erro.
- Crédulo buscador de um fantasma fugaz!
O que buscas não há: se te afastas, desfaz-se.
Esta imagem que colhes é um reflexo: foge,
não subsiste em si mesma. Vem contigo, fica
se estás. Se partes - caso o possas - ela esvai-se.
Nem Ceres - o alimento, nem o sono - paz,
nada o tira de lá. Prostrado em relva opaca
contempla as falsas formas sem saciar os olhos.
Por seu olhar se perde. Meio-erguido, os braços
aos bosques circunstantes agitando, indaga:
"Houve, bosques, como este, outro amor tão cruel?
Sabeis. Destes refúgio a muitos que sofriam
de amor. Houve outro em tantos séculos de vida
- vossa memória é longa - que como eu penasse?
Vejo o que amo, mas o que amo e vejo, nunca
posso tomá-lo, e em tanto erro insisto amando.

18. O poema-narrativo conta uma história. Ovídio usa um recurso dos relatos da ficção em prosa: a voz.
Não se trata apenas da voz do eu lírico. Primeiro soa a voz do narrador autorial, em terceira pessoa, que
não sabe mais do que a personagem Narciso, assumindo uma perspectiva externa à personagem. Descreve
a quietude, o mundo suspenso em sua beleza e frescor. São as condições para a apresentação verossímil
do espelho d’água.
19 Este é o locus amoenus, de paisagem poética ideal, cujos elementos característicos são o prado, o rio,
o arvoredo, i.e., uma ambiência calma que não suscita perturbação no observador. É o lugar, distante da
cidade, ou conglomerações habitacionais (escondido da ordem social que regula ou coíbe as relações
sexuais), lugar em que as paixões eróticas podem ser livremente exploradas.
20 Ao inclinar-se, Narciso se defronta com o espelho d’água. Este espelho leva Narciso a fugir do tempo,
e a limitar-se à visão de si mesmo. O espelho d’água produz um efeito contrário ao do espelho mágico,
que permite ver o presente, o passado e o futuro. “Le miroir n'a pas seulement pour fonction de refléter
une image; l'âme devenant un parfait miroir participe à l'image et par cette participation elle subit une
transformation. Il existe donc une configuration entre le sujet contemplé et le miroir qui le contemple.
L'âme finit par participer de la beauté même à laquelle elle s'ouvre.” (Dictionnaire des symboles, vol II)
21 Escopas de Paros é um escultor e arquiteto grego do século IV aC. (Paros, 420 – 350 aC).
22
23
11

O que mais dói porém: não nos separa um mar,


montes, caminho longo, sólidas muralhas.
Água exígua nos tolhe. O outro também aspira
a mim; sempre que beijo a amada face líquida,
seus lábios refletidos tendem para os meus.
É como se o tocasse: nos impede um mínimo.
Sai fora dessa fonte! Vem! Por que me iludes,
evasivo menino? Em formas ou idade,
nada em mim pode haver que te repugne. Ninfas
me amaram! No teu rosto leio bons prenúncios:
quando te estendo os braços, braços me distendes:
se rio, sorris; lágrimas respondem lágrimas,
se choro; a meu aceno, acena tua cabeça.
Adivinho palavras, em tua linda boca,
móveis palavras, que no ouvido não me chegam.
Sou eu este outro! Não me ilude a imagem fútil.
Queimo no amor de mim, no incêndio que me ateio.
Que hei de fazer? Rogando, sou rogado. A quem
E como suplicar? A mim cobiço e tenho:
pobre e rico de mim. Quero evadir meu corpo,
desejo estranho num amante! Separar-se
daquilo mesmo que ama. Agora a dor me vence.
Exaurido de amor, expiro em minha aurora.
A morte não me pesa, alivia-me as penas.
Quisera perdurar naquele a quem adoro:
ambos, num só concordes, morreremos juntos."
Diz, e volta abismado a contemplar o espelho
d'água, e o turva de lágrimas e a imagem vã
em círculos dissipa-se. Ao vê-la que foge,
exclama: "Fica! Não me destituas, má
visão, cruel fantasma em que me nutro e onde,
intocado de mim, deliro de paixão!"
Rasga, doido de dor, as vestes em pedaços
e pune o peito nu com seus dedos de mármore.
Ferido, o peito vai-se tingindo de rubro,
como um fruto que em parte se oferece branco
e em parte enrubesce; ou as uvas num cacho,
imaturas, aos poucos se fazendo púrpura.
Quando - igual - se revê na onda liquefeita,
não mais suporta. Como a cera loura funde
ao fogo leve e a fria geada matutina
desfaz-se ao sol, assim Narciso, pouco a pouco,
pela chama de amor se fina e se consome.
Sua tez não mais figura neve enrubescida,
nem força, nem vigor, tudo o que à vista agrada,
nada resta em seu corpo, outrora amado de Eco,
a ninfa, que ao fitá-lo se condói, ferida
embora pelo seu desprezo. A ninfa chora
e "Ai!" lhe responde aos "ais", duplica seus lamentos.
Toda vez que ele fere os braços, repercute
o som dos golpes Eco. Às águas familiares
voltando o olhar, Narciso diz com voz extrema:
"Fugaz menino amado! Ai!" E o sítio em torno
lhe repete as palavras. Diz: "Adeus!" e "Adeus!"
retorna a ninfa. Então no verde pousa a fronte.
A noite lhe clausura os olhos, luz que se ama.
Recebido no Inferno, assim mesmo esses olhos
se deleitam, mirando-se no Estígio. Choram
12

As Náiades o irmão, em tributo cortando


os cabelos. As Dríades deploram. Eco
ressoa o pranto. As tochas fúnebres se agitam,
mas o corpo não há. Em seu lugar floresce
um olho de topázio entre pétalas brancas.

O relato, contado em terceira pessoa, tem desenvolvimento dramático, já que


apenas contextualiza o episódio, e depois entra in medias res, com extrema economia. A
dramatização é assegurada quer pela descrição do cenário (que preenche as
características do locus amoenus24), quer pelo discurso direto, compondo uma estrutura
de tensão. O tema é parcialmente a hybris, configurado na altivez do jovem Narciso, em
sua auto-suficiência. Sua hamartia - erro moral ou intelectual - adaptando Plotino25, se
manifesta quando Narciso passa a atribuir realidade à imagem, em vez de se debruçar
sobre sua própria intimidade, para conhecê-la. Mas Narciso não tem muita escolha e a
sua é uma pseudo liberdade. A predição anterior a seu nascimento, as palavras de
invocação-maldição do jovem despeitado e a adesão da deusa Ramnonte revelam a
poderosa força das palavras enunciadas pelos desafetos de Narciso. Estas são têm a
capacidade de conversão da enunciação em verdade – realizando-a. Elas cunham a
realidade. A conseqüência das predições é múltipla, conforme a história: Tirésias dirá a
verdade e confirma sua capacidade preditiva - mas permanecerá cego; Eco persevera em
seu amor, porque não consegue esquivar-se das últimas palavras proferidas por ela
mesma: "Me entrego a ti!" Ela perde o corpo e mantém a voz - que só repete o que os
outros dizem. Narciso morre, mas tem seu corpo metamorfoseado em flor.
A beleza da flor reflete a beleza humana, física, fugaz. Esta é quase palpável, as
palavras assumindo forma e densidade, ocupando o espaço, como se vê nos versos 15,
16, 17 e 18 do trecho acima. Uma formosura que se amou a si mesma. Portanto é uma
graça inócua, que condena o amante a não possuir o objeto de seu desejo.
Não é a única beleza inócua no universo dos mitos recolhidos e poetizados por
Ovídio. Acontecerá outro tanto com Jacinto, Adônis, Atalanta, Hipomenes. Ou é criada
uma beleza "que nenhuma mulher pode ter" e pela qual o autor de uma escultura em
marfim se apaixona (episódio de Pigmalião). E assim como a paixão é capaz de dar vida
à estátua, a falta de paixão, ou a paixão negada é capaz de converter o corpo em pedra, o

24 Vide N. 19.
25 Cf. Kristeva, Julia. "Narciso: a nova demência". In Histórias de amor. Tradução e introdução de Leda
Tenório da Motta. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
13

aspecto em árvore, ou flor. Febo, desesperado com a morte de Jacinto, ferido com o
disco lançado por Febo, que depois cai, ricocheteia e bate no rosto de Jacinto, se
pergunta: "Na verdade, porém, qual foi a minha culpa? A não ser que ter lançado o
disco possa ser considerado um crime e que amar seja considerado um crime. Oxalá me
fosse permitido perder a vida contigo, como um castigo merecido! Como, porém, temos
que obedecer às leis do destino, sempre estarás comigo, e meus lábios hão de lembrar-te
sempre. Tangida por minha mão, a lira e meus cantos te exaltarão; e, transformado em
uma flor, imitarás, por escrito, os meus lamentos"26.
O excesso de Narciso poderia ser equivalente aos dos outros seres míticos
citados acima: o da beleza tão grande como a de um deus. A rigor o excesso é amar-se,
ou amar a sua imagem e ser incapaz de amar a outra imagem que não a dele. Mas não
lhe é outorgado outro caminho. Sua condenação tem algo de 'karma': não podendo ser
evitado, servirá para algo. As leis do destino limitam a vida e só permitem a
transformação. A metamorfose é em uma flor, ou uma lira, mas é notável que em cada
episódio é contado algum tipo de descendência, que o mais das vezes corresponde à
obra, à palavra, à voz, à encarnação da beleza: atribuição e manutenção de uma forma
poética, lírica. Em última instância, sem uma explicitação que seja vista como
correspondente à metalinguagem, o que os episódios acabam propondo é a permanência
da obra, da voz, da palavra, da representação, ou reflexo, da beleza. Ou da beleza
enquanto produto decorrente, metamorfoseado, de alguém cuja existência findou. O
destino impõe limites intransponíveis. A única forma de resistência reside na memória
("sempre estarás comigo, e meus lábios hão de lembrar-te sempre") e na rememoração
pela arte ("Tangida por minha mão, a lira e meus cantos te exaltarão"). É bem verdade
que esta preocupação da permanência apesar da morte corresponde à do próprio Ovídio.
Leia-se o epílogo d'As Metamorfoses:

Assim eis terminada a minha obra que destruir não poderão jamais a cólera de Jove, o ferro,
o fogo e a passagem do tempo. Quando o dia em que pereça a minha vida incerta chegar, o
que em mim há de melhor não há de perecer. Subindo aos astros, meu nome por si mesmo
viverá. Em toda parte onde o poder de Roma se estende sobre as terras submissas, os
homens me lerão, e minha fama há de viver, por séculos e séculos, se valem dos poetas os
presságios.27

26. Ovídio 1983: 187.


27. Ovídio 1983: 294.
14

A função oracular, preditiva, é do poeta. O templo sagrado é a ficção. A palavra


é a cifra. A imortalidade é do nome, da palavra - mais do que da alma. A metamorfose
se dá naturalmente. A morte é o limite: a metamorfose é verificada depois, ainda que
não dê para prever em que se transformará o morto. Ovídio prevê que seu nome subirá
aos astros. Se o despossuído tem apenas uma "hora da estrela" (como Macabéa,
personagem do romance de Clarice Lispector), o poeta tem toda uma fase longa, talvez
eterna, de astro. O brilho e a transformação são parceiros e herdeiros da beleza. O relato
sobre a natureza revela a natureza fugaz do ser humano e a transmutação do amor e do
passado em algo em essência permanente, ainda que em mutação.

A partir da análise do mito de Narciso (e das noções resumidas acima), formulo


algumas hipóteses.
Os mitos gregos têm nitidamente três funções diferentes:
Responder a uma pergunta implícita a respeito da natureza física, ou biológica de um
fenômeno (ou evento), aliás como se afirma dos mitos em geral;
Simultaneamente responder a uma pergunta de caráter psico-social.
Simultaneamente responder à pergunta fundamental das leis divinas: você ultrapassou
as medidas estabelecidas pela(s) divindade(s)? Portanto, qual foi sua hybris e qual
sua hamartia?
A primeira corresponde exatamente à definição de Jolles. A segunda, que
contém a característica preditiva apontada por Jolles, tem uma vertente que comenta um
evento de natureza psíquica (amor excessivo pelo pai, ou onipotência, enfim, nuances
de amor-ódio e sentimentos correlatos, que incluem inveja e ciúme - e nuances de
desejo de poder, seja ele econômico, ou político) e tem ainda uma vertente social.
Como? O aspecto psíquico, porque e quando ultrapassa a medida e por ser excessivo -
hybris28 - provoca sentimento de culpa ou pelo menos conflito (em exemplos como
Édipo, de “O Rei Édipo”, de Sófocles; Cronos, na segunda parte do mito, quando será
punido com a morte pelo filho Zeus, conforme está na Teogonia, de Hesíodo; Mirra e
mesmo Narciso, tomando-se como referência o livro de Ovídio, As Metamorfoses). O
conflito é colocado em um contexto social, que motiva a punição. Esta punição tem, por
um lado, a função de definir os limites sociais da ação humana (não se deve praticar o

28. La mesura es el espacio real que cada quien ocupa conforme a su naturaleza. Ir más allá de sí es
transgredir tanto los límites de nuestro ser como violar los de los otros hombres y entes. (Paz 1956: 201).
15

incesto, matar o pai, casar com a mãe, nem desejar e possuir o pai; não se deve deixar
de enterrar os mortos). Por outro, sua finalidade não é a de estabelecer uma legislação
do sim ou não, acerto e erro, crime e castigo: fundamentalmente desnuda a condição
humana na sua fragilidade e limite último, apresentados como peias do destino - o que
deverá ser reconhecido e aceito. É um sentimento que corresponde à "tensão
problemática" da qual fala Jaeger, tensão que se alivia quando a dor se transforma em
consciência do destino. Então o ser humano chegaria à visão da legalidade cósmica e a
sua desgraça apareceria como parte da harmonia universal.

Según Jaeger “lo que caracteriza el espíritu griego, y es desconocido de los pueblos
anteriores, es la clara conciencia de una legalidad inmanente de las cosas”. Esta idea tiene
dos vertientes: la concepción dinámica de un todo, animado por leyes, impulsos y ritmos
cósmicos; y la noción del hombre como parte activa de esa totalidad29.

Como na epopéia, no rito, na tragédia, o destino está entretecido com o destino


dos deuses e outras entidades não humanas, assim como com a saúde da humanidade.
Pergunto-me se não podemos entender o que diz Campbell sobre a necessidade humana
de procurar a Deus, por outra perspectiva. Não corresponderia tal necessidade à
invocação de um saber e de um espírito de justiça absolutos (onisciência e equilíbrio, na
harmonia e plenitude), que serviriam para justificar as medidas, os limites da ação
humana em sociedade? A realidade da morte leva o homem a Deus, ou as divindades se
apresentam como a instância que define a moldura dentro da qual o homem pode
mover-se, a medida, que, desrespeitada é punida com a morte? Examinando alguns
mitos verificamos que o destino é construído por leis nomeáveis e não propriamente só
"cósmicas". A consciência do destino, que se apresenta como correspondendo à
"legalidad inmanente de las cosas", parece ser construída no confronto de três níveis de
leis: a pessoal, particular, que tende para a concepção prepotente, narcísica do ser
humano; a lei social, ou da sociedade, que coloca o outro como referência importante e
a lei divina, que ultrapassa a contingência, estabelecendo valores e normas mais
abrangentes. A tragédia Antígone, de Sófocles, revela isto nitidamente. Até certo ponto,
este confronto constitui tema religioso.

29. Paz 1956: 199.


16

Burckhardt señala que la originalidad de la religión griega reside en ser libre creación de
poetas y no especulación de una clerecía. Y el ser creación poética libre, y no dogma de una
Iglesia, permitió después la crítica y favoreció el nacimiento del pensamiento filosófico30

A consciência da desdita humana (enquanto harmonia universal) depende da


consciência da transformação, da mudança e da mortalidade humana. A ordem cósmica
é feita das arestas que se arredondam por efeito de fricção entre diferentes liberdades. O
sentido de destino é apoiado na liberdade humana, mas ao mesmo tempo é por ele
limitado, já que a concepção de liberdade absoluta ultrapassa a medida, implica
onipotência.
O mito grego também apresenta aspectos psíquicos em luta, neste sentido
semelhante ao conto de fadas. Mas, ao contrário do último, o conflito psíquico
representa, sobretudo, a luta entre dois parâmetros: um interno, psíquico, propriamente,
e outro externo. O conflito revela o esforço do ser humano em vencer o destino - com
sua dupla carga de injunções, do mundo divino e do mundo terreno, sócio-político-
histórico - e a dor da impossibilidade ou incapacidade em vencer as contingências da
natureza ou as sociais. Este combate interno culmina com a dor da perda pela morte. A
apresentação desta luta entre o eu e o mundo (celeste ou terreno) para um público que é
toda a sociedade e todo o mundo, serve para que o ouvinte ou leitor perceba o efeito que
determinados comportamentos no seio da sociedade podem provocar em quem
ultrapassa os limites propostos. O ouvinte ou leitor não receberá elementos para
elaborar aspectos em conflito em si mesmo - como o faz o conto de fadas. A finalidade
é a catarse, que deverá provocar o susto diante das conseqüências terríveis daqueles que
pretendem ser maiores que as referidas injunções. Enquanto o conto de fadas apresenta
os aspectos internos em conflito, o mito revela os efeitos externos de aspectos internos.
Enquanto uma forma procura dar conta da ordem interna, a outra dá conta de uma
ordem externa. Neste sentido, o mito tem função ética, correspondendo ao que Octavio
Paz chama de 'leis do ser e não leis do puro saber'. Para precisar mais 'didaticamente', o
conto de fadas tem uma forma determinada por uma função, ou necessidade e objetivos
básicos: a superação dos limites humanos em vida e no próprio sujeito, limites que se
apresentam em conflito e impedem uma existência plena. Os contos de fadas levam em
conta o ser humano tal qual é, já delimitado na sua ação em sociedade. Portanto pode
preocupar-se com o seu pleno desenvolvimento. A forma do mito depende de uma
30. Paz 1956: 198.
17

função - que corresponde a um universo de idéias - diferente: a construção de limites


para a existência humana e, na melhor das hipóteses, a sua superação pelo potencial
criativo do ser humano, pela palavra, pela forma e pela voz, possíveis a partir da
apresentação de episódios reveladores dos riscos da ultrapassagem destes limites e da
conseqüência desta ousadia ou loucura: a morte e a transformação em outra coisa. Neste
último sentido, mito e conto de fadas se reaproximam: também o mito revela que, se a
ordem social existe e determina a morte, ou a pena (porque existe castigo: Prometeu e
Sísifo são condenados a punições eternas), um princípio de economia fundamental da
vida sobre a face terrestre se mantém, convertendo o morto em outra coisa: um dos
elementos do mundo da natureza física, biológica, o mais das vezes - mas sempre graças
à palavra, geradora. No conto de fadas deve prevalecer a esperança no princípio vital, a
fim de estimular a luta pela sobrevivência e superação: mecanismo de resistência. No
mito, prevalece o saber de que o mundo natural existe porque o limite foi ultrapassado,
gerando a metamorfose: prêmio de consolação para os seres humanos - mas não chega a
ser de acovardamento, ou de resignação, porque mesmo sabendo dos limites, o ser
humano vai além. O mito coloca o limite e o ilimitado da criação e da ousadia; a miséria
humana, a sua miséria máxima, a degradação e a morte - e a sua superação através de
um salto conseguido pelo imaginário, pela ficção, pela inteligência. A esperança é de
conservação do belo e certas dimensões do ser humano que superam os limites da
corporeidade. Há corpos mortais e a exaltação da criação.
Poderíamos imaginar que pelo menos as características de construção do mito
seriam semelhantes às do conto de fadas, já que em ambos, em sua construção,
encontramos, por exemplo, a-historicidade e inespacialidade. Mesmo porque, segundo
Propp, a trajetória do ritual ao conto de fadas, passando pelo mito, corresponde a uma
dessacralização. Mas há nuanças diferentes entre mito e conto de fadas, que não se
explicam por uma sacralidade ou dessacralização de um ou outro, além de termos
verificado que o mito parte do sagrado e sacraliza pelo menos o belo, a palavra e o
amor. O conto de fadas, pelo menos na sua origem, também tem raízes no sagrado.
As personagens do mito se constróem e têm funções diferentes das dos contos de
fadas. Cada mito contém uma personagem fundamental, importante, sendo todas as
demais complementares, secundárias, necessárias apenas para que se cumpra o destino
da personagem principal. O espaço pode ter nuances geográficas, ou, mais
18

especificamente, territoriais. A explicação da existência de uma flor, ou árvore,


obviamente depende de um espaço climático que se coadune com a planta na qual se
converte a personagem. A árvore da mirra não existe no Brasil, assim como o narciso é
europeu. O espaço, no conto de fadas, é meramente ficcional e simbólico, contendo só
esporadicamente e em versões que contêm atualizações de contos de fadas, alguma
informação geográfica, neste sentido territorial (não no sentido deleuzeano). O tempo
do conto de fadas é linear e organizador da causalidade. Não há aspectos históricos. No
mito podemos eventualmente encontrar longínquos resquícios de um acontecimento
histórico, ainda que não datado: a matrilinearidade, ou a patrilinearidade. Junito
Brandão31 refere estudo de Lévi-Strauss, em que este último dá uma definição
antropológica da Esfinge:

Monstro-fêmea ctônio, com sinal invertido, símbolo da autoctonia do homem, monstro que
violava os jovens, caso não lhe decifrassem o enigma, mas que, uma vez vencido e
destruído, mostra que o ser humano não nasceu apenas da fêmea, mas do concurso desta
com o macho32

Este dado remonta a uma história da humanidade, sem que exista explícita
vontade de ideologização. No mito de Édipo encontramos vestígios da matrilinearidade,
presente na religião cretense, representada pela Grande Mãe33. A recorrência de
resíduos míticos de referência histórica não ocorre nos contos de fadas. Os índices
históricos dos contos de fada revelam em primeiro lugar a ideologização decorrente da
vontade de um autor que usa um conto de fadas preexistente e o modifica, introduzindo
elementos de seu interesse (cf. moralidades introduzidas por Perrault), ou aproveita um
texto preexistente, dando-lhe contornos de conto de fadas a fim de obter o efeito e
penetração social objetivados por ele - e que pode, em seguida, ser popularizado e
incorporado no imaginário popular e nos relatos orais, como é o caso de "O judeu nos
espinhos"34.
31. Brandão1989.
32. Brandão 1989: 246.
33. "É assim, exatamente, que se apresenta a Grande Mãe minóica. Deusa da natureza, reina sobre o
mundo animal e vegetal. Sentada junto à árvore da vida, está normalmente acompanhada de animais,
como serpentes, leões ou de determinadas aves. Armada, e de capacete, simboliza a deusa da guerra,
representação da vida e da morte. Para reinar sobre a terra, desce do céu sob a forma de pomba, símbolo
da harmonia, da paz e do amor. Domina o céu, a terra, o mar e os infernos, surgindo, assim, sob as formas
de pomba, árvore, âncora e serpente. E uma coisa é certa: a primazia absoluta das divindades femininas
na ilha de Creta atesta a soberania e a amplitude do culto da grande Mãe". (Brandão 1989: I, 58).
34. Conto do tipo AT 592.
19

Os mitos gregos não se encontravam só isolados, transmitidos como um todo em


relatos orais, recolhidos posteriormente por diferentes autores. Foram tecidos também
em dois tipos de ocorrências textuais: nas tragédias e nas epopéias. As tragédias
refletem diretamente a luta das paixões humanas. A epopéia ultrapassa os limites
contingentes dos sentimentos comuns ao homem real e concreto, centrando seu interesse
sobre as paixões que animavam os seres extraordinários, cuja participação decide os
destinos da história, ou simboliza o espírito de uma época ou de um povo. Estes seres
extraordinários são os heróis. A construção do herói é feita a partir do mito e do
procedimento de mitificação dos seres comuns e tem seu interesse especial, pelas
características do herói e pelo que dele emana para a própria construção do relato. Mas
não se identifica com o mito.
O herói é feito, como o diz Curtius, de fortitudo e sapientia. A personagem tem
isto de extraordinário, na sua origem: força e sabedoria. Graças a estes componentes,
vencerá as dificuldades e perfará o seu percurso. Ele deseja, a cada passo, ser
enaltecido, valorizado, homenageado, como os deuses e semi-deuses. Mas o herói é
mortal, diferentemente dos deuses e semi-deuses. O mito do herói é questionado, desde
a Odisséia, exatamente por isto. Qual o valor maior: o poder, mesmo que exercido só no
reino dos mortos, ou a vida prosaica, desprovida de poder, mas vida?
Aquiles, tendo recuperado “o entendimento”, pôde dialogar com Ulisses e
transmitir-lhe uma opinião melancólica acerca da outra vida: o grande herói preferia ser
agricultor na terra, que era uma das mais humildes funções, a ser rei no Hades. Aqui
está o diálogo entre Ulisses e Aquiles:

Mas tu, Aquiles, és o mais feliz dos homens do passado


e do futuro, pois, enquanto vivias, nós, os argivos,
te honrávamos como aos deuses, e agora, estando aqui,
tens pleno poder sobre os mortos;
desse modo não deves te afligir por ter morrido.
Assim disse e ele prontamente me respondeu:
Ilustre Ulisses, não tentes consolar-me a respeito da morte!
Eu preferia cultivar os campos a serviço de outro,
de um homem pobre e de poucos recursos,
a dominar sobre todos os mortos

Odisséia, XI, 482-49135

35. Brandão 1969: I, 146. A interpretação de Brandão é outra:


É assim a religião homérica. Embora encurralado pela Moîra e ameaçado por Áte, o herói
nesta vida, de que ele fez a sua vida, tem a dignidade de defender quanto lhe é possível, a
20

Para mim a fala de Aquiles não é melancólica como a considera Junito Brandão.
Homero reconhece o valor da vida e, pela primeira vez, na literatura, coloca este valor
como superior à fortitudo et sapientia do herói, superior ao heroísmo, portanto ao mito
do herói - ser extraordinário. Ou então revela a sabedoria de enfrentar a morte com
recursos não previstos. Como à descida ao Hades, canto em que Ulisses encontra
Aquiles, sucede o canto XII, em que Ulisses encontra as sereias, creio que este episódio
configura a astúcia máxima do percurso, resolvido só pela astúcia e não pela força,
como no confronto com Polifemo. Mesmo vencer Polifemo configura etapa da
cerimônia de passagem, de iniciação, pela qual o herói precisa passar para estar pronto
para assumir novas e mais difíceis etapas de sua vida. Polifemo, na sua cegueira parcial,
representa algo semelhante à cegueira, ou à invisibilidade: a morte. Vencê-lo é símbolo
de aquisição de nova visão, o que constitui, segundo Propp, a última etapa da cerimônia
de iniciação, depois da qual o neófito volta para casa. Mas se o episódio foi de vitória,
esta foi relativizada, ou mesmo anulada pela arrogância de Odisseu, que se dá a
conhecer, a fim de ridicularizar Polifemo. Sua hybris será punida. Portanto será preciso
começar de novo, e passar por outra prova.
A passagem pelas sereias representa a passagem pela morte. Já porque o recurso
da cera nos ouvidos representava conselho e objeto mágico ("Cet exemple permet déjà
d’entrevoir que le donateur du moyen magique garde l’entrée du royaume de la
mort"36); já porque o encontro com as sereias - meio pássaros, meio mulheres, tendo um
caráter zoomorfo, representariam a morte:

[...] en effet, l’isba, qui se tient à la limite de deux mondes, a, dans le rite, une forme
animale; dans le mythe, il n’y a souvent pas la moindre isba, mais un animal ou encore une
isba aux traits zoomorphes fortement exprimés37.

O espaço limítrofe entre dois mundos (o da vida e o da morte) é em verdade o


tempo todo, mas mais especialmente neste momento, o mar.
sua timé. Carente de uma concepção unitária de personalidade, como o thymós, o phrén e o
nóos morrendo com o corpo, que lhe sobra para a outra vida? Apenas a psykhé, uma sombra
pálida e inconsciente, um eídolon trôpego e abúlico.
Ignorando as noções de dever, de consciência, de mérito ou de falta, a outra vida ignora,
ipso facto, prêmio ou punição para o homem. Aliás, como julgar, punir ou premiar um
eídolon?
36. Propp 1983: 73.
37. Propp 1983: 75.
21

Amarrado ao mastro da nave, Ulisses não remará. Quem rema são seus
companheiros.
Horkheimer e Adorno vêem nesta cena a intuição, ou capacidade de Homero em
representar o poderoso como folgado e aliciador de trabalho escravo. Propõem que os
escravos fazem avançar, trabalhando; o escravagista não tem condições para a ação. E
ainda que os referidos filósofos da escola de Frankfurt façam a crítica do Iluminismo, da
racionalidade e da ciência, que só levou a uma opressão maior, ainda que isto tenha
sucedido devido à 'quebra do mito'38, não chegam a valorizar o mito. Mostram o temor
que o mito infundia por seu desejo de abrangência - e como a execração da busca de
universais vem do Iluminismo39. Sobre a cena da Odisséia que aproveita o mito das
sereias para representar mais uma etapa do processo de iniciação de Ulisses, dizem:

Os ouvidos surdos que os dóceis proletários conservaram desde o mito não se constituíram
em vantagem alguma, diante da imobilidade do mandante40.

Horkheimer e Adorno vêem a cena das sereias como representação do engano


das massas e da privação de forças do opressor ("da mesma maneira que, em épocas
posteriores, os burgueses recusarão a felicidade para si mesmos"41), ambos instrumentos
de dominação. Segundo estes filósofos, o antropomorfismo é o fundamento do mito.
Ainda que vinculado ao antropomorfismo, na Antigüidade o mito tem outro
fundamento. O mito dá uma explicação holística do mundo, fundada em uma ética
controladora da vida humana em sociedade, ou, em outras palavras, coloca a
necessidade de cumprimento de um pacto do indivíduo com a normas estabelecidas que

38. O que os homens querem aprender da natureza é como aplicá-la para dominá-la completamente e,
com ela, dominar os homens. Fora disto nada conta. Sem escrúpulos para consigo mesmo, o Iluminismo
incinerou os últimos restos da sua própria consciência de si. Só um pensar que faz violência a si próprio é
suficientemente duro para quebrar os mitos. (Horkheimer e Adorno 1980: 90).
39. Assim como as imagens da criação a partir do rio e da terra, imagens que chegaram do Nilo até os
gregos, tornaram-se aqui princípios hilozoísticos, elementos, assim também a profusa ambigüidade dos
demônios míticos se espiritualizou nas formas puras das essências ontológicas. Pelas idéias platônicas, o
logos filosófico finalmente também toma conta dos deuses patriarcais do Olimpo. Mas, reconhecendo as
antigas potências na herança platônico-aristotélica da metafísica, o Iluminismo combateu a pretensão à
verdade dos universais, como superstição. Ele julga ver ainda, na autoridade dos conceitos universais, o
medo dos demônios, por meio de cujas imagens os homens procuravam, no ritual mágico, influir na
natureza. A partir de agora, a matéria deverá finalmente ser dominada, sem apelo a forças ilusórias que a
governem ou que nela habitem, sem apelo a propriedades ocultas. O que não se ajusta às medidas da
calculabilidade e da utilidade é suspeito para o Iluminismo. [...] O Iluminismo é totalitário. (Horkheimer e
Adorno 1980: 91).
40. Horkheimer e Adorno 1980: 112.
41. Horkheimer e Adorno 1980: 111.
22

regulam a relação consigo mesmo e com a alteridade. Mas não é pacto da opressão. Este
pacto nem vem a ser, exatamente, um pacto social.
Um texto não tem só uma leitura. O episódio das sereias também afirma o poder
da patrilinearidade. Afinal, as sereias também são “monstros-fêmeas ctônios”, neste
sentido, semelhantes à esfinge, por serem meio-mulheres, meio aves. Suas asas – então
ainda existentes, simbolizam a liberdade das mulheres. Ela foi perdida pelas mulheres e
a sua perda é repetidamente representada na Odisséia. O poder de encantamento da voz
pode representar o desejo de simbolizar um poder paralelo na fêmea, ou mulher. A cena
de Ulisses atado ao mastro, vencendo a tentação, representa a vitória da patrilinearidade
– e o seu preço.
Ulisses é imobilizado pelas cordas, que serão mais e mais apertadas, mas ouvirá
as sereias e poderá contar-cantar o episódio depois. É o contrário do que ocorre em
personagem do conto de magia, segundo Propp.

L’épreuve imposée par la Yaga de ne pas s’endormir est le plus souvent liée à la
tâche donnée au héros de trouver les gousli qui vibrent tout seuls: “J’en ai de tout prêts (des
gousli); si tu veux, je t’en fais cadeau, mais à une condition: que personne ne s’endorme
tandis que je les accorde!” (Af. 123/216). “à présent, reste assis et ne t’endors pas, sinon tu
ne recevras pas les gousli qui vibrent tout seuls” (Sm. 316)42.
D’après les matériaux cités, on pourrait imaginer que l’interdiction de sommeil
est liée au motif des gousli. Mais le lien n’est pas stable, il s’agit seulement d’une tendance
propre au matériel russe, dans lequel on le rencontre effectivement assez souvent. Avant le
départ du héros, la femme de celui-ci lui donne une fleur: “Bouche-toi les oreilles avec
cette fleur, dit-elle, et ne crains rien!” Ainsi fit l’idiot. Le maître se mit à jouer des gousli, et
l’idiot resta là, assis, sans fermer les yeux” (Af. 123 var./ 216 var.). On ne peut pas ne pas
se rappeler ici Ulysse, qui se bouche les oreilles pour ne pas entendre les sirènes. Il est
possible que cette analogie puisse éclairer l’épisode des sirènes qui s’efforcent d’attirer le
héros par leur chant et de le faire périr. L’assoupissement dans la petite isba de la Yaga
entraîne la mort instantanée: “Prends garde, lui dit le Loup dévoreur, veille à ne pas dormir!
Si tu fais mine de fermer l’œil, je t’avale!” (Af. 123 var. / 216 var.)43

O herói (da epopéia, e não propriamente do mito) não dorme, justamente porque
seus ouvidos não estão tampados. O sono poderia levá-lo à morte, diria talvez um conto
russo. (No conto de fadas “A Bela Adormecida”, o sono da Bela representa a passagem
pela morte; o sono simboliza a morte). No mito das sereias, aproveitado neste canto da
Odisséia, ouvir o som da vozes das sereias canoras é que levaria à morte. Pela análise de
Propp, há um certo número de elementos simbólicos para designar a morte e os mortos:
a invisibilidade (de um modo geral as sereias eram invisíveis, sendo só audível o seu
42. Propp 1983: 101.
43. Propp 1983: 101.
23

canto) e o sono. Como a música entoada pelas sereias invisíveis levava à morte,
poderíamos figurar que esta morte também seria representável pelo sono. O canto (e o
sono): eis a atração fatal, que levaria à perdição. Por isto, seria preciso passar pelas
sereias sem ser afetado pelo seu poder. Só dois recursos serviriam: não ouvi-las,
tampando-se os ouvidos (exatamente como nos contos russos), ou ser mais esperto. A
esperteza não advém apenas do aproveitamento da sugestão de Circe de se fazer atar ao
mastro: se Ulisses pedisse para ser desatado, seria o caso de atá-lo com mais força. Isto
é, é preciso fazer com que ele sinta dor - e não durma, sucumbindo à tentação do sono.
Como seus companheiros podem deixar de ouvir os seus brados, pedindo-lhes que o
desatem, se estão de ouvidos tampados apenas com cera? É porque a cera é simbólica.
Um espaço aberto para dentro do corpo foi vedado. Pelo buraco existente na cabeça é
que entram os maus espíritos e a morte. Poderíamos considerar que os companheiros de
Odisseu "fecharam o próprio corpo". Mas ouvem. Só não devem expor-se por muito
tempo. Daí precisar remar. Ulisses está impedido de usar qualquer força, já que foi
amarrado, a seu próprio pedido. A sua astúcia não é só vencer as sereias, incólume,
atravessando o lugar onde estão. Ele quer exercer a sabedoria, usar a inteligência. Esta
só é manifestável através da palavra, que precisa ser enunciada e ouvida. É preciso
aprender e contar; é preciso entoar, a fim de ser possuidor de um poder mágico: o dom
da palavra. (Os remadores têm talvez o ar de idiotas, como o idiota do conto russo, já
que consta que vêem, mas não ouvem e remam). Ouvir é função fundamental. Porque a
palavra - e a voz - têm um valor excepcional, abrindo portas e espaços, internos e
externos, físicos, espirituais, psíquicos, sagrados. Como no Livro dos Mortos, ou no
Velho Testamento. Ou como em "Chapeuzinho Vermelho". Propp44 sublinha a
importância da cerimônia de abertura dos lábios no Livro dos Mortos. A cerimônia
serviria para expelir e receber espíritos. Observe-se, no texto sagrado, que ao pedido de
abertura da porta ouve-se a pergunta sobre quem é o outro. Como se chama o outro. A
resposta seria um nome - ou dois - o que no texto corresponde a uma identificação. Mas
em seguida vem explicitado: "le nom de ma barque est collecteur d’âmes..." No Livro

44. La cérémonie d’ouverture des lèvres était l’une des plus importantes du culte. Dans les textes
consacrés au culte des morts, un livre spécial porte son nom: Le livre de l’ouverture des lèvres. Mais on
peut en trouver aussi des exemples dans le Livre des Morts. Voici un passage du cent vingt-deuxième
chapître du Livre des Morts: “Ouvre-moi! - Mais qui es-tu? Comment t’appelles-tu? - Je suis des vôtres,
le nom de ma barque est collecteur d’âmes... Que l’on me donne des bols de lait avec des galettes, du pain
et de la viande... Que cela me soit donné entièrement... Que tout soit fait pour que je puisse continuer mon
voyage semblable à l’oiseau Bennou...”
24

dos Mortos45, uma seqüência de capítulos e umas poucas citações tiram qualquer dúvida
sobre a relação entre o poder da palavra, a abertura da boca, o conhecimento e sabedoria
e a proteção invisível (talismã mágico):

Cap. XXI: Para devolver a um morto os Poderes de sua Boca.


Concede à minha boca os poderes da palavra [...]
Cap. XXII: Para devolver a um morto os Poderes de sua Boca.
Que me seja restituído o poder de minha boca, que eu possa pronunciar ante o Senhor do
Além as Palavras de Potência!
Cap. XXIII: A abertura da boca do Morto46.

[...] além disso, meu Verbo de Potência cerca e protege meus domínios. A magia, a magia
que sai de minha Boca cria uma rede intransponível [...]47.

Eu sou o dono do Saber Sagrado e do Verbo mágico. Como Ra, eu me protejo a mim
mesmo. [...] Eu sou teu Filho e contemplei teus Mistérios48...

As circunstâncias que cercam esta aprendizagem têm ecos na Odisséia. A


iniciação e a contemplação do mistério se dão com a entrada no reino dos mortos.
Ulisses havia penetrado no intransponível: o Hades. Ele está em uma barca, como
Horus:

Cap. XXXVII. Invocação a Ísis e a Néftis.


Salve, oh! Deusas irmãs Ísis e a Néftis: eu vos anuncio minhas Palavras de
Potência! Eis que, envolto em irradiações, navego em minha Barca celeste. Em verdade, eu
sou Horus, filho de Osíris; aqui estou para ver Osíris, meu Pai49.

O herói que abdica da força física potencia sua sabedoria, seu conhecimento e
astúcia, concentrados na palavra. Que representa valor máximo e diferenciador da
espécie humana. Força e sabedoria são moduladas ao longo da produção da narrativa,
oral ou escrita, em torno, por um lado, da desmitificação e da relativização da força do
herói e, por outro, do alcance da prudência, noção contida já na sapientia, e cristalizada
na enunciação da narrativa ou cantiga. Ela é temperada, em Homero, pela

45. Anônimo. (Como há mais de um anônimo na bibliografia geral, será necessário citar a obra pelo
título - O Livro dos mortos do antigo Egito - o qual, sendo longo, será indicado apenas como Livro dos
mortos). Livro dos mortos 1994.
46. Livro dos mortos 1994: 42-3.
47. Livro dos mortos 1994: 49.
48. Livro dos mortos 1994: 62.
49. Livro dos mortos 1994: 53.
25

desmitificação do herói50, que se espanta com Aquiles, revelando dar mais valor a uma
vida comum na terra, do que a uma posição gloriosa no reino dos mortos. Este tipo de
desmitificação é permanentemente recolocada pela literatura, que discute o poder da
palavra, reconhece o limite e perigo do mito e o repõe em formas de abracadabra -
palavra que enuncia o valor do alfabeto. A palavra revela-se onipotente e excepcional.
Onipotente, porque num primeiro momento, dá a ilusão de estabelecer uma relação
direta entre coisa e enunciação, entre evento e pensamento, como sucede com a criança.
Isto confere à palavra a ilusão referencial. E passa a ter valor mítico. O mito do herói é
questionado. Mas a palavra valorizada repõe o mito: dialética infinita e permanente da
enunciação narrativa, ficcional, porque o terceiro elemento da dialética, a síntese,
impede o desmembramento dos aspectos e os reúne, criando o novo pressuposto que
inicia novo jogo enunciativo.
A Odisséia, mesmo trabalhando com mitos gregos primitivos, não é elaborada
como mito. Tem nítidas características de narrativa ficcional. A epopéia cumpre uma
função especial - a de narrar as aventuras de um herói como inaugurais de uma nação,
de uma potência. A epopéia difere do romance tanto por esta função especial, quanto
pela forma em versos e pela poesia de suas imagens.
O estatuto do herói ainda tem outras nuances. O herói, propriamente, luta contra
as forças do destino: ação afirmativa, positiva, pela vida. Este aspecto o aproxima de
característica do conto de fadas: a luta contra os aspectos em conflito do ser humano. O
herói não luta contra aspectos internos. Cada personagem, na epopéia, representa um ser
humano mais complexo do que as personagens-aspectos dos contos de fadas. O herói é
um - inteiro e íntegro - que luta contra forças externas representadas por outros
interesses, nações, categorias de seres. Ele não percebe os conflitos internos e
'desobedece' uma lei, ou norma. Em geral pode-se ver que a hybris consiste em não
perceber os limites humanos que são definidos pelos conflitos internos. A hybris, o
excesso, é gesto de onipotência. A luta poderá ter valor simbólico. Mas a personagem só
percebe a alteridade. Ela fica suspendida no tempo e espaço, porque o seu desejo de
enfrentamento vai além dos seus próprios limites. A personagem de conto de fadas tem
mais clareza do princípio de realidade do que o herói épico, que perde a dimensão dos
limites de suas forças e passa a ser guiado pelo que está lá... Mesmo errado, ou vencido,

50. No mito, Ulisses prefere fingir-se louco a ir à guerra; desmascarado, parte para a luta. Esta é narrada
por Homero.
26

o herói cristaliza o desejo de luta com o mundo. O que pareceria corresponder à pulsão
de vida acaba se revelando pulsão de morte. Tanatos vence, tanto em Édipo, como em
Narciso, mesmo quando este apenas estende os braços e suspira. Neste último caso, o
'herói' peca - ou erra - na desmesura, por equivocar-se com respeito ao seu interlocutor.
A voz do destino, a predição, não é de um outro, mas de si próprio. E novamente vence
Tanatos. Tanatos, ou a cegueira, ou a transformação como punição. Como a personagem
do mito (ou da epopéia ou tragédia grega, que trabalham com mitos) não tem a
dimensão de si mesma, é necessário um recurso metalingüístico: a voz, na epopéia, que
adverte, encaminha (como Atenas, na Odisséia), ou que, procurando desencaminhar
(como as sereias, na obra referida), precisa ser vencida e incorporada, para configurar o
ser de exceção; o coro, na tragédia; ou um narrador em terceira pessoa que explica e
comenta os eventos, contrapondo-se à personagem, que se manifesta em primeira
pessoa:

Se inclina, vai beber, mas outra sede o toma;


enquanto bebe o embebe a forma do que vê.
Ama a sombra sem corpo, a imagem, quase-corpo.
Se embevece de si, e no êxtase pasmo,
é um signo marmóreo, uma estátua de Paros.

[...]

Não sabe o que está vendo, mas no ver se abrasa:


o que ilude seus olhos mais o açula ao erro.
- Crédulo buscador de um fantasma fugaz!
O que buscas não há: se te afastas, desfaz-se.

Sai fora dessa fonte! Vem! Por que me iludes,


evasivo menino? Em formas ou idade,
nada em mim pode haver que te repugne. Ninfas
me amaram! No teu rosto leio bons prenúncios:
quando te estendo os braços, braços me distendes:
se rio, sorris; lágrimas respondem lágrimas,
se choro; a meu aceno, acena tua cabeça.
Adivinho palavras, em tua linda boca,
móveis palavras, que no ouvido não me chegam.
Sou eu este outro! Não me ilude a imagem fútil.
Queimo no amor de mim, no incêndio que me ateio.
Que hei de fazer? Rogando, sou rogado. A quem
E como suplicar? A mim cobiço e tenho:
pobre e rico de mim. Quero evadir meu corpo,
desejo estranho num amante!

A poesia resgata a forma bela perdida da personagem mítica Narciso através da


bela forma poética, de imagens, da busca da palavra.
27

O mito, que se apresenta como forma - revela a economia do universo, em seu


processo de transformações, de mudanças, ao mesmo tempo em que capta o desejo
inexcedível do ser humano de superar os limites criados por Tanatos, através da
inteligência, isto é, da criação. Esta ultrapassa os limites da vida humana, perpetuando o
que é mortal, fugaz. Veja-se Narciso, Eco e todos os entes tratados por Ovídio.
No mito a morte predomina, mas a vida é representada pela transformação, pela
mudança de estado. Neste sentido, entendo algo diferente de Horkheimer e Adorno:

O mundo dominado pelo mana e mesmo ainda o mundo do mito hindu e grego são eternamente iguais
51
e sem saída. Cada nascimento é pago com a morte, cada felicidade, com a infelicidade .

