Você está na página 1de 10

1.

Poesia trovadoresca
Conteúdos essenciais
a. Contextualização histórico-literária
Espaços medievais, protagonistas e circunstâncias
Poesia trovadoresca é a designação dada ao conjunto de composições poéticas medievais
enquadradas em diferentes géneros, destinadas a serem cantadas, e que foram produzidas em
Portugal, na Galiza e também nos reinos de Castela, Leão e Aragão, por poetas que, para além de
comporem esses poemas – cantigas -, tocavam e cantavam, sendo por isso chamados trovadores.
Regra geral, os trovadores eram de origem nobre e dedicavam-se ao ofício de compor e musicar
poemas apenas por prazer, por deleite, sem daí retirarem qualquer proveito material.
A poesia trovadoresca floresceu durante a Idade Média, mais concretamente durante o período
que se estende de meados do século XII a meados do século XIV.
A sociedade medieval é profundamente marcada pela religião, vivida de forma intensa e
permanente. Deus é o centro do mundo e de toda a vida do ser humano – teocentrismo. As
romarias, as peregrinações, as festas religiosas eram momentos de demonstração de fé, mas
também de contacto entre as populações, de alegria e de diversão, já que traziam consigo a
música, a dança, o canto. A importância de Deus e da fé cristã é ainda atestada pela luta contra
os infiéis, levada a cabo nas Cruzadas quer a oriente (Jerusalém) quer a ocidente, como aconteceu
na Península Ibérica, onde se vivia a Reconquista Cristã.
Com efeito, nos séculos XII e XIII, os monarcas portuguesas, com a ajuda da classe guerreira e
de cruzados vindos de outras regiões da Europa, conseguiram expulsar os muçulmanos e, assim,
definir o território de Portugal tal como hoje o conhecemos (a última conquista foi a de Faro e
data de 1249).
A sociedade medieval era também fortemente estratificada. Cada classe social tinha um papel
bem definido e o nascimento numa determinada classe implicava assumir um estatuto que
raramente seria alterado. O clero tinha a função de rezar, transmitir valores, a nobreza de
defender as terras pelas armas e o povo de lavrar a terra ou de integrar o exército.
A sociedade estava organizada segundo o feudalismo, sistema político, económico e social
caracterizado pela divisão da propriedade (feudo), conjugada com a divisão, a fragmentação da
soberania, e pelas obrigações recíprocas entre vassalos e suseranos, o que assegurava não só a
manutenção da hierarquia social, como também a transmissão e a permanência de valores
importantes como a lealdade, a fidelidade, a coragem, a honra.
Dos três grupos sociais anteriormente, referidos, o clero era aquele que mais contacto tinha
com as Letras, nomeadamente os monges, que, nos conventos, estudavam, compilavam e
produziam os livros manuscritos. O clero tinha, portanto, acesso a uma literatura e a uma cultura
escritas – cultura monástica. Já a nobreza e, sobretudo, o povo usufruíam apenas da literatura e
da cultura orais – cultura profana.
É do património oral que nasce a literatura portuguesa e, em especial, a poesia trovadoresca,
cujos textos são coligidos em Cancioneiros de fins do século XIII e do século XIV e que reúnem
textos desde finais do século XII.
As coletâneas que reúnem as composições trovadorescas são:
• Cancioneiro da Ajuda – encontra-se na Biblioteca da Ajuda, em Lisboa, e contém pouco
mais de 310 cantigas (64 não têm correspondência nos outros dois cancioneiros).
• Cancioneiro da Biblioteca Nacional – cópia mandada fazer pelo colecionador italiano
Angelo Colocci; documenta o maior número de composições.
• Cancioneiro da Vaticana – contém 1205 cantigas de diversos trovadores galaico-
portugueses, de fins do século XII a meados do século XIV.
É ainda referida a língua em que essas composições foram escritas: o galego-português. Com
efeito, no século XII, quer o português quer o galego estavam em formação e não eram línguas
distintas. No Norte de Portugal, na região de Entre Douro e Minho, e na Galiza falava-se galego-
português, e é nestas regiões que a poesia trovadoresca vai florescer, através de diferentes
intérpretes.
Alguns monarcas funcionaram como um modelo a seguir, como foi o caso de Afonso X, o Sábio
(1221-1284), rei de Leão e Castela, autor de composições profanas e de poemas religiosos –
Cantigas de Santa Maria -, e de D. Dinis, seu neto (1261-1325), que compôs diversas cantigas de
amigo, cantigas de amor e cantigas de escárnio e de maldizer.
Mas também há outros intérpretes da poesia trovadoresca e com funções distintas:

