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5.

Luís de Camões, Os Lusíadas


Conteúdos essenciais
a. Contextualização histórico-literária
Atendendo a que no subcapítulo anterior (cf. p. 118) foram já apresentados factos relevantes
sobre a vida e a produção literária de Luís de Camões, para além de ter sido feita uma
contextualização histórico-literária quer a nível europeu quer a nível nacional do período durante
o qual o autor viveu (cf. p. 118), não nos vamos deter sobre estes aspetos.
Gostaríamos, no entanto, de referir que a produção de Os Lusíadas ficou marcada por algumas
circunstâncias curiosas, como:
• um longo período de maturação de 25 anos (1545 a 1570), recheado de incidentes e
episódios mais ou menos lendários: o facto de uma parte significativa do poema ter sido
escrita numa gruta em Macau, que a lenda designou como “Gruta de Camões"; o
naufrágio no rio Mecom, Camboja/Vietname, durante o qual o poeta salva o poema a
nado, e também durante o qual morre a escrava e amante chinesa, Dinamene;
• a existência de duas edições datadas de 1572, com o consentimento do Santo Ofício, na
pessoa de “um censor instruído e compreensivo que não eliminou as cenas mitológicas
então consideradas ímpias ou sacrílegas”; destas duas edições, a verdadeira, chamada
princeps1, distingue-se por apresentar na portada, ao alto, a cabeça do pelicano voltada
para a esquerda do observador.
Para além disso, importa destacar que Os Lusíadas são, claramente, uma obra do Renascimento,
atendendo a que espelham muitos dos valores e conceitos renascentistas:
• pluralidade cultural – a obra dá a conhecer novas geografias e retrata conhecimentos de
ordem diversa – uma universalidade de saberes;
• espírito crítico – Camões revela a postura interventiva e crítica do homem do
Renascimento – vejam-se as suas reflexões, no final dos cantos;
• experiência humanista – no respeito pelo modelo clássico da epopeia e na valorização e
utilização da mitologia greco-latina;
• valorização das capacidades do Homem – toda a epopeia é, no fundo, um
reconhecimento das capacidades dos Portugueses, que descobriram novos mundos e
que, em vários momentos da História, revelaram a sua coragem e vontade de superação;
• conceito de herói – os feitos dos Portugueses são equiparados aos de figuras da
Antiguidade, sejam elas reais, como Alexandre Magno, ou fictícias, como Ulisses e Eneias;
• valorização da observação e da experiência – as referências a fenómenos da astronomia
e da cosmologia, até então desconhecidos, a descrição de fenómenos físicos e
meteorológicos igualmente desconhecidos ou até de novas técnicas náuticas servem
para mostrar como a observação e a experiência dão fruto e são importantes.

1A outra edição é considerada pelos estudiosos uma contrafação, após ter sido feito um confronto entre segmentos
do texto que apresentavam diferenças.
b. Visão global
A epopeia: natureza e estrutura da obra
A epopeia (do grego epos, canto ou narrativa) é uma composição narrativa, em verso ou em
prosa, que, em estilo elevado – grandiloquente – canta uma ação heroica passada. Celebra uma
ação grandiosa ou uma série de grandes acontecimentos históricos. Nesse sentido, Os Lusíadas
são uma obra épica, uma epopeia.
Em Os Lusíadas, encontramos os elementos que nos permitem classificar o texto como uma
epopeia:
• ação – épica, com grandeza e solenidade, de modo a expressar heroísmo:
> no caso de Os Lusíadas, a ação central é a aventura das Descobertas, de que se destaca
a viagem marítima de Vasco da Gama à Índia, uma ação repleta de heroísmo e, por isso,
digna de ser louvada;
> em articulação com essa ação, surgem episódios da mitologia – plano da Mitologia;
> a par da ação central, verifica-se também a narração de outros feitos heroicos levados
a cabo pelos Portugueses e contados por Vasco da Gama ao rei de Melinde e por Paulo
da Gama ao Catual de Calecute – plano da História de Portugal;
• herói – o protagonista devia revelar grande valor moral, além da sua estirpe social; em Os
Lusíadas, o herói é o povo português – “o peito ilustre Lusitano” (Canto I, est. 3) –, representado
na figura do comandante das naus, Vasco da Gama; há, portanto, um herói coletivo e um
herói individual;
• maravilhoso – em Os Lusíadas verifica-se não só a intervenção das divindades da mitologia
(por exemplo, Vénus e Baco), como do Deus dos cristãos (ver, por exemplo, a prece de Vasco
da Gama, aquando da tempestade);
• forma – há um narrador que relata os acontecimentos; em Os Lusíadas podemos, inclusive,
distinguir os seguintes narradores:
Relata a viagem de Vasco da Gama desde Moçambique até à Índia e toda a
O Poeta
viagem de regresso (Cantos I, II, VI, VII, VII, IX e X).
Conta ao rei de Melinde:
Vasco da
• a História de Portugal (Cantos III e IV);
Gama
• a viagem desde Lisboa até Moçambique (Final do Canto IV, Canto V).
Relata, em Calecute, ao Catual alguns factos da nossa História e explica o
Paulo da Gama
significado das 23 figuras representadas nas bandeiras (Canto VIII).
Fernão Veloso Descreve o episódio dos Doze de Inglaterra (Canto VI).
• estrutura – que:
> está assente em partes obrigatórias: Proposição, Invocação e Narração; a Dedicatória
era opcional; Os Lusíadas apresentam quatro partes, tendo a obra sido dedicada ao rei
D. Sebastião (1554-1578);
> determina uma narração in medias res – em Os Lusíadas, a narração começa quando a
armada portuguesa já estava no oceano Índico;
> exige “analepse(s) completiva(s)” – o facto de existir uma ação central (unidade de
ação) não significa que não possa haver narrações de factos passados (analepses) ou
até futuros (profecias).
No fundo, em Os Lusíadas é seguido o modelo das chamadas epopeias primitivas1 – “os poemas
homéricos (a Ilíada e a Odisseia)”, primeiras manifestações da literatura épica e que remontam,
na sua forma escrita, aos séculos VIII e VII a. C., sensivelmente. Camões teve, certamente, em
conta estas duas epopeias quando redigiu a sua. Mas teve também em consideração uma outra
epopeia, devedora das primeiras e produzida no século I a. C. pelo escritor romano Virgílio: a
Eneida. Para além disso, alguns poemas épicos do Renascimento terão igualmente constituído
1Utilizamos a designação de António José Saraiva em Luís de Camões, Publicações Europa-América, 1959
fontes literárias para Camões. 1
Vejamos sumariamente sobre o que versam a Ilíada, a Odisseia e a Eneida, principais modelos
da epopeia camoniana.2
Obra Autor Herói Assunto
Ilíada Homero Aquiles Canta um episódio da guerra de Troia, que opôs os
(de Ílion, (um grego, filho de um Aqueus (povo da Grécia Antiga) aos Troianos: à
antiga humano e da deusa do personagem principal, Aquiles, luta e mata o seu rival
designação, mar, Tétis; através das suasHeitor, príncipe troiano. A narrativa começa quando a
em grego, ações, revela o seu carácterguerra já estava no seu último ano e desenrola-se toda
para Troia) nobre, guerreiro, honrado) num ambiente bélico.
Odisseia Homero Ulisses Após a conquista de Troia, em que participa, Ulisses
(herói grego – Odisseu ou vive inúmeras aventuras ao longo de uma viagem de
Ulisses, na mitologia vários anos. Volvidos 10 anos da destruição de Troia,
romana; exemplo deencontramos Ulisses, no início da narrativa, preso
astúcia, determinação e numa ilha. É a partir daqui que é feita a narração quer
coragem) das aventuras passadas, ou seja, nos 10 anos
anteriores, (em analepse), quer das aventuras que
estão para vir. No final, Ulisses regressa a Ítaca, onde
o esperam a sua mulher Penélope e o seu filho
Telémaco.
Eneida Virgílio Eneias Canta as aventuras de Eneias, único herói que se salvara
(príncipe troiano, filho de da destruição de Troia. É acolhido por Dido em Cartago,
Anquises e de Vénus) vagueia pela Itália e desce ao reino dos mortos, onde
ouve o futuro e a história de Roma.
Camões teve ainda necessidade de recorrer a fontes históricas, atendendo sobretudo aos
episódios que compõem o plano da História de Portugal e que se encontram essencialmente nos
cantos III, IV e VIII. Entre as fontes históricas contam-se, por exemplo, as crónicas de Fernão
Lopes: Crónica de D. Pedro, Crónica de D. Fernando e Crónica de D. João I. As fontes literárias e
históricas ajudaram, assim, Camões a realizar o “nobilitante desafio ao engenho dos poetas”
renascentistas: “Ressuscitar a epopeia homérica”.3
Com efeito, a épica torna-se, durante o Renascimento, o género mais valorizado, uma vez que
permite dar destaque às ações dos homens. Assim:
• o objetivo da epopeia é narrar e louvar os feitos grandiosos, e por isso dignos de memória,
de um povo, para que não caiam no esquecimento e possam servir de exemplo e de
inspiração para outros homens;
• o Humanismo do século XV instituiu uma crença inabalável no Homem, nas suas capacidades
e também na sua exemplaridade, daí que as descobertas marítimas se tenham apresentado
como um feito extraordinário merecedor de ser imortalizado. A aventura dos Portugueses
por “mares nunca dantes navegados” era uma prova do espírito dos tempos, da confiança no
Homem. Era o resultado do seu desejo de conhecer e de ver, pelos seus próprios olhos, o
mundo.