Eco transforma-se em pedra, mas permanece a voz. Narciso morre, mas ao


metamorfosear-se em flor, permanece a beleza do corpo e dos olhos. A vida não é
dominante, mas algo dela se mantém. Esta característica é cíclica e representa aquilo
que também no conto de fadas aparece de cíclico: a esperança na transformação, na
continuidade do ciclo vital. No mito isto é recessivo. E elemento cíclico, e não eterno,
como o colocam Horkheimer e Adorno:

A doutrina dos sacerdotes era simbólica, no sentido em que nela coincidiam


signo e imagem. Como testemunham os hieróglifos, a palavra desempenhava
originariamente também a função de imagem. Essa função passou para os mitos. Tanto os
mitos quanto os ritos mágicos visam à natureza que se repete. Ela é a essência do
simbólico: um ser ou um processo que é representado como eterno, por dever sempre
converter-se novamente em acontecimento, no perfazer-se do símbolo. Inesgotabilidade,
renovação sem fim, permanência do significado, não são apenas atributos de todos os
símbolos, mas seu verdadeiro teor52.

Segundo os dois autores referidos, "o mito pretendia relatar, denominar, dizer a
origem; e, assim, expor, fixar, explicar. Com a escrita e a compilação dos mitos, essa
tendência se fortaleceu". O mito, de relato foi a doutrina.

Todo ritual inclui uma representação do acontecer enquanto processo determinado que se
destina a ser influenciado pelo feitiço. Este elemento teórico do ritual tornou-se
independente nas mais antigas epopéias dos povos. Os mitos, tais como encontrados pelos
autores trágicos, já estavam sob o signo daquela disciplina e daquele poder louvados por
Bacon como o objetivo a ser perseguido. Em lugar dos deuses e demônios locais, aparecem
o céu e a sua hierarquia, em lugar das práticas de conjuração do feiticeiro e da tribo, surgem

51. Horkheimer e Adorno 1980: 98.


52. Horkheimer e Adorno 1980: 99.
28

os sacrifícios de vários níveis hierárquicos e o trabalho dos escravos mediatizado pelo


mundo53.

Uma forma desta história mantém-se como substrato virtual de estruturação de


qualquer relato, isolado ou misturado com outras formas, isto é, como outros modos de
associação dos dados, que não são só os da natureza física, mas também da natureza
humana, portanto psíquica - e com diferentes funções. Não é substrato de dominação.
Ele participa da idéia de relação direta, imediata, entre enunciação (manifestação, e até
pensamento) e ação, evento, acontecimento. A característica do mito de participar da
idéia de onipotência do ser humano, idéia que também é inata e se repete a cada vida
humana, não vem da estrutura do mito, e sim das características do indivíduo em sua
fase inicial de vida. O indivíduo atribui o valor imediatista à palavra e ao pensamento e
estabelece uma relação direta, sem intermediários, entre pensamento, palavra
(enunciação) e acontecimento. É uma ilusão de onipotência, que leva ao sentimento de
culpa. A onipotência não é característica específica de personagem mítica - e muito
menos de toda a forma mito. Em cada uma e todas as manifestações de onipotência, que
se apresenta como hybris, ela e elas são punidas, moderadas, consistindo este no aspecto
mais fortemente delimitado e restrito para aquele que o revela e pratica. As maneiras de
controle da hybris são diferentes em cada forma. Em todas esta é a ferida maior.

O mito tematiza os limites da ação humana em sociedade. Para além deles


sobrevem a punição. Esta constatação já foi feita por outros autores. Vernant também:

Solidaire du rite - récit oral et pratique gestuelle constituant les deux faces inséparables
d’une seule et même expression symbolique - il a pour rôle de renforcer la cohésion sociale,
l’unité fonctionnelle du groupe, en présentant et justifiant, dans une forme codifiée,
plaisante à entendre, facile à retenir et à transmettre de génération à génération, l’ordre
traditionnel des institutions et des conduites. Le mythe répond ainsi, sur un double plan aux
exigences de la vie collective; il satisfait le besoin général de régularité, de stabilité et de
pérennité des formes d’existence qui caractérisent la socialité humaine; il permet aussi aux
individus, au sein d’une société particulière, d’ajuster, en accord avec les procédures et les
règles d’usage, leurs réactions les uns aux autres, de se soumettre aux mêmes normes, de
respecter les hiérarchies54.

Para Vernant, o mito cumpre um papel de controle social (imutável ao longo dos
tempos) e de ajuste às "regras de uso, as relações mútuas dos seres humanos de se

53. Horkheimer e Adorno 1980: 91.


54. Vernant 1982: 231.
29

submeterem às mesmas normas, de respeitar as hierarquias”. Para mim, os limites


definidos pelos mitos dizem menos respeito à coesão social, à unidade funcional do
grupo, do que aos riscos do excesso, da desmesura, da arrogância, do auto-centramento,
da ambição desmedida e quejandos na existência humana. A desmesura se apresenta
como limite para a ação humana porque o ser humano vive em sociedade. Não é tanto
uma questão de sociabilidade, nem é uma questão de hierarquias, a não ser que as
instâncias divinas sejam assim entendidas. É uma questão de leis cósmicas. Limitam o
indivíduo na sua ação. Examinam, avaliam, pesam a ação humana. (E registram
aspectos da história da humanidade, como a substituição da matrilinearidade pela
patrilinearidade, ou a trajetória de busca de bronze pelos gregos, ou a referência a uma
geografia imprecisa, mas existente).
Como o limite imposto ao indivíduo, nos mitos gregos, tem riscos, e estes são de
morte, eles reafirmam, em cada um e em todos os mitos, o risco de ou mesmo a atração
pela morte. Por isto a dominante do mito é a pulsão de morte, impulso da psique
humana de todos os tempos.
Voltando a Vernant, é curioso que ele acabe vendo o mito como balbuciante,
infantil:

Ainsi le parler enfantin prépare le langage de l’adulte et n’a de sens que par rapport à lui.
Le mythe serait donc comme une ébauche de discours rationnel: à travers ses fables, on
percevrait le premier balbutiement du logos55.

Vernant aceita a divisão da história em duas águas, proposta por Aristóteles, que
separa as civilizações em tempos do logos e do mythos, idéia que ele apresenta
longamente no seu livro. O mito seria algo do passado e infantil. Irracional. Apesar
disto, é tão cativante que passa de geração em geração. Consideremos: todas as gerações
seriam infantis – ou todos os infans nascem com uma potencial organização de eventos
em relatos com certa função própria dos mitos? Todas gerações são irracionais? Ou
temos antes uma quantidade suficiente de formas da oralidade que dão conta de
variações de dominância das duas pulsões básicas do ser humano? Se o mito é
irracional, pode propor a coesão social? Se o propõe, não traria aspectos racionais? A
resposta do presente trabalho é: o grande disciplinador da ação humana em sociedade é
Tanatos, temperado pela esperança de vida. E ainda: logos e mythos convivem sempre,
55. Vernant 1982: 214.
30

porque compõem o potencial ao mesmo tempo centrífugo e centrípeto do pensamento


humano.
O mito se insere numa temporalidade abrangente e variada. Pode explicar uma
origem de elemento da natureza, e controladores da psique ancestrais. Pode explicar um
momento da história, como a passagem para a patrilinearidade. Ou mesmo só um
comportamento humano. Em todos os casos aventados a projeção se dá para o passado.
A metamorfose que ocorre abre ainda para um passado, que chega até o presente.
No conto de fadas vence a pulsão de vida: Eros. Porque o espaço e o tempo do
conto de fadas são em verdade mais restritos, representando apenas uma vida humana, e
não o universo, nem mesmo o ser em sociedade. Ao longo da vida humana precisa
haver a iniciação, que imita uma morte e ressurreição. Como o princípio é Eros, a noção
cíclica abre para a superação das dificuldades, do desconhecimento, e, portanto, abre
para a realização plena no futuro. Por isto a pulsão de vida.
O mito, em que vence Tanatos, limite de linha de vida, limite de trajetória, se só
contivesse este aspecto, não esclareceria o passado. Como inclui a metamorfose, repõe,
mesmo que discreta, ou subsidiariamente, a noção de ciclo vital. Por esta razão não
podemos dizer que o mito verbaliza e simboliza, ou alegoriza a pulsão de morte e o
conto de fadas, a pulsão de vida. As pulsões manifestas em ambas as formas não são
exclusivas: são apenas dominantes. O conto de fadas apresenta a morte como etapa para
a vida. O mito contém a vida das espécies vegetais, ou princípios vitais (como o fogo de
Prometeu) que permanecem apesar da morte. O mito também coloca a palavra e a
produção artística como remanescência da pulsão de vida. O conto de fadas afirma,
sobretudo, a energia vital e a vontade, como fortes molas propulsoras da ação humana.
E como as formas da oralidade organizam, em torno de relatos, porções diferentes das
duas pulsões, funcionam de maneira diferente e ao mesmo tempo existem desde a
Antigüidade e se renovam a cada vida. Neste sentido, como a palavra, são alfa e ômega.

2.1. –
31

O mito grego na tradição cultural ocidental

A manutenção de temas, mitos e símbolos recorrentes na produção cultural oral


no mundo todo é o fundamento para o entendimento dos seres humanos ao longo da
história. O repertório universal não impede que haja outro tipo de diálogo entre textos -
escritos - verificável nos intertextos. Este é um diálogo consciente e voluntário do autor.
O intertexto decorre de leituras e já se chamou simplesmente de "influências exercidas
sobre o escritor". O diálogo com a tradição, local, nacional, ou internacional, não é
forçosamente consciente, ainda que possa sê-lo, enquanto que o recurso ao inconsciente
coletivo é, como não poderia deixar de ser, de difícil análise, a não ser através das
manifestações que contêm elementos reveladores deste inconsciente.
Notável foi a habilidade dos gregos ao conseguirem dar forma ao inconsciente
em seus mitos, aproveitando mitos anteriores, quer de outros povos, quer de ritos
próprios, como sucedeu com os mitos do povo russo e o mostra Vladimir Propp. Muitos
destes mitos permeiam a literatura universal.

En faisant porter notre attention sur les mythes, nous devons avoir à l'esprit que l'on ne
peut considérer le mythe comme une illustration parfaite du rite. La correspondance totale
entre mythe et rite ont une existence plus longue que le rite. Comme il a été indiqué, les
mythes ont été parfois notés dans des lieux où le rite avait disparu. Pour cette raison, le
mythe contient des traits plus tardifs, des traits d'incompréhension, de déformation et de
modification56.

Propp acha incompreensível a mudança ocorrida do rito ao mito. Para ele, como
a trajetória é linear e indefectível, como a explicação precisaria ser lógica, qualquer
variação em torno deste quadro é inaceitável ou inexplicável. Para o Lévi-Strauss de
certo momento de sua obra, os mitos gregos tiveram um caráter universal57. Outros
estudos, conforme Detienne, sugerem que o mito grego se perdeu, engolido pelo logos:

Para os adeptos de uma história que valorize apenas os traços de escrita, o discurso
da oralidade original tornou-se, no país grego, tão inaudível que chega a ser quase ilegível
mesmo onde se transmite através dos sinais escritos. Inacessível, a mitologia já não mostra
senão a máscara estática que lhe modelaram, quando os obscuros artesãos da mitografia a
embalsamaram em manuais, na era da erudição alexandrina. Uma escrita de morte,
impotente aliás para se esquivar das contradições do que nada mais é do que um resto, um

56. Propp 1983: 299-300.


57. "[...] desde Le cru et le cuit, Lévi-Strauss havia concedido à categoria do 'mito', declarado universal,
porquanto grego de nascimento". (Detienne 1998: 83).
32

despojo. [...] Os gregos, ao que parece, asseguraram com tanta eficácia o triunfo da razão,
do lógos, que arruinaram o antigo sistema de pensamento, a ponto de não restarem deste
senão fragmentos, frases ininteligíveis. Não se pode transpor a distância entre a linguagem
vivida do mito e a tradição escrita58.

O logos não venceu o mythos, até nossos dias, nem pode vencê-lo, porque ambos
fazem parte do que é o homem, feito de -n- matizes, superposições, variações de logos e
mythos, de Eros e Tanatos.
Registramos a presença de mitos gregos, mesmo que de forma difusa, na
literatura brasileira, erudita, escrita? E na produção oral? Não estenderei este trabalho
para o estudo de casos em toda a literatura brasileira em que se possa registrar a
presença de mitos gregos. A resposta sendo positiva, seria seguida de outra pergunta:
por que via recebeu um autor tal, ou tais mitos?
Partindo do pressuposto de que pelo menos registraríamos a referência a alguns
mitos gregos - ou suas figuras míticas - muito difundidos na literatura brasileira
(Narciso, Édipo, Prometeu, Eco, as Parcas, Tirésias) poderíamos definir quatro tipos
diferentes de manifestação.

1. Presença dos mitos gregos não explicável histórica, mas arquetipicamente em


mitos indígenas recolhidos no século XX.

2. Presença de mitos gregos na literatura popular.

3. Presença consciente de mitos gregos na literatura erudita.

4. Presença inconsciente, não elaborada, de mitos gregos na literatura erudita.

1. Presença dos mitos gregos não explicável histórica, mas arquetipicamente em


mitos indígenas recolhidos no século XX.

Com respeito ao mito indígena a pergunta é: como receberam certo rito ou mito
as tribos indígenas encontráveis no Brasil, que não tinham contato com os povos nos

58. Detienne 1998: 219.


33

quais se encontrava a recorrência do mesmo mito ou rito? Na falta de resposta histórica,


registro a origem arquetípica e estudarei separadamente o mito primitivo.

2. Presença de mitos gregos na literatura popular oral.

Mito e ciência (mythos e logos) foram definidos por Lévi-Strauss como formas
opostas da sistematização da coerência mental. Sem corresponder a um pensamento
selvagem propriamente, o mito reaparece como manifestação ordenadora de fenômenos
físicos e psíquicos. O mito grego, mesmo distante mais de um milênio de nossos dias,
reaparece quer em manifestações da psique, como sonhos ou devaneios, quer em
manifestações culturais. Estas podem ser explicáveis historicamente, estando os
europeus na rota da manutenção temática, de motivos ou de todo e cada um dos relatos,
ou ainda na transmissão oral de contos de fadas já conhecidos no Oriente e no Ocidente,
fora do Brasil e em séculos anteriores aos do encontro de brancos e índios. Alguns
motivos são recorrentes, quer em contos de fadas recolhidos no Brasil (não
reconhecidos como pertencentes à Literatura Brasileira), quer na literatura de cordel. A
compreensão destes motivos nos pode ser dada pelo estudo das raízes históricas dos
contos maravilhosos, de Propp. O que ele afirma do conto de fadas, que às vezes chama
apenas de conto, é válido para a ficção em prosa e verso.

Généralement, on suppose que le conte est émaillé d'éléments protohistoriques, mais qu'en
lui-même, il est le produit d'une création artistique "libre". Nous voyons que le conte
merveilleux est entièrement composé d'éléments remontant à des faits et à des conceptions
datant d'une société sans classes59.

Propp entende que os elementos proto-históricos provêm de uma sociedade sem


classes. Os povos primitivos – pensemos no indígena brasileiro – não têm classes, mas
hierarquias e funções. Como há motivos (no sentido de Aarne-Thompson) ancestrais
presentes mesmo no séc. XXI, eles não terão sido definidos pela existência ou ausência
de classes sociais, nem a sua modificação corresponde a características sócio-
econômico-políticas da sociedade em que foram registrados. Advêm das relações
humanas cambiantes, variáveis, de poder ou submissão.

Ce qui, à présent, se raconte, était autrefois agi, joué ou représenté de façon ou d'autre. De
ces deux cycles, le premier à dépérir est le rite. Le rite disparaît alors que les conceptions
sur la mort continuent à se développer, à se modifier, une fois perdu tout lien avec le rite.

59. Propp 1983: 472.


34

La disparition du rite est en rapport avec la disparition de la chasse en tant que source
d'existence unique ou essentielle.
Sur la base de tout ce que nous venons de dire, nous devons nous représenter l'évolution
ultérieure de la composition des sujets de la façon suivante: une fois crée, le schéma de
départ emprunte à la réalité nouvelle, plus tardive, certaines particularités ou traits
nouveaux. Par ailleurs, des conditions de vie nouvelles créent des genres nouveaux (le
conte romancé), qui déjà s'organisent sur un autre terrain. En d'autres termes, l'évolution du
sujet se fait par couches successives, par transformations, transpositions, etc., d'une part, et,
d'autre part, par introduction d'éléments nouveaux60.

Propp define uma trajetória cronológica em que os ritos (ação) deram nos mitos
(relatos), e estes nos contos populares (narrativas, também). Considerando que
continuamos a ter ritos, mitos e contos de fadas, ainda que modificados, convivendo nas
diferentes sociedades até hoje, precisaríamos repensar a categorização de Propp. As
concepções de morte, que variaram ao longo da história, voltaram a se colocar nos
diferentes grupos religiosos, mesmo no atual século, mantendo, modificando, criando
ritos. A caça não é mais um meio de vida. Mas ritos, mitos e motivos permanecem,
assim como os mitos gregos, que são volta e meia aludidos ou aproveitados, tantos
séculos depois de seu registro, nas mais diferentes produções culturais. Concebo,
semelhantemente a Propp, que o imaginário e a simbologia – inatos – são ampliados e
aprofundados pelo conhecimento sucessivo, ao longo da vida de cada um, de mais
elaboradas e diferentes referências advindas dos ritos do presente do sujeito, dos relatos
dos antepassados, dos mitos aproveitados em relatos sob forma auditiva, ou auditiva e
visual, pela leitura, visão, audição. Entrelaçam-se a história individual e coletiva, o
presente e o passado histórico, de maneira imprevisível – mas possível porque a trama
não é feita a partir de um ponto, ao qual se alinha outro inevitavelmente, numa trama
complexa, feita de furos, de frestas, preenchíveis, ampliáveis, corrigíveis por novas
imagens, idéias, mitos, símbolos, formas. Sobre uma base inata, relativamente simples,
que explica a aceitação dos aportes sucessivos e progressivos, forma-se um palimpsesto,
ou um terreno arqueológico feito de uma pluralidade não ordenada, em que será difícil
estabelecer uma linha evolutiva.
Estudarei alguns motivos de fontes diversas, comparando-os. Ao escolher os
textos, darei preferência, como segundo termo de comparação, a textos brasileiros, seja
eruditos, seja populares.

60. Propp 1983: 470.


35

Em contos de fadas não é infreqüente a transformação de pessoas em pedra. O


tópico tem origem na Bíblia, nas filhas de Loth que olham para trás e se transformam
em estátuas de sal. Há análogos talvez mais próximos em mitos gregos, apesar de
Graves61 considerar que a transformação de pedras em pessoas é, quiçá, empréstimo
tomado pelos helenos do Oriente: São João Batista referiu-se a uma lenda análoga em
um jogo com as palavras hebraicas banim e abanim ao declarar que Deus "pode, além
destas pedras, fazer filhos a Abraão" (Mateus III. 3-9, e Lucas III. 8). A transformação
de pessoa em pedra, tópico, ou motivo tão recorrente, tem origem e transmissão
históricas. O leitor de hoje transporta grande quantidade de camadas de sentido
diferentes para cada tópico, de modo a superpô-las ao sentido original, em dobras e
redobras.
Tanto os motivos de mitos gregos como os de relatos populares constituem
imagens recorrentes, temas menores, que na sua manifestação original e primeira
encontravam-se em relatos mais longos e não constituem elemento estruturador. Nas
recorrências posteriores, apresentam duas modalidades de aproveitamento:
- o motivo constrói aspectos da estrutura da nova obra, na qual ele recorre. Ele não é
meramente repetido enquanto estória.
- o motivo se apresenta como elemento simbólico incidental.
Em nenhum destes casos a recorrência é vazia. Em todas refere-se a movimentos
psíquicos.

O tema do engolimento e o destronamento de Cronos

Um destes temas aparece tanto em "Chapeuzinho Vermelho", como no mito do


destronamento de Cronos. (I, 7. c: 45)62. Como o conto "Chapeuzinho Vermelho" tem
origem no Livro dos Mortos do antigo Egito, aproveita mais motivos do Livro dos
Mortos do que do mito de Cronos, não precisaria do mito para explicar a sua existência.
Ou chegaríamos, novamente, a nos perguntar se o rito precede o mito e se
obrigatoriamente existiu a passagem do ritual ao mito. O livro sagrado, correspondente
a um ritual, já vertido em palavras e com uma forma especial, poderia ter sido
aproveitado tanto pelo mito como pelo conto de fadas, cada um deles com objetivos
61. Graves 1991.
62. Vide capítulo sobre os contos de fadas, no vol I de Ficção e Razão.
36

diferentes: um, para mostrar que o tempo (Cronos - Chronos63) não pode se eternizar, e
será vencido por Zeus; outro, a fim de propor que a trajetória da vida precisa de uma
iniciação e que ela consiste em enfrentar a morte, e vencê-la. Num, rege o princípio do
limite, da regulação e morte; no outro, o princípio da vida, da superação. A regulação
precede necessariamente a superação.
Ao rito do engolimento corresponderia uma infra-estrutura econômica, diz Propp.
Esta teria determinado as variações do motivo, passando ele a corresponder ao dragão
engolidor - ou ameaçador - mais tarde substituído pela água tragadora de pessoas. No
mito, o engolimento produziria o grande caçador, ou o chefe. Mais tarde, o grande chefe
e mais tarde ainda, deus. Qualquer das instâncias de poder nomeadas corresponde a um
poder punitivo e limitador.

Dans un mythe africain de la tribu relativement cultivée des Bazouto, le héros est avalé par
un monstre. Il rentre chez lui, mais n'est pas reconnu des siens, qui l'obligent à disparaître
de la surface de la terre64. Nous avons ici le point de départ d'une déification. Il est possible
que, dans le thème de Cronos dévorant et crachant ses enfants, nous ayons des bribes de la
même conception. N'est-ce pas en effet parce qu'il est un dieu-père et qu'il est susceptible
de conférer la divinité à ses enfants que Cronos les dévore?65

O engolimento e a regurgitação estão associados à iniciação, e à ascensão a um


nível de chefia66. A regurgitação investiria o regurgitado de poder especial, sagrado.
Ambos motivos têm caráter simbólico. Este desenvolvimento corresponde à base da
argumentação de Propp, que propõe a passagem do rito ao mito e deste ao conto
maravilhoso.
Correlato ao engolimento e à regurgitação, o mito de Cronos representa a
ambivalência nas relações entre pai e filho. Decorre uma mudança de regime, espécie de
reforma religiosa primeira e segunda. A segunda, referida por Hesíodo em Os
Trabalhos e os Dias, mostra Cronos reconciliado com Zeus, revelando que a
ambivalência nas relações entre pai e filho pode permitir a convivência entre eles.

63 Há dois Cronos: Cronos e Chronos. Cronos representa às vezes o tempo personificado. A ortografia
de seu nome (com um kappa inicial em grego) lembra Chronos (com um khi inicial), o Tempo. Em
Aristóteles, o Cronos que devora seus filhos é assimilado ao tempo que não pára nunca de se esvair, da
mesma forma que a foice (associada à alfanje), que lhe permitiu cortar os testículos de seu pai Urano, é
assimilada à alfanje impiedosa do tempo.
64. L. Frobenius, Weltanschauung: N. 6, p. 301: 106.
65. Propp 1983: 301-2.
66. Nous savons que tout le rite d'initiation était interprété comme un séjour dans le pays de la mort et,
réciproquement, que le mort était censé subir tout ce que subissait l'initié: il recevait un aide, rencontrait
un dévoreur, etc. (Propp 1983: 470).
37

Cronos reina no céu apenas na primeira idade: a idade do ouro. É um período em que os
homens, que constituíam uma “raça de ouro”, não conheciam nem penas, nem
preocupações, não trabalhavam e não envelheciam. A segunda idade corresponde a uma
“raça de prata” que não honrava os deuses, em que os homens envelheciam e viviam na
violência. Esta idade acaba terminando no destronamento do pai e na destituição de
Cronos.
A terceira idade é a idade de bronze, a mais terrível, que termina com a
autodestruição da raça humana. Uma quarta idade sucede a estas três, correspondendo à
raça dos heróis, quando Cronos e Zeus habitam juntos a ilha dos Bem-aventurados. Os
habitantes vivem sem preocupações, sem conhecer as misérias do mundo. Satisfeitos
com o que lhes é concedido, não conhecem nem o desejo insaciável (koros), nem a
inveja (zêlos), que geram a desmesura (hybris). Possuem todos os bens e têm à sua
disposição um solo fecundo. Virá em seguida uma quinta idade, em que triunfará o Mal.
Engolimento e regurgitação apresentam estas complexas dimensões abrangidas
pelo mito de Cronos – não explicável pelo desenvolvimento econômico-social de um
grupo humano, antes prevendo, nos deuses, comportamentos humanos recorrentes. É
uma complexidade construída por séries de ambivalências que se superpõem, como
Cronos que devora, ao mesmo tempo em que gera; destrói suas criações; seca as fontes
da vida, ao mutilar Urano e ao mesmo tempo, ele mesmo se transforma em fonte
geradora, fecundando Reia, sua irmã e mulher; simboliza a fome devoradora da vida, o
desejo insaciável; com Chronos (confundido com Cronos) começa o sentido da duração,
mais especificamente, de uma duração que transcorre entre a excitação e sua satisfação;
representa o rito da castração como sacrificial e o deus mutilado vira ave (corvo, cf.
Robert Graves) o que simbolizaria a sublimação dos instintos, ao mesmo tempo que ser
mutilado corresponde à perder do poder. Cronos é um soberano incapaz de se adaptar à
evolução da vida e da sociedade, de tal maneira que, para que o mundo progrida, ou
Cronos precisa ser emasculado, ou vai para o céu. Ao mesmo tempo, ele simboliza o ser
humano e a história, sempre plurivalentes, com movimentos e impulsos contraditórios.
Na contradição instala-se a diferença.
Esta complexidade pode permitir uma leitura mais abrangente e diferenciada do
conto de fadas já analisado. O tema do tempo – da duração - não aparece na versão de
Perrault ou de Grimm, mas na de Guimarães Rosa. O lobo de "Chapeuzinho Vermelho"
38

também confere poder especial e divino à personagem principal e à avó, na medida em


que as engole. Sabêmo-lo porque a avó continuará viva e a idéia geracional (avó, mãe,
filha) fica preservada. Poderíamos ver no caçador, que provoca esta espécie de
regurgitação, a perda do poder feminino (matriarcado) e a manifestação do poder
masculino, o que corresponderia a uma das análises de Propp. Estar "de bucho cheio"
significa, na realidade quotidiana e histórica brasileira estar prenhe: função de mulheres,
como é o caso das três mulheres do conto de fadas referido: avó, mãe e filha. Mas quem
fica de "bucho cheio" é o lobo-macho. E quem faz renascer Chapeuzinho e avó é o
caçador. Pode haver uma explicação histórica deste aspecto. O caçador representaria a
figura masculina que garante a sobrevivência das mulheres. O salvamento de ambas,
avó e neta, por um macho, mostraria a superioridade deste sobre as mulheres. A
superioridade do patriarcado sobre o matriarcado.
O caçador tem um papel especial nos relatos míticos, informa Propp:

C'est justement à cela que se ramène un des aspects de l'initiation: le chasseur doit posséder
le pouvoir sur les éléments et en particulier sur les bêtes des bois. Schurtz parle lui de
conditions de ce type dans le choix des chefs67.

A função especial e poderosa do caçador e do chefe também é simbólica, como a


iniciação. Os engolidos voltam à vida com um poder mágico advindo do engolimento e
da função iniciática do caçador e do chefe. O engolidor também tem poder. Se o
engolidor é o lobo e o lobo simboliza a morte68, o conjunto de aspectos construtores do
motivo do engolimento e da regurgitação têm mais caráter simbólico, que real – ou
atual. Este independe da hipótese de origem de sociedade sem classes, por ser produto
do imaginário, estruturado a partir de um universo simbólico que poderá, até, ter-se
servido de certos costumes ancestrais, rituais, sem, contudo, ter jamais perdido ou
relativizado o seu caráter simbólico.
Em "Chapeuzinho Vermelho", até a caracterização do caçador combina elementos
históricos com psíquicos, assumindo certo papel de deus ex machina. Como o caçador e
o lobo matam para gerar, como o lobo engole para dar mais força e valor ao engolido, o
mito nos acode hermenêuticamente, mostrando como uma coisa está dentro da outra,

67. Propp 1983: 155. Neste ponto encontra-se a N.1, p. 155, com a referência: Altersklassen, pp. 126,
130.
68 O lobo seria homólogo a Cronos. Simboliza a morte, e a morte é uma espécie de deidade, cujos filhos
são investidos de poder, sendo divinizados. A morte é geradora para a eternidade, ciclicamente. Ao
mesmo tempo, em certa medida gerador e gerados, pais e filhos, se reconciliam em outro plano.
39

como depende da outra, para finalmente ser atribuidora de energia e de vida. Até mesmo
do ponto de vista da criação: o Livro dos Mortos alimenta o mito de Cronos e outros
mitos e contos maravilhosos, que se sucedem porém não em linha reta, cruzando
referências e sentidos.

O tema do destino, as Parcas e as bruxas dos contos maravilhosos

No conto "As três velhas", recolhido por Câmara Cascudo, três velhas ajudam a
filha bonita a fiar uma impossível quantidade de linho69. O vulto do trabalho
corresponde ao tamanho da ambição da mãe, que quer ver a filha casada com um
homem muito rico. Estas três velhas lembram as três Parcas: Cloto, Láquesis e Átropo.
O fuso de Cloto fia o fio da vida, fio medido com a vara de Láquesis e cortado com a
tesoura de Átropo. As Parcas seriam filhas de Erebo e a Noite, ou filhas partenogênicas
da Grande Deusa Necessidade, chamadas de "o Destino Forte", com as quais nem os
deuses brigam. As Moiras, ou Três Parcas, são as três partes da lua: nova, cheia, velha
(primavera, verão, outono). Infiro que a quarta parte não nomeada, o inverno,
corresponda ao não dito, à morte. No conto de fadas, quando aparece o motivo, a função
das três bruxas é diferente daquela das Parcas. Sua presença, no conto, introduz um
elemento do mito grego, prestando-se para advertir o leitor que a vida e a beleza são
fugazes. Por um instante introduz, no conto de fadas, o sentido de destino dos gregos,
característica função do mito. Nos contos maravilhosos vence a vida, afirmando a
esperança no ciclo vital.
Os motivos recorrentes nos mitos gregos aparecem em contos de fadas e outras
produções da pulsão de ficção, sejam devaneios, sonhos, poemas, ficção em prosa e
outros produtos ficcionais.
Interessam-me especialmente detalhes como o da maçã atraente (de ouro) e
envenenada, que provoca a morte. A maçã dourada corresponde a mais de uma narrativa
mítica. Uma relação foi apresentada no vol. I de Ficção e Razão. Outra se refere ao mito
de Zagreo. Os Titãs, inimigos de Zeus, pintados de branco com gesso, atraíram Zagreo

69 Lembra o começo do conto „Rumpelstilzchen“, registro Grimm KHM 55 (1857). É conto de tipo AT
500. Por isto o conto “As três velhas” correspondente a Grimm KHM: “Die drei Spinnerinnen” 14, é
classificado por Aarne-Thompson na seqüência: conto AT 501.
40

para fora da cova oferecendo-lhe brinquedos: um pião, um chocalho, maçãs de ouro, um


espelho, um astrágalo e um novelo de lã. Este mito se refere ao sacrifício anual de uma
criança, que se realizava na Creta antiga. (Aparentemente este rito não se relaciona à
iniciação propriamente dita, mas ao sacrifício necessário, sem o qual não há união com
um deus). Os outros presentes de Zagreo (presentes de grego...) serviam para explicar o
caráter ritual em que dois participantes se uniam a um deus. O espelho representava o
outro eu, ou ânima, de cada iniciado. Em Branca de Neve também há um espelho que
representa um outro eu, ou ânima - justamente da bruxa, ou rainha má, madrasta de
Branca de Neve – ou antes, são aspectos negativos, invejosos e ciumentos da própria
personagem principal.
As maçãs de ouro correspondem ao passaporte para o Elíseo depois de uma
morte simulada. O Elíseo, no conto, indicia o casamento? O momento da oferta do fruto
proibido é anterior ao príncipe e ao casamento. A maçã vermelha pode corresponder
também à tentação de comer o alimento celestial. “Wer von der Speise der
Unterirdischen genießt, ist ihnen verfallen"70 (Quem comer do alimento dos ínferos,
fica-lhes submetido). Perséfone come uma maçã vermelha (ou um grão de romã)
oferecido por Hades, tornando-se sua prisioneira. O fruto dourado ou rubro pode
representar a tentação na qual cai quem experimenta alimentos celestiais - ou infernais -
proibidos para o ser humano. A descida aos infernos de Perséfone, sua existência parcial
na terra e parcial no Hades (graças a que ela representa a alternância das estações do
ano) poderia figurar também a iniciação mais fundamental: a passagem para a aceitação
do outro de si, a alternância entre altos e baixos do ser humano; a passagem necessária
pela morte simbólica para poder renascer. A maçã ainda corresponde à fecundidade do
Verbo divino, i.e., ao fruto do conhecimento – e da liberdade. Neste sentido, comer a
maçã podia corresponder a um excesso: a vontade de conhecer o mal, de desejá-lo e de
querer realizá-lo. As maçãs de ouro do Jardim das Hespérides são frutos da
imortalidade. Representam a totalidade e, sendo de ouro, têm caráter divino, completo.
Símbolos como a maçã dourada, ou o espelho são ancestrais e a sua recorrência
confirmaria tanto a teoria dos arquétipos junguiana, como a teoria de Propp. As duas
teorias são conflitantes. Uma pressupõe o inconsciente coletivo71, comum a todos os
70. E. Rohde. Psyche, Seelencult und Unsterblichkeitsglaube der Griechen. 4 Auf. Bd. I-II. Tübingen,
1907, I, 241.
71. [...] debe ser mencionado que, así como el cuerpo humano muestra una anatomía
general por encima y más allá de todas las diferencias raciales, también la psique posee un
41

seres humanos através dos tempos, enquanto a outra pressupõe uma evolução, uma
mudança, inserida na e motivada pela história. As duas podem conviver, se aceitarmos
que o inconsciente coletivo pode ter criado motivos, estudados por Antti Aarne e Stith
Thompson, utilizados em ritos, mitos e contos de fadas. Em cujo caso haveria uma
espécie de constituição biológica da simbolização, geradora de história. Um universal: a
simbolização.
Aparentemente o que vem de ser estudado está distante da literatura, pelo menos
a contemporânea. Aceitando-se a hipótese dos universais, por um lado, e a idéia de que
os símbolos podem sofrer adaptações em novos contextos sócio-históricos, motivos
como o espelho, o alimento especial, o fruto maravilhoso (maçãs vermelhas e frutos de
ouro, freqüentemente), o inimigo camuflado (em bela mulher), a atração pelo jogo,
podem ter valor simbólico, de referência mítica ou de contos de fadas, mesmo em textos
contemporâneos. O motivo da travessia de valor iniciático encontra-se em Grande
Sertão: Veredas. As personagens pós-modernas, que caminham sem rumo, o tempo

substrato general que trasciende todas las diferencias de cultura y conciencia, al que he
designado como lo inconsciente colectivo. Esta psique inconsciente, común a toda la
humanidad, no consiste meramente en contenidos capaces de llegar a la conciencia, sino en
disposiciones latentes hacia ciertas reacciones idénticas. El hecho de lo inconsciente
colectivo es sencillamente la expresión psíquica de la identidad, que trasciende todas las
diferencias raciales, de la estructura del cerebro. Sobre tal base se explica la analogía, y
hasta la identidad, de los temas míticos en general. Las diversas líneas del desarrollo
anímico parten de una cepa básica común, cuyas raices se extienden al pasado. Se halla
aquí, también, el paralelismo anímico con los animales.
Se trata - tomado de manera puramente psicológico - de comunes instintos de representación
(imaginación) y de acción. Todo representar y actuar consciente se han desarrollado de estes prototipos
inconscientes, y se hallan ligados a ellos especialmente cuando la conciencia no ha alcanzado todavía
ningún grado muy alto de lucidez, es decir cuando, en todas sus funciones, depende más de las pulsiones
instintivas que de la voluntad consciente, del afecto que del juicio racional. Ese estado garantiza una salud
primitiva anímica, que se convierte en inadaptabilidad tan pronto sobrevienen circunstancias que exijan
su mayor esfuerzo moral. Los instintos solo le son suficientes a una naturaleza que permanece idéntica a
sí misma en integridad y magnitud. El individuo que depende más de lo inconsciente que de la elección
consciente se inclina en consecuencia, a un conservatismo psíquico manifiesto. Tal es la razón de que los
primitivos no cambien en miles de años y sientan pavor ante todo el foráneo e inusitado. Ello podría
llevarlos a la inadaptabilidad y por lo tanto al máximo de los peligros anímicos, o sea, a una especie de
neurosis. La conciencia más elevada y más amplia, que sólo surge de la asimilación de lo foráneo, se
inclina a la autonomía, a la rebelión contra los viejos dioses, que no son otra cosa que las poderosas
imágenes primordiales inconscientes que hasta entonces mantuvieron en dependencia a la conciencia.
Cuanto más vigorosa e independiente se hace la conciencia, y por ende la voluntad consciente, tanto más
es empujado lo inconsciente hacia el trasfondo y tanto más fácilmente surge la posibilidad de que la
formación consciente se emancipe del prototipo inconsciente y, ganando así en libertad, haga saltar las
cadenas de la mera instintividad y arriba por ultimo a un estado de falta de instinto o de oposición al
instinto. Esa conciencia desarraigada, que no puede más referirse a la autoridad de las imágenes
primordiales, es por cierto de una libertad prometeica, pero también de una Hybris sin dios. Planea sobre
las cosas, hasta sobre los hombres, pero ahí está el peligro de que se dé vuelta, no para cada uno
individualmente sino colectivamente para los más débiles de tal sociedad, quienes van a ser entonces,
igualmente de manera prometeica, encadenados al Cáucaso por lo inconsciente.(Jung 1977: 28-29).
42

todo, em busca de algo quer misterioso, quer simplesmente desconhecido, vago, como
personagens de João Gilberto Noll, ou Chico Buarque de Hollanda, revelam a nostalgia
da iniciação. A penetração em espaços especiais corresponde à entrada no universo
sagrado, ou à entrada em um tempo-espaço de iniciação.
Como a forma mito, segundo as hipóteses deste trabalho, é inata, mesmo que
sem os recursos da idade adulta, como recurso que procura dar coerência mental a
eventos, ela reaparece, é reestruturada, absorvida, ainda que passe por mudanças
históricas e por ab-usos da indústria cultural, que trivializam o mito.

3. Presença consciente de mitos gregos na literatura erudita.

Certamente o adjetivo – consciente – é difícil de ser comprovado. Já porque o


universo de leituras de um autor é grande e não comparece, obrigatoriamente, nas
referências de leituras apresentadas a pesquisadores, ou entrevistadores. Já porque o
conhecimento de mitos tanto pode provir de leituras, como de relatos orais ouvidos na
primeira infância. Ou ainda, podem ter sido aproveitados em relatos religiosos ou
espirituais, sem referência a uma versão grega.
Farei um levantamento de alguns mitos recorrentes.

Mitos de criação: No grande romance Grande Sertão: Veredas a construção em


pagãos e cristãos. camadas superpostas de caos e cosmos, de conceitos pagãos
e cristãos, é indicativa deste aproveitamento, consciente ou
não,
arquetípico ou erudito, dos mitos de criação pagãos e cristãos72.
Como o Autor tinha vasta cultura, é provável que seu uso tenha
sido fruto de seu conhecimento.

4. Presença inconsciente, não elaborada de mitos gregos na literatura erudita.

Para estudar esta interseção, compararei o mito de Trofônio, grego, ao romance


S. Bernardo, de Graciliano Ramos.

72. Vide Sperber 1976.


43

1.2.
44

Um mito grego na literatura:


S. Bernardo, de Graciliano Ramos e o conceito de recapitulação.

A meu filho Carlos, biólogo, ecólogo

Supõe-se que o entrelaçamento de mitos gregos, na literatura ocidental, advenha


da leitura e conhecimento do mito por parte do autor, que teria intenção consciente de
servir-se de um mito especial como elemento que simboliza ou alegoriza um aspecto
semântico importante para o novo texto (esteja ele em prosa ou verso). Outra hipótese é
que o seu uso seria fruto do aproveitamento inconsciente de mitos lidos e apreendidos.
Em qualquer dos dois casos o mito seria citado quer na íntegra, quer pelo menos em
seus aspectos mais importantes - em bloco, como intertexto.
Ao estudar a obra de Graciliano Ramos, especificamente S. Bernardo, acreditei
ver no romance o aproveitamento de um certo mito. A manifestação do mito, em S.
Bernardo, foi entendida como forma de intertextualidade, aliás, como o encontro entre
oralidade e escrita, reputado por Ong como uma manifestação da intertextualidade
também73.

Manuscript culture had taken intertextuality for granted. Still tied to the
commonplace tradition of the old oral world, it deliberately created texts out of other texts,
borrowing, adapting, sharing the common, originally oral, formulas and themes, even
though it worked them up into fresh literary forms impossible without writing. Print culture
of itself has a different mind set. It tends to feel a work as 'closed', a unit in itself. Print
culture gave birth to the romantic notions of 'originality' and 'creativity', which set apart an
individual work from other works even more, seeing its origins and meaning as
independent of outside influence, at least ideally. When in the past few decades doctrines of
intertextuality arose to counteract the isolationist aesthetics of a romantic print culture, they
came as a kind of shock. They were all the more disquieting because modern writers,
agonizingly aware of literate history and of the de facto intertextuality of their own works,
are concerned that they may be producing nothing really new or fresh at all, that they may
be totally under the 'influence' of others texts. Harold Bloom's work The Anxiety of
Influence (1973) treats this modern writer's anguish. Manuscript cultures had few if any
anxieties about influence to plague them, and oral cultures had virtually none74.

73. Print ultimately gives rise to the modern issue of intertextuality, which is so central a concern in
phenomenological and critical circles today (Hawkes 1977: 144). Intertextuality refers to a literary and
psychological commonplace: a text cannot be created simply out of lived experience. A novelist writes a
novel because he or she is familiar with this kind of textual organization of experience. (Ong 1982: 133).
74. Ong 1982: 133.
45

Tal como é praticada conscientemente no século vinte, sobretudo a partir do


nouveau roman francês, a intertextualidade é fenômeno da escrita, dependente de
leituras do autor e de referência a elas no interior de seu texto. Qualquer autor cria seus
textos a partir de mais do que apenas leituras. Participa a sua vida pessoal, que inclui a
sua experiência intelectual – consciente - e emocional, afetiva, inconscientes. E usa,
como base, estruturas de mitos, contos de fadas, piadas, adivinhas ou pelo menos as
características de cada um dos sistemas e funções das formas que Jolles chama de
simples, isto é, as formas da oralidade que interessem para o seu texto. Todas estas são
referências textuais, sem as quais a emissão se torna incompreensível e a recepção
impossível75.
Outra é a teoria dos arquétipos de Jung, em que a interseção de mitos se
manifesta não com a expressão de todo o mito, mas de um símbolo que se refere a um
ou mais mitos da Antigüidade.
O que encontrei na leitura de S. Bernardo, de Graciliano Ramos, foi diferente de
ambas as manifestações acima referidas, o que me levou a formular a hipótese do meu
presente capítulo.

O capítulo 19, de S. Bernardo, é de ruptura e de mudança de rumo da narrativa.


É compreensível, já que é o capítulo central. O romance tem uma estrutura equilibrada,
que opõe duas partes entre si: o momento de ascensão econômica de Paulo Honório e o
momento de decadência. O casamento com Madalena inicia o processo de decadência.
Por quê? Madalena não é perdulária. Nem as despesas que ela propõe a Paulo Honório
ameaçam a riqueza do marido. De que maneira seria Madalena a responsável pelo
empobrecimento e decadência de Paulo Honório? O próprio Paulo Honório repete quase
incansavelmente que Madalena é boa.
O primeiro capítulo do romance trata das dificuldades de redação do texto, já
que o narrador - o próprio Paulo Honório - não é escritor. Desistindo dos redatores
substitutos, Paulo Honório começa por relatar a sua ascensão econômica e social,
culminada com o casamento com Madalena. Imediatamente surgem os conflitos entre o

75. Parece-me fundamental, na diferenciação entre realidade e texto (e não entre escrita e oralidade) ter
clareza de que o texto escrito se apresenta como outro, independente da pessoa de seu autor. Confundir
texto e vida do seu autor é não levar em conta que a palavra enunciada não é idêntica ao acontecimento
vivido, porque já passou por um crivo de emoções e memória do enunciador, que divergem do
acontecido.
46

casal. Madalena é engajada, crítica; tem consciência social. Paulo Honório é explorador,
arbitrário, desalmado. E terrivelmente ciumento. O leitor não adivinha o tamanho da
tempestade que se avizinha. Aí o relato é interrompido pelo capítulo central, onde
encontraremos Paulo Honório ruminando pensamentos truncados, sentado à sala de sua
casa, sala às escuras, numa noite penetrada por ruídos lúgubres.
O capítulo central, em S. Bernardo, que divide a obra nitidamente em duas
metades, lembra Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa. O centro de
Grande Sertão: Veredas, já analisado por mim em outra obra76, tem importância como
estratégia narrativa, como referência a dimensões místicas e metafísicas.
Se o centro tem este valor para Grande Sertão: Veredas, poderíamos atribuir
valor e sentido paralelos para o centro de S. Bernardo? S. Bernardo não tem dimensões
metafísicas, como Grande Sertão: Veredas. Ainda que ambos os romances tratem do
tema da culpa, as culpas são diferentes em cada um. Também há muitas outras
diferenças em certas analogias, mas algumas podem interessar. Diadorim se expõe, e
neste sentido se mata. No entanto, a morte se dá em uma luta em que Diadorim,
matando Hermógenes, reverte uma ordem do sertão, livrando-o da jagunçagem e do pior
e mais cruento dos jagunços. Instaura o início de uma nova ordem social, ainda com
foros domésticos, já que só Riobaldo divide as suas terras entre os seus amigos ex-
jagunços. Diadorim não se suicida, ainda que ao se expor no campo de batalha, revela
uma atitude um tanto suicida. Já Madalena se suicida explicitamente e na cama. Sua
morte não provoca uma nova ordem social nem mesmo para Paulo Honório: só desperta
e faz crescer o sentimento de culpa, contaminando a imagem que Paulo Honório tem de
si, o que o leva a abandonar os valores antigos, sem substituí-los por novos, contudo.
S. Bernardo está em primeira pessoa, como Grande Sertão: Veredas. Mas o
narrador de S. Bernardo não fala com um interlocutor específico e pressuposto no
próprio texto, como em Grande Sertão: Veredas ou "Meu tio o iauaretê", do mesmo
Guimarães Rosa. A idéia do narrador é escrever um livro e não contar uma história
oralmente. É verdade que Paulo Honório discute com Lúcio Gomes de Azevedo
Gondim, redator e diretor do Cruzeiro justamente sobre a língua a ser usada na escrita:
“- Vá para o inferno, Gondim. Você acanalhou o troço. Está pernóstico, está safado, está

76. Sperber 1982.


47

idiota. Há lá ninguém que fale dessa forma77! ”Gondim retruca "que um artista não pode
escrever como fala."

