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Ficção e razão:
Uma retomada das formas simples
2º vol.
Presença do mito
UNICAMP
Instituto de Estudos da Linguagem
Departamento de Teoria Literária
2
2003
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Introdução
O mito conta com as mais diferentes definições, razão pela qual a palavra mito
tem-se prestado para as noções mais diferentes, a ponto de ser difícil de encontrar
conceitos comuns aplicáveis a ele.
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1. Vide bibliografia.
2. Por outro lado, o Vocabulário de Filosofia aborda o mito sob outro aspecto e desconhece, por seu
turno, uma parte de sua autonomia. O mito, diz-nos a primeira frase, é uma concepção da vida e da
natureza, uma interpretação da natureza. Mas o mito constitui apenas um elemento da religião, numa fase
determinada da sua evolução, e só assim é possível compreendê-lo. A segunda frase ensina-nos que o
mito contém uma cosmovisão "primitiva", sem especificar se devemos entender "primitivo" da acepção
de "original, simples, não elaborado", ou no sentido de "rudimentar", sendo possíveis os dois significados,
segundo Eisler. De qualquer modo, esse "primitivo" faz novamente do mito uma fase preliminar - não
preliminar da História mas da Filosofia - uma "protofilosofia"; mas, ao mesmo tempo, faz do mito a
origem do "desenvolvimento" da ciência e da filosofia. (Jolles 1976: 84).
3. Jolles 1976: 85.
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procurando, com isto, convencer o leitor-ouvinte acerca da verdade daquilo sobre o qual
se fala.
Sua forma corresponderia à resposta fornecida pelo oráculo (portanto pela
divindade) a uma pergunta formulada pelo homem. Esta resposta (com pergunta
normalmente subentendida) tem um pressuposto: o de que, tendo como fonte o oráculo,
corresponde a uma predição implícita. Trata-se, nesta perspectiva, de verdade
inquestionável que relaciona o passado e o futuro, apontando para o sentido de destino,
irremissível, da existência humana.
O ser humano é obrigado a enxergar o seu limite e a sua fragilidade; precisa
reconhecer que é finito e destrutível, mesmo sendo herói ou semi-deus. Como nas
linguagens cifradas, as falas do oráculo (ou de videntes e parapsicólogos), apresentam o
conjunto de símbolos como chave para o entendimento do que não está expresso. Esta
simbologia tem um valor correlato: cada um dos elementos simbolizados faz parte de
uma cosmogonia. Os objetos referidos no mito estão carregados de um poder implícito e
encarnam a totalidade da forma representada. Este é o seu sentido holístico.
Apesar deste sentido de totalidade de cada mito - ou talvez exatamente por isto -
o conjunto de mitos não chega a representar um sistema completo e abrangente,
esclarecedor de todo o universo e que desvendaria os seus mistérios para aqueles que
têm acesso a este conjunto. Cada mito, ainda que constate apenas um fenômeno e tenha
apenas uma resposta, sendo holístico apresenta o evento examinado e a generalização
que, partindo do evento, aponta para uma explicação do universo. A resposta, que
examina o constante e o múltiplo, converte-os em conjunto num evento único, onde
ambos encontram o sentido de sua multiplicidade e de sua constância4. Pergunta e
resposta são construídos em uma unidade a partir da curiosidade do homem, cujos
conhecimentos não são suficientes para explicar o que observou, mas que propiciam
"uma configuração simultaneamente sólida e dinâmica no seio do evento, que se torna
então destino e predestinação"5.
O mito explica um fenômeno através de uma narrativa, cujos aspectos
desconhecidos - misteriosos - assumem caráter mágico. A ilusão de conhecimento é
construída a partir da homologia entre os diferentes fenômenos naturais.
O que muitos não sabem - é que os vestígios desses [deuses gregos e] "quejandos" se
alinham ao longo dos muros de nosso sistema interior de crenças, como cacos de cerâmica
partida num sítio arqueológico9.
6. [...] esse imenso e cacofônico coral começou quando nossos primeiros ancestrais contaram histórias
uns aos outros, a respeito dos animais, que eles matavam para comer, e a respeito do mundo sobrenatural,
para onde os animais pareciam ir quando morriam. "Lá fora, em alguma parte", para além do plano
visível da existência, estava o "senhor dos animais", que exercia sobre os seres humanos o poder de vida
ou morte se ele deixasse de mandar de volta as feras, para serem novamente sacrificadas, os caçadores e
sua prole morreriam de inanição. Por isso as sociedades primitivas aprenderam que "a essência da vida
subsiste graças ao matar e comer; esse é o grande mistério que os mitos têm que enfrentar". A caça
tornou-se um ritual de sacrifício, e os caçadores encenavam atos de expiação diante dos espíritos dos
animais que partiam, esperando coagi-los a retornar, para serem sacrificados de novo. As feras eram
vistas como enviadas do outro mundo, e Campbell admitiu "um mágico, maravilhoso acordo" gestando-se
entre o caçador e a caça, como se eles estivessem aprisionados num círculo "místico atemporal", de
morte, sepultamento e ressurreição. Sua arte - pinturas nas paredes das cavernas - e sua literatura oral
deram forma ao impulso que passou a se chamar religião.
Quando estes indivíduos primitivos passaram da caça ao plantio, as histórias que contavam para
explicar os mistérios da vida mudaram, também. Então, a semente se tornou o símbolo mágico do ciclo
infinito. A planta morria, era enterrada e sua semente renascia. Campbell mostrou-se fascinado pelo fato
de esse símbolo ter sido incorporado pelas grandes religiões do mundo, como a revelação da verdade
eterna - a vida provém da morte, ou, como ele dizia: "A bem-aventurança provém do sacrifício".
(Campbell 1990: XI).
7. "A causa secreta de todo sofrimento é a própria mortalidade, condição primordial da vida. Quando se
trata de afirmar a vida, a mortalidade não pode ser negada". Campbell 1990: VII.
8. O objetivo último da busca não será nem evasão nem êxtase, para si mesmo, mas a conquista da
sabedoria e do poder para servir aos outros. (Campbell-Moyers 1990: VIII).
9. Campbell-Moyers 1990: VIII.
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"... o mito conta uma história sagrada; relata um acontecimento que teve lugar no tempo
primordial, no tempo fabuloso das origens. Por outras palavras, o mito conta como, graças
aos atos dos seres sobrenaturais, uma realidade teve existência, quer seja a realidade total, o
Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento
humano, uma instituição. É, pois, sempre uma narrativa de uma criação: conta-se como
qualquer coisa foi produzida, como começou a ser. O mito não fala senão naquilo que
aconteceu realmente, naquilo que se manifestou completamente, as personagens do mito
são Seres Sobrenaturais"11.
Esta visão plural do mito servirá para analisar alguns deles em especial, partindo
da hipótese de que a estrutura narrativa do mito tem características próprias, não direta e
obrigatoriamente identificáveis com o rito, como propõe Propp.
Ainda que estejam dentre os primeiros registros conhecidos, os mitos pertencem
ao campo da ficção, portanto do imaginário, diferente da reflexão acerca de
propriedades abstratas de objetos físicos, que ocuparão inicialmente os objetivos da
filosofia, ou da doxa12. Isto não impede que este imaginário tenha um poder de intuição
e compreensão para além da ciência, capaz de encontrar sentidos - inclusive holísticos -
para aspectos ou dados empíricos que a ciência ainda não conseguia decifrar.
A fim de entender melhor os mitos, mas ao mesmo tempo fazer tarefa adstrita
aos limites deste trabalho, estudarei mitos gregos, procedendo à leitura de alguns textos
primários, isto é, de mitos propriamente ditos e não os estudos sobre os mitos. O risco
da ilusão da primeira mão, da abordagem direta e que ignora a literatura secundária,
crítica, histórica sobre o material a ser examinado creio que fica afastado visto que o
princípio desta abordagem do mito partiu de diferentes conceitos sobre ele, tendo sido
lida bastante vasta bibliografia secundária. A esperança é que o texto primário possa
10. Les correspondances totales entre mythe et rite ont une existence plus longue que le rite. Comme il a
été indiqué, les mythes ont été parfois notés dans des lieux où le rite avait disparu. Pour cette raison, le
mythe contient des traits plus tardifs, des traits d'incompréhension, de déformation et de modification.
(Propp 1983: 299-300).
11. Eliade 1963: 15.
12. Havelock 1963: 250-1 e 270.
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abrir portas para a compreensão de alguma característica universal que sem a análise
microscópica não seria possível.
Os mitos gregos
conseqüência, Juno pune Eco, fazendo-a perder a capacidade de falar, salvo a de repetir
palavras: "Com essa língua, que tanto me fez ser iludida, pouco poderás fazer e terás um
uso brevíssimo das palavras". Eco, já punida, segue Narciso, por quem continua estando
perdidamente apaixonada.
A MORTE DE NARCISO
(Metamorfoses III, 407-510)
Ovídio
18. O poema-narrativo conta uma história. Ovídio usa um recurso dos relatos da ficção em prosa: a voz.
Não se trata apenas da voz do eu lírico. Primeiro soa a voz do narrador autorial, em terceira pessoa, que
não sabe mais do que a personagem Narciso, assumindo uma perspectiva externa à personagem. Descreve
a quietude, o mundo suspenso em sua beleza e frescor. São as condições para a apresentação verossímil
do espelho d’água.
19 Este é o locus amoenus, de paisagem poética ideal, cujos elementos característicos são o prado, o rio,
o arvoredo, i.e., uma ambiência calma que não suscita perturbação no observador. É o lugar, distante da
cidade, ou conglomerações habitacionais (escondido da ordem social que regula ou coíbe as relações
sexuais), lugar em que as paixões eróticas podem ser livremente exploradas.
20 Ao inclinar-se, Narciso se defronta com o espelho d’água. Este espelho leva Narciso a fugir do tempo,
e a limitar-se à visão de si mesmo. O espelho d’água produz um efeito contrário ao do espelho mágico,
que permite ver o presente, o passado e o futuro. “Le miroir n'a pas seulement pour fonction de refléter
une image; l'âme devenant un parfait miroir participe à l'image et par cette participation elle subit une
transformation. Il existe donc une configuration entre le sujet contemplé et le miroir qui le contemple.
L'âme finit par participer de la beauté même à laquelle elle s'ouvre.” (Dictionnaire des symboles, vol II)
21 Escopas de Paros é um escultor e arquiteto grego do século IV aC. (Paros, 420 – 350 aC).
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24 Vide N. 19.
25 Cf. Kristeva, Julia. "Narciso: a nova demência". In Histórias de amor. Tradução e introdução de Leda
Tenório da Motta. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
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aspecto em árvore, ou flor. Febo, desesperado com a morte de Jacinto, ferido com o
disco lançado por Febo, que depois cai, ricocheteia e bate no rosto de Jacinto, se
pergunta: "Na verdade, porém, qual foi a minha culpa? A não ser que ter lançado o
disco possa ser considerado um crime e que amar seja considerado um crime. Oxalá me
fosse permitido perder a vida contigo, como um castigo merecido! Como, porém, temos
que obedecer às leis do destino, sempre estarás comigo, e meus lábios hão de lembrar-te
sempre. Tangida por minha mão, a lira e meus cantos te exaltarão; e, transformado em
uma flor, imitarás, por escrito, os meus lamentos"26.
O excesso de Narciso poderia ser equivalente aos dos outros seres míticos
citados acima: o da beleza tão grande como a de um deus. A rigor o excesso é amar-se,
ou amar a sua imagem e ser incapaz de amar a outra imagem que não a dele. Mas não
lhe é outorgado outro caminho. Sua condenação tem algo de 'karma': não podendo ser
evitado, servirá para algo. As leis do destino limitam a vida e só permitem a
transformação. A metamorfose é em uma flor, ou uma lira, mas é notável que em cada
episódio é contado algum tipo de descendência, que o mais das vezes corresponde à
obra, à palavra, à voz, à encarnação da beleza: atribuição e manutenção de uma forma
poética, lírica. Em última instância, sem uma explicitação que seja vista como
correspondente à metalinguagem, o que os episódios acabam propondo é a permanência
da obra, da voz, da palavra, da representação, ou reflexo, da beleza. Ou da beleza
enquanto produto decorrente, metamorfoseado, de alguém cuja existência findou. O
destino impõe limites intransponíveis. A única forma de resistência reside na memória
("sempre estarás comigo, e meus lábios hão de lembrar-te sempre") e na rememoração
pela arte ("Tangida por minha mão, a lira e meus cantos te exaltarão"). É bem verdade
que esta preocupação da permanência apesar da morte corresponde à do próprio Ovídio.
Leia-se o epílogo d'As Metamorfoses:
Assim eis terminada a minha obra que destruir não poderão jamais a cólera de Jove, o ferro,
o fogo e a passagem do tempo. Quando o dia em que pereça a minha vida incerta chegar, o
que em mim há de melhor não há de perecer. Subindo aos astros, meu nome por si mesmo
viverá. Em toda parte onde o poder de Roma se estende sobre as terras submissas, os
homens me lerão, e minha fama há de viver, por séculos e séculos, se valem dos poetas os
presságios.27
28. La mesura es el espacio real que cada quien ocupa conforme a su naturaleza. Ir más allá de sí es
transgredir tanto los límites de nuestro ser como violar los de los otros hombres y entes. (Paz 1956: 201).
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incesto, matar o pai, casar com a mãe, nem desejar e possuir o pai; não se deve deixar
de enterrar os mortos). Por outro, sua finalidade não é a de estabelecer uma legislação
do sim ou não, acerto e erro, crime e castigo: fundamentalmente desnuda a condição
humana na sua fragilidade e limite último, apresentados como peias do destino - o que
deverá ser reconhecido e aceito. É um sentimento que corresponde à "tensão
problemática" da qual fala Jaeger, tensão que se alivia quando a dor se transforma em
consciência do destino. Então o ser humano chegaria à visão da legalidade cósmica e a
sua desgraça apareceria como parte da harmonia universal.
Según Jaeger “lo que caracteriza el espíritu griego, y es desconocido de los pueblos
anteriores, es la clara conciencia de una legalidad inmanente de las cosas”. Esta idea tiene
dos vertientes: la concepción dinámica de un todo, animado por leyes, impulsos y ritmos
cósmicos; y la noción del hombre como parte activa de esa totalidad29.
Burckhardt señala que la originalidad de la religión griega reside en ser libre creación de
poetas y no especulación de una clerecía. Y el ser creación poética libre, y no dogma de una
Iglesia, permitió después la crítica y favoreció el nacimiento del pensamiento filosófico30
Monstro-fêmea ctônio, com sinal invertido, símbolo da autoctonia do homem, monstro que
violava os jovens, caso não lhe decifrassem o enigma, mas que, uma vez vencido e
destruído, mostra que o ser humano não nasceu apenas da fêmea, mas do concurso desta
com o macho32
Este dado remonta a uma história da humanidade, sem que exista explícita
vontade de ideologização. No mito de Édipo encontramos vestígios da matrilinearidade,
presente na religião cretense, representada pela Grande Mãe33. A recorrência de
resíduos míticos de referência histórica não ocorre nos contos de fadas. Os índices
históricos dos contos de fada revelam em primeiro lugar a ideologização decorrente da
vontade de um autor que usa um conto de fadas preexistente e o modifica, introduzindo
elementos de seu interesse (cf. moralidades introduzidas por Perrault), ou aproveita um
texto preexistente, dando-lhe contornos de conto de fadas a fim de obter o efeito e
penetração social objetivados por ele - e que pode, em seguida, ser popularizado e
incorporado no imaginário popular e nos relatos orais, como é o caso de "O judeu nos
espinhos"34.
31. Brandão1989.
32. Brandão 1989: 246.
33. "É assim, exatamente, que se apresenta a Grande Mãe minóica. Deusa da natureza, reina sobre o
mundo animal e vegetal. Sentada junto à árvore da vida, está normalmente acompanhada de animais,
como serpentes, leões ou de determinadas aves. Armada, e de capacete, simboliza a deusa da guerra,
representação da vida e da morte. Para reinar sobre a terra, desce do céu sob a forma de pomba, símbolo
da harmonia, da paz e do amor. Domina o céu, a terra, o mar e os infernos, surgindo, assim, sob as formas
de pomba, árvore, âncora e serpente. E uma coisa é certa: a primazia absoluta das divindades femininas
na ilha de Creta atesta a soberania e a amplitude do culto da grande Mãe". (Brandão 1989: I, 58).
34. Conto do tipo AT 592.
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Para mim a fala de Aquiles não é melancólica como a considera Junito Brandão.
Homero reconhece o valor da vida e, pela primeira vez, na literatura, coloca este valor
como superior à fortitudo et sapientia do herói, superior ao heroísmo, portanto ao mito
do herói - ser extraordinário. Ou então revela a sabedoria de enfrentar a morte com
recursos não previstos. Como à descida ao Hades, canto em que Ulisses encontra
Aquiles, sucede o canto XII, em que Ulisses encontra as sereias, creio que este episódio
configura a astúcia máxima do percurso, resolvido só pela astúcia e não pela força,
como no confronto com Polifemo. Mesmo vencer Polifemo configura etapa da
cerimônia de passagem, de iniciação, pela qual o herói precisa passar para estar pronto
para assumir novas e mais difíceis etapas de sua vida. Polifemo, na sua cegueira parcial,
representa algo semelhante à cegueira, ou à invisibilidade: a morte. Vencê-lo é símbolo
de aquisição de nova visão, o que constitui, segundo Propp, a última etapa da cerimônia
de iniciação, depois da qual o neófito volta para casa. Mas se o episódio foi de vitória,
esta foi relativizada, ou mesmo anulada pela arrogância de Odisseu, que se dá a
conhecer, a fim de ridicularizar Polifemo. Sua hybris será punida. Portanto será preciso
começar de novo, e passar por outra prova.
A passagem pelas sereias representa a passagem pela morte. Já porque o recurso
da cera nos ouvidos representava conselho e objeto mágico ("Cet exemple permet déjà
d’entrevoir que le donateur du moyen magique garde l’entrée du royaume de la
mort"36); já porque o encontro com as sereias - meio pássaros, meio mulheres, tendo um
caráter zoomorfo, representariam a morte:
[...] en effet, l’isba, qui se tient à la limite de deux mondes, a, dans le rite, une forme
animale; dans le mythe, il n’y a souvent pas la moindre isba, mais un animal ou encore une
isba aux traits zoomorphes fortement exprimés37.
Amarrado ao mastro da nave, Ulisses não remará. Quem rema são seus
companheiros.
Horkheimer e Adorno vêem nesta cena a intuição, ou capacidade de Homero em
representar o poderoso como folgado e aliciador de trabalho escravo. Propõem que os
escravos fazem avançar, trabalhando; o escravagista não tem condições para a ação. E
ainda que os referidos filósofos da escola de Frankfurt façam a crítica do Iluminismo, da
racionalidade e da ciência, que só levou a uma opressão maior, ainda que isto tenha
sucedido devido à 'quebra do mito'38, não chegam a valorizar o mito. Mostram o temor
que o mito infundia por seu desejo de abrangência - e como a execração da busca de
universais vem do Iluminismo39. Sobre a cena da Odisséia que aproveita o mito das
sereias para representar mais uma etapa do processo de iniciação de Ulisses, dizem:
Os ouvidos surdos que os dóceis proletários conservaram desde o mito não se constituíram
em vantagem alguma, diante da imobilidade do mandante40.
38. O que os homens querem aprender da natureza é como aplicá-la para dominá-la completamente e,
com ela, dominar os homens. Fora disto nada conta. Sem escrúpulos para consigo mesmo, o Iluminismo
incinerou os últimos restos da sua própria consciência de si. Só um pensar que faz violência a si próprio é
suficientemente duro para quebrar os mitos. (Horkheimer e Adorno 1980: 90).
39. Assim como as imagens da criação a partir do rio e da terra, imagens que chegaram do Nilo até os
gregos, tornaram-se aqui princípios hilozoísticos, elementos, assim também a profusa ambigüidade dos
demônios míticos se espiritualizou nas formas puras das essências ontológicas. Pelas idéias platônicas, o
logos filosófico finalmente também toma conta dos deuses patriarcais do Olimpo. Mas, reconhecendo as
antigas potências na herança platônico-aristotélica da metafísica, o Iluminismo combateu a pretensão à
verdade dos universais, como superstição. Ele julga ver ainda, na autoridade dos conceitos universais, o
medo dos demônios, por meio de cujas imagens os homens procuravam, no ritual mágico, influir na
natureza. A partir de agora, a matéria deverá finalmente ser dominada, sem apelo a forças ilusórias que a
governem ou que nela habitem, sem apelo a propriedades ocultas. O que não se ajusta às medidas da
calculabilidade e da utilidade é suspeito para o Iluminismo. [...] O Iluminismo é totalitário. (Horkheimer e
Adorno 1980: 91).
40. Horkheimer e Adorno 1980: 112.
41. Horkheimer e Adorno 1980: 111.
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regulam a relação consigo mesmo e com a alteridade. Mas não é pacto da opressão. Este
pacto nem vem a ser, exatamente, um pacto social.
Um texto não tem só uma leitura. O episódio das sereias também afirma o poder
da patrilinearidade. Afinal, as sereias também são “monstros-fêmeas ctônios”, neste
sentido, semelhantes à esfinge, por serem meio-mulheres, meio aves. Suas asas – então
ainda existentes, simbolizam a liberdade das mulheres. Ela foi perdida pelas mulheres e
a sua perda é repetidamente representada na Odisséia. O poder de encantamento da voz
pode representar o desejo de simbolizar um poder paralelo na fêmea, ou mulher. A cena
de Ulisses atado ao mastro, vencendo a tentação, representa a vitória da patrilinearidade
– e o seu preço.
Ulisses é imobilizado pelas cordas, que serão mais e mais apertadas, mas ouvirá
as sereias e poderá contar-cantar o episódio depois. É o contrário do que ocorre em
personagem do conto de magia, segundo Propp.
L’épreuve imposée par la Yaga de ne pas s’endormir est le plus souvent liée à la
tâche donnée au héros de trouver les gousli qui vibrent tout seuls: “J’en ai de tout prêts (des
gousli); si tu veux, je t’en fais cadeau, mais à une condition: que personne ne s’endorme
tandis que je les accorde!” (Af. 123/216). “à présent, reste assis et ne t’endors pas, sinon tu
ne recevras pas les gousli qui vibrent tout seuls” (Sm. 316)42.