1Como “poemas épicos do Renascimento” podemos apontar: o Orlando Enamorado de Boiardo; o Orlando Furioso de
Ariosto e a Jerusalém Libertada de Torquato Tasso (cf. António José Saraiva, Óscar Lopes, História da Literatura
Portuguesa, Porto Editora, 2001)
2Os poemas sobre os Argonautas (do escritor grego Apolónio de Rodes e do escritor romano Valério Flaco), relatando

a mítica viagem da nau Argo e as aventuras de Jasão e dos tripulantes da nau – os Argonautas – em demanda do
velocino (pelo ou lá) e ouro, terão também influenciado Luís de Camões (cf. António José Saraiva, Óscar Lopes, História
da Literatura Portuguesa, Porto Editora, 2001)
3in António José Saraiva, Óscar Lopes, História da Literatura Portuguesa, Porto Editora, 2001
Os Lusíadas são, pois, fruto do seu tempo e do espírito dos homens desse tempo. Nesse sentido,
são uma epopeia humanista porque:
• são um monumento erguido em louvor da capacidade do ser humano. De facto, através da
descrição pormenorizada da viagem de Vasco da Gama à Índia, ação central do poema, mas
também do relato da História de Portugal, ou mesmo através da intriga dos deuses, Camões
pretende mostrar como o povo da Lusitânia foi capaz de tanto, não só em terra como no mar;
• representam um ideal humanista de valorização e de superioridade da Cristandade. Camões
perspetiva a História de Portugal como uma cruzada, isto é, como uma luta contra os infiéis;
• se revestem de um pendor pedagógico, patente especialmente nas reflexões do poeta, que
surgem geralmente no final de cada canto. Como salienta Maria Vitalina Leal de Matos: “Os
Lusíadas tornam-se para o poeta ocasião de propor aos portugueses modelos de perfeição
humana, pelos quais eles deverão corrigir defeitos antigos, e alcançar um nível de superior
humanidade, um grau de maior harmonia de todas as suas faculdades”.1
Agora que já refletimos sobre a natureza de Os Lusíadas, podemos centrar a nossa atenção na
sua estrutura que, de acordo com as regras do género da epopeia clássica, se estrutura em três
partes obrigatórias:
Estrutura Proposição Na Proposição (Canto I, est. 1-3), Camões propõe-se cantar:
interna (apresentação do • as navegações e conquistas no oriente nos reinados de D. Manuel
(partes de Os assunto) e de D. João III (est.1);
Lusíadas) • as vitórias em África de D. João I a D. Manuel (est. 2, vv. 1-4);
• a organização do país durante a 1.ª dinastia (est. 2, vv. 5-8).
Invocação Há várias Invocações:
(súplica de • 1.ª (Canto I, est. 4-5) – súplica às ninfas do Tejo (Tágides) para que o
inspiração para ajudem na organização do poema.
escrever o Poema) • 2.ª (Canto III, est. 1-2) – súplica a Calíope, porque estão em causa os
mais importantes feitos lusíadas.
• 3.ª (Canto VII, est. 78-87) – súplica às ninfas do Tejo e do Mondego,
queixando-se dos seus infortúnios.
• 4.ª (Canto X, est. 8-9) – nova invocação a Calíope para que o inspire
para terminar a obra.
Dedicatória A Dedicatória (Canto I, est. 6-18):
(facultativa) • esta dedicatória a D. Sebastião reflete a esperança do povo
(oferecimento da português no ovo monarca e, sobretudo, na possibilidade de
obra a D. Sebastião) retomar a expansão no Norte de África.
Narração A Narração (a partir do Canto I, est. 19 e seguintes):
(desenvolvimento • iniciada in medias res (quando a frota se encontra no canal de
do assunto, já a Moçambique, em rota para Melinde – Cantos I e II), apresenta
meio da ação – in momentos retrospetivos meio da ação – (da História de Portugal
media res) e da viagem), momentos prospetivos (sonhos, presságios,
profecias...) e um Epílogo (regresso dos nautas, incluindo o
episódio da Ilha dos Amores).
Estrutura • Forma narrativa.
externa • Versos decassilábicos (geralmente heroicos, com o acento rítmico na 6.ª e 10.ª sílabas).
• Rimas com o esquema abababcc (rima cruzada nos primeiros seis versos e emparelhada
nos dois últimos).
• Estâncias - oitavas.
• Poema dividido em dez cantos (1102 estâncias, sendo o canto mais longo o X, com 156
estrofes, e o mais pequeno o VII, com 87 estrofes).

1in Maria Vitalina Leal de Matos, A Poesia Épica de Camões – Tópicos para a Leitura d' Os Lusíadas, Edição FAOJ
Vejamos agora, com cuidado, cada uma das partes obrigatórias da epopeia camoniana através de
alguns tópicos de análise.
Proposição – Estâncias 1 a 3 do Canto I

1 As armas1 e os barões assinalados2


Que, da Ocidental praia Lusitana,
Por mares nunca dantes navegados
Passaram ainda além da Taprobana3,
Em perigos e guerras esforçados Tópicos de análise
Mais do que prometia a força humana, • A Proposição indica qual é o objeto do
E entre gente remota edificaram Canto – “o peito ilustre Lusitano” –, uma
Novo Reino, que tanto sublimaram; expressão que, na verdade, incorpora:
> “As armas e os barões assinalados”, ou
2 E também as memórias gloriosas.
seja, os feitos bélicos e quem os executou –
Daqueles Reis que foram dilatando
os homens ilustres, notáveis. Esses
A Fé, o Império, e as terras viciosas4
homens, partindo de Portugal – da
De África e de Ásia andaram devastando,
“Ocidental praia Lusitana" – e após muitos
E aqueles que por obras valerosas
“perigos e guerras”, conseguiram alcançar
Se vão da lei da Morte libertando:
territórios para lá da ilha de Ceilão –
Cantando espalharei por toda parte,
“Passaram ainda além da Taprobana”;
Se a tanto me ajudar o engenho e arte.
> os "Reis que foram dilatando / A Fé, o
3 Cessem do sábio Grego5 e do Troiano6 Império,” e que andaram a devastar as
As navegações grandes que fizeram; terras desconhecedoras da religião cristã –
Cale-se de Alexandro7 e de Trajano8 “as terras viciosas / De África e de Ásia”;
A fama das vitórias que tiveram; > “aqueles que por obras valerosas / Se
Que eu canto o peito ilustre Lusitano, vão da lei da Morte libertando”, isto é,
A quem Neptuno e Marte obedeceram. todos os que, devido às suas ações
Cesse tudo o que a Musa antiga canta, magníficas, merecem ser louvados e
Que outro valor mais alto se alevanta. imortalizados.
Glossário • Nesse sentido podemos reconhecer na
1armas – guerreiros; 2barões assinalados – homens expressão “peito ilustre Lusitano” o uso da
ilustres; 3Taprobana – ilha de Ceilão (oceano Índico); metonímia, já que pela parte – uma parte
4terras viciosas – provadas de religião cristã; 5sábio
do corpo humano (o peito) – se designa o
Grego – Ulisses (cantado por Homero); 6Troiano –
Eneias (cantado por Virgílio); 7Alexandro – Alexandre
todo – o corpo humano, ou seja, o ser
Magno; 8Trajano – imperador romano humano, os Portugueses.