“- Não pode? perguntei com assombro. E por quê? Azevedo Gondim respondeu que não
pode porque não pode.
- Foi assim que sempre se fêz. A literatura é a literatura, Seu Paulo. A gente discute,
briga, trata de negócios naturalmente, mas arranjar palavras com tinta é outra coisa. Se eu
fosse escrever como falo, ninguém me lia78“.

O narrador justificará o uso especial de linguagem - moderna - contrário aos


usos e costumes de sua terra - Alagoas, hélas! A realidade é que o estopim para a escrita
não é o princípio modernista do uso da linguagem falada. Assim é que o narrador
começa a escrever instigado por motivos mais imperiosos:

Abandonei a empresa, mas um dia destes ouvi novo pio de coruja - e iniciei a composição
de repente, valendo-me dos meus próprios recursos e sem indagar se isto me traz qualquer
vantagem, direta ou indireta79.

Portanto, o relato não visa vantagem. Então por que escreve? O impulso foi o
pio da coruja. O pio da coruja reaparece em diversos momentos da narrativa. Também
no capítulo 19:

Uma coruja pia na torre da igreja. Terá realmente piado a coruja? Será a mesma que piava
há dois anos? Talvez seja até o mesmo pio daquele tempo80.

O pio da coruja acompanha a narrativa até o fim e repetidamente se apresenta


como estopim da escrita. Por quê? Ele evoca Madalena. Introduz o capítulo do suicídio
de Madalena, com palavras que revelam um ato falho, caso relacionemos o pio
diretamente a Madalena:

Uma tarde subi à torre da igreja e fui ver Marciano procurar corujas. Algumas se haviam
alojado no forro, e à noite era cada pio de rebentar os ouvidos da gente. Eu desejava assistir
à extinção daquelas aves amaldiçoadas81.

77. Ramos, Graciliano. S. Bernardo. 29ª ed. Posfácio João Luiz Lafetá. Ilustrações Darel. Rio de Janeiro:
Record, 1978: 9.
78. Ramos 1978: 9.
79. Ramos 1978: 9.
80. Ramos 1978: 94.
81. Ramos 1978: 141.
48

A extinção das aves é homóloga à "extinção" de Madalena. A palavra é muito


forte se aplicada a Madalena. Ela deve ser atribuída a Paulo Honório, a seu sentimento
de culpa frente ao suicídio da mulher. Imediatamente antes, no fim do capítulo 30, ele
aparece discutindo o uso das palavras:

O que eu dizia era simples, direto, e procurava debalde em minha mulher concisão e
clareza. Usar aquele vocabulário, vasto, cheio de ciladas, não me seria possível. E se ela
tentava empregar a minha linguagem resumida, matuta, as expressões mais inofensivas e
concretas eram para mim semelhantes às cobras: faziam voltas, picavam e tinham
significação venenosa82.

Encontramos uma primeira explicação sobre os primeiros dois capítulos. O uso


da palavra havia sido um dos motivos de desentendimento e mesmo de sofrimento na
relação entre Paulo Honório e Madalena. As palavras não são inocentes. Não se trata de
moda literária. É vital o seu uso adequado, contido, expurgado, para que não dêem
voltas, e instilem seu veneno.
As palavras controladas, objetivas, secas, diretas, ainda que reproduzam o
passado, estão sendo usadas no presente do narrador. E aí a sua peçonha provocaria dor,
porque revelaria a culpa de Paulo Honório. Paulo Honório fantasia um mundo
inocentado, redimido. Mas num falso passado, visto que, nele, se diz feliz:

Não sei ler, não conheço iluminação elétrica nem telefone. Para me exprimir recorro a
muita perífrase e muita gesticulação. Tenho, como todo o mundo, uma candeia de azeite,
que não serve para nada, porque à noite a gente dorme. Podem rebentar centenas de
revoluções. Não receberei notícia delas. Provavelmente sou um sujeito feliz.

Com um estremecimento, largo essa felicidade que não é minha e encontro-me aqui em S.
Bernardo, escrevendo83.

Escrever, para Paulo Honório, tem função dupla. Por um lado só é possível
mediante um preço: o da perda da felicidade; o de haver estragado sua vida. Por outro,
revela um desejo: “Penso em Madalena com insistência. Se fosse possível
recomeçarmos84...”
A palavra revela desgraça - e espera uma espécie de redenção.

82. Ramos 1978: 141.


83. Ramos 1978: 168.
84. Ramos 1978: 170.
49

Madalena suscita o sentimento de culpa, em Paulo Honório, por marcar o


contraste entre o bruto e a generosa, "boa em demasia". O contraponto acentua cada um
dos lados, o que ainda não justificaria que Madalena se matasse. Ela também se sente
culpada - e se pune. Sabe que seu casamento com Paulo Honório foi uma transação
econômica: a seu modo, vendeu-se. Tenta compensar esta transação, procurando
corrigir outras transações ou relações de trabalho, ou se tornar, na medida de seu
possível, a benfeitora dos malfeitos do marido, convertendo-se por ações ou palavras no
grilo falante de Paulo Honório. Como isto é em vão, não lhe resta alternativa a não ser
punir-se maximamente. Daí que o sentimento de culpa de Paulo Honório seja complexo,
plural e irredimível.
A salvação não é possível, ainda que alivie reconhecer que:

Creio que nem sempre fui egoísta e brutal. A profissão é que me deu qualidades tão ruins.
E a desconfiança terrível que me aponta inimigos em toda a parte!
A desconfiança é também conseqüência da profissão85.

Irrompe o irremediável. A imagem que Paulo Honório tem de si é a de um


monstro:

Foi este modo de vida que me inutilizou. Sou um aleijado. devo ter um coração miúdo,
lacunas no cérebro, nervos diferentes dos nervos dos outros homens. E um nariz enorme,
uma boca enorme, dedos enormes.

Se Madalena me via assim, com certeza me achava extraordinariamente feio.

Fecho os olhos, agito a cabeça para repelir a visão que me exibe essas deformidades
monstruosas86.

O monstro espalha terror por onde passa ou aparece e o indivíduo precisa


enfrentá-lo a toda hora. A idéia de monstro está ligada tanto ao complexo de culpa
concreto e presente na história de Paulo Honório, como pertence à simbologia ancestral.
O monstro simboliza o guardião do tesouro. Na tradição bíblica, simboliza as forças
irracionais: possui as características do informe, caótico, tenebroso, abissal. O monstro é
desordenado e desmedido. Cada ser humano tem o seu monstro interno, pessoal, contra
o qual precisa lutar.

85. Ramos 1978: 170-1.


86. Ramos 1978: 171.
50

Os monstros simbolizam, ainda, a imaginação exaltada e errada, fonte de


desordens e desgraças psíquicas. Correspondem a um funcionamento doentio da força
vital. Representam uma ameaça externa e interna. São como as formas horrendas de um
desejo pervertido. Procedem da angústia e a representam. A angústia, enquanto estado
convulsivo, compõe-se de duas atitudes diametralmente opostas: a exaltação do desejo e
a inibição timorata. Saem geralmente da região subterrânea, de cavidades, de antros
sombrios.
No caso desta narrativa, feita de objetividade e razão, onde se localiza o
subconsciente e o subterrâneo? No centro. O capítulo central introduz o tema da culpa,
logo no início do capítulo: “A culpa foi minha, ou antes, a culpa foi desta vida agreste,
que me deu uma alma agreste87“. Um impulso forte o leva a escrever:

Emoções indefiníveis me agitam - inquietação terrível, desejo doido de voltar, tagarelar


novamente com Madalena, como fazíamos todos os dias, a esta hora. Saudade? Não, não é
isto: é desespero, raiva, um peso enorme no coração88.

Ao mesmo tempo, atesta a inutilidade de seu ato de escrever: “E, falando assim,
compreendo que perco tempo. Com efeito, se me escapa o retrato moral de minha
mulher, para que serve esta narrativa? Para nada, mas sou forçado a escrever89”.
Neste capítulo 19 - central - as repetições fixam obsessivamente as imagens do
passado, tecidas pelas palavras. Elas poderiam referenciar o modernismo,
metalinguagem de moda, no momento da produção da obra, retratada, no início do
romance, pela conversa entre Paulo Honório, João Nogueira e Gondim. A repetição
obsessiva do narrador Paulo Honório espelha a memória como aguilhão da culpa de
roubar, espoliar, punir, bater, ferir e matar. O discurso indignado de Madalena incitava a
consciência ética e moral de Paulo Honório, a ser expressa por outras palavras:

As minhas palavras eram apenas palavras, reprodução perfeita de fatos exteriores, e as dela
tinham alguma coisas que não consigo exprimir. Para senti-las melhor, eu apagava as luzes,
deixava que a sombra nos envolvesse até ficarmos dois vultos indistintos na escuridão90.

87. Ramos 1978: 92.


88. Ramos 1978: 92.
89. Ramos 1978: 92.
90. Ramos 1978: 92-3.
51

Para que soassem as palavras, era preciso que houvesse escuridão. Então as
palavras reverberam algo que o narrador não consegue exprimir. Nem exatamente ouvir
("A voz dela me chega aos ouvidos. Não, não é aos ouvidos. Também já não a vejo com
os olhos"91). São como as palavras de um oráculo. O local do oráculo é a sala escura,
onde a sacerdotisa está invisível, o tempo parou e o narrador está imobilizado.
O centro de S. Bernardo tem a escuridão da caverna. Trata-se da caverna
psíquica, na qual reaparecem os temas obsessivos das duas partes da narrativa: o pio da
coruja; a dificuldade de uso da palavra; a brutalidade de Paulo Honório; o empenho
bondoso de Madalena em ajudar os miseráveis; o relógio, cujos ponteiros não se vêem;
a escuridão na sala; Casimiro Lopes agachado - quer espreitando e esperando em um
canto da sala, quer aparecendo à janela; sapos, vento, corujas, igreja (capela).
Estes símbolos da obsessão de Paulo Honório constroem a estrutura tripartite da
obra, com duas partes principais que se referem à realidade econômica e social da
fazenda S. Bernardo, e uma, central, que, ao contrário das outras duas, horizontais,
cronológicas, é vertical, de cunho psíquico, penetrando no inconsciente da personagem.
Em verdade os mesmos símbolos estão esparsos em todo o romance, mas concentrados
no centro. Os símbolos, a meu ver provenientes do mito de Trofônio, são caverna,
monstro, fuga do reconhecimento da culpa, esquecimento, poder da palavra. No
romance de Graciliano Ramos a caverna - símbolo encontrável nos capítulos central e
final - seria a sala escura, em que está um Paulo Honório que não mostra mais o fluir do
tempo. Ele como que interrompe a narrativa e suspende o tempo, borrado. Paulo
Honório só, no escuro e sem ação – os símbolos funcionando de maneira cumulativa -
ouve os ruídos circundantes, tal como o pio da coruja. O monstro seria o narrador e
personagem principal Paulo Honório, perverso, ganancioso, insensível, de mãos
grosseiras, monstruosas; palavra, esquecimento e memória seriam todos eles os motivos
estruturadores da narrativa (busca da palavra entrelaçada ao reconhecimento da culpa).
Esta imagem monstruosa da personagem cresce, ao longo da narrativa, na primeira
parte, relatando que Paulo Honório forja sua riqueza a partir de uma liberdade feita de
falta de ética. Na segunda, a partir da consciência dilacerada, que provoca a sua pobreza
e perda de liberdade.

91. Ramos 1978: 92.


52

Os símbolos tecidos em S. Bernardo têm seu equivalente no mito pouco


conhecido de Trofônio. Trofônio era o rei de uma pequena província e arquiteto ilustre,
o qual construiu, juntamente com seu irmão Agamedes, o templo de Apolo em Delfos.
(Paulo Honório constrói S. Bernardo). O rei Hirieu encarregou-os de construir um
prédio para os seus tesouros. Eles o construíram, mas projetaram uma passagem secreta,
cuja entrada estava oculta por uma pedra, que os levaria às riquezas. Hirieu foi-se dando
conta do roubo a partir de terminada a construção; percebeu a passagem e armou uma
cilada para o ladrão. Agamedes cai na armadilha. Trofônio não consegue liberar o irmão
enrascado no meio de fios. Para não ser identificado como ladrão, corta a cabeça do
irmão e a leva consigo. Tão logo o faz, é tragado pelas entranhas da terra, representada
como uma caverna.
Paulo Honório rouba outros, ou os explora, chegando a mandar matar gente para
apropriar-se de suas terras, como o fez Trofônio, por pura ganância. Ao casar-se com
Madalena envolve-a, indiretamente, em sua culpa, com a qual ela sofre. A atitude de
Paulo Honório, assim como a de Trofônio, planejando e pondo em prática seu projeto
de furto, é onipotente. O suicídio de Madalena quebra esta onipotência, introduzindo o
binômio algoz-vítima. Madalena corresponde - em seus devidos termos - a Agamedes.
Ela acaba participando dos crimes, na medida em que usufrui das riquezas de Paulo
Honório, com quem se casou para não ter mais problemas econômicos e poder oferecer
mais conforto para sua tia, com quem vive. Foi parceira da espoliação, como Agamedes,
claro que indiretamente, enquanto que Agamedes o foi diretamente. A armadilha
armada pelo ministro do rei Trofônio equivale aos embustes da consciência armados
pela própria Madalena – tanto para si mesma, como para Paulo Honório. Paulo Honório
é o algoz dos explorados e de Madalena, algoz que toma consciência de seu papel
quando Madalena se suicida, vítima de Paulo Honório. Como Paulo Honório é culpado
de haver atraído Madalena com o dinheiro e culpado por levar Madalena a sentir-se
culpada, a imagem que ele tem de si mesmo é de porco e de monstro.
Tempos depois da morte violenta de Agamedes e do desaparecimento de
Trofônio no seio da terra, a Pitonisa, consultada em outro oráculo sobre os males que
assolavam a região - um dos quais era o silêncio do oráculo do templo de Apolo, em
Delfos - recomendou que alguém se dirigisse a Trofônio, o qual se encontrava em uma
caverna no fundo de um bosque, ou nas entranhas da terra (conforme uma versão do
53

mito). Inquirido, Trofônio falaria. Reconheceria sua culpa. Desde então o lugar do
oráculo passara a ser muito freqüentado.
Quem consultasse o oráculo precisava submeter-se a duras provas. O neófito
(com um bolinho em cada mão, oferenda necessária) preparava-se para ser metido em
um buraco, representativo da penetração em um espaço sagrado. Começaria, então, a
trajetória iniciática, nomeada de regressus ad uterum92. Dentro da cova, um sacerdote
dava uma paulada no neófito, que desmaiava. Quando começava a voltar a si, um ou
mais de um sacerdote passava a sussurrar algo. Quando despertava, ainda ouvia as suas
vozes e falas. Era, então, içado. Voltando à superfície, achava-se sentado à mão direita
de Mnemosine, a deusa da memória, e deveria revelar as terríveis experiências vividas e
palavras ouvidas, que marcavam a sua vida, tornando-o grave e triste.
Os motivos da culpa, da escuridão na qual se encontra o criminoso, da perda da
produtividade e da decadência da terra na qual se deu o crime, da necessidade da
memória e da fala, encontram-se em S. Bernardo.
O engolimento de Trofônio pela terra não se relaciona ao motivo do engolimento
e regurgitação estudados por Propp, a não ser no sentido mais genérico. A iniciação era
do neófito, não de Trofônio. Trofônio continuava sendo punido e atormentado pela
culpa. A expressão do passado, conservado na memória de Trofônio, é processo de
expiação.
A suspensão dos efeitos do crime no mundo em que ele se deu depende da
recordação do mesmo, coisa que só consta do rito e do mito de Trofônio, e não do conto
do rei Rampsinitos, que poderia ser do conhecimento de Graciliano Ramos, quer por
leitura, quer através de algum relato oral da região.
O estudo de uma coleção de 300 textos de cordel, assim como a leitura de
diversos livros sobre cordel e contendo antologias (na sua maioria da região Nordeste,
de onde provinha Graciliano Ramos), indiciam que nem o relato sobre Rampsinitos
aparece direta ou indiretamente sob a forma de motivos esparsos.
Se Graciliano não pode ter absorvido o relato do mito pela via popular, ouvindo
narrativas de cordel com enredo semelhante, poderia, é claro, tê-lo feito pela via erudita.

92. Segundo Mircea Eliade, a volta à matriz é indiciada quer pela reclusão do neófito em uma palhoça,
quer por seu engolimento simbólico por um monstro, quer pela penetração em um terreno sagrado
identificado ao útero da Mãe-Terra. Esta última era realizada através da penetração iniciática em uma
vagina dentata, ou pela descida perigosa em uma caverna ou uma fenda. O motivo é o do engolimento,
estudado por Propp.
54

A via erudita leva, o mais das vezes, à incorporação e aproveitamento da trama da


narrativa - e não do de alguns elementos como estruturadores de uma outra e diferente
trama, como é o caso de S. Bernardo. Não tenho conhecimento de um rito semelhante
ao de Trofônio no Nordeste brasileiro do século vinte.
O complexo de Trofônio - decorrência ou celebração do culto - é o complexo
das pessoas que renegam as realidades de seu passado para abafar em si um sentimento
de culpa, que não desaparece. O objeto da culpa se metamorfoseia das mais diferentes
maneiras (em serpentes etc., no mito). Em S. Bernardo, a culpa se metamorfoseia na
coruja, mas os elementos repetidos ao longo do livro e concentrados no capítulo 19 - e
no capitulo final - são: casebres úmidos e frios; Casimiro aparece junto à porta, ou
janela; sapos, vento, corujas, igreja (capela), toque do sino, até o momento em que o
culpado aceita trazer sua culpa à luz da consciência, tirá-la do antro e reconhecê-la
como pertencente a ele, o que faz através da redação, tematizada, da culpa no livro. A
caverna-centro se expande até o fim da narrativa, quando Paulo Honório volta a estar no
escuro e sentir-se perseguido. O novo momento na vida de Paulo Honório, posterior ao
capítulo 20, se delineia, mas a rigidez de Paulo Honório permanece:

[...] mas não consigo mexer-me93.

Não consigo modificar-me, é o que me aflige94.

E eu vou ficar aqui, às escuras, até não sei que hora, até que, morto de fadiga, encoste a
cabeça à mesa e descanse uns minutos95.

Esta caverna-centro que se expande simboliza a exploração do eu interior, e mais


particularmente do eu recalcado nas profundezas do inconsciente96. A imobilidade
representa a cristalização do culpado, condenado, sem remissão, a rever a sua culpa.
Lembra muito os mitos punitivos, quer o de Sísifo, condenado a rolar a pesada pedra
teimosa morro acima, obrigado ao mesmo esforço sobre-humano repetidamente; quer o
mito de Prometeu, condenado a ter seu fígado comido por uma ave, amarrado a uma
montanha, para toda a eternidade.

93. Ramos 1978: 95.


94. Ramos 1978: 170.
95. Ramos 1978: 171.
96. Chevalier, Jean e Gheerbrant, Alain. Dictionnaire des symboles. Mythes, rêves, coûtumes, gestes,
formes, figures, couleurs, nombres. vol.I. Paris: Seghers, 1973: 287-8.
55

A penetração em uma caverna pode ter também outro sentido: o de contato com
o reino dos mortos. Ambos não são excludentes. Em S. Bernardo a "penetração na
caverna" leva Paulo Honório a ouvir vozes e sinais atribuídos à manifestação da morte:
corujas, a voz de Madalena, já morta - mas o leitor ainda não o sabe. Como Paulo
Honório não se renova, ou renasce para uma outra vida, chegamos à conclusão de que
se há iniciação, ela vale para o leitor, que penetra na caverna, ouve as vozes e outros
sinais e contempla o monstro que é Paulo Honório, através da narrativa e do narrador
especial que representa a enunciação do próprio culpado. A função do relato não será a
catarse, porque o receptor não consegue ter a dimensão da purificação. A finalidade é a
de instrumentalizar o receptor enquanto testemunha do lido, ouvido, ocorrido. A
recepção exigiria o testemunho sobre crime e culpa, para que a verdade seja
restabelecida. Como o crente que entra no antro de Trofônio, o leitor deve ouvir as
vozes, recordá-las e confirmá-las. Ao relatar o ouvido, os eventos recobrariam voz, que
até então estava soterrada, oculta na escuridão da caverna. O relato transforma-se em
documento e o receptor em um intermediário privilegiado entre crime e culpa,
testemunha da baixeza do herói.
Através deste recurso Graciliano Ramos também reflete sobre um dos aspectos
sócio-econômicos do (sub)desenvolvimento brasileiro: a riqueza é procurada e
ambicionada a qualquer preço, sem escrúpulos e sem consciência de classe. Paulo
Honório é um pobre que enriquece à custa de crimes. A culpa repõe a consciência de
classe no universo de Madalena, primeiro, e depois no de Paulo Honório. Ela também
representa a expiação de Paulo Honório. Só que no fim do relato ainda não houve
remissão.
S. Bernardo, estruturado por duas partes horizontais, sintagmáticas, e outra
vertical, paradigmática, reúne aos aspectos de realidade social outros de realidade
psíquica. Analisado como tendo fundamentalmente a vertente neo-realista na sua obra,
(ainda que Insônia e Angústia tenham forçosamente temas e tratamento de aspectos da
psique humana) Graciliano Ramos pode não ter tido conhecimento do mito de Trofônio
e pode não ter tido a intenção de estruturar seu livro S. Bernardo em cima de elementos
que lembrem o mito referido.
Para tentar entender a presença do mito de Trofônio na narrativa, recorri a
Propp.
56

Segundo Propp, em Les racines historiques du conte merveilleux97, o relato


ficcional livre, erudito, contemporâneo é fruto de uma trajetória histórica que principia
nos rituais. Percorrendo o caminho inverso (digamos involutivo), chegaríamos do
romance ao conto de fadas; daí para o mito e depois para o rito. Como no caso da
análise de S. Bernardo, de Graciliano Ramos, encontrei uma relação entre mito e
romance, procurei localizar um conto de fadas que pudesse estar na origem da
inspiração do romance e que, hipoteticamente, o seu autor poderia ter lido, ou lhe
poderia ter sido contado na infância. O conto de referência que poderia estar ligado ao
mito de Trofônio seria o Mt. AT nº 950: Rhampsinitus98. Outro relato do mesmo tipo é o
de nº 1525. O motivo é o dos irmãos arquitetos e ladrões, que penetram numa edificação
construída por eles, onde se encontra um tesouro, através de uma passagem feita por
eles mesmos, enquanto arquitetos da construção, conseguindo roubar parte do tesouro,
paulatinamente. Köhler-Bolte e Gaston Paris encontraram 25 (ou 26) relatos sobre
Rampsinitos99, isto é, contos do tipo Mt. AT nº 950. Nenhum destes relatos inclui a
variação própria do mito de Trofônio. A história de Rampsinitos tem uma conclusão
surpreendente e inesperada para um leitor e uma expectativa ocidentais. Depois que o
rei (Rampsinitos) percebe que está sendo roubado, manda fazer uma armadilha, na qual
cai um dos irmãos. "Então, conhecendo a extensão do perigo, chamou depressa o irmão
e mostrou-lhe o estado em que se encontrava, aconselhando-o a que entrasse ali e lhe
cortasse a cabeça, a fim de que ele não fosse reconhecido, e a sua perda não acarretasse
a do irmão. Este achou que ele falava com acerto, e seguiu-lhe o conselho; e, havendo
100
reposto a pedra, retornou a casa, com a cabeça do irmão" . O rei se assombra por não
97. Propp, Vladimir Ja. Les racines historiques du conte merveilleux. Traduit du russe par Lise Gruel-
Apert. Préface de Daniel Fabre et Jean-Claude Schmitt. Paris: Gallimard/NRF, 1983.
98. Aarne, Antti e Stith Thompson. Motif-Index of Folk Literature. Bloomington: Indiana, 1956.
99. Herodoto; Pausanias; Charax; Johannes de Alara Silva; Sept-Sages (ed. Leroux de Lincy); Berinusser
Giovanni; poema holandês; primeiro conto alemão (p.p. Zingerle); 2º conto alemão (p.p. Wolff); 3º conto
alemão; conto dinamarquês; conto escossês; conto russo; conto cipriota; relato do Kandjour (tibetano);
Somadeva; conto kirghiz; conto ostiak; conte ossèle, árabe, tcheco, bretão, siciliano, bolonhês, português
(milanês?). A história encontra-se nas Gesta Romanorum. O conto reaparece na Idade Média, estudado
por Comparetti em Ricerche intorno al libro di Sindibâd. Milan, 1869. Aparece em duas versões muito
diferentes: o Dolopathos e no Roman des Sept-Sages. Só há quatro histórias comuns entre estes dois
livros e só uma com o livro de Sindibad: justamente Rampsinitos. (Informações recolhidas em: Romans
des septs-Sages. Hgg von H.A. Keller, Tübingen, 1836, p, 11-118; le Roman des Sept-Sages en prose,
p.p. Leroux de Lincy (à la suite de Loiseleur-Deslongchamps, Essai sur l'introduction en Europe des
fables indiennes, Paris, 1838, p. 29-33). Transcrevo nos Anexos o texto encontrado em R. Köhler, apud
Paris, Gaston, 1907: 4.
100. "A história de Rampsinitos", "tirada do livro de Maspéro. Les Contes Populaires de l'Égypte
Ancienne. Paris: Maisonneuve, 1882" e transcrita in Ferreira, Aurélio Buarque de Holanda e Rónai,
Paulo. Mar de Histórias. Antologia do conto mundial. I. Das origens ao fim da Idade Média. 3ª ed.,
57

ver sinais de entrada - e saída - decide pendurar o corpo em uma das muralhas da
cidade, a fim de capturar o provável parente. O corpo é roubado com astúcia, o que
surpreende o rei, novamente. Ele procura outra saída para localizar o ladrão,
convocando a ajuda da filha. O astuto ladrão escapa de novo.

Contado o fato ao rei, mostrou-se este singularmente espantado da astúcia de tal


homem. Por fim, ordenou se fizesse anunciar por todas as cidades do seu reino que ele
perdoava a essa pessoa, e que, se ela quisesse vir apresentar-se ao rei, lhe concederia largos
favores. O ladrão deu crédito à publicação feita pelo rei, e foi ter com ele. Quando o rei o
viu, ficou assombrado; todavia, deu-lhe sua filha em casamento como ao mais capaz dos
homens e que afinara os egípcios, que afinam todas as nações101.

Esta é a conclusão do conto102 tal como publicado na antologia referida em nota,


completamente diferente do mito de Trofônio.
Os elementos estruturadores e que ecoam o mito de Trofônio remontariam ao
ritual ancestral, saltando do séc. XX para um passado remoto. Pelo menos no caso
estudado em S. Bernardo, a referência ao mito de Trofônio não teria passado por uma
etapa histórica de relato de conto de fadas, recapitulando aspectos estruturadores do
culto de Trofônio.
Consultei, em meados de outubro de 1997, tanto os livros do espólio de
Graciliano Ramos do IEB (Instituto de Estudos Brasileiros), como a lista dos livros
incorporados – então recentemente - ao acervo de livros de Graciliano Ramos e ainda
não catalogados e postos nas estantes e não encontrei nenhum exemplar de Heródoto,
livro que em hipótese poderia ter sugerido a Graciliano Ramos a utilização do mito de
Trofônio, bem pouco conhecido em geral. Apesar disto, e por me ter sido contraposto
que com segurança Graciliano Ramos teria lido Heródoto, decidi verificar mais
minuciosamente a ocorrência das referências a Rampsinitos, bem como a Trofônio, no
próprio Heródoto. Transcrevo em anexo o relato de Rampsinitos103 e em nota as
menções a Trofônio104, para que fique claro que mesmo que Graciliano tivesse lido
revista. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980: 30-33.
101. Ferreira 1980: 33.
102. Segundo Paris (1907), algumas versões populares foram registradas por R. Köhler. Kleinere
Schriften. Ed. Bolte, t.1:209. Paris refere:"Récit bouddhique translaté du sanscrit en chinois vers l'an 266
de notre ère et traduit par M. E. Huber dans le Bulletin de l'École Française d'Extrême Orient, t. IV
(1904), p. 704, que transcrevo nos Anexos.
103. Em Heródoto, livro II 121, o rei encomenda a obra a um arquiteto. Transcrevo o trecho nos Anexos,
a partir do ponto da encomenda.
104. Heródoto, livro I 46: Creso, depois de dois anos de inatividade por tristeza pela morte de seu filho,
decide perguntar a uma série de oráculos se ele conseguiria brecar o crescimento do poder dos persas.
58

Heródoto - e os livros de sua biblioteca, onde não consta nenhum exemplar dos livros de
Heródoto, não abrem espaço para esta hipótese - o único relato extenso e minucioso
sobre o assunto é ainda e sempre o de Rampsinitos - com um final um pouco diferente
daquele citado acima e incluído na antologia citada de Ferreira e Houaiss - e bem
diferente da parte que nos interessa do mito de Trofônio.
Ao pesquisar as pastas do espólio de Graciliano Ramos preservadas no IEB,
verifiquei que foi publicada uma informação de Graciliano Ramos, por solicitação
declarada de Condé, em que ele explica "a origem de Paulo Honório, alagoano,
viçosense, chegado ao Rio há doze anos e hospedado na Ariel"105. Graciliano conta:

Em 1924, em Palmeiras dos Índios, interior de Alagoas, encontrei dificuldade séria106 [...].

[...] e no começo de 1932 arrastava-me de novo em Palmeiras dos Índios, com vários filhos
pequenos, sem ofício nem esperanças, enxergando em redor nuvens e sombras.

Nessa crítica situação voltou-me ao espírito o criminoso que em 1924 me havia afastado as
inquietações - um tipo vermelho, cabeludo, violento, de mãos duras, sujas de terra como
raízes, habituadas a esbofetear caboclos na lavoura. As outras figuras da novela não tinham
relevo, perdiam-se à distância, vagas e inconsistentes, mas o sujeito cascudo e grosseiro
avultava, no alpendre da casa-grande de S. Bernardo [...]. E, sem recorrer ao manuscrito de
oito anos, pois isto prejudicaria irremediavelmente a composição, restaurei o fazendeiro
cru, a lápis, na sacristia da igreja enorme que o meu amigo padre Macedo andava a
construir. Surgiram personagens novas e a história foi saindo diversa da primitiva.

Aussitôt occupé de cette pensée, il mit à l'épreuve les oracles de Grèce et celui de Libye; des députés
furent envoyés en divers lieux, les uns chargés de se rendre à Delphes, les autres à Abai en Phocide, les
autres à Dodone; il en eut d'envoyés au sanctuaire d'Amphiaraos, au sanctuaire de Trophonios [...]
A nota ao pé de página, com respeito a Trofônio informa que o santuário fica em Lebadéia, na Beócia.
Neste livro é só esta a referência. (Hérodote. Histoires. Livre I - Clio. Texte établi et traduit par Ph.-E.
Legrand. Paris: "Les Belles Lettres", 1970. [Col. des Universités de France]: 57-8.
No livro VIII 134 consta:
Il est constant que ce Mys se rendit à Lébadée et qu'il décida un homme du pays, qu'il paya pour cela
(Nota: Les consultations y étant entourées de rites compliqués et impressionnants [Paus., IX 39 4 et
suiv.]), à descendre dans l'antre de Trophonios; qu'il alla également à Abai en Phocide interroger l'oracle.
(Hérodote. Histoires. Livre VIII - Uranie. Texte établi et traduit par Ph.-E. Legrand. Paris: "Les Belles
Lettres", 1953. [Col. Des Universités de France]: 134).
É só. De fato, só em Pausanias encontraremos uma descrição do ritual.
105. O texto encontra-se na pasta da série "Manuscritos - Crônicas, ensaios e fragmentos" - Cota 10 -
Pasta 1-1 do acervo Graciliano Ramos depositado no IEB e foi publicado na Revista do Instituto de
Estudos Brasileiros. nº 35, São Paulo, 1993: 204-6.
106. Segundo Maria Lúcia Palma Gama, que comenta o texto, em 1924 Graciliano estava "viúvo, com
quatro filhos pequenos para sustentar, sentindo-se velho, bloqueado pela atividade comercial, incapaz de
escrever ([...]). Surge então um criminoso [...]. Nasce o personagem que será abandonado por oito anos,
até um novo período de crise. Sem recorrer ao manuscrito, retomou a figura do criminoso, "fazendeiro
cru", e escreveu dezoito capítulos de S. Bernardo na sacristia da igreja do padre Macedo, seu amigo.
Problemas de saúde, uma operação, longa convalescença e, ao sair do hospital, recomeça o trabalho no
Pinga-Fogo.
59

Até o capítulo XVIII tudo correu sem transtorno. Um dia de fevereiro, ao entrar em
casa, senti arrepios. À noite, com febre, fiz o capítulo XIX, uma confusão que mais
tarde, quando me restabeleci, conservei.

O capítulo XIX foi escrito em estado febril, liberando o inconsciente tanto do


Autor, como da personagem. Ainda que Graciliano o tenha percebido como diferente do
ritmo da ação do restante da narrativa, ele o mantém. O capítulo central do romance dá
forma ao sentimento de culpa, com traços do mito de Trofônio, que Graciliano não teria
conhecido. Isto poderia querer dizer que, em determinadas condições, o imaginário teria
a possibilidade de uma reversão, como ocorre biologicamente com seres vivos:

Pela doutrina da reversão (atavismo) [...] o embrião se torna ainda mais maravilhoso,
pois, além da mudança visível que sofre, devemos acreditar que ele é repleto de caracteres
invisíveis [...] afastados do tempo presente por centenas, ou mesmo milhares, de gerações; e
esses caracteres, tal como os escritos com tinta invisível num papel, jazem prontos para se
desenvolver, toda vez que a organização for perturbada por certas condições conhecidas e
desconhecidas107.

Fenômeno semelhante à reversão biológica ocorre na cultura, especificamente na


mente humana. Esta apresentaria caracteres invisíveis formados por mitos ancestrais,
afastados do presente por milhares de anos. Em determinadas circunstâncias, algum
destes mitos recobraria um conjunto de temas de sua forma original, manifestando-se. A
ocorrência não dependeria de memória cultural, nem pessoal. Seria uma espécie de
memória do espírito. Como se trata de fenômeno do espírito e não do corpo, dei a ele o
nome de 'recapitulação' - diferente da 'reversão' mencionada e pesquisada por Gould e
definida por Darwin. Poderia simplesmente reconhecer neste um fenômeno do
inconsciente coletivo capaz de recuperar arquétipos.
Para temperar estas considerações, esclareço que em artigo anterior mostro como
em "Meu tio, o iauaretê"108 estão entretecidos tanto os princípios da Paideia grega -
Káloskágathos - o bom e o bonito - como o canibalismo ritual da personagem principal
do conto, o qual corresponde ao conhecimento antropológico que hoje temos dos índios
Araweté. O aproveitamento, por Guimarães Rosa, dos princípios da Paideia e o uso de

107. Darwin, Charles. Variation of Animals and Plants under Domestication, 1868, apud Gould, Stephen
Jay. A galinha e seus dentes e outras reflexões sobre história natural. Trad. David Dana. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1992: 186.
108. Vide Sperber 1991: "A virtude do jaguar: mitologia grega e indígena no sertão roseano". In Anais
do Colloque Sertão: Realité, Mythe et Fiction. Département de Portugais, Université Rennes 2 Haute
Bretagne - Rennes - France, vol. I: 159-166. E Sperber 1993.
60

um conjunto de temas revelam que o Autor valoriza a cultura oprimida. Mas como
conheceria ele a cultura dos arawetés, se estes foram estudados mais de 20 anos depois
de escrito o conto e 15 anos depois de sua morte109?
"Meu tio, o iauaretê", como S. Bernardo, apresenta traços de uma cultura cujo
conhecimento não conseguimos comprovar historicamente. No caso de "Meu tio, o
iauaretê", o conhecimento da cultura araweté poderia ter sido inferida pelo
conhecimento dos tupis. Mas a própria antropologia não tinha, no início da década de
60, os conhecimentos e visão que teve vinte anos mais tarde, quando do estudo da
referida tribo.
Mais do que o conhecimento antropológico - avant la lettre - dos tupis, já que
não dos índios araweté, Guimarães Rosa poderia ter despertado alguns traços e motivos
de outra cultura. Como se reuniriam tantos, correspondendo tão direitinho ao universo
de mitos e rituais dos índios araweté - e, por outro lado, como teria ocorrido outro tanto
em obra de Graciliano Ramos relativo ao mito de Trofônio - que nem pertence a uma
cultura de índios que vivem no Brasil?
Retomo alguns tópicos para fundamentar de outro modo a minha hipótese da
recapitulação.

- Propp mostrou que mitos ou relatos orais do passado ancestral, com estruturas
e temas recorrentes podem ter temas reduzidos a motivos soltos na nova narrativa em
que aparecem - não sendo, aí, estruturadores - nem arquetípicos. Segundo Propp, os
motivos independizados e redefinidos têm uma trajetória linear, evolucionista, e
determinista: do ritual ao mito e deste ao conto maravilhoso. Cada uma das
manifestações é diferente, adquirindo, cada uma, características da nova sociedade
dentro da qual estes relatos aparecem.
- Os textos escritos aproveitam às vezes - conscientemente ou não - temas,
motivos, símbolos provenientes de relatos orais, organizados (segundo os desígnios do
autor) dentro de um contexto complexo, constituído por cruzamentos de referências as
mais diversas, sem deixar de ter um diálogo com a cultura local e nacional presente ou
passada, ou com obras escritas de qualquer proveniência e marcantes para o autor.

109. Viveiros de Castro, Eduardo. Araweté: os deuses canibais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986: 130.
61

- Os mitos da Antigüidade podem ser elaborados na estruturação de uma obra


escrita a partir de sua idéia básica - essencial - caracterizadora deste mito - porém sem
reproduzir o enredo do mito, tornando-se, este resíduo mítico, de mais difícil
identificação.
A teoria da residualidade detém o seu olhar no presente e propõe uma trajetória
inversa à de Propp, voltando para trás, para um passado histórico local. Ela chegou a
"rotular de residuais todas as manifestações habitualmente chamadas folclóricas". Ou,
para prosseguir com a citação (que critica o conceito de residualidade do folclore):

Estabelecido firmemente esse ponto de vista, tudo o que estiver sob o limiar da
escrita, e, em geral, os hábitos rústicos ou suburbanos, é visto como sobrevivência das
culturas indígenas, negra, cabocla, escrava ou, mesmo, portuguesa arcaica110...

- O conjunto cultural arquetípico de mitos, imagens, motivos, símbolos indica


que "não há nada novo sob o Sol"111. Visto que os contos de fadas teriam uma
explicação histórica, e estariam em permanente evolução e transformação (chegando até
a literatura erudita), que elemento é este que se mantém semelhante na dissemelhança,
ao longo dos séculos? Trata-se de elemento histórico, explicável pela evolução, ou
transformação?

A resposta de Mircéa Éliade (1963) é:

L'anamnesis philosophique ne récupère pas le souvenir des événements faisant partie des
existences précédentes, mais des vérités, des structures du réel. On peut rapprocher cette
position philosophique de celle des sociétés traditionnelles: les mythes représentent des
modèles paradigmatiques fondés par des Etres Surnaturels, et non pas une série
d'expériences personnelles de tel ou tel individu112.

A nota explicativa de Eliade, retomando o conceito de arquétipo junguiano,


insiste em que "os arquétipos são transpessoais e não participam do Tempo histórico do

110. Bosi, Alfredo. Dialética da Colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992: 323.
111. A frase corrente no Brasil explicita Salomão (o rei) como seu autor. Novos estudos constataram ser
outra a autoria: Quohelet.
112. Nota 1 de Eliade, Mircéa. Aspects du mythe. Paris: Gallimard, 1963: 155: "Cf. Mythes, rêves et
mystères, pp.56-57. Pour C. G. Jung aussi l'"inconscient collectif" précède la psyché individuelle. Le
monde des archétypes de Jung ressemble en quelque sorte au monde des Idées platoniciennes: les
archétypes sont transpersonnels et ne participent pas au Temps historique de l'individu, mais au Temps de
l'espèce, voire de la Vie organique".
62

indivíduo, e sim do Tempo da espécie, em verdade da Vida orgânica". O conceito


junguiano tem diferentes interpretações.
Digamos que para Jung, apud Jabouille113, os arquétipos são os herdeiros do mais
antigo passado; são os traços tornados hereditários das primeiras experiências
existenciais do homem perante a natureza, perante os outros homens e perante si
próprio. Mais tarde, Jung encara os arquétipos como modos de comportamento
universal típico, que correspondem a formas de conduta biológica, a princípios
regulamentadores ou, ainda, a formas a priori da experiência. Os arquétipos são
necessariamente inconscientes, formas dinâmicas que se impõem às imagens
particulares. Mas o arquétipo não é, em si, uma imagem; é o impulso que dá origem a
imagens.
Jung formula um inconsciente individual - o que foi explorado por Freud - e um
inconsciente coletivo - imutável e universal, constituído por arquétipos, animus, anima,
duplo, etc. O inconsciente coletivo pode ser definido (apud Jung) como uma estrutura
mental materializada pela mitologia, presente em mentes primitivas.
O que registramos é a renovação dos usos dos símbolos, em variações infinitas
ao longo da história, em combinações entre mitos, símbolos, registros, culturas e
linguagens diferentes, segundo a fantasia e as associações dos anônimos autores dos
relatos orais, ou dos identificados autores de textos escritos.
Gilbert Durand114 apresenta o ponto de partida teórico de uma nova perspectiva
de análise que poderia corresponder à recapitulação. Entroncando o seu pensamento em
Gaston Bachelard e sofrendo as influências de Jung, Kerényi, Eliade, Dumézil e Henry
Corbin, G. Durand remete-nos para a análise do 'imaginário simbólico'115 - "isto é, o
conjunto das imagens e das relações de imagens que constituem o capital do
pensamento do homo sapiens"116. Gilbert Durand considera que as imagens humanas se
agrupam segundo três reflexos fundamentais - o postural, o digestivo e o rítmico - os

113. Jabouille, Victor. "Introdução à edição portuguesa". In Grimal. Pierre. Dicionário da Mitologia
Grega e Romana. 2ª ed. Trad. Victor Jabouille. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1993: X.
114. Durand, Gilbert. Les structures anthropologiques de l'imaginaire. Paris: Bordas, 1988.
115. Durand, Gilbert. L'imaginaire symbolique. Paris: P.U.F., 1984. Durand também escreveu outras
obras em que trata do mito: Le décor mythique de la Chartreuse de Parme. Paris: Corti, 1961; Science de
l'homme et tradition. Paris: Berg International, 1979; L'âme tigrée. Les plurels de psyché. Paris: Denoel-
Gonthier, 1980; Mito, símbolo e metodologia. Lisboa: Presença, 1982; O mito, a sociedade e a sociologia
das profundezas. Lisboa: A regra do jogo, 1983; La foi du cordonnier. Paris: Denoel-Gonthier, 1984;
Beaux-arts et archétypes. La religion de l'art. Paris: P.U.F., 1989.
116. Durand 1988: 11.
63

quais, por sua vez, se integram em três grandes agrupamentos mais gerais de estruturas
vizinhas, analisados em Structures Anthropologiques de l'Imaginaire. Considerando o
mito como "uma narrativa (discurso mítico) que põe em cena personagens, cenários,
objetos simbolicamente valorizados, segmentável em seqüências ou menores unidades
semânticas (mitemas) nas quais se investe obrigatoriamente uma crença (contrariamente
à fábula e ao conto) chamada pregnância simbólica (E. Cassirer)"117, Gilbert Durand
admite que o pensamento humano se move dentro de quadros míticos e,
inconscientemente ou não, esses quadros estão presentes nas manifestações do
imaginário. Seria o mito que, na realidade existencial das culturas e da vida dos homens,
distribui o papel da história.
O meu objeto não é explicar o pensamento humano como um todo, em que
suporia ocorrências freqüentes e repetidas, como Durand, mas, muito mais
modestamente, examinar um fenômeno especial, percebido por mim de modo mais
completo em apenas um caso, mas que me parece poder ocorrer - sobretudo nas criações
artísticas (aí, sim, sugiro que em qualquer ser humano, ou artista, ainda que raramente).
A concepção de Durand acima exposta não se presta para explicar este fenômeno, nem
ele se encaixa na teoria durandiana completa. Volto, pois, ao conceito de recapitulação.
Como o corpus de referência desta reflexão é S. Bernardo, de Graciliano Ramos,
e desejo definir o conceito de recapitulação, considero que:

- o diálogo esperável em obra da literatura brasileira, sobretudo inconscientemente, seria


com a mitologia de povos indígenas que habitam no Brasil, ou, quem sabe, com uma
mitologia africana;
- na Literatura Brasileira encontramos tanto o aproveitamento de uma mitologia
universal, não indígena, nem africana, como a mitologização de certas marcas
concebidas como linhas de força do que seria 'o povo brasileiro', isto é, a identidade
brasileira; este último aproveitamento seria desejado e consciente por parte do autor,
construído analogicamente a mitos de origem;
- a mitologização precisa ser nitidamente entendida como procedimento diferente do
mito propriamente dito, visto que tem um cunho ideologizante forte.