D’après les matériaux cités, on pourrait imaginer que l’interdiction de sommeil
est liée au motif des gousli. Mais le lien n’est pas stable, il s’agit seulement d’une tendance
propre au matériel russe, dans lequel on le rencontre effectivement assez souvent. Avant le
départ du héros, la femme de celui-ci lui donne une fleur: “Bouche-toi les oreilles avec
cette fleur, dit-elle, et ne crains rien!” Ainsi fit l’idiot. Le maître se mit à jouer des gousli, et
l’idiot resta là, assis, sans fermer les yeux” (Af. 123 var./ 216 var.). On ne peut pas ne pas
se rappeler ici Ulysse, qui se bouche les oreilles pour ne pas entendre les sirènes. Il est
possible que cette analogie puisse éclairer l’épisode des sirènes qui s’efforcent d’attirer le
héros par leur chant et de le faire périr. L’assoupissement dans la petite isba de la Yaga
entraîne la mort instantanée: “Prends garde, lui dit le Loup dévoreur, veille à ne pas dormir!
Si tu fais mine de fermer l’œil, je t’avale!” (Af. 123 var. / 216 var.)43
O herói (da epopéia, e não propriamente do mito) não dorme, justamente porque
seus ouvidos não estão tampados. O sono poderia levá-lo à morte, diria talvez um conto
russo. (No conto de fadas “A Bela Adormecida”, o sono da Bela representa a passagem
pela morte; o sono simboliza a morte). No mito das sereias, aproveitado neste canto da
Odisséia, ouvir o som da vozes das sereias canoras é que levaria à morte. Pela análise de
Propp, há um certo número de elementos simbólicos para designar a morte e os mortos:
a invisibilidade (de um modo geral as sereias eram invisíveis, sendo só audível o seu
42. Propp 1983: 101.
43. Propp 1983: 101.
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canto) e o sono. Como a música entoada pelas sereias invisíveis levava à morte,
poderíamos figurar que esta morte também seria representável pelo sono. O canto (e o
sono): eis a atração fatal, que levaria à perdição. Por isto, seria preciso passar pelas
sereias sem ser afetado pelo seu poder. Só dois recursos serviriam: não ouvi-las,
tampando-se os ouvidos (exatamente como nos contos russos), ou ser mais esperto. A
esperteza não advém apenas do aproveitamento da sugestão de Circe de se fazer atar ao
mastro: se Ulisses pedisse para ser desatado, seria o caso de atá-lo com mais força. Isto
é, é preciso fazer com que ele sinta dor - e não durma, sucumbindo à tentação do sono.
Como seus companheiros podem deixar de ouvir os seus brados, pedindo-lhes que o
desatem, se estão de ouvidos tampados apenas com cera? É porque a cera é simbólica.
Um espaço aberto para dentro do corpo foi vedado. Pelo buraco existente na cabeça é
que entram os maus espíritos e a morte. Poderíamos considerar que os companheiros de
Odisseu "fecharam o próprio corpo". Mas ouvem. Só não devem expor-se por muito
tempo. Daí precisar remar. Ulisses está impedido de usar qualquer força, já que foi
amarrado, a seu próprio pedido. A sua astúcia não é só vencer as sereias, incólume,
atravessando o lugar onde estão. Ele quer exercer a sabedoria, usar a inteligência. Esta
só é manifestável através da palavra, que precisa ser enunciada e ouvida. É preciso
aprender e contar; é preciso entoar, a fim de ser possuidor de um poder mágico: o dom
da palavra. (Os remadores têm talvez o ar de idiotas, como o idiota do conto russo, já
que consta que vêem, mas não ouvem e remam). Ouvir é função fundamental. Porque a
palavra - e a voz - têm um valor excepcional, abrindo portas e espaços, internos e
externos, físicos, espirituais, psíquicos, sagrados. Como no Livro dos Mortos, ou no
Velho Testamento. Ou como em "Chapeuzinho Vermelho". Propp44 sublinha a
importância da cerimônia de abertura dos lábios no Livro dos Mortos. A cerimônia
serviria para expelir e receber espíritos. Observe-se, no texto sagrado, que ao pedido de
abertura da porta ouve-se a pergunta sobre quem é o outro. Como se chama o outro. A
resposta seria um nome - ou dois - o que no texto corresponde a uma identificação. Mas
em seguida vem explicitado: "le nom de ma barque est collecteur d’âmes..." No Livro
44. La cérémonie d’ouverture des lèvres était l’une des plus importantes du culte. Dans les textes
consacrés au culte des morts, un livre spécial porte son nom: Le livre de l’ouverture des lèvres. Mais on
peut en trouver aussi des exemples dans le Livre des Morts. Voici un passage du cent vingt-deuxième
chapître du Livre des Morts: “Ouvre-moi! - Mais qui es-tu? Comment t’appelles-tu? - Je suis des vôtres,
le nom de ma barque est collecteur d’âmes... Que l’on me donne des bols de lait avec des galettes, du pain
et de la viande... Que cela me soit donné entièrement... Que tout soit fait pour que je puisse continuer mon
voyage semblable à l’oiseau Bennou...”
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dos Mortos45, uma seqüência de capítulos e umas poucas citações tiram qualquer dúvida
sobre a relação entre o poder da palavra, a abertura da boca, o conhecimento e sabedoria
e a proteção invisível (talismã mágico):
[...] além disso, meu Verbo de Potência cerca e protege meus domínios. A magia, a magia
que sai de minha Boca cria uma rede intransponível [...]47.
Eu sou o dono do Saber Sagrado e do Verbo mágico. Como Ra, eu me protejo a mim
mesmo. [...] Eu sou teu Filho e contemplei teus Mistérios48...
O herói que abdica da força física potencia sua sabedoria, seu conhecimento e
astúcia, concentrados na palavra. Que representa valor máximo e diferenciador da
espécie humana. Força e sabedoria são moduladas ao longo da produção da narrativa,
oral ou escrita, em torno, por um lado, da desmitificação e da relativização da força do
herói e, por outro, do alcance da prudência, noção contida já na sapientia, e cristalizada
na enunciação da narrativa ou cantiga. Ela é temperada, em Homero, pela
45. Anônimo. (Como há mais de um anônimo na bibliografia geral, será necessário citar a obra pelo
título - O Livro dos mortos do antigo Egito - o qual, sendo longo, será indicado apenas como Livro dos
mortos). Livro dos mortos 1994.
46. Livro dos mortos 1994: 42-3.
47. Livro dos mortos 1994: 49.
48. Livro dos mortos 1994: 62.
49. Livro dos mortos 1994: 53.
25
desmitificação do herói50, que se espanta com Aquiles, revelando dar mais valor a uma
vida comum na terra, do que a uma posição gloriosa no reino dos mortos. Este tipo de
desmitificação é permanentemente recolocada pela literatura, que discute o poder da
palavra, reconhece o limite e perigo do mito e o repõe em formas de abracadabra -
palavra que enuncia o valor do alfabeto. A palavra revela-se onipotente e excepcional.
Onipotente, porque num primeiro momento, dá a ilusão de estabelecer uma relação
direta entre coisa e enunciação, entre evento e pensamento, como sucede com a criança.
Isto confere à palavra a ilusão referencial. E passa a ter valor mítico. O mito do herói é
questionado. Mas a palavra valorizada repõe o mito: dialética infinita e permanente da
enunciação narrativa, ficcional, porque o terceiro elemento da dialética, a síntese,
impede o desmembramento dos aspectos e os reúne, criando o novo pressuposto que
inicia novo jogo enunciativo.
A Odisséia, mesmo trabalhando com mitos gregos primitivos, não é elaborada
como mito. Tem nítidas características de narrativa ficcional. A epopéia cumpre uma
função especial - a de narrar as aventuras de um herói como inaugurais de uma nação,
de uma potência. A epopéia difere do romance tanto por esta função especial, quanto
pela forma em versos e pela poesia de suas imagens.
O estatuto do herói ainda tem outras nuances. O herói, propriamente, luta contra
as forças do destino: ação afirmativa, positiva, pela vida. Este aspecto o aproxima de
característica do conto de fadas: a luta contra os aspectos em conflito do ser humano. O
herói não luta contra aspectos internos. Cada personagem, na epopéia, representa um ser
humano mais complexo do que as personagens-aspectos dos contos de fadas. O herói é
um - inteiro e íntegro - que luta contra forças externas representadas por outros
interesses, nações, categorias de seres. Ele não percebe os conflitos internos e
'desobedece' uma lei, ou norma. Em geral pode-se ver que a hybris consiste em não
perceber os limites humanos que são definidos pelos conflitos internos. A hybris, o
excesso, é gesto de onipotência. A luta poderá ter valor simbólico. Mas a personagem só
percebe a alteridade. Ela fica suspendida no tempo e espaço, porque o seu desejo de
enfrentamento vai além dos seus próprios limites. A personagem de conto de fadas tem
mais clareza do princípio de realidade do que o herói épico, que perde a dimensão dos
limites de suas forças e passa a ser guiado pelo que está lá... Mesmo errado, ou vencido,
50. No mito, Ulisses prefere fingir-se louco a ir à guerra; desmascarado, parte para a luta. Esta é narrada
por Homero.
26
o herói cristaliza o desejo de luta com o mundo. O que pareceria corresponder à pulsão
de vida acaba se revelando pulsão de morte. Tanatos vence, tanto em Édipo, como em
Narciso, mesmo quando este apenas estende os braços e suspira. Neste último caso, o
'herói' peca - ou erra - na desmesura, por equivocar-se com respeito ao seu interlocutor.
A voz do destino, a predição, não é de um outro, mas de si próprio. E novamente vence
Tanatos. Tanatos, ou a cegueira, ou a transformação como punição. Como a personagem
do mito (ou da epopéia ou tragédia grega, que trabalham com mitos) não tem a
dimensão de si mesma, é necessário um recurso metalingüístico: a voz, na epopéia, que
adverte, encaminha (como Atenas, na Odisséia), ou que, procurando desencaminhar
(como as sereias, na obra referida), precisa ser vencida e incorporada, para configurar o
ser de exceção; o coro, na tragédia; ou um narrador em terceira pessoa que explica e
comenta os eventos, contrapondo-se à personagem, que se manifesta em primeira
pessoa:
[...]
O mundo dominado pelo mana e mesmo ainda o mundo do mito hindu e grego são eternamente iguais
51
e sem saída. Cada nascimento é pago com a morte, cada felicidade, com a infelicidade .
Segundo os dois autores referidos, "o mito pretendia relatar, denominar, dizer a
origem; e, assim, expor, fixar, explicar. Com a escrita e a compilação dos mitos, essa
tendência se fortaleceu". O mito, de relato foi a doutrina.
Todo ritual inclui uma representação do acontecer enquanto processo determinado que se
destina a ser influenciado pelo feitiço. Este elemento teórico do ritual tornou-se
independente nas mais antigas epopéias dos povos. Os mitos, tais como encontrados pelos
autores trágicos, já estavam sob o signo daquela disciplina e daquele poder louvados por
Bacon como o objetivo a ser perseguido. Em lugar dos deuses e demônios locais, aparecem
o céu e a sua hierarquia, em lugar das práticas de conjuração do feiticeiro e da tribo, surgem
Solidaire du rite - récit oral et pratique gestuelle constituant les deux faces inséparables
d’une seule et même expression symbolique - il a pour rôle de renforcer la cohésion sociale,
l’unité fonctionnelle du groupe, en présentant et justifiant, dans une forme codifiée,
plaisante à entendre, facile à retenir et à transmettre de génération à génération, l’ordre
traditionnel des institutions et des conduites. Le mythe répond ainsi, sur un double plan aux
exigences de la vie collective; il satisfait le besoin général de régularité, de stabilité et de
pérennité des formes d’existence qui caractérisent la socialité humaine; il permet aussi aux
individus, au sein d’une société particulière, d’ajuster, en accord avec les procédures et les
règles d’usage, leurs réactions les uns aux autres, de se soumettre aux mêmes normes, de
respecter les hiérarchies54.
Para Vernant, o mito cumpre um papel de controle social (imutável ao longo dos
tempos) e de ajuste às "regras de uso, as relações mútuas dos seres humanos de se
Ainsi le parler enfantin prépare le langage de l’adulte et n’a de sens que par rapport à lui.
Le mythe serait donc comme une ébauche de discours rationnel: à travers ses fables, on
percevrait le premier balbutiement du logos55.
Vernant aceita a divisão da história em duas águas, proposta por Aristóteles, que
separa as civilizações em tempos do logos e do mythos, idéia que ele apresenta
longamente no seu livro. O mito seria algo do passado e infantil. Irracional. Apesar
disto, é tão cativante que passa de geração em geração. Consideremos: todas as gerações
seriam infantis – ou todos os infans nascem com uma potencial organização de eventos
em relatos com certa função própria dos mitos? Todas gerações são irracionais? Ou
temos antes uma quantidade suficiente de formas da oralidade que dão conta de
variações de dominância das duas pulsões básicas do ser humano? Se o mito é
irracional, pode propor a coesão social? Se o propõe, não traria aspectos racionais? A
resposta do presente trabalho é: o grande disciplinador da ação humana em sociedade é
Tanatos, temperado pela esperança de vida. E ainda: logos e mythos convivem sempre,
55. Vernant 1982: 214.
30
2.1. –
31
En faisant porter notre attention sur les mythes, nous devons avoir à l'esprit que l'on ne
peut considérer le mythe comme une illustration parfaite du rite. La correspondance totale
entre mythe et rite ont une existence plus longue que le rite. Comme il a été indiqué, les
mythes ont été parfois notés dans des lieux où le rite avait disparu. Pour cette raison, le
mythe contient des traits plus tardifs, des traits d'incompréhension, de déformation et de
modification56.
Propp acha incompreensível a mudança ocorrida do rito ao mito. Para ele, como
a trajetória é linear e indefectível, como a explicação precisaria ser lógica, qualquer
variação em torno deste quadro é inaceitável ou inexplicável. Para o Lévi-Strauss de
certo momento de sua obra, os mitos gregos tiveram um caráter universal57. Outros
estudos, conforme Detienne, sugerem que o mito grego se perdeu, engolido pelo logos:
Para os adeptos de uma história que valorize apenas os traços de escrita, o discurso
da oralidade original tornou-se, no país grego, tão inaudível que chega a ser quase ilegível
mesmo onde se transmite através dos sinais escritos. Inacessível, a mitologia já não mostra
senão a máscara estática que lhe modelaram, quando os obscuros artesãos da mitografia a
embalsamaram em manuais, na era da erudição alexandrina. Uma escrita de morte,
impotente aliás para se esquivar das contradições do que nada mais é do que um resto, um
despojo. [...] Os gregos, ao que parece, asseguraram com tanta eficácia o triunfo da razão,
do lógos, que arruinaram o antigo sistema de pensamento, a ponto de não restarem deste
senão fragmentos, frases ininteligíveis. Não se pode transpor a distância entre a linguagem
vivida do mito e a tradição escrita58.
O logos não venceu o mythos, até nossos dias, nem pode vencê-lo, porque ambos
fazem parte do que é o homem, feito de -n- matizes, superposições, variações de logos e
mythos, de Eros e Tanatos.
Registramos a presença de mitos gregos, mesmo que de forma difusa, na
literatura brasileira, erudita, escrita? E na produção oral? Não estenderei este trabalho
para o estudo de casos em toda a literatura brasileira em que se possa registrar a
presença de mitos gregos. A resposta sendo positiva, seria seguida de outra pergunta:
por que via recebeu um autor tal, ou tais mitos?
Partindo do pressuposto de que pelo menos registraríamos a referência a alguns
mitos gregos - ou suas figuras míticas - muito difundidos na literatura brasileira
(Narciso, Édipo, Prometeu, Eco, as Parcas, Tirésias) poderíamos definir quatro tipos
diferentes de manifestação.
Com respeito ao mito indígena a pergunta é: como receberam certo rito ou mito
as tribos indígenas encontráveis no Brasil, que não tinham contato com os povos nos
Mito e ciência (mythos e logos) foram definidos por Lévi-Strauss como formas
opostas da sistematização da coerência mental. Sem corresponder a um pensamento
selvagem propriamente, o mito reaparece como manifestação ordenadora de fenômenos
físicos e psíquicos. O mito grego, mesmo distante mais de um milênio de nossos dias,
reaparece quer em manifestações da psique, como sonhos ou devaneios, quer em
manifestações culturais. Estas podem ser explicáveis historicamente, estando os
europeus na rota da manutenção temática, de motivos ou de todo e cada um dos relatos,
ou ainda na transmissão oral de contos de fadas já conhecidos no Oriente e no Ocidente,
fora do Brasil e em séculos anteriores aos do encontro de brancos e índios. Alguns
motivos são recorrentes, quer em contos de fadas recolhidos no Brasil (não
reconhecidos como pertencentes à Literatura Brasileira), quer na literatura de cordel. A
compreensão destes motivos nos pode ser dada pelo estudo das raízes históricas dos
contos maravilhosos, de Propp. O que ele afirma do conto de fadas, que às vezes chama
apenas de conto, é válido para a ficção em prosa e verso.
Généralement, on suppose que le conte est émaillé d'éléments protohistoriques, mais qu'en
lui-même, il est le produit d'une création artistique "libre". Nous voyons que le conte
merveilleux est entièrement composé d'éléments remontant à des faits et à des conceptions
datant d'une société sans classes59.
Ce qui, à présent, se raconte, était autrefois agi, joué ou représenté de façon ou d'autre. De
ces deux cycles, le premier à dépérir est le rite. Le rite disparaît alors que les conceptions
sur la mort continuent à se développer, à se modifier, une fois perdu tout lien avec le rite.
La disparition du rite est en rapport avec la disparition de la chasse en tant que source
d'existence unique ou essentielle.
Sur la base de tout ce que nous venons de dire, nous devons nous représenter l'évolution
ultérieure de la composition des sujets de la façon suivante: une fois crée, le schéma de
départ emprunte à la réalité nouvelle, plus tardive, certaines particularités ou traits
nouveaux. Par ailleurs, des conditions de vie nouvelles créent des genres nouveaux (le
conte romancé), qui déjà s'organisent sur un autre terrain. En d'autres termes, l'évolution du
sujet se fait par couches successives, par transformations, transpositions, etc., d'une part, et,
d'autre part, par introduction d'éléments nouveaux60.
Propp define uma trajetória cronológica em que os ritos (ação) deram nos mitos
(relatos), e estes nos contos populares (narrativas, também). Considerando que
continuamos a ter ritos, mitos e contos de fadas, ainda que modificados, convivendo nas
diferentes sociedades até hoje, precisaríamos repensar a categorização de Propp. As
concepções de morte, que variaram ao longo da história, voltaram a se colocar nos
diferentes grupos religiosos, mesmo no atual século, mantendo, modificando, criando
ritos. A caça não é mais um meio de vida. Mas ritos, mitos e motivos permanecem,
assim como os mitos gregos, que são volta e meia aludidos ou aproveitados, tantos
séculos depois de seu registro, nas mais diferentes produções culturais. Concebo,
semelhantemente a Propp, que o imaginário e a simbologia – inatos – são ampliados e
aprofundados pelo conhecimento sucessivo, ao longo da vida de cada um, de mais
elaboradas e diferentes referências advindas dos ritos do presente do sujeito, dos relatos
dos antepassados, dos mitos aproveitados em relatos sob forma auditiva, ou auditiva e
visual, pela leitura, visão, audição. Entrelaçam-se a história individual e coletiva, o
presente e o passado histórico, de maneira imprevisível – mas possível porque a trama
não é feita a partir de um ponto, ao qual se alinha outro inevitavelmente, numa trama
complexa, feita de furos, de frestas, preenchíveis, ampliáveis, corrigíveis por novas
imagens, idéias, mitos, símbolos, formas. Sobre uma base inata, relativamente simples,
que explica a aceitação dos aportes sucessivos e progressivos, forma-se um palimpsesto,
ou um terreno arqueológico feito de uma pluralidade não ordenada, em que será difícil
estabelecer uma linha evolutiva.
Estudarei alguns motivos de fontes diversas, comparando-os. Ao escolher os
textos, darei preferência, como segundo termo de comparação, a textos brasileiros, seja
eruditos, seja populares.
diferentes: um, para mostrar que o tempo (Cronos - Chronos63) não pode se eternizar, e
será vencido por Zeus; outro, a fim de propor que a trajetória da vida precisa de uma
iniciação e que ela consiste em enfrentar a morte, e vencê-la. Num, rege o princípio do
limite, da regulação e morte; no outro, o princípio da vida, da superação. A regulação
precede necessariamente a superação.
Ao rito do engolimento corresponderia uma infra-estrutura econômica, diz Propp.
Esta teria determinado as variações do motivo, passando ele a corresponder ao dragão
engolidor - ou ameaçador - mais tarde substituído pela água tragadora de pessoas. No
mito, o engolimento produziria o grande caçador, ou o chefe. Mais tarde, o grande chefe
e mais tarde ainda, deus. Qualquer das instâncias de poder nomeadas corresponde a um
poder punitivo e limitador.
Dans un mythe africain de la tribu relativement cultivée des Bazouto, le héros est avalé par
un monstre. Il rentre chez lui, mais n'est pas reconnu des siens, qui l'obligent à disparaître
de la surface de la terre64. Nous avons ici le point de départ d'une déification. Il est possible
que, dans le thème de Cronos dévorant et crachant ses enfants, nous ayons des bribes de la
même conception. N'est-ce pas en effet parce qu'il est un dieu-père et qu'il est susceptible
de conférer la divinité à ses enfants que Cronos les dévore?65
63 Há dois Cronos: Cronos e Chronos. Cronos representa às vezes o tempo personificado. A ortografia
de seu nome (com um kappa inicial em grego) lembra Chronos (com um khi inicial), o Tempo. Em
Aristóteles, o Cronos que devora seus filhos é assimilado ao tempo que não pára nunca de se esvair, da
mesma forma que a foice (associada à alfanje), que lhe permitiu cortar os testículos de seu pai Urano, é
assimilada à alfanje impiedosa do tempo.
64. L. Frobenius, Weltanschauung: N. 6, p. 301: 106.
65. Propp 1983: 301-2.
66. Nous savons que tout le rite d'initiation était interprété comme un séjour dans le pays de la mort et,
réciproquement, que le mort était censé subir tout ce que subissait l'initié: il recevait un aide, rencontrait
un dévoreur, etc. (Propp 1983: 470).