Trovador – compositor de poesia, quase sempre fidalgo (podia até ser rei).
Jogral – executor (geralmente de baixa condição) que vivia do lucro da arte de cantar ou de
tanger versos próprios ou alheios.
Segrel – cavaleiro-trovador, da pequena nobreza, que andava de corte em corte a cantar e a
declamar; fazia-se acompanhar de um jogral ou substituía-o.
Menestrel – era, no século XIII, um músico-poeta (por vezes confundia-se com o jogral, só que
vivia sob a proteção de um nobre e andava de corte em corte).
Soldadeira ou jogralesa – cantadeira ou dançarina, a soldo, qua acompanhava o jogral (tinha,
muitas vezes, um comportamento de moral duvidosa).

b. Representações de afetos e emoções

Sendo uma manifestação cultural, a poesia trovadoresca reflete, de forma trabalhada e


representada, vivências do seu tempo, mas fá-lo subjetivamente, já que tem por base os
sentimentos, as emoções, as atitudes.
Um dos temas predominantes desta poesia é o amor. No entanto, o sentimento amoroso pode
assumir diferentes matizes, que, na última análise, nos permitem distinguir dois géneros:
• cantigas de amigo – poesia autóctone, resultante da tradição lírica que existia no Norte
de Portugal, entre Douro e Minho e a Galiza;
• cantigas de amor – poesia que se desenvolveu sob influência dos poemas e temas de
Provença, França.

As cantigas de amigo apresentam, na voz de uma donzela (o sujeito


poético é feminino), os sentimentos por ela vividos relativamente ao seu
amigo que pode estar longe, ausente (por sua vontade ou por força das
circunstâncias – guerra, defesa da fronteira, viagem), levando-a, por isso, a
manifestar saudade, tristeza, mágoa, angústia, temor. Mas o sentimento que
nutre pelo amigo pode também levá-la, noutras ocasiões, a expressar alegria,
sensualidade, confiança, em festas, romarias, peregrinações. É muito comum
a donzela revelar aquilo que sente à sua mãe, às amigas ou até à própria
Natureza, funcionando todas elas como confidentes desse amor, umas vezes
de forma silenciosa, outras vezes intervindo e respondendo aos anseios, às
dúvidas, aos medos da donzela. Esta ligação à Natureza e esta vertente de
confidência emprestam à cantiga de amigo uma espontaneidade e uma
naturalidade próprias.
Nas cantigas do amor, a voz é masculina e o sentimento amoroso é
vivido por um homem que se coloca ao serviço da mulher, regra geral,
casada. A dama mostra-se distante, fria ou até indiferente e é colocada numa
posição superior ao poeta, que lhe presta um serviço de vassalagem
seguindo o código de amor cortês. O sujeito masculino, vive, assim, uma
paixão infeliz - coita do amor -, porque não pode ser caracterizada. Nestas
composições, vamos, então, encontrar, por um lado, emoções em crescendo
a que dizem respeito a esse sofrimento de amor, como a dor, a angústia, o
desespero, a loucura e a própria morte, e, por outro, emoções que fazem
parte do quadro do elogio cortês que estas cantigas reproduzem. O amador
louva a sua amada, a sua senhor, e traça todo um retrato idealizado da
mesma, realçando quer as suas características físicas (cabelo loiro, pele clara)
quer as suas características morais (bom senso, bem falar). Para prestar um
bom serviço à dama, o poeta deve ser discreto e não a nomear, deve
respeitá-la e deve submeter-se a ela - convenções da poesia provençal. Daí
as cantigas de amor nos parecerem, habitualmente, menos espontâneas que
as cantigas de amigo.