117. Durand 1988. 34.


64

Estas considerações sublinham o caráter extraordinário, ou pelo menos


"diferente" da presença do mito de Trofônio entretecido no relato de Graciliano Ramos.
Como o mito de Trofônio é pouco conhecido, como o capítulo central de S.
Bernardo, de Graciliano Ramos, foi escrito em estado febril, seria lícito supor que os
elementos que lembram o mito grego no romance, em romance de autor que
aparentemente trabalhou sobretudo as causas sócio-econômicas da sociedade brasileira
do Nordeste, surgiu a partir do inconsciente. Poderia ser elemento arquetípico. O
conceito de arquétipo junguiano tem uma nuança diferente daquela verificável no
romance de referência, porque os produtos arquetípicos não se apresentariam como
mitos já formados.
O mito corresponderia à projeção de uma força psíquica que partiria de um
objeto real e o transferiria na representação. Segundo Mircéa Éliade, "graças à memória
primordial que ele é capaz de recuperar, o poeta inspirado pelas musas tem acesso às
realidades originais. Essas realidades manifestaram-se nos tempos míticos do princípio
e constituem o fundamento deste Mundo"118.
Haveria uma diferença conceitual entre o que chamarei de recapitulação e o
conceito de inconsciente coletivo e de arquétipos119 cunhado por Carl Gustav Jung?
Comentando a biografia de Jung120, Carlos Haag diz algo forte: "Ele viu a ascensão de
Hitler como uma manifestação do inconsciente coletivo germânico - Jung postulava que
o seu conceito funcionaria na Alemanha - já que acreditava, como os nazistas, numa
teoria de que o ideal de deuses alemães, com pureza racial, não fora destruído pelo
cristianismo e permanecia espalhado na mente do povo121". O que seria "o inconsciente
coletivo germânico" corresponderia a uma tendência vivenciada por uma coletividade
em um dado momento, reproduzindo um certo "ideal" - que Jung considerou ancestral -
e que teria uma vertente única, homogênea e não contraditória. Este "ideal de deuses
alemães, com pureza racial" não teria sofrido nenhuma injunção histórica, nem social,
nem cultural, recorrendo em todos os habitantes de uma coletividade ao mesmo tempo e
118. Eliade Mito e realidade: 108.
119 “A noção de arquétipo, postulando a existência de uma base psíquica comum a todos os humanos,
permite compreender porque em lugares e épocas distantes aparecem temas idênticos nos contos de fadas,
nos mitos, nos dogmas e ritos das religiões, nas artes, na filosofia, nas produções do inconsciente de um
modo geral - seja nos sonhos de pessoas normais, seja em delírios de loucos”. (Silveira 1992: 78).
120. McLynn, Frank. Carl Gustav Jung. São Paulo: Record, 1998, referida e comentada por Haag,
Carlos. "Biografia revê contradições de Jung". O Estado de São Paulo. In Caderno 2 (D) - Especial
Domingo. Ano IX, nº 4.329. domingo, 27.09.1998: 1 e 12.
121. Haag 27.09.98: 12.
65

da mesma maneira. Não é, seguramente, o que vejo no conceito de recapitulação. (Nem


no que chamo de universais).
Temerosa com respeito tanto ao conceito de arquétipo, como às conotações
político-ideológicas de Carl Gustav Jung, recorri ao livro de Nise da Silveira, sua fiel
discípula, que cito:

Muita confusão tem sido feita em torno do conceito de arquétipo. Há ainda quem
continue repetindo que Jung admite a existência de idéias inatas e de imagens inatas. É
falso. Incansavelmente êle repete que arquétipos são possibilidades herdadas para
representar imagens similares, são formas instintivas de imaginar. São matrizes arcaicas
onde configurações análogas ou semelhantes tomam forma. Jung compara o arquétipo ao
sistema axial dos cristais que determina a estrutura cristalina na solução saturada sem
possuir, contudo, existência própria122.

O arquétipo não seria o mesmo que a imagem arquetípica:

Seja qual for sua origem, o arquétipo funciona como um módulo de concentração
de energia psíquica. Quando esta energia, em estado potencial, atualisa-se (sic), toma
forma, então teremos a imagem arquetípica. Não poderemos denominar esta imagem de
arquétipo, pois o arquétipo é unicamente uma virtualidade123.

Notei, no romance de Graciliano Ramos, uma recuperação fortuita, rara, que


remontaria ao passado ancestral, mas de modo nenhum extensível a uma comunidade,
nem mera virtualidade. Esta recuperação não seria explicável social ou culturalmente.
Seria a recuperação de um conjunto integrado de motivos e que reconstrói toda uma
estrutura mítica conhecida apenas em um passado ancestral, integrado e entretecido
na trama da narrativa inteira - e não sintetizado em uma imagem concisa, isolada na
obra.
A variação com respeito à definição de Mircéa Éliade seria de que o autor
inspirado poderia ter um momento em que a memória primordial, ativada, não lhe daria
propriamente "acesso às realidades originais", mas acesso a um conjunto de temas que,
reunidos de certo modo, recomporiam um ritual - ancestral. Esta reunião de temas
obedeceria à "forma simples" mito, disponível como estruturadora dos universais. Ela
não teria as características nítidas, quase geométricas e analíticas, das árvores e
subdivisões traçadas pelos estruturalistas.

122. Silveira 1992: 77.


123. Silveira 1992: 78.
66

Através da experiência vivida pela personagem Paulo Honório, das figurações de


sua culpa, Graciliano Ramos recapitula o mito de Trofônio.
Poucas narrativas de meu conhecimento têm aspectos do mito referido. Em O
asno de ouro, ou As metamorfoses, de Apuleio124, o chefe dos ladrões, Lâmaco, que
enfiara a mão dentro de uma abertura de porta, para roubar as suas chaves e abri-la, tem
a mão pregada na parte de dentro da almofada da porta pelo dono da casa, Críseros,
"banqueiro e possuidor de abundantes riquezas". Sua mão é amputada por um
companheiro, com o seu consentimento, o que acaba por lhe custar a vida, claro125. Este
detalhe lembra a sorte de Agamedes. Mas é só. Culpa não há. Em D. Quixote, a cova de
Montesinos lembra uma descida pelo 'poço de Trofônio', mas D. Quixote, a
personagem, não tem - nem tem porque ter - sentimento de culpa. Desce e fica
inconsciente e quando volta começa a recordar o que viu. Este é o tema semelhante. O
conjunto de temas coincidentes com o mito de Trofônio, encontráveis em S. Bernardo,
conjunto que não se apresenta só incidentalmente, mas como elemento constitutivo
temático, semântico, rítmico importante do romance de Graciliano Ramos, isto é
especial na literatura.
Poderíamos considerá-los arquétipos. O símbolo arquetípico é a caverna. Os
outros elementos coincidentes (necessidade de rememorização, culpa, recalque e
materialização da culpa em seres monstruosos ou nojentos) vão além do mero arquétipo.
Chamei o fenômeno de recapitulação. O biólogo Stephen Jay Gould126 estuda a
recapitulação de características primitivas. Gould mostra que o organismo de animais
pode apresentar a predisposição para a recuperação de uma tendência vista como
passada e acabada, mediante um estímulo adequado. Dá, como exemplo, uma

124. Apuleio, Lúcio. O asno de ouro. Intr. notas e tradução Ruth Guimarães. Rio de Janeiro: Ediouro
(Tecnoprint), s/d.
125. "Na perigosa alternativa de nos perdermos ou de abandonarmos nosso companheiro, premidos pelas
circunstâncias, lembramo-nos de um remédio enérgico, que teve o consentimento do chefe. A parte
inferior do braço nós a cortamos prontamente com um golpe bem calculado em cima da articulação.
Depois, deixando lá o toco, vedamos o ferimento com um tampão de fazenda, para evitar que gotas do
sangue traíssem nossa passagem, e levamos apressadamente o que restava de Lâmaco. [...] Então, não
podendo nem seguir bem depressa, nem demorar sem risco, esse homem de alma sublime e de uma
valentia sem igual, nos dirigiu a palavra, fazendo-nos súplicas as mais tocantes, exortando-nos, pela mão
direita de Marte, pela fé do juramento, a que livrássemos um companheiro dos seus sofrimentos e, ao
mesmo tempo, da prisão". Lâmaco acaba por se matar para não mais sofrer. (Apuleio: Livro IV, X: 62-3).
126. Gould, Stephen Jay. A galinha e seus dentes e outras reflexões sobre história natural. Trad. David
Dana. Rio de Janeiro: Paz e Terra: 1992: 177-186.
185: "Os modelos do desenvolvimento passado de um organismo persistem sob forma latente".
186: "O passado de um organismo não só condiciona seu futuro como também lega uma enorme reserva
potencial para a mudança morfológica rápida, baseada em pequenas mudanças genéticas".
67

experiência em que uma galinha recobra algo como dentes, coisa da pré-história. A
recapitulação ocorre rarissimamente e de maneira fortuita, na arte. Através dela,
encontraríamos não um símbolo isolado, mas um conjunto de símbolos diferentes:
memória de um culto e mito antigos, não atualizados na cultura local, nem por leituras,
e que, em determinadas circunstâncias, teria condições de voltar a tomar corpo.
A recapitulação, conceito que vem da biologia, nada deve à teoria de resquícios,
ou resíduos dos estudos sociológicos convencionais, de filiação evolucionista, já porque
derruba o conceito de evolução, substituindo-o pela recapitulação repentina de uma
característica típica de um estágio primitivo, graças a alguma aliança exógena com um
corpo (forma) aparentemente conhecido e consciente.
O relato do culto ou o mito recapitulado seria autêntico, por ser, ele também,
dinâmico:

le mythe authentique est "dynamique" - il lui faut se révéler pour autant qu'il produit
quelque chose: la figure. La figure est l'élément créateur dans le monde parce qu'elle-même
est immédiatément née de l'originel127.

Enquanto linguagem, o mito corresponderia à verdade:

(La langue) est elle-même la vérité du mythe. Plus exactement: elle n'est rien d'autre que la
figure de la vérité (mythique) devenue manifeste dans la parole. (Elle n'explicite pas le
mythe, elle ne tente pas de l'exprimer, elle est le mythe. Ce que dit déjà le mot grec
mythos? en sa signification déjà indiquée: le vrai comme parole!)128

A verdade essencial do ser humano, o grande mistério, é o próprio ser humano:


vida e morte. A busca desta verdade se repete em ritos, cultos, mitos, contos de fadas -
literatura. O momento e o elemento repetido não é apenas transformação, assimilação e
história. Pode ser também recapitulação.
Um dos sentidos do mito, na ficção, é o de atribuição de valor sagrado (e
verdadeiro) ao relato129. Reinstaura o sagrado e com ele a distância entre o sagrado e o
profano, entre o sagrado e o humano. Isto garante que o mito imponha limites ao ser
humano, controlando-o. Neste sentido, a perenidade do mito é ahistórica, intemporal.

127. Otto, Walter F.. Essais sur le Mythe. Traduit de l'allemand par Pascal David. Mauvezin: Trans-
Europ-Repress, 1987: 33.
128. Otto 1987: 37.
129. Eliade1963:15.
68

O corolário desta recapitulação, cultural, é que o processo de ressignificação130,


também na idade adulta e em situações que poderiam pressupor a consciência, é
inconsciente na sua produção e fortuito na sua recepção.
A recapitulação cultural é manifestação repentina, extemporânea - episódica - e
não explicável historicamente, de um rito ancestral, sem ter participado de um processo
evolutivo - e apesar de apresentar modificações formais. Recupera uma forma como
expressão de um processo psíquico e um sentido cíclico do tempo, contraposto, no caso
da obra estudada, ao sentido linear do tempo. Contrapõe a inteligibilidade da ordem
atemporal à inteligibilidade de eventos únicos e irreversíveis.

Um último contra-argumento para o conceito de recapitulação seria o da


intertextualidade. Considerarmos todas as referências a narrativas, poemas ou cantigas
provenientes da oralidade ou da escrita apenas como intertexto tem a desvantagem de
não acrescentar informação ao fenômeno, nem matizar os conceitos. O intertexto, assim
como a crítica textual, só são pensáveis com o texto escrito, já que mesmo havendo um
intertexto na oralidade, ele é menos discernível, ou é visto como fórmula que, repetida,
se apresenta como referência para a memorização e gancho para a atenção. E se o
intertexto tivesse, na escrita, uma função semelhante - de referência e gancho? Fala-se
em "intertexto" quando a referência a outro texto é consciente. Ao trazer à tona um mito
primitivo, sem leitura e conhecimento racional e consciente do mesmo, Graciliano
Ramos, em S. Bernardo, revela que há mais semelhanças entre o homem chamado de
"primitivo" - com traços menos racionais e conscientes - e o homem civilizado do que
quer "a nossa vã filosofia". Pelo menos entre o homem de hoje e o de há quase três mil
anos atrás.
A ficção torna-se paradoxalmente histórica quando confirma ou repete o mito
ancestral131, revelando o cerne a partir do qual atua o ser humano. A ficção - a arte - é o
espaço da repetição ritual. Ela repete o gesto original. Recapitula algo fundamental e

130. A recapitulação lembraria o processo de ressignificação, na medida em que construiria mudanças


em cima de um conjunto de motivos mas não de imagens, sendo este um efeito da linguagem que se
elabora e reelabora a si mesma (e de sua macro-célula: a forma).
131. O mito não se encaixa em um universo histórico, ou historicizável, mesmo apresentando alguns
símbolos que marcam épocas, como o da matrilinearidade e patrilinearidade, ou a trajetória da busca do
estanho, ao norte da Etrúria, mascarada na trajetória de Ulisses de volta à Hélade, onde na verdade existia
pouco ferro e nada de estanho, necessário - com o cobre - para amalgamar o bronze.
69

imperecível, ainda que calado ou aparentemente perdido: a noção do tempo cíclico e


profundo, mesmo quando se empenha em esmiuçar o que de singular e próprio existe na
linha histórica sincrônica e diacrônica.
Com estes pressupostos, o que seria brasileiro, tem raízes ou um pé num passado
ancestral. E os mitos da modernidade - sobre identidades nacionais - eternizam ou
ancestralizam características históricas ou sociais.

2.2.1. - A narrativa Rampsinitos

A conclusão do relato “Rampsinitos”, registrada por Heródoto e outros132, não é


nem mítica, nem é de conto de fadas. Tem algo de épico (trajetória de um herói e
origem gloriosa, fundadora, de uma nação). O herói até se caracteriza por 'sapientia' (=
astúcia) e mesmo com uma segunda acepção: a de conhecimento: Rampsinitos é
arquiteto. Tem o cinismo - ou humor - do herói enquanto fundador de estirpe política.
(Este fundador de estirpe sócio-política pode chegar a ser covarde ou pusilânime. Dante
coloca o Ulisses poltrão no inferno, na Divina Comédia, e nem menciona o Ulisses de
Homero). Portanto, em “Rampsinitos” não há nem iniciação, nem punição, esperáveis
em herói formado segundo os parâmetros do mito ou da epopéia. Quem vive para
sempre, no relato "Rampsinitos", é a nação egípcia, gloriosa, fundadora de outras
nações, organizada, em um dado momento, por uma personagem astuta e audaciosa – e
também desonesta e de mau caráter. Punido, como é preciso, é o bode espiatório, irmão
do herói.
Esta fraternidade seria complementar? Corresponderia à tópica da coincidentia
oppositorum?
A conclusão hindu difere da forma mito - tendo características funcionais da
epopéia, que aproveita a forma simples mito, investindo-a com outra função, ainda que
para tanto utilize um símbolo mítico, como o da fraternidade em luta, ou a coincidentia
oppositorum. Em vez de contradição, há justaposição. A primeira parte, ou a versão do
ritual grego, é semelhante ao mito de Trofônio. A segunda parte justapõe um elemento
épico. Como, apesar disto, Rampsinitos não permaneceu como fundador de estirpe e da
história de uma nação, do ponto de vista das formas simples o relato estudado se

132. Veja citação referente à nota 28.


70

assemelha mais a um caso. Pesa e avalia as ações, usando palavras do tipo castigo e
recompensa. O valor maior, premiado, é a astúcia133.
A passagem de uma forma a outra é feita por justaposições e superposições de
funções caracterizadoras de cada forma, capazes de uma atribuição de sentidos
diferenciados. As modificações nos motivos estudadas por Propp decorreriam de
mudanças de funções, mais do que de circunstâncias históricas? Uma resposta positiva
valoriza a construção ficcional e atribui menor peso ao registro histórico-social. Ou faz
com que ambos se correlacionem, interdependentes. A diferença entre 'Trofônio' e
'Rampsinitos' não é arbitrária, nem inócua. E Graciliano não poderia ter feito bom uso
de ‘Rampsinitos’.
2. O mito primitivo

133. A 'lei de Gerson', que pareceu caracterizar o Brasil, recorre, enquanto astúcia matreira e mesmo
criminosa em outras partes e em outros momentos da história do mundo, bem anteriores ao século XX...
71

O mito primitivo define-se pela referência a uma realidade incondicionada,


motivada por nossa necessidade de viver o mundo como dotado de sentido. Dá corpo ao
nosso perene desejo de elucidação verbal daquilo que, a partir de determinado grau de
saber, não é compreensível como objeto. É construído como Ersatz do conhecimento,
que nos conforta diante de situações de angústia ou incompletude. Enquanto campo da
intuição e da especulação, registrou saberes próximos de conhecimentos confirmados
recentemente.

2.1. O mito indígena

Claude Lévi-Strauss analisou as comunidades primitivas a partir de seus hábitos


e de seus relatos míticos, reconhecendo a pessoa indígena (ou primitiva - ou ágrafa -
como define melhor Lévi-Strauss), como paralela e similar ao ser humano urbano e
contemporâneo. Esta pessoa indígena era ainda assim diferente, também porque inserida
dentro de uma cultura e civilização diferente da do século 20.
Segundo Lévi-Strauss, o mito é contemporâneo a seu contexto. Isto é, a
explicação do fenômeno da natureza contida pelo mito corresponde a uma carência de
seu tempo e repercute o seu contexto. Os mitos dos povos primitivos tenderão a
fornecer informações também sobre os sistemas de parentela, sobre as suas instituições
políticas, ou modos de produção.
Os estudos antropológicos e etnológicos são um tanto perturbadores para quem
quer estudar o mito enquanto criação ficcional, por não atentar para os seus símbolos. A
fim de melhor apreender o nível ficcional das enunciações míticas dos indígenas do
Brasil, analisarei uma amostragem do mito indígena, ainda que “a lição que se pode tirar
de um mito reside na literalidade da narrativa, não nos acréscimos que lhes impomos do
exterior"134.

134. Calvino, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. Lições americanas. 4¦ reimpressão. Trad. Ivo
Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1990: 16.
72

O relato de referência da primeira análise consta de uma antologia de lendas


indígenas135, mas esta, em particular, foi recolhida por Curt Nimuendaju Unkel em
Mitos dos Índios Tembé do Pará e Maranhão136.

O incêndio universal e o dilúvio

Em tempos mui distantes, certo homem aproximou-se de uma criança que brincava
sozinha. Deu-lhe uma tocha acesa e ordenou-lhe que a apagasse na água do rio,
desaparecendo em seguida.
A criança mergulhou a tocha no rio e este começou logo a arder. A princípio incendiou-se
a água, depois a terra também começou a levantar altas chamas. O fogo meteu-se por baixo
do chão e foi irromper no terreiro de uma aldeia. Então a terra desabou nesse local.
Uma mulher grávida escondeu-se com um menino no bananal, que não podia ser
destruído pelo fogo. O incêndio aniquilou toda a humanidade. E depois que o fogaréu se
extinguiu os dois saíram de seu esconderijo. Na imensa coivara encontraram cinco raízes de
mandioca, que guardaram cuidadosamente.
Então choveu durante muitos dias e muitas noites, sem parar. Ambos sofreram muita
fome. Por fim, a água foi baixando vagarosamente e quando a terra ficou descoberta,
plantaram as raízes de mandioca.
A mulher deu à luz uma menina; desta e do menino, ressurgiu a humanidade.

A explicação dos Tembé, sobre os primórdios da Terra e o Velho Testamento, é


paralela à história do dilúvio universal137, ou da fuga mágica138.
A apreensão do tema do dilúvio pelos indígenas brasileiros poderia ter ocorrido
pela via da catequese cristã - católica ou protestante - antes do século XX, ou, no
próprio século XX, assim como poderia pertencer a um inconsciente coletivo. Temas
como o incêndio universal, o dilúvio, a terra da Morte ou dos mortos, o nascimento da
virgem, ou ainda a ressurreição do herói aparecem em todas as culturas em combinações
diferentes, permanecendo sempre os mesmos e sempre só uns poucos temas,
organizados como os elementos de um caleidoscópio.
A lenda sobre o incêndio universal reúne três temas: fogo, água e nascimento da
menina e da humanidade. Há temas correlatos ligados ao tema da criação, como o
aparecimento da mandioca, que nasce a partir de cinco raízes, ou a existência de
alimento, fundamental para a sobrevivência do ser humano. A banana (correlata ao
135. Baldus, Herbert (ed.). Estórias e lendas dos índios. Introdução H. Baldus. ilustração J. Lanzelotti.
São Paulo: Literart, 1960.
136. Nimuendaju Unkel, Curt. Mitos dos Índios Tembé do Pará e Maranhão. Sociologia. Vol. XIII, nº 3,
São Paulo: 274, In Baldus, Herbert (ed.). Estórias e lendas dos índios. Introdução H. Baldus. ilustração J.
Lanzelotti. São Paulo: Literart, 1960: 118.
137. Baldus 1960: 11.
138. Baldus 1960: 9. Também em Propp (1983) há referências à relação entre lendas (mitos) e narrativas
religiosas.
73

bananal) existe, sem explicações acerca de seu surgimento. Não há relação de


causalidade entre mulher grávida, menino e nascimento, assim como entre estes e o
povoamento da Terra. O mito responde à pergunta: "Como foi criada a terra? De onde
vieram as plantas, os alimentos e o ser humano?" Explica o nascimento e a criação. Não
explica o fogo, nem o incêndio, suas causas, sua necessidade, seu efeito.
Há inúmeros ritos de purificação pelo fogo. São, geralmente, ritos de passagem,
característicos de culturas agrárias. Os Tembé, ainda que fracamente agrários, fazem
menção ao plantio da mandioca. Os ritos de purificação pelo fogo podem simbolizar,
segundo antropólogos, os incêndios dos campos antes do plantio - assim como
pertencem ao universo do cozido. O tema do fogo purificador também pode estar
desvinculado de uma referência direta ao estágio econômico e "civilizatório".

Nous savons que l’initiatio était censée fournir au jeune homme la possibilité
d’acquérir une âme nouvelle et de devenir un homme nouveau. Nous sommes ici en
présence de la conception du feu comme force purifiante et rajeunissante, conception qui se
prolongera jusqu’au purgatoire chrétien.
[...]
Toute les formes de cuisson, de brûlure et de rôtissage conduisent au plus grands
des bienfaits, bienfait qui est le but de tout le rite d’une façon générale, à savoir
l’acquisition des qualités nécessaires à un membre à part entière de la société tribale.
Nous savons que le rite tout entier constituait une descente aux enfers 139.

Nous savons que les mythes étaient des récits sacrés et tabous. Nous verrons cela
en détail dans le dernier chapitre. Mais à mesure qu’intervient le processus de
déssacralisation du récit, processus lié au perfectionnement des outils, à la décadence de la
magie et à la différenciation sociale qui les accompagne, ce qui prend le dessus, c’est la
version “profane”, c’est-à-dire la version qui nie le bienfait de l’épreuve du feu et qui en
retourne le sadisme contre le fauteur du feu, jeté à son tour dans le four. À côté de ceci,
pour les “grands”: chefs, héros, demi-dieux, et plus tard dieux, la version archaïque,
directement sortie du rite, est toujours en vigueur140.

Ces exemples montrent que l’avalement par l’animal a été remplacé par
l’engloutissement par l’eau, qu’il s’agisse d’une baignade dans un étang infesté de serpents
ou même d’un engloutissement et d’un recrachement par l’onde marine.
Ainsi, nous établissons le fait suivant: d’après le rite, c’est le dragon (ou quelque autre
animal) qui fait le chasseur; d’après le mythe, c’est toujours le dragon qui fait le grand
chasseur et le grand chamane. C’est le dragon aussi qui donne le premier feu et, à l’aube de
l’agriculture, les premiers fruits de la récolte, ainsi que la poterie. Ultérieurement, nous
aurons le grand chef et, ultérieurement encore, le dieu 141.

O mito Tembé não metaforiza o fogo. Fala diretamente dele, como evento
paralelo ao humano, sem menção a uma purificação. Pelo sentido de coivara ("restos ou
139. Propp 1983: 127.
140. Propp 1983: 129-30.
141. Propp 1983: 301.
74

pilha de ramagens não atingidas pela queimada, na roça à qual se deitou fogo, e que se
juntam para serem incineradas a fim de limpar o terreno e adubá-lo com as cinzas, para
uma lavoura"), inferiríamos que o fogo purifica a terra, ou a fertiliza.
Como na mitologia grega, o tema do fogo é referido a par do tema da água. Em
rituais iniciáticos o fogo simboliza morte e renascimento, relacionado a seu princípio
antagônico: a água. A purificação pelo fogo e pela água são complementares, tanto no
plano microcósmico dos rituais iniciáticos, quanto no plano macrocósmico, dos mitos
alternados de Dilúvios e de Grandes Secas e Incêndios. Talvez o mito Tembé trate, à
sua maneira, de morte e renascimento, indiciando, pelos temas abordados, a simbologia
que lhe estaria por trás. Quem morre e renasce? A terra? O mundo?
Água queimada é símbolo que resume a união dos contrários realizada no seio
da terra. Esta união de contrários pode referir o ato sexual, mas nada indicia este sentido
na narrativa dos Tembé.
Dentre outros símbolos que aparecem no mito Tembé, encontramos o número
cinco142.

[...] tudo o que servia de alimento amadurecia cinco dias depois de ter sido semeado, e os
mortos ressuscitavam depois de cinco dias [...].

A terra (que desaba no local do fogo interno) é símbolo de função materna e


fecundidade.
Incêndio e dilúvio, fogo, cinco, gravidez e nascimento, são temas de purificação,
de morte e renascimento, de unidade e produtividade feita de alternância e re-união de
contrários. A vida humana, frágil, precisa ser reabastecida de forças renovadoras, já que
o destino de todos os corpos é o de se dissolverem, desaparecendo. Se as formas não
fossem regeneradas por sua reabsorção periódica nas águas, esgotariam suas
possibilidades criadoras e se apagariam definitivamente. Esvaziada de formas e de
forças criadoras, a humanidade acabaria fenecendo, decrépita e estéril. O dilúvio tem o
poder de regeneração instantâneo, purificando e renovando o que estava exangue.
Na narrativa "O incêndio universal e o dilúvio", o primeiro parágrafo, que se
refere à doação do fogo aos homens, lembra o mito de Prometeu. A cena inusitada e
inesperada - do desconhecido que aproveita a "presa" ingênua, descuidada - "uma

142. O número cinco exercia um papel capital nas crenças dos antigos peruanos.
75

criança que brincava sozinha" - introduz este Prometeu Tembé apenas como "certo
homem", que aparece e desaparece. A personagem não está caracterizada: só a cena.
Este Prometeu dá o fogo e ordena a seqüência: apagar o fogo na água do rio. Seria
lógico: "Criança não brinca com fogo". Surpreendentemente, o fogo incendeia a água.
Não interessa a relação lógica com a realidade, mas a lógica interna do relato. A tocha
tem fogo e este é poderoso; incendeia a água. Poderia corresponder à visão de material
combustível do futuro, ou de conhecimento deste material: álcool, óleo ou gasolina. A
lógica da narrativa se faz por contigüidade. A tocha incendeia a água, na qual mergulha,
que põe fogo na terra, que irrompe na aldeia. O fogo, no entanto, não age sozinho.
Precisa de uma criança que mergulhe a tocha no rio. A cena não é meramente descritiva.
Existe ação, que se caracteriza por um ser humano que dá o impulso inicial; o resto é
conseqüência.
A terceira cena independe da anterior, tendo por elo de ligação o fogo e o perigo
de morte e necessidade de abrigo. A cena precedente tinha tido uma motivação maior,
visto que a criança do primeiro parágrafo-cena reaparece no segundo. A terceira cena
tem personagens novos: a mulher grávida e o menino. (No fim das contas, quem faz
ressurgir a humanidade são um menino e uma menina). A mulher grávida e o menino
são indispensáveis para a seqüência da narrativa e precisam ser caracterizados como
foram: a mulher precisa estar grávida e o macho precisa ser um menino para que depois
exista um par que possa procriar, repovoando a terra dizimada.
A história refere-se à origem e à vida na terra, à origem do fogo e do alimento
(mandioca). Inferimos, por contigüidade – a outros mitos de origem e a uma simbologia
– mais sentidos do que aqueles inscritos na lenda. O desenvolvimento da ação, a
caracterização de personagens, espaço e tempo têm algo de rude.
O homem é alegoria do poder e do conhecimento do poder do fogo. Não há um
deus. A criança representa o ser humano - e a humanidade - em seu estágio primitivo e
primordial. A coivara tem sua necessidade e economia determinadas pela explicação da
origem do alimento sobre a face de uma terra calcinada. O foco narrativo está em 3ª
pessoa e é unívoco e onisciente. As coisas são e se passaram assim, o que deve ser
aceito porque isto é bom, razoável e salutar.
Os símbolos desta lenda falam na regeneração da terra e da vida como
manifestação da esperança e confiança nesta purificação, que é confiança no princípio
76

vital, na perpetuação da vida. O cunho fundamentalmente afirmador da vida, segundo a


hipótese que defendo, corresponde à marca de conto de fadas. As personagens da lenda
não parecem ser aspectos de uma mesma personagem complexa. Por outro lado,
enquanto mito de origem, a lenda revela o mundo nos seus estágios sem que a ação
humana possa ir além da reação possível diante das circunstâncias. Não se vê normas ou
leis a serem obedecidas. Não há punição porque não há uma ética. A grande diferença
entre os mitos gregos e este mito Tembé é que a forma mito parece um conto de fadas, a
simbologia não chega a firmar-se e a narrativa é primária.
Ovídio escreve:

Tranqüilizai-vos, pois, em verdade, ele (Licáon) já foi castigado. Contarei, todavia, qual
foi o seu crime e qual a punição. Chegara aos meus ouvidos a notícia da infâmia destes
tempos. Desejaria que fosse falsa. Resolvo, por isso, deixando o alto Olimpo, embora deus,
percorrer a Terra em forma humana. Seria longo enumerar tudo de criminoso que encontrei
por toda a parte: a verdade era ainda pior do que eu ouvira 143.

Já ia espalhar os raios por todas as terras, mas teve medo de que o éter sagrado se
inflamasse como todo aquele fogo e o mundo ardesse em toda a extensão do seu eixo.
Lembrou-se também que, de acordo com os fados, chegará um dia em que o mar, a terra e o
palácio celeste atingidos arderão, e desmoronará o conjunto do mundo, com tanta indústria
construída. Põe de lado os dardos feitos pelas mãos dos ciclopes; apraz-lhe um castigo
diferente: destruir pela água o gênero humano e desfazer as nuvens de todo o céu 144.

Em um mito o relato constata. No outro, informa uma medida de punição.


Opõem-se inocência e desvalimento contra crime e culpa.

A diferenciação e a individualização cultural, de maneiras de compreender e de


sentir e até da construção dos mitos, originalmente semelhantes para os seres humanos,
independente de raça ou nação, foi fruto de refinamento e de complexidade crescente,
considera Lang145. São seus pressupostos:
Os povos mais primitivos teriam um produto cultural - mitos - menos elaborado
do que o de civilizações mais avançadas.

143. Ovídio. As metamorfoses. Trad. David Jardim Jr. Rio de Janeiro: Tecnoprint, 1983, (Ediouro): 16.
144. Ovídio 1983: 17.
145. Lang, Andrew. Mythes, cultes et religions. Traduit par Léon Marillier. Précédé d'une introduction
par Léon Marillier. Paris: Félix Alcan, 1896.
77

O produto cultural mais primitivo em verdade corresponderia ao que teria sido o


produto cultural inicial da civilização mais avançada também, de modo que a diferença
residiria num tempo de amadurecimento, ou de desenvolvimento.
Seres humanos cujo espírito seria diferente, mas vinculados às mesmas leis da
natureza biológica e psíquica, produziriam narrativas populares semelhantes, mesmo
que houvesse graus de civilização diferentes entre o povo examinado e os empréstimos
de origem.
Quanto mais desenvolvido um povo, tanto mais individualizada e personalizada
seria a sua produção cultural.
Se há uma base cultural semelhante nas narrativas populares das mais diferentes
partes do mundo e ao longo da história e se as narrativas eruditas aproveitam formas e
motivos das narrativas populares, por extensão, as literaturas, por mais personalizadas
que sejam, apresentam e apresentarão, qualquer que seja o nível e o momento histórico
do progresso, esta base comum, popular, oral e tradicional, de mitos, contos de fadas,
chistes, sagas, fábulas (formas da oralidade), e sem recorrer a repetições de fórmulas,
frases, segmentos de narrativa, que corresponderiam às marcas da oralidade segundo
estudiosos das décadas de 70 e 80 deste século. Esta base comum independe das
respostas estéticas de cada momento do fazer literário.

Comparando-se mitos de indígenas brasileiros recolhidos no século XX e mitos


gregos, fica patente a presença de mitos gregos não explicável historicamente.
É o caso das coincidências entre os mitos das

Amazonas (mito grego) Icamiabas (mito de mulheres guerreiras do Amazonas,


encontrado junto a indígenas Taulipang e Arekuná).

Mito da Idade de Ouro (mito Mito da terra sem morte (mito Taulipang e Arekuná).-
grego)

Dilúvio de Deucalión e sobrevi- Dilúvios universais em mitos indígenas. Tanto há


tribos
vência da espécie (mito grego) em que o dilúvio não é castigo, como pode sê-lo, como
e outros mitos gregos, como: no caso da lenda bororo de Jokurugwa, ou Meririporo,
78

que trata da inundação geral).


Dilúvio de Ogigia
Dilúvio de Noé (mito bíblico)
Dilúvio mesopotâmico do 3º milênio a.C.
Dilúvio na epopéia babilônica de
Gilgamesh pela deusa Ishtar

Canibalismo e mitos correspon- Mitos indígenas de canibalismo.


dentes. (Havia práticas antigas
de canibalismo na Arcádia, rea-
lizadas em nome de Zeus)

Todos os mitólogos comentam a similaridade entre mitos de povos diferentes,


distantes no tempo e no espaço. A proximidade entre ambos - indígenas brasileiros e
cultura grega - me parece tocante no aproveitamento da imagem de índio brasileiro feita
por Guimarães Rosa em "Meu tio o iauaretê"146.
Muitos destes mitos são entretecidos em obras escritas, de literatura universal.
O mito Taulipang e Arekuná das Amazonas é aproveitado por Mário de
Andrade, em Macunaíma (a partir da coleta de mitos indígenas feita por Koch-
Grünberg). O mito da Idade de Ouro aparece de leve em Grande Sertão: Veredas. Já o
da terra sem morte é incorporado na trilogia alemã, escrita por Alfred Döblin,
Amazonas147.
O mito da Idade do Ouro seguramente está ligado à terra da abundância,
corolário da terra sem morte. Está na Bíblia.
Segundo Propp, nos estágios tribais mais primitivos o reino da vida e da morte
se parecem, com a única diferença que, no além, no outro reino, não falta caça, nem
pesca. O homem transportaria para o outro reino o seu modo de existência e os seus
interesses e ideais, sendo os mais importantes a recompensa pelos esforços, fraquezas,
fracassos de sua luta contra a natureza.

146. "A virtude do jaguar: mitologia grega e indígena no sertão roseano". In Remate de Males nº 12.
Revista do Departamento de Teoria Literária-IEL-UNICAMP, 1992: 89-94.
147. Cf. Sperber, George Bernard. Wegweiser im "Amazonas". Studien zur Rezeption, zu den Quellen
und zur Textkritik der Südamerika-Trilogie Alfred Döblins. München: Tuduv, 1975.
79

Bolte et Polivka le (omotivo da terra da abundância) considèrent comme très archaïque,


mais les parallèles les plus anciens qu'ils fournissent se rapportent à l'Antiquité. Les
matériaux de Frazer, confrontés à ce qui a été dit plus haut, montrent que le pouvoir
magique sur l'abondance en gibier est tout simplement remplacé par une abondance prête à
la consommation. C'est ici que se cache l'origine de la conception de l'abondance éternelle.
Le pays des morts est le pays où l'on n'a jamais faim. Si l'on réussit à ramener cette
nourriture ici-bas, ici non plus elle ne s'épuisera jamais. D'où la-nappe-toujours-servie du
conte"148.

A análise histórica de Propp o leva a fazer um comentário ideológico-ético


marxista149, assim como a ter uma visão determinista dos motivos presentes nos ritos,
mitos e contos, numa trajetória - dinâmica mas unidiretiva - da realidade ao simbólico.
Como a análise psicanalítica (ou da psique humana) é negada por ele, não há espaço, em
sua análise, para outras interpretações do mesmo motivo, nem mesmo em versões não
indígenas de um mito. O tema do exílio e o anseio pelo Paraíso Perdido, correlato ao
tema da Idade de Ouro, não dizem respeito apenas a estágios tribais primitivos, mas
também a estágios primitivos de cada existência humana, que é singular e se repete em
cada vida humana, pertencendo tanto à sua experiência - e história - pessoal e particular,
como à experiência coletiva e comum. O cruzamento entre o particular e o geral, entre o
pessoal e o coletivo, entre presente e passado, garantem a repetição (nunca igual) de
aspectos da História em cada história humana - e a sobrevivência de aspectos primitivos
em relatos - e existências - do presente. O imaginário e o simbólico já estavam inscritos
nos ritos do passado mais remoto, assim como em suas transformações, perceptíveis em
mitos e contos. Mas teriam os mitos primitivos funções semelhantes aos mitos gregos?
Com semelhante profundidade psíquica?

148. Propp 1983: 385.


149. "Il faut dire que de telles conceptions contiennent en elles-mêmes un grand danger sur le plan
social: elles conduisent en effet au refus du travail. Plus tard, le clergé s'empare de cette conception de
l'autre monde comme du monde des souhaits et désirs réalisés, et il s'en sert pour endormir le peuple par
la perspective de la récompense qui suivra une vie de labeur. Ces conceptions deviennent alors
réactionnaires. Mais nous pouvons, à ce sujet, observer aussi tout autre chose: la nocivité de ces
conceptions est ressentie clairement par les couches laborieuses. Un instinct sûr conduit l'homme à
refuser et à repousser de telles conceptions. En même temps, l'attirance qu'elles exercent les rend
impérissables. Ces deux forces contraires concuisent à traiter ce motif sur le mode comique." (Propp
1983: 386).
80

George Bernard Sperber traduziu, para meu uso, três mitos Taulipang recolhidos
por Koch-Grünberg150: "As Amazonas151"; "Por que o sol anda mais devagar152" e "A
tartaruga e o tapir153", dos quais transcreverei dois à medida em que proceder à sua
análise e os três nos anexos.

As Amazonas

Posso contar, a respeito dos selvagens Worisiana, a velha história de como a sua
fama guerreira e a sua força começou na ignomínia. Uma vez a mulher de um cacique, To-
eyza, foi infiel ao seu marido. Mas ela não estava nem um pouco vexada com a sua culpa.
Se o seu marido era altivo, ela o era ainda mais.
No lugar do banho das mulheres, To-eyza disse: "Há quem diga que o casamento é
uma proteção; eu acho que é uma submissão indecente. Preferiria estar morta! O que
podemos saber sobre o amor, nós, que somos entregues pelos nossos pais? Vivemos todos
os nossos dias atormentadas. Trabalho hoje e trabalho amanhã, sempre trabalho e
sofrimento. Oponham-se comigo a esta ignominiosa servidão! Vejam lá longe a onça preta!
É o meu amante em seu disfarce. Homens como ele podem nadar facilmente para o lado de
cá e nos libertar! Clamem o seu nome! 'Walyarima' será o nosso lema! Guardem-no bem,
vocês, que querem ser libertadas da servidão dos seus maridos!"
Três homens tinham visto Walyarima do bosque próximo e ouvido tudo, foram e
contaram tudo ao seu cacique "To-eyborori".
Pela manhã o cacique disse, calmo, para as mulheres: "Temos uma caçada difícil à
nossa frente. Preparem beiju, para não passarmos fome!"
Quando elas haviam ido embora à procura de raízes, ele foi até o rio. Ali ele
deixou alguns rapazes tomando banho, enquanto se escondia com os outros homens e lhes
revelava o seu plano sinistro.
Os rapazes que tomavam banho chamaram "Walyarima!", gritaram o nome odiado
e estenderam os seus longos cabelos sobre a água. Então veio Walyarima, enquanto em
cada arco uma flecha esperava por ele.
Quando o viu chegar, o cacique avançou ao seu encontro na correnteza e o
perfurou com a sua poderosa lança. Os outros vieram nadando e acabaram com o
moribundo. Cheios de ira levaram os seus restos para a oca das mulheres. Lá o penduraram
com desprezo de um varal, com a cabeça para baixo,
As mulheres vinham andando uma atrás da outra, cada uma com a sua carga. Os
homens as observavam com olhar tenebroso. Horrorizadas, as mulheres retrocederam
diante do que viram. A última a entrar foi To-eyza. Sangue pingou sobre a sua mão. Lá
estava ela sobranceira, alta e bela. Até o cacique admirou a sua presença de ânimo.
Depois ele disse: "Nós vamos caçar. Apressem-se e preparem beiju! Assem-no ainda esta
noite! Não podemos esperar. Temos que levar beiju para cinco dias." - "Assim seja!" disse
ela. "Tragam a carne! Nós vamos preparar-lhes paiauaru bem forte, mais do que nunca, e
nessa noite vamos querer dançar ao seu lado!"
No coração da orgulhosa To-eyza ardia uma ira coruscante. A gota de sangue
havia despertado nela o pensamento da vingança, e a sua força demoníaca se espraiou pelas
outras.

150. Koch-Grünberg, Theodor. Indianermärchen aus Südamerika. Jena: Eugen Diederichs, 1927.
151. Koch-Grünberg: 1927: 90-93. In Sperber, George Bernard. Wegweiser im "Amazonas". Studien zur
Rezeption, zu den Quellen und zur Textkritik der Südamerika-Trilogie Alfred Döblins. München: Tuduv,
1975.
152. Koch-Grünberg: op. cit. 1927: 198.
153. Koch-Grünberg: op. cit. 1927: 162-164.
81

"Os nossos corações clamam por vingança, os corações de todas nós", ela disse.
"Os homens lhes causaram cruel opróbrio. Não perguntem! Eu as guiarei. Todas vocês
serão livres!"
O cacique voltou da caçada; os homens vinham com pesadas cargas. Traziam
animais e aves, algumas defumadas, outras frescas. Havia tudo em abundância. Então
houve uma festança! As mulheres haviam preparado muito paiauaru. Todos os homens
beberam. Depois descansaram, até que os sedentos pediram mais. Então cada mulher
entregou humilde e amavelmente uma cabaça, cheia até a borda com uma bebida funesta.
Assim To-eyza havia ordenado. Tinham misturado manipueira na bebida, e o terrível
veneno trouxe a morte para todos. Logo os homens empalideceram na sua luta com a
morte. Em vão gritaram por socorro. Ao chão caíram os guerreiros.
"Alegrem-se agora" exclamou To-eyza. "Mulheres, agora vocês são livres! Nunca
mais as dominará um marido; ninguém há de bater em vocês, oprimir e incomodar, se me
seguirem." Algumas haviam fugido com meninos. As outras dançaram com alegria forçada
varando a noite, cada uma delas com loucura no coração.
Pelas florestas marchava em ordem a tropa das mulheres. Carregavam redes,
mantimentos e armas. Estavam preparadas para uma pesada marcha, para um país
longínquo. Todas elas haviam jurado obediência à sua líder, à esbelta To-eyza. Seguiram
pelo seu caminho, às vezes lutando, às vezes fugindo, dependendo apenas de seus arcos.
Mais de uma mulher insatisfeita juntou-se a elas. Proclamavam a libertação,
chamavam-se "o povo das mulheres" e tratavam todos os maridos como inimigos.
Enxotavam os homens ou os matavam e diziam para as mulheres: "Vocês e suas filhas são
bem-vindas. Se quiserem guardar os seus filhos, deixamo-las aqui com eles."
Assim continuaram marchando, e outras as seguiram e aumentaram a tropa. A
loucura tomou conta das mulheres como uma epidemia.
Entrementes, amigos haviam achado as vítimas envenenadas; estremeceram ao
verem as ossamentas, afastaram os urubus que estavam sobre os restos e os enterraram.
Depois foram atrás das mulheres. Avançaram com precaução para ultrapassá-las,
mas quando conseguiam fazer prisioneiras, as mulheres preferiam morrer.
Logo chegaram a florestas densas e escuras. Lá as mulheres encontraram proteção
na folharada. Os homens viram caírem os seus mais bravos guerreiros. Rolavam em seu
próprio sangue, atingidos pelas flechas das mulheres. Então eles se detiveram e um homem
sábio disse: "O que temos a ganhar? De que serve ao homem uma mulher que o vê como
inimigo? Deixem-nas ir!"
Assim as mulheres continuaram a sua marcha, seguindo o sol poente. Passaram
com felicidade por todos os perigos e se assentaram como estranhas, quando a sua viagem
acabou.
Lá, To-eyza ficou sendo a sua rainha. Ela dava ordens claras: "Os homens devem
nos ser bem-vindos como amantes, quando chegam até nós como viageiros, mas nenhum
deles pode ficar conosco. Os seus filhos, os que parirmos, nós os mandaremos embora. Mas
se parirmos meninas, iremos criá-las com alegria como nossas sucessoras!"
Passaram-se anos desde então. As suas filhas obedecem ainda à mesma lei. Ainda
contam nos montes do Parimã a história de Walyarima.