37
Cronos reina no céu apenas na primeira idade: a idade do ouro. É um período em que os
homens, que constituíam uma “raça de ouro”, não conheciam nem penas, nem
preocupações, não trabalhavam e não envelheciam. A segunda idade corresponde a uma
“raça de prata” que não honrava os deuses, em que os homens envelheciam e viviam na
violência. Esta idade acaba terminando no destronamento do pai e na destituição de
Cronos.
A terceira idade é a idade de bronze, a mais terrível, que termina com a
autodestruição da raça humana. Uma quarta idade sucede a estas três, correspondendo à
raça dos heróis, quando Cronos e Zeus habitam juntos a ilha dos Bem-aventurados. Os
habitantes vivem sem preocupações, sem conhecer as misérias do mundo. Satisfeitos
com o que lhes é concedido, não conhecem nem o desejo insaciável (koros), nem a
inveja (zêlos), que geram a desmesura (hybris). Possuem todos os bens e têm à sua
disposição um solo fecundo. Virá em seguida uma quinta idade, em que triunfará o Mal.
Engolimento e regurgitação apresentam estas complexas dimensões abrangidas
pelo mito de Cronos – não explicável pelo desenvolvimento econômico-social de um
grupo humano, antes prevendo, nos deuses, comportamentos humanos recorrentes. É
uma complexidade construída por séries de ambivalências que se superpõem, como
Cronos que devora, ao mesmo tempo em que gera; destrói suas criações; seca as fontes
da vida, ao mutilar Urano e ao mesmo tempo, ele mesmo se transforma em fonte
geradora, fecundando Reia, sua irmã e mulher; simboliza a fome devoradora da vida, o
desejo insaciável; com Chronos (confundido com Cronos) começa o sentido da duração,
mais especificamente, de uma duração que transcorre entre a excitação e sua satisfação;
representa o rito da castração como sacrificial e o deus mutilado vira ave (corvo, cf.
Robert Graves) o que simbolizaria a sublimação dos instintos, ao mesmo tempo que ser
mutilado corresponde à perder do poder. Cronos é um soberano incapaz de se adaptar à
evolução da vida e da sociedade, de tal maneira que, para que o mundo progrida, ou
Cronos precisa ser emasculado, ou vai para o céu. Ao mesmo tempo, ele simboliza o ser
humano e a história, sempre plurivalentes, com movimentos e impulsos contraditórios.
Na contradição instala-se a diferença.
Esta complexidade pode permitir uma leitura mais abrangente e diferenciada do
conto de fadas já analisado. O tema do tempo – da duração - não aparece na versão de
Perrault ou de Grimm, mas na de Guimarães Rosa. O lobo de "Chapeuzinho Vermelho"
38
C'est justement à cela que se ramène un des aspects de l'initiation: le chasseur doit posséder
le pouvoir sur les éléments et en particulier sur les bêtes des bois. Schurtz parle lui de
conditions de ce type dans le choix des chefs67.
67. Propp 1983: 155. Neste ponto encontra-se a N.1, p. 155, com a referência: Altersklassen, pp. 126,
130.
68 O lobo seria homólogo a Cronos. Simboliza a morte, e a morte é uma espécie de deidade, cujos filhos
são investidos de poder, sendo divinizados. A morte é geradora para a eternidade, ciclicamente. Ao
mesmo tempo, em certa medida gerador e gerados, pais e filhos, se reconciliam em outro plano.
39
como depende da outra, para finalmente ser atribuidora de energia e de vida. Até mesmo
do ponto de vista da criação: o Livro dos Mortos alimenta o mito de Cronos e outros
mitos e contos maravilhosos, que se sucedem porém não em linha reta, cruzando
referências e sentidos.
No conto "As três velhas", recolhido por Câmara Cascudo, três velhas ajudam a
filha bonita a fiar uma impossível quantidade de linho69. O vulto do trabalho
corresponde ao tamanho da ambição da mãe, que quer ver a filha casada com um
homem muito rico. Estas três velhas lembram as três Parcas: Cloto, Láquesis e Átropo.
O fuso de Cloto fia o fio da vida, fio medido com a vara de Láquesis e cortado com a
tesoura de Átropo. As Parcas seriam filhas de Erebo e a Noite, ou filhas partenogênicas
da Grande Deusa Necessidade, chamadas de "o Destino Forte", com as quais nem os
deuses brigam. As Moiras, ou Três Parcas, são as três partes da lua: nova, cheia, velha
(primavera, verão, outono). Infiro que a quarta parte não nomeada, o inverno,
corresponda ao não dito, à morte. No conto de fadas, quando aparece o motivo, a função
das três bruxas é diferente daquela das Parcas. Sua presença, no conto, introduz um
elemento do mito grego, prestando-se para advertir o leitor que a vida e a beleza são
fugazes. Por um instante introduz, no conto de fadas, o sentido de destino dos gregos,
característica função do mito. Nos contos maravilhosos vence a vida, afirmando a
esperança no ciclo vital.
Os motivos recorrentes nos mitos gregos aparecem em contos de fadas e outras
produções da pulsão de ficção, sejam devaneios, sonhos, poemas, ficção em prosa e
outros produtos ficcionais.
Interessam-me especialmente detalhes como o da maçã atraente (de ouro) e
envenenada, que provoca a morte. A maçã dourada corresponde a mais de uma narrativa
mítica. Uma relação foi apresentada no vol. I de Ficção e Razão. Outra se refere ao mito
de Zagreo. Os Titãs, inimigos de Zeus, pintados de branco com gesso, atraíram Zagreo
69 Lembra o começo do conto „Rumpelstilzchen“, registro Grimm KHM 55 (1857). É conto de tipo AT
500. Por isto o conto “As três velhas” correspondente a Grimm KHM: “Die drei Spinnerinnen” 14, é
classificado por Aarne-Thompson na seqüência: conto AT 501.
40
seres humanos através dos tempos, enquanto a outra pressupõe uma evolução, uma
mudança, inserida na e motivada pela história. As duas podem conviver, se aceitarmos
que o inconsciente coletivo pode ter criado motivos, estudados por Antti Aarne e Stith
Thompson, utilizados em ritos, mitos e contos de fadas. Em cujo caso haveria uma
espécie de constituição biológica da simbolização, geradora de história. Um universal: a
simbolização.
Aparentemente o que vem de ser estudado está distante da literatura, pelo menos
a contemporânea. Aceitando-se a hipótese dos universais, por um lado, e a idéia de que
os símbolos podem sofrer adaptações em novos contextos sócio-históricos, motivos
como o espelho, o alimento especial, o fruto maravilhoso (maçãs vermelhas e frutos de
ouro, freqüentemente), o inimigo camuflado (em bela mulher), a atração pelo jogo,
podem ter valor simbólico, de referência mítica ou de contos de fadas, mesmo em textos
contemporâneos. O motivo da travessia de valor iniciático encontra-se em Grande
Sertão: Veredas. As personagens pós-modernas, que caminham sem rumo, o tempo
substrato general que trasciende todas las diferencias de cultura y conciencia, al que he
designado como lo inconsciente colectivo. Esta psique inconsciente, común a toda la
humanidad, no consiste meramente en contenidos capaces de llegar a la conciencia, sino en
disposiciones latentes hacia ciertas reacciones idénticas. El hecho de lo inconsciente
colectivo es sencillamente la expresión psíquica de la identidad, que trasciende todas las
diferencias raciales, de la estructura del cerebro. Sobre tal base se explica la analogía, y
hasta la identidad, de los temas míticos en general. Las diversas líneas del desarrollo
anímico parten de una cepa básica común, cuyas raices se extienden al pasado. Se halla
aquí, también, el paralelismo anímico con los animales.
Se trata - tomado de manera puramente psicológico - de comunes instintos de representación
(imaginación) y de acción. Todo representar y actuar consciente se han desarrollado de estes prototipos
inconscientes, y se hallan ligados a ellos especialmente cuando la conciencia no ha alcanzado todavía
ningún grado muy alto de lucidez, es decir cuando, en todas sus funciones, depende más de las pulsiones
instintivas que de la voluntad consciente, del afecto que del juicio racional. Ese estado garantiza una salud
primitiva anímica, que se convierte en inadaptabilidad tan pronto sobrevienen circunstancias que exijan
su mayor esfuerzo moral. Los instintos solo le son suficientes a una naturaleza que permanece idéntica a
sí misma en integridad y magnitud. El individuo que depende más de lo inconsciente que de la elección
consciente se inclina en consecuencia, a un conservatismo psíquico manifiesto. Tal es la razón de que los
primitivos no cambien en miles de años y sientan pavor ante todo el foráneo e inusitado. Ello podría
llevarlos a la inadaptabilidad y por lo tanto al máximo de los peligros anímicos, o sea, a una especie de
neurosis. La conciencia más elevada y más amplia, que sólo surge de la asimilación de lo foráneo, se
inclina a la autonomía, a la rebelión contra los viejos dioses, que no son otra cosa que las poderosas
imágenes primordiales inconscientes que hasta entonces mantuvieron en dependencia a la conciencia.
Cuanto más vigorosa e independiente se hace la conciencia, y por ende la voluntad consciente, tanto más
es empujado lo inconsciente hacia el trasfondo y tanto más fácilmente surge la posibilidad de que la
formación consciente se emancipe del prototipo inconsciente y, ganando así en libertad, haga saltar las
cadenas de la mera instintividad y arriba por ultimo a un estado de falta de instinto o de oposición al
instinto. Esa conciencia desarraigada, que no puede más referirse a la autoridad de las imágenes
primordiales, es por cierto de una libertad prometeica, pero también de una Hybris sin dios. Planea sobre
las cosas, hasta sobre los hombres, pero ahí está el peligro de que se dé vuelta, no para cada uno
individualmente sino colectivamente para los más débiles de tal sociedad, quienes van a ser entonces,
igualmente de manera prometeica, encadenados al Cáucaso por lo inconsciente.(Jung 1977: 28-29).
42
todo, em busca de algo quer misterioso, quer simplesmente desconhecido, vago, como
personagens de João Gilberto Noll, ou Chico Buarque de Hollanda, revelam a nostalgia
da iniciação. A penetração em espaços especiais corresponde à entrada no universo
sagrado, ou à entrada em um tempo-espaço de iniciação.
Como a forma mito, segundo as hipóteses deste trabalho, é inata, mesmo que
sem os recursos da idade adulta, como recurso que procura dar coerência mental a
eventos, ela reaparece, é reestruturada, absorvida, ainda que passe por mudanças
históricas e por ab-usos da indústria cultural, que trivializam o mito.
1.2.
44
Manuscript culture had taken intertextuality for granted. Still tied to the
commonplace tradition of the old oral world, it deliberately created texts out of other texts,
borrowing, adapting, sharing the common, originally oral, formulas and themes, even
though it worked them up into fresh literary forms impossible without writing. Print culture
of itself has a different mind set. It tends to feel a work as 'closed', a unit in itself. Print
culture gave birth to the romantic notions of 'originality' and 'creativity', which set apart an
individual work from other works even more, seeing its origins and meaning as
independent of outside influence, at least ideally. When in the past few decades doctrines of
intertextuality arose to counteract the isolationist aesthetics of a romantic print culture, they
came as a kind of shock. They were all the more disquieting because modern writers,
agonizingly aware of literate history and of the de facto intertextuality of their own works,
are concerned that they may be producing nothing really new or fresh at all, that they may
be totally under the 'influence' of others texts. Harold Bloom's work The Anxiety of
Influence (1973) treats this modern writer's anguish. Manuscript cultures had few if any
anxieties about influence to plague them, and oral cultures had virtually none74.
73. Print ultimately gives rise to the modern issue of intertextuality, which is so central a concern in
phenomenological and critical circles today (Hawkes 1977: 144). Intertextuality refers to a literary and
psychological commonplace: a text cannot be created simply out of lived experience. A novelist writes a
novel because he or she is familiar with this kind of textual organization of experience. (Ong 1982: 133).
74. Ong 1982: 133.
45
75. Parece-me fundamental, na diferenciação entre realidade e texto (e não entre escrita e oralidade) ter
clareza de que o texto escrito se apresenta como outro, independente da pessoa de seu autor. Confundir
texto e vida do seu autor é não levar em conta que a palavra enunciada não é idêntica ao acontecimento
vivido, porque já passou por um crivo de emoções e memória do enunciador, que divergem do
acontecido.
46
casal. Madalena é engajada, crítica; tem consciência social. Paulo Honório é explorador,
arbitrário, desalmado. E terrivelmente ciumento. O leitor não adivinha o tamanho da
tempestade que se avizinha. Aí o relato é interrompido pelo capítulo central, onde
encontraremos Paulo Honório ruminando pensamentos truncados, sentado à sala de sua
casa, sala às escuras, numa noite penetrada por ruídos lúgubres.
O capítulo central, em S. Bernardo, que divide a obra nitidamente em duas
metades, lembra Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa. O centro de
Grande Sertão: Veredas, já analisado por mim em outra obra76, tem importância como
estratégia narrativa, como referência a dimensões místicas e metafísicas.
Se o centro tem este valor para Grande Sertão: Veredas, poderíamos atribuir
valor e sentido paralelos para o centro de S. Bernardo? S. Bernardo não tem dimensões
metafísicas, como Grande Sertão: Veredas. Ainda que ambos os romances tratem do
tema da culpa, as culpas são diferentes em cada um. Também há muitas outras
diferenças em certas analogias, mas algumas podem interessar. Diadorim se expõe, e
neste sentido se mata. No entanto, a morte se dá em uma luta em que Diadorim,
matando Hermógenes, reverte uma ordem do sertão, livrando-o da jagunçagem e do pior
e mais cruento dos jagunços. Instaura o início de uma nova ordem social, ainda com
foros domésticos, já que só Riobaldo divide as suas terras entre os seus amigos ex-
jagunços. Diadorim não se suicida, ainda que ao se expor no campo de batalha, revela
uma atitude um tanto suicida. Já Madalena se suicida explicitamente e na cama. Sua
morte não provoca uma nova ordem social nem mesmo para Paulo Honório: só desperta
e faz crescer o sentimento de culpa, contaminando a imagem que Paulo Honório tem de
si, o que o leva a abandonar os valores antigos, sem substituí-los por novos, contudo.
S. Bernardo está em primeira pessoa, como Grande Sertão: Veredas. Mas o
narrador de S. Bernardo não fala com um interlocutor específico e pressuposto no
próprio texto, como em Grande Sertão: Veredas ou "Meu tio o iauaretê", do mesmo
Guimarães Rosa. A idéia do narrador é escrever um livro e não contar uma história
oralmente. É verdade que Paulo Honório discute com Lúcio Gomes de Azevedo
Gondim, redator e diretor do Cruzeiro justamente sobre a língua a ser usada na escrita:
“- Vá para o inferno, Gondim. Você acanalhou o troço. Está pernóstico, está safado, está
idiota. Há lá ninguém que fale dessa forma77! ”Gondim retruca "que um artista não pode
escrever como fala."
“- Não pode? perguntei com assombro. E por quê? Azevedo Gondim respondeu que não
pode porque não pode.
- Foi assim que sempre se fêz. A literatura é a literatura, Seu Paulo. A gente discute,
briga, trata de negócios naturalmente, mas arranjar palavras com tinta é outra coisa. Se eu
fosse escrever como falo, ninguém me lia78“.
Abandonei a empresa, mas um dia destes ouvi novo pio de coruja - e iniciei a composição
de repente, valendo-me dos meus próprios recursos e sem indagar se isto me traz qualquer
vantagem, direta ou indireta79.
Portanto, o relato não visa vantagem. Então por que escreve? O impulso foi o
pio da coruja. O pio da coruja reaparece em diversos momentos da narrativa. Também
no capítulo 19:
Uma coruja pia na torre da igreja. Terá realmente piado a coruja? Será a mesma que piava
há dois anos? Talvez seja até o mesmo pio daquele tempo80.
Uma tarde subi à torre da igreja e fui ver Marciano procurar corujas. Algumas se haviam
alojado no forro, e à noite era cada pio de rebentar os ouvidos da gente. Eu desejava assistir
à extinção daquelas aves amaldiçoadas81.
77. Ramos, Graciliano. S. Bernardo. 29ª ed. Posfácio João Luiz Lafetá. Ilustrações Darel. Rio de Janeiro:
Record, 1978: 9.
78. Ramos 1978: 9.
79. Ramos 1978: 9.
80. Ramos 1978: 94.
81. Ramos 1978: 141.
48
O que eu dizia era simples, direto, e procurava debalde em minha mulher concisão e
clareza. Usar aquele vocabulário, vasto, cheio de ciladas, não me seria possível. E se ela
tentava empregar a minha linguagem resumida, matuta, as expressões mais inofensivas e
concretas eram para mim semelhantes às cobras: faziam voltas, picavam e tinham
significação venenosa82.
Não sei ler, não conheço iluminação elétrica nem telefone. Para me exprimir recorro a
muita perífrase e muita gesticulação. Tenho, como todo o mundo, uma candeia de azeite,
que não serve para nada, porque à noite a gente dorme. Podem rebentar centenas de
revoluções. Não receberei notícia delas. Provavelmente sou um sujeito feliz.
Com um estremecimento, largo essa felicidade que não é minha e encontro-me aqui em S.
Bernardo, escrevendo83.
Escrever, para Paulo Honório, tem função dupla. Por um lado só é possível
mediante um preço: o da perda da felicidade; o de haver estragado sua vida. Por outro,
revela um desejo: “Penso em Madalena com insistência. Se fosse possível
recomeçarmos84...”
A palavra revela desgraça - e espera uma espécie de redenção.
Creio que nem sempre fui egoísta e brutal. A profissão é que me deu qualidades tão ruins.
E a desconfiança terrível que me aponta inimigos em toda a parte!
A desconfiança é também conseqüência da profissão85.
Foi este modo de vida que me inutilizou. Sou um aleijado. devo ter um coração miúdo,
lacunas no cérebro, nervos diferentes dos nervos dos outros homens. E um nariz enorme,
uma boca enorme, dedos enormes.
Fecho os olhos, agito a cabeça para repelir a visão que me exibe essas deformidades
monstruosas86.
Ao mesmo tempo, atesta a inutilidade de seu ato de escrever: “E, falando assim,
compreendo que perco tempo. Com efeito, se me escapa o retrato moral de minha
mulher, para que serve esta narrativa? Para nada, mas sou forçado a escrever89”.
Neste capítulo 19 - central - as repetições fixam obsessivamente as imagens do
passado, tecidas pelas palavras. Elas poderiam referenciar o modernismo,
metalinguagem de moda, no momento da produção da obra, retratada, no início do
romance, pela conversa entre Paulo Honório, João Nogueira e Gondim. A repetição
obsessiva do narrador Paulo Honório espelha a memória como aguilhão da culpa de
roubar, espoliar, punir, bater, ferir e matar. O discurso indignado de Madalena incitava a
consciência ética e moral de Paulo Honório, a ser expressa por outras palavras:
As minhas palavras eram apenas palavras, reprodução perfeita de fatos exteriores, e as dela
tinham alguma coisas que não consigo exprimir. Para senti-las melhor, eu apagava as luzes,
deixava que a sombra nos envolvesse até ficarmos dois vultos indistintos na escuridão90.
Para que soassem as palavras, era preciso que houvesse escuridão. Então as
palavras reverberam algo que o narrador não consegue exprimir. Nem exatamente ouvir
("A voz dela me chega aos ouvidos. Não, não é aos ouvidos. Também já não a vejo com
os olhos"91). São como as palavras de um oráculo. O local do oráculo é a sala escura,
onde a sacerdotisa está invisível, o tempo parou e o narrador está imobilizado.
O centro de S. Bernardo tem a escuridão da caverna. Trata-se da caverna
psíquica, na qual reaparecem os temas obsessivos das duas partes da narrativa: o pio da
coruja; a dificuldade de uso da palavra; a brutalidade de Paulo Honório; o empenho
bondoso de Madalena em ajudar os miseráveis; o relógio, cujos ponteiros não se vêem;
a escuridão na sala; Casimiro Lopes agachado - quer espreitando e esperando em um
canto da sala, quer aparecendo à janela; sapos, vento, corujas, igreja (capela).
Estes símbolos da obsessão de Paulo Honório constroem a estrutura tripartite da
obra, com duas partes principais que se referem à realidade econômica e social da
fazenda S. Bernardo, e uma, central, que, ao contrário das outras duas, horizontais,
cronológicas, é vertical, de cunho psíquico, penetrando no inconsciente da personagem.
Em verdade os mesmos símbolos estão esparsos em todo o romance, mas concentrados
no centro. Os símbolos, a meu ver provenientes do mito de Trofônio, são caverna,
monstro, fuga do reconhecimento da culpa, esquecimento, poder da palavra. No
romance de Graciliano Ramos a caverna - símbolo encontrável nos capítulos central e
final - seria a sala escura, em que está um Paulo Honório que não mostra mais o fluir do
tempo. Ele como que interrompe a narrativa e suspende o tempo, borrado. Paulo
Honório só, no escuro e sem ação – os símbolos funcionando de maneira cumulativa -
ouve os ruídos circundantes, tal como o pio da coruja. O monstro seria o narrador e
personagem principal Paulo Honório, perverso, ganancioso, insensível, de mãos
grosseiras, monstruosas; palavra, esquecimento e memória seriam todos eles os motivos
estruturadores da narrativa (busca da palavra entrelaçada ao reconhecimento da culpa).
Esta imagem monstruosa da personagem cresce, ao longo da narrativa, na primeira
parte, relatando que Paulo Honório forja sua riqueza a partir de uma liberdade feita de
falta de ética. Na segunda, a partir da consciência dilacerada, que provoca a sua pobreza
e perda de liberdade.
mito). Inquirido, Trofônio falaria. Reconheceria sua culpa. Desde então o lugar do
oráculo passara a ser muito freqüentado.
Quem consultasse o oráculo precisava submeter-se a duras provas. O neófito
(com um bolinho em cada mão, oferenda necessária) preparava-se para ser metido em
um buraco, representativo da penetração em um espaço sagrado. Começaria, então, a
trajetória iniciática, nomeada de regressus ad uterum92. Dentro da cova, um sacerdote
dava uma paulada no neófito, que desmaiava. Quando começava a voltar a si, um ou
mais de um sacerdote passava a sussurrar algo. Quando despertava, ainda ouvia as suas
vozes e falas. Era, então, içado. Voltando à superfície, achava-se sentado à mão direita
de Mnemosine, a deusa da memória, e deveria revelar as terríveis experiências vividas e
palavras ouvidas, que marcavam a sua vida, tornando-o grave e triste.