Para além destes dois géneros, a poesia trovadoresca comporta ainda uma dimensão satírica,
expressa nas chamadas cantigas de escárnio e maldizer. Na verdade, os trovadores e os jograis
sentiram também necessidade de apontar o dedo a algumas figuras da sociedade, a algumas
situações ou comportamentos, e fizeram-no ora de forma direta, nomeando os visados e usando
uma linguagem clara, satírica, por vezes até violenta e grosseira - cantigas de maldizer -, ora de
forma indireta, não especificando concretamente quem era ou qual era o alvo e recorrendo a
uma linguagem mais camuflada, irónica - cantigas de escárnio. Numas e noutras, verifica-se uma
intenção crítica, moralizadora e, por vezes, cómica.
O amor cortês e o seu carácter dramático (evidenciado na morte de amor), o ofício da criação
poética, mas também os comportamentos imorais de certos elementos do clero ou a vida
miserável de alguns elementos da nobreza são alguns dos temas destas cantigas. Nesse sentido,
as cantigas de escárnio e maldizer oferecem-nos um retrato mais completo da sociedade daquele
tempo e de alguns dos seus protagonistas.

c. Linguagem, estilo e estrutura

Para compreendermos o alcance desta poesia, é imprescindível considerar a linguagem, o estilo


e a estrutura que subjaz a cada um dos géneros já referidos. Embora muitos dos aspetos que se
prendem com estes três tópicos sejam mais visíveis através da leitura e da análise de cantigas
específicas, o que faremos nos pontos d), e) e f), importa aqui explicitar algumas marcas destas
composições, sobretudo no que diz respeito à estrutura, ou seja, à organização, ao arranjo que
os versos assumem nas composições poéticas.
Nesse sentido, chamamos a atenção para o facto de as cantigas de amigo se caracterizarem por
uma estrutura estrófica e rítmica que aproxima a poesia da música. Esse efeito resulta do facto
de estas cantigas recorrerem, frequentemente, a dois processos (em simultâneo ou
isoladamente): o refrão – repetição de um ou mais versos no final de cada estrofe – e o
paralelismo.
Sobre este último, vejamos a explicação que se segue, a partir da análise da composição de
Martim Codax.
Ondas do mar de Vigo Caracterização temática
Ondas do mar de Vigo, • Nesta cantiga, a amiga dirige-se às ondas do mar
se vistes meu amigo! (apóstrofe), querendo saber novas do seu amigo1.
E ai Deus, se verrá cedo! • A Natureza é, pois, confidente (personificação),
mas o mar (símbolo da distância e do perigo - "mar
Ondas do mar levado, levado") não responde.
se vistes meu amado!
• As ondas simbolizam a inquietação, o estado de
E ai Deus, se verrá cedo! espírito da menina.
Se vistes meu amigo, • Essa confidência ao mar é acentuada pela súplica
o por que eu suspiro! que a menina faz a Deus ("E ai Deus, e verrá cedo!"
E ai Deus, se verrá cedo! - apóstrofe).
• Por sua vez, o apelo a Deus traduz um outro
Se vistes meu amado, sentimento: a expectativa pelo regresso do amigo.
Por que ei gran cuidado!
E ai Deus, se verrá cedo!
Martim Codax
(CV 884, CBN 1227)

Poesia e Prosa Medievais (seleção, introdução e notas por Maria


Ema Tarracha Ferreira), Ulisseia, 1988

Glossário
v. 3 – verrá – virá
1
v. 4 – mar levado – mar bravo A importância do mar e todo o cenário desta cantiga permitem
v. 8 – o por que eu suspiro – aquele por quem eu suspiro classificá-la como uma barcarola ou marinha.