O mito das Amazonas é conhecido tanto na mitologia indígena brasileira, como


em outras, tal como na grega e, até certo ponto, na germânica, aí convertida em
Walkyre. Na mitologia grega refere-se às mulheres guerreiras que vieram do Cáucaso
para a Capadócia, para uma cidade chamada Themiscyra, governada por uma rainha.
Elas fizeram a ablação de um seio para melhor distender o arco e atirar a flecha. Na
região em que viviam não eram admitidos homens. A fim de garantir a perpetuação da
espécie, procuravam, uma vez por ano, seus vizinhos, os Gargarensianos, para fazerem
82

uniões temporárias. Caso nascessem meninas, eram acolhidas e educadas pelas


Amazonas. Caso fossem meninos, eram rejeitados.
Junito Brandão recorre à análise de Neumann, que, por sua vez, se apóia em
Bachofen para explicar o aspecto matriarcal de ódio aos homens existente no mito das
154
Amazonas. Pela leitura junguiana de Junito Brandão, a psique feminina assume, no
mito, o seu próprio destino.
No mito Taulipang, não há referência à remoção de um seio, o que, segundo
consta, teria sido responsável pelo nome dado a estas mulheres guerreiras no mito
grego. E o mito indígena fornece uma explicação para a reação aguerrida e irada das
mulheres: vingar tanto um morto, (visto como inimigo e traidor, pelos homens, mas
como um libertador, por To-eysa), como vingar o poder exercido sobre as mulheres
pelos homens. O amante de To-eysa é uma onça preta. Digamos um jaguar, inimigo e
deus. É o morto a ser vingado. Ele remete ao complexo da guerra.
A onça representaria a amizade formal, construtora da Pessoa e abriria para as
mulheres a possibilidade de constituição de um campo pessoal, livre das contingências
do casamento, um campo de ação dotado de razão, vontade e liberdade, transformador
das mulheres em sujeitos. A onça, que as resgata e lhes outorga a liberdade, ao ser
assassinada, transfigura-se em energia, élan puro, correspondendo a uma pulsão.
As mulheres só terão a sua identidade através de um estímulo: a morte do 'outro'.
Seu nome será o lema das mulheres. O nome do outro: Walyarima. Se o princípio
básico para a nossa sociedade deveria ser a justiça social, para a sociedade deste mito
indígena o lema seria a justiça de gênero. Será punido o matador do outro. A economia
da narrativa manda que o 'outro' seja sacrificado para que permaneça como referência
para a definição da identidade das mulheres. To-eysa é punida em Walyarima. Punidos
são os homens. No mito grego das Amazonas, punidas são as Amazonas, vencidas por
Hércules.
No mito indígena, a onça não é oferecida para ser comida, porque é tratada como
um inimigo. É exposta como um inimigo: enquanto troféu. Só aí a onça realiza a sua
potência, passando a ser imortal e divindade, - e lema das mulheres: "Clamem o seu
154. Segundo se acredita, as Amazonas, mulheres guerreiras, que habitavam o Ponto Euxino, a Cítia ou a
Lídia, mutilavam o seio direito para que pudessem manejar com mais destreza o arco. Só concebiam
relações sexuais com adventícios: os filhos homens eram emasculados e empregados, quando não
eliminados, em serviços inferiores. Uma projeção do amazonismo é o mito das Danaides e das
Lemníades. O símbolo é o nomadismo, a agressividade da natureza. (Brandão, Junito de Souza. Mitologia
grega. 2º ed. Petrópolis: Vozes, 1989: 230-231).
83

nome! 'Walyarima' será o nosso lema! Guardem-no bem, vocês, que querem ser
libertadas da servidão dos seus maridos!"
Qual o limite de ação humana segundo este mito? É circular e propõe uma cisão
social. Os homens punem a traição de To-eysa, que pune os homens pela sua
arrogância. É como se houvesse duas estruturas míticas justapostas. Depois, os homens
que não morreram desistem de viver com estas mulheres. Estas, criam um organismo
social a parte, livre. É como se existisse uma ética diferente entre os Taulipang. E não
há metamorfoses, transformações. A sociedade livre seria feita só de mulheres. Em
verdade há só uma mulher: To-eysa. É como se as outras personagens correspondessem
a aspectos dela. O princípio é a liberdade, mais forte que o da vida, no relato. Este é um
aspecto da função básica dos contos de fadas. Portanto, o mito indígena analisado além
de mais complexo que aquele recolhido por Curt Nimuendaju Unkel, traz marcas não
radicais, nem exclusivas tanto do mito como do conto de fadas.

Dentre os mitos dos índios desana, não se encontra o mito das Amazonas, ou de
mulheres guerreiras que tenham feito ablação do seio direito. Existe o mito do roubo das
flautas sagradas pelas mulheres155. Neste mito, a reação dos homens é outra,
correspondente à frase do mito:

- "Pertenceram a nós primeiro e não às mulheres. Temos que reavê-las"156.

As usurpadoras são as mulheres, e deveriam morrer:

Diante disso, os homens se irritaram mais ainda. Disseram que era preciso matar todas as
mulheres. O primeiro a dizê-lo foi o sapo pará que insistiu na matança.

O sentido das flautas sagradas é fálico, valorizando a patrilinearidade.

Colocaram a flauta barisêrõbugu bem na direção da vagina de uma das filhas de Abe, para
que o som da flauta, penetrando na vagina dela, a explodisse junto com todas as outras
mulheres157.

155. Pãrõkumu 1995: 102-105.


156. Pãrõkumu 1995: 104.
157. Pãrõkumu 1995: 104.
84

O som da flauta barisêrõbugu desarvorou as mulheres, que caíram desacordadas e


acabaram abandonando a maloca, em fuga, aí deixando as flautas sagradas. Uma das filhas
de Abe levou consigo um pedacinho pequeno de uma das flautas que escondeu na sua
vagina158.

As mulheres não morrem: assustam-se e deixam a flauta para os homens. O mito


tematiza a inveja do pênis e explica a existência do clítoris. O símbolo fálico é também
instrumento musical. Criar e procriar estão no mesmo diapasão. A complexidade do
mito desana, sua beleza e a valorização tanto da palavra, como da criação confirmam
uma semelhança na diferença: os mitos desana correspondem, em riqueza, aos mitos
gregos. A diferença fundamental com os mitos gregos está no agrafismo dos desana,
que, por isto, não criaram uma literatura a partir de seus mitos. Afora a já observada
função dupla dos mitos desana, sem nítida predominância, como nos mitos gregos, para
promover a liberdade individual ou a harmonia coletiva, com sacrifício quer de um
excesso pessoal, quer de gênero.
Vejamos se a função diferente dos mitos primitivos com respeito aos mitos
gregos se confirma. Analisarei o segundo mito traduzido e que se encontra em anexo:
"Por que o sol anda mais devagar".
Não há punição da personagem principal por algum excesso cometido. Se houve
algum excesso, foi o do sol, que corria demais. É relato etiológico. A velocidade do
curso solar obriga a mulher (menina) a acompanhar esta velocidade na realização de
tarefas domésticas, o que é corrigido por um gesto violento. A poesia do relato fica para
as pernas do sol.
O terceiro relato coligido por Koch-Grünberg, traduzido e incluído nos anexos é
"A tartaruga e o tapir". É a narrativa de uma vingança gestada por longo tempo, de um
ser mais lento, mais fraco, menor e agredido, que persevera no seu intento, até realizá-
lo. O relato termina com a morte do tapir. Os detalhes da narrativa apresentam minúcias
do tempo (das chuvas), da estratégia para as investigações da tartaruga, tão
característica dos índios (as pegadas divulgam informação sobre o paradeiro de "seu
senhor", isto é, de seu autor) e de sua perseverança. E até da tática usada pela tartaruga
para vencer inimigo tão forte e tão maior que ela: morder o escroto. Como há vingança,
há punição. Esta decorre de agressão particular e pessoal. Não estão em jogo normas ou
leis coletivas. O indivíduo será responsável por si.

158. Pãrõkumu 1995: 105.


85

Podemos dirigir nossa reflexão para duas direções. A necessidade de cuidar de si


e a norma da vingança indicariam que uma comunidade indígena teria leis frouxas, que
não controlam os impulsos pessoais e que requerem a ação particular para corrigir um
malfeito. Também poderíamos inferir que esta ação particular, que recorre a energias e
habilidades pessoais, mais lembra certo impulso auto-defensivo dos contos de fadas.
A lei dos mitos gregos é divina, assimétrica nas relações entre homens e
mulheres e humanos e seres divinos. Nos mitos indígenas, prevalece a lei da igualdade.
Eles apontam para um jogo de forças, sem que se perceba exatamente leis divinas ou
sociais controladoras da ação humana.

A fim de confirmar minhas últimas hipóteses, estudei mitos registrados por


índios desana alfabetizados, letrados. Recorri a dois livros: Antes o mundo não existia.
Mitologia dos antigos Desana-Kêhíripõrã159 e A mitologia sagrada dos antigos Desana
do Grupo Wari Dihputiro Põrã160.
Em Antes o mundo não existia. Mitologia dos antigos Desana - Kêhíripõrã,
existem algumas explicações dos três mitos de Buhtari Gõãmû, elucidativas, que não
comentarei neste momento161.

159. Pãrõkumu, Umusî (Firmiano Arantes Lana) e Kêhíri, Tõrãmû (Luiz Gomes Lana). Antes o mundo
não existia. Mitologia dos antigos Desana-Kêhíripõrã. Desenhos de Luiz e Feliciano Lana). 2¦ ed.. São
João Batista do Rio Tiquié -São Gabriel da Cachoeira (Amazonas): UNIRT (União das Nações Indígenas
do Rio Tiquié) / FOIRN (Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro), 1995.
160. Diakuru (Américo Castro Fernandes) e KISIBI (Dorvalino Moura Fernandes). A mitologia sagrada
dos antigos Desana do Grupo Wari Dihputiro Põrã. Cucura do Igarapé Cucura - São Gabriel da
Cachoeira (Amazonas): UNIRT (União das Nações Indígenas do Rio Tiquié) / FOIRN (Federação das
Organizações Indígenas do Rio Negro), 1996.
161. Destes mitos é que saiam os mandamentos dos Antigos. O primeiro mito de Buhtari Gõãmû era o
Sexto Mandamento da Lei de Deus: "Não pecar contra a castidade". Porque Buhtari Gõãmû cometeu o
pecado contra a castidade com as filhas do Irara, ele foi castigado pelo pai das moças. Esse mito era
contado para os rapazes e para as moças, para eles não cometerem isto sem a ordem dos pais; para não
haver estragos por causa disso, para não acontecer nenhum mal por causa disso. É que os tuxauas e os
sábios ou kumua, isto é, os rezadores, faziam esta pregação aos seus filhos. Ademais, Buhtari Gõãmû
cometeu também pecado com Amõ, e recebeu um castigo terrível por isso. Este mito era assim narrado
para mandar respeitar as velhas de idade. Era também dirigido aos rapazes.
O segundo mito era como o Nono Mandamento da Lei de Deus: "Não desejar a mulher do
próximo". Esta lei era para os homens: não roubar a mulher do outro, e também não pecar com a mulher
do outro. Porque isto era caso de briga, podia causar até a morte, como aconteceu com Uwawá.
O terceiro mito era destinado às mulheres. Esta lei era "Não pecar com outro, mesmo tendo
marido". Para não acontecer a mesma coisa nesse mito, onde se viu Buhtari Gõãmû abandonar para
sempre a sua mulher.
No meio desses mitos, tiram-se cerimônias bem comprovadas e eficazes. Aqui terminaram os
três mitos sobre Buhtari Gõãmû. (Pãrõkumu 1995: 146-7).
86

A concepção dos mitos de origem registrados por Pãrõkumu se assemelha à de


Ovídio, na medida em que o autor apresenta as diferentes transformações como a
explicação da origem do mundo, da e das espécie/s, da natureza e dos rituais.

O Trovão disse:
- "Procedem (sic) dessa forma quando forem colocar as Malocas da Transformação para
criar a futura humanidade"162.

Os desana concebem a origem tanto por transformação, como por geração, assim
como por nomeação. A rigor, a origem se dá por expansão: uma coisa está dentro da
outra; uma gera a outra. Todas 'nascem', quer por vômito, cuspida, ou parto.
Dentre os mitos de origem, um, volta e meia repetido, e sobre o qual o narrador
insiste, é o dos nomes. Os nomes, segundo o narrador, são condicionados. (Para os
indígenas não haveria arbitrariedade nos signos, ao contrário). O pajé-chefe dos Desana,
que é também deus, ou um espírito, entidade superior e forte, serve-se de cores, ou
matérias primas para fazer delas outra coisa, que nomeia segundo esta origem. Os
nomes, como o universo, seriam gerados e geradores, ao contrário do que coloca
Saussure. Os nomes têm certo poder para o qual os indígenas são especialmente
sensíveis. A motivação dos nomes faz com que ser e parecer tenham equivalências. Esta
é a maior magia da cultura indígena.

Esse paricá tinha o poder de fazer um homem virar onça163. [...] Boreka tirou fibras de
tucum da Maloca do Universo, da Umukowi'i. Essas fibras de tucum chamavam-se
umusîñahkãsumidari, isto é, "fibras de tucum do universo". [...]
Boreka fez a dele (pele de onça) mais escura, pintada de preto nas costas e de branco na
barriga. Ele disse:164
- "Eu vou aparecer como (o peixe) uaracu".
Aí, ele recebeu esse nome de Boreka. O peixe uaracu parece assim mesmo! Por isso, ele
se chama Umukomahsû Boreka165.
[...] Umukomahsû Uari Dihputiro "Gente do Universo de Cabeça Chata", disse por sua
vez:
- "Eu vou fazer a minha pele de onça pintada e com cabeça chata".
Por isso, ele recebeu o nome de Dihputiro "cabeça chata". Seus descendentes chamam-se
Dihputiropõrã "Filhos da Cabeça Chata"166.

162. Pãrõkumu 1995: 28.


163. Pãrõkumu 1995: 45.
164. Pãrõkumu 1995: 45.
165. Pãrõkumu 1995: 46.
166. Pãrõkumu 1995: 46.
87

As situações são geradoras de nomes, parecidos a algo já existente e do


conhecimento dos interlocutores, passando a levar esse nome. É uma espécie de raiz ao
pé da letra, ou de etimologia concreta, motivada, não arbitrária.
Os mitos de origem preocupam-se tanto em explicar a natureza, como os
costumes, os rituais, a razão e função dos rituais, que servirão para curar uma doença
correlata à narrativa do mito. O mundo e a existência são circulares: contêm alfa e
ômega. Explicam e ao mesmo tempo são explicados, são gerados e geradores
permanentemente. Esclarecem aspectos da tribo, da humanidade, ou do universo.

Umukomahsû Tõramû Kêhíri "Gente do Universo (dos Desenhos) do Sonho", o nosso


ancestral maior, disse:
- Eu vou fazer minha pele de onça branca".
E ele recebeu o nome de Yebore, "Onça Branca". A sua pele não era branca assim como
cal, era branca como o dia. Assim foi que Boreka transmitiu à sua gente todo o seu
conhecimento. Esse nosso chefe era o mais feroz de todos, o que mais gente matou. Por
isso, a sua geração é brava e sábia.

'Bravo e sábio' é a tradução de 'fortitudo et sapientia' a marca caracterizadora dos


heróis, especialmente de Odisseu, ou Ulisses!... O deus desana, de múltiplas funções,
também espírito, ou criador, também é herói. Como herói, é sábio e forte. Como deus,
espírito, criador, deixa uma descendência de nome poético:

Porque ele era um sábio! Os seus descendentes se chamam Tõramû Kêhíripõrã, isto é, "Os
Filhos (dos Desenhos) do Sonho" 167.

O nome dos descendentes teria a ver com o fazer poético dos mitos? Da
atribuição de nomes? Este nome tão bonito (Os Filhos [dos Desenhos] do Sonho) me
sugere que as análises excessivamente 'práticas', utilitaristas, de tribos indígenas, que
vêem mais o prosaico, o quotidiano indígena, os costumes de sobrevivência da espécie,
de cada um e suas normas mínimas de comportamento, deixa de lado os sonhos, as
fantasias, o imaginário, a simbolização e a pulsão de ficção, que, no decorrer dos textos
de ambos os livros analisados, aparece sob a forma das semelhanças, do 'isto parece
aquilo' (a rigor são imagens, metáforas ou metonímias), dos efeitos e relações mágicos.
Advêm efeitos mágicos da palavra, do sonho, do desenho: a criação é mágica.
Corresponderia isto a uma das características atribuídas à oralidade (por extensão, ao

167. Pãrõkumu 1995: 46.


88

mito primitivo): o pensamento mágico? O pensamento tem de mágico a onipotência. E a


onipotência está tanto na hybris, como na analogia entre pensamento (ou palavra) e
acontecimento. Estes não são exclusividade indígena. O pensamento perceptível nos
mitos indígenas só apresenta excesso em poucas figuras míticas. A magia que importa é
a da palavra, poética. E o pensamento indígena será tão utilitário quanto os mitos de
outros povos, que têm também uma função ético-social, como os mitos gregos. Sua
utilidade refere-se a um pacto social - o que não é tão utilitário assim. Pelo menos na
concepção materialista, para a qual só serve o que se pode acumular, seja alimentos,
seja bens.
A magia existe no trecho abaixo, como existe na transformação de Narciso em
flor, de Mirra em árvore. Será mais difícil entender a mutação em onça do que a
mutação em flor ou árvore? A onça é presença ameaçadora no quotidiano indígena,
inclusive na região do rio Negro e de seus principais tributários, os rios Uaupés, Tiquié,
Papuri, Içana, Xiê e áreas de interflúvio como os igarapés Umari e Cucura do rio Tiquié
e o igarapé Urucu do rio Papuri, onde vivem os desana (cultura dos Umuri mahsã).

Quando terminaram de tecer as suas peles de onça, Boreka perguntou:


- Já aprontaram?"
Eles responderam que sim. Então, ele disse:
- "Olham (sic) bem como eu vou fazer, estejam atentos".
E mostrou-lhes a maneira de vesti-las. A pele não foi envergada como camisa. Bastava
tocá-la e ela entrava dentro da pessoa. O primeiro a vestir a sua pele foi Boreka, o chefe
supremo dos Desana. Sua barriga ficou nas costas da onça e suas próprias costas na barriga
da mesma.

O espaço se abre em mistérios e amplidões de caráter mágico:

Ao cabo dessa lição, Umukomahsû Boreka abriu caminhos invisíveis no mundo e, em


primeiro lugar, a sua morada original, a Maloca de Paricá.

Sensibiliza-me a preocupação em ensinar, aprender e pesquisar deste mito,


especialmente belo e comovente. Comovente por quê? Porque a pesquisa que
Umukomahsû Boreka faz é acerca de vida e morte da humanidade. Porque os protetores
(soldados) são o próprio grupo de apoio, a comunidade, o coletivo: as onças. As onças
são o além, o espírito, elas mesmas vida, mas tecedoras da morte, porque matam. O
ensinamento da morte corresponde à aprendizagem da mortalidade. Aparece, neste
mito, o incondicionado e o condicionado, a imortalidade e a mortalidade. E mesmo a
89

concepção tão grega da falibilidade dos deuses, já que Umukomahsû Boreka será vítima
da inveja, uma inveja de homens sábios que percebem a hybris de Umukomahsû Boreka
e decidem limitar o seu poder, enganá-lo e perdê-lo.

Na linha do Equador, onde se encontrava, ele não queria fazer mal a ninguém, porque
viviam aí os seus irmãos. Eles iam estudar nos quatro cantos do mundo antes de voltarem
para a Maloca de Paricá. Ao iniciar esse estudo, Boreka deixou o seu trocano 168 de paricá
169
(wihõtoatore), que era um grande tambor invisível, na Maloca de Oaricá, a fim de guiá-
lo, já que esse trocano tocava sozinho. Ouvindo o trocano, saberia onde se situava a sua
maloca. Depois, ele deixou nesse mesmo lugar seu outro poder, um tipo de espelho
chamado em desana umukodiuru, o "espelho do universo", um espelho resplandecente
invisível, que serviria também para guiá-lo porque, enquanto percorria o mundo, o espelho
soltava faíscas como raios ao refletir a luz.
Nessa peregrinação Umukomahsû Boreka teria de matar muita gente e precisava de onças
selvagens para devorá-las. Para isso, ele abriu quatro malocas. [...] Somente a primeira
("Maloca do Adorno de Nuca") era uma Maloca de Transformação. Já lhe pertencia e aí ele
guardou as peles de onça que ele e os seus irmãos haviam tecido. As outras três malocas
são malocas da terra. Aí, estavam as onças mais ferozes que comiam gente e que passariam
a ser os seus soldados durante o estudo que ele estava realizando.
Saíram muitas onças destas malocas. O mundo ficou infestado de onças. Com elas,
saíram também muitos Wahtî, espíritos do mato. O universo escureceu. Em certos lugares,
chuviscou um pouco. Ninguém podia ir longe. Quando Umukomahsû Boreka acabou de
abrir as quatro malocas, ele passou a dar lições para os seus irmãos. Só então é que ele
começou o seu estudo. A primeira parte do universo onde ele fez os seus ensinamentos foi
o leste. Ele fez-se acompanhar de todas as onças selvagens. Aí, ele começou a ensinar aos
seus irmãos como matar gente. Mas eles não comiam gente. Matavam e jogavam-nas para
as verdadeiras onças comerem. Suas armas eram um poder invisível chamado em desana
yohokaduhpu, isto é "cabo de enxó". Dele, eles se serviam como se fosse espada e terçado.
Com ele, eles cortavam cabeças humanas que jogavam em seguida para as onças selvagens.
Voltando ao centro do mundo, ao Equador, Boreka dirigiu-se para a Maloca de Paricá
onde estavam o trocano e o espelho mágico que o vinham guiando e chamando. Depois, ele
tomou o rumo do oeste, levando os seus irmãos e ensinando-os a fazerem a mesma coisa.
Depois, foi para o norte, agindo do mesmo modo. Por toda parte existiam onças. Os lugares
onde ele andou ensinando para os seus irmãos. Vendo que ele estava ficando muito
perigoso, alguns homens sábios, os kumua, disseram:
- "Ele pensa que, tendo nascido do paricá, ele pode fazer o que bem entende. Vamos
procurá-lo".
Após essa fala, fizeram seus rituais com breu para que ele errasse o caminho de volta à
sua maloca. Com esses rituais de breu, eles tiraram o trocano de paricá da Maloca de
Paricá, bem como o espelho do universo e os colocaram na Maloca do Norte
(Dihpamahawi'i). Assim, mudaram a posição da maloca, que estava no sul, a fim de
confundi-lo.
Boreka não pôde mais voltar à Maloca de Paricá. Não encontrou o caminho. O trocano e
o espelho não sinalizavam mais nada. Ele passou então pelo maior perigo: as onças, que
eram seus soldados, descontroladas, comiam mais e mais gente 170. [...]

168. Trocano, ou torocana é um tambor, feito de um toro de madeira, com que, em grande parte da zona
tropical sul-americana, os índios dão sinais às tabas vizinhas.
169. Árvore da região amazônica da família das leguminosas (Piptadenia peregrina), que prefere lugares
abertos, tem casca grossa e verrucosa, é rica em tanino, de madeira pardo-avermelhada, empregada em
vários tipos de construção.
170. Pãrõkumu 1995: 47-49.
90

O homem dirigiu-se ao primeiro da fila, que era Boreka, e perguntou:


- "Aonde vais??"
Boreka respondeu:
- "Vou andando por aí porque desapareceu o meu caminho".
O homem prosseguiu:
- "Você é aquele de quem todo mundo está falando?"
- "Sou eu mesmo", respondeu Boreka.
Então o homem contou-lhe o que os kumua fizeram para atrapalhá-lo. [...] Ao chegar à
Maloca de Paricá, Boreka percebeu o que os kumua tinham feito e consertou tudo. Assim,
ele terminou seu estudo. Ele fechou as quatro malocas que havia aberto no mundo e, na 65ª
(sic) maloca, a Maloca do Adorno de Nuca, ele deixou sua veste de onça e aquelas dos seus
acompanhantes. Por isso, essa maloca é importante: é a guardiã das peles de onça de
Boreka e dos seus irmãos.
Nessa mesma maloca, está Umukoye, a onça invisível do universo. Ela está aí amarrada e
só pode soltar-se quando se cheira o paricá chamado abeyeru. Por isso, desde aquele tempo,
ninguém mais cheirou desse paricá. Esses caminhos que Umukomahsû Boreka traçou
ficaram para sempre. Ainda hoje, poderosos pajés invisíveis andam por eles, cortando o
espaço, durante a estação chuvosa. O resto do tempo, eles vivem na Maloca de Paricá, isto
é, na Maloca do Sul. Quando aparecem, começa a relampejar. É sinal de que eles estão
passando. Dirigem-se à Maloca do Norte. Depois, eles voltam novamente à Maloca de
Paricá. Chamam-se Îîmahsãyea. Esses pajés invisíveis existem em todo o universo.
[...] Com a reza de breu, escondem suas malocas e renovam o fio emplumado invisível
para que os pajés invisíveis pisem sobre ele e não deixem cair os raios sobre as malocas 171.

Ao cabo dessa lição, Umukomahsû Boreka abriu caminhos invisíveis no mundo e, em


primeiro lugar, a sua morada original, a Maloca de Paricá. Retirou daí um fio emplumado
invisível (wihtõda) e o estendeu rumo ao norte, até a Maloca do Norte (Dihpamahawi'i). Ele
estava traçando os caminhos do universo, através do espaço, para poder viajar. Depois
disso, ele estendeu um outro fio emplumado que atravessou o centro do universo, desde as
Malocas do Universo (Umukowi'iri) do leste até as do oeste. Assim, ele pôde andar sobre
esses caminhos no espaço enquanto transmitia os seus conhecimentos.

As plumas representam beleza, colorido, leveza, versatilidade, liberdade pela sua


capacidade de flutuação e de deslocamento. Correspondem à dimensão espacial, como o
arco, as aves, o raio e os espíritos. São espaço e tempo, união de Norte e Sul, Leste e
Oeste. Reúnem os lados do universo, do cosmos, no ser humano. Penetram-no, levando
à integração entre corpo e cosmos. Fora e dentro. A compreensão desta união de
diferenças e contrários, da dimensão de espaço, deslocado, espalhado, corresponde,
também, ao conhecimento que precisa ser transferido de geração em geração. A ciência
desta dimensão do mundo e do ser humano constrói uma resistência aos limites
normalmente colocados pelo mito. Talvez o mito indígena - ou mais propriamente
primitivo - desvende estas duas dimensões entrelaçadas: a social e a humana, pessoal,
com as suas respectivas limitações e anseios de superação. O mais poético dos relatos
(textos, já que os li impressos) lança o indivíduo para fora dos limites sociais. A poesia

171. Pãrõkumu 1995: 50-51.


91

do relato visa a liberdade para abranger a vastidão do universo do belo. É generoso e


descobre o conhecimento como forma em si da superação dos limites. É uma cifra do
mistério da existência e do universo que lembra um trecho da Cabala:

Dez sefirot belimah. Sua medida é dez, contudo é infinita. Profundeza do princípio,
profundeza do fim, profundeza do bem, profundeza do mal, profundeza do alto, profundeza
do baixo, profundeza do leste, profundeza do oeste, profundeza do norte, profundeza do
sul172.

A referência às diferentes dimensões do indivíduo e do mundo corresponde à


busca de decifração do universo, tanto nos mitos desana, como na Cabala173...
Correspondem a anseio cósmico semelhante. Os mitos desana trabalham com a
potencialidade da palavra enunciada oralmente, enquanto que a cabala trabalha
fundamentalmente com a palavra escrita. E pur...
O conhecimento precisa de todos os órgãos dos sentidos, inclusive - e de grande
importância - o som, que serve de guia territorial e espiritual.

Ao iniciar esse estudo, Boreka deixou o seu trocano de paricá (wihõtoatore), que era um
grande tambor invisível, na Maloca de Oaricá, a fim de guiá-lo, já que esse trocano tocava
sozinho. Ouvindo o trocano, saberia onde se situava a sua maloca.

O impulso é invisível, como é da natureza dos impulsos, e soa, guiando o anseio


de busca e de superação.

Depois, ele deixou nesse mesmo lugar seu outro poder, um tipo de espelho chamado em
desana umukodiuru, o "espelho do universo", um espelho resplandecente invisível, que
serviria também para guiá-lo porque, enquanto percorria o mundo, o espelho soltava faíscas
como raios ao refletir a luz.

O anseio é de plenitude, como a luz refletida pelo espelho do universo, como a


sua energia forte. Ao deixar neste lugar "o seu outro poder", que é uma alteridade e que
vem a ser um espelho, pura energia, percebe-se que este símbolo ancestral da psique, da

172. "Os dez sefirot", In Matt, Daniel C.. O essencial da Cabala. Tradução de Ivone Castilho. São Paulo:
Best Seller (Círculo do Livro), 1995: 93-4.
173. Um sistema de teosofia e de teurgia esotérico desenvolvido por rabinos, atingindo o seu ápice por
volta do século 12 e 13. Influenciou, então, certos pensadores medievais e renascentistas cristãos. A
cabala estava baseada num método místico de interpretação das escrituras sagradas, através do qual o
iniciado se considerava capaz de penetrar nos mistérios sagrados. Dentre as suas doutrinas temos que toda
criação é uma emanação da Deidade e que a alma existe desde a eternidade.
92

relação com a alteridade como referência e constituição da identidade, corresponde a


uma caracerística de conto de fadas.
A aprendizagem acaba sendo de vida e de morte. É a aprendizagem da não
perenidade. O anseio de superação e de plenitude, bons, que se encontram no centro do
mundo e que caracterizam o conto de fadas, são vistos depois como onipotentemente
abusivos.

- "Ele pensa que, tendo nascido do paricá, ele pode fazer o que bem entende. Vamos
procurá-lo".
Após essa fala, fizeram seus rituais com breu para que ele errasse o caminho de volta à
sua maloca. Com esses rituais de breu, eles tiraram o trocano de paricá da Maloca de
Paricá, bem como o espelho do universo e os colocaram na Maloca do Norte
(Dihpamahawi'i). Assim, mudaram a posição da maloca, que estava no sul, a fim de
confundi-lo.

A primeira frase transcrita é uma referência à hybris, conceito desconhecido


pelos desana, mas não a sua noção: não se deve "fazer o que bem entende". Existe um
limite para a ação humana, a ser respeitado. Esta função do mito desana é comum à
função detectada nos mitos gregos.
No mito desana, a arrogância, a desmesura, leva à hamartía: o erro trágico, que,
por sua vez leva à perda de rumo. E até mais: induz a incapacidade de percepção do real
(deslocamento do espelho do universo), a perda de um eixo e de rumo.
Ao 'perder o norte', Boreka 'erra', o que o leva à morte. Como nos mitos gregos.
O conserto do mal-feito consiste em ter ao mesmo tempo o anseio pelo invisível -
beleza, energia, superação de limites, luz - e a consciência de limites.
A principal e predominante função dos mitos é a definição de limites para a ação
humana, ao mesmo tempo que revela que o mundo tem uma extraordinária economia, já
que a morte de um ser humano, semi-deus, ninfa e outras entidades serve para a sua
transformação em algum elemento da natureza vegetal, ou mineral, ou fenômeno (como
o fogo). Os mitos tendem para a restrição, para o controle. Já a visão, ambição,
dimensão cósmicos, que aparecem na Cabala, são infreqüentes nos mitos. Nos mitos
indígenas, existem ambas tendências, além da repetida concepção da potência da
palavra - e do valor da experiência expressa no relato mítico. Este equilíbrio é o que se
afigura, para qualquer cultura, como o mais difícil. Estas dimensões todas só conseguem
93

ser verdadeiramente expressas pela poesia, por imagens, quando ultrapassam a


necessidade de explicar uma origem pontual da natureza.

O que vejo como dimensão poética e cósmica, é analisado pelos antropólogos,


como Eduardo Viveiros de Castro, como marca da diferença entre os povos 'civilizados'
e os indígenas. Refiro-me a seu estudo sobre os Araweté, tribo do tronco tupi-guarani,
(os desano são do tronco tukano).

A separação original entre os Mai' e os homens é a condição e a razão do xamanismo. É o


xamã que religa as esferas separadas. Para isso, há caminhos.
O universo é cortado por inúmeros caminhos, que levam aos outros mundos e,
em cada um, às aldeias das diversas raças de divindades. Mas há uma via principal no
cosmos - o kirepe (cf. hepe, trilha), que segue o eixo do sol, E-W. É por ele que o xamã
sobe aos céus; é por ele que os deuses e as almas já divinizadas descem à terra para
"passear" (ipoho) e participar dos banquetes cerimoniais. O kirepe é concebido como um
caminho largo, penumbroso e perfumado, que se estende do zênite até o leste; ou
alternativamente, da aldeia Araweté aqui na terra até um ponto indefinido do céu, a leste;
pois ele é inclinado, uma ladeira. Chegando ao mundo dos Mai', ele passa como que por
uma "porta" ou umbral, que é a perigosa cobra Arco-Iris. Este caminho foi aberto por Irayo-
ro, um herói mítico. Ele pode-se fechar em certas ocasiões, como durante uma epidemia, ou
logo após uma morte, na aldeia.
[...] Este caminho - que pode ser concebido, igualmente, como tendo início na
altura da copa das árvores (onde pousam as almas antes de seguir viagem) - não recebe o
nome de kirepe. Normalmente, é chamado de Mo'iroco kati, "banda de Mo'iroco",
conforme a situação ocidental de um dos dois senhores dos queixadas, que habitam os
confins do mundo terrestre. Lá existe outra cobra Arco-Iris.
[...]
Ora, assim que as almas dos mortos chegam aos céus, elas são recebidas pelo
Iriwo morodi' tã, o Senhor dos Urubus. Esta divindade é dita estar muito próxima da terra
("logo ali", apontam com os lábios os Araweté, indicando o céu ocidental). Já os Mai'hete,
os deuses "propriamente ditos", em quem os mortos seão transformados, habitam no zênite,
no centro do mundo superior; mas também habitam o "meio" dos céus, isto é, estão a uma
distância mediana dos homens, no eixo vertical - entre divindades mais longínquas e mais
próximas. Assim, temos um sistema de equivalências ou um feixe de oposições, que resume
os valores até aqui analisados:

(Céu) (Terra)

Leste Oeste
Alto Baixo
Centro-meio Margem
Zênite Nadir
Deuses Mortos
Pedra Água

Tal sistema, que apresenta uma feição de "classificação politética" (Needham,


l979: 62-69), deve ser entendido como incompleto - pois eixos semânticos adicionais a ele
se agregarão - provisório - pois veremos que seu dualismo mascara uma tensão triádica - e
sobretudo como "ético", isto é, ele foi reconstruído por mim, e não parece servir de
arcabouço conceitual exaustivo da cosmologia Arawetê, tão pouco preocupada quanto
94

possível com oposições polares e/ou complementares - e certamente ele não informa a
morfologia social174.

A análise da diferença é feita a partir de um pressuposto: o de que tanto a


manifestação ritual, como a mítica, não contêm cifras (i.e. diferentemente da linguagem
dos 'civilizados' não contém explicação ou chave na escrita, que não teria conotações,
nem entrelinhas, ou interstícios, não sendo nunca nem enigmática, nem secreta, livre de
símbolos e metáforas). De que a sua interpretação precisa ser feita de forma direta,
aplicada sem intermediações ao real pragmático e imanente. A manifestação indígena
sempre se referiria a 'práticas' e não a representações. Mesmo a dança e o ritual são
entendidos dentro de uma chave pragmática (morfológica). São excluídos o imaginário
e a simbolização. O pressuposto do imaginário e da simbolização está na base da
construção poética. Será que daqui a um ou dois milênios os dois versos iniciais do
poema "Mão Suja", de Carlos Drummond de Andrade ("Minha mão está suja / preciso
cortá-la") serão lidos como práxis do brasileiro - mineiro-carioca - do séc. XX?
Há diferenças entre os povos ágrafos e os povos letrados. As diferenças de
morfologia social revelariam estruturas ou formas da vida social em que o ser humano
tivesse estruturas internas de valor diferente? Virtualmente o 'homem primitivo' não
seria semelhante ao 'homem civilizado'? Não teria a mesma estrutura de pensamento?
Não seria só o seu produto diferente, na medida em que não criou grafemas, nem tem
necessidade de explicitação ou produção de estratégias agressivas de proteção? Os seus
produtos de valor inestimável são a solidariedade coletiva, espírito verdadeiramente
democrático, princípios de sobrevivência que facilitam a organização social e a
liberdade.
As considerações percucientes de Viveiros de Castro sobre a pessoa (identidade)
Tupi-Guarani são tão finas, que caberia estender o reconhecimento desta capacidade de
representação da constituição da identidade através das festas e do 'canibalismo'
simbólico para outras manifestações. Talvez pudéssemos ver as festas indígenas como
indicativas de um modo de revelar o seu imaginário e capacidade de simbolização.
Talvez a própria imagem construtora de um sujeito175 seria indicativa de uma

174. Viveiros de Castro, Eduardo. Araweté : os deuses canibais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986: 191.
175. "Assim, o instituto da amizade formal, construtor da Pessoa, abriria ao indivíduo um [...] "campo
pessoal, não sem dúvida como agente dotado de razão, vontade e liberdade... mas como ser de certa
maneira único... como um sujeito". (1979: 38). [...]
95

capacidade de representação mais elaborada do que se supõe como marca do primitivo.


A ferocidade indígena assusta o 'civilizado'. Não será porque ela é diferente da
ferocidade do civilizado e o civilizado já se acostumou e se encontra anestesiado com
respeito à própria ferocidade? Será que a sociedade "liberada do fardo da representação"
só existe entre os 'primitivos'?

Deve-se destacar um aspecto do canibalismo que, nem por talvez exagerado pelo
etnocentrismo dos cronistas, nem por de difícil redução estrutural, deixa de ser essencial.
Refiro-me à ferocidade manifestada no ritual canibal, a orgia de sangue em que se
mergulhavam as crianças pequenas, a famosa gula das velhas, os rompantes de furor, o vivo
ódio ao inimigo, o ethos desenfreado e brutal que emerge de todas as descrições dos festins
antropofágicos. É preciso repor as coisas no plano do comportamento, no plano do real, e
assumir que estamos aqui no elemento da violência, e numa operação alimentar. O
sacrifício do inimigo envolve aquilo que Florestan evocava de passagem como sendo o
"plano animal" da guerra Tupinambá, para logo descartá-lo por inútil enquanto explicação
das causas do fenômeno (1970: 44-47). Inútil sem dúvida, se a idéia for tomada
literalmente; pois a guerra não é caça, e a antropofagia não era "alimentar", mas ritual.
Ritual alimentar, entretanto - e implicando uma animalização "simbólica"176.

[...] é o matador que encarna a parte da estrutura: é ele quem exerce o trabalho do símbolo,
quem suporta o processo de "reprodução" da Sociedade. Operador do sacrifício, ele é o
pivot do jogo de imagens, encenando a vingança, espelhando o inimigo e o morto a ser
vingado, manifestando o valor central do grupo: é o Guerreiro, a Pessoa, o Nome e o Nume.
Liberada do fardo da representação lá fora a coletividade é o oposto de uma Sociedade:
canibalismo destruidor generalizado, ferocidade bruta. Enquanto em casa o matador se
espiritualiza, no pátio os demais se "animalizam" - todos "jaguares". Enquanto, pouco
antes, a vingança exigia uma elaborada troca de palavras entre o executor e a vítima, agora
a vingança é uma confusão de bocas e de gritos, de vozes e de imprecações. Ao matador o
espírito e as palavras, o nome; aos demais a carne e o sangue. O matador representa; os
outros vão ao real - mas para irem, alguém precisa ficar. O canibalismo só é possível
porque um não come. A atualização exige que alguém se incumba da ritualização. O
matador, calado e recluso, é aquele que depois cantará, e dirá seu nome. Ritualmente morto,
é o único propriamente Humano durante a devoração - é o guardião do Simbólico; enquanto
a comunidade "incorpora", ele é puro Espírito. Note-se enfim que o matador, justamente
aquele que se envolve em duelo "narcísico" com a vítima, é que está sob o interdito canibal
- como se para desmentir qualquer leitura disto tudo no registro do Imaginário. Quem come
ainda são os Outros177.

Ora, é precisamente a noção de Identidade que surge como desconstruída e corroída, na minha
interpretação da Pessoa Tupi-Guarani. Não apenas porque ela não pode ser tomada como suporte ou
resultante de identidades sociais, ou porque ela não está intacta e inteira na individualidade (etno)-
biológica. Mas porque a anti-dialética da Pessoa TG a põe de modo não trivial, como essencialmente não
idêntica a si mesma, como Outra. Esse é um processo que batizo de "identidade ao contrário"
(incorporando a acepção quinhentista de "contrário" = inimigo) - não o jogo de imagens que subjuga a
diferença à identidade, mas um devir-Outro. A frase de Rimbaud - "Je est un autre" - que para tanto já
serviu, se pôde ser evocada pelos Je-ólogos como divisa da Pessoa Jê-Bororo (Crocker, 1977 a: 179), não
funciona entretanto para o caso Tupi-Guarani, onde a questão não é de Ser, mas de Devir. É isto, o
canibalismo. (Viveiros de Castro 1986: 120).
176. Viveiros de Castro 1986: 694.
177. Viveiros de Castro 1986: 695.
96

[...] a cerimônia cria um duplo afastamento da Cultura. Por isso ela não é uma simples
operação de religiosidade durkheimiana - a restauração da eunomia coletiva - mas uma
atuação metafísica. O canibalismo é uma crítica animal da Sociedade; mas também uma
vontade de divinização178.

As considerações sobre a cultura dos povos 'primitivos' depende de um


conhecimento da língua falada pelo povo indígena estudado. Minha dúvida é se um
branco, 'civilizado', tem condições verdadeiras de apreender nuances espirituais, uma
visão cosmológica e cosmogônica de um povo primitivo, i.e., se tem condições de
apreender imagens, que serviriam para a representação de categorias que os estudos
dizem que os indígenas não têm:

A primeira observação a fazer é que a cosmologia Araweté não oferece


equivalentes lingüísticos e conceituais claros a categorias metafísico-naturais tais como:
humanidade, espiritualidade, animalidade. Seus conceitos de feição substantiva ou
categorial (que se apresentam como lexemas simples) têm significado altamente
dependente de níveis e contextos de contraste, e podem ser dissolvidos em uma proliferação
de nomes específicos insubsumíveis por categorias mais gerais179.

Se não houvesse as categorias, como um índio (aculturado, mas índio) como


Kaka Werá Jecupá, consegue perceber dimensões e categorias, nos povos indígenas,
como a do tempo, relacionada a uma visão cosmológica?

O tempo, para os povos indígenas, é uma divindade sagrada encarregada de


manter a Lei dos Ciclos: as estações da Terra e as estações do Céu. As estações da Terra
podem ser medidas pelo Sol e as estações do Céu, pela Lua. O tempo faz a ligação do ritmo
- que é coordenado pelo coração - com a ação e a inação. O Pai Tempo tem muitos nomes
entre os povos180.

178. Viveiros de Castro 1986: 696.


179. Viveiros de Castro 1986: 204.
180. Kaka Werá Jecupé. A terra dos mil povos. História indígena do Brasil contada por um índio. São
Paulo: Ed. Fundação Peirópolis, 1998. (Série Educação para a paz): 71. Transcrevo uma análise feita por
Viveiros de Castro sobre a noção de tempo dos araweté, a fim de esclarecer este aspecto da noção de
tempo:
"Vê-se, enfim e em suma, a presença insistente de um tema na cosmologia Araweté: o tema do
abandono, da divisão do cosmos entre aquilo que "foi" (iha te) e aquilo que "ficou" (opitã) ou "apenas
existe" (ika te) - aquilo que foi abandonado. A raça humana é a mais notável espécie destes seres
abandonados. Mais notável porque, apesar de ter ficado, seu destino é ir: dos humanos, ao contrário do
resto de seres que ika, existem ou estão (na terra), se diz que são iha me'e rí, "os que irão. Esta é, afinal, a
marca da diferença do humano dentro do mundo: o tempo o constitui em sua essência. Os animais têm
"espírito" (ha'o we) e têm um "princípio vital" (í); mas não "irão". Os da terra são da terra; os do céu, do
céu. Só os humanos estão entre a terra e o céu. o passado e o futuro; só eles não "morrem de verdade"
(imaní nete).
O abandono da humanidade é menos uma queda desta que uma subida dos deuses. Deixados
para trás, os homens são, propriamente, essa ausência da divindade. Ao contrário de tantas cosmologias
do continente, que concebem a Cultura e a condição humana como conquista sobre o território de uma
97

A categoria do tempo, vinculada à lei dos ciclos e a um ritmo biológico está


muito mais próxima de concepções filosóficas e a uma prática de vida oriental. Assim,
também, as considerações de Jecupé sobre uma paideia indígena:

A prática da filosofia ensinada nas aldeias é a arte do domínio sobre si mesmo. O


desenvolvimento da capacidade de lidar com suas dores físicas e morais invocando sempre
o espírito da sabedoria. O domínio sobre si mesmo começa na infância: as crianças são
conscientizadas da diferença entre alimentação e gula. Os ritos de passagem criança-jovem-
adulto têm finalidade ética atentar para o domínio dos reflexos, dos sentidos, dos desejos e
paixões. Nunca tais ritos tiveram ou têm por premissa a repressão e sim do desafio de viver
no espaço da liberdade. Por isso, não se castigam os filhos, mas estimulam sua liberdade
individual e contam com o ciclo do tempo e das estações internas do ser para aos poucos
mostrar-se a responsabilidade da liberdade181.

Qual a relação entre o universo ético, religioso, filosófico dos indígenas e as


formas simples, ou a força poética nos mitos indígenas? Como as formas simples se
prestam para atribuir um sentido a um evento e a uma parcela do universo percebido
através de impacto singular, mesmo nas formas da primeira infância existe não uma
filosofia, ou religião, mas uma concepção vinculada a categorias embrionárias de
tempo, de sujeito, de liberdade, de limites e da palavra e seu poder, que podem nos dar
parâmetros para a compreensão dos mitos indígenas. Os estudos sobre os povos
indígenas não partem de formas da infância. Os mitos, relatados pelos adultos, dão-nos
uma dimensão das concepções sobre a palavra, por extensão do imaginário e da
simbolização, universais que venho perseguindo neste trabalho.

Na tradição guarani, cada coisa que vemos hoje é uma imagem da imagem da imagem do
que verdadeiramente é; por isso, recorre-se aos cantos de origem e às danças do clã, para
suportarem ser um pálido reflexo do ser. Uma imagem que se esvanece diante da raiz
ancestral. Para os Bororo, somos o eco dos ancestrais; por isso, habitamos na caverna do
mundo, e da visão dos ancestrais temos as estrelas. As estrelas são os nossos avós e irmãos
mais velhos. Amanhã seremos estrelas e também deixaremos ecos nesta caverna. Esta
caverna é sagrada, a escola onde o som aprende a fazer brilhar seu pulsar.