Os motivos da culpa, da escuridão na qual se encontra o criminoso, da perda da
produtividade e da decadência da terra na qual se deu o crime, da necessidade da
memória e da fala, encontram-se em S. Bernardo.
O engolimento de Trofônio pela terra não se relaciona ao motivo do engolimento
e regurgitação estudados por Propp, a não ser no sentido mais genérico. A iniciação era
do neófito, não de Trofônio. Trofônio continuava sendo punido e atormentado pela
culpa. A expressão do passado, conservado na memória de Trofônio, é processo de
expiação.
A suspensão dos efeitos do crime no mundo em que ele se deu depende da
recordação do mesmo, coisa que só consta do rito e do mito de Trofônio, e não do conto
do rei Rampsinitos, que poderia ser do conhecimento de Graciliano Ramos, quer por
leitura, quer através de algum relato oral da região.
O estudo de uma coleção de 300 textos de cordel, assim como a leitura de
diversos livros sobre cordel e contendo antologias (na sua maioria da região Nordeste,
de onde provinha Graciliano Ramos), indiciam que nem o relato sobre Rampsinitos
aparece direta ou indiretamente sob a forma de motivos esparsos.
Se Graciliano não pode ter absorvido o relato do mito pela via popular, ouvindo
narrativas de cordel com enredo semelhante, poderia, é claro, tê-lo feito pela via erudita.
92. Segundo Mircea Eliade, a volta à matriz é indiciada quer pela reclusão do neófito em uma palhoça,
quer por seu engolimento simbólico por um monstro, quer pela penetração em um terreno sagrado
identificado ao útero da Mãe-Terra. Esta última era realizada através da penetração iniciática em uma
vagina dentata, ou pela descida perigosa em uma caverna ou uma fenda. O motivo é o do engolimento,
estudado por Propp.
54
E eu vou ficar aqui, às escuras, até não sei que hora, até que, morto de fadiga, encoste a
cabeça à mesa e descanse uns minutos95.
A penetração em uma caverna pode ter também outro sentido: o de contato com
o reino dos mortos. Ambos não são excludentes. Em S. Bernardo a "penetração na
caverna" leva Paulo Honório a ouvir vozes e sinais atribuídos à manifestação da morte:
corujas, a voz de Madalena, já morta - mas o leitor ainda não o sabe. Como Paulo
Honório não se renova, ou renasce para uma outra vida, chegamos à conclusão de que
se há iniciação, ela vale para o leitor, que penetra na caverna, ouve as vozes e outros
sinais e contempla o monstro que é Paulo Honório, através da narrativa e do narrador
especial que representa a enunciação do próprio culpado. A função do relato não será a
catarse, porque o receptor não consegue ter a dimensão da purificação. A finalidade é a
de instrumentalizar o receptor enquanto testemunha do lido, ouvido, ocorrido. A
recepção exigiria o testemunho sobre crime e culpa, para que a verdade seja
restabelecida. Como o crente que entra no antro de Trofônio, o leitor deve ouvir as
vozes, recordá-las e confirmá-las. Ao relatar o ouvido, os eventos recobrariam voz, que
até então estava soterrada, oculta na escuridão da caverna. O relato transforma-se em
documento e o receptor em um intermediário privilegiado entre crime e culpa,
testemunha da baixeza do herói.
Através deste recurso Graciliano Ramos também reflete sobre um dos aspectos
sócio-econômicos do (sub)desenvolvimento brasileiro: a riqueza é procurada e
ambicionada a qualquer preço, sem escrúpulos e sem consciência de classe. Paulo
Honório é um pobre que enriquece à custa de crimes. A culpa repõe a consciência de
classe no universo de Madalena, primeiro, e depois no de Paulo Honório. Ela também
representa a expiação de Paulo Honório. Só que no fim do relato ainda não houve
remissão.
S. Bernardo, estruturado por duas partes horizontais, sintagmáticas, e outra
vertical, paradigmática, reúne aos aspectos de realidade social outros de realidade
psíquica. Analisado como tendo fundamentalmente a vertente neo-realista na sua obra,
(ainda que Insônia e Angústia tenham forçosamente temas e tratamento de aspectos da
psique humana) Graciliano Ramos pode não ter tido conhecimento do mito de Trofônio
e pode não ter tido a intenção de estruturar seu livro S. Bernardo em cima de elementos
que lembrem o mito referido.
Para tentar entender a presença do mito de Trofônio na narrativa, recorri a
Propp.
56
ver sinais de entrada - e saída - decide pendurar o corpo em uma das muralhas da
cidade, a fim de capturar o provável parente. O corpo é roubado com astúcia, o que
surpreende o rei, novamente. Ele procura outra saída para localizar o ladrão,
convocando a ajuda da filha. O astuto ladrão escapa de novo.
Heródoto - e os livros de sua biblioteca, onde não consta nenhum exemplar dos livros de
Heródoto, não abrem espaço para esta hipótese - o único relato extenso e minucioso
sobre o assunto é ainda e sempre o de Rampsinitos - com um final um pouco diferente
daquele citado acima e incluído na antologia citada de Ferreira e Houaiss - e bem
diferente da parte que nos interessa do mito de Trofônio.
Ao pesquisar as pastas do espólio de Graciliano Ramos preservadas no IEB,
verifiquei que foi publicada uma informação de Graciliano Ramos, por solicitação
declarada de Condé, em que ele explica "a origem de Paulo Honório, alagoano,
viçosense, chegado ao Rio há doze anos e hospedado na Ariel"105. Graciliano conta:
Em 1924, em Palmeiras dos Índios, interior de Alagoas, encontrei dificuldade séria106 [...].
[...] e no começo de 1932 arrastava-me de novo em Palmeiras dos Índios, com vários filhos
pequenos, sem ofício nem esperanças, enxergando em redor nuvens e sombras.
Nessa crítica situação voltou-me ao espírito o criminoso que em 1924 me havia afastado as
inquietações - um tipo vermelho, cabeludo, violento, de mãos duras, sujas de terra como
raízes, habituadas a esbofetear caboclos na lavoura. As outras figuras da novela não tinham
relevo, perdiam-se à distância, vagas e inconsistentes, mas o sujeito cascudo e grosseiro
avultava, no alpendre da casa-grande de S. Bernardo [...]. E, sem recorrer ao manuscrito de
oito anos, pois isto prejudicaria irremediavelmente a composição, restaurei o fazendeiro
cru, a lápis, na sacristia da igreja enorme que o meu amigo padre Macedo andava a
construir. Surgiram personagens novas e a história foi saindo diversa da primitiva.
Aussitôt occupé de cette pensée, il mit à l'épreuve les oracles de Grèce et celui de Libye; des députés
furent envoyés en divers lieux, les uns chargés de se rendre à Delphes, les autres à Abai en Phocide, les
autres à Dodone; il en eut d'envoyés au sanctuaire d'Amphiaraos, au sanctuaire de Trophonios [...]
A nota ao pé de página, com respeito a Trofônio informa que o santuário fica em Lebadéia, na Beócia.
Neste livro é só esta a referência. (Hérodote. Histoires. Livre I - Clio. Texte établi et traduit par Ph.-E.
Legrand. Paris: "Les Belles Lettres", 1970. [Col. des Universités de France]: 57-8.
No livro VIII 134 consta:
Il est constant que ce Mys se rendit à Lébadée et qu'il décida un homme du pays, qu'il paya pour cela
(Nota: Les consultations y étant entourées de rites compliqués et impressionnants [Paus., IX 39 4 et
suiv.]), à descendre dans l'antre de Trophonios; qu'il alla également à Abai en Phocide interroger l'oracle.
(Hérodote. Histoires. Livre VIII - Uranie. Texte établi et traduit par Ph.-E. Legrand. Paris: "Les Belles
Lettres", 1953. [Col. Des Universités de France]: 134).
É só. De fato, só em Pausanias encontraremos uma descrição do ritual.
105. O texto encontra-se na pasta da série "Manuscritos - Crônicas, ensaios e fragmentos" - Cota 10 -
Pasta 1-1 do acervo Graciliano Ramos depositado no IEB e foi publicado na Revista do Instituto de
Estudos Brasileiros. nº 35, São Paulo, 1993: 204-6.
106. Segundo Maria Lúcia Palma Gama, que comenta o texto, em 1924 Graciliano estava "viúvo, com
quatro filhos pequenos para sustentar, sentindo-se velho, bloqueado pela atividade comercial, incapaz de
escrever ([...]). Surge então um criminoso [...]. Nasce o personagem que será abandonado por oito anos,
até um novo período de crise. Sem recorrer ao manuscrito, retomou a figura do criminoso, "fazendeiro
cru", e escreveu dezoito capítulos de S. Bernardo na sacristia da igreja do padre Macedo, seu amigo.
Problemas de saúde, uma operação, longa convalescença e, ao sair do hospital, recomeça o trabalho no
Pinga-Fogo.
59
Até o capítulo XVIII tudo correu sem transtorno. Um dia de fevereiro, ao entrar em
casa, senti arrepios. À noite, com febre, fiz o capítulo XIX, uma confusão que mais
tarde, quando me restabeleci, conservei.
Pela doutrina da reversão (atavismo) [...] o embrião se torna ainda mais maravilhoso,
pois, além da mudança visível que sofre, devemos acreditar que ele é repleto de caracteres
invisíveis [...] afastados do tempo presente por centenas, ou mesmo milhares, de gerações; e
esses caracteres, tal como os escritos com tinta invisível num papel, jazem prontos para se
desenvolver, toda vez que a organização for perturbada por certas condições conhecidas e
desconhecidas107.
107. Darwin, Charles. Variation of Animals and Plants under Domestication, 1868, apud Gould, Stephen
Jay. A galinha e seus dentes e outras reflexões sobre história natural. Trad. David Dana. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1992: 186.
108. Vide Sperber 1991: "A virtude do jaguar: mitologia grega e indígena no sertão roseano". In Anais
do Colloque Sertão: Realité, Mythe et Fiction. Département de Portugais, Université Rennes 2 Haute
Bretagne - Rennes - France, vol. I: 159-166. E Sperber 1993.
60
um conjunto de temas revelam que o Autor valoriza a cultura oprimida. Mas como
conheceria ele a cultura dos arawetés, se estes foram estudados mais de 20 anos depois
de escrito o conto e 15 anos depois de sua morte109?
"Meu tio, o iauaretê", como S. Bernardo, apresenta traços de uma cultura cujo
conhecimento não conseguimos comprovar historicamente. No caso de "Meu tio, o
iauaretê", o conhecimento da cultura araweté poderia ter sido inferida pelo
conhecimento dos tupis. Mas a própria antropologia não tinha, no início da década de
60, os conhecimentos e visão que teve vinte anos mais tarde, quando do estudo da
referida tribo.
Mais do que o conhecimento antropológico - avant la lettre - dos tupis, já que
não dos índios araweté, Guimarães Rosa poderia ter despertado alguns traços e motivos
de outra cultura. Como se reuniriam tantos, correspondendo tão direitinho ao universo
de mitos e rituais dos índios araweté - e, por outro lado, como teria ocorrido outro tanto
em obra de Graciliano Ramos relativo ao mito de Trofônio - que nem pertence a uma
cultura de índios que vivem no Brasil?
Retomo alguns tópicos para fundamentar de outro modo a minha hipótese da
recapitulação.
- Propp mostrou que mitos ou relatos orais do passado ancestral, com estruturas
e temas recorrentes podem ter temas reduzidos a motivos soltos na nova narrativa em
que aparecem - não sendo, aí, estruturadores - nem arquetípicos. Segundo Propp, os
motivos independizados e redefinidos têm uma trajetória linear, evolucionista, e
determinista: do ritual ao mito e deste ao conto maravilhoso. Cada uma das
manifestações é diferente, adquirindo, cada uma, características da nova sociedade
dentro da qual estes relatos aparecem.
- Os textos escritos aproveitam às vezes - conscientemente ou não - temas,
motivos, símbolos provenientes de relatos orais, organizados (segundo os desígnios do
autor) dentro de um contexto complexo, constituído por cruzamentos de referências as
mais diversas, sem deixar de ter um diálogo com a cultura local e nacional presente ou
passada, ou com obras escritas de qualquer proveniência e marcantes para o autor.
109. Viveiros de Castro, Eduardo. Araweté: os deuses canibais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986: 130.
61
Estabelecido firmemente esse ponto de vista, tudo o que estiver sob o limiar da
escrita, e, em geral, os hábitos rústicos ou suburbanos, é visto como sobrevivência das
culturas indígenas, negra, cabocla, escrava ou, mesmo, portuguesa arcaica110...
L'anamnesis philosophique ne récupère pas le souvenir des événements faisant partie des
existences précédentes, mais des vérités, des structures du réel. On peut rapprocher cette
position philosophique de celle des sociétés traditionnelles: les mythes représentent des
modèles paradigmatiques fondés par des Etres Surnaturels, et non pas une série
d'expériences personnelles de tel ou tel individu112.
110. Bosi, Alfredo. Dialética da Colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992: 323.
111. A frase corrente no Brasil explicita Salomão (o rei) como seu autor. Novos estudos constataram ser
outra a autoria: Quohelet.
112. Nota 1 de Eliade, Mircéa. Aspects du mythe. Paris: Gallimard, 1963: 155: "Cf. Mythes, rêves et
mystères, pp.56-57. Pour C. G. Jung aussi l'"inconscient collectif" précède la psyché individuelle. Le
monde des archétypes de Jung ressemble en quelque sorte au monde des Idées platoniciennes: les
archétypes sont transpersonnels et ne participent pas au Temps historique de l'individu, mais au Temps de
l'espèce, voire de la Vie organique".
62
113. Jabouille, Victor. "Introdução à edição portuguesa". In Grimal. Pierre. Dicionário da Mitologia
Grega e Romana. 2ª ed. Trad. Victor Jabouille. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1993: X.
114. Durand, Gilbert. Les structures anthropologiques de l'imaginaire. Paris: Bordas, 1988.
115. Durand, Gilbert. L'imaginaire symbolique. Paris: P.U.F., 1984. Durand também escreveu outras
obras em que trata do mito: Le décor mythique de la Chartreuse de Parme. Paris: Corti, 1961; Science de
l'homme et tradition. Paris: Berg International, 1979; L'âme tigrée. Les plurels de psyché. Paris: Denoel-
Gonthier, 1980; Mito, símbolo e metodologia. Lisboa: Presença, 1982; O mito, a sociedade e a sociologia
das profundezas. Lisboa: A regra do jogo, 1983; La foi du cordonnier. Paris: Denoel-Gonthier, 1984;
Beaux-arts et archétypes. La religion de l'art. Paris: P.U.F., 1989.
116. Durand 1988: 11.
63
quais, por sua vez, se integram em três grandes agrupamentos mais gerais de estruturas
vizinhas, analisados em Structures Anthropologiques de l'Imaginaire. Considerando o
mito como "uma narrativa (discurso mítico) que põe em cena personagens, cenários,
objetos simbolicamente valorizados, segmentável em seqüências ou menores unidades
semânticas (mitemas) nas quais se investe obrigatoriamente uma crença (contrariamente
à fábula e ao conto) chamada pregnância simbólica (E. Cassirer)"117, Gilbert Durand
admite que o pensamento humano se move dentro de quadros míticos e,
inconscientemente ou não, esses quadros estão presentes nas manifestações do
imaginário. Seria o mito que, na realidade existencial das culturas e da vida dos homens,
distribui o papel da história.
O meu objeto não é explicar o pensamento humano como um todo, em que
suporia ocorrências freqüentes e repetidas, como Durand, mas, muito mais
modestamente, examinar um fenômeno especial, percebido por mim de modo mais
completo em apenas um caso, mas que me parece poder ocorrer - sobretudo nas criações
artísticas (aí, sim, sugiro que em qualquer ser humano, ou artista, ainda que raramente).
A concepção de Durand acima exposta não se presta para explicar este fenômeno, nem
ele se encaixa na teoria durandiana completa. Volto, pois, ao conceito de recapitulação.
Como o corpus de referência desta reflexão é S. Bernardo, de Graciliano Ramos,
e desejo definir o conceito de recapitulação, considero que:
Muita confusão tem sido feita em torno do conceito de arquétipo. Há ainda quem
continue repetindo que Jung admite a existência de idéias inatas e de imagens inatas. É
falso. Incansavelmente êle repete que arquétipos são possibilidades herdadas para
representar imagens similares, são formas instintivas de imaginar. São matrizes arcaicas
onde configurações análogas ou semelhantes tomam forma. Jung compara o arquétipo ao
sistema axial dos cristais que determina a estrutura cristalina na solução saturada sem
possuir, contudo, existência própria122.
Seja qual for sua origem, o arquétipo funciona como um módulo de concentração
de energia psíquica. Quando esta energia, em estado potencial, atualisa-se (sic), toma
forma, então teremos a imagem arquetípica. Não poderemos denominar esta imagem de
arquétipo, pois o arquétipo é unicamente uma virtualidade123.
124. Apuleio, Lúcio. O asno de ouro. Intr. notas e tradução Ruth Guimarães. Rio de Janeiro: Ediouro
(Tecnoprint), s/d.
125. "Na perigosa alternativa de nos perdermos ou de abandonarmos nosso companheiro, premidos pelas
circunstâncias, lembramo-nos de um remédio enérgico, que teve o consentimento do chefe. A parte
inferior do braço nós a cortamos prontamente com um golpe bem calculado em cima da articulação.
Depois, deixando lá o toco, vedamos o ferimento com um tampão de fazenda, para evitar que gotas do
sangue traíssem nossa passagem, e levamos apressadamente o que restava de Lâmaco. [...] Então, não
podendo nem seguir bem depressa, nem demorar sem risco, esse homem de alma sublime e de uma
valentia sem igual, nos dirigiu a palavra, fazendo-nos súplicas as mais tocantes, exortando-nos, pela mão
direita de Marte, pela fé do juramento, a que livrássemos um companheiro dos seus sofrimentos e, ao
mesmo tempo, da prisão". Lâmaco acaba por se matar para não mais sofrer. (Apuleio: Livro IV, X: 62-3).
126. Gould, Stephen Jay. A galinha e seus dentes e outras reflexões sobre história natural. Trad. David
Dana. Rio de Janeiro: Paz e Terra: 1992: 177-186.
185: "Os modelos do desenvolvimento passado de um organismo persistem sob forma latente".
186: "O passado de um organismo não só condiciona seu futuro como também lega uma enorme reserva
potencial para a mudança morfológica rápida, baseada em pequenas mudanças genéticas".
67
experiência em que uma galinha recobra algo como dentes, coisa da pré-história. A
recapitulação ocorre rarissimamente e de maneira fortuita, na arte. Através dela,
encontraríamos não um símbolo isolado, mas um conjunto de símbolos diferentes:
memória de um culto e mito antigos, não atualizados na cultura local, nem por leituras,
e que, em determinadas circunstâncias, teria condições de voltar a tomar corpo.
A recapitulação, conceito que vem da biologia, nada deve à teoria de resquícios,
ou resíduos dos estudos sociológicos convencionais, de filiação evolucionista, já porque
derruba o conceito de evolução, substituindo-o pela recapitulação repentina de uma
característica típica de um estágio primitivo, graças a alguma aliança exógena com um
corpo (forma) aparentemente conhecido e consciente.
O relato do culto ou o mito recapitulado seria autêntico, por ser, ele também,
dinâmico:
le mythe authentique est "dynamique" - il lui faut se révéler pour autant qu'il produit
quelque chose: la figure. La figure est l'élément créateur dans le monde parce qu'elle-même
est immédiatément née de l'originel127.
(La langue) est elle-même la vérité du mythe. Plus exactement: elle n'est rien d'autre que la
figure de la vérité (mythique) devenue manifeste dans la parole. (Elle n'explicite pas le
mythe, elle ne tente pas de l'exprimer, elle est le mythe. Ce que dit déjà le mot grec
mythos? en sa signification déjà indiquée: le vrai comme parole!)128
127. Otto, Walter F.. Essais sur le Mythe. Traduit de l'allemand par Pascal David. Mauvezin: Trans-
Europ-Repress, 1987: 33.
128. Otto 1987: 37.
129. Eliade1963:15.
68
assemelha mais a um caso. Pesa e avalia as ações, usando palavras do tipo castigo e
recompensa. O valor maior, premiado, é a astúcia133.
A passagem de uma forma a outra é feita por justaposições e superposições de
funções caracterizadoras de cada forma, capazes de uma atribuição de sentidos
diferenciados. As modificações nos motivos estudadas por Propp decorreriam de
mudanças de funções, mais do que de circunstâncias históricas? Uma resposta positiva
valoriza a construção ficcional e atribui menor peso ao registro histórico-social. Ou faz
com que ambos se correlacionem, interdependentes. A diferença entre 'Trofônio' e
'Rampsinitos' não é arbitrária, nem inócua. E Graciliano não poderia ter feito bom uso
de ‘Rampsinitos’.
2. O mito primitivo
133. A 'lei de Gerson', que pareceu caracterizar o Brasil, recorre, enquanto astúcia matreira e mesmo
criminosa em outras partes e em outros momentos da história do mundo, bem anteriores ao século XX...
71
134. Calvino, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. Lições americanas. 4¦ reimpressão. Trad. Ivo
Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1990: 16.
72
Em tempos mui distantes, certo homem aproximou-se de uma criança que brincava
sozinha. Deu-lhe uma tocha acesa e ordenou-lhe que a apagasse na água do rio,
desaparecendo em seguida.
A criança mergulhou a tocha no rio e este começou logo a arder. A princípio incendiou-se
a água, depois a terra também começou a levantar altas chamas. O fogo meteu-se por baixo
do chão e foi irromper no terreiro de uma aldeia. Então a terra desabou nesse local.
Uma mulher grávida escondeu-se com um menino no bananal, que não podia ser
destruído pelo fogo. O incêndio aniquilou toda a humanidade. E depois que o fogaréu se
extinguiu os dois saíram de seu esconderijo. Na imensa coivara encontraram cinco raízes de
mandioca, que guardaram cuidadosamente.
Então choveu durante muitos dias e muitas noites, sem parar. Ambos sofreram muita
fome. Por fim, a água foi baixando vagarosamente e quando a terra ficou descoberta,
plantaram as raízes de mandioca.
A mulher deu à luz uma menina; desta e do menino, ressurgiu a humanidade.