• Os Portugueses são, pois, o herói desta epopeia – herói coletivo – e são os seus feitos que o
poeta espalhará, cantando.
• Sobre o “peito ilustre Lusitano”, isto é, sobre os Portugueses, diz-nos ainda o poeta que:
> os seus feitos suplantam os de figuras míticas (“sábio Grego” – Ulisses; "Troiano" –
Eneias) e os de figuras históricas (Alexandre Magno é o imperador romano Trajano);
> esses feitos são tão gloriosos que até os deuses do mar e da guerra – Neptuno e Marte
– se submeteram aos Portugueses;
> representam um “valor mais alto”
• Na Proposição são já indicados os quatro planos estruturais da narração, a saber: plano da
Viagem (est. 1), plano da História de Portugal (est. 2), plano do Poeta (est. 2, vv. 7-8) e plano da
Mitologia (est. 3).
Invocação – Estâncias 4 e 5 do Canto I

4 E vós, Tágides1 minhas, pois criado


Tendes em mi um novo engenho ardente, Destinatário da Invocação
Se sempre, em verso humilde, celebrado – Ninfas do Tejo
Foi de mi vosso rio alegremente,
Dai-me agora um som alto e sublimado, Estilo do canto
Um estilo grandíloco e corrente2,
Por que de vossas águas Febo3 ordene Adequação da forma ao
Que não tenham enveja às de Hipocrene4. conteúdo

5 Dai-me hũa fúria5 grande e sonorosa,


E não de agreste avena ou frauta ruda6, Características do estilo do
Mas de tuba canora e belicosa7, canto
Que o peito acende8 e a cor ao gesto9 muda.
Dai-me igual canto aos feitos da famosa
Gente vossa, que a Marte tanto ajuda;
Que se espalhe e se cante no Universo,
Se tão sublime preço10 cabe em verso.
Glossário
1Tágides – filhas do Tejo, ninfas do Tejo. Termo usado pelo escritor André de Resende (1498-1573) e aproveitado

por Luís de Camões; 2Um estilo grandíloco e corrente – canto elevado e sem rodeios, fluente; 3Febo – Apolo, deus
do sol e chefe das musas; 4Hipocrene – fonte das musas; quem bebesse desta fonte tornava-se poeta; 5fúria –
inspiração; 6agreste avena ou frauta ruda – flauta de pastor (poesia bucólica, pastoril); 7tuba canora e belicosa –
trombeta clamorosa e guerreira (inspiração épica); 8peito acende – inflama o ânimo; 9gesto - rosto; 10preço – valor.

Tópicos de análise
• Camões tem plena consciência da grandiosidade do que vai cantar e, por isso, sabe que o
estilo do seu canto tem de ser “grandíloco” e fluente. A forma tem de se adequar ao
conteúdo. Nessa medida, o poeta, logo de início, pede ajuda, pede inspiração – “hũa fúria
grande e sonorosa” – às ninfas do Tejo, as Tágides (termo criado por André de Resende e
aproveitado por Luís de Camões).
• Só essas divindades poderiam fazer despertar no poeta “um novo engenho ardente”, um
“som alto e sublimado”, que não se assemelha ao da poesia bucólica – da “frauta ruda”, da
flauta do pastor –, mas é antes um som digno de uma trombeta guerreira – “tuba canora e
belicosa” –, capaz de dar ânimo e provocar emoções – “o peito acende e a cor ao gesto
muda”.
Uma nova invocação às Tágides (e às ninfas do Mondego) será feita no Canto VII (est. 78-87),
quando, na Índia, o Catual decide visitar a armada portuguesa de Paulo da Gama (irmão de Vasco
da Gama). Então, vê algumas bandeiras de seda e nelas algumas figuras que despertam a sua
curiosidade, pretexto para a referência a outras figuras relevantes da História de Portugal, desta
feita pela voz de Paulo da Gama. Porém, antes de iniciar esse relato, o poeta convoca as ninfas
do Tejo e do Mondego, pois sabe que vai por “caminho tão árduo, longo e vário!”, levando “Nũa
mão sempre a espada e noutra a pena”, precisando, por isso, do auxílio das ninfas. Nesta
invocação, o poeta queixa-se dos seus infortúnios e reforça mais uma vez quem é que ele
pretende cantar – “Aqueles sós direi que aventuraram / Por seu Deus, por seu Rei, a amada vida,
/ Onde, perdendo-a, em fama a dilataram”
No Canto III (est. 1-2) e no Canto X (est. 8-9), deparamo-nos com outras invocações, que têm,
porém, um destinatário diferente. A divindade invocada nessas estâncias é Calíope, musa da
poesia épica. No Canto III, Poeta formula o seguinte pedido; “Inspira imortal canto e voz divina /
Neste peito mortal [...] Como merece a gente Lusitana”. No Canto X, o apelo destina-se a permitir
ao poeta concretizar o seu objetivo: “Mas tu me dá que cumpra, ó grão Rainha / Das Musas, co
que quero à nação minha”.
Dedicatória – Estâncias 6 a 18 do Canto I

6 E vós, ó bem nascida segurança1 Destinatário


Da Lusitana antiga liberdade, Repetição no início das
E não menos certíssima esperança estâncias 6, 7 e 8 – Anáfora
De aumento da pequena Cristandade,
Vós, ó novo temor da Maura lança2,
Caracterização do destinatário
Maravilha fatal da nossa idade,
Dada ao mundo por Deus, que todo o mande,
Pera do mundo a Deus dar parte grande.
7 Vós, tenro e novo ramo florecente,
De hũa árvore, de Cristo mais amada Caracterização do destinatário
Que nenhũa nascida no Ocidente,
Cesárea3 ou Cristianíssima4 chamada, Ascendência ilustre
Vede-o no vosso escudo, que presente
Vos amostra a vitória já passada,
Na qual vos deu por armas e deixou
As que Ele pera Si na Cruz tomou5;
8 Vós, poderoso Rei, cujo alto Império
O Sol, logo em nascendo, vê primeiro; Caracterização do destinatário
Vê-o também no meio do Hemisfério,
E, quando dece, o deixa derradeiro;
Vós, que esperamos jugo6 e vitupério7
Do torpe Ismaelita8 cavaleiro,
Do Turco Oriental e do Gentio9
Que inda bebe o licor do santo Rio10:
9 Inclinai por um pouco a majestade, Pedido
Que nesse tenro gesto vos contemplo,
Que já se mostra qual na inteira idade11,
Quando subindo ireis ao eterno Templo;
Pedido
Os olhos da real benignidade
Ponde no chão: vereis um novo exemplo
De amor dos pátrios feitos valerosos, Objetivo do Pedido
Em versos devulgado numerosos.
Glossário
1bem nascida segurança / Da Lusitana antiga liberdade – referência a D. Sebastião, garantia da independência de

Portugal (era o único herdeiro da Coroa); 2Maura lança – exércitos dos Mouros; 3Cesárea – dos imperadores da
Alemanha; 4Cristianíssima – dos reis de França; 5As que Ele pera Si na Cruz tomou – alusão à batalha de Ourique;
segundo a lenda, Cristo teria aparecido a D. Afonso Henriques, antes da luta; 6jugo – opressão; 7vitupério – ofensa;
8Ismaelita – descendentes de Ismael (os Turcos); 9Gentio – os infiéis; 10santo Rio – rio Ganges; 11inteira idade –

idade completa, adulta.