Natureza ou animalidade originais, como um estado estável que se define como positividade negadora da
Natureza (e esta como anti e e ante-Cultura), os Araweté produzem o humano como separação de uma
sobrenatureza, como "abandono" de uma condição sobre-humana, extra-cultural, originária. Ao contrário
assim de cosmologias como as Jê, que põem a Cultura como o que os animais não (mais) têm, para os
Araweté os homens se definem por não (mais) serem o que os deuses são. Seu problema, então, não é
distinguir-se do animal, mas transformar-se no divino. O outro do homem não é o animal, mas o deus; a
Cultura não é presença, mas espera. Na verdade, os homens é que são os outros dos deuses, seu resto
abandonado. Feitos entretanto de tempo, existindo no intervalo entre o já-não-mais e o ainda-não, é para
este último que se voltam: a cosmogonia prepara uma escatologia". (Viveiros de Castro 1986: 229).
181. Jecupé 1998: 93.
98

Tribo e espírito caminham juntos. Para o índio, são sinônimos. Pela sua
memória, ele sabe e apalpa o espírito através da tribo: pai, mãe, filho, rio, pedra, girino,
cachoeira, floresta, mar, nuvem, chuva, onça, arara, irmão. E dentro da tribo coexiste o
criar, sim, o criar, que é a conseqüência do aprender, que por sua vez é o motivo pelo qual
sua alma-luz corporificou-se, para apre(e)nder-se e criar. A instituição do criar promovida
pelo índio é a arte, a cerimônia e a celebração. Que se desdobram em beleza, ordem e
alegria. A arte gera a beleza porque trata da exteriorização do fluir do espírito; a cerimônia
gera ordem porque trata da exteriorização da comunicação do espírito com a matéria, ou
seja, da tradução do céu para a terra; e a celebração gera alegria porque trata da animação
da tribo externa pela tribo interna, pois essa tribo é uma qualidade superior de fogo, que
anima, que vivifica182.

O processo de devir analisado por Viveiros de Castro não teria paralelismos com
a trajetória humana em direção à perfeição, passando por uma purificação, ou iniciação?
Diz Viveiros de Castro que "É preciso a iniciação, a elaboração de aspectos em conflito,
em última instância, de "duplo e penoso trabalho de desagregação e síntese mentais"
para "viver para sempre"183. O trecho de Jecupé, transcrito acima, não indicia uma
filosofia, para além da iniciação da ética indígena?

A explicação etnológica funcionalista de Malinowski é estreita para abranger


este universo. O seu conceito de funcionalismo – de pensamento utilitarista - consiste
em explicar até mesmo as instituições sociais, crenças, mitologia 'dos primitivos' como
determinada por necessidades primárias de alimentação ou de sexualidade. Os mitos
desana e a leitura que fiz ultrapassam de longe esta visão. Mostram o mito indígena
como um produto cultural, literário, em que o relato tem valor e peso. Walter Benjamin
não enaltece o narrador cujo relato tem uma função dentro de sua comunidade? O que é
válido para Leskov seria diferente para os desana?
Segundo Lévi-Strauss184, Lévy-Bruhl distingue o 'pensamento primitivo' do
'pensamento moderno', atentando que o pensamento primitivo seria determinado por
emoções e afetos – por isto chamado de ‘pensamento afetivo’. O pensamento afetivo
excluiria a dimensão intelectiva.
Lévi-Strauss distingue a sua concepção a respeito do pensamento indígena do de
Lévy-Bruhl e do de Malinowski. Lévi-Strauss explicita quê grupo humano estuda: os

182. Jecupé 1998: 94.


183. "Em última análise, a morte como fenômeno social consiste em um duplo e penoso trabalho de
desagregação e síntese mentais; somente quando esse trabalho os completa é que a sociedade,
reconciliada consigo mesma, pode triunfar sobre a morte (Viveiros de Castro 1986: 494).
184. Lévi-Strauss, Claude. Mythos und Bedeutung. Fünf Radiovorträge. Gespräche mit Claude Lévi-
Strauss. Hrsg. Adelbert Reif. Frankfurt/Main: Suhrkamp, 1980.
99

povos ágrafos (e não os primitivos). Vê o indígena como capaz de formular um


pensamento com a ajuda do intelecto, como o faz um filósofo, ou, até certo ponto, até
mesmo como um cientista, sem precisar ter motivação utilitária. Porém, continua Lévi-
Strauss, ao definir a sua compreensão de povos ágrafos – o seu 'pensamento construído
com a ajuda do intelecto' se distinguiria do pensamento não primitivo, ou não indígena,
por seu materialismo "que alguns chamariam de rústico". Com isto Lévi-Strauss
estabelece uma diferença entre o pensamento primitivo - indígena - e o civilizado. Esta
diferença consiste na 'rusticidade' do pensamento primitivo. E, suponho, no 'requinte' do
povo civilizado. Certa similaridade entre ambos os pensamentos – colocados como
antipodais - abriu-lhe, contudo, a possibilidade do estudo de estruturas comuns.

O fundamento do poder político, a base dessa estrutura social pode ser - como se disse de
outras sociedades do continente - a afinidade e a dependência dos wife-takers. Mas, pelo
menos os Tupinambá, esta base sociológica depende de uma "cosmologia": no caso, a
guerra, o que confere ao sistema um dinamismo e abertura ao evento muito fortes.
Nenhuma instituição "transversal" ou segmentação institucional neutraliza o movimento do
conjunto, nenhuma regra universal - exceto a vingança, o renome - articula um cálculo
"prescritivo". Sociedade "performativa", que fez do ódio ao inimigo o que os havaianos
fizeram do amor e do sexo - significantes instituintes do socius (Sahlins, 1985) - aqui a
proeza guerreira era o que mantinha o sistema, isto é, mantinha o movimento de escapar
dele; poligamia, fundação de nova casa, atração de genros, retenção de filhos. Com isso, o
estado histórico do sistema determinava seu curso posterior, sempre a partir do "atrator
uxorilocal" - sistema meta-estável, carregado de historicidade, onde tudo dependia de
quantos - - inimigos se podia computar 185.

A morte dispersa: a sociedade - que abandona a aldeia - e a pessoa - que se


fragmenta.

Pela minha observação dos mitos estudados, o 'pensamento indígena' seria


caracterizável como 'manifestação pela palavra do pensamento indígena'. Esta
manifestação pela palavra pode ser poética e trabalha com os universais imaginário e
simbolização, como nas enunciações de todos os seres humanos, desde a sua primeira
infância. Sua efabulação seria ficcional. Produto de adultos, o mito indígena poderia
conter a manifestação de seu pensamento ético, religioso, filosófico. Como saber
manifestado pela via ficcional, estética, poética, poderia, também, ser lírico. Como na
ficção 'civilizada'. Esta virtualidade passaria pela busca da palavra, gerada e geradora.

185. Viveiros de Castro 1986: 689.


100

Sem deixar de reconhecer diferenças - que existem de enunciação a enunciação,


de cultura a cultura, de diferentes visões de mundo - e tão fundamentais para um
matizamento e ampliação dos saberes e olhares - percebo que pelo menos os mitos dos
índios desana têm funções similares às do mito grego, incluindo duas vertentes. Uma é a
dimensão trágica, definidora dos limites da ação humana contingente. Esta reconhece a
dimensão da morte, de certo modo a pulsão de morte, que leva à perda do ser humano
envolvido em uma prática da desmesura. O balizamento envolve a temporalidade linear.
A outra vertente, decorrente da resposta a alguma explicação de origem da natureza
animal, vegetal, mineral, coloca uma idéia básica, sem a qual a vida humana e a da
espécie perderiam todo sentido: a metamorfose, enuncia Ovídio, ou a transformação,
ensinam os mitos desana. A idéia básica da transformação pressupõe outra dimensão do
tempo: cíclico e circular. Para dar conta das duas dimensões, o 'texto', ou enunciação,
depende de uma construção que não seja meramente linear, cronológica, neste sentido
da definição de causalidades estreitas, isto é, de um unidirecionamento unívoco e
determinista. Precisa de imagens, da busca de palavras, dispostas de modo a romper
com as interpretações unidirecionadas. Precisa da poesia. Os desana não escreveram
tratados retóricos sobre a poesia. A necessidade verificada na enunciação dos mitos é a
apreensão das dimensões do cosmos e da vida humana neles inserida através de
imagens. E de sonoridades. E da memória.
O utililitarismo das hipóteses etnológicas, ou antropológicas nega estas
dimensões. O pensamento afetivo e só afetivo proporia dificuldades de enunciação e
entendimento decorrentes de algo que, rusticamente, chamarei agora de 'atos falhos'.
Não teríamos como 'receber' estas manifestações. O pensamento intelectivo rústico
tentaria dar conta de aspectos mais abrangentes que os anteriores. Sua fronteira seria, na
medida da rusticidade, algo que nomearei, com a ajuda do quadro proposto por Jack
Goody (vide vol. I), recuperando a tendência dicotomizadora da auto e hetero-imagem:
a abstração, o cientificismo, a conceituação e a noção de história. Este tipo de definição
tem vários pressupostos. Um é a superioridade do pensamento racional (herança do
Iluminismo). Outro é certa concepção de história, "no sentido que se inaugurou no séc.
XVIII, quando se substituiu a noção de mundo como um sistema de relações entre
meios e fins, pela noção de progresso, com uma concepção fundamentalmente linear,
101

irreversível e segura do futuro"186 (e herdeira do mesmo momento). Um terceiro, é a


superioridade do pensamento científico. Independente de qualquer valoração destes
pressupostos, eles apresentam mais um: o de que as enunciações estudadas eram textos
sérios, para-científicos ou filosóficos. O produto verbal encontrado nos povos ágrafos
estudados foram os relatos míticos, apreensíveis pela memória e difundidos oralmente.
Seu caráter é ficcional. Seu valor, também. A suposição de superioridade dos povos
civilizados poderia provir deste deslocamento de expectativa.

Os relatos míticos dos índios desana, sendo poéticos, têm dimensões e recursos
poéticos. Estes, como no enigma, ou na adivinha, preocupam-se com as palavras em si,
a enunciação. Para avançar nas hipóteses sobre o sentido poético dos mitos desana,
recorrerei a comentário de Manuel Bandeira:

Eu vos direi, no entanto, que toda poesia é enigma. Toda palavra, antes que lhe conheçamos
o significado, é um enigma formidável. Claro enigma chamou o poeta Carlos a um dos seus
livros e no soneto da "Oficina irritada" claro enigma é Areturo, a estrela de primeira
grandeza na cauda da Ursa Maior187.

Este 'claro enigma', Areturo, "a estrela de primeira grandeza na cauda da Ursa
Maior", deverá ser considerado um mito primitivo, já que aparentemente está
explicando uma origem natural? Ou nos é facultado perceber uma imagem metafórica,
que se expande, iridescente, em -n- significações? A citação continua:

Que haverá de mais poético (concreto no duro!) que o Universo? Que maior poeta que
Deus? (No entanto os seus desígnios, consultem o Corção, são muitas vezes impenetráveis).
Mesmo o Deus feito carne, o Deus feito homem se exprimia por poesia enigma. Hoje todos
sabemos o que o Cristo queria dizer quando falou:

Quem come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em mim e eu nele. Porque a
minha carne verdadeiramente é comida e o meu sangue verdadeiramente é bebida188.

Dentro dos parâmetros atribuídos aos nossos primitivos brasileiros, nossos povos
indígenas, não poderíamos interpretar o último parágrafo como referência inequívoca de

186. Vide Hansen, João Adolfo. Pós-Moderno e Desmemória. DLCV-FFLCH-USP, mímeo.


187. Bandeira, Manuel. "A chave do poema" (Flauta de Papel). 1983: 514-515.
188. idem.
102

prática de canibalismo?... Neste sentido, restariam certo espanto e advertência,


expressáveis por palavras roseanas:

Sei que não atentaram [na mulher]; nem fosse possível. Vive-se perto demais, num
lugarejo, às sombras frouxas, a gente se afaz ao devagar das pessoas. A gente não revê os
que não valem a pena. Acham ainda que não valia a pena? Se, pois, se. No que nem
pensaram; e não se indagou, a muita coisa189.

No que nem pensaram... José de Alencar já havia relacionado o canibalismo real


ao simbólico. Talvez a interpretação de imagens de mitos primitivos tenha sido feita ao
pé da letra. Ou recolocando os mitos de povos primitivos na origem dos mitos,
vinculados a rituais de iniciação (que poderiam ser cruéis).
O mito desana descrito fala da partida e da volta à descoberta da plenitude e da
atemporalidade. O medo da morte é costurado com o desejo da superação destas
fronteiras - através do mito, que é saber, entrega - e da poesia, contida na enunciação. A
poesia neles encontrada visa a liberdade para abranger a vastidão do universo do belo.
Os mitos dos desana retomam, quase o tempo todo, a potenciação da palavra - na busca
das imagens guardiãs de uma verdade que dê conta do mistério da existência e do
mundo. Como disse certa vez Adélia Prado:

É este o papel da arte. É o de desvelar o real, que é a coisa mais alucinante, mais
assustadora que tem.

Em palavras de outro poeta, Octavio Paz:

Palabras, sonidos, colores y demás materiales sufren una transmutación apenas ingresan en
el círculo de la poesía. Sin dejar de ser instrumentos de significación y comunicación, se
convierten en "otra cosa". Ese cambio - al contrario de lo que ocurre en la técnica - no
consiste en abandonar su naturaleza original, sino en volver a ella. Ser "otra cosa" quiere
decir ser la "misma cosa": la cosa misma, aquello que real y primitivamente son190.

Concluindo: os mitos primitivos desvelam o real no conjunto de mitos de cada


nação indígena, devendo ser preservado pela memória da comunidade indígena, mas na
nossa, também. Ainda que os mitos primitivos não se posicionem frente a manifestações
anteriores, com a necessidade de superá-las graças a novas e diferentes nuances de

189. Rosa 1962: 125.


190. Paz, Octavio. El arco y la lira. El poema. La revelación poética. Poesía e Historia. México: Fondo
de Cultura Economica, 1956: 22.
103

estruturação da linguagem e do relato, como o faz a literatura, eles também são produto
(manifestação) não só simbólica, mas também artística, ficcional. Se assentirmos, estes
também seriam textos básicos, fundadores, referências para os estudiosos, para os
letrados ou para aqueles que se estariam letrando. Seriam referências estéticas.
Canônicas?

Outra visão do mito, ou o mito contemporâneo: A teoria de Roland Barthes.

Enquanto fenômeno humano e cultural, o mito aparece no presente de cada


indivíduo, já nas primeiras construções e manifestações, e também em cada comunidade
e em cada cultura. Tem um presente sempre atualizado e um passado histórico. No
presente tem uma dimensão psíquica, espiritual e social, que se soma à dimensão
histórica cultural e ancestral. Por sua atualização em cada existência humana, presta-se
para as atualizações do tempo com o qual convive este sujeito. As estruturas míticas
inatas juntamente com suas funções facilitam o encaixe de novos mitos criados com
funções diferentes. Não há enunciação sem alguma estrutura, mesmo com falhas,
insuficiências: em suas dobras e interstícios apresentam-se tanto certos eixos mesmo
que parcamente estruturadores, de diferentes formas simples, como desvios e
ramificações, franca ou equivocadamente rizomáticas.
Quando se pensa no mito como forma simples, forma que reinterpretou
fenômenos da natureza, pode-se chegar a esquecer diferentes mitos contemporâneos,
mais ou menos fluidos, que permeiam a sociedade com alto poder de penetração. Por ter
função controladora, por conter o indivíduo dentro de limites dados pela natureza, pela
sociedade ou pela religião (pelos deuses), as linhas estruturadoras do mito vêm sendo
usadas, contemporaneamente, com função definidora de rumos, tendências, gostos
estéticos e políticos, redundando numa exploração do nível social. Estudados o mito
grego, o mito primitivo, o mito inserido na trama de texto literário, com sua capacidade
de recapitulação, vale a pena lançarmos um olhar nos mitos contemporâneos – mitos de
adultos e da escrita, a fim de experimentar a hipótese formulada a respeito da função
básica definida até o momento sobre esta forma da oralidade. Teriam os mitos
contemporâneos uma função diferente da forma simples mito? Como agiriam sobre os
seres humanos?
104

O mito do qual se fala contemporaneamente tem sentidos diferentes, servindo


para designar coisas diferentes entre si. Muitas vezes é usado – com ou sem
conhecimento pleno do seu sentido – com a acepção de “Representação de fatos ou
personagens reais, exagerada pela imaginação popular, pela tradição, etc.”191, ou ainda
como “Imagem simplificada de pessoa ou de acontecimento, não raro ilusória,
elaborada ou aceita pelos grupos humanos, e que representa significativo papel em seu
comportamento”192.
Roland Barthes atualiza a teoria sobre o mito, ao estudar não mais o mito dos
povos primitivos, ou o mito de culturas canônicas do passado, mas o das sociedades
modernas. Reconheceu diversos mitos contemporâneos. (Outros autores definem outros
mitos contemporâneos, seja Kolakowski [1981], seja Ricœur [1977]). Os mitos do
presente exercem coerções sobre os membros de uma sociedade. Para Marx, os mitos
são projeções ideológicas das estruturas de classe, que, por sua vez, influem sobre estas
em sentido conservador ou revolucionário.
Barthes define o mito:

[...] la parole mythique est formée d'une matière déjà travaillée en vue d'une
communication appropriée: c'est parce que tous les matériaux du mythe, qu'ils soient
représentatifs ou graphiques, présupposent une conscience signifiante, que l'on peut
raisonner sur eux indépendamment de leur matière193.

Si paradoxal que cela puisse paraître, le mythe ne cache rien: sa fonction est de déformer,
non faire disparaître. Il n'y a aucune latence du concept par rapport à la forme: il n'est
nullement besoin d'un inconscient pour expliquer le mythe194.

Barthes nega o inconsciente no mito porque entende o mito (contemporâneo)


como decorrente da superposição de um valor sobre um signo (feito de significante e de
significado), substituindo o significado primeiro, sem anulá-lo. Ele espacializa a
compreensão do fenômeno através de um desenho:
SIGNIFICANTE SIGNIFICADO
S I G N O SIGNIFICADO
SIGNIFICANTE

191 Cf. acepção nº 3 do Aurélio Eletrônico.


192 Cf. acepção nº 7 do Aurélio Eletrônico.
193. Barthes 1981: 217.
194. Barthes 1981: 229.
105

S I G N O

Barthes entendeu da mesma forma a conotação, como valor adicionado a um


signo. Ora, se a conotação indicia aspectos de sentido que podem provir do
inconsciente, o mito também o poderia.
Funcionaria o meu conceito de mito para esta estrutura? A definição dos limites
da ação humana corresponderia ao signo primeiro, ou ao segundo? O mito grego se
constrói dando mais visibilidade àquilo que é mais complexo, para-filosófico, para-
ético. A metamorfose corresponderia a sentido aparentemente mais simples, ingênuo -
se não fosse poético. Como é poético, como tem inclusive função metalingüística, tanto
a segunda acepção como a primeira têm uma complexidade bem maior do que o
desenho acima. Este serve para a publicidade e para a propaganda (entendida como
ideologia política ou religiosa). Segundo os produtos anunciados, existiria um sentido
adicional. Seria aventura, liberdade, riqueza, no caso de diferentes anúncios de cigarro
até pelo menos a década de 80, entrando pela década de 90 do século passado. As novas
determinações legais em que a caixa do cigarro precisa apresentar os malefícios
decorrentes do seu uso já encontram um usuário tão acostumado com a mitificação, que
ele apenas escolhe o pacote cujo desenho e informação o incomoda menos. No mais, vê
os desenhos como quadrinhos de uma história que não está completa. A lei manda que
não seja criada uma mitificação. Mas o consumidor já se acostumou a ela e não faz caso
da realidade.
A astúcia do mito contemporâneo consiste em apresentar-se como se fosse
revelador de um fenômeno que não seria circunstancial, mas eterno e natural. Toma
uma manifestação do presente para afirmar que ela viria desde o início e iria até o fim
dos tempos - não em todos os seres humanos, mas num grupo em especial.
A tendência do mito contemporâneo, segundo Barthes, é usar uma fala
intransitiva, absoluta, eternizadora, por oposição à fala ativa, transformadora (da
verdade histórica, da literatura, ou de outras manifestações). O mito moderno seria um
efeito por excelência da burguesia. Serviria para deformar o conhecimento, levando à
alienação. Funcionaria como processo de apagamento da memória do presente, do aqui
e agora, da experiência.
106

Barthes levanta sete características básicas do mito burguês:

1. vacina
2. privação da História
3. identificação
4. tautologia
5. nem-ismo
6. quantificação da qualidade
7. Constatação

As características do mito burguês ultrapassam fronteiras, valendo tanto para a


França da década de 70, como para o Brasil de hoje. Encontra-se no mito que passa
através da publicidade, da televisão, dos meios de comunicação de massa, das artes
trivializadas da indústria cultural – e no livro didático.
O mito moderno atravessa diferentes instituições de uma sociedade (Ivan Ilitch
chamou-as de "aparelhos ideológicos do Estado"), que vão da Escola, passando pela
Justiça e chegando à Igreja. Como o motor destas reflexões passa pela escola, esta será
comentada. A escola constrói ou abriga mitos, assim como são criados mitos sobre a
escola. Entenda-se mito, agora, na acepção de “Idéia falsa, sem correspondente na
realidade”195. A escola abriga o mito do professor onisciente ou o seu contrário. Porque
a idéia de professores necessariamente incompetentes também é um mito. Excluindo o
contexto sócio-econômico-social da história da educação de um país, recobre-se o real
com uma máscara que serve para justificar toda sorte de desmandos, desde os maus
salários, até a instabilidade de emprego ou as escolas precárias. Estigmatizado, o
professor pode instalar-se no mito e tornar-se descompromissado, alegando a má
formação, o mau salário, ou as condições precárias como desestimuladores de sua
atividade. Sobre o aluno pobre criou-se o mito do "aluno carente", igual a incapaz ou
incompetente. A atribuição de sentidos que recobrem a noção básica de escola,
professor ou aluno se faz por deslocamentos - de lugar, de tempo (ou momento), quando
não de incompatibilidade da tarefa solicitada com a idade do aluno196. Os deslocamentos
195. Cf. acepção nº 5 do Aurélio Eletrônico.
196. Pede-se do aluno tarefas precoces e extemporâneas. Não as podendo cumprir, por falta de
maturidade, considera-se que o aluno é incapaz. É o que ocorre com a solicitação de dissertações de
alunos que ainda não têm o amadurecimento, a prática de (e orientação para) a pesquisa. Resulta o que é
107

não são explicitados e facilitam o recobrimento do espaço do não-dito com sentidos que
pouco têm a ver com as referências reais.
Como o mito contemporâneo é falacioso, a abordagem barthesiana ajuda a
melhor conhecer, para evitá-lo, o mito burguês, que nos cerca.

3.1. Características (ilustradas à brasileira) do mito burguês, segundo


Barthes.

3.1.1. A "ordem estabelecida".

As características do mito burguês ecoam só de longe aspectos do mito, tal como


estudado até agora neste trabalho. Uma delas é a ordem estabelecida, que lembra que os
limites da ação humana em sociedade pressupõem uma ordem i.e., parâmetros de ação.
Nos mitos gregos, ou primitivos, o que Barthes chama de ordem estabelecida poderia
estar para o que Octavio Paz chama (no mito grego) de legalidade imanente das coisas,
não provisória, nem arbitrária. Esta seria válida para a humanidade a rigor de todos os
tempos, porque envolve a arrogância e a desmesura, o amor ou o que seja relativo a
aspectos psíquicos. A ordem estabelecida da caracterização do mito burguês feita por
Barthes aproveita estrutura semelhante, mas denuncia o que nela é simplista e, neste
sentido, abusivo. Barthes mostra como a ordem estabelecida do mito burguês é boa
porque conhecida. Por ser conhecida, parece ser racionalmente abarcável. Sua lógica, na
medida em que é conhecida, permite ser tratada por normas de comportamento fixas e
previstas. Sua ordem implica estar sob o controle e responsabilidade da autoridade.
Manter esta ordem é conformista, e ao mesmo tempo mais seguro, já que tudo o que
seja diferente desta "ordem estabelecida" é perigoso e ameaçador. Como o medo ao
desconhecido é ancestral, restaria saber se o traço da "ordem estabelecida" como
característica do mito burguês corresponde mesmo à burguesia do século XX (entrando
pelo séc. XXI), ou se é mais antigo, talvez também ancestral, e apenas não estudado
antes de Barthes. Seria preciso estudar a história da intolerância no mundo, que inclui as
guerras religiosas e entre povos e nações. Aparentemente o argumento de que a "ordem
estabelecida" pela autoridade mais forte sempre foi decisivo em qualquer momento da

chamado de "estratégia de preenchimento". O conteúdo que sobra para estes textos passa a ser o mito
burguês, que pareceria corresponder às expectativas do sistema educacional.
108

história da humanidade parece bastante verossímil. A diferença entre estes tempos de


antanho e os hodiernos se encontra na mídia, publicitária ou não, que tem amplitude de
difusão maior.
A "ordem estabelecida" apresenta o conforto de parecer ser lógica, racional,
conhecida. O medo do desconhecido criou um silogismo, a partir do qual tudo o que é
oposto às características declaradas como as da lógica instituída passa a ser perigoso,
ameaçador, como a irracionalidade, a fantasia, a loucura. Na mesma linha de ilações,
tudo o que seja diferente do ‘estabelecido’ é perigoso. Basta sabermos que o universo
do conhecido e seguro foi fixado pelo homem, branco, adulto, poderoso, sadio, de
posses, para que a idéia do perigo se estenda a crianças, mulheres, doentes, não brancos
(fundamentalmente pretos, mas também índios; quando interessa, amarelos), não
cristãos, ou das seitas que interessam aos poderosos de cada momento e espaço - e
pobres. O poder institui a norma e o que é instituído passa a ter a chancela da ordem.
Isto e só isto é. O que é, é inquestionável porque existe 'desde sempre'. É proposto como
bom e pela mesma razão dispensa análises, já que a causa primeira é boa. As outras
constituem incidentes solitários e negligenciáveis. Como cada incidente representa uma
"agressão" à "ordem estabelecida", o agressor real, causador do distúrbio normalmente
social, passa a aparecer como agredido. O procedimento para chegar a esta inversão
passa por algumas etapas. Os atos são isolados, descontextualizados, a fim de serem
avaliados moralmente, apresentando-se como valores absolutos, desvinculados do
contexto histórico no qual se passaram. A moralização, na mitificação, é fator de
atribuição de responsabilidade (culpa) àquele que sofre a agressão da "ordem".
Na atualidade, a "ordem estabelecida" é veiculada também pelos livros
didáticos, mais explicitamente nas quatro séries iniciais do ensino fundamental. É o caso
do texto que segue:

As árvores.

Certo dia, uma fada perguntou para as árvores o que elas gostariam de ser.
Uma árvore queria se transformar em livros, pois seria muito útil.
Outra gostaria de se transformar em lápis para ajudar as criancinhas que
entravam nas escolas.
Outras queriam ser cadernos para ajudar os estudantes. Uma queria ser cadeira
para o velhinho descansar.
Uma árvore egoísta não queria ajudar ninguém. Quando as companheiras foram
embora, ela ficou só.
109

Os pássaros fugiram dela, porque ela era triste e não dava sombra.
- Como é triste ser só!
A fada ouviu a queixa da árvore e foi saber o que ela queria.
- Quero ajudar alguém!
A árvore ficou feliz quando um lenhador a transformou em lenha!197

Este texto se apresenta como uma história com fadas: não é um conto de fadas.
Começa do jeito previsto, com uma fórmula do tipo "era uma vez": "certo dia". Nos
contos maravilhosos, as fadas aparecem como forças suplementares e externas,
correspondendo às forças internas da personagem principal. Fazem o papel de "destino",
de "acaso", de deus ex machina, porque correspondem a aspectos internos positivos,
ativos, que ajudam a personagem em dificuldades a resolver seus conflitos. O destino
não é personalizado, nos contos maravilhosos, não tomando a palavra logo nuna, menos
ainda no seu início, tal como em “As árvores”. Num conto de fadas, o pescador que
salva um peixe, depois de tê-lo pescado, só encontra uma fada depois do gesto piedoso.
Em "As árvores" o "destino-fada", converte-se em personagem principal, tomando a
dianteira - e a palavra. A fada em verdade impinge um "destino" às árvores. Esta é a sua
astúcia de representante da "ordem estabelecida", intrometida, impertinente. Enquanto
“ordem estabelecida”, fiscaliza se os membros da coletividade estão cumprindo o seu
papel. Para a ordem estabelecida não existe o pleno desenvolvimento do indivíduo. Há
papéis a serem cumpridos pelos membros de uma coletividade, de acordo com os
interesses do status quo. A ordem estabelecida promete, a quem cumpre sua parte,
felicidade, o sentimento do dever cumprido, a pertença. A fada do texto acima formula
uma pergunta insidiosa e falsa por aceitar um só tipo de resposta. A formulação
pressupõe que o bom e certo para as árvores (que representam o povo, a classe
proletária: o futuro dos alunos "carentes" que estão lendo o texto) é serem usadas por
outros. O texto identifica estes outros como os frágeis: crianças e estudantes (estes com
a fragilidade da não definição profissional), com os quais os leitores infantis se
identificariam facilmente - e velhos. Pela lógica do conjunto dos textos do livro didático
referido, os ‘frágeis’ são aqueles que têm necessidades aceitas e definíveis, apresentadas
como direitos que especificamente eles têm - correspondendo a uma outra classe
(social) de seres – a dos que requerem o uso da força de outrem, seja uma árvore, seja
trabalhadores. A pergunta é tão insidiosa e mentirosa como esta caracterização da

197. Falleiros de Almeida 1984: 37.


110

comunidade, porque os senhores parecem ser iguais aos leitores infantis – estes, sim,
carentes de orientação – e por isto facilmente impressionáveis. A identificação do leitor
infantil dá-se com a personagem principal: a árvore que só queria ser ela mesma. A
ordem estabelecida de "As árvores" é deixar de ser si própria para ser usada para e por
outros, aparentemente em benefício destes outros. Quem (leitor e futuro trabalhador)
não cumprir tal papel, será punido com a solidão e a infelicidade. O castigo é a morte -
social:

Uma árvore egoísta não queria ajudar ninguém. Quando as companheiras foram
embora, ela ficou só.
Os pássaros fugiram dela, porque ela era triste e não dava sombra.
- Como é triste ser só!

O prêmio (as mitificações contemporâneas são maniqueístas) é o contrário do


anterior: é ficar feliz com a espoliação, e com o sacrifício de si mesma: "A árvore ficou
feliz quando um lenhador a transformou em lenha".
A perversidade do texto reside em incutir a idéia do suicídio - sacrifício pessoal -
como fator de bem estar daquele que tem direitos e necessidades. É introduzir a culpa
como ética social. E - o que também é perverso - se considerarmos a personagem árvore
não mais como representante do ser humano, mas de um exemplar do reino vegetal - é
incutir no leitor-criança a idéia de que árvores estão aí só para serem derrubadas, já que
estariam no mundo como matéria prima para servir o homem, devendo e podendo ser
usadas, sendo indiferente o uso que delas seria feito, e, sobretudo, sem levar em conta a
sua própria existência, isto é conservação. O que existe não existe para si, proclama o
texto, nem para a mera existência mesma, mas como material disponível para os
interesses de um outro. A doação delineada corresponderia ao sacrifício da vida198.
No mito original, a personagem é punida pela sua hybris, em geral, com a morte.
O excesso em que incorreu diz respeito a expectativas de comportamento em sociedade,
198. Nota importante: Quando fiz a análise deste texto pela primeira vez, eu me encontrava como
diretora técnico-pedagógica da FLE e era o ano de 1984, em um segundo ano do governo Montoro. O
texto em si é fraquíssimo: não tem coesão; as personagens não são caracterizadas. A rigor não existem.
Não são alegóricos, como a lenda indígena. Tanto fada, como árvore são meros porta-vozes da autora do
texto. Que o escreveu com a melhor das intenções... Mas, está aí o produto, que acaba propondo quer o
suicídio, quer o desmatamento como soluções morais - não só aceitas, mas recomendadas, recomendáveis
e emuláveis no e pelo texto em questão. Pois bem, como no texto, inconfundivelmente, árvore representa
oprimido, povo e fada representa ordem instituída, a crítica que foi feita por mim ao texto foi posta de
ponta-cabeça por alguns editores que procuraram atribuir - não ao texto as suas falhas - mas ao crítico do
texto uma ideologia - maniqueizadamente a oposta à ideologia do texto - por receio de que os livros
didáticos, tendo que ser mudados, lhes diminuiriam os ganhos líquidos.
111

dentro de um espírito igualitário – ou que pretende que a desigualdade não seja


exacerbada. Também semi-deuses e deuses são punidos. Ao mesmo tempo, a punição
advém de uma ação que vai contra um desiderato psíquico. O mito contemporâneo – à
luz de “As árvores” - procede a uma inversão de valores e de situação, instaurando um
mundo não igualitário como norma, em que as necessidades de uns justificam o
sacrifício da árvore, ícone do fraco e pobre – pelo menos de acordo com os argumentos
do texto. A fraqueza maior corresponde à maior ameaça: ficar só. E em vez da
metamorfose do punido em elemento da natureza, o relato transforma a natureza em
valor de troca – e a destrói.
Qual a razão da aceitabilidade e receptividade do texto? Ele tem algo de conto
de fadas (a fórmula inicial e a figura da fada), o que garante que a expectativa seja de
vida, de encontro de soluções e de energia para a superação de dificuldades. Será uma
expectativa duplamente frustrada, porque não são encontradas soluções ou poderes para
a árvore e porque ela não tem argumentos de defesa. A narrativa também tem algo de
mito, na medida em que a "utilidade" estabelece uma relação da árvore com a
comunidade, de modo que o leitor poderia ver, no discurso, os limites dentro dos quais
o indivíduo deve se mover em sociedade. A utilização - espúria e no limite cínica -
destas duas formas (provavelmente sem que a autora disto tivesse consciência) explica a
própria produção do texto. O cinismo - presumivelmente involuntário, neste caso - é
fruto de ideologia. A forma mito, aposta à forma conto de fadas, encobre o sentido
primeiro, de vida, de liberdade e de plena realização da personagem, além de encobrir
também que a coletividade pela qual a árvore se deixa sacrificar não pertence a ela, já
que é composta por outra classe de seres, de modo a revelar a estratégia narrativa como
claro procedimento mitificante.
A autora poderia ter tido conhecimento, por via direta, ou indireta, de um outro
texto, este de Lao Tzu, autor do Tao-Te Ching. Teria ocorrido algo como ter ouvido
cantar o galo e não saber onde. O texto taoista é o que segue:

Lao-Tzu estava viajando com seus discípulos e chegaram a uma floresta onde centenas de
lenhadores cortavam árvores. Toda floresta havia sido cortada, exceto uma grande árvore
com milhares de galhos. Ela era tão grande que dez mil pessoas podiam se sentar sob sua
sombra.
Lao Tzu pediu a seus discípulos que fossem perguntar por que aquela árvore fora
poupada. Eles foram e perguntaram aos lenhadores, que disseram: "Essa árvore é
absolutamente imprestável. Não se pode fazer nada com ela, porque seus galhos têm muitos
nós - nada é reto nela. Não podemos usá-la como lenha porque a fumaça é perigosa para os
112

olhos. Essa árvore é absolutamente imprestável, por isso não a cortamos."


Os discípulos voltaram e contaram a Lao Tzu. Ele riu e disse: "Sejam como essa árvore.
Se forem úteis, serão cortados e se tornarão mobília na casa de alguém. Se forem belos,
serão vendidos no mercado, tornar-se-ão uma mercadoria. Sejam como essa árvore,
absolutamente inúteis e então crescerão grandes e amplos, e milhares de pessoas
encontrarão sombra sob vocês199.

A narrativa de Lao Tzu fala em árvore e no binômio utilidade-inutilidade. É


poético e profundo. Não recorre à forma conto de fadas ou mito, mas antes à parábola,
que não será estudada nem neste, nem no próximo volume. E afirma que o sentido de
utilidade proposto por uma sociedade consumista deve ser evitado a todo custo. É contra
o valor de troca, que corresponde à “ordem estabelecida”.
A ordem estabelecida também define o ideal de felicidade, harmonia e
entendimento como existente desde e para todo o sempre, fazendo parte da natureza das
famílias. Quem não for feliz e passivo (que, neste caso, é o mesmo que ser "pacífico";
gente do povo mal alfabetizada faz este uso da palavra "passivo", sem querer e sem
saber que, ao mesmo tempo que assumem a ideologia dominante que os quer
"pacíficos", reconhecem que isto implica a sua "passividade", resignação) é mau,
marginal, precisa ser banido do seio da sociedade. Assim se apresenta o texto abaixo:

Família feliz.

Depois do almoço, o pai de Aninha voltou ao trabalho.


A mãe teve tempo de ler um livro engraçado.
No jantar, ela serviu uma sobremesa deliciosa.
O pai fez limonada e distribuiu bombons.
Aninha tirou os pratos da mesa e deixou tudo arrumadinho.
Joãozinho varreu as migalhas que caíram no chão.
Os pais foram ao cinema.
Joãozinho e Aninha ficaram tomando conta da casa.
Família feliz! Cada um ajuda o outro com amor.200

A 'utopia da felicidade' considera que a harmonia e o entendimento a todo custo


(felicidade) são bons e fazem parte da ordem estabelecida. As diferenças entre os
princípios da ordem estabelecida, que o texto acima veicula, e a utopia são:

- o que é abstração para a utopia, passa a prática (empirismo) no texto;

199 In Tao: The Three Treasures. Vol. 1: 69-71, apud Osho, Bhagawan Shree. Neo-Tarô. Trad. Anand
Nisargan. São Paulo: New Transcendentais, 1991: 20-21.
200. Cegalla 1983: 9.
113

- o que na utopia é bom em si, passa a estar adjetivado (restrito) e condicionado na


prática do texto; assim, a felicidade do texto depende de tempo para ler o livro
engraçado, da possibilidade de comer uma sobremesa gostosa e de dinheiro para ir ao
cinema;
- a ordem estabelecida vê papéis e deveres; sacrifício e doação;
- a utopia também vê direitos, mas é inclusiva: os detalhes (prêmios) fazem parte
fundamental do quadro de tarefas;
- a utopia pressupõe, em harmonia e entendimento, o diálogo; no texto “Família feliz”
ninguém conversa, ninguém pergunta pelo outro: importa o universo das tarefas e não a
comunicação.

O texto acima está mal escrito. Falta-lhe coesão, caracterização de espaços,


personagens, ambiente. Mau é verificar que este produto seja considerado adequado
para crianças.

O mito da felicidade, sem vínculos obrigatórios com a "ordem estabelecida",


evoca a "nostalgia do Paraíso". Também a nostalgia da infância ecoa a nostalgia do
Paraíso - perdido - e aparece, por exemplo, em um poema como "Meus oito anos", de
Casimiro de Abreu. Segundo Mircéa Eliade:

Nous entendons par là, le désir de se trouver toujours et sans efforts au coeur du monde de
la réalité et de la sacralité, et en raccourci, le désir de dépasser d'une manière naturelle la
condition humaine et de recouvrer la condition divine; un chrétien dirait: la condition
d'avant la chute.

A condição anterior à queda corresponde a um estado sobrenatural. Para o


homem moderno - autor de ciência-ficção ou não - corresponde à condição sobre-
humana. O desejo de ultrapassar a condição humana, correspondente à hybris,
reveladora do exagero e da insolência humanos diante da lei e dos deuses, conduz ao
seu contrário mais ou menos radical: o confronto com a realidade que lhe é oposta, isto
é, o descontentamento diante da mera condição humana. Aparentemente, o mito ou
nostalgia da felicidade levam, sobretudo, à perda de valores éticos e morais,
determinando que a felicidade deva ser conseguida a todo custo, mesmo que o preço
seja a infelicidade do próximo e instituindo-a como princípio único e básico do ser
114

humano. Portanto, o chamado mito da felicidade está de certa forma vinculado ao auto-
centrismo, à perda tanto do sentido de responsabilidade individual do eu no mundo,
como da função básica do mito original. (Seria esta a síndrome do que se chamou de
pós-modernidade?)
A perda da responsabilidade individual está associada a uma idéia de liberdade
absolutizada, sem fronteiras morais e éticas, estas últimas conditio sine qua non da vida
em comunidade.
O ‘mito’ da felicidade revela mais uma vez como o mito contemporâneo é
construído por deslocamentos. A consciência feliz prepara jogos (com a morte),
desfigura valores, a fim de apresentar o prazer e a satisfação pessoal de uns, decorrente
do sacrifício de outros, em cínica harmonia social compensadora. Não há lugar para
uma ética. O sentimento de culpa, no reino da "consciência feliz", é dos desfavorecidos,
cujo papel é servir – quando e se não servirem, ou não servirem bem. Compromisso,
responsabilidade, crime, tornam-se questões privadas. Os que se identificam com o todo
do sistema (líderes) podem cometer enganos, mas nunca cometem o mal – e, sobretudo,
são sempre isentos de responsabilidade. Só se tornam criminosos quando deixam de ser
líderes. Sobra a culpa para o nível privado, que volta os olhos para trás, para o passado,
perdendo de vista o sentido de devir. A culpabilização passa a ser instrumento de poder.
O mito contemporâneo impõe um modelo acabado e uma renúncia à iniciativa
do indivíduo. Com isto, impõe-se para a percepção particular uma forte sensação de
descontinuidade, tornando-se a continuidade uma ilusão, ou degradação.

3.1.2. Perda do sentido histórico.

O mito original é ahistórico. O mito contemporâneo apanha esta característica


para usá-la de outra maneira: faz desaparecer o valor e peso da história da sua
enunciação, escrita a partir da história e por suas necessidades. Como as enunciações do
mito contemporâneo têm referências históricas do momento vivido pelo receptor, a
perda do sentido histórico, ao negar ou modificar o passado histórico, leva à
desqualificação da memória pessoal, redundando no seu apagamento. Basta que o texto
diga que o que vivemos e vimos não é. Passamos a duvidar de nossa memória. A justiça
passa a ser coisa de direito adquirido - instituído - por ser uma questão de fato. Perde-se
115

a noção de direito coletivo, direito propriamente dito. O direito do cidadão cede lugar
aos "direitos" (= privilégios) do poderoso. É um uso especial da inversão do público e
do privado. O público passará a equivaler ao coletivo, à massa, que deve obedecer,
calar, fazer, aceitar. O privado, atribuído, neste caso e falaciosamente, àqueles que já
têm privilégios, este ainda obterá mais regalias, acentuando-se a diferença e a
desigualdade social.
A absorção do mito do poder, analisado por Roland Barthes como o mito
burguês, leva à perda da percepção de que o mundo e a vida pessoal são processos
inseridos no tempo e espaço. Os exemplos mais paradigmáticos do fenômeno estão em
textos de livros didáticos, como o abaixo citado.

O valor do trabalho.

- Mamãe, o Tonho virá? A lata de lixo está cheinha!


- Que falta faz o lixeiro!
- Os vizinhos também estão aflitos para ele chegar. Mamãe, os lixeiros são tão
importantes assim?
- Luisinho, como seria uma cidade sem lixeiros e varredores?
- Mamãe, imagine que eu achava importante só o trabalho do médico, do...
Quando eu for engenheiro, precisarei do pedreiro, do pintor, não é?
- Muito bem! Agora você sabe que todo trabalho tem valor.
- Luisinho, existe um dia dedicado ao trabalho?201

Nem todos os textos de livros didáticos são assim. Examinei um conjunto grande
de livros didáticos de 1984 a 1985. Foi quando promovi a tentativa de sensibilizar
editores para a necessidade de mudanças em material didático. Era diretora pedagógica
da FLE - Fundação para o Livro Escolar - e acredito ter começado a sensibilizar pelo
menos professores da rede pública e assistentes de ensino. Com certeza alguns editores
também. Pelo menos em um caso, sei que a compreensão do que se propunha foi
equivocada e a emenda do livro didático, fruto das 'correções' tal como entendido o
debate encaminhado, foi praticamente pior que o soneto.
Os textos ‘paradigmáticos’ do negativo apresentam marcas textuais mais fácil e
rapidamente analisáveis; são exemplares, neste sentido. Exageram as características que
se quer apontar, como em "O valor do trabalho". A análise pretende mostrar como são
incorporados temas, ideologias, estruturas formais e estilos (ou a falta deles), pela mera
freqüentação com as características a serem apontadas.
201. Falleiros de Almeida 1984
116

O leitor acredita que lerá um libelo enaltecedor sobre o trabalho. O texto se abre
com um diálogo entre mãe e filho. Quando o filho pergunta pelo 'Tonho', um apelido e
não um nome, o leitor espera que seja referido um amigo ou colega, alguém com quem
haja intimidade e mesmo uma espécie de conivência. Segue-se uma frase sobre o lixo.
Primeira surpresa e decepção: qual a relação entre o amiguinho e o lixo? Resposta da
mãe: "Que falta faz o lixeiro!" Não há relação entre lata de lixo cheia e Tonho (=
amiguinho), nem entre lata de lixo cheia e falta do lixeiro. Como não existe relação de
sentido explícita no texto, o leitor constrói, em sua cabeça, o sentido faltante. É que ao
se deparar com um texto de ficção impresso, o leitor suspende o seu universo de
conhecimento, seu conceito de tempo e espaço, para imergir em um outro universo -
ficcional - livre das peias da realidade. O leitor manifesta, com este gesto, boa fé e boa
vontade, ânsia por comunicação e crença de que o outro tem a chave do saber. Quando
faltam palavras ou conceitos em um texto, o leitor comum (não professor universitário,
nem crítico), supre o texto com as informações faltantes. Supre-as, pelo menos até certo
ponto, dando, mentalmente, a coesão faltante no texto. É uma estratégia coesiva de
preenchimento do leitor, com função coesiva202. Tonho, descobre o leitor, seria o
apelido do lixeiro. O leitor um pouco mais atento percebe que o apelido, no texto, não
tem cunho afetivo. (Quando o diminutivo é carinhoso, estabelece simetria nas relações.
Mas pode ser depreciativo - recoberto por pseudo-afetividade paternalista. Refere-se,
então, a uma relação assimétrica, entre poderoso e oprimido, ou, para não usar
expressões tão fortes, entre empregador e empregado). Por que o tom depreciativo?
Porque se trata de trabalho menor.
O leitor prossegue na sua tarefa de criar nexos:
- Existe falsa intimidade e só aparente valorização do trabalho do lixeiro, já que o tom é
depreciativo.
- O diálogo é artificial. A fala da criança é antes um desabafo, uma crítica (recoberta
pela pergunta e pelo comentário sobre a lata de lixo e não sobre o homem Tonho).
- O desabafo é explicitado pela voz da mãe. É excessivo: os lixeiros estão em greve para
fazerem falta? Ou devem aparecer em todos os lares sempre que cada lata de lixo se
encher? A necessidade seria marcada por um individualismo exasperado.