Nous savons que l’initiatio était censée fournir au jeune homme la possibilité
d’acquérir une âme nouvelle et de devenir un homme nouveau. Nous sommes ici en
présence de la conception du feu comme force purifiante et rajeunissante, conception qui se
prolongera jusqu’au purgatoire chrétien.
[...]
Toute les formes de cuisson, de brûlure et de rôtissage conduisent au plus grands
des bienfaits, bienfait qui est le but de tout le rite d’une façon générale, à savoir
l’acquisition des qualités nécessaires à un membre à part entière de la société tribale.
Nous savons que le rite tout entier constituait une descente aux enfers 139.
Nous savons que les mythes étaient des récits sacrés et tabous. Nous verrons cela
en détail dans le dernier chapitre. Mais à mesure qu’intervient le processus de
déssacralisation du récit, processus lié au perfectionnement des outils, à la décadence de la
magie et à la différenciation sociale qui les accompagne, ce qui prend le dessus, c’est la
version “profane”, c’est-à-dire la version qui nie le bienfait de l’épreuve du feu et qui en
retourne le sadisme contre le fauteur du feu, jeté à son tour dans le four. À côté de ceci,
pour les “grands”: chefs, héros, demi-dieux, et plus tard dieux, la version archaïque,
directement sortie du rite, est toujours en vigueur140.
Ces exemples montrent que l’avalement par l’animal a été remplacé par
l’engloutissement par l’eau, qu’il s’agisse d’une baignade dans un étang infesté de serpents
ou même d’un engloutissement et d’un recrachement par l’onde marine.
Ainsi, nous établissons le fait suivant: d’après le rite, c’est le dragon (ou quelque autre
animal) qui fait le chasseur; d’après le mythe, c’est toujours le dragon qui fait le grand
chasseur et le grand chamane. C’est le dragon aussi qui donne le premier feu et, à l’aube de
l’agriculture, les premiers fruits de la récolte, ainsi que la poterie. Ultérieurement, nous
aurons le grand chef et, ultérieurement encore, le dieu 141.
O mito Tembé não metaforiza o fogo. Fala diretamente dele, como evento
paralelo ao humano, sem menção a uma purificação. Pelo sentido de coivara ("restos ou
139. Propp 1983: 127.
140. Propp 1983: 129-30.
141. Propp 1983: 301.
74
pilha de ramagens não atingidas pela queimada, na roça à qual se deitou fogo, e que se
juntam para serem incineradas a fim de limpar o terreno e adubá-lo com as cinzas, para
uma lavoura"), inferiríamos que o fogo purifica a terra, ou a fertiliza.
Como na mitologia grega, o tema do fogo é referido a par do tema da água. Em
rituais iniciáticos o fogo simboliza morte e renascimento, relacionado a seu princípio
antagônico: a água. A purificação pelo fogo e pela água são complementares, tanto no
plano microcósmico dos rituais iniciáticos, quanto no plano macrocósmico, dos mitos
alternados de Dilúvios e de Grandes Secas e Incêndios. Talvez o mito Tembé trate, à
sua maneira, de morte e renascimento, indiciando, pelos temas abordados, a simbologia
que lhe estaria por trás. Quem morre e renasce? A terra? O mundo?
Água queimada é símbolo que resume a união dos contrários realizada no seio
da terra. Esta união de contrários pode referir o ato sexual, mas nada indicia este sentido
na narrativa dos Tembé.
Dentre outros símbolos que aparecem no mito Tembé, encontramos o número
cinco142.
[...] tudo o que servia de alimento amadurecia cinco dias depois de ter sido semeado, e os
mortos ressuscitavam depois de cinco dias [...].
142. O número cinco exercia um papel capital nas crenças dos antigos peruanos.
75
criança que brincava sozinha" - introduz este Prometeu Tembé apenas como "certo
homem", que aparece e desaparece. A personagem não está caracterizada: só a cena.
Este Prometeu dá o fogo e ordena a seqüência: apagar o fogo na água do rio. Seria
lógico: "Criança não brinca com fogo". Surpreendentemente, o fogo incendeia a água.
Não interessa a relação lógica com a realidade, mas a lógica interna do relato. A tocha
tem fogo e este é poderoso; incendeia a água. Poderia corresponder à visão de material
combustível do futuro, ou de conhecimento deste material: álcool, óleo ou gasolina. A
lógica da narrativa se faz por contigüidade. A tocha incendeia a água, na qual mergulha,
que põe fogo na terra, que irrompe na aldeia. O fogo, no entanto, não age sozinho.
Precisa de uma criança que mergulhe a tocha no rio. A cena não é meramente descritiva.
Existe ação, que se caracteriza por um ser humano que dá o impulso inicial; o resto é
conseqüência.
A terceira cena independe da anterior, tendo por elo de ligação o fogo e o perigo
de morte e necessidade de abrigo. A cena precedente tinha tido uma motivação maior,
visto que a criança do primeiro parágrafo-cena reaparece no segundo. A terceira cena
tem personagens novos: a mulher grávida e o menino. (No fim das contas, quem faz
ressurgir a humanidade são um menino e uma menina). A mulher grávida e o menino
são indispensáveis para a seqüência da narrativa e precisam ser caracterizados como
foram: a mulher precisa estar grávida e o macho precisa ser um menino para que depois
exista um par que possa procriar, repovoando a terra dizimada.
A história refere-se à origem e à vida na terra, à origem do fogo e do alimento
(mandioca). Inferimos, por contigüidade – a outros mitos de origem e a uma simbologia
– mais sentidos do que aqueles inscritos na lenda. O desenvolvimento da ação, a
caracterização de personagens, espaço e tempo têm algo de rude.
O homem é alegoria do poder e do conhecimento do poder do fogo. Não há um
deus. A criança representa o ser humano - e a humanidade - em seu estágio primitivo e
primordial. A coivara tem sua necessidade e economia determinadas pela explicação da
origem do alimento sobre a face de uma terra calcinada. O foco narrativo está em 3ª
pessoa e é unívoco e onisciente. As coisas são e se passaram assim, o que deve ser
aceito porque isto é bom, razoável e salutar.
Os símbolos desta lenda falam na regeneração da terra e da vida como
manifestação da esperança e confiança nesta purificação, que é confiança no princípio
76
Tranqüilizai-vos, pois, em verdade, ele (Licáon) já foi castigado. Contarei, todavia, qual
foi o seu crime e qual a punição. Chegara aos meus ouvidos a notícia da infâmia destes
tempos. Desejaria que fosse falsa. Resolvo, por isso, deixando o alto Olimpo, embora deus,
percorrer a Terra em forma humana. Seria longo enumerar tudo de criminoso que encontrei
por toda a parte: a verdade era ainda pior do que eu ouvira 143.
Já ia espalhar os raios por todas as terras, mas teve medo de que o éter sagrado se
inflamasse como todo aquele fogo e o mundo ardesse em toda a extensão do seu eixo.
Lembrou-se também que, de acordo com os fados, chegará um dia em que o mar, a terra e o
palácio celeste atingidos arderão, e desmoronará o conjunto do mundo, com tanta indústria
construída. Põe de lado os dardos feitos pelas mãos dos ciclopes; apraz-lhe um castigo
diferente: destruir pela água o gênero humano e desfazer as nuvens de todo o céu 144.
143. Ovídio. As metamorfoses. Trad. David Jardim Jr. Rio de Janeiro: Tecnoprint, 1983, (Ediouro): 16.
144. Ovídio 1983: 17.
145. Lang, Andrew. Mythes, cultes et religions. Traduit par Léon Marillier. Précédé d'une introduction
par Léon Marillier. Paris: Félix Alcan, 1896.
77
Mito da Idade de Ouro (mito Mito da terra sem morte (mito Taulipang e Arekuná).-
grego)
146. "A virtude do jaguar: mitologia grega e indígena no sertão roseano". In Remate de Males nº 12.
Revista do Departamento de Teoria Literária-IEL-UNICAMP, 1992: 89-94.
147. Cf. Sperber, George Bernard. Wegweiser im "Amazonas". Studien zur Rezeption, zu den Quellen
und zur Textkritik der Südamerika-Trilogie Alfred Döblins. München: Tuduv, 1975.
79
George Bernard Sperber traduziu, para meu uso, três mitos Taulipang recolhidos
por Koch-Grünberg150: "As Amazonas151"; "Por que o sol anda mais devagar152" e "A
tartaruga e o tapir153", dos quais transcreverei dois à medida em que proceder à sua
análise e os três nos anexos.
As Amazonas
Posso contar, a respeito dos selvagens Worisiana, a velha história de como a sua
fama guerreira e a sua força começou na ignomínia. Uma vez a mulher de um cacique, To-
eyza, foi infiel ao seu marido. Mas ela não estava nem um pouco vexada com a sua culpa.
Se o seu marido era altivo, ela o era ainda mais.
No lugar do banho das mulheres, To-eyza disse: "Há quem diga que o casamento é
uma proteção; eu acho que é uma submissão indecente. Preferiria estar morta! O que
podemos saber sobre o amor, nós, que somos entregues pelos nossos pais? Vivemos todos
os nossos dias atormentadas. Trabalho hoje e trabalho amanhã, sempre trabalho e
sofrimento. Oponham-se comigo a esta ignominiosa servidão! Vejam lá longe a onça preta!
É o meu amante em seu disfarce. Homens como ele podem nadar facilmente para o lado de
cá e nos libertar! Clamem o seu nome! 'Walyarima' será o nosso lema! Guardem-no bem,
vocês, que querem ser libertadas da servidão dos seus maridos!"
Três homens tinham visto Walyarima do bosque próximo e ouvido tudo, foram e
contaram tudo ao seu cacique "To-eyborori".
Pela manhã o cacique disse, calmo, para as mulheres: "Temos uma caçada difícil à
nossa frente. Preparem beiju, para não passarmos fome!"
Quando elas haviam ido embora à procura de raízes, ele foi até o rio. Ali ele
deixou alguns rapazes tomando banho, enquanto se escondia com os outros homens e lhes
revelava o seu plano sinistro.
Os rapazes que tomavam banho chamaram "Walyarima!", gritaram o nome odiado
e estenderam os seus longos cabelos sobre a água. Então veio Walyarima, enquanto em
cada arco uma flecha esperava por ele.
Quando o viu chegar, o cacique avançou ao seu encontro na correnteza e o
perfurou com a sua poderosa lança. Os outros vieram nadando e acabaram com o
moribundo. Cheios de ira levaram os seus restos para a oca das mulheres. Lá o penduraram
com desprezo de um varal, com a cabeça para baixo,
As mulheres vinham andando uma atrás da outra, cada uma com a sua carga. Os
homens as observavam com olhar tenebroso. Horrorizadas, as mulheres retrocederam
diante do que viram. A última a entrar foi To-eyza. Sangue pingou sobre a sua mão. Lá
estava ela sobranceira, alta e bela. Até o cacique admirou a sua presença de ânimo.
Depois ele disse: "Nós vamos caçar. Apressem-se e preparem beiju! Assem-no ainda esta
noite! Não podemos esperar. Temos que levar beiju para cinco dias." - "Assim seja!" disse
ela. "Tragam a carne! Nós vamos preparar-lhes paiauaru bem forte, mais do que nunca, e
nessa noite vamos querer dançar ao seu lado!"
No coração da orgulhosa To-eyza ardia uma ira coruscante. A gota de sangue
havia despertado nela o pensamento da vingança, e a sua força demoníaca se espraiou pelas
outras.
150. Koch-Grünberg, Theodor. Indianermärchen aus Südamerika. Jena: Eugen Diederichs, 1927.
151. Koch-Grünberg: 1927: 90-93. In Sperber, George Bernard. Wegweiser im "Amazonas". Studien zur
Rezeption, zu den Quellen und zur Textkritik der Südamerika-Trilogie Alfred Döblins. München: Tuduv,
1975.
152. Koch-Grünberg: op. cit. 1927: 198.
153. Koch-Grünberg: op. cit. 1927: 162-164.
81
"Os nossos corações clamam por vingança, os corações de todas nós", ela disse.
"Os homens lhes causaram cruel opróbrio. Não perguntem! Eu as guiarei. Todas vocês
serão livres!"
O cacique voltou da caçada; os homens vinham com pesadas cargas. Traziam
animais e aves, algumas defumadas, outras frescas. Havia tudo em abundância. Então
houve uma festança! As mulheres haviam preparado muito paiauaru. Todos os homens
beberam. Depois descansaram, até que os sedentos pediram mais. Então cada mulher
entregou humilde e amavelmente uma cabaça, cheia até a borda com uma bebida funesta.
Assim To-eyza havia ordenado. Tinham misturado manipueira na bebida, e o terrível
veneno trouxe a morte para todos. Logo os homens empalideceram na sua luta com a
morte. Em vão gritaram por socorro. Ao chão caíram os guerreiros.
"Alegrem-se agora" exclamou To-eyza. "Mulheres, agora vocês são livres! Nunca
mais as dominará um marido; ninguém há de bater em vocês, oprimir e incomodar, se me
seguirem." Algumas haviam fugido com meninos. As outras dançaram com alegria forçada
varando a noite, cada uma delas com loucura no coração.
Pelas florestas marchava em ordem a tropa das mulheres. Carregavam redes,
mantimentos e armas. Estavam preparadas para uma pesada marcha, para um país
longínquo. Todas elas haviam jurado obediência à sua líder, à esbelta To-eyza. Seguiram
pelo seu caminho, às vezes lutando, às vezes fugindo, dependendo apenas de seus arcos.
Mais de uma mulher insatisfeita juntou-se a elas. Proclamavam a libertação,
chamavam-se "o povo das mulheres" e tratavam todos os maridos como inimigos.
Enxotavam os homens ou os matavam e diziam para as mulheres: "Vocês e suas filhas são
bem-vindas. Se quiserem guardar os seus filhos, deixamo-las aqui com eles."
Assim continuaram marchando, e outras as seguiram e aumentaram a tropa. A
loucura tomou conta das mulheres como uma epidemia.
Entrementes, amigos haviam achado as vítimas envenenadas; estremeceram ao
verem as ossamentas, afastaram os urubus que estavam sobre os restos e os enterraram.
Depois foram atrás das mulheres. Avançaram com precaução para ultrapassá-las,
mas quando conseguiam fazer prisioneiras, as mulheres preferiam morrer.
Logo chegaram a florestas densas e escuras. Lá as mulheres encontraram proteção
na folharada. Os homens viram caírem os seus mais bravos guerreiros. Rolavam em seu
próprio sangue, atingidos pelas flechas das mulheres. Então eles se detiveram e um homem
sábio disse: "O que temos a ganhar? De que serve ao homem uma mulher que o vê como
inimigo? Deixem-nas ir!"
Assim as mulheres continuaram a sua marcha, seguindo o sol poente. Passaram
com felicidade por todos os perigos e se assentaram como estranhas, quando a sua viagem
acabou.
Lá, To-eyza ficou sendo a sua rainha. Ela dava ordens claras: "Os homens devem
nos ser bem-vindos como amantes, quando chegam até nós como viageiros, mas nenhum
deles pode ficar conosco. Os seus filhos, os que parirmos, nós os mandaremos embora. Mas
se parirmos meninas, iremos criá-las com alegria como nossas sucessoras!"
Passaram-se anos desde então. As suas filhas obedecem ainda à mesma lei. Ainda
contam nos montes do Parimã a história de Walyarima.
nome! 'Walyarima' será o nosso lema! Guardem-no bem, vocês, que querem ser
libertadas da servidão dos seus maridos!"
Qual o limite de ação humana segundo este mito? É circular e propõe uma cisão
social. Os homens punem a traição de To-eysa, que pune os homens pela sua
arrogância. É como se houvesse duas estruturas míticas justapostas. Depois, os homens
que não morreram desistem de viver com estas mulheres. Estas, criam um organismo
social a parte, livre. É como se existisse uma ética diferente entre os Taulipang. E não
há metamorfoses, transformações. A sociedade livre seria feita só de mulheres. Em
verdade há só uma mulher: To-eysa. É como se as outras personagens correspondessem
a aspectos dela. O princípio é a liberdade, mais forte que o da vida, no relato. Este é um
aspecto da função básica dos contos de fadas. Portanto, o mito indígena analisado além
de mais complexo que aquele recolhido por Curt Nimuendaju Unkel, traz marcas não
radicais, nem exclusivas tanto do mito como do conto de fadas.
Dentre os mitos dos índios desana, não se encontra o mito das Amazonas, ou de
mulheres guerreiras que tenham feito ablação do seio direito. Existe o mito do roubo das
flautas sagradas pelas mulheres155. Neste mito, a reação dos homens é outra,
correspondente à frase do mito:
Diante disso, os homens se irritaram mais ainda. Disseram que era preciso matar todas as
mulheres. O primeiro a dizê-lo foi o sapo pará que insistiu na matança.
Colocaram a flauta barisêrõbugu bem na direção da vagina de uma das filhas de Abe, para
que o som da flauta, penetrando na vagina dela, a explodisse junto com todas as outras
mulheres157.
159. Pãrõkumu, Umusî (Firmiano Arantes Lana) e Kêhíri, Tõrãmû (Luiz Gomes Lana). Antes o mundo
não existia. Mitologia dos antigos Desana-Kêhíripõrã. Desenhos de Luiz e Feliciano Lana). 2¦ ed.. São
João Batista do Rio Tiquié -São Gabriel da Cachoeira (Amazonas): UNIRT (União das Nações Indígenas
do Rio Tiquié) / FOIRN (Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro), 1995.
160. Diakuru (Américo Castro Fernandes) e KISIBI (Dorvalino Moura Fernandes). A mitologia sagrada
dos antigos Desana do Grupo Wari Dihputiro Põrã. Cucura do Igarapé Cucura - São Gabriel da
Cachoeira (Amazonas): UNIRT (União das Nações Indígenas do Rio Tiquié) / FOIRN (Federação das
Organizações Indígenas do Rio Negro), 1996.
161. Destes mitos é que saiam os mandamentos dos Antigos. O primeiro mito de Buhtari Gõãmû era o
Sexto Mandamento da Lei de Deus: "Não pecar contra a castidade". Porque Buhtari Gõãmû cometeu o
pecado contra a castidade com as filhas do Irara, ele foi castigado pelo pai das moças. Esse mito era
contado para os rapazes e para as moças, para eles não cometerem isto sem a ordem dos pais; para não
haver estragos por causa disso, para não acontecer nenhum mal por causa disso. É que os tuxauas e os
sábios ou kumua, isto é, os rezadores, faziam esta pregação aos seus filhos. Ademais, Buhtari Gõãmû
cometeu também pecado com Amõ, e recebeu um castigo terrível por isso. Este mito era assim narrado
para mandar respeitar as velhas de idade. Era também dirigido aos rapazes.
O segundo mito era como o Nono Mandamento da Lei de Deus: "Não desejar a mulher do
próximo". Esta lei era para os homens: não roubar a mulher do outro, e também não pecar com a mulher
do outro. Porque isto era caso de briga, podia causar até a morte, como aconteceu com Uwawá.
O terceiro mito era destinado às mulheres. Esta lei era "Não pecar com outro, mesmo tendo
marido". Para não acontecer a mesma coisa nesse mito, onde se viu Buhtari Gõãmû abandonar para
sempre a sua mulher.
No meio desses mitos, tiram-se cerimônias bem comprovadas e eficazes. Aqui terminaram os
três mitos sobre Buhtari Gõãmû. (Pãrõkumu 1995: 146-7).
86
O Trovão disse:
- "Procedem (sic) dessa forma quando forem colocar as Malocas da Transformação para
criar a futura humanidade"162.
Os desana concebem a origem tanto por transformação, como por geração, assim
como por nomeação. A rigor, a origem se dá por expansão: uma coisa está dentro da
outra; uma gera a outra. Todas 'nascem', quer por vômito, cuspida, ou parto.
Dentre os mitos de origem, um, volta e meia repetido, e sobre o qual o narrador
insiste, é o dos nomes. Os nomes, segundo o narrador, são condicionados. (Para os
indígenas não haveria arbitrariedade nos signos, ao contrário). O pajé-chefe dos Desana,
que é também deus, ou um espírito, entidade superior e forte, serve-se de cores, ou
matérias primas para fazer delas outra coisa, que nomeia segundo esta origem. Os
nomes, como o universo, seriam gerados e geradores, ao contrário do que coloca
Saussure. Os nomes têm certo poder para o qual os indígenas são especialmente
sensíveis. A motivação dos nomes faz com que ser e parecer tenham equivalências. Esta
é a maior magia da cultura indígena.
Esse paricá tinha o poder de fazer um homem virar onça163. [...] Boreka tirou fibras de
tucum da Maloca do Universo, da Umukowi'i. Essas fibras de tucum chamavam-se
umusîñahkãsumidari, isto é, "fibras de tucum do universo". [...]
Boreka fez a dele (pele de onça) mais escura, pintada de preto nas costas e de branco na
barriga. Ele disse:164
- "Eu vou aparecer como (o peixe) uaracu".
Aí, ele recebeu esse nome de Boreka. O peixe uaracu parece assim mesmo! Por isso, ele
se chama Umukomahsû Boreka165.
[...] Umukomahsû Uari Dihputiro "Gente do Universo de Cabeça Chata", disse por sua
vez:
- "Eu vou fazer a minha pele de onça pintada e com cabeça chata".
Por isso, ele recebeu o nome de Dihputiro "cabeça chata". Seus descendentes chamam-se
Dihputiropõrã "Filhos da Cabeça Chata"166.
Porque ele era um sábio! Os seus descendentes se chamam Tõramû Kêhíripõrã, isto é, "Os
Filhos (dos Desenhos) do Sonho" 167.
O nome dos descendentes teria a ver com o fazer poético dos mitos? Da
atribuição de nomes? Este nome tão bonito (Os Filhos [dos Desenhos] do Sonho) me
sugere que as análises excessivamente 'práticas', utilitaristas, de tribos indígenas, que
vêem mais o prosaico, o quotidiano indígena, os costumes de sobrevivência da espécie,
de cada um e suas normas mínimas de comportamento, deixa de lado os sonhos, as
fantasias, o imaginário, a simbolização e a pulsão de ficção, que, no decorrer dos textos
de ambos os livros analisados, aparece sob a forma das semelhanças, do 'isto parece
aquilo' (a rigor são imagens, metáforas ou metonímias), dos efeitos e relações mágicos.
Advêm efeitos mágicos da palavra, do sonho, do desenho: a criação é mágica.