Tópicos de análise
• A Dedicatória começa por designar primeiro o destinatário ('vós") e por caracterizá-lo através
de uma série de expressões qualificativas:
> “bem nascida segurança / Da Lusitana antiga liberdade” – D. Sebastião é o garante da
independência de Portugal (aliás, após a sua morte na batalha de Alcácer Quibir, e por falta
de herdeiros, Portugal passará a estar sob domínio espanhol);
> “certíssima esperança / De aumento da pequena Cristandade” – o monarca representa
também uma esperança na luta contra os Mouros, tal como os seus antepassados; ele é o
“novo temor da Maura lança” (afirmação da necessidade de cruzada);
> “tenro e novo ramo florecente, / De ha árvore, de Cristo mais amada / Que nenhũa
nascida no Ocidente” – D. Sebastião é o novo monarca na linhagem dos reis cristãos
portugueses; assim, o povo português será o eleito de Cristo, mensagem que será
reforçada noutros momentos.
• Para além disso, D. Sebastião é detentor de um vasto império “cujo alto Império / O Sol, logo
em nascendo, vê primeiro; / Vê-o também no meio do Hemisfério, / E, quando dece, o deixa
derradeiro.”
• Só depois o poeta revela o pedido, na forma do imperativo: “Inclinai por um pouco a
majestade”, “Os olhos da real benignidade / Ponde no chão.”
• Ao fazer esse pedido, o poeta pretende que D. Sebastião veja:
> “um novo exemplo / De amor dos pátrios feitos valerosos, / Em versos devulgado
numerosos”;
> “amor da pátria, não movido / De prémio vil, mas alto e quase eterno” (est. 10);
> “o nome engrandecido / Daqueles de quem sois senhor superno.” (est. 10).
O poeta considera “Que não é prémio vil ser conhecido / Por um pregão do ninho meu paterno”,
pois Os Lusíadas são uma manifestação de amor do poeta pela sua pátria e pelos grandes feitos
dos seus compatriotas. Daí que D. Sebastião devesse ficar orgulhoso por ser rei “de tal gente” –
“E julgareis qual é mais excelente, / Se ser do mundo Rei, se de tal gente.” (est. 10).
Nas estâncias seguintes, o poeta coloca o foco nas ações grandiosas e nos seus autores:
• estância 11 – o poeta afirma que as ações dos Portugueses não são “vãs façanhas, /
Fantásticas, fingidas, mentirosas”. Pelo contrário, são “verdadeiras” e “tamanhas” e por essa
razão estão acima das ações realizadas por figuras de outras epopeias – “Que excedem as
sonhadas, fabulosas, / Que excedem Rodamonte e o vão Rugeiro, / E Orlando, [...]”1. Este é
um dos aspetos que justifica a sublimidade do canto de Camões.
• estâncias 12, 13 e 14 – o poeta refere alguns dos autores dessas ações, pelo que dá, assim, a
conhecer algumas personagens que aparecerão novamente nos cantos III, IV e VIII (figuras e
monarcas importantes da História de Portugal) e no canto X (heróis e governadores da Índia):
> D. Nuno Álvares Pereira – “um Nuno fero, / Que fez ao Rei e ao Reino tal serviço” (est.
12);
> Egas Moniz e D. Fuas Roupinho;
> Os doze cavaleiros portugueses que, durante o reinado de D. João I, terão ido a
Inglaterra defender a honra de doze damas inglesas e entre os quais se destacou um
chamado Magriço – “Os Doze de Inglaterra e o seu Magriço”;
> Vasco da Gama – “ilustre Gama / Que para si de Eneias toma a fama”;
> alguns reis das primeira e segunda dinastias, como D. Afonso Henriques, D. Afonso III,
D. Afonso IV, D. João I, D. Afonso V, D. João II – “o primeiro Afonso, cuja lança / Escura faz
qualquer estranha glória; / E aquele que a seu Reino a segurança / Deixou, co a grande e
próspera vitória; / Outro Joanne, invicto cavaleiro; / O quarto e quinto Afonsos e o terceiro.”
(est. 13);
> homens corajosos que lutaram no Oriente, como foi o caso de Duarte Pacheco Pereira
(cavaleiro), D. Francisco de Almeida (vice-rei da Índia) e o seu filho D. Lourenço, Afonso de
Albuquerque (governador da Índia) – “Aqueles que, nos Reinos lá da Aurora, / Se fizeram
por armas tão subidos, [...]/Um Pacheco fortíssimo e os temidos / Almeidas, por quem
sempre o Tejo chora, / Albuquerque terríbil, Castro forte” (est. 14).
Na estância 15, um último apelo é deixado a D. Sebastião – para que se inspire nos grandiosos
feitos dos seus antepassados, assuma a liderança do reino e concretize, também ele, ações dignas
de serem cantadas.
1Rodamonte – personagem de Orlando Enamorado; Rugeiro - personagem de Orlando Furioso.
Aliás, segundo o poeta, D. Sebastião podia tomar essa atitude, pois não só os Mouros e os
gentios o temiam como Tétis tinha já preparado um “dote” para o monarca (est. 16). Para além
disso, os avós de D. Sebastião esperavam ver “renovada / Sua memória e obras valerosas” (est.
17). As expectativas são, portanto, grandes relativamente ao monarca português.
Por fim, na última estrofe da Dedicatória (est. 18) é já feita uma ponte para à Narração, que
começa na estância seguinte: “E vereis ir cortando o salso argento / Os vossos Argonautas, por
que vejam / Que são vistos de vós no mar irado, / E costumai-vos já a ser invocado.”
Narração
Tópicos de análise
Seguindo o modelo das epopeias homéricas, a Narração tem início quando a ação já vai a meio,
ou seja, in medias res. Quando se inicia o relato da viagem (ação central), os Portugueses já
tinham percorrido metade do caminho, encontrando-se no oceano Índico, mais precisamente no
canal de Moçambique – “Já no largo Oceano navegavam” (est. 19).
A parte inicial da viagem só será narrada posteriormente, num processo de retrospetiva –
analepse. Nessa altura, dá-se também uma mudança de estatuto do narrador:
> início do relato – o narrador é o próprio poeta; é ausente, exterior à ação – narrador
heterodiegético;
> final do canto IV, canto V – Vasco da Gama apresenta ao rei de Melinde o início da
viagem à Índia; o narrador passa a ser presente – homodiegético.
A Narração resulta, como verificaremos, da articulação dos quatro planos já referidos, os quais
podem, inclusive, coexistir num mesmo canto. Nesse sentido, vamos agora analisar o conteúdo
de cada canto.
Resumo dos cantos
Canto I
• Proposição (est. 1-3) – apresentação do assunto do poema: cântico das grandes figuras da saga
nacional – os navegadores, os conquistadores, os reis e todos os “que por obras valerosas /
Se vão da lei da Morte libertando”, ou seja, os heróis imortais.
• Invocação (est. 4-5) – o poeta pede inspiração às ninfas do Tejo, para que elas lhe concedam
um estilo adequado à grandeza dos feitos nacionais que vai cantar e divulgar por todo o
mundo: “Que se espalhe e se cante no Universo”.
• Dedicatória (est. 6-18) – o poema é dedicado a D. Sebastião, que é incentivado a continuar os
grandes feitos dos seus antepassados, em especial os da expansão de carácter bélico e
religioso e elogio dos heróis portugueses (aqueles “em quem poder não teve a morte”).
• Início da Narração (est. 19): enquanto a armada de Vasco da Gama já se encontra no Índico,
reúne-se o Consílio dos Deuses (primeiro episódio do plano dos deuses), convocado por
Júpiter, com o objetivo de decidir se os Portugueses devem ou não ser apoiados na sua
aventura marítima. Vénus e Marte estão do lado dos Portugueses; Baco não quer ajudar os
Lusitanos, ainda que estes descendam de Luso, “seu tão privado”, pois teme ser esquecido
no Oriente. Júpiter cede aos argumentos da deusa do amor e do deus da guerra, decidindo
que os Portugueses devem chegar à Índia, dando cumprimento ao Fado. Apesar dessa
decisão, Baco prepara ciladas aos Portugueses na Ilha de Moçambique e em Quíloa. Aqui, a
intervenção de Vénus, a protetora dos nautas, salvará os navegadores, que rumarão à
Mombaça.
• O canto fecha com uma reflexão do poeta (est. 105-106): à vida oferece “tão pouca segurança”
ao homem, apresentando se como “Caminho de vida nunca certo”. Dai que o poeta pergunte:
“Onde pode acolher-se um fraco humano”, “um bicho da terra tão pequeno” contra os perigos
do mar e da terra?
Canto ll
• Em Mombaça, a armada de Vasco da Gama é recebida pelo rei, que, influenciado por Baco,
prepara uma armadilha. Mais uma vez, Vénus intervém a favor dos Portugueses. Com a
colaboração das Nereidas, impede a entrada das naus no porto de Mombaça, manobra que
havia sido orientada por um falso piloto, disponibilizado pelo régulo de Moçambique.
• Vasco da Gama, tomando consciência do perigo que haviam corrido, dirige uma prece à
“Guarda Divina”, agradecendo terem sido salvos.
• Uma vez em Melinde, o rei recebe os Portugueses calorosamente e faz uma visita à armada,
pedindo ao “valeroso capitão” que lhe conte as “guerras famosas e excelentes / Co povo
havidas que a Mafoma adora.” (est. 108), tudo sobre a terra, o clima, a região onde Vasco da
Gama mora e também "a antiga geração, / E o princípio do Reino tão potente.” Finalmente,
uma última solicitação: que lhe conte “dos rodeios / Longos em que te traz o Mar irado.” (est.
110).