202. O fenômeno que indica boa fé, também atinge o ouvinte, portanto também ocorre no nível da
oralidade, fruto da “suspensão da descrença”.
117

- A atribuição de sentido onde falta contextualização (estratégia coesiva de


preenchimento do receptor) prossegue por parte do leitor. A falta de coesão por perda
de sentido histórico cria espaços em branco no texto – ausências, mais do que
interstícios - preenchidos na leitura. Onde e quando se passa o pequeno acontecimento
do texto? Se há greve, por quê? Mas pode haver outro implícito: o de que os lixeiros são
preguiçosos. Fazem falta porque não estão sempre aí. E deveriam estar sempre
presentes, como o pedreiro e o pintor, ou qualquer assalariado - porque, afinal, os
lixeiros estão a serviço da comunidade... A ideologia pressupõe que o assalariado tenha
obrigações, deveres. Se ele não está sempre a postos, 24 horas por dia, é preguiçoso, ou
relapso. "O valor do trabalho" apresenta esta idéia só em intervalos do texto, contida na
exclamação da mãe e na referida aflição dos vizinhos. A ruptura (mudança de tema)
("Mamãe, os lixeiros são tão importantes assim?"), que leva a criança a falar sobre a
"importância do trabalho", é indicativa da "má consciência" que continuará interferindo
na coesão do texto. Há constantes deslocamentos de sentidos implícitos: a criança fala
em importância; a mãe, em utilidade ("Como seria uma cidade sem lixeiros e
varredores?"). A criança desloca, em seguida, novamente o sentido. Importância, agora,
tem duplo sentido: social e para a sociedade. (Um é importante = poderoso, bem visto;
outro é importante = necessário para a sociedade). A primeira acepção indica como
importante o poderoso. Na segunda, é o oprimido aquele que perde sua cidadania,
limitando-se a servir. A má consciência não permitirá que o segundo sentido aflore ao
texto, deixando-o encoberto. Por novo deslocamento, novamente indicativo da má
consciência referida, surge a pergunta sobre o dia do trabalho. Ora, o dia do trabalho
tem uma origem histórica, vinculada a lutas de trabalhadores. O texto esvazia toda
relação com tempo e espaço, história e geografia, e reduz tudo a algo que é, sempre,
desde sempre e para sempre.
- Como o título se refere ao valor do trabalho, mas está implícita a ausência, que pode
ser a preguiça, poderíamos fantasiar uma longínqua relação entre o valor do trabalho e o
conceito de lazer (e da preguiça) proposto por Paul Lafargue. Mas esta relação é antes
uma fantasia desta leitora, porque o texto nem sequer aflora esta aproximação.
A análise revela que o leitor funciona como "textualizador" do mau texto
inserido em um contexto, ou universo textual considerado respeitável, importante e
bom, como o livro - no caso, o livro didático. A "textualização", ou "estratégia coesiva
118

de preenchimento do receptor" indicia a boa fé do receptor e o seu desejo de manter


com o interlocutor - texto ou pessoa - uma comunicação verdadeira. Tanto a "estratégia
de preenchimento" do produtor de um texto (que leva à perda da coesão), como a
"estratégia coesiva de preenchimento" do receptor, que, ao contrário, leva a uma
tentativa de coesão do texto, indiciam que a comunicação é fundamentalmente desejada
pelos interlocutores. E que basta que haja interstícios de origem e função diferentes,
para que sejam preenchidos pelo leitor, ouvinte ou espectador, sejam eles o silêncio
simbólico nas obras escritas, o silêncio decorrente de rupturas e saltos na fala entre dois
interlocutores orais, ou saltos e rupturas na ação de narrativas cinematográficas ou
televisivas. Quando o texto é acintosamente mau, como o acima estudado, descobrimos
o malefício produzido por sua leitura, que confere ao texto, lido por criança, um valor
de referência. Ele se enquadra como ‘mito’ do trabalho, da ordem e do valor. Neste
sentido pretende apresentar-se como paradigma da simetria social. Mas propõe a
assimetria na verdade intersticial.
Quando certa falta de coesão se manifesta na fala, o receptor recebe outros sinais
além da palavra, fornecidos pelo corpo do emissor (movimentos, gestos, expressões
fisionômicas, tensões) e pela voz e suas modulações. O preenchimento é mais fácil,
devido à empatia conseguida pela proximidade física, que contextualiza o discurso. A
contextualização, na escrita, quando falta, é suprida, pelo receptor, através de elementos
externos ao texto. Podem fornecer dados contextualizadores o tipo de publicação no
qual se insere um texto e os pressupostos a ele vinculados. Livro escolar desperta o tema
do 'ensinamento'. A crítica é suspensa devido ao valor de autoridade com o qual o
material é investido. O leitor inferirá temas correlatos a trabalho, no caso do texto
estudado.
O traço ideológico da perda do sentido histórico se dá pela freqüente
desqualificação dos mais humildes, que percorre a indústria cultural - ou a mídia – mas
também as relações dentre de grupos com as mais diferentes características - e que é
recorrente e insidiosa nos livros didáticos. Apesar de sua força e presença, ela não é
nem total, nem definitiva. Existe um caminho de volta.

3.1.3. Perda da noção de identidade pessoal.


119

A mitificação inculcada leva ao comprometimento do exercício da cidadania.


Daí a desvalorização do indivíduo (e de sua memória) e a perda da noção de identidade
pessoal. Corresponde à alienação propriamente dita, já que o sentido etimológico da
palavra significa estar separado de si mesmo. Indiferença e resignação têm que ver com
in-diferenciação.
A perda de noção de identidade pessoal decorre da perda do sentido histórico e
da assimilação da "ordem estabelecida".
Este tipo de asserção é entendido como puramente teórico, e ao mesmo tempo
como já conhecido. Para que se observe o fenômeno em um texto, analisaremos um
conto encontrado em uma revista feminina em 1982203. Transcrevo o conto, que ganhará
mais sentido se comparado a "Trio em lá menor", conto de Machado de Assis,
publicado em Várias Histórias, em 1896. Compararei literatura trivial com literatura
propriamente dita. A trama elementar, básica, dos dois textos é semelhante: uma moça
apaixona-se por dois rapazes, sem saber discernir de qual gosta mais, ou com quem
deverá casar.

Apaixonada por dois rapazes

Ao longe, ouve-se o badalar do sino da igrejinha, tocando a Ave-Maria. São seis


horas de uma alegre tarde de verão, numa cidade do sul de Minas.
Laura, filha de uma das mais importantes famílias do lugar, se prepara, frente ao
espelho, para a espera de todos os dias na praça próxima à sua casa. Os louros cabelos
caprichosamente penteados, um ligeiro colorido nos lábios, os olhos de um brilho intenso: é
a própria imagem da felicidade.
Primeiro, Renato, seu simpático e atraente vizinho, que, retornando do
escritório, ao passar, a contempla amorosamente, deixando-a extasiada.
Depois, Raúl, médico recém-formado, deixando o consultório, desvia-se de seu
caminho, buscando encontrar à sua espera, sempre no mesmo lugar, aquele olhar ardente e
o mais belo sorriso que se possa imaginar.
Após breves instantes de magia e encantamento, Laura, pensando, retorna ao lar.
Sua jovem cabecinha cheia de sonhos imagina como seria feliz, amando, sendo amada e
desejada. E sonha, sonha, sem saber definir o que seu coração quer, amando um e outro,
como se fosse possível estar apaixonada por dois homens ao mesmo tempo.
E, várias noites, pensando e desejando estar nos braços de Raúl, o rosto dele
se transforma no de Renato. Seu coração dispara, fica ansiosa, trêmula, sem saber
realmente qual dos dois deseja.
Esta mistura de sentimentos, esta dualidade de sensações, a perturbam cada vez
mais. Ela se debate numa dúvida cruel. Mas sabe apenas que não pode mais viver sem amar
e que a paixão devoradora que a domina parece não ter fim.

203. Perdi a referência desta fonte. O conto chama-se "Apaixonada por dois rapazes". Sob o texto consta:
"Conto de Antoni Aragão, Ilustração de Flávio Mota".
120

E, todas as tardes, a mesma história se repetindo. Laura na mesma dúvida,


incapaz de uma decisão, temendo enlouquecer, pois sente que, aos poucos, aquilo se torna
uma obsessão.
Às vezes, é Raúl quem ela deseja, estremecendo de paixão ao pensar estar em
seus braços, beijada e acariciada. Mas, num relance, Renato, com seus olhos meigos, claros
e serenos, vem ao seu pensamento e ela o lembra com amor e ternura.
A incerteza continua e as noites vão se transformando num eterno pesadelo.
Certa tarde, Raúl se aproxima, fala com ela, os dois conversam de mãos dadas,
mas, apesar da imensa satisfação em ouvir as palavras de amor que há muito esperava,
aquele encantamento é quebrado pela lembrança de Renato. Laura conversa. Marca
encontro para o dia seguinte, mas não aparece.
Durante dois dias tenta resistir e não espera a passagem dos dois. Dois dias de
tormento, quase desespero; noites de angústia em que, em seus sonhos agitados e
interrompidos, ela se debate entre um e outro.
Chega uma apaixonada carta de Raúl, reclamando sua presença, e, quando
trêmula de emoção para ir ao seu encontro, os olhos claros e meigos de Renato parecem
fitá-la com grande tristeza. Uma grande dor, uma tortura imensa enchem sua alma, ao
perceber que ama os dois apaixonadamente, como se ama uma só vez na vida; uma coisa
que jamais pensaria que pudesse acontecer, que não poderia acontecer.
Aquela alegria que sentia todas as tardes, ao esperar a passagem dos dois, foi se
transformando em angústia e desespero.
Passam-se dias, meses e Laura sempre na esperança de um dia poder realizar o
sonho de sua vida. Mas como, se ela mesma estava dividida, se não sabia o que queria, se a
incerteza a perseguia numa dúvida cruel, se era incapaz de definir seus sentimentos.
Já não tinha a mesma alegria que antes, não era a mesma com a família, com as
amigas, as colegas de escola. Fugia de tudo e de todos, pelos cantos da casa, pensando e
sonhando.
Aquele olhar que tanto encantava os jovens tinha se transformado num olhar
triste, reflexo do que se passava em sua alma. Já não sabia sorrir; era a imagem do
sofrimento.
Raúl e Renato, ignorando a existência um do outro, notaram, ao mesmo tempo, a
transformação que estava se passando. Sem perceberem a paixão desordenada de Laura e a
luta que ela travava para se libertar, os dois foram, aos poucos, mudando de rumo, evitando
passar pela praça.
Cada vez mais infeliz, Laura continuava querendo os dois, a esperá-los num
desinteresse total pela vida, transformando-se num ser apático.
E todas as tardes aquela espera ansiosa e a volta a casa, desesperada, olhos
fitos no céu, implorando que alguma coisa acontecesse, que ela tivesse um pouco de paz.
Sentindo que ela estava definhando e sem poder avaliar a razão, seus pais,
preocupados, levaram-na para uma longa viagem. Durante meses, Laura, conhecendo novos
lugares, conseguiu, aos poucos, conter a violenta paixão que a consumia. Mas não
conseguiu afeiçoar-se a homem algum.
Vários anos se passaram e Laura é, agora, uma mulher tranqüila, mas triste e
infeliz. Conserva ainda toda a beleza, seus cabelos caprichosamente penteados. Seus olhos
não têm o mesmo brilho. mas são bonitos e neles se percebe uma imensa saudade.
Ela volta a rever a cidade onde tanto amou e sofreu. Sua casa lá está, cuidada por
velhos serviçais. O jardim florido parece querer recebê-la com carinho. Quanta emoção em
rever as amigas. O badalar dos sinos tocando o Ângelus.
E todas as tardes, Laura retorna à velha pracinha. Por onde Renato e Raúl não
passam mais.

O elenco de lugares comuns do texto é:


"ao longe o badalar do sino da igrejinha"; "tocando a Ave-Maria"; "alegre tarde de
verão"; "importantes famílias; louros cabelos"; "a própria imagem da felicidade";
121

"simpático e atraente vizinho"; "aquele olhar ardente e o mais belo sorriso que se
possa imaginar"; "breves instantes de magia e encantamento"; "jovem cabecinha cheia
de sonhos"; "Seu coração dispara, fica ansiosa, trêmula"; "dúvida cruel"; "paixão
devoradora"; "parece não ter fim"; "estremecendo de paixão"; "olhos meigos"; "eterno
pesadelo"; "dúvida cruel"; "velhos serviçais"; "não pode mais viver sem amar";
"realizar o sonho de sua vida" (= matrimônio) e outros. Diversas das características
deste texto pertencem ao universo do lugar comum, do Kitsch, enquanto referência de
escrita: o tema do amor tratado sem aprofundamento e matização; o uso compulsivo de
adjetivos praticamente para cada substantivo ("alegre tarde de verão"; "simpático e
atraente vizinho"; "olhos meigos, claros e serenos" etc.); adjetivos que tendem a ser
quantificadores (eterno; intenso; extasiada; grande tristeza. Uma grande dor, uma
tortura imensa); a generalização, feita com o uso de advérbios ou pronomes adjetivos
perpetuadores (todos os dias; sempre no mesmo lugar; todas as tardes); uso de
pronomes adjetivos indefinidos (uma cidade do sul de Minas; aquele olhar; num olhar);
freqüência do mito da felicidade ("a própria imagem da felicidade"); uso de reforço
para afirmar o que é (próprio).
Laura, "filha de uma das mais importantes famílias do lugar", não tem
identidade própria. Tal como sucede na literatura para-didática para infância e
juventude, conforme analisa Fúlvia Rosenberg204, Laura se define em relação ao
homem, seja ele pai, constituidor da família (importante), seja ele futuro marido. A
profissão dos pretendentes interessaria: um é médico. O outro não se sabe. Volta todos
os dias de um escritório. Poderia ser um contínuo. Mas é óbvio que nos vem à cabeça a
profissão de advogado... A personagem Laura não age: a este ponto chega sua falta de
identidade - e de personalidade ("Cada vez mais infeliz, Laura continuava querendo os
dois, a esperá-los num desinteresse total pela vida, transformando-se num ser
apático"). Como não sabe discernir entre dois amores, não sabe viver, conclui o texto.
Quem decide agir são os pais (leia-se pai), que a mandam fazer uma viagem... A fuga, o
abandono do problema, são o único encaminhamento empreendido. Com a conseqüente
contenção das emoções e para preservação da imagem de mulher feita para um e um só
homem. Como Laura não se casou - função básica da mulher, manutensora da família e
sociedade, sua identidade não existe e só lhe resta ser "tranqüila, mas triste e infeliz",

204. Rosenberg 1984.


122

esvaziada de ambições e ações. Diz Orígene205 que extra Ecclesiam, nulla salvatio.
Convertida em moeda burguesa, a asserção, para a mulher, seria: Extra Matrimonium,
nulla salvatio. Tanto assim, que ela quase enlouquece e torna-se uma melancólica,
eufemismo para a loucura. O único destino possível para a mulher é "realizar o sonho de
sua vida". Sem precisar – pior, ter o direito - de ter uma profissão e trabalhar
(lembremos que esta narrativa é do começo da década de 80).
O protótipo do 'mito burguês' inclui homens de qualquer idade, tanto na
despersonalização, como na perda da identidade. Ele garante justificar toda e qualquer
tutela desejável aos grupos de poder.
A ideologia desta narrativa lembra muito a que Jack Zipes vê nos contos de
fadas de Perrault e de outros, que assumiriam o padrão burguês conservador e
imobilista. A diferença entre os dois produtos é que a moral limitadora, que infunde
medo, nos contos de Perrault, está circunscrita à "moralidade", apêndice adicionado por
Perrault ao relato dos contos por ele coligidos - e não existe nos próprios contos,
enquanto que na narrativa aqui apresentada, a ideologia é interna: está no texto.
O conto é moralizador. Seria um ‘causo’206? O ‘causo’ fala de eventos
extraordinários, pertencendo à experiência pessoal do narrador, característica que mais
fortemente torna a narrativa essencial e necessária para o ouvinte. O ‘causo’ é relato de
contador de histórias, essa figura evocada nostalgicamente por Walter Benjamin. A
narrativa em estudo não apresenta o relato de uma aprendizagem. Seria um caso 207? Há
uma pesagem final: Laura é avaliada e criticada. Como o caso se constrói por sucessão
de perguntas, e deixa para o leitor a tarefa da avaliação, e nesta narrativa o julgamento
de Laura está impresso em seu destino de solteirona, também a forma caso não se
encaixa.
"Apaixonada por dois rapazes" não o explicita, mas subjaz uma noção de família
como núcleo central e molecular da sociedade, proveniente, longinquamente, de
Hobbes208. Longinquamente, porque só é caracterizada a personagem feminina, e apenas
205. Exegeta e teólogo nascido na Alexandria (185-254).
206. A forma ‘causo’ será estudada no vol.III de Ficção e Razão.
207. Também a forma ‘caso’ será estudada no vol.III de Ficção e Razão
208. A propriedade para Hobbes é uma espécie de prescrição de regras, ditadas pela soberania, através
das quais o homem deve saber quais os bens de que pode gozar, e quais as atitudes que pode tomar para
com os outros. A propriedade, portanto, é uma lei civil e, como tal, uma segurança para o cidadão. Mas
essa esperança (salus populi) nasce a partir de uma demarcação dos limites da propriedade privada: os
valores entendidos como meum e tuum. A limitação do "meu" e do "teu" faz com que o que exista além
do "meu" é o estranho que não deve desfazer a harmonia da composição fechada. O meum torna-se valor
123

superficialmente, apenas como bela, atraente, instável, louca. A sociedade não é


caracterizada, a não ser nos seus valores mais superficiais, também estes referentes à
beleza, atração e posses. O núcleo da sociedade deveria ser ocupado pela figura
masculina - o pater familias - compatível com a noção de "cidadão" e de "urbs", que
provém do Iluminismo e do conceito de Citoyen. Os rapazes da narrativa não
correspondem à noção de "cidadão". Ainda que diluído na moral burguesa, encontra-se
nela um conceito de segurança: da família e da sociedade, correlato ao sentido patriarcal
imprimido na sociedade. Trata-se de uma noção protetora da família, da comunidade e,
por extensão, do mundo político. A moral burguesa, forjada a partir dos sécs. XVI-
XVII, entende a família como correspondente ao menor núcleo detentor e definidor de
propriedade, núcleo que precisa ser conservado devido ao valor conservador da
propriedade - coisa que desde o séc. XVI vinha sendo colocado como papel
indispensável da mulher, nos tratados de casamento209. Tudo o que perturbar ou
comprometer esta segurança e harmonia é loucura, ou disparate, merecendo crítica. Um
"outro" que perturbar a autonomia absoluta deste substituto de estado político merece
ser pelo menos criticado.
Para a moral burguesa, a noção de perda de identidade está fortemente vinculada
ao papel social e político do indivíduo. Laura perde o seu papel social, já que não se
casa. Sua identidade de mulher não se concretiza e sua função básica na sociedade é
abortada.
Lidos por professores da rede pública e alunos de Graduação em Letras - sempre
sem confessar autorias e origens - solicitei a comparação entre os dois contos - o conto
trivializado e a conto matriz, de Machado de Assis. Em média posso afirmar que 95%
dos leitores submetidos à experiência preferiram o conto trivializado. Minha primeira
reação foi aceitar as análises de autores como Benjamin e Adorno, MacLuhan e
Marcuse, atribuindo a 'perda de critério de valor' ao empobrecimento das mentes destes
leitores, o qual decorreria da pobreza decorrente da pressuposta lavagem cerebral
produzida pela mídia, como se considerava e pensa até hoje. Até o dia em que me
confrontei com uma aluna que me confessou, publicamente, oralmente, (e não mais por
escrito, como em outras verificações), a sua predileção pelo conto trivial e me deparei
sublime, e quase um extremo de maniqueísmo incontido. "Essas regras da propriedade (ou meum e tuum),
tal como o bom e o mau, ou o legítimo e o ilegítimo nas ações dos súditos, são as leis civis".
209. O papel de manutensora dos bens familiares da mulher existe desde um dos textos ancestrais de
nosso mundo ocidental: na Odisséia.Na epopéia este é um dos papéis de Penélope.
124

face a face com uma pessoa - ser de carne e osso e não com uma enteléquia, que nem
saberia que estava admitindo um 'pecado intelectual'. O princípio gerador destas minhas
reflexões era e é que todos os seres são inteligentes - com variações que dependerão
inclusive do uso e das oportunidades de confrontos com estímulos. Seria esta pessoa
'burra'? Limítrofe? Estaria 'estragada' pela mídia? Se a mídia tinha todo este poder,
como se explicaria que houvesse resistência de alguns? Como se definiriam os 'eleitos'?
E como seria possível que esta aluna ao mesmo tempo tivesse este gosto criticado em
mim pela minha decepção, e ao mesmo tempo fosse uma aluna interessada e
interessante?
Agradeço a esta aluna a coragem de haver se exposto - mesmo ao ridículo
eventual - prestando-me um serviço inestimável. Tive de repensar a noção de mito
burguês. E de influência da mídia. Tive de repensar os produtos trivializados. Tive de
rever o próprio conto. E os meus conceitos e preconceitos.

Este conto trivializado (não deixa de sê-lo) aproveita (copia) diversos recursos
do conto de Machado de Assis “Trio em lá menor”. O nome da personagem feminina é
simples - e não composto, como em Machado - mas é Laura, que contém o nome Raúl.
A personagem Raúl, cujo nome está incluído em Laura e vice-versa, corresponderia ao
mesmo da personagem feminina. Só Renato seria o outro. Mesmo Renato é o próximo,
o semelhante: ele é o vizinho. Laura deseja Raúl, anagrama de Laura. E sonha com o
semelhante, apenas sonha com ele, pensa nele, recorda-se dele. Renato é uma não
entidade. É pura fantasia. Raúl, o desejado, mas o mesmo, o outro de si mesma,
semelhante a Laura, se configura como aquele que provoca o proibido (apesar de todo o
tabu controlador do texto): o sexo. O narrador desvia o assunto, ou o contorna como
pode, porque a moral burguesa no Brasil da década de 80 ainda não tinha admitido o
prazer sexual, a sexualidade aberta e plena. Raúl só pode assustar Laura, assim como os
aspectos de alteridade em Laura. Não saber o que quer é por em questão a própria
identidade.
Laura, amando e desejando aquele que está contido nela - em seu nome - é o seu
tanto narcísica. Sua loucura lembra (de longe e apenas na relação do amor desmedido,
confusão de espírito e loucura):
125

Quisera perdurar naquele a quem adoro:


ambos, num só concordes, morreremos juntos."

[...] assim Narciso, pouco a pouco,


pela chama de amor se fina e se consome.

O conto não tem o nível de beleza e grandeza do mito redigido por Ovídio (e
traduzido por Haroldo de Campos), nem se aprofunda na psique das personagens. Mas o
conflito vivido por Laura - que a coloca como desprovida de noção de identidade -
apresenta duas raízes ou matrizes (“Trio em lá menor” e o mito de Narciso) que podem
ter sido intuídas por estes leitores que preferiram "Apaixonada por dois rapazes" a "Trio
em lá menor". Inclusive pelo fato de ambas as raízes estarem mergulhadas em 'mitos',
um decorrente do patriarcado (o 'mito do amor único e definitivo na mulher') e outro da
noção de eu (o mito de Narciso). Os mitos sempre estão mais próximos do ser humano
"do que pensa a vã filosofia". O amor a dois rapazes se afigura como um excesso, como
hybris. Por isto é punido com a loucura, ou melancolia, primeiro; com a solidão, depois.
O conto não corresponde à construção de um mito: só aproveita mitos existentes,
referindo-os intersticialmente, assim como aproveita algum elemento dos contos de
fadas e algo do caso.

O Kitsch que atravessa o conto é responsável pela crítica que lhe pode ser feita.
Ele não é idêntico ao mito burguês, ainda que possa se confundir com ele, às vezes. O
que acontece com o Kitsch e com as dificuldades de recepção, se a tradição da
sociedade burguesa é a mesma?
O Kitsch - arte do mau gosto - é também a arte do mesmo, da repetição, da
muleta, da automatização. Ajuda o receptor a encontrar-se em campo conhecido.
Inseguro de seus critérios e de seus conhecimentos, o receptor do Kitsch se ancora no
conhecido, até pelo conforto de saber-se acompanhado, em seu gosto, por uma
multidão. O Kitsch é a arte da insegurança acerca do conceito de beleza - mais
freqüentemente é a exploração da insegurança do outro. Esta última característica é a
parte odiosa do Kitsch. Ela é suscitada pela diversidade de padrões e valores e pelo
desejo forte de pertencer a um grupo, de ser aceito como igual.
126

O conto "Trio em lá menor", cujo enredo básico tem pontos comuns com o
conto "Apaixonada por dois rapazes", apresenta uma personagem como eixo em torno
do qual, como em "Apaixonada", giraria a noção de família: a mulher, entendida como
núcleo central e molecular da sociedade e que deveria ser ocupado pelo pater familias.
A noção é patriarcal e ancestral. Machado de Assis trata disto com ironia.
A ironia machadiana consiste em apanhar uma trama banal, investi-la de valor
alegórico para a sociedade, questionando, assim, os papéis sociais e a própria sociedade.
É, sem dúvida, o modo mais eficiente e contundente de questionar o mito burguês,
elegantemente, introduzindo elementos de notação musical. O todo fechado da
sociedade se apresenta alegoricamente como o todo de uma peça musical: um trio. A
norma se apresenta na nota musical que serve como tom básico (lá), assim como para a
afinação dos instrumentos e para a afinação da orquestra, ou do grupo musical.
A narrativa começa introduzindo a personagem feminina, de nome duplo: Maria
Regina. Acostumada pela leitura de Guimarães Rosa a pensar em possíveis associações
do nome feitas pelo Autor, subdivido o nome duplo. Obtenho Maria - a representante
máxima da figura feminina no cristianismo, intermediária entre os homens e a
Santíssima Trindade; e Regina - rainha - mas também Regina Coelis, que vem a ser a
mesma Maria, mãe de Cristo e da humanidade, salvadora. A ação de Maria Regina nada
tem de santo, ou salvador. O narrador em terceira pessoa, que havia introduzido a cena
falando na seriedade, silêncio e recolhimento reflexivo de Maria Regina, que poderia
abrir para um assunto igualmente sério e, na sua reflexividade profunda, sorri,
malandramente, primeiro na escolha do nome e também pelo que veremos a seguir:

A verdade pede que diga que esta moça pensava amorosamente em dous homens
ao mesmo tempo. Um de vinte e sete anos, Maciel, - outro de cinqüenta, Miranda.
Convenho que é abominável, mas não posso alterar a feição das cousas, não posso negar
que se os dous homens estão enamorados dela, ela não o está menos de ambos.

O narrador emite juízo de valor sobre a situação, criticando-a fortemente


(abominável) - ou criticando diretamente Maria Regina - com os adjetivos da época:
esquisita e desmiolada. O narrador tempera a sua ironia com uma afirmação que
relativiza a crítica ("Ninguém lhe nega coração excelente e claro espírito"), para
modalizar imediatamente a correção, com nova crítica, contida tanto no uso da
coordenação como na explicação que desqualifica a personagem. A desqualificação cria
127

a oposição imaginação x realidade. Daí, nova modalização, através de qualificativos de


tom menos ácido, mas igualmente definitivo: "daí curiosidades irremediáveis". O
narrador retoma a trama só depois desta introdução. Esta servirá para caracterizar cada
uma das personagens masculinas - não a personagem feminina.
Os nomes dos namorados são simples e não compostos, como o de Maria
Regina: Maciel, o mais jovem; Miranda, o mais velho. Juntos, dão o nome duplo
(Maciel Miranda), que, não existindo na realidade, permanecerão na imaginação.
Ambos os nomes se iniciam com a mesma letra do primeiro nome da personagem
feminina: M.
A primeira caracterização das personagens masculinas é da idade: um é jovem, o
outro, velho. Correspondem às diferenças entre a jovem Maria Regina e sua avó, que
não é nomeada. A avó, aliás, tem a sua preferência nítida e explícita pelo Maciel, o
jovem, corajoso, ousado - e janota. Sua superficialidade e versatilidade de homem do
mundo a encanta. A cultura, o conhecimento, a espiritualidade de Miranda a cansa: ela
dorme, ou dormita todas as vezes em que Miranda fala, ou decide ouvir Maria Regina
tocar a sonata. Tocar uma sonata é a ação única de Maria Regina, afora pensar,
conversar alegremente, visitar uma amiga na Tijuca e concordar polidamente com
todos.
O conto divide-se em partes, nomeadas com notações de peça musical: I -
Adagio cantabile; II - Allegro ma non troppo; III - Allegro appassionato; IV - Minueto.
Segundo o Dicionário do Aurélio, a sonata clássica tem certas características especiais:

A começar do séc. XVIII, peça instrumental, de ordinário em três movimentos de caráter e


andamentos diversos, condicionados entre si pela tonalização modulatória: o primeiro em
andamento vivo, com o mesmo esquema da sonata bitemática210; o segundo, lento e de
ordinário em forma da canção estrófica e variada; o terceiro, rápido e de concepção mais
livre, sendo comum intercalar, entre ele e o andante que o precede, um minueto com trio ou
um scherzo. [A estrutura da sonata clássica serviu de base a várias formas musicais, como o
trio, o quarteto, o quinteto, na música de câmara, a sinfonia e o concerto, na orquestra, e as
peças musicais de forma livre. Também se diz apenas sonata.]

Esta definição corresponde bem à forma deste conto, feito dos movimentos da
psique da personagem Maria Regina. O minueto não está intercalado entre o movimento

210. A sonata bitemática resultou da reorganização da sonata. Seu movimento inicial segue geralmente o
esquema da construção ternária: exposição com o primeiro tema na tonalidade principal, ponte
modulante, segundo tema numa tonalidade vizinha; desenvolvimento dos dois temas que se opõem e
modulam para o tom principal; reexposição dos dois temas no tom principal e coda.
128

rápido e o andante. O andante (na forma de adagio cantabile) é o primeiro e não o


último movimento e o minueto (= movimento) segue os três movimentos previstos tanto
na sonata, como no minueto211 (= forma musical).
O trio, diferentemente do terceto, implica um conjunto de três instrumentos
diferentes que tocam juntos. Os movimentos deste trio são todos metafóricos, incluindo
o minueto, dança de casal do tempo do barroco, que tem um compasso múltiplo de três:
3/4; 3/8; 6/8. Comumente está divido em três partes, tendo um trio como dança central.
O trio, alegórico para as três personagens envolvidas na trama amorosa, mas inseridas
no contexto hobbesiano - iluminista e burguês, de posse - desnuda uma impossibilidade,
que é a de uma mulher ter mais de uma paixão. Como no conto de literatura trivial, a
mulher é punida pelo abandono dos dois namorados. O resgate do conto machadiano da
trivialidade se dá pelo desnudamento do mecanismo social e pela ironia no tratamento
da trama, contido no recurso ao tema musical. O scherzo no qual vai se converter a
sonata e o minueto faz parte da ironia machadiana - ou a compõe. De que ri Machado?
Da donna que è mobile?
Aparentemente sim. Mas o requinte da estrutura musical do conto e o reforço
daquilo que já foi anunciado no segundo parágrafo é pouco para explicar o conto.
Qualquer proposta de análise cairá no campo das conjeturas, que precisariam pelo
menos da análise de um contexto maior da própria obra machadiana para corroborar as
hipóteses levantadas. Machado, que aparentemente critica a mulher, ironiza muitas
vezes a figura masculina. Maciel é superficial, vaidoso, inconsistente. Seus atributos
valorizados por Maria Regina são a beleza e a coragem generosa, doadora, solidária. A
avó valoriza no mesmo a coragem, sim, mas mitificada, heroicizada. Miranda é
caracterizado como frio, duro, insensível, a-social, a ponto de revelar sua ideologia
classista desqualificadora:

- Acho que ele salvou talvez a vida a um desalmado que algum dia, sem o
conhecer, pode meter-lhe uma faca na barriga.
- Oh! protestou a avó.
- Ou mesmo conhecendo, emendou ele.

211. Forma musical clássica, em compasso ternário, composta de - exposição, trio, reexposição e coda
(facultativa) [...]. Havendo entrado definitivamente nas suítes instrumentais do séc. XVIII (Bach,
Haendel, etc.), sob a forma de dois minuetos seguidos (I e II), um no modo maior, outro no modo menor,
vai constituir em seguida o terceiro movimento das sonatas de forma clássica e das primeiras sinfonias,
até nelas ser substituído pelo scherzo beethoveniano.
129

- Não seja mau, acudiu Maria Regina; o senhor era bem capaz de fazer o mesmo,
se ali estivesse.
Miranda sorriu de um modo sardônico. O riso acentuou-lhe a dureza da
fisionomia. Egoísta e mau [...]212.

Egoísta e mau, como afirma o narrador, "Miranda primava por um lado único:
espiritualmente, era completo213".
Maria Regina quer o homem completo, tanto aquele que é generoso e
espirituoso, como aquele que é solidário e informado. De passagem, o narrador revela
que Miranda tem certas características inatas e outras adquiridas. Inata é a sua vocação
por música. Adquirida é a sua formação em direito. Por extensão poderíamos imaginar
que inata seria a sensibilidade - tolhida, podada, desviada por uma educação e por
valores econômicos e ideológicos de uma sociedade: "[...] Miranda estudara direito para
obedecer ao pai; a sua vocação era a música". Mesmo a complementação dos dois
homens num que contivesse as características positivas de ambos, só é possível pela
ficção: "E a moça recorreu a um expediente: completou um pelo outro; escutava a este
com o pensamento naquele; e a música ia ajudando a ficção, indecisa a princípio, mas
logo viva e acabada. Assim Titânia, ouvindo namorada a cantiga do tecelão, admirava-
lhe as belas formas, sem advertir que a cabeça era de burro"214. Não é à toa que
Machado recorre a Shakespeare. A glorificação da ficção e da lírica (poesia, ou música)
garante o impossível social.
Maria Regina não rejeita apenas a insensibilidade, crueldade, egoísmo, falta de
solidariedade - ou o embrutecimento pela vaidade e superficialidade: rejeita o que não é
verdadeiro, o que não tem identidade, assim como rejeita os valores socialmente aceitos:

Não havia lua, - mas a nossa amiga aborrecia a lua, - não se sabe bem por que, - ou porque
brilha de empréstimo, ou porque toda a gente a admira, e pode ser que ambas as razões.

Um dos problemas é a proibição do trio nas relações matrimoniais. Mas seria só


isto? A insuficiência de cada uma das personagens masculinas, alegorias do homem
machista, patriarcal de então (de então?), daquele que não tem função na sociedade, que
ou bem trabalha (como Miranda) e endurece, alienado do seu próximo, ou bem não

212. Assis 1994: 288.


213. Assis 1994: 288.
214. Assis 1994: 288-9.
130

trabalha (como Maciel), é generoso, mas perde o sentido do papel social do trabalho,
não explicam a frase da lua.

É a tua pena, alma curiosa de perfeição; a tua pena é oscilar por toda a
eternidade entre dous astros incompletos, ao som desta velha sonata do absoluto: lá, lá, lá...

A alma curiosa de perfeição seria Maria Regina, ou seria ela uma alegoria para
outra coisa? Haveria relações entre esta trama e uma alegoria territorial do Brasil? Teria
a ver a punição com a punição por hesitação do Brasil-mulher entre a sua adesão a um
ou outro dos pretendentes? O salto é demasiado grande para se inferir isto, sobretudo a
partir de um conto, apenas. Mas sobra a ironia sobre a noção de territorialidade da
família, regida pelo pater familias.
Na falta de outros parâmetros, recorro a Paulo Emílio Salles Gomes, que vê a
Colônia (brasileira), à qual falta identidade ("lá menor"?), feita à imagem e semelhança
da metrópole. Por outro lado, parece que se renova uma concepção de nação com sede
de absoluto, que não se contenta com uma imagem, que almeja outra, e que se condena,
devido a sua hybris configurada no desejo de absoluto, no horror do brilho de
empréstimo e dos valores que 'toda a gente admira'. Por ter expectativas para além do
‘permitido’ e previsto para a mulher casadoira, por ser diferente e almejar a totalidade –
uma desmesura – Maria Regina, ícone da nação brasileira, é punida (como nos mitos),
devendo 'oscilar por toda a eternidade' (para sempre - e de certa forma, desde sempre)
entre imagens insuficientes, ambicionando sempre um lá inatingível. Maria Regina,
ícone do Brasil, representaria algo como o mito da insuficiência, ou, já no séc. XIX, a
consciência de país da desigualdade, consciência do atraso encenado pelos namorados
incompletos.
"Trio em lá menor" está mais para a forma caso, na sua necessidade de pesar a
falta de opção amorosa de Maria Regina, mas modaliza a forma, que poderia levar ao
trágico, pela ironia, modalidade da comédia, ou do chiste. A ironia dilui a tensão. Serve
até para brincar com a in-verossimilhança da conclusão da narrativa, momento em que
Maria Regina de repente se transforma em uma mera contemplativa. Aliás, o tour de
force final é tal, que a personagem se esfuma, parecendo dissolver-se no seu anseio de
absoluto, o que provoca alívio no leitor. Se o leitor aceita a personagem como real, isto
ocorre devido à suspensão da descrença, encarecida pela voz e olhar do narrador, cuja
131

presença dá verossimilhança ao relato. A suspensão da descrença leva à assimilação, por


parte do leitor, entre vida e personagem, mesmo que esta se esfume. O esmaecimento de
Maria Regina representa a sua morte social. Vimos que afora a forma simples caso, o
conto tece também aspectos do mito, enquanto que os ecos do Romantismo, na
expectativa de casamento, entrelaçam pelo menos na avó, nos pretendentes e no leitor
uma expectativa de positividade concernente a contos de fadas.
A perda da identidade, como tantas noções, pode ser empregada com funções
diferentes. No conto “Apaixonada por dois rapazes”, revela uma identidade que só se
constitui por contigüidade. Em “Trio em lá menor”, existe um questionamento acerca
das identidades, extensível até para a identidade nacional.
O mito burguês conduz de forma tão competente à impressão da perda da
identidade, que levou estudiosos da pós-modernidade a considerarem o homem
contemporâneo “una pura pantalla, un centro de distribución para todas las redes de
influencia”215.
O mito original só faz sentido, é compreensível e tem função na medida em que
as identidades não são questionáveis, e são questionadas apenas certas ações.

3.1.4. Tautologia.

Tautologia é

Vício de linguagem, que consiste em repetir o mesmo pensamento com palavras sinônimas.
[...] Erro lógico que consiste em aparentemente demonstrar uma tese repetindo-a com
palavras diferentes216.

A repetição feita com sinônimos é mecanismo de fixação do valores do poder


instituído, oculto ou declarado. Ao repetir, não cria. O receptor, ao aceitar o mesmo, ou
o ligeiramente modificado, confunde esta linguagem aparentemente diferente com
fenômenos diferentes.
A repetição pode apresentar-se como procedimento adequado e necessário da
linguagem na ficção em prosa e verso, escrita ou oral. A origem deste recurso está na

215. Baudrillard 1985:197.


216. Ferreira 1986: 1654.
132

oralidade. Aí é processo rítmico-musical usado como elemento mnemônico217. Também


com a função de auxiliar da memória, a repetição é usada como processo de ensino-
aprendizagem. Por isto a escola e o livro didático podem ser insidiosos. Levam o aluno
a repetir, como se fizesse parte do seu processo de aprendizagem, as palavras, frases e
com elas a ideologia dos textos escolares através de uma linguagem considerada
impersonalizada218, cheia de vazios de coesão, que serão preenchidos pelo receptor. É o
caso gritante do exercício que segue.

Minha melhor amiga.

Minha tia Iracema, um pouco mais velha que eu, é minha melhor amiga.
Ela é alta, loira, cabelos longos e ondulados.
Tem o rosto redondo, a pele rosada e olhos azuis como o céu.
Calma, alegre, comunicativa e bondosa, está sempre rodeada pelos sobrinhos que a
adoram.

Imagine uma pessoa com qualidades completamente opostas às da descrição e procure descrevê-
la219.

Façamos o exercício:

Minha pior inimiga

Minha tia Iracema, muito mais velha que eu, é minha pior inimiga.
Ela é baixa, preta, cabelos curtos e pixaim220.
Tem o rosto quadrado (comprido), a pele preta e olhos escuros como o inferno.
Nervosa, triste, fechada e má, não está nunca rodeada pelos sobrinhos que a
detestam.

Mesmo que o "exercício" seja feito de modo diferente por diferentes pessoas,
i.e., apresente variações, permanecerá em algum espaço subliminar, em alguma fresta

217. "[...] quando o romancista repete sem temor as mesmas palavras mar verde, canto triste, ou ajunta a
palavra doce a dezenas de substantivos, as palavras tendem a perder o valor qualificativo e plástico,
formando legítimas entidades sonoras e rítmicas sem sentido consciente específico da mesma forma que
os nomes de cidades e pessoas... É processo rítmico-musical comum aos aedos e rapsodistas, a um
Homero como a um Manuel Riachão". Andrade 1972: 127 (O empalhador de passarinhos).
218. Cavalcanti Proença (1969: 81) fala na impersonalidade das palavras do lugar comum, ou das frases
feitas:
219. Bastos, Camélia da Palma e Silva e Elvira Maria Cicci Pinto Resende. Linguagem e Comunicação.
3ª série. São Paulo: FTD, 1982: 15.
220. O contrário de ondulado poderia ser liso, mas coerente com a lógica desta caracterização, a palavra
fica sendo pixaim.
133

do texto e da memória do receptor que a qualidade completamente oposta de melhor


será pior; de amigo, inimigo; de pouco, muito; de alto, baixo; de céu, inferno; de loira,
morena, ou preta (sendo morena um eufemismo)... O exercício acaba servindo para a
repetição racista insidiosa.
A tautologia é usada com freqüência em discursos políticos e em falas didáticas.
Poderíamos fantasiar um aluno consciente, atilado, politicamente correto que,
submetido a este exercício se negaria a fazê-lo. Como é só um exercício escolar de livro
didático de 1ª série do ensino fundamental, quando a criança ainda é muito nova para ter
condições de optar pelo politicamente correto; como estamos no Brasil, onde o PC-ísmo
ainda não está completamente implantado, a criança faria o exercício, sim. Poderia ser
introduzido o argumento de que o exercício acima não corresponde à "estratégia coesiva
de preenchimento do receptor". De fato, ele não corresponde exatamente à estratégia
referida, mas indica como funciona o receptor: ele preenche os implícitos, completa os
vazios e cumpre o que lhe é pedido quando se encontra diante da cadeia comunicativa,
sobretudo se for escrita. Ainda poderia ser afirmado que a textualização do receptor não
ocorre nem sempre, nem obrigatoriamente. Este comportamento (a textualização) faz
par com a aludida "willing suspension of disbelief"221 de todo leitor ou ouvinte diante da
ficção. Não é característica de um grupo humano ou social em um dado momento da
história. Todo leitor ou ouvinte tem, diante do relato ficcional, a tendência a suspender a
desconfiança e aceitar como verdade - do relato - aquilo que lhe é dito por escrito ou
oralmente. Ao entrar no jogo ficcional, da mesma forma que o receptor suspende o
descrédito, se lança empenhado na penetração deste universo que lhe está sendo
oferecido, participando tanto com a suspensão da suspeição, como com o
preenchimento dos vazios do texto. Estas frestas poderão ser produtivas e ricas, como
no caso das obras que despertam inferências estéticas, psicológicas, míticas, até
históricas, metafísicas, filosóficas e outras. Mas pode ser apenas o preenchimento de
vazios provenientes de falta de coesão, por um lado, e da má consciência, por outro.
A má consciência pode manifestar-se pela tautologia. Sua função é reveladora.
O mito original tem as características da produção consciente do valor da narração – e
da experiência: trabalha com uma economia delimitada pela necessidade. Nele não cabe
a tautologia.

221. Cf. Coleridge, Samuel Taylor. Biographia Literaria.


134

3.1.5. Medo da escolha. (O nem-ismo barthesiano).

O nem-ismo corresponde ao medo da escolha. A confusão enganadora da


linguagem diferente que diz e reafirma o mesmo, somada ao temor do diferente, leva ao
medo do questionamento de valores, da própria vida, da situação sócio-político-social,
do que seja "destino". É fenômeno ligado ao mito burguês, ou mito do poder, que
produz o medo à palavra. É tematizado com profundidade, força – e horror - no
romance No coração da escuridão (Heart of Darkness), de Joseph Conrad222. O
sentimento vivido pela personagem Kurtz é resumido nas palavras de seu leito de morte:
"The horror! The horror!" A palavra horror é repetida 7 vezes ao longo do livro, para
designar atrocidades da colonização. O sentimento de horror de Kurtz decorre de ser
proibida e desautorizada a comunicação de e com ele, por ter sido transformado em
deus pela tribo em que se encontra. Horrível é a solidão absoluta e o contraste com a
região e o grupo humano em que viveu antes de ir á África, no conforto da vizinhança e
das normas conhecidas, atendidas e respeitadas. Este conforto corresponde ao
conhecimento antigo destas normas, já tão automatizadas que se torna desnecessária a
escolha. Em qualquer das duas situações, na Inglaterra ou na África, Kurtz não
escolheu: foi escolhido. Entre os da tribo africana, ele se encontra na situação de não
poder escolher ou fazer "nem isto nem aquilo", sem alternativas, nem opção. O
provérbio “Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come” corresponde ao temor de
qualquer opção, que leva ao imobilismo e ao conformismo.
O mito original efabula os limites da ação humana em sociedade, mas as
personagens são audaciosas, ativas, desenvoltas. O problema está no excesso. É o
contrário do conformismo.