Corresponderia isto a uma das características atribuídas à oralidade (por extensão, ao
concepção tão grega da falibilidade dos deuses, já que Umukomahsû Boreka será vítima
da inveja, uma inveja de homens sábios que percebem a hybris de Umukomahsû Boreka
e decidem limitar o seu poder, enganá-lo e perdê-lo.
Na linha do Equador, onde se encontrava, ele não queria fazer mal a ninguém, porque
viviam aí os seus irmãos. Eles iam estudar nos quatro cantos do mundo antes de voltarem
para a Maloca de Paricá. Ao iniciar esse estudo, Boreka deixou o seu trocano 168 de paricá
169
(wihõtoatore), que era um grande tambor invisível, na Maloca de Oaricá, a fim de guiá-
lo, já que esse trocano tocava sozinho. Ouvindo o trocano, saberia onde se situava a sua
maloca. Depois, ele deixou nesse mesmo lugar seu outro poder, um tipo de espelho
chamado em desana umukodiuru, o "espelho do universo", um espelho resplandecente
invisível, que serviria também para guiá-lo porque, enquanto percorria o mundo, o espelho
soltava faíscas como raios ao refletir a luz.
Nessa peregrinação Umukomahsû Boreka teria de matar muita gente e precisava de onças
selvagens para devorá-las. Para isso, ele abriu quatro malocas. [...] Somente a primeira
("Maloca do Adorno de Nuca") era uma Maloca de Transformação. Já lhe pertencia e aí ele
guardou as peles de onça que ele e os seus irmãos haviam tecido. As outras três malocas
são malocas da terra. Aí, estavam as onças mais ferozes que comiam gente e que passariam
a ser os seus soldados durante o estudo que ele estava realizando.
Saíram muitas onças destas malocas. O mundo ficou infestado de onças. Com elas,
saíram também muitos Wahtî, espíritos do mato. O universo escureceu. Em certos lugares,
chuviscou um pouco. Ninguém podia ir longe. Quando Umukomahsû Boreka acabou de
abrir as quatro malocas, ele passou a dar lições para os seus irmãos. Só então é que ele
começou o seu estudo. A primeira parte do universo onde ele fez os seus ensinamentos foi
o leste. Ele fez-se acompanhar de todas as onças selvagens. Aí, ele começou a ensinar aos
seus irmãos como matar gente. Mas eles não comiam gente. Matavam e jogavam-nas para
as verdadeiras onças comerem. Suas armas eram um poder invisível chamado em desana
yohokaduhpu, isto é "cabo de enxó". Dele, eles se serviam como se fosse espada e terçado.
Com ele, eles cortavam cabeças humanas que jogavam em seguida para as onças selvagens.
Voltando ao centro do mundo, ao Equador, Boreka dirigiu-se para a Maloca de Paricá
onde estavam o trocano e o espelho mágico que o vinham guiando e chamando. Depois, ele
tomou o rumo do oeste, levando os seus irmãos e ensinando-os a fazerem a mesma coisa.
Depois, foi para o norte, agindo do mesmo modo. Por toda parte existiam onças. Os lugares
onde ele andou ensinando para os seus irmãos. Vendo que ele estava ficando muito
perigoso, alguns homens sábios, os kumua, disseram:
- "Ele pensa que, tendo nascido do paricá, ele pode fazer o que bem entende. Vamos
procurá-lo".
Após essa fala, fizeram seus rituais com breu para que ele errasse o caminho de volta à
sua maloca. Com esses rituais de breu, eles tiraram o trocano de paricá da Maloca de
Paricá, bem como o espelho do universo e os colocaram na Maloca do Norte
(Dihpamahawi'i). Assim, mudaram a posição da maloca, que estava no sul, a fim de
confundi-lo.
Boreka não pôde mais voltar à Maloca de Paricá. Não encontrou o caminho. O trocano e
o espelho não sinalizavam mais nada. Ele passou então pelo maior perigo: as onças, que
eram seus soldados, descontroladas, comiam mais e mais gente 170. [...]
168. Trocano, ou torocana é um tambor, feito de um toro de madeira, com que, em grande parte da zona
tropical sul-americana, os índios dão sinais às tabas vizinhas.
169. Árvore da região amazônica da família das leguminosas (Piptadenia peregrina), que prefere lugares
abertos, tem casca grossa e verrucosa, é rica em tanino, de madeira pardo-avermelhada, empregada em
vários tipos de construção.
170. Pãrõkumu 1995: 47-49.
90
Dez sefirot belimah. Sua medida é dez, contudo é infinita. Profundeza do princípio,
profundeza do fim, profundeza do bem, profundeza do mal, profundeza do alto, profundeza
do baixo, profundeza do leste, profundeza do oeste, profundeza do norte, profundeza do
sul172.
Ao iniciar esse estudo, Boreka deixou o seu trocano de paricá (wihõtoatore), que era um
grande tambor invisível, na Maloca de Oaricá, a fim de guiá-lo, já que esse trocano tocava
sozinho. Ouvindo o trocano, saberia onde se situava a sua maloca.
Depois, ele deixou nesse mesmo lugar seu outro poder, um tipo de espelho chamado em
desana umukodiuru, o "espelho do universo", um espelho resplandecente invisível, que
serviria também para guiá-lo porque, enquanto percorria o mundo, o espelho soltava faíscas
como raios ao refletir a luz.
172. "Os dez sefirot", In Matt, Daniel C.. O essencial da Cabala. Tradução de Ivone Castilho. São Paulo:
Best Seller (Círculo do Livro), 1995: 93-4.
173. Um sistema de teosofia e de teurgia esotérico desenvolvido por rabinos, atingindo o seu ápice por
volta do século 12 e 13. Influenciou, então, certos pensadores medievais e renascentistas cristãos. A
cabala estava baseada num método místico de interpretação das escrituras sagradas, através do qual o
iniciado se considerava capaz de penetrar nos mistérios sagrados. Dentre as suas doutrinas temos que toda
criação é uma emanação da Deidade e que a alma existe desde a eternidade.
92
- "Ele pensa que, tendo nascido do paricá, ele pode fazer o que bem entende. Vamos
procurá-lo".
Após essa fala, fizeram seus rituais com breu para que ele errasse o caminho de volta à
sua maloca. Com esses rituais de breu, eles tiraram o trocano de paricá da Maloca de
Paricá, bem como o espelho do universo e os colocaram na Maloca do Norte
(Dihpamahawi'i). Assim, mudaram a posição da maloca, que estava no sul, a fim de
confundi-lo.
(Céu) (Terra)
Leste Oeste
Alto Baixo
Centro-meio Margem
Zênite Nadir
Deuses Mortos
Pedra Água
possível com oposições polares e/ou complementares - e certamente ele não informa a
morfologia social174.
174. Viveiros de Castro, Eduardo. Araweté : os deuses canibais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986: 191.
175. "Assim, o instituto da amizade formal, construtor da Pessoa, abriria ao indivíduo um [...] "campo
pessoal, não sem dúvida como agente dotado de razão, vontade e liberdade... mas como ser de certa
maneira único... como um sujeito". (1979: 38). [...]
95
Deve-se destacar um aspecto do canibalismo que, nem por talvez exagerado pelo
etnocentrismo dos cronistas, nem por de difícil redução estrutural, deixa de ser essencial.
Refiro-me à ferocidade manifestada no ritual canibal, a orgia de sangue em que se
mergulhavam as crianças pequenas, a famosa gula das velhas, os rompantes de furor, o vivo
ódio ao inimigo, o ethos desenfreado e brutal que emerge de todas as descrições dos festins
antropofágicos. É preciso repor as coisas no plano do comportamento, no plano do real, e
assumir que estamos aqui no elemento da violência, e numa operação alimentar. O
sacrifício do inimigo envolve aquilo que Florestan evocava de passagem como sendo o
"plano animal" da guerra Tupinambá, para logo descartá-lo por inútil enquanto explicação
das causas do fenômeno (1970: 44-47). Inútil sem dúvida, se a idéia for tomada
literalmente; pois a guerra não é caça, e a antropofagia não era "alimentar", mas ritual.
Ritual alimentar, entretanto - e implicando uma animalização "simbólica"176.
[...] é o matador que encarna a parte da estrutura: é ele quem exerce o trabalho do símbolo,
quem suporta o processo de "reprodução" da Sociedade. Operador do sacrifício, ele é o
pivot do jogo de imagens, encenando a vingança, espelhando o inimigo e o morto a ser
vingado, manifestando o valor central do grupo: é o Guerreiro, a Pessoa, o Nome e o Nume.
Liberada do fardo da representação lá fora a coletividade é o oposto de uma Sociedade:
canibalismo destruidor generalizado, ferocidade bruta. Enquanto em casa o matador se
espiritualiza, no pátio os demais se "animalizam" - todos "jaguares". Enquanto, pouco
antes, a vingança exigia uma elaborada troca de palavras entre o executor e a vítima, agora
a vingança é uma confusão de bocas e de gritos, de vozes e de imprecações. Ao matador o
espírito e as palavras, o nome; aos demais a carne e o sangue. O matador representa; os
outros vão ao real - mas para irem, alguém precisa ficar. O canibalismo só é possível
porque um não come. A atualização exige que alguém se incumba da ritualização. O
matador, calado e recluso, é aquele que depois cantará, e dirá seu nome. Ritualmente morto,
é o único propriamente Humano durante a devoração - é o guardião do Simbólico; enquanto
a comunidade "incorpora", ele é puro Espírito. Note-se enfim que o matador, justamente
aquele que se envolve em duelo "narcísico" com a vítima, é que está sob o interdito canibal
- como se para desmentir qualquer leitura disto tudo no registro do Imaginário. Quem come
ainda são os Outros177.
Ora, é precisamente a noção de Identidade que surge como desconstruída e corroída, na minha
interpretação da Pessoa Tupi-Guarani. Não apenas porque ela não pode ser tomada como suporte ou
resultante de identidades sociais, ou porque ela não está intacta e inteira na individualidade (etno)-
biológica. Mas porque a anti-dialética da Pessoa TG a põe de modo não trivial, como essencialmente não
idêntica a si mesma, como Outra. Esse é um processo que batizo de "identidade ao contrário"
(incorporando a acepção quinhentista de "contrário" = inimigo) - não o jogo de imagens que subjuga a
diferença à identidade, mas um devir-Outro. A frase de Rimbaud - "Je est un autre" - que para tanto já
serviu, se pôde ser evocada pelos Je-ólogos como divisa da Pessoa Jê-Bororo (Crocker, 1977 a: 179), não
funciona entretanto para o caso Tupi-Guarani, onde a questão não é de Ser, mas de Devir. É isto, o
canibalismo. (Viveiros de Castro 1986: 120).
176. Viveiros de Castro 1986: 694.
177. Viveiros de Castro 1986: 695.
96
[...] a cerimônia cria um duplo afastamento da Cultura. Por isso ela não é uma simples
operação de religiosidade durkheimiana - a restauração da eunomia coletiva - mas uma
atuação metafísica. O canibalismo é uma crítica animal da Sociedade; mas também uma
vontade de divinização178.
Na tradição guarani, cada coisa que vemos hoje é uma imagem da imagem da imagem do
que verdadeiramente é; por isso, recorre-se aos cantos de origem e às danças do clã, para
suportarem ser um pálido reflexo do ser. Uma imagem que se esvanece diante da raiz
ancestral. Para os Bororo, somos o eco dos ancestrais; por isso, habitamos na caverna do
mundo, e da visão dos ancestrais temos as estrelas. As estrelas são os nossos avós e irmãos
mais velhos. Amanhã seremos estrelas e também deixaremos ecos nesta caverna. Esta
caverna é sagrada, a escola onde o som aprende a fazer brilhar seu pulsar.
Natureza ou animalidade originais, como um estado estável que se define como positividade negadora da
Natureza (e esta como anti e e ante-Cultura), os Araweté produzem o humano como separação de uma
sobrenatureza, como "abandono" de uma condição sobre-humana, extra-cultural, originária. Ao contrário
assim de cosmologias como as Jê, que põem a Cultura como o que os animais não (mais) têm, para os
Araweté os homens se definem por não (mais) serem o que os deuses são. Seu problema, então, não é
distinguir-se do animal, mas transformar-se no divino. O outro do homem não é o animal, mas o deus; a
Cultura não é presença, mas espera. Na verdade, os homens é que são os outros dos deuses, seu resto
abandonado. Feitos entretanto de tempo, existindo no intervalo entre o já-não-mais e o ainda-não, é para
este último que se voltam: a cosmogonia prepara uma escatologia". (Viveiros de Castro 1986: 229).
181. Jecupé 1998: 93.
98
Tribo e espírito caminham juntos. Para o índio, são sinônimos. Pela sua
memória, ele sabe e apalpa o espírito através da tribo: pai, mãe, filho, rio, pedra, girino,
cachoeira, floresta, mar, nuvem, chuva, onça, arara, irmão. E dentro da tribo coexiste o
criar, sim, o criar, que é a conseqüência do aprender, que por sua vez é o motivo pelo qual
sua alma-luz corporificou-se, para apre(e)nder-se e criar. A instituição do criar promovida
pelo índio é a arte, a cerimônia e a celebração. Que se desdobram em beleza, ordem e
alegria. A arte gera a beleza porque trata da exteriorização do fluir do espírito; a cerimônia
gera ordem porque trata da exteriorização da comunicação do espírito com a matéria, ou
seja, da tradução do céu para a terra; e a celebração gera alegria porque trata da animação
da tribo externa pela tribo interna, pois essa tribo é uma qualidade superior de fogo, que
anima, que vivifica182.
O processo de devir analisado por Viveiros de Castro não teria paralelismos com
a trajetória humana em direção à perfeição, passando por uma purificação, ou iniciação?
Diz Viveiros de Castro que "É preciso a iniciação, a elaboração de aspectos em conflito,
em última instância, de "duplo e penoso trabalho de desagregação e síntese mentais"
para "viver para sempre"183. O trecho de Jecupé, transcrito acima, não indicia uma
filosofia, para além da iniciação da ética indígena?
O fundamento do poder político, a base dessa estrutura social pode ser - como se disse de
outras sociedades do continente - a afinidade e a dependência dos wife-takers. Mas, pelo
menos os Tupinambá, esta base sociológica depende de uma "cosmologia": no caso, a
guerra, o que confere ao sistema um dinamismo e abertura ao evento muito fortes.
Nenhuma instituição "transversal" ou segmentação institucional neutraliza o movimento do
conjunto, nenhuma regra universal - exceto a vingança, o renome - articula um cálculo
"prescritivo". Sociedade "performativa", que fez do ódio ao inimigo o que os havaianos
fizeram do amor e do sexo - significantes instituintes do socius (Sahlins, 1985) - aqui a
proeza guerreira era o que mantinha o sistema, isto é, mantinha o movimento de escapar
dele; poligamia, fundação de nova casa, atração de genros, retenção de filhos. Com isso, o
estado histórico do sistema determinava seu curso posterior, sempre a partir do "atrator
uxorilocal" - sistema meta-estável, carregado de historicidade, onde tudo dependia de
quantos - - inimigos se podia computar 185.
Os relatos míticos dos índios desana, sendo poéticos, têm dimensões e recursos
poéticos. Estes, como no enigma, ou na adivinha, preocupam-se com as palavras em si,
a enunciação. Para avançar nas hipóteses sobre o sentido poético dos mitos desana,
recorrerei a comentário de Manuel Bandeira:
Eu vos direi, no entanto, que toda poesia é enigma. Toda palavra, antes que lhe conheçamos
o significado, é um enigma formidável. Claro enigma chamou o poeta Carlos a um dos seus
livros e no soneto da "Oficina irritada" claro enigma é Areturo, a estrela de primeira
grandeza na cauda da Ursa Maior187.
Este 'claro enigma', Areturo, "a estrela de primeira grandeza na cauda da Ursa
Maior", deverá ser considerado um mito primitivo, já que aparentemente está
explicando uma origem natural? Ou nos é facultado perceber uma imagem metafórica,
que se expande, iridescente, em -n- significações? A citação continua:
Que haverá de mais poético (concreto no duro!) que o Universo? Que maior poeta que
Deus? (No entanto os seus desígnios, consultem o Corção, são muitas vezes impenetráveis).
Mesmo o Deus feito carne, o Deus feito homem se exprimia por poesia enigma. Hoje todos
sabemos o que o Cristo queria dizer quando falou:
Quem come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em mim e eu nele. Porque a
minha carne verdadeiramente é comida e o meu sangue verdadeiramente é bebida188.
Dentro dos parâmetros atribuídos aos nossos primitivos brasileiros, nossos povos
indígenas, não poderíamos interpretar o último parágrafo como referência inequívoca de
Sei que não atentaram [na mulher]; nem fosse possível. Vive-se perto demais, num
lugarejo, às sombras frouxas, a gente se afaz ao devagar das pessoas. A gente não revê os
que não valem a pena. Acham ainda que não valia a pena? Se, pois, se. No que nem
pensaram; e não se indagou, a muita coisa189.
É este o papel da arte. É o de desvelar o real, que é a coisa mais alucinante, mais
assustadora que tem.
Palabras, sonidos, colores y demás materiales sufren una transmutación apenas ingresan en
el círculo de la poesía. Sin dejar de ser instrumentos de significación y comunicación, se
convierten en "otra cosa". Ese cambio - al contrario de lo que ocurre en la técnica - no
consiste en abandonar su naturaleza original, sino en volver a ella. Ser "otra cosa" quiere
decir ser la "misma cosa": la cosa misma, aquello que real y primitivamente son190.
estruturação da linguagem e do relato, como o faz a literatura, eles também são produto
(manifestação) não só simbólica, mas também artística, ficcional. Se assentirmos, estes
também seriam textos básicos, fundadores, referências para os estudiosos, para os
letrados ou para aqueles que se estariam letrando. Seriam referências estéticas.
Canônicas?
[...] la parole mythique est formée d'une matière déjà travaillée en vue d'une
communication appropriée: c'est parce que tous les matériaux du mythe, qu'ils soient
représentatifs ou graphiques, présupposent une conscience signifiante, que l'on peut
raisonner sur eux indépendamment de leur matière193.
Si paradoxal que cela puisse paraître, le mythe ne cache rien: sa fonction est de déformer,
non faire disparaître. Il n'y a aucune latence du concept par rapport à la forme: il n'est
nullement besoin d'un inconscient pour expliquer le mythe194.
S I G N O
1. vacina
2. privação da História
3. identificação
4. tautologia
5. nem-ismo
6. quantificação da qualidade
7. Constatação
não são explicitados e facilitam o recobrimento do espaço do não-dito com sentidos que
pouco têm a ver com as referências reais.
Como o mito contemporâneo é falacioso, a abordagem barthesiana ajuda a
melhor conhecer, para evitá-lo, o mito burguês, que nos cerca.
chamado de "estratégia de preenchimento". O conteúdo que sobra para estes textos passa a ser o mito
burguês, que pareceria corresponder às expectativas do sistema educacional.
108
As árvores.
Certo dia, uma fada perguntou para as árvores o que elas gostariam de ser.
Uma árvore queria se transformar em livros, pois seria muito útil.
Outra gostaria de se transformar em lápis para ajudar as criancinhas que
entravam nas escolas.
Outras queriam ser cadernos para ajudar os estudantes. Uma queria ser cadeira
para o velhinho descansar.
Uma árvore egoísta não queria ajudar ninguém. Quando as companheiras foram
embora, ela ficou só.
109
Os pássaros fugiram dela, porque ela era triste e não dava sombra.
- Como é triste ser só!
A fada ouviu a queixa da árvore e foi saber o que ela queria.
- Quero ajudar alguém!
A árvore ficou feliz quando um lenhador a transformou em lenha!197
Este texto se apresenta como uma história com fadas: não é um conto de fadas.
Começa do jeito previsto, com uma fórmula do tipo "era uma vez": "certo dia". Nos
contos maravilhosos, as fadas aparecem como forças suplementares e externas,
correspondendo às forças internas da personagem principal. Fazem o papel de "destino",
de "acaso", de deus ex machina, porque correspondem a aspectos internos positivos,
ativos, que ajudam a personagem em dificuldades a resolver seus conflitos. O destino
não é personalizado, nos contos maravilhosos, não tomando a palavra logo nuna, menos
ainda no seu início, tal como em “As árvores”. Num conto de fadas, o pescador que
salva um peixe, depois de tê-lo pescado, só encontra uma fada depois do gesto piedoso.
Em "As árvores" o "destino-fada", converte-se em personagem principal, tomando a
dianteira - e a palavra. A fada em verdade impinge um "destino" às árvores. Esta é a sua
astúcia de representante da "ordem estabelecida", intrometida, impertinente. Enquanto
“ordem estabelecida”, fiscaliza se os membros da coletividade estão cumprindo o seu
papel. Para a ordem estabelecida não existe o pleno desenvolvimento do indivíduo. Há
papéis a serem cumpridos pelos membros de uma coletividade, de acordo com os
interesses do status quo. A ordem estabelecida promete, a quem cumpre sua parte,
felicidade, o sentimento do dever cumprido, a pertença. A fada do texto acima formula
uma pergunta insidiosa e falsa por aceitar um só tipo de resposta. A formulação
pressupõe que o bom e certo para as árvores (que representam o povo, a classe
proletária: o futuro dos alunos "carentes" que estão lendo o texto) é serem usadas por
outros. O texto identifica estes outros como os frágeis: crianças e estudantes (estes com
a fragilidade da não definição profissional), com os quais os leitores infantis se
identificariam facilmente - e velhos. Pela lógica do conjunto dos textos do livro didático
referido, os ‘frágeis’ são aqueles que têm necessidades aceitas e definíveis, apresentadas
como direitos que especificamente eles têm - correspondendo a uma outra classe
(social) de seres – a dos que requerem o uso da força de outrem, seja uma árvore, seja
trabalhadores. A pergunta é tão insidiosa e mentirosa como esta caracterização da
comunidade, porque os senhores parecem ser iguais aos leitores infantis – estes, sim,
carentes de orientação – e por isto facilmente impressionáveis. A identificação do leitor
infantil dá-se com a personagem principal: a árvore que só queria ser ela mesma. A
ordem estabelecida de "As árvores" é deixar de ser si própria para ser usada para e por
outros, aparentemente em benefício destes outros. Quem (leitor e futuro trabalhador)
não cumprir tal papel, será punido com a solidão e a infelicidade. O castigo é a morte -
social:
Uma árvore egoísta não queria ajudar ninguém. Quando as companheiras foram
embora, ela ficou só.