Canto III
• O poeta, consciente da grandeza da tarefa que lhe é pedida – narrar “O que contou ao Rei o
ilustre Gama” –, invoca Calíope, para que ela lhe dê a inspiração condizente com a narrativa
da História de Portugal que vai encetar. Assim, é inserido na estrutura narrativa, agora com
mais fôlego, o plano da História de Portugal, que ocupa sobretudo os cantos III e IV.
• A narrativa do Gama é longa e inclui bastante informação como: a localização de Portugal na
Europa; a descrição da Europa; a história primitiva e lendária de Portugal, desde Luso a
Viriato; o início e a formação da nacionalidade (conde D. Henrique e D. Teresa); o reinado de
D. Afonso Henriques (guerras de independência contra Castelhanos e Mouros, destacando-
se a fidelidade do vassalo Egas Moniz e o episódio da batalha de Ourique – est. 42-54); os
reinados de D. Sancho I a D. Dinis; o reinado de D. Afonso IV, destacando-se o episódio da
Formosíssima Maria (est. 101-106), a batalha do Salado (est. 107-117) e o episódio de Inês de
Castro (est. 118-139); e, por fim, os reinados de D. Pedro I e de D. Fernando.
• O canto termina com uma reflexão, motivada pelo amor de D. Fernando por D. Leonor Teles,
e cujo tema é precisamente o poder do amor – “Mas quem pode livrar-se, porventura, / Dos
laços que Amor arma brandamente [...]?” (est. 142).
Canto IV
• Vasco da Gama continua a sua narrativa, relatando acontecimentos da segunda dinastia: o
interregno após a morte de D. Fernando (crise de 1383/85); os episódios da crise (o papel de
Nuno Álvares Pereira e a batalha de Aljubarrota – est. 28-44); O reinado de D. João I,
salientando-se a conquista de Ceuta; os reinados de D. Duarte, D. Afonso V, D. João II (com
destaque para os preparativos para a viagem à Índia); o reinado de D. Manuel I.
• Deste último reinado, destacam-se: o sonho profético do rei, no qual os rios Indo e Ganges,
representados por dois velhos, anunciam as futuras glórias dos Portugueses no Oriente; a
partida da armada (est. 87-93) e o episódio do Velho do Restelo (est. 94-104), que culmina com
uma reflexão sobre a ambição desmedida do Homem – “Mísera sorte! Estranha condição!”
Canto V
• Este canto ocupa-se da narrativa da viagem da armada de Vasco da Gama de Lisboa a
Melinde, em que o comandante luso conta ao rei de Melinde episódios como: o Cruzeiro do
Sul; o Fogo de Santelmo; a tromba marítima; a aventura de Fernão Veloso (um dos tripulantes
que decide ir explorar o novo território); o encontro com o gigante Adamastor, durante o
qual se destacam as profecias dos desastres e naufrágios a ocorrer no cabo das Tormentas
(est. 37-73); o escorbuto.
• Depois de Vasco da Gama concluir a sua narrativa ao rei de Melinde, o poeta encerra o canto
com uma invetiva contra os Portugueses seus contemporâneos pelo desprezo a que votaram
as Letras, particularmente a poesia: “É não se ver prezado o verso e rima, / Porque quem não
sabe arte, não na estima” (est. 97).
Canto VI
• O poeta recupera o estatuto de narrador, contando a saída da armada de Melinde a caminho
de Calecute, orientada por um piloto melindano. Baco, não conformado com a iminente
chegada dos Portugueses à Índia, desce ao palácio de Neptuno e é convocado um consílio
dos deuses marinhos (est. 8-36). Após acesa discussão, a decisão é apoiar Baco no seu capricho.
Para tal, ordena-se a Éolo que solte os ventos irados, com o objetivo de destruir a armada
portuguesa.
• No mar calmo e sem suspeita da trama de Baco, os marinheiros passam o tempo a ouvir
histórias destacando-se o episódio dos Doze de Inglaterra (est. 43-69), contado por Fernão
Veloso.
• Inesperadamente e de forma violenta, surge uma tempestade (est. 70-84). “Vendo Vasco da
Gama que tão perto/ Do fim de seu desejo se perdia”, dirige uma comovente prece à Divina
Guarda. Esta prece é ouvida por Vénus que, uma vez mais, socorre os Portugueses, com à
ajuda das ninfas, as quais, com o seu poder sedutor, acalmam os ventos. Dominada a
tempestade, os marinheiros avistam, enfim, Calecute – “Terra é de Calecu, se não me
engano;” (est. 92). Vasco da Gama agradece a Deus o sucesso da viagem.
• A finalizar, novas considerações do poeta, desta vez sobre o verdadeiro valor da glória.
Canto VII
• Com a armada em Calecute, o canto começa com uma reflexão do poeta: um elogio ao
espírito de cruzada lusitano e uma crítica severa às nações europeias que não seguem o
exemplo dos Portugueses na expansão da fé cristã (est. 2-15).
• Descreve-se a Índia, com particular destaque para os primeiros contactos entre portugueses
e indianos, preparados pela ida do degredado João Martins a terra, com o propósito de dar a
conhecer as intenções dos lusitanos. Já em terra, a embaixada portuguesa é recebida pelo
Catual, e depois pelo Samorim.
• Paulo da Gama, irmão do capitão, fica a bordo da nau capitaina e recebe a visita do Catual,
que lhe pede para explicar o significado das figuras representadas nas bandeiras portuguesas.
• A encerrar o canto, uma nova lamentação do poeta. Camões, ao invocar as ninfas do Tejo e
do Mondego, queixa-se dos seus infortúnios, criticando, também, todos aqueles que
oprimem e exploram o povo. Para além disso, reconhece, com ironia amarga, que o não
apreço pelo seu trabalho desencorajará futuros escritores – “Que exemplos a futuros
escritores, / Pera espertar engenhos curiosos, / Pera porem as cousas em memória, / Que
merecerem ter eterna glória!” (est. 82).
Canto VIII
• Paulo da Gama, novo narrados, relata ao Catual alguns episódios da História de Portugal
destacando a coragem de alguns heróis míticos e/ou verdadeiros: Ulisses, Viriato Sertório, o
conde D. Henrique, Egas: Moniz, Dom Fuas Roupinho, Nuno Álvares Pereira, os infantes D.
Pedro e D. Henrique, entre outros.
• Baco, que continua à sua cruzada contra os Portugueses, aparece em sonhos a um sacerdote
brâmane, indispondo-o contra os nautas lusos, que, segundo o deus, apenas vinham saquear
e pilhar. O Samorim, que fora advertido pelo sacerdote das “más” intenções do navegador,
interroga Vasco da Gama. Este procura esclarecer a situação e chegar a um entendimento,
que passará pela troca de fazendas europeias por especiarias orientais. No entanto, o Catual
opõe-se a esta decisão e prende o capitão, não o deixando regressar à armada. Vasco da
Gama só conseguirá a liberdade após subornar o Catual, que, a troco de fazendas europeias,
lhe permite regressar a bordo.
• Lamentações do poeta sobre o vil poder do “metal luzente e louro” fecham o canto.
Canto IX
• Ultrapassadas algumas vicissitudes, os Portugueses, sempre ajudados por Monçaide, iniciam
a viagem de regresso à pátria. Vénus, permanentemente atenta, resolve preparar lhes uma
surpresa, uma recompensa por todos os sacrifícios passados. Cria uma ilha divina e
maravilhosa, segundo o modelo clássico (bucólica, harmoniosa nas cores e formas) e povoada
por ninfas que se oferecerão aos nautas. Estes, exortados por Fernão Veloso, viverão
momentos de amor e de prazer, que constituem o merecido prémio para quem tão alto fez
subir o nome de Portugal.
• Vasco da Gama encontra-se com Tétis no seu palácio e a ninfa explica-lhe que este repouso
é a compensação de “trabalhos tão longos [...]/O prémio lá no fim, bem merecido” (est. 88).
• O poeta explica a simbologia da ilha (est. 89-92) e termina tecendo considerações sobre a
verdadeira forma de atingir a Fama e a Imortalidade – “Por isso, ó vós que as famas estimais,
/Se quiserdes no mundo ser tamanhos, / Despertai já do sono do ócio ignavo, / Que o ânimo,
de livre, faz escravo” (est. 92); “E ponde na cobiça um freio duro, / E na ambição também, [...]”
(est. 93); “Ou dai na paz as leis iguais, constantes [....)/ Ou vos vesti nas armas rutilantes, /
Contra a Lei dos immigos Sarracenos.” (est. 94) Se assim procederem, conclui o poeta, “Sereis
entre os Heróis esclarecidos / E nesta Ilha de Vénus recebidos.” (est. 95).
Canto X
• Tétis e as restantes ninfas oferecem um banquete aos marinheiros, durante o qual uma ninfa,
fazendo um discurso profético, narra os feitos futuros dos lusitanos no Oriente, não sem
antes, todavia, o poeta ter, de novo, invocado Calíope. A ninfa continua o seu discurso,
centrando-se nos heróis e governadores da Índia.
• Tétis leva o Gama até ao alto de um monte e aí mostra-lhe a máquina do mundo e os locais
por onde se estenderá o Império Português.
• Por fim, os navegadores embarcam rumo a Portugal, trazendo para a sua pátria e para o seu
rei glória e títulos novos.
• O canto encerra com um lamento do poeta pelo facto de o seu talento não ser reconhecido,
sobretudo por aqueles a quem canta. Exorta D. Sebastião a dar continuidade à glória dos
Portugueses, oferecendo-se para servir o rei e a pátria – “Pera servir-vos, braço às armas
feito; / Pera cantar-vos, mente às Musas dada”. O poeta aponta ainda um caminho; o do
Norte de África – “o monte Atlante, /[...] campos de Ampelusa / Os muros de Marrocos e
Trudante.”
Os quatro planos e a sua interdependência
Como já referimos, na epopeia camoniana há quatro planos, cada um com uma função
específica e que se vão entrelaçando ao longo da obra:
Plano da A narração dos acontecimentos ocorridos durante a viagem Encontra-se nos
Viagem realizada entre Lisboa e Calecute: cantos I, II, V, VI,
(plano • Partida em 8 de julho de 1497 (referida no Canto IV, VII, VIII, IX e X.
central) estâncias 84 e seguintes).
• Peripécias da viagem (destaque para a grande coragem e
valor guerreiro dos marinheiros portugueses: a tempestade;
o escorbuto; vitórias sobre traições; etc.).
• Paragem em Melinde durante dez dias.
• Chegada a Calecute (Índia) a 18 de maio de 1498
• Regresso a 29 de agosto de 1498.
• Chegada da nau de Vasco da Gama a Lisboa, em 29 de agosto
de 1499 (a nau de Nicolau Coelho chegara cerca de dois
meses antes).
A função deste plano é conferir unidade ao poema. É, por isso,
uma espécie de “esqueleto” da epopeia.
Plano da Relato dos factos marcantes da História de Portugal: Aparece nos
História de • Em Melinde, Vasco da Gama narra ao rei os principais cantos II, III, IV,
Portugal acontecimentos da nossa História, desde Viriato até ao V, VIII e IX.
(plano reinado de D. Manuel I, enaltecendo os feitos dos
encaixado) Portugueses (a atuação dos reis e de figuras históricas): a
batalha de Ourique; a batalha de Aljubarrota; os Doze de
Inglaterra...
• Em Calecute, Paulo da Gama apresenta ao Catual episódios e
personagens representados nas bandeiras portuguesas.
• A História posterior à viagem do Gama é-nos narrada, em
prolepse, através de profecias.
A função deste plano é relatar e enaltecer a História de Portugal.
Plano da A mitologia permite e favorece a evolução da ação: os deuses Ocorre nos
Mitologia assumem-se como adjuvantes (Vénus) ou como oponentes dos cantos I, II, V, VI,
(plano Portugueses (Baco). Constitui, por isso, a intriga da obra. VII, VIII, IX e X.
paralelo) – Os deuses apoiam os Portugueses: consílio dos deuses no
Olimpo; consílio dos deuses marinhos; a Ilha dos Amores; etc.
A função deste plano é conferir beleza, ação e diversidade ao
poema, ajudando no processo de divinização dos Portugueses.
Plano do Considerações, críticas, lamentos e opiniões do poeta, expressas, Surge no canto
Poeta nomeadamente, no início e no fim dos cantos. III e no fim dos
(plano Este plano serve para o poeta transmitir as suas posições face ao cantos I, II1, V, VI,
ocasional) mundo, aos outros e a si mesmo. VII (início e fim),
VIII, IX e X.
Após a análise dos quatro planos, podemos concluir que:
• o plano da Viagem e o plano da Mitologia ocorrem em simultâneo — veja-se o início da
estância 19 e o início do Consílio dos Deuses na estância seguinte;
• a articulação entre o plano da Viagem e o da Mitologia sai reforçada pelo estatuto que os
Portugueses conquistam, após chegarem à Índia – estatuto de divindades, por terem
concretizado algo de sobre-humano; como prémio, é-lhes oferecida uma recompensa digna
de deuses – a Ilha dos Amores;
• o plano da História de Portugal é um plano encaixado, que apresenta episódios bélicos como
a Batalha de Ourique (Canto III, est. 42-54), a Batalha do Salado (Canto III, est. 107-117); a Batalha de
Aljubarrota (Canto IV, est. 28-44); e líricos, como o da Formosíssima Maria (Canto III, est. 102-106) ou
o de Inês de Castro (Canto III, est. 118-135);
• o plano da História de Portugal funciona quer por analepses quer por prolepses. Como
exemplos destas últimas contam-se as profecias de Júpiter (Canto II), as de Adamastor (Canto V)
e as do poeta (Canto X), funcionando todas como relatos futuros do que aconteceu e que
posteriormente veio a integrar a História de Portugal;
• o plano das Intervenções ou Reflexões do Poeta será vital para o entendimento do pendor
humanista da epopeia.
c. Imaginário épico
Matéria épica e sublimidade do canto
Já vimos que, na Proposição, o poeta deixa clara a sua intenção ao escrever esta obra: cantar o
“peito ilustre Lusitano”, ou seja, glorificar os feitos do povo português, fetos esses que dizem
respeito quer aos nautas portugueses quer a outras lustres figuras históricas portuguesas Por
essa razão, podemos dizer que a matéria épica de Os Lusíadas integra:
1Atente-seno facto de a reflexão do Canto II incidir sobre o amor e não sobre a sociedade e os seus vícios. Também o
Canto IV não pode ser integrado nas Reflexões do Poeta, visto que as críticas são efetuadas pelo Velho do Restelo
(embora haja quem o aponte como porta-voz do Poeta).
• a viagem de Vasco da Gama à Índia – as Descobertas – momento áureo da nossa História;
• os feitos históricos – apresentados por Vasco da Gama ao rei de Melinde e por Paulo da Gama
do Catual – acontecimentos que atestam a ação grandiosa ao serviço da pátria.
Uma matéria digna de louvor e, portanto, digna do género épico exige um estilo elevado, um
“estilo grandíloco”, nas palavras do próprio Poeta (ver invocação, Canto 1, est. 4), caracterizado por
uma linguagem nobre e pela inserção de elementos mitológicos, de modo a obter um discurso
erudito.
Aqui chegados, convém, todavia, referir que a matéria épica só se torna verdadeiramente épica
quando passa a estar subordinada ao mito1, ou seja, quando a sua interpretação passa a ser
simbólica. Nesse sentido, o próprio herói é subordinado ao mito, isto é sofre um processo de
mitificação. No caso de Os Lusíadas, esse processo é particularmente expressivo nos dois últimos
cantos, embora tenha início logo nas primeiras estâncias, como veremos de seguida.
Mitificação do herói
Como título da sua epopeia, Camões escolheu um termo que fora utilizado por André de
Resende2: “os lusíadas”. Este termo designava os Portugueses descendentes de Luso,
companheiro de Baco (deus do vinho, na mitologia greco-latina). Assim, o povo português, os
“lusíadas”, descendentes de Luso, adquire grandeza mítica. A mitificação do herói está, pois, já
subjacente ao próprio título da obra.
Ao contrário dos épicos anteriores (Homero ou Virgílio), Luís de Camões não escolheu um herói
individual que motivasse o título da sua obra, mas procurou que a sua epopeia anunciasse a
história de todo o povo da “geração de Luso”, "invicto e forte [...]/a quem nenhum trabalho pesa
e agrava;3” (Canto X, est. 18).
Na obra Os Lusíadas é relatada a viagem dos Portugueses à Índia e, entrecortando-a com
episódios do passado e profecias do futuro, mostra-se a História de um povo que teve a ousadia
da aventura marítima. A intenção de exaltar os heróis que construíram e alargaram o Império
levou Camões a torná-los verdadeiros símbolos da capacidade de ultrapassar “a força humana”,
merecendo, assim, um lugar entre os seres imortais.
Aliás, logo na Proposição, os “lusitanos” são elevados a esse estatuto superior e imortal, pois,
diz-nos o poeta: “Cessem do sábio Grego e do Troiano / As navegações grandes que fizeram; /
Cale-se de Alexandro e de Trajano / A fama das vitórias que tiveram; / Que eu canto o peito ilustre
Lusitano, / A quem Neptuno e Marte obedeceram.”
No plano da História de Portugal, o poeta apresentará vários episódios e figuras que provam
como o “bicho da terra tão pequeno” alcançou a grandeza de um herói sobre-humano, logo,
mítico. São exemplo disso as referências a Viriato, a Egas Moniz, entre outros, ou a momentos
cruciais, como a batalha de Ourique ou a de Aljubarrota.
Também no plano da Viagem encontramos episódios e figuras que reforçam a mitificação do
herói. Os nautas lusos e, em especial, o comandante das naus, Vasco da Gama, são um símbolo
do heroísmo lusíada, do espírito de aventura, da confiança, da superação do medo e das
dificuldades. Como exemplos destes atributos dos Portugueses, apontamos os episódios
naturalistas que dizem respeito às “cousas do mar”, como o Fogo de Santelmo e a tromba
marítima (Canto V); O escorbuto (Canto V); ou ainda o aparecimento do Adamastor, que simboliza a
luta desproporcionada entre homens e deuses (Canto V), saindo os primeiros vencedores.
Um outro episódio que contribui para esta mitificação é o da Ilha dos Amores (Canto X). Com
efeito, a chegada dos Portugueses à “ínsula divina” representa o ponto máximo do processo de
mitificação do herói. Como recompensa do feito notável dos nautas, Vénus, a deusa protetora
dos nautas portugueses, preparou, com a ajuda do seu filho Cupido, deus do amor, e das ninfas,
uma “surpresa” – a ilha e as ninfas são o prémio merecido pelos grandes feitos e pela ousadia
dos Portugueses (est. 88).
1“A palavra grega mythos significa originariamente ‘relato’, ‘narrativa’, ‘fábula’ (in Vítor Aguiar e Silva, A Lira Dourada
e a Tuba Canora Novos Ensaios Camonianos, Cotovia, 2008); 2André de Resende emprega este termo numa anotação
ao poema Vicentius levita et martyr; 3As citações de Os Lusíadas ao longo desta sequência seguem a edição Os Lusíadas,
de Luís de Camões, edição de Emanuel Paulo Ramos, Porto Editora, 2014.
52 De longe a Ilha viram, fresca e bela,
Que Vénus pelas ondas lha levava “Surpresa” – uma ilha, posta à
(Bem como o vento leva branca vela) vista da armada portuguesa.
Pera onde a forte armada se enxergava;
Que, por que não passassem, sem que nela
Tomassem porto, como desejava,
Pera onde as naus navegam, a movia
A Acidália1, que tudo, enfim, podia.
53 Mas firme a fez e imobil, como viu A ilha ficou imóvel quando os
Que era dos Nautas vista e demandada, Portugueses se aperceberam dela.
[…]
Pera lá logo a proa o mar abriu, Ilha – locus amoenus
Onde a costa fazia hũa enseada (local paradisíaco, com
Curva e quieta, cuja branca areia uma flora e uma fauna
Pintou de ruivas conchas Citereia2. surpreendentes)
[Canto IX, ests. 52-53]
Glossário
1Acidália – Vénus
2Citereia – Vénus