3.1.6. Quantificação da qualidade.

222. They were dying slowly -- it was very clear. They were not enemies, they were not criminals, they
were nothing earthly now -- nothing but black shadows of disease and starvation, lying confusedly in the
green- ish gloom. Brought from all the recesses of the coast in all the legality of time contracts, lost in
uncon- genial surroundings, fed on unfamiliar food, they sickened, became inefficient, and were then
allowed to crawl away and rest. (Conrad, Joseph. Heart of darkness. Acessado em 08.04.2003
http://www.cwrl.utexas.edu/~benjamin/316kfall/316ktexts/heart.html).
135

O mensurável é racional e lógico. Também apresenta uma face ilusória,


mentirosa, falsamente democrática. Medir e pesar, em vez de avaliar, se insere dentro
do conformismo; favorece o temor à diferença; indica perda do sentido histórico;
despreza a identidade pessoal, através do nivelamento, aceitando a "ordem
estabelecida", qualquer que seja esta ordem estabelecida, quantificação esta que parece
mais objetiva que a avaliação da qualidade. Também reflete um sinal da era industrial,
marcada pela produção. Leva a desvios perversos, dos quais não escapam os mais
diferentes setores, nem o econômico, nem o educacional, particulares ou públicos,
pessoais ou coletivos. Diz Barthes que o "quanto melhor, tanto melhor" foi substituído
pelo "quanto mais, melhor".
Decorrem conseqüências da quantificação, sobretudo na linguagem. O acúmulo
de adjetivos e a enumeração longa, sem propósitos estéticos são algumas delas. Na
realidade quotidiana, a sede pela quantificação tem levado ao inflamento da burocracia.
E do ponto de vista do uso das formas simples, tem favorecido o uso freqüente da forma
'caso' - ou "Kasus" - tal como descrita por Jolles. Por isto inclui um estudo sobre o caso
no último volume.
O mito, feito a partir de economia e necessidade, não entra em jogos de
quantificação. Se há enumerações, simbolizam riqueza, profusão. Se há repetição – não
idêntica – simboliza a circularidade e o ciclo vital.

3.1.7. Concepção estática do mundo (Imobilismo).

A sétima característica do mito burguês, segundo Roland Barthes, é a


'constatação'. Proponho outro nome. A constatação é imobilista. Constata para afirmar o
que é óbvio. Mostra, com isto, uma adesão ao status quo, francamente cristalizadora.
Por que rebatizei a característica? O traço que incomoda fortemente nas redações
escolares marcadas pela insegurança dos seus redatores é a sua resignação e imobilismo.
Afligi-me com isto. Se há algo que pertence à vida - é a vida - permitam-me a
tautologia. Explico: é dinamismo, ação, impulso. Imobilismo, resignação, estagnação
estão ligados a medo, eliminação da consciência histórica, à fragilização da identidade
pessoal (a rigor ela nunca se perde totalmente, a não ser com a morte - sempre
remanescem raízes prontas para rebrotar), à repetição do mesmo, à manutenção da
136

"ordem estabelecida" - uma quase morte pessoal, morte em vida. Pareceu-me mais
contundente e evidente nomear a constatação de 'imobilismo', já porque 'constatação',
no dicionário, tem uma acepção positiva223, diametralmente oposta à negatividade
imobilista do mito burguês.
Tanto a forma assertiva, como a generalização, são a manifestação mais
explícita do imobilismo em redações escolares. Mesmo a naturalização e idéia de que as
coisas têm uma face imutável (proveniente das origens, e entendida como imutável até o
fim dos tempos), que faz parte da mitologia do oprimido construída pelo opressor,
assimilada pelo excluído (ou pelo fragilizado social) - é francamente imobilista. É
verdade que até mesmo as dificuldades de um ser humano, até mesmo os seus limites,
não são tão rígidos e definitivos como se pode supor. São móveis. Quão móveis, é
difícil de saber. Só se sabe experimentando superar os limites, não através do sonho, ou
da fantasia. Sim, através de empenho, exercícios, estudo, estímulos - tratamento.
A literatura é – enquanto pulsão de ficção, arte da palavra - um dos modos de
superação encontrados pelo ser humano. Por isto os textos imobilistas do Kitsch, (da
literatura trivial) têm uma face nefasta.

3.1.8. - Usos dos termos mito e mito contemporâneo

As características do mito burguês visto por Barthes foram retomadas e


explicadas à brasileira, aplicadas a textos com a finalidade de examinar a sua validade e
forma de inserção. O mito burguês é um relato implícito que permeia as falas com uma,
algumas, ou até mesmo todas as sete características apontadas. Também poderíamos
considerá-lo como o mito do poder. Onde se encontra o mito burguês? Como ele não é
encontrável enquanto texto coeso, num relato único coligido por um pesquisador,
considera-se que há outros mitos da era moderna: o mito da felicidade, da riqueza e do
amor, por exemplo. Não que felicidade, riqueza e amor sejam 'non-entities',
inexistentes, puras fantasias, criações da imaginação. Os chamados mitos da felicidade
(a rigor mitificações), da riqueza e do amor são assim chamados na medida em que
apresentam cada um dos estados de alma como absolutos, permanentemente necessários

223. O sentido de "constatar" no "dicionário do Aurélio" é: "Estabelecer ou consignar a verdade de (um


fato), o estado de (uma coisa); comprovar; verificar.
137

e vergonhosa qualquer situação intermediária, misturada, diferente, tergiversando o que


no mito é pura indefinição histórica. Não é à toa que se fala, hoje, nos excluídos. Sem
dúvida os excluídos não têm, às vezes, nem migalhas de alimento - quem dirá riqueza.
Indubitavelmente são seres humanos a quem não foi garantido, nem concedido aquilo
que é de direito de todo e cada cidadão: direito a casa, alimentação, saúde, escola e
lazer. Ruim é supor que fatalmente estejam excluídos de pelo menos momentos de
felicidade e de amor. E excluídos de direitos, de valores, de bens, de ética, e moral... O
que temos visto é que não poucos muito ricos – ou que querem tornar-se muito ricos - se
excluíram da ética e da moral. Enquanto que muitos dos que foram excluídos da
riqueza, ou dos bens de primeira necessidade não se excluíram nem mesmo de
momentos de felicidade, da capacidade de amor, de solidariedade, de ética e de moral.
Leia-se "Mãe chama Rota e filho é fuzilado", no capítulo sobre o caso e o memorável
(contido no volume 3), para comprovar uma leitura preconcebida e outra não
preconcebida de excluído. Ou então, "A família feliz", analisado no presente capítulo,
onde, ao contrário, aparece todo o mito da felicidade absoluta. Ou, ainda, A hora da
estrela, de Clarice Lispector - aí observando-se como o narrador ironiza que Macabéa
não tenha consciência de sua infelicidade - e se acredita feliz - além de ter 'luxos'. A
noção de exclusão mais usual foi atribuída à revelia. O excluído foi excluído de - por
alguém, por um grupo: padece a exclusão. Quem exclui exerce ativamente o gesto
excludente. Quando a noção de exclusão é usada indiscriminadamente, quando todas as
discriminações são identificadas com a exclusão, elimina-se a radicalidade da noção de
exclusão. Um indivíduo, ou mesmo um grupo podem ser discriminados, sem chegarem
à mesma radicalidade de outro grupo de excluídos. A mulher discriminada não é
discriminada no mesmo grau nas diferentes classes e níveis sociais; nem nas mesmas
etnias.
O mito contemporâneo, segundo Roland Barthes, funciona recobrindo e
superpondo-se a outro signo anterior com um significado novo, naturalizado. Seu traço
fundamental é definir costumes ou traços culturais ou sociais como vindos desde
sempre, desde o início dos tempos, onde estavam em estado natural. São mitos do poder
instituído, construídos para a manutenção da hegemonia. São ideologia e não forma de
conhecimento. Os temas humanos e espirituais aparecem apenas enquanto estigmas
sobre o marginalizado. Na melhor das hipóteses, ecoam alguns mitos ancestrais.
138

Correspondem ao uso abusivo de uma forma, subvertida pelo poder instituído, ou que
quer se instituir, ou fortalecer, desqualificando o diferente. O Retrato do colonizado,
precedido pelo retrato do colonizador, de Albert Memmi, analisa comportamentos do
opressor e do oprimido (palavras fora de moda, mas não a sua realidade) com detalhe e
acuidade tais, que ficamos sem saber se o mito burguês não corresponde exatamente à
retórica do dominador (ou colonizador). Não se entenda uma estratégia retórica como
idêntica ao mito. Enquanto ideologia, o que a caracteriza é o uso das estruturas e
funções dos mitos nas mitificações – para os fins desejados ou pretendidos.
Chegados a este ponto, é impossível deixar de ver como a palavra 'mito' tem sido
usada nas acepções mais diferentes.

[...] Claude Lévi-Strauss fundamentou sua obra, Mythologiques, uma gênese do


pensamento, sobre a evidência de que um mito é percebido como mito por todos os leitores,
no mundo inteiro. Ao mesmo tempo, Georges Dumézil, publicando Mythe et épopée, no
alvorecer da sua terceira idade, confessava que jamais compreenderá a diferença entre um
conto e um mito224.

Como podem ser tão diferentes as acepções de mito e como podem ser tão
diferentes, enquanto função e produto, os mitos primitivos e gregos, por um lado e os
mitos contemporâneos? Por que é tão difícil diferenciar conto de mito, mito de lenda,
mito de mitificação?
A difícil diferenciação decorre da falta de uma conceituação mais matizada
destes termos, tendo em conta as suas funções. Além disto, vale recordar que os mitos
modernos são mitos escritos ou construídos por superposições de diferentes graus da
palavra e da imagem. Foram produzidos por adultos, por analogia com os mitos
originais. As mitificações de qualquer produto de consumo, quer da escrita, quer não,
têm como pressuposto que os interlocutores têm inscritos em si os outros mitos -
primitivos ou não - de cultura oral ou escrita, portanto paradigmas que lhes abrem o
caminho para que apreendam, enquanto norma e enquanto definição de existência,
aquilo que é quando muito um estado provisório.
Segundo Detienne, Lévi-Strauss discerne o mito dos 'mitismos':

224. Detienne, Marcel. A invenção da mitologia. Tradução de André Telles e Gilza Martins Saldanha da
Gama. Revisão técnica Junito Brandão e Roberto Lacerda. 2ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio e Brasília,
D.F.: UnB, 1998: 11.
139

[Ele] reconhece nos 'mitismos' um dos fenômenos a pôr entre parênteses o mito
como um gênero literário ou como um tipo determinado de narrativa; é descobrir a
diversidade das produções memoriais: provérbios, contos, genealogias, cosmogonias,
epopéias, cantos de guerra e de amor225.

'Mitismo' seria outro termo diferenciador. Detienne reúne em torno do mesmo


conceito de mitismo diferentes formas da oralidade, que ele enumera a seguir, na
mesma frase. Ele entende o mitismo como “produção memorial” e reúne textos de
formas muito diferentes, de funções diferentes e mesmo de cunhos diferentes.
Cosmogonia tem caráter filosófico ou para-filosófico: é narrativa que explica a origem
ou formação do mundo, do universo conhecido. Os provérbios são uma forma diferente
dos contos (maravilhosos), das genealogias (mais próximas da saga), das cosmogonias
(que não são uma forma, ainda que estejam presentes na forma mito), das epopéias. A
falta de diferenciação entre as formas favorece a confusão e dificulta o reconhecimento
das diferentes funções de cada forma, assim como as linhas de sentido imbricadas,
tramadas, assim como o jogo de dominâncias em cada texto ou enunciação.
Examinemos as diferentes acepções da palavra 'mito'. O verbete 2, do
"dicionário do Aurélio", registra: "Narrativa de significação simbólica, geralmente
ligada à cosmogonia, e referente a deuses que encarnam as forças da natureza e/ou de
aspectos da condição humana". Mito, na acepção 5 do Aurélio (idéia falsa sem relação
com a realidade) parte de uma concepção de que mito (na acepção 2) é uma noção falsa,
distante da realidade. Isto porque vê a realidade física como única, não percebendo
outras realidades, que podem ser as psíquicas, ou sociais. Convencionou-se tanto esta
compreensão do mito, que tem sido usada pelos autores citados e, para acrescentar mais
um, por Paul Ricœur também226.
225. Detienne 1998: 83.
226. Paul Ricœur (1977), ao fazer uma análise aguda da situação encontrável nas sociedades industriais
avançadas, considera-as caracterizadas por um conjunto de conflitos, ou de neoconflitos, como os chama:
a) Ausência de projeto coletivo:
Ilusões da dissidência: "todas as autoridades são o establishment": dissidência e grupusculização.
Tentações da ordem: "defesa avarenta de todo privilégio e apetite obsessional de segurança".
Medo: lei e ordem (nas democracias liberais).
"Cada um se apega àquilo que lhe parece conservar certa consistência, no seio
da confusão geral: família, métier, lazeres concebidos segundo a dimensão priva-
da.
b) O mito do simples
"Final de sonho de dominação da natureza"; "sonho de crescimento quantitativo
ilimitado dos gozos".
"Esgotamento do sonho de dominação".
"Sociedade neo-arcaica, artesanal e agreste, fracamente institucionalizada
c) Esgotamento da democracia representativa
140

O livro de Kolakowski trata deste outro tipo de acepção do mito. O estudo de


Roland Barthes também - só que ele cria uma nova palavra - mitologia - para diferenciar
conceptualmente de mito. Mito, na acepção 5, é equivalente a recobrimento da realidade
com outra noção, fabricada com diferentes finalidades - mas sempre e sobretudo
ideologizadora. São mitos assimilados, porque se apresentam como respostas às
inquietações de manutenção de poder e de conhecimento das relações humanas. O mito
é usado, também aqui, só que tortamente, como reprodução de uma resposta às
indagações que o homem faz ao universo. Como trabalhamos com uma noção de mito
de origem - ancestral - com características próprias e uma função fundamental, ambas
vinculadas ao desejo básico de encontrar respostas para uma pergunta formulada à
natureza biológica - vegetal, animal e humana - é preferível encontrar outra palavra que
designe este abuso ideológico descrito acima. A palavra cunhada por Barthes -
mitologia - seria perfeita se não levasse a um eventual mal-entendido. O sufixo 'logia'
vem do grego lógos, conhecimento, mas também 'palavra', 'tratado', 'estudo', 'ciência';
'que estuda', 'que trata': logomaquia, logogrifo. Quer, pois, dizer, estudo de, como em
biologia, fonologia, astrologia e outras palavras. Mitologia pode prestar-se para
significar "estudo de mitos". E não é este o sentido discutido acima. Por isto prefiro
mitificação, palavra que não preciso inventar e cuja acepção usual é "ato ou efeito de
mitificar", sendo mitificar equivalente a converter em mito; tornar mítico. Os exemplos
encontráveis no Aurélio Eletrônico deixam claro o gesto de arbítrio vinculado à palavra:
"Os fãs mitificam a pessoa admirada; Mitificaram o conflito de rua, dando-lhe ares de
heróica batalha". “Mitificação” exprimiria as ideologizações que recorrem a formas que
recobrem um signo, ou idéia, que revestem um conceito existente com outro,
apresentando o último como verdade absoluta, definitiva e eterna. A mitificação se
apresenta como produto da racionalidade, como construção lógica e tem uma
característica criticada por Derrida: o logocentrismo.

"Tudo se passa como se a tolerência mútua entre pessoas de palavra se convertesse


subrepticiamente em tolerância à injustiça e em cegueira em relação aos estados de violência, enquanto se
exacerbava a sensibilidade aos atos de violência" (p. 154). O próprio Ricœur cunha a expressão "mito do
simples" para designar a forte tendência, em um certo momento histórico, de se ansiar pelo retorno à vida
na natureza, à alimentação simples etc. Portanto, ele usa a palavra mito no lugar de mitificação e fica
parecendo que os mitos propriamente ditos têm as mesmas características e funções das mitificações. Isto
sem contar que, com um vocabulário diferente, o quadro sobre os 'neoconflitos nas sociedades
industrializadas avançadas" acabou sendo aplicado para definir o pós-moderno.
141

As regras de comportamento sugeridas ou induzidas pela mitificação dão a


ilusão de liberdade e de ação. O 'mito burguês' aproveita esta marca para funcionar com
outra acepção da função básica do mito original: ele é limitador da ação humana,
constrangida por normas e princípios. A diferença entre os limites propostos no mito e
na mitificação residem em que o mito apresenta o ser humano e seu excesso, enquanto
que a mitificação tolhe não a ação humana em geral, mas especificamente a ação de um
grupo determinado de seres humanos. O mito revela a medida e a desmedida - que, uma
vez ultrapassada leva à punição por forças maiores - a lei cósmica – a qual, na sua
equanimidade, também é econômica, levando o que era vida a outra forma de vida,
através da metamorfose. Assim explica a natureza psíquica e física.
Como a estrutura do mito nos é familiar desde o início de nossa vida, nos é fácil
aceitar a mitificação - que faz parte dos rituais quotidianos e de uma ideologia esparsa e
veiculada nos implícitos - não-ditos – das falas, dos livros didáticos, da publicidade
comercial, dos meios de comunicação de massa, de propaganda e de discursos políticos,
ou religiosos e até mesmo de estudos acadêmicos227, em que a palavra 'mito' não
costuma ser muito diferenciada. Apresenta-se como "valor" da sociedade. A mitificação
existe na medida em que está construída como se fosse um mito de origem ou mito
propriamente dito. A lógica astuciosa é que, sendo o mito de origem um relato ancestral
e que explicava a origem do mundo e a origem da natureza vegetal, mineral, animal,
como ele vem de tempos antigos, parece corresponder à perenidade. Isto facilitou que a
mitificação usasse o argumento da natureza e da origem em explicações de
características históricas, sociais, por vezes econômicas. Então, uma mitificação
contemporânea teria que ser construída como se esclarecesse a origem do mundo e
como se estivesse inscrita em uma temporalidade tão ancestral quanto a do mito
primitivo. A naturalização é fruto desta astúcia. Os mitos primitivos configuram
vontade de significação, sendo eles matrizes de valores culturais não manipulados. Eles
explicavam o que não era conhecido e tinham a sabedoria de perceber o mundo em
transformação. Vimos que pelo menos os mitos de origem, tanto os mitos gregos, como
os indígenas, reconhecem a metamorfose, ou transformação. É exatamente o contrário
do que acontece com a naturalização - característica da mitificação -, que não prevê,
227. Serve para caracterizar a cultura e a literatura portuguesas, freqüentemente, o 'mito da saudade', ou
o sebastianismo entendido enquanto 'mito do resgate futuro', espécie de utopia mítica. São nitidamente
construções arbitrárias, que se prestaram para autorizar o criticável, ou para resgatar o perdido. Fazem
parte do universo das mitificações, que precisam ser claramente diferenciadas do mito propriamente dito.
142

nem pressupõe mudança, muito pelo contrário. Sua característica é a imobilidade e a


imobilização, correspondente à cristalização. A mitificação mostra como se forja uma
mentira - às vezes bem intencionada...
Possivelmente porque os mitos de origem preexistiram a estes valores, Propp
sugeriu uma linha de desenvolvimento, sendo cada etapa equivalente a elaborações cada
vez mais dessacralizadas, ainda que continuassem sendo uma experiência que
transcendia a finitude e a contingência, não se esgotando na sua descrição. É uma
inferência compreensiva, fundamentada em explicações científicas. Não é o caso do
chamado 'mito burguês'. Ele até se apresenta como crença compreensiva; mas não o é.
O 'mito burguês' não responde a perguntas sobre a origem do mundo natural, nem a
perguntas sobre a vida e a morte, ainda que, sendo ideológico, é social na medida em
que incide sempre sobre a existência humana diante de um quadro de interesses de uma
classe social.
O abuso do 'mito' contemporâneo tem duas naturezas: uma consiste em fingir-se
uma leitura metafórica do mundo. A segunda, em usar a palavra mito com uma acepção
a rigor espúria. As duas naturezas se reúnem em um mecanismo fundamental.
Voluntária e arbitrariamente, a sabedoria e o conhecimento primitivos são substituídos
por uma astúcia mercantilista, que não apanha dados de realidade natural para
estabelecer uma relação de contigüidade ou semelhança com outro fenômeno, social,
psíquico, ou natural. Ao contrário, cria uma falsa homologia entre aspectos irrelevantes
e mentirosos. Parte de uma falsidade. O 'mito burguês', ou o 'mito contemporâneo',
corresponde a um sofisma.

Qual a relação entre a forma e os conteúdos das mitificações? A forma do mito


parte da constatação de um elemento da natureza física do mundo, ou do ser humano - e
de sua natureza psíquica - e define os limites da ação humana, coibidos para não serem
ultrapassados. A transformação como punição não é tema, nem recurso do 'mito
contemporâneo', a não ser em "As árvores", relato de livro didático. Aí a ameaça de
punição do indivíduo visa o benefício de um grupo e não o da sociedade como um todo.
Neste sentido, a mitificação apresenta uma característica cujo nome serviu para
definir o mito primitivo: o utilitarismo. Malinowski entendeu o pensamento primitivo
(indígena) a partir de uma ótica funcionalista (já explicitado acima); segundo ele, a
143

construção de um mito ancestral seria presidida por um pensamento utilitarista. Ainda


que o funcionalismo da mitificação represente uma necessidade não primária e só de um
grupo reduzido da sociedade, é nitidamente utilitarista. Seu utilitarismo reside até na
simplificação da construção do que parece um mito: por superposição das características
constitutivas de um signo sobre outro, cujos elementos básicos foram apagados. Esta
descrição corresponde à mitificação. Não ao mito. Os mitos de origem pretendem
explicar uma origem: digamos da flor jacinto. O que é explicado não é apagado, muito
pelo contrário; a explicitação de sua existência é a razão de necessidade do mito. Sua
origem é explicada através de uma narrativa que escolhe uma personagem cujas
características se prestam como alegoria da flor. Esta semelhança é uma casca que
autoriza o relato não utilitarista a incluir um mecanismo psíquico e sua trajetória.
Poderíamos supor que seria a expressão de um pensamento afetivo, o que
corresponderia à hipótese de Lévy-Bruhl sobre o pensamento primitivo, o qual, como já
vimos, seria determinado por emoções e afetos. Ainda que haja a expressão de afetos e
emoções no texto de Ovídio, o poeta tem tal consciência do valor e peso da palavra, que
não podemos deixar de reconhecer o forte peso da linguagem e da construção artística.
Trata-se de uma forma de conhecimento que, por expressar o pensamento intelectivo,
não pode ser vista como i-lógica (outra característica atribuída ao mito primitivo).
A diferença entre mitificação e mito reside na notável simplificação e
dicotomização encontrada na mitificação e não no mito. Aceitemos a diferença
conceitual de mitificação e de mito, mas examinemos, ainda, o problema das muitas
acepções da palavra mito.
A diferença de acepções da palavra e da forma mito e a de funções entre o mito
originário e a pluralidade de variações de sentido do mito, enquanto máscara de
ideologia ou mesmo de discriminação, tem levado a confusões e à tergiversação do
sentido primeiro do mito. A origem possível deste sentido negativo, crítico, de 'mito',
que leva à sua rejeição, reside em tempos já ancestrais, no momento do surgimento da
filosofia, que definiu a oposição entre logos e mythos, associando o logos à escrita e o
mythos à oralidade. A dissociação entre os dois pares de conceitos tem levado até
nossos dias a equívocos. Podemos até considerar que há predominâncias de um ou outro
(logos, ou mythos) em diferentes grupos humanos e momentos da história, mas a rigor,
desde a existência dos pares, eles coexistem: não se excluem. Coexistem sem ordem
144

nem hierarquia. Em situação de caos de devires, de caos de sentidos, que poderão ser
acessados a qualquer momento. Por isto convive o absurdo com a racionalidade, seja o
absurdo a guerra, sejam as atrocidades, seja o arbítrio.
O convívio com a escrita não elimina o mito, não o afasta, nem o enfraquece.
Ele persiste, até quando tergiversado. As funções do mito – não valorizáveis, ou
avaliáveis, porque apenas são, como o mito é – vêm sendo utilizadas para fazer aceitar
as mitificações, para que sejam absorvidas e aceitas. Trata-se de um ab-uso do mito. O
conhecimento e a freqüentação com mitos permanece até nossos dias, assim como
mantemos rituais de iniciação, de festejo do tempo cíclico, de morte e ressurreição e
outros. Em qualquer das acepções apresentadas, com quaisquer variações, o mito
continua fornecendo campos de referência para a conduta humana e podendo conferir
sentido e valor à existência, (assim como pode ser usurpado, deformado, em qualquer
sociedade, regime e sistema, servindo para a ideologização alienante). Não se encontra
limitado por uma moldura histórico-religiosa de fatos passados de cultura, nem é
aberrante, selvagem, infantil ou ato puramente intuitivo. Mythos e logos existem em
qualquer cultura, da escrita ou ágrafa, do passado ou do presente. São inatos, fazendo
parte e servindo de paradigma estruturante dos universais (imaginário, simbólico e
efabulação) sempre presentes em cada indivíduo, no presente sempre reatualizado de
cada ser humano, assim como no passado da humanidade.
145

Anexos
4.1. Rampsinitos
146

A Protée succéda Rhampsinite...


La légende que les prêtres de Memphis racontaient il y a vingt-trois siècles au
voyageur d'Halicarnasse, un autre voyageur la retrouvait plus tard, au moins
partiellement, dans la Grèce elle-même. Trophonios et Agamèdès, raconte Pausanias
(Pausanias, IX, 37, 3, étaient les deux fils du roi d'Orchomènes Erginos,[...]. Hyrieus,
roi d'Hyria sur l'Euripe [aqui vem o relato de como Hirieu convidou os dois irmãos
arquitetos a construir-lhe um palácio que abrigasse seu tesouro etc, até que Agamedes
caiu na cilada]. T. lui coupa la tête, craignant que, le jour venu, il ne fut mis à la torture
et ne révélât son complice. Mais comme il sortait, la terre l'engloutit dans le trou qu'on
appelle le trou d'Agamèdès». Cette histoire, qui est l'une des explications de l'antre
célèbre de Trophonios, est certainement bien plus ancienne en Béotie que l'époque de
Pausanias; peut-être était-elle déjà connue de l'auteur de l'hymne homérique à Apollon;
mais en tout cas, avant Pausanias, elle avait été racontée, avec quelques différences, par
l'historien Charax de Pergame dans un fragment que nous a heureusement conservé le
scholiaste d'Aristophane (Sur le vers 508 des Nuées, où il est simplement parlé de
Trophonios). Voici ce fragment: "Agamèdes, roi de Stymphyle em Arcadie, épousa
Epicaste; il avait un fils bâtard, Trophonios. Son fils et lui surpassaient tous les hommes
de leur temps par leur talent d'artistes: ils entreprirent la construction du temple
d'Apollon à Delphes, et bâtirent" à Augias, roi d'Elide, un trésor pour enfermer son or.
Ils y laissèrent une pierre non rejointée, au moyen de quoi ils entraient la nuit dans le
trésor et y volaient à leur gré, en compagnie de Cercyon, qui était le fils légitime
d"Agamèdès et d'Epicaste. Augias était dans un grand embarras, quand il eut l'idée de
s'adresser à Dédale, qui séjournait chez lui, venant de s'enfuir de chez Minos, et de le
supplier de rechercher le voleur. Dédale plaça des pièges, dans lesquels se prit
Agamèdès. Mais Trophonios lui coupa la tête pour qu'on ne pût le reconnaître et s'enfuit
avec Cercyon à Orchomène. (Ce qui suit n'a plus de rapport avec notre récit, si ce n'est
qu'une mention de Callimaque, citée par Charax, peut faire croire que ce poète
connaissait le récit sous cette même forme. La fuite de Trophonios est évidemment une
altération récente et malheureuse; il était bien inutile, de couper la tête d'Agamèdès
puisque la disparition de ses deux fils devait infailliblement le faire reconnaître. Pour
147

comble d'invraisemblance, Dédale et Augias le poursuivent). (In R. Köhler. Kleinere


Schriften. Ed. Bolte, t.1, apud Paris, Gaston. Le Conte du Trésor du Roi Rhampsinite.
Etude de Mythographie Comparée. Annales du Musée Guimet. Publié sous la direction
de M. Jean Réville. Revue de l'Histoire des Religions. Paris; Ernest Leroux, 1907: 4).

4.2. Mais Rampsinitos: o relato búdico

Paris (1907) refere:"Récit bouddhique translaté du sanscrit en chinois vers l'an 266 de
notre ère et traduit par M. E. Huber dans le Bulletin de l'École Française d'Extrême
Orient, t. IV (1904), p. 704. Dans cette version [...] les deux voleurs sont un oncle et un
neveu, tisserands de leur métier (comme dans le conte tibétain); ils pillent le trésor du
roi. L'oncle est pris, à peu près comme dans le récit tibétain; le neveu lui coupe la tête.
Les épisodes où le neveu réussit à brûler le cadavre de son oncle et à enlever les cendres
sont analogues à ceux du récit tibétain; cependant le passage de celui-ci où le voleur
pleure sur le cadavre décapité avant de le brûler, manque dans le récit indien. En
revanche, l'épisode de la princesse est mieux conservé dans celui-ci que dans la version
tibétaine; il présente une grande analogie avec le récit d'Hérodote (le détail du bras
coupé d'un cadavre que le voleur tend à la princesse s'y retrouve)".
4.3. Rampsinitos no livro de Heródoto
148

Em Heródoto, livro II 121, o rei encomenda a obra a um arquiteto:

L'homme chargé du travail, qui avait de méchants desseins, imagina ce qui suit
(aqui existe a seguinte nota ao pé de página: "Sur le caractère du conte qui va suivre,
dont la première partie a en Grèce son pendant exact dans l'histoire de Trophonios et
Agamédès [Pausanias, IX 37], cf Notice, p. 46 et 50)"
O arquiteto é o pai de dois jovens, a quem ele revela a sua astúcia de deixar uma
pedra móvel que daria acesso à câmara do tesouro.
"Quand il fut mort, ses fils n'attendirent pas longtemps pour se mettre à l'oeuvre.
Ils se rendirent de nuit près du palais, repérèrent la pierre dans le revêtement de l'édifice,
la remuèrent sans peine à la mais, et emportèrent de grosses sommes. Le roi, étant venu
à ouvrir son trésor, s'étonna de voir qu'il manquait de l'argent dans les vases; et il ne
savait qui accuser, vu que les scellés étaient intacts et la chambre fermée. Il ouvrit deus
fois, trois fois, et chaque fois constata que l'argent diminuait (car les voleurs ne
cessaient de piller); voici donc ce qu'il fit. Il ordonna qu'on fabriquât des pièges, et plaça
ces pièges autour des vases où l'argent étaie contenu".
Um dos irmãos penetra no interior e é pego pela armadilha. Segue o que já
conhecemos, até o ponto em que o irmão sobrevivente e assassino e ladrão astutamente
recupera o corpo do irmão para poder enterrá-lo.
Le roi, quand on lui annonça que le cadavre du larron avait été volé, s'irrita fort;
et, voulant à tout prix découvrir qui pouvait bien être l'homme qui déployait cette
ingéniosité, il fit ce que voici, qui pour moi est chose incroyable. Il plaça sa propre fille
dans une maison de débauche, après lui avoir enjoint d'accueillir indifféremment tous
les visiteurs et, avant de s'unir à eus, d'obliger chacun d'eux à lui dire ce qu'il avait fait
dans sa vie de plus ingénieux et de plus scélérat; et, si quelqu'un lui racontait ce qui
s'était passé pour le voleur, de l'appréhender et de ne pas le laisser sortir. La fille
exécutait ce qui lui avait été prescrit par son père; le voleur, ayant compris pourquoi
cela se faisait et voulant rendre des points au roi en fait d'astuce, fit ce que voici. Il
coupa à l'épaule le bras d'un homme qui venait de mourir, et se mit en route en tenant ce
bras sous son manteau; il entra près de la fille du roi; et, quand elle lui posa les mêmes
149

questions qu'aux autres, il déclara qu'il avait accompli son action la plus scélérate le jour
où il avait, dans le trésor du roi, coupé la tête à son frère pris au piège, et son action la
plus ingénieuse le jour où il avait enivré les gardes et détaché le cadavre de son frère qui
était pendu."
A jovem tenta segurá-lo pelo braço, mas não é o seu o braço que ela segura.
[..] Quand on eut rapporté encore cela au roi, il fut émerveillé des ressources
d'esprit et de l'audace de l'homme; pour en finir, il envoie dans toutes les villes et y fait
proclamer qu'il accorde à cet homme l'impunité et lui promet de grands dons s'il se
présente à ses yeux. Le voleur eut confiance et vint le trouver; Rhampsinite lui témoigna
beaucoup d'admiration et lui donna en mariage sa fille dont nous avons parlé comme à
l'homme du monde qui en savait le plus long, les Egyptiens l'emportant sur les autres, et
lui sur les Egyptiens. (Hérodote. Histoires. Livre II - Euterpe. Texte établi et traduit par
Ph.-E. Legrand. Paris: "Les Belles Lettres", 1948. [Col. Des Universités de France]:
146-151.

4.4. As Amazonas
150

Posso contar, a respeito dos selvagens Worisiana, a velha história de como a sua
fama guerreira e a sua força começou na ignomínia. Uma vez a mulher de um cacique,
To-eyza, foi infiel ao seu marido. Mas ela não estava nem um pouco vexada com a sua
culpa. Se o seu marido era altivo, ela o era ainda mais.
No lugar do banho das mulheres, To-eyza disse: "Há quem diga que o casamento
é uma proteção; eu acho que é uma submissão indecente. Preferiria estar morta! O que
podemos saber sobre o amor, nós, que somos entregues pelos nossos pais? Vivemos
todos os nossos dias atormentadas. Trabalho hoje e trabalho amanhã, sempre trabalho e
sofrimento. Oponham-se comigo a esta ignominiosa servidão! Vejam lá longe a onça
preta! É o meu amante em seu disfarce. Homens como ele podem nadar facilmente para
o lado de cá e nos libertar! Clamem o seu nome! 'Walyarima' será o nosso lema!
Guardem-no bem, vocês, que querem ser libertadas da servidão dos seus maridos!"
Três homens tinham visto Walyarima do bosque próximo e ouvido tudo, e foram
e o contaram ao seu cacique "To-eyborori".
Pela manhã o cacique disse, calmo, para as mulheres: "Temos uma caçada difícil
à nossa frente. Preparem beiju, para não passarmos fome!"
Quando elas haviam ido embora à procura de raízes, ele foi até o rio. Ali ele
deixou alguns rapazes tomando banho, enquanto se escondia com os outros homens e
lhes revelava o seu plano sinistro.
Os rapazes que tomavam banho chamaram "Walyarima!", gritaram o nome
odiado e estenderam os seus longos cabelos sobre a água. Então veio Walyarima,
enquanto em cada arco uma flecha esperava por ele.
Quando o viu chegar, o cacique avançou ao seu encontro na correnteza e o
perfurou com a sua poderosa lança. Os outros vieram nadando e acabaram com o
moribundo. Cheios de ira levaram os seus restos para a oca das mulheres. Lá o
penduraram com desprezo de um varal com a cabeça para baixo. As mulheres vinham
andando uma atrás da outra, cada uma com a sua carga. Os homens as observavam com
olhar tenebroso. Horrorizadas, as mulheres retrocederam diante do que viram. A última
a entrar foi To-eyza. Sangue pingou sobre a sua mão. Lá estava ela sobranceira, alta e
bela. Até o cacique admirou a sua presença de ânimo.
151

Depois ele disse: "Nós vamos caçar. Apressem-se e preparem beiju! Assem-no
ainda esta noite! Não podemos esperar. Temos que levar beiju para cinco dias. " -
"Assim seja!" disse ela. "Tragam a carne! Nós vamos preparar-lhes paiauaru bem forte,
mais do que nunca, e nessa noite vamos querer dançar ao seu lado!"
No coração da orgulhosa To-eyza ardia uma ira coruscante. A gota de sangue
havia despertado nela o pensamento da vingança, e a sua força demoníaca se espraiou
pelas outras.
"Os nossos corações clamam por vingança, os corações de todas nós", ela disse.
"Os homens lhes causaram cruel opróbrio. Não perguntem! Eu as guiarei. Todas vocês
serão livres!"
O cacique voltou da caçada; os homens vinham com pesadas cargas. Traziam
animais e aves, algumas defumadas, outras frescas. Havia tudo em abundância. Então
houve uma festança! As mulheres haviam preparado muito paiauaru. Todos os homens
beberam. Depois descansaram, até que os sedentos pediram mais. Então cada mulher
entregou humilde e amavelmente uma cabaça, cheia até a borda com uma bebida
funesta. Assim To-eyza havia ordenado. Tinham misturado manipueira na bebida, e o
terrível veneno trouxe a morte para todos. Logo os homens empalideceram na sua luta
com a morte. Em vão gritaram por socorro. Ao chão caíram os guerreiros.
"Alegrem-se agora" exclamou To-eyza. "Mulheres, agora vocês são livres!
Nunca mais as dominará um marido; ninguém há de bater em vocês, oprimir e
incomodar, se me seguirem." Algumas haviam fugido com meninos. As outras
dançaram com alegria forçada varando a noite, cada uma delas com loucura no coração.
Pelas florestas marchava em ordem a tropa das mulheres. Carregavam redes,
mantimentos e armas. Estavam preparadas para uma pesada marcha, para um país
longínquo. Todas elas haviam jurado obediência à sua líder, à esbelta To-eyza.
Seguiram pelo seu caminho, às vezes lutando, às vezes fugindo, dependendo apenas de
seus arcos.
Mais de uma mulher insatisfeita juntou-se a elas. Proclamavam a libertação,
chamavam-se "o povo das mulheres" e tratavam todos os maridos como inimigos.
Enxotavam os homens ou os matavam e diziam para as mulheres: "Vocês e suas filhas
são bem-vindas. Se quiserem guardar os seus filhos, deixamo-las aqui com eles."
152

Assim continuaram marchando, e outras as seguiram e aumentaram a tropa. A


loucura tomou conta das mulheres como uma epidemia.
Entrementes, amigos haviam achado as vítimas envenenadas; estremeceram ao
verem as ossamentas, afastaram os urubus que estavam sobre os restos e os enterraram.
Depois foram atrás das mulheres. Avançaram com precaução para ultrapassá-las,
mas quando conseguiam fazer prisioneiras, as mulheres preferiam morrer.
Logo chegaram a florestas densas e escuras. Lá as mulheres encontraram
proteção na folharada. Os homens viram caírem os seus mais bravos guerreiros.
Rolavam em seu próprio sangue, atingidos pelas flechas das mulheres. Então eles se
detiveram e um homem sábio disse: "O que temos a ganhar? De que serve ao homem
uma mulher que o vê como inimigo? Deixem-nas ir!"
Assim as mulheres continuaram a sua marcha, seguindo o sol poente. Passaram
com felicidade por todos os perigos e se assentaram como estranhas, quando a sua
viagem acabou.
Lá, To-eyza ficou sendo a sua rainha. Ela dava ordens claras: "Os homens
devem nos ser bem-vindos como amantes, quando chegam até nós como viageiros, mas
nenhum deles pode ficar conosco. Os seus filhos, os que parirmos, nós os mandaremos
embora. Mas se parirmos meninas, iremos criá-las com alegria como nossas
sucessoras!"
Passaram-se anos desde então. As suas filhas obedecem ainda à mesma lei.
Ainda contam nos montes do Parimã a história de Walyarima.

Koch-Grünberg: op. cit. 1927: 90-93 (relato nº 34).


Trad. de George Bernard Sperber

4.5. Por que o sol anda mais devagar

Caherero, uma menina carajá, casou com o rico Chocroé. Foi mandada para a
floresta, para pegar lenha. Porém o sol correu tão depressa que a noite irrompeu antes
dela terminar. Então a menina se queixou com a sua mãe: "Para que casei com um
homem tão rico e poderoso, se estou sendo obrigada a trabalhar tão depressa? Eu não
153

agüento mais. Faça com que o sol ande mais devagar!" - A mãe mandou o filho sair. Ele
conseguiu quebrar uma perna do sol. Desde então ele anda mais devagar.
Koch-Grünberg: op. cit. 1927: 198 (relato nº2).
Trad. de George Bernard Sperber

4.6. A tartaruga e o tapir

A tartaruga é uma pessoa boa, não faz mal a ninguém.


Um dia ela estava embaixo de um taperebá, para fazer a sua refeição. Aí chegou
o tapir e lhe disse: "Vá embora, tartaruga, dá o fora daqui!"
A tartaruga respondeu: "Não, eu não vou embora, porque esta é a minha árvore!"
"Vá embora, tartaruga, senão eu vou pisar em você!"
"Pode vir, quero ver só se você é homem!"
O maldito tapir pisou na tartaruga com as suas patas e enterrou a infeliz na lama.
Depois foi embora. A tartaruga disse para si: "Espere só, maldito! Quando vier o tempo
das chuvas eu voltarei a sair. Aí irei atrás de você até encontrá-lo, e então você vai
pagar pelo que me fez agora!"
Quando veio o tempo das chuvas, a tartaruga ficou livre e foi à procura das
pegadas do tapir. Encontrou uma pegada e lhe perguntou: "Quanto tempo faz que o seu
senhor passou por aqui?"
A pegada respondeu: "Já faz bastante tempo", e a tartaruga continuou o seu
caminho.
Um mês depois ela encontrou uma outra pegada e lhe perguntou: "Faz quanto
tempo que o seu senhor a pisou?"
A pegada respondeu: "Faz muito tempo."
A tartaruga continuou o seu caminho. Depois de passado um mês ela encontrou
uma outra pegada e perguntou: "O seu senhor ainda está muito longe?"
A pegada respondeu: "Daqui a dois dias você vai encontrá-lo."
"Bah!", disse a tartaruga. "Estou cansada de correr atrás dele. Talvez ele tenha
ido para muito longe."
"Por que você o está procurando?" perguntou a pegada.
154

"Porque eu tenho que falar com ele", respondeu a tartaruga.


"Então vá até aquele braço de rio!" disse a pegada. "Lá você verá o meu grande
pai!"
“Está bem, lá vou eu", disse a tartaruga.
Quando chegou ao braço do rio, perguntou-lhe: "Rio, onde está o seu senhor?" O
braço de rio respondeu: "Não sei." A isso respondeu a tartaruga: "Por que você fala
comigo desse jeito?"
"Eu falo com você desse jeito," disse o braço de rio, "porque eu sei o que o meu
pai lhe fez."
"Deixe estar," respondeu a tartaruga, "eu vou encontrá-lo logo assim mesmo.
Adeus, rio! Você só vai me ver com o cadáver do seu senhor!"
"Não o incomode", disse o rio, "deixe-o dormir!"
"Quer dizer que ele está dormindo!" respondeu a tartaruga. "Oh! Agora estou
muito satisfeita. Até logo, rio!"
O braço de rio respondeu: "Cuidado, tartaruga! Você vai ser pisada para dentro
da terra de novo!"
"Eu não sou pedra, para ser enfiada na terra!" disse a tartaruga. "Agora quero ver
quem disse que era mais forte do que eu. Muito bem, rio, eu vou-me embora!"
A tartaruga caminhou ao longo do rio, à procura do tapir, e o encontrou: "Ah,
você está aí! Quer dizer que o encontrei," disse a tartaruga. "Agora vamos ver, se eu sou
homem!" Antes de se lançar sobre ele, disse: "O fogo, dizem, arde em toda parte!" -
Com isso ela cravou os dentes com toda força no escroto do inimigo. O tapir acordou e,
sentindo-se perdido, gritou: "Piedade, tartaruga, piedade! Me largue!"
"Eu não vou largar você," disse ela, "porque quero ver a sua força!"
"Então vou embora", disse o tapir e foi até o braço do rio, onde morreu após três
dias.
A tartaruga exclamou: "Ora veja! Bem que eu o matei, não é? Agora vou chamar
os meus parentes, para comer você!"

Koch-Grünberg: op. cit. 1927: 162-164 (relato nº57).


Trad. de George Bernard Sperber
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Vergrößerter Nachdruck der zweibändigen Erstausgabe von 1812 und 1815 nach dem
Handexemplar des Brüder Grimm-Museums Kassel mit sämtlichen handschrifftlichen Korrekturen
und Nachträgen der Brüder Grimm sowie einem Ergänzunsheft: Transkriptionen und Kommentare
in Verbindung mit Ulrike Marquardt von Heinz Rölleke. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht,
1986. (Cf. 1ª ed. de 1812 e 1815).
GRIMM, Jakob u. Wilhelm (gesammelt durch die Brüder Grimm).. Kinder- und Hausmärchen. 2
Bd. Ausgabe letzter Hand mit den original Anmerkungen der Brüder Grimm. Mit einem Anhang
sämtlicher, nicht in allen Auflagen veröffentlichter Märchen und Herkunftsnachweisen
herausgegeben von Heinz Rölleke. Stuttgart: Reclam, 1980-82. (Cf. 7ª ed. Göttingen
Dieterichschen, 1857).
GRIMM, Jakob u. Wilhelm. Kinder- und Hausmärchen. 1 Aufl. Nach der zweiten vermehrten und
verbesserten Auflage von 1819, Textkritisch revidiert und mit einer Biographie der Grimmschen
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muitos sermões & práticas espirituaes, que servem para muitas festas do anno. Vistas e cotejadas
com so seus originaes authenticos, pelo Pe. Frey Diogo de Rosayro, da ordem de Sam Domingos.
Agora nesta ultima impressam emendado com muita diligencia, & acrescentado de novo algumas
vidas de Sanctos, como se verá na Taboada. Com licença do Conselho geral da Sancta Inquisição
& do Ordinario. A custa de João Despanha & Miguel Darenas Livreiros. Com privilegio real:
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Índice do Volume II
169

1. Noção de mito e o mito grego 02


1.1. O mito grego na tradição cultural ocidental 28
1.2. Um mito grego na literatura:
S. Bernardo, de Graciliano Ramos e o conceito de recapitulação 37

2. O mito primitivo 65
2.1. O mito indígena 65
3. Outra visão do mito, ou o mito contemporâneo: A teoria de Roland 103
Barthes
3.1. Características (ilustradas à brasileira) do mito burguês, 105
segundo Barthes
3.1.1. A “ordem estabelecida” 105
3.1.2. A perda do sentido histórico 113
3.1.3. A perda da noção e identidade pessoal 116
3.1.4. Tautologia 128
3.1.5. O medo da escolha. (O nem-ismo barthesiano) 130
3.1.6. Quantificação da qualidade 131
3.1.7. Concepção estática do mundo (imobilismo) 132
3.1.8. Usos dos termos mito e mito contemporâneo 133
4. Anexos 143
4.1. Rampsinitos 143
4.2. Mais Rampsinitos: o relato búdico 144
4.3. Rampsinitos no livro de Heródoto 145
4.4. As Amazonas 147
4.5. Por que o sol anda mais devagar 149
4.6. A tartaruga e o tapir 150
5. Bibliografia 152
6. Índice 164

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