Os pássaros fugiram dela, porque ela era triste e não dava sombra.
- Como é triste ser só!
Lao-Tzu estava viajando com seus discípulos e chegaram a uma floresta onde centenas de
lenhadores cortavam árvores. Toda floresta havia sido cortada, exceto uma grande árvore
com milhares de galhos. Ela era tão grande que dez mil pessoas podiam se sentar sob sua
sombra.
Lao Tzu pediu a seus discípulos que fossem perguntar por que aquela árvore fora
poupada. Eles foram e perguntaram aos lenhadores, que disseram: "Essa árvore é
absolutamente imprestável. Não se pode fazer nada com ela, porque seus galhos têm muitos
nós - nada é reto nela. Não podemos usá-la como lenha porque a fumaça é perigosa para os
112
Família feliz.
199 In Tao: The Three Treasures. Vol. 1: 69-71, apud Osho, Bhagawan Shree. Neo-Tarô. Trad. Anand
Nisargan. São Paulo: New Transcendentais, 1991: 20-21.
200. Cegalla 1983: 9.
113
Nous entendons par là, le désir de se trouver toujours et sans efforts au coeur du monde de
la réalité et de la sacralité, et en raccourci, le désir de dépasser d'une manière naturelle la
condition humaine et de recouvrer la condition divine; un chrétien dirait: la condition
d'avant la chute.
humano. Portanto, o chamado mito da felicidade está de certa forma vinculado ao auto-
centrismo, à perda tanto do sentido de responsabilidade individual do eu no mundo,
como da função básica do mito original. (Seria esta a síndrome do que se chamou de
pós-modernidade?)
A perda da responsabilidade individual está associada a uma idéia de liberdade
absolutizada, sem fronteiras morais e éticas, estas últimas conditio sine qua non da vida
em comunidade.
O ‘mito’ da felicidade revela mais uma vez como o mito contemporâneo é
construído por deslocamentos. A consciência feliz prepara jogos (com a morte),
desfigura valores, a fim de apresentar o prazer e a satisfação pessoal de uns, decorrente
do sacrifício de outros, em cínica harmonia social compensadora. Não há lugar para
uma ética. O sentimento de culpa, no reino da "consciência feliz", é dos desfavorecidos,
cujo papel é servir – quando e se não servirem, ou não servirem bem. Compromisso,
responsabilidade, crime, tornam-se questões privadas. Os que se identificam com o todo
do sistema (líderes) podem cometer enganos, mas nunca cometem o mal – e, sobretudo,
são sempre isentos de responsabilidade. Só se tornam criminosos quando deixam de ser
líderes. Sobra a culpa para o nível privado, que volta os olhos para trás, para o passado,
perdendo de vista o sentido de devir. A culpabilização passa a ser instrumento de poder.
O mito contemporâneo impõe um modelo acabado e uma renúncia à iniciativa
do indivíduo. Com isto, impõe-se para a percepção particular uma forte sensação de
descontinuidade, tornando-se a continuidade uma ilusão, ou degradação.
a noção de direito coletivo, direito propriamente dito. O direito do cidadão cede lugar
aos "direitos" (= privilégios) do poderoso. É um uso especial da inversão do público e
do privado. O público passará a equivaler ao coletivo, à massa, que deve obedecer,
calar, fazer, aceitar. O privado, atribuído, neste caso e falaciosamente, àqueles que já
têm privilégios, este ainda obterá mais regalias, acentuando-se a diferença e a
desigualdade social.
A absorção do mito do poder, analisado por Roland Barthes como o mito
burguês, leva à perda da percepção de que o mundo e a vida pessoal são processos
inseridos no tempo e espaço. Os exemplos mais paradigmáticos do fenômeno estão em
textos de livros didáticos, como o abaixo citado.
O valor do trabalho.
Nem todos os textos de livros didáticos são assim. Examinei um conjunto grande
de livros didáticos de 1984 a 1985. Foi quando promovi a tentativa de sensibilizar
editores para a necessidade de mudanças em material didático. Era diretora pedagógica
da FLE - Fundação para o Livro Escolar - e acredito ter começado a sensibilizar pelo
menos professores da rede pública e assistentes de ensino. Com certeza alguns editores
também. Pelo menos em um caso, sei que a compreensão do que se propunha foi
equivocada e a emenda do livro didático, fruto das 'correções' tal como entendido o
debate encaminhado, foi praticamente pior que o soneto.
Os textos ‘paradigmáticos’ do negativo apresentam marcas textuais mais fácil e
rapidamente analisáveis; são exemplares, neste sentido. Exageram as características que
se quer apontar, como em "O valor do trabalho". A análise pretende mostrar como são
incorporados temas, ideologias, estruturas formais e estilos (ou a falta deles), pela mera
freqüentação com as características a serem apontadas.
201. Falleiros de Almeida 1984
116
O leitor acredita que lerá um libelo enaltecedor sobre o trabalho. O texto se abre
com um diálogo entre mãe e filho. Quando o filho pergunta pelo 'Tonho', um apelido e
não um nome, o leitor espera que seja referido um amigo ou colega, alguém com quem
haja intimidade e mesmo uma espécie de conivência. Segue-se uma frase sobre o lixo.
Primeira surpresa e decepção: qual a relação entre o amiguinho e o lixo? Resposta da
mãe: "Que falta faz o lixeiro!" Não há relação entre lata de lixo cheia e Tonho (=
amiguinho), nem entre lata de lixo cheia e falta do lixeiro. Como não existe relação de
sentido explícita no texto, o leitor constrói, em sua cabeça, o sentido faltante. É que ao
se deparar com um texto de ficção impresso, o leitor suspende o seu universo de
conhecimento, seu conceito de tempo e espaço, para imergir em um outro universo -
ficcional - livre das peias da realidade. O leitor manifesta, com este gesto, boa fé e boa
vontade, ânsia por comunicação e crença de que o outro tem a chave do saber. Quando
faltam palavras ou conceitos em um texto, o leitor comum (não professor universitário,
nem crítico), supre o texto com as informações faltantes. Supre-as, pelo menos até certo
ponto, dando, mentalmente, a coesão faltante no texto. É uma estratégia coesiva de
preenchimento do leitor, com função coesiva202. Tonho, descobre o leitor, seria o
apelido do lixeiro. O leitor um pouco mais atento percebe que o apelido, no texto, não
tem cunho afetivo. (Quando o diminutivo é carinhoso, estabelece simetria nas relações.
Mas pode ser depreciativo - recoberto por pseudo-afetividade paternalista. Refere-se,
então, a uma relação assimétrica, entre poderoso e oprimido, ou, para não usar
expressões tão fortes, entre empregador e empregado). Por que o tom depreciativo?
Porque se trata de trabalho menor.
O leitor prossegue na sua tarefa de criar nexos:
- Existe falsa intimidade e só aparente valorização do trabalho do lixeiro, já que o tom é
depreciativo.
- O diálogo é artificial. A fala da criança é antes um desabafo, uma crítica (recoberta
pela pergunta e pelo comentário sobre a lata de lixo e não sobre o homem Tonho).
- O desabafo é explicitado pela voz da mãe. É excessivo: os lixeiros estão em greve para
fazerem falta? Ou devem aparecer em todos os lares sempre que cada lata de lixo se
encher? A necessidade seria marcada por um individualismo exasperado.
202. O fenômeno que indica boa fé, também atinge o ouvinte, portanto também ocorre no nível da
oralidade, fruto da “suspensão da descrença”.
117
203. Perdi a referência desta fonte. O conto chama-se "Apaixonada por dois rapazes". Sob o texto consta:
"Conto de Antoni Aragão, Ilustração de Flávio Mota".
120
"simpático e atraente vizinho"; "aquele olhar ardente e o mais belo sorriso que se
possa imaginar"; "breves instantes de magia e encantamento"; "jovem cabecinha cheia
de sonhos"; "Seu coração dispara, fica ansiosa, trêmula"; "dúvida cruel"; "paixão
devoradora"; "parece não ter fim"; "estremecendo de paixão"; "olhos meigos"; "eterno
pesadelo"; "dúvida cruel"; "velhos serviçais"; "não pode mais viver sem amar";
"realizar o sonho de sua vida" (= matrimônio) e outros. Diversas das características
deste texto pertencem ao universo do lugar comum, do Kitsch, enquanto referência de
escrita: o tema do amor tratado sem aprofundamento e matização; o uso compulsivo de
adjetivos praticamente para cada substantivo ("alegre tarde de verão"; "simpático e
atraente vizinho"; "olhos meigos, claros e serenos" etc.); adjetivos que tendem a ser
quantificadores (eterno; intenso; extasiada; grande tristeza. Uma grande dor, uma
tortura imensa); a generalização, feita com o uso de advérbios ou pronomes adjetivos
perpetuadores (todos os dias; sempre no mesmo lugar; todas as tardes); uso de
pronomes adjetivos indefinidos (uma cidade do sul de Minas; aquele olhar; num olhar);
freqüência do mito da felicidade ("a própria imagem da felicidade"); uso de reforço
para afirmar o que é (próprio).
Laura, "filha de uma das mais importantes famílias do lugar", não tem
identidade própria. Tal como sucede na literatura para-didática para infância e
juventude, conforme analisa Fúlvia Rosenberg204, Laura se define em relação ao
homem, seja ele pai, constituidor da família (importante), seja ele futuro marido. A
profissão dos pretendentes interessaria: um é médico. O outro não se sabe. Volta todos
os dias de um escritório. Poderia ser um contínuo. Mas é óbvio que nos vem à cabeça a
profissão de advogado... A personagem Laura não age: a este ponto chega sua falta de
identidade - e de personalidade ("Cada vez mais infeliz, Laura continuava querendo os
dois, a esperá-los num desinteresse total pela vida, transformando-se num ser
apático"). Como não sabe discernir entre dois amores, não sabe viver, conclui o texto.
Quem decide agir são os pais (leia-se pai), que a mandam fazer uma viagem... A fuga, o
abandono do problema, são o único encaminhamento empreendido. Com a conseqüente
contenção das emoções e para preservação da imagem de mulher feita para um e um só
homem. Como Laura não se casou - função básica da mulher, manutensora da família e
sociedade, sua identidade não existe e só lhe resta ser "tranqüila, mas triste e infeliz",
esvaziada de ambições e ações. Diz Orígene205 que extra Ecclesiam, nulla salvatio.
Convertida em moeda burguesa, a asserção, para a mulher, seria: Extra Matrimonium,
nulla salvatio. Tanto assim, que ela quase enlouquece e torna-se uma melancólica,
eufemismo para a loucura. O único destino possível para a mulher é "realizar o sonho de
sua vida". Sem precisar – pior, ter o direito - de ter uma profissão e trabalhar
(lembremos que esta narrativa é do começo da década de 80).
O protótipo do 'mito burguês' inclui homens de qualquer idade, tanto na
despersonalização, como na perda da identidade. Ele garante justificar toda e qualquer
tutela desejável aos grupos de poder.
A ideologia desta narrativa lembra muito a que Jack Zipes vê nos contos de
fadas de Perrault e de outros, que assumiriam o padrão burguês conservador e
imobilista. A diferença entre os dois produtos é que a moral limitadora, que infunde
medo, nos contos de Perrault, está circunscrita à "moralidade", apêndice adicionado por
Perrault ao relato dos contos por ele coligidos - e não existe nos próprios contos,
enquanto que na narrativa aqui apresentada, a ideologia é interna: está no texto.
O conto é moralizador. Seria um ‘causo’206? O ‘causo’ fala de eventos
extraordinários, pertencendo à experiência pessoal do narrador, característica que mais
fortemente torna a narrativa essencial e necessária para o ouvinte. O ‘causo’ é relato de
contador de histórias, essa figura evocada nostalgicamente por Walter Benjamin. A
narrativa em estudo não apresenta o relato de uma aprendizagem. Seria um caso 207? Há
uma pesagem final: Laura é avaliada e criticada. Como o caso se constrói por sucessão
de perguntas, e deixa para o leitor a tarefa da avaliação, e nesta narrativa o julgamento
de Laura está impresso em seu destino de solteirona, também a forma caso não se
encaixa.
"Apaixonada por dois rapazes" não o explicita, mas subjaz uma noção de família
como núcleo central e molecular da sociedade, proveniente, longinquamente, de
Hobbes208. Longinquamente, porque só é caracterizada a personagem feminina, e apenas
205. Exegeta e teólogo nascido na Alexandria (185-254).
206. A forma ‘causo’ será estudada no vol.III de Ficção e Razão.
207. Também a forma ‘caso’ será estudada no vol.III de Ficção e Razão
208. A propriedade para Hobbes é uma espécie de prescrição de regras, ditadas pela soberania, através
das quais o homem deve saber quais os bens de que pode gozar, e quais as atitudes que pode tomar para
com os outros. A propriedade, portanto, é uma lei civil e, como tal, uma segurança para o cidadão. Mas
essa esperança (salus populi) nasce a partir de uma demarcação dos limites da propriedade privada: os
valores entendidos como meum e tuum. A limitação do "meu" e do "teu" faz com que o que exista além
do "meu" é o estranho que não deve desfazer a harmonia da composição fechada. O meum torna-se valor
123
face a face com uma pessoa - ser de carne e osso e não com uma enteléquia, que nem
saberia que estava admitindo um 'pecado intelectual'. O princípio gerador destas minhas
reflexões era e é que todos os seres são inteligentes - com variações que dependerão
inclusive do uso e das oportunidades de confrontos com estímulos. Seria esta pessoa
'burra'? Limítrofe? Estaria 'estragada' pela mídia? Se a mídia tinha todo este poder,
como se explicaria que houvesse resistência de alguns? Como se definiriam os 'eleitos'?
E como seria possível que esta aluna ao mesmo tempo tivesse este gosto criticado em
mim pela minha decepção, e ao mesmo tempo fosse uma aluna interessada e
interessante?
Agradeço a esta aluna a coragem de haver se exposto - mesmo ao ridículo
eventual - prestando-me um serviço inestimável. Tive de repensar a noção de mito
burguês. E de influência da mídia. Tive de repensar os produtos trivializados. Tive de
rever o próprio conto. E os meus conceitos e preconceitos.
Este conto trivializado (não deixa de sê-lo) aproveita (copia) diversos recursos
do conto de Machado de Assis “Trio em lá menor”. O nome da personagem feminina é
simples - e não composto, como em Machado - mas é Laura, que contém o nome Raúl.
A personagem Raúl, cujo nome está incluído em Laura e vice-versa, corresponderia ao
mesmo da personagem feminina. Só Renato seria o outro. Mesmo Renato é o próximo,
o semelhante: ele é o vizinho. Laura deseja Raúl, anagrama de Laura. E sonha com o
semelhante, apenas sonha com ele, pensa nele, recorda-se dele. Renato é uma não
entidade. É pura fantasia. Raúl, o desejado, mas o mesmo, o outro de si mesma,
semelhante a Laura, se configura como aquele que provoca o proibido (apesar de todo o
tabu controlador do texto): o sexo. O narrador desvia o assunto, ou o contorna como
pode, porque a moral burguesa no Brasil da década de 80 ainda não tinha admitido o
prazer sexual, a sexualidade aberta e plena. Raúl só pode assustar Laura, assim como os
aspectos de alteridade em Laura. Não saber o que quer é por em questão a própria
identidade.
Laura, amando e desejando aquele que está contido nela - em seu nome - é o seu
tanto narcísica. Sua loucura lembra (de longe e apenas na relação do amor desmedido,
confusão de espírito e loucura):
125
O conto não tem o nível de beleza e grandeza do mito redigido por Ovídio (e
traduzido por Haroldo de Campos), nem se aprofunda na psique das personagens. Mas o
conflito vivido por Laura - que a coloca como desprovida de noção de identidade -
apresenta duas raízes ou matrizes (“Trio em lá menor” e o mito de Narciso) que podem
ter sido intuídas por estes leitores que preferiram "Apaixonada por dois rapazes" a "Trio
em lá menor". Inclusive pelo fato de ambas as raízes estarem mergulhadas em 'mitos',
um decorrente do patriarcado (o 'mito do amor único e definitivo na mulher') e outro da
noção de eu (o mito de Narciso). Os mitos sempre estão mais próximos do ser humano
"do que pensa a vã filosofia". O amor a dois rapazes se afigura como um excesso, como
hybris. Por isto é punido com a loucura, ou melancolia, primeiro; com a solidão, depois.
O conto não corresponde à construção de um mito: só aproveita mitos existentes,
referindo-os intersticialmente, assim como aproveita algum elemento dos contos de
fadas e algo do caso.
O Kitsch que atravessa o conto é responsável pela crítica que lhe pode ser feita.
Ele não é idêntico ao mito burguês, ainda que possa se confundir com ele, às vezes. O
que acontece com o Kitsch e com as dificuldades de recepção, se a tradição da
sociedade burguesa é a mesma?
O Kitsch - arte do mau gosto - é também a arte do mesmo, da repetição, da
muleta, da automatização. Ajuda o receptor a encontrar-se em campo conhecido.
Inseguro de seus critérios e de seus conhecimentos, o receptor do Kitsch se ancora no
conhecido, até pelo conforto de saber-se acompanhado, em seu gosto, por uma
multidão. O Kitsch é a arte da insegurança acerca do conceito de beleza - mais
freqüentemente é a exploração da insegurança do outro. Esta última característica é a
parte odiosa do Kitsch. Ela é suscitada pela diversidade de padrões e valores e pelo
desejo forte de pertencer a um grupo, de ser aceito como igual.
126
O conto "Trio em lá menor", cujo enredo básico tem pontos comuns com o
conto "Apaixonada por dois rapazes", apresenta uma personagem como eixo em torno
do qual, como em "Apaixonada", giraria a noção de família: a mulher, entendida como
núcleo central e molecular da sociedade e que deveria ser ocupado pelo pater familias.
A noção é patriarcal e ancestral. Machado de Assis trata disto com ironia.
A ironia machadiana consiste em apanhar uma trama banal, investi-la de valor
alegórico para a sociedade, questionando, assim, os papéis sociais e a própria sociedade.
É, sem dúvida, o modo mais eficiente e contundente de questionar o mito burguês,
elegantemente, introduzindo elementos de notação musical. O todo fechado da
sociedade se apresenta alegoricamente como o todo de uma peça musical: um trio. A
norma se apresenta na nota musical que serve como tom básico (lá), assim como para a
afinação dos instrumentos e para a afinação da orquestra, ou do grupo musical.
A narrativa começa introduzindo a personagem feminina, de nome duplo: Maria
Regina. Acostumada pela leitura de Guimarães Rosa a pensar em possíveis associações
do nome feitas pelo Autor, subdivido o nome duplo. Obtenho Maria - a representante
máxima da figura feminina no cristianismo, intermediária entre os homens e a
Santíssima Trindade; e Regina - rainha - mas também Regina Coelis, que vem a ser a
mesma Maria, mãe de Cristo e da humanidade, salvadora. A ação de Maria Regina nada
tem de santo, ou salvador. O narrador em terceira pessoa, que havia introduzido a cena
falando na seriedade, silêncio e recolhimento reflexivo de Maria Regina, que poderia
abrir para um assunto igualmente sério e, na sua reflexividade profunda, sorri,
malandramente, primeiro na escolha do nome e também pelo que veremos a seguir:
A verdade pede que diga que esta moça pensava amorosamente em dous homens
ao mesmo tempo. Um de vinte e sete anos, Maciel, - outro de cinqüenta, Miranda.
Convenho que é abominável, mas não posso alterar a feição das cousas, não posso negar
que se os dous homens estão enamorados dela, ela não o está menos de ambos.
Esta definição corresponde bem à forma deste conto, feito dos movimentos da
psique da personagem Maria Regina. O minueto não está intercalado entre o movimento
210. A sonata bitemática resultou da reorganização da sonata. Seu movimento inicial segue geralmente o
esquema da construção ternária: exposição com o primeiro tema na tonalidade principal, ponte
modulante, segundo tema numa tonalidade vizinha; desenvolvimento dos dois temas que se opõem e
modulam para o tom principal; reexposição dos dois temas no tom principal e coda.
128
- Acho que ele salvou talvez a vida a um desalmado que algum dia, sem o
conhecer, pode meter-lhe uma faca na barriga.
- Oh! protestou a avó.
- Ou mesmo conhecendo, emendou ele.
211. Forma musical clássica, em compasso ternário, composta de - exposição, trio, reexposição e coda
(facultativa) [...]. Havendo entrado definitivamente nas suítes instrumentais do séc. XVIII (Bach,
Haendel, etc.), sob a forma de dois minuetos seguidos (I e II), um no modo maior, outro no modo menor,
vai constituir em seguida o terceiro movimento das sonatas de forma clássica e das primeiras sinfonias,
até nelas ser substituído pelo scherzo beethoveniano.
129
- Não seja mau, acudiu Maria Regina; o senhor era bem capaz de fazer o mesmo,
se ali estivesse.
Miranda sorriu de um modo sardônico. O riso acentuou-lhe a dureza da
fisionomia. Egoísta e mau [...]212.
Egoísta e mau, como afirma o narrador, "Miranda primava por um lado único:
espiritualmente, era completo213".
Maria Regina quer o homem completo, tanto aquele que é generoso e
espirituoso, como aquele que é solidário e informado. De passagem, o narrador revela
que Miranda tem certas características inatas e outras adquiridas. Inata é a sua vocação
por música. Adquirida é a sua formação em direito. Por extensão poderíamos imaginar
que inata seria a sensibilidade - tolhida, podada, desviada por uma educação e por
valores econômicos e ideológicos de uma sociedade: "[...] Miranda estudara direito para
obedecer ao pai; a sua vocação era a música". Mesmo a complementação dos dois
homens num que contivesse as características positivas de ambos, só é possível pela
ficção: "E a moça recorreu a um expediente: completou um pelo outro; escutava a este
com o pensamento naquele; e a música ia ajudando a ficção, indecisa a princípio, mas
logo viva e acabada. Assim Titânia, ouvindo namorada a cantiga do tecelão, admirava-
lhe as belas formas, sem advertir que a cabeça era de burro"214. Não é à toa que
Machado recorre a Shakespeare. A glorificação da ficção e da lírica (poesia, ou música)
garante o impossível social.