Dá-se o desembarque e a incrível descoberta de “Mais /[...] do que o humano esprito / Desejou”.
Os Portugueses estão desejosos de encontrar “caça” (“De acharem caça agreste desejosos"),
porém encontram um outro tipo de caça (“Senhores, caça estranha (disse) é esta! / Se inda dura
o Gentio antigo rito, / A Deusas é sagrada a floresta:”, seguindo a sugestão de Fernão Veloso –
“Sigamos estas Deusas, e vejamos / Se fantásticas são, se verdadeiras.”
A imortalidade, ou seja, o estatuto de deuses, mais não é do que um prémio que se dá aos
homens que, pelo seu esforço e arte, se destacaram. Por isso, os Portugueses tornaram-se
divindades, daí que possam conviver com outras divindades nessa ilha maravilhosa.
Os Portugueses gozam, então, de um estatuto diferente, que inclusive vai permitir a Vasco da
Gama ter conhecimento do futuro e da dimensão que o Império Português alcançará. Com efeito,
no canto X, depois do banquete oferecido aos Portugueses por Tétis e pelas ninfas, a deusa
conduz Vasco da Gama ao cimo de um monte. Aí mostra-lhe o Universo em miniatura (est. 75-76),
seguindo-se a descrição desta “grande máquina do Mundo” nas suas diversas esferas e
elementos, e de acordo com o sistema de Ptolomeu.
Nessa descrição, é de notar o facto de Tétis revelar que a grande máquina do mundo foi criada
por Deus – o “Saber, alto e profundo / Que é sem princípio e meta limitada” – e para que servem,
afinal, as divindades pagãs: os deuses servem para “fazer versos deleitosos”, ou seja, para
engrandecer os Portugueses, funcionando como termo de comparação, como realidade que se
pretende alcançar (est. 82).
Em conclusão, podemos dizer que a Ilha dos Amores salienta a importância do mito, pois todo
este episódio é uma alegoria, uma representação da vitória do amor sobre todos os males. O
amor seria o caminho para os Portugueses contemporâneos de Camões recuperarem a glória de
tempos passados: o amor pela pátria e pelos seus heróis, o amor pela fé cristã e pela Europa,
vítima dos ataques dos Turcos, o amor pelo rei. Se os Portugueses do século XVI se comportassem
assim, poderiam também eles transformar-se em mito como os Portugueses que Camões louvou.
O amor é o prémio e a forma de se alcançar a imortalidade, isto é, a mitificação.
d. Reflexões do Poeta1
Olhar glorificador e o tom de exaltação eufórica de que se revestem Os Lusíadas não invalidam
a manifestação de um desencanto face à pátria portuguesa, capaz de grandes feitos, mas
progressivamente mergulhada numa “austera apagada e vil tristeza”.
Com efeito, os momentos de euforia dão lugar, geralmente em final de canto, a momentos de
disforia, que mais não são do que reflexões do poeta sobre o mundo que o rodeia, sobre os seus
contemporâneos, sobre a vida humana, sobre injustiças e crueldades. O poeta, homem lúcido e
viajado, assume, pois, a sua feição humanista, meditando sobre os valores do seu tempo e
baseando-se nas suas experiências.
Estes momentos de reflexão têm a particularidade de apresentarem uma estrutura semelhante,
devido ao facto de surgirem na sequência de um acontecimento que os motivou. Por outro lado,
tratando-se de um discurso que exprime juízos de valor e juízos críticos e subjetivos, a linguagem
neles utilizada está em sintonia com os propósitos evidenciados. Vejamos agora algumas dessas
reflexões.
Canto I (est. 105-106)
Acontecimento motivador da A chegada da armada portuguesa a Mombaça, após várias
reflexão vicissitudes, ocorridas em Moçambique e Quíloa, urdidas
por Baco.
Tema da reflexão / Os limites da condição humana – efemeridade e
Posicionamento crítico do poeta circunstâncias da vida. Reflexão do poeta sobre aquilo que
o homem tem de enfrentar: “Os grandes e gravíssimos
perigos”, a tormenta e o dano do mar, a guerra e o engano
em terra. Destaca a efemeridade e as circunstâncias da
vida em que o Homem necessita de proteção, dados os
limites da condição humana (Canto I, est. 105-106)
Canto V (est. 92-100)
Acontecimento motivador da O fim da narrativa de Vasco da Gama ao rei de Melinde.
reflexão
Tema da reflexão / Crítica ao desprezo das artes e das letras e a importância
Posicionamento crítico do poeta do registo escrito de grandes façanhas como glorificação
do povo português e incentivo a novos heróis.
Canto VII (est. 78-87)
Acontecimento motivador da Pedido do Catual a Paulo da Gama para que lhe explique o
reflexão significado das figuras desenhadas nas bandeiras da nau.
Tema da reflexão / Lamento pelos infortúnios sofridos e pelo não
Posicionamento crítico do poeta reconhecimento do seu mérito, facto inviabilizador do
incentivo a futuros escritores.
Canto VIII (est. 96-99)
Acontecimento motivador da As traições sofridas por Vasco da Gama em Calecute,
reflexão nomeadamente o seu sequestro, são ultrapassadas pela
entrega de valores materiais.
Tema da reflexão / O poder corruptor do ouro, que tudo compra.
Posicionamento crítico do poeta

1De acordo com as Aprendizagens Essenciais terão de ser estudadas três das reflexões apresentadas nesta +ágina e na
página seguinte.
Canto IX (est. 88-95)
Acontecimento motivador da Na Ilha dos Amores, Tétis explica a Vasco da Gama o
reflexão significado alegórico da reflexão da ilha.
Tema da reflexão / O verdadeiro caminho para atingir a fama implica:
Posicionamento crítico do poeta • domínio do ócio;
• refreio da cobiça e da ambição;
• leis igualitárias e justas;
• luta contra os Sarracenos.
Canto X (est. 145-156)
Acontecimento motivador da Chegada da armada de Vasco da Gama a Portugal.
reflexão
Tema da reflexão / Lamentações do poeta pela falta de reconhecimento pátrio
Posicionamento crítico do poeta e crítica amarga ao estado de decadência moral do país;
incentivo ao rei para que seja um monarca digno da
grandeza do nome de Portugal; disponibilidade para servir
o país pelas armas e pela escrita.
A antiepopeia
O espírito humanista de Camões não podia subestimar uma meditação sobre a realidade, os
homens e o mundo. Com efeito, tal como nota Vasco Graça Moura: “O virtuosismo de Camões
conseguiu, num poema de exaltação nacional, e que, como tal, pode e deve ser lido, integrar uma
dimensão crítica severa e polivalente, de vocação corretora do que era o lado negativo das nossas
glórias.”
A riqueza do poema está, pois, também nesta vertente didática e interventiva, nesta capacidade
de Camões de mostrar o outro lado da epopeia – a antiepopeia. Na verdade, nos momentos em
que o poeta tece críticas aos Portugueses ou quando deixa conselhos aos seus contemporâneos,
a matéria épica e o canto sublime dão lugar à antiepopeia, isto é, ao reconhecimento e à
condenação da vileza, da miséria humana, do parasitismo. No dizer de Maria Vitalina Leal de
Matos:

Sem dúvida, Os Lusíadas são um texto renascentista. Proveniente do espírito otimista do


Renascimento e da sua inspiração humanista, têm o calor dum ato de fé nas capacidades
humanas. Mas não são apenas isso. Digamos que se trata de um poema bifronte, onde o
sopro épico é contrariado por uma voz antiépica. Há uma outra face do poema, uma outra
voz através da qual se ouve não já a confiança mas a dúvida.
[…]
Mas o poema tem outra face. Camões não é apenas o aedo1 que exalta e glorifica. É também
a consciência crítica que faz o diagnóstico lúcido e sombrio duma decadência que se aproxima.
Não desconhece nem esconde os erros, os defeitos e os crimes de tantos portugueses. No
final do Canto VII denuncia com mágoa a hipocrisia o espírito de adulação, o abuso do poder,
a exploração dos humildes; e têm um sabor de ironia amarga os versos em que se queixa da
ingratidão dos contemporâneos.
Maria Vitalina Leal de Matos, A Poesia Épica de Camões –
Tópicos para a Leitura d' Os Lusíadas, Edição FAOJ, 1983
1Aedo – poeta.