Maria Regina não rejeita apenas a insensibilidade, crueldade, egoísmo, falta de
solidariedade - ou o embrutecimento pela vaidade e superficialidade: rejeita o que não é
verdadeiro, o que não tem identidade, assim como rejeita os valores socialmente aceitos:
Não havia lua, - mas a nossa amiga aborrecia a lua, - não se sabe bem por que, - ou porque
brilha de empréstimo, ou porque toda a gente a admira, e pode ser que ambas as razões.
trabalha (como Maciel), é generoso, mas perde o sentido do papel social do trabalho,
não explicam a frase da lua.
É a tua pena, alma curiosa de perfeição; a tua pena é oscilar por toda a
eternidade entre dous astros incompletos, ao som desta velha sonata do absoluto: lá, lá, lá...
A alma curiosa de perfeição seria Maria Regina, ou seria ela uma alegoria para
outra coisa? Haveria relações entre esta trama e uma alegoria territorial do Brasil? Teria
a ver a punição com a punição por hesitação do Brasil-mulher entre a sua adesão a um
ou outro dos pretendentes? O salto é demasiado grande para se inferir isto, sobretudo a
partir de um conto, apenas. Mas sobra a ironia sobre a noção de territorialidade da
família, regida pelo pater familias.
Na falta de outros parâmetros, recorro a Paulo Emílio Salles Gomes, que vê a
Colônia (brasileira), à qual falta identidade ("lá menor"?), feita à imagem e semelhança
da metrópole. Por outro lado, parece que se renova uma concepção de nação com sede
de absoluto, que não se contenta com uma imagem, que almeja outra, e que se condena,
devido a sua hybris configurada no desejo de absoluto, no horror do brilho de
empréstimo e dos valores que 'toda a gente admira'. Por ter expectativas para além do
‘permitido’ e previsto para a mulher casadoira, por ser diferente e almejar a totalidade –
uma desmesura – Maria Regina, ícone da nação brasileira, é punida (como nos mitos),
devendo 'oscilar por toda a eternidade' (para sempre - e de certa forma, desde sempre)
entre imagens insuficientes, ambicionando sempre um lá inatingível. Maria Regina,
ícone do Brasil, representaria algo como o mito da insuficiência, ou, já no séc. XIX, a
consciência de país da desigualdade, consciência do atraso encenado pelos namorados
incompletos.
"Trio em lá menor" está mais para a forma caso, na sua necessidade de pesar a
falta de opção amorosa de Maria Regina, mas modaliza a forma, que poderia levar ao
trágico, pela ironia, modalidade da comédia, ou do chiste. A ironia dilui a tensão. Serve
até para brincar com a in-verossimilhança da conclusão da narrativa, momento em que
Maria Regina de repente se transforma em uma mera contemplativa. Aliás, o tour de
force final é tal, que a personagem se esfuma, parecendo dissolver-se no seu anseio de
absoluto, o que provoca alívio no leitor. Se o leitor aceita a personagem como real, isto
ocorre devido à suspensão da descrença, encarecida pela voz e olhar do narrador, cuja
131
3.1.4. Tautologia.
Tautologia é
Vício de linguagem, que consiste em repetir o mesmo pensamento com palavras sinônimas.
[...] Erro lógico que consiste em aparentemente demonstrar uma tese repetindo-a com
palavras diferentes216.
Minha tia Iracema, um pouco mais velha que eu, é minha melhor amiga.
Ela é alta, loira, cabelos longos e ondulados.
Tem o rosto redondo, a pele rosada e olhos azuis como o céu.
Calma, alegre, comunicativa e bondosa, está sempre rodeada pelos sobrinhos que a
adoram.
Imagine uma pessoa com qualidades completamente opostas às da descrição e procure descrevê-
la219.
Façamos o exercício:
Minha tia Iracema, muito mais velha que eu, é minha pior inimiga.
Ela é baixa, preta, cabelos curtos e pixaim220.
Tem o rosto quadrado (comprido), a pele preta e olhos escuros como o inferno.
Nervosa, triste, fechada e má, não está nunca rodeada pelos sobrinhos que a
detestam.
Mesmo que o "exercício" seja feito de modo diferente por diferentes pessoas,
i.e., apresente variações, permanecerá em algum espaço subliminar, em alguma fresta
217. "[...] quando o romancista repete sem temor as mesmas palavras mar verde, canto triste, ou ajunta a
palavra doce a dezenas de substantivos, as palavras tendem a perder o valor qualificativo e plástico,
formando legítimas entidades sonoras e rítmicas sem sentido consciente específico da mesma forma que
os nomes de cidades e pessoas... É processo rítmico-musical comum aos aedos e rapsodistas, a um
Homero como a um Manuel Riachão". Andrade 1972: 127 (O empalhador de passarinhos).
218. Cavalcanti Proença (1969: 81) fala na impersonalidade das palavras do lugar comum, ou das frases
feitas:
219. Bastos, Camélia da Palma e Silva e Elvira Maria Cicci Pinto Resende. Linguagem e Comunicação.
3ª série. São Paulo: FTD, 1982: 15.
220. O contrário de ondulado poderia ser liso, mas coerente com a lógica desta caracterização, a palavra
fica sendo pixaim.
133
222. They were dying slowly -- it was very clear. They were not enemies, they were not criminals, they
were nothing earthly now -- nothing but black shadows of disease and starvation, lying confusedly in the
green- ish gloom. Brought from all the recesses of the coast in all the legality of time contracts, lost in
uncon- genial surroundings, fed on unfamiliar food, they sickened, became inefficient, and were then
allowed to crawl away and rest. (Conrad, Joseph. Heart of darkness. Acessado em 08.04.2003
http://www.cwrl.utexas.edu/~benjamin/316kfall/316ktexts/heart.html).
135
"ordem estabelecida" - uma quase morte pessoal, morte em vida. Pareceu-me mais
contundente e evidente nomear a constatação de 'imobilismo', já porque 'constatação',
no dicionário, tem uma acepção positiva223, diametralmente oposta à negatividade
imobilista do mito burguês.
Tanto a forma assertiva, como a generalização, são a manifestação mais
explícita do imobilismo em redações escolares. Mesmo a naturalização e idéia de que as
coisas têm uma face imutável (proveniente das origens, e entendida como imutável até o
fim dos tempos), que faz parte da mitologia do oprimido construída pelo opressor,
assimilada pelo excluído (ou pelo fragilizado social) - é francamente imobilista. É
verdade que até mesmo as dificuldades de um ser humano, até mesmo os seus limites,
não são tão rígidos e definitivos como se pode supor. São móveis. Quão móveis, é
difícil de saber. Só se sabe experimentando superar os limites, não através do sonho, ou
da fantasia. Sim, através de empenho, exercícios, estudo, estímulos - tratamento.
A literatura é – enquanto pulsão de ficção, arte da palavra - um dos modos de
superação encontrados pelo ser humano. Por isto os textos imobilistas do Kitsch, (da
literatura trivial) têm uma face nefasta.
Correspondem ao uso abusivo de uma forma, subvertida pelo poder instituído, ou que
quer se instituir, ou fortalecer, desqualificando o diferente. O Retrato do colonizado,
precedido pelo retrato do colonizador, de Albert Memmi, analisa comportamentos do
opressor e do oprimido (palavras fora de moda, mas não a sua realidade) com detalhe e
acuidade tais, que ficamos sem saber se o mito burguês não corresponde exatamente à
retórica do dominador (ou colonizador). Não se entenda uma estratégia retórica como
idêntica ao mito. Enquanto ideologia, o que a caracteriza é o uso das estruturas e
funções dos mitos nas mitificações – para os fins desejados ou pretendidos.
Chegados a este ponto, é impossível deixar de ver como a palavra 'mito' tem sido
usada nas acepções mais diferentes.
Como podem ser tão diferentes as acepções de mito e como podem ser tão
diferentes, enquanto função e produto, os mitos primitivos e gregos, por um lado e os
mitos contemporâneos? Por que é tão difícil diferenciar conto de mito, mito de lenda,
mito de mitificação?
A difícil diferenciação decorre da falta de uma conceituação mais matizada
destes termos, tendo em conta as suas funções. Além disto, vale recordar que os mitos
modernos são mitos escritos ou construídos por superposições de diferentes graus da
palavra e da imagem. Foram produzidos por adultos, por analogia com os mitos
originais. As mitificações de qualquer produto de consumo, quer da escrita, quer não,
têm como pressuposto que os interlocutores têm inscritos em si os outros mitos -
primitivos ou não - de cultura oral ou escrita, portanto paradigmas que lhes abrem o
caminho para que apreendam, enquanto norma e enquanto definição de existência,
aquilo que é quando muito um estado provisório.
Segundo Detienne, Lévi-Strauss discerne o mito dos 'mitismos':
224. Detienne, Marcel. A invenção da mitologia. Tradução de André Telles e Gilza Martins Saldanha da
Gama. Revisão técnica Junito Brandão e Roberto Lacerda. 2ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio e Brasília,
D.F.: UnB, 1998: 11.
139
[Ele] reconhece nos 'mitismos' um dos fenômenos a pôr entre parênteses o mito
como um gênero literário ou como um tipo determinado de narrativa; é descobrir a
diversidade das produções memoriais: provérbios, contos, genealogias, cosmogonias,
epopéias, cantos de guerra e de amor225.
nem hierarquia. Em situação de caos de devires, de caos de sentidos, que poderão ser
acessados a qualquer momento. Por isto convive o absurdo com a racionalidade, seja o
absurdo a guerra, sejam as atrocidades, seja o arbítrio.
O convívio com a escrita não elimina o mito, não o afasta, nem o enfraquece.
Ele persiste, até quando tergiversado. As funções do mito – não valorizáveis, ou
avaliáveis, porque apenas são, como o mito é – vêm sendo utilizadas para fazer aceitar
as mitificações, para que sejam absorvidas e aceitas. Trata-se de um ab-uso do mito. O
conhecimento e a freqüentação com mitos permanece até nossos dias, assim como
mantemos rituais de iniciação, de festejo do tempo cíclico, de morte e ressurreição e
outros. Em qualquer das acepções apresentadas, com quaisquer variações, o mito
continua fornecendo campos de referência para a conduta humana e podendo conferir
sentido e valor à existência, (assim como pode ser usurpado, deformado, em qualquer
sociedade, regime e sistema, servindo para a ideologização alienante). Não se encontra
limitado por uma moldura histórico-religiosa de fatos passados de cultura, nem é
aberrante, selvagem, infantil ou ato puramente intuitivo. Mythos e logos existem em
qualquer cultura, da escrita ou ágrafa, do passado ou do presente. São inatos, fazendo
parte e servindo de paradigma estruturante dos universais (imaginário, simbólico e
efabulação) sempre presentes em cada indivíduo, no presente sempre reatualizado de
cada ser humano, assim como no passado da humanidade.
145
Anexos
4.1. Rampsinitos
146
Paris (1907) refere:"Récit bouddhique translaté du sanscrit en chinois vers l'an 266 de
notre ère et traduit par M. E. Huber dans le Bulletin de l'École Française d'Extrême
Orient, t. IV (1904), p. 704. Dans cette version [...] les deux voleurs sont un oncle et un
neveu, tisserands de leur métier (comme dans le conte tibétain); ils pillent le trésor du
roi. L'oncle est pris, à peu près comme dans le récit tibétain; le neveu lui coupe la tête.
Les épisodes où le neveu réussit à brûler le cadavre de son oncle et à enlever les cendres
sont analogues à ceux du récit tibétain; cependant le passage de celui-ci où le voleur
pleure sur le cadavre décapité avant de le brûler, manque dans le récit indien. En
revanche, l'épisode de la princesse est mieux conservé dans celui-ci que dans la version
tibétaine; il présente une grande analogie avec le récit d'Hérodote (le détail du bras
coupé d'un cadavre que le voleur tend à la princesse s'y retrouve)".
4.3. Rampsinitos no livro de Heródoto
148
L'homme chargé du travail, qui avait de méchants desseins, imagina ce qui suit
(aqui existe a seguinte nota ao pé de página: "Sur le caractère du conte qui va suivre,
dont la première partie a en Grèce son pendant exact dans l'histoire de Trophonios et
Agamédès [Pausanias, IX 37], cf Notice, p. 46 et 50)"
O arquiteto é o pai de dois jovens, a quem ele revela a sua astúcia de deixar uma
pedra móvel que daria acesso à câmara do tesouro.
"Quand il fut mort, ses fils n'attendirent pas longtemps pour se mettre à l'oeuvre.
Ils se rendirent de nuit près du palais, repérèrent la pierre dans le revêtement de l'édifice,
la remuèrent sans peine à la mais, et emportèrent de grosses sommes. Le roi, étant venu
à ouvrir son trésor, s'étonna de voir qu'il manquait de l'argent dans les vases; et il ne
savait qui accuser, vu que les scellés étaient intacts et la chambre fermée. Il ouvrit deus
fois, trois fois, et chaque fois constata que l'argent diminuait (car les voleurs ne
cessaient de piller); voici donc ce qu'il fit. Il ordonna qu'on fabriquât des pièges, et plaça
ces pièges autour des vases où l'argent étaie contenu".
Um dos irmãos penetra no interior e é pego pela armadilha. Segue o que já
conhecemos, até o ponto em que o irmão sobrevivente e assassino e ladrão astutamente
recupera o corpo do irmão para poder enterrá-lo.
Le roi, quand on lui annonça que le cadavre du larron avait été volé, s'irrita fort;
et, voulant à tout prix découvrir qui pouvait bien être l'homme qui déployait cette
ingéniosité, il fit ce que voici, qui pour moi est chose incroyable. Il plaça sa propre fille
dans une maison de débauche, après lui avoir enjoint d'accueillir indifféremment tous
les visiteurs et, avant de s'unir à eus, d'obliger chacun d'eux à lui dire ce qu'il avait fait
dans sa vie de plus ingénieux et de plus scélérat; et, si quelqu'un lui racontait ce qui
s'était passé pour le voleur, de l'appréhender et de ne pas le laisser sortir. La fille
exécutait ce qui lui avait été prescrit par son père; le voleur, ayant compris pourquoi
cela se faisait et voulant rendre des points au roi en fait d'astuce, fit ce que voici. Il
coupa à l'épaule le bras d'un homme qui venait de mourir, et se mit en route en tenant ce
bras sous son manteau; il entra près de la fille du roi; et, quand elle lui posa les mêmes
149
questions qu'aux autres, il déclara qu'il avait accompli son action la plus scélérate le jour
où il avait, dans le trésor du roi, coupé la tête à son frère pris au piège, et son action la
plus ingénieuse le jour où il avait enivré les gardes et détaché le cadavre de son frère qui
était pendu."
A jovem tenta segurá-lo pelo braço, mas não é o seu o braço que ela segura.
[..] Quand on eut rapporté encore cela au roi, il fut émerveillé des ressources
d'esprit et de l'audace de l'homme; pour en finir, il envoie dans toutes les villes et y fait
proclamer qu'il accorde à cet homme l'impunité et lui promet de grands dons s'il se
présente à ses yeux. Le voleur eut confiance et vint le trouver; Rhampsinite lui témoigna
beaucoup d'admiration et lui donna en mariage sa fille dont nous avons parlé comme à
l'homme du monde qui en savait le plus long, les Egyptiens l'emportant sur les autres, et
lui sur les Egyptiens. (Hérodote. Histoires. Livre II - Euterpe. Texte établi et traduit par
Ph.-E. Legrand. Paris: "Les Belles Lettres", 1948. [Col. Des Universités de France]:
146-151.
4.4. As Amazonas
150
Posso contar, a respeito dos selvagens Worisiana, a velha história de como a sua
fama guerreira e a sua força começou na ignomínia. Uma vez a mulher de um cacique,
To-eyza, foi infiel ao seu marido. Mas ela não estava nem um pouco vexada com a sua
culpa. Se o seu marido era altivo, ela o era ainda mais.
No lugar do banho das mulheres, To-eyza disse: "Há quem diga que o casamento
é uma proteção; eu acho que é uma submissão indecente. Preferiria estar morta! O que
podemos saber sobre o amor, nós, que somos entregues pelos nossos pais? Vivemos
todos os nossos dias atormentadas. Trabalho hoje e trabalho amanhã, sempre trabalho e
sofrimento. Oponham-se comigo a esta ignominiosa servidão! Vejam lá longe a onça
preta! É o meu amante em seu disfarce. Homens como ele podem nadar facilmente para
o lado de cá e nos libertar! Clamem o seu nome! 'Walyarima' será o nosso lema!
Guardem-no bem, vocês, que querem ser libertadas da servidão dos seus maridos!"
Três homens tinham visto Walyarima do bosque próximo e ouvido tudo, e foram
e o contaram ao seu cacique "To-eyborori".
Pela manhã o cacique disse, calmo, para as mulheres: "Temos uma caçada difícil
à nossa frente. Preparem beiju, para não passarmos fome!"
Quando elas haviam ido embora à procura de raízes, ele foi até o rio. Ali ele
deixou alguns rapazes tomando banho, enquanto se escondia com os outros homens e
lhes revelava o seu plano sinistro.
Os rapazes que tomavam banho chamaram "Walyarima!", gritaram o nome
odiado e estenderam os seus longos cabelos sobre a água. Então veio Walyarima,
enquanto em cada arco uma flecha esperava por ele.
Quando o viu chegar, o cacique avançou ao seu encontro na correnteza e o
perfurou com a sua poderosa lança. Os outros vieram nadando e acabaram com o
moribundo. Cheios de ira levaram os seus restos para a oca das mulheres. Lá o
penduraram com desprezo de um varal com a cabeça para baixo. As mulheres vinham
andando uma atrás da outra, cada uma com a sua carga. Os homens as observavam com
olhar tenebroso. Horrorizadas, as mulheres retrocederam diante do que viram. A última
a entrar foi To-eyza. Sangue pingou sobre a sua mão. Lá estava ela sobranceira, alta e
bela. Até o cacique admirou a sua presença de ânimo.
151
Depois ele disse: "Nós vamos caçar. Apressem-se e preparem beiju! Assem-no
ainda esta noite! Não podemos esperar. Temos que levar beiju para cinco dias. " -
"Assim seja!" disse ela. "Tragam a carne! Nós vamos preparar-lhes paiauaru bem forte,
mais do que nunca, e nessa noite vamos querer dançar ao seu lado!"
No coração da orgulhosa To-eyza ardia uma ira coruscante. A gota de sangue
havia despertado nela o pensamento da vingança, e a sua força demoníaca se espraiou
pelas outras.
"Os nossos corações clamam por vingança, os corações de todas nós", ela disse.
"Os homens lhes causaram cruel opróbrio. Não perguntem! Eu as guiarei. Todas vocês
serão livres!"
O cacique voltou da caçada; os homens vinham com pesadas cargas. Traziam
animais e aves, algumas defumadas, outras frescas. Havia tudo em abundância. Então
houve uma festança! As mulheres haviam preparado muito paiauaru. Todos os homens
beberam. Depois descansaram, até que os sedentos pediram mais. Então cada mulher
entregou humilde e amavelmente uma cabaça, cheia até a borda com uma bebida
funesta. Assim To-eyza havia ordenado. Tinham misturado manipueira na bebida, e o
terrível veneno trouxe a morte para todos. Logo os homens empalideceram na sua luta
com a morte. Em vão gritaram por socorro. Ao chão caíram os guerreiros.
"Alegrem-se agora" exclamou To-eyza. "Mulheres, agora vocês são livres!
Nunca mais as dominará um marido; ninguém há de bater em vocês, oprimir e
incomodar, se me seguirem." Algumas haviam fugido com meninos. As outras
dançaram com alegria forçada varando a noite, cada uma delas com loucura no coração.
Pelas florestas marchava em ordem a tropa das mulheres. Carregavam redes,
mantimentos e armas. Estavam preparadas para uma pesada marcha, para um país
longínquo. Todas elas haviam jurado obediência à sua líder, à esbelta To-eyza.
Seguiram pelo seu caminho, às vezes lutando, às vezes fugindo, dependendo apenas de
seus arcos.
Mais de uma mulher insatisfeita juntou-se a elas. Proclamavam a libertação,
chamavam-se "o povo das mulheres" e tratavam todos os maridos como inimigos.
Enxotavam os homens ou os matavam e diziam para as mulheres: "Vocês e suas filhas
são bem-vindas. Se quiserem guardar os seus filhos, deixamo-las aqui com eles."
152
Caherero, uma menina carajá, casou com o rico Chocroé. Foi mandada para a
floresta, para pegar lenha. Porém o sol correu tão depressa que a noite irrompeu antes
dela terminar. Então a menina se queixou com a sua mãe: "Para que casei com um
homem tão rico e poderoso, se estou sendo obrigada a trabalhar tão depressa? Eu não
153
agüento mais. Faça com que o sol ande mais devagar!" - A mãe mandou o filho sair. Ele
conseguiu quebrar uma perna do sol. Desde então ele anda mais devagar.
Koch-Grünberg: op. cit. 1927: 198 (relato nº2).
Trad. de George Bernard Sperber
BIBLIOGRAFIA
156
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muitos sermões & práticas espirituaes, que servem para muitas festas do anno. Vistas e cotejadas
com so seus originaes authenticos, pelo Pe. Frey Diogo de Rosayro, da ordem de Sam Domingos.
Agora nesta ultima impressam emendado com muita diligencia, & acrescentado de novo algumas
vidas de Sanctos, como se verá na Taboada. Com licença do Conselho geral da Sancta Inquisição
& do Ordinario. A custa de João Despanha & Miguel Darenas Livreiros. Com privilegio real:
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Índice do Volume II
169
2. O mito primitivo 65
2.1. O mito indígena 65
3. Outra visão do mito, ou o mito contemporâneo: A teoria de Roland 103
Barthes
3.1. Características (ilustradas à brasileira) do mito burguês, 105
segundo Barthes
3.1.1. A “ordem estabelecida” 105
3.1.2. A perda do sentido histórico 113
3.1.3. A perda da noção e identidade pessoal 116
3.1.4. Tautologia 128
3.1.5. O medo da escolha. (O nem-ismo barthesiano) 130
3.1.6. Quantificação da qualidade 131
3.1.7. Concepção estática do mundo (imobilismo) 132
3.1.8. Usos dos termos mito e mito contemporâneo 133
4. Anexos 143
4.1. Rampsinitos 143
4.2. Mais Rampsinitos: o relato búdico 144
4.3. Rampsinitos no livro de Heródoto 145
4.4. As Amazonas 147
4.5. Por que o sol anda mais devagar 149
4.6. A tartaruga e o tapir 150
5. Bibliografia 152
6. Índice 164