1Vasco Graça Moura, Luís de Camões: Alguns Desafios, Vega, 1980


e. Linguagem e estilo
Estrofe e métrica
Já foi apresentada a estrutura externa da obra (cf. quadro da p.4), pelo que agora só será
apresentado um exemplo relativo à contagem das silabas métricas – escansão1 –, que é sempre
feita apenas até à última silaba tónica.

As / ar / mas / e os / ba / rões / a / ssi / na / la / dos ainda + além: neste caso, verifica-


1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 se um fenómeno de redução
vocálica – crase (contração de
Pa / ssa / ram / ain / da a / lém / da / Ta / pro / ba / na duas vogais com o mesmo timbre
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 numa só vogal)

Recursos expressivos
Anáfora Ex: “Que excedem as sonhadas, fabulosas Repetição das expressões “Que
Que excedem Rodamonte e o vão Rugeiro” excedem” para reforçar a
(Canto I, est. 11) superioridade das façanhas dos
“Este rende munidas fortalezas; / Portugueses, no primeiro exemplo;
[…] Este a mais nobres faz fazer vilezas referência anafórica ao ouro, que
[…] Este corrompe virginais purezas” tudo corrompe.
(Canto VIII, est. 98)

Anástrofe Ex: “As armas e os barões assinalados As duas primeiras estâncias do canto I
Que, da Ocidental praia Lusitana, encerram uma única frase muito
Por mares nunca dantes navegados extensa, mas construída pela ordem
Passaram ainda além da Taprobana, inversa, ou seja, primeiro é referido o
Em perigos guerras esforçados complemento direto – "As armas e os
Mais do que prometi a força humana, barões assinalados”, “E também as
E entre gente remota edificaram memórias gloriosas [...] devastando”,
Novo Reino, que tanto sublimaram; “E aqueles que por obras valerosas […]
libertando” – e só depois ação, o
E também as memórias gloriosas.
verbo – "espalharei”. Assim, dá-se
Daqueles Reis que foram dilatando
destaque à matéria épica, ao que vai
A Fé o Império, e as terras vilosos.
ser espalhado “por toda parte”,
De África e de Ásia andaram devastando,
através da inversão sintática.
E aqueles que por obras valerosas
Se vão da eia Morte libertando:
Cantando espalharei por toda parte
Se a tanto me ajudar o engenho e arte.”
(Canto I, est. 1-2)

Apóstrofe Ex: “E vós, ó bem nascida segurança Interpelação, em três estâncias


Da Lusitana antiga liberdade, / […]” seguidas, a D. Sebastião.
(Canto I, est. 6, 7 e 8)

“Vós Portugueses poucos quanto fortes


[…] Vós que à custa de vossas vias mortes"
(Canto VII, est. 3)

Comparação Ex: “veloces mais que gamos” Fernão Veloso e os seus


(Canto IX, est. 70) companheiros são comparados a
veados, tal era a pressa, o desejo de
estarem com as ninfas.

1”Contagem das sílabas métricas de um verso de acordo com as emissões de voz individualmente bem distintas,
assinalando-se todas as sílabas até ao último acento tônico.” (in E-Dicionário de Termos Literários, Carlos Ceia,
consultado em 20-06-2015).
Enumeração Ex: “Que Júpiter, Mercúrio Febo e Marte, Enumeração de vários deuses,
Eneias e Quirino e os dous Tebanos, revelando a sua origem humana.
Ceres, Palas e Juno com Diana,
Todos foram de faca came humana”
(Canto IX, est. 91)

“Que martes, que perigos, que tormentas


Que crueldades”
(Canto IV, est. 95)

Hipérbole Ex: “Oh Grandes e gravíssimos perigos, O poeta emprega um tom dramático
Oh! Caminho de vida nunca certo,” e hiperbólico para suscitar empatia
(Canto I, est. 105-106) no leitor mostrar como a vida é
cheia de perigos e incerta.
Interrogação Ex: “Onde pode acolher-se num fraco humano, Ao fazer essa pergunta, o poeta
retórica Onde terá segura a curta vida, pretende mostrar à fragilidade, a
Que não se arme e se indigne o Céu sereno fraqueza do Homem face à
Contra um bicho da terra tão pequeno?” realidade envolvente.
(Canto I, est. 106)

Metáfora Ex: “Tomai as rédeas vós do Reino vosso” A Portugal é associado um termo de
(Canto I, est. 15) um outro campo – “rédeas”; assim o
país é comparado a um cavalo que
precisa de ser domado e orientado.
Metonímia Ex: “Que eu canto o peito ilustre Lusitano” Uma parte do corpo humano é
(Canto I, est. 3) tomada para designar o povo
“Cesse tudo o que a Musa antiga canta” português (o todo).
(Canto I, est. 3) A “Musa antiga” é tomada por
poesia.
Personificação Ex: “Este [o ouro] rende munidas fortalezas; O ouro, o dinheiro, é aqui
Faz tredores e falsos os amigos; apresentado como se de uma
[…] pessoa se tratasse, tais são os
Este deprava às vezes as ciências, efeitos negativos que provoca.
Os juízos cegando e as consciências”
(Canto VIII, est. 98)

“Este interpreta mais que sutilmente


Os textos; este foz e destas leis;”
(Canto VIII, est. 99)
(Definições elaboradas com base em E-Dicionário de Termos Literários, Carlos Ceia)
Síntese de conteúdos
Os Lusíadas
Natureza da Epopeia – poema narrativo de exaltação de um acontecimento digno de ser louvado e
obra com alcance universal
Estrutura • Dez cantos com um número variável de estrofes
externa • Estrofes de oito versos – oitavas
• Versos decassílabos
• Rima cruzada (seis primeiros versos) e emparelhada (dois últimos versos)
Estrutura • Proposição – identificação do objeto e da finalidade do canto
interna • Invocação – apelo às musas do Tejo para inspiração
• Dedicatória – oferecimento da obra ao rei D Sebastião
• Narração – in medias res
Quatro • Plano da Viagem – ação central
planos • Plano da Mitologia – articulado com o anterior
intercetados • Plano da História de Portugal – encaixado no primeiro
• Plano das Reflexões do poeta – ocasional e motivado pelos factos narrados
Imaginário • Matéria épica – viagem de Vasco da Gama até à Índia; feitos históricos dos
épico Portugueses nos reinados anteriores a D. Sebastião (analepse) ou futuros
(profecias)
• Sublimidade do canto – forma adequada ao conteúdo – estilo “grandíloco e
corrente”, capaz de ajudar a imortalizar o herói
• Mitificação do herói – exaltação da coragem, da determinação, da superação do
medo por parte dos Portugueses, o que faz com que se elevem acima dos heróis
da Antiguidade e ascendam ao estatuto de divindades (ver episódio da Ilha dos
Amores – os Portugueses convivem com as ninfas e com a deusa Tétis).
O herói representa um ideal de Homem: ultrapassa a condição humana no apresentar-
se enquanto figura que se rege por ideais nobres, desprezando os valores vis.
Reflexões do • Fragilidade e efemeridade da vida humana (Canto I, est. 105-106)
poeta – • Desprezo pelas artes e pelas Letras (Canto V, est. 92-100)
antiepopeia • Lamentos do poeta (infortúnios) / Explicitação de quem merece ser cantado (Canto
VII, est. 78-87)
• O poder corruptor do dinheiro (Canto VIII, est. 96-99)
• Imortalização do nome – o verdadeiro caminho para a fama (Canto IX, est. 88-95)
• Desvalorização da arte; / crítica ao estado de decadência do país; exortação a D.
Sebastião (Canto X, est. 145-156)

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