Caracterização formal
• Dois pares de estrofes (1.ª e 2.ª coplas; 3.ª e 4.³ coplas) em paralelismo - os dois versos
da 2.ª copla exprimem praticamente o mesmo sentido dos dois versos da 1.ª copla,
apresentando subtis variantes ("mar de Vigo" / "mar levado"; "amigo" / "amado"); o
mesmo se passa com a 3.ª e a 4.ª coplas. No caso destas duas, há ainda a destacar o uso
do leixa-prem, que ajuda a criar um sentido de unidade e de progressão na cantiga (o
segundo verso do primeiro e do segundo dísticos é o primeiro verso do terceiro e quarto
dísticos, respetivamente).
• Cada estrofe de dois versos (dístico) é seguida de um refrão - cantiga de refrão.
Concentrado apenas numa frase, que assume sempre a mesma formulação, o refrão
acentua o sentimento de ansiedade da amiga (veja-se o emprego da interjeição e do
ponto de exclamação).

Marcas das cantigas de amigo


• Sujeito poético é feminino: donzela que deseja saber novas do seu amigo distante.
• Natureza enquanto confidente da menina: é às ondas que a donzela pergunta pelo
amado.
• Cenário primitivo e singelo - o mar.
• Simplicidade da cantiga evidente na sua estrutura repetitiva (refrão, paralelismo) e
também no tipo de rima utilizada (alternância entre as vogais -i e -a, bastante musicais).
Quanto ao estilo, podemos afirmar que diz respeito às opções que cada autor toma
relativamente a vários aspetos, entre os quais se contam, por exemplo, a seleção e o uso de
recursos expressivos. Entre aqueles que podemos encontrar nas cantigas, destacamos a
comparação, a ironia e a personificação, recursos que serão analisados em cantigas específicas.
d. Cantigas de amigo

-variedade do sentimento amoroso;


-confidencia amorosa;
-relação com a Natureza.

Após a análise do contexto de produção da poesia trovadoresca, da caracterização temática e


formal das cantigas de amigo, dos traços comuns e distintivos relativamente às cantigas de amor,
iremos agora explorar algumas cantigas de amigo, propondo pistas para uma leitura critica.

Ai eu, coitada, como vivo


Ai eu, coitada, como vivo Glossário
en gran cuidado por meu amigo v. 2 – cuidado – preocupação
que ei alongado! Muito me tarda v. 3 – el alongado – tenho afastado
o meu amigo na Guarda!

Ai eu, coitada, como vivo


v. 6 – en gran desejo – recordação
en gran desejo por meu amigo
saudosa
que tarda e non vejo! Muito me tarda
o meu amigo na Guarda!
D. Sancho I (CBN 398)

Poesia e Prosa Medievais (seleção, introdução e notas por Maria Ema Tarracha Ferreira), Ulisseia,
1988

Nota: Esta cantiga ora é atribuída a D. Sancho I (1154-1211), ora a Afonso X, o Sáblo (1221-1284).

Caracterização temática
• A donzela revela o seu sofrimento, a sua coita ("coitada") e preocupação ("cuidado") pelo
amigo que está afastado ("el alongado") e que se demora ("Muito me tarda") na Guarda.
De notar que este termo pode referir-se quer à cidade da Guarda, situada numa zona
fronteiriça, quer à atividade de guardar, proteger a fronteira, atividade comum naquele
tempo de guerras entre reinos e de lutas entre senhores feudais.
• O sujeito de enunciação feminino revela ainda, na segunda estrofe, a saudade que sente
("gran desejo").
• A anáfora inicial em cada uma das estrofes ("Ai eu, coitada"), reforçada pela interjeição
"Ai", confere um tom de confidência e acentua a dor da ausência.
• A pontuação expressiva (recurso ao uso de pontos de exclamação) contribui também
para a sentimentalidade expressa.

Caracterização formal
• Duas estrofes seguidas de refrão - "Muito me tarda/o meu amigo na Guarda".
• Paralelismo entre as duas coplas, variando apenas as palavras "cuidado" / "desejo", "que
ei alongado" / "que tarda e non vejo".

Marcas das cantigas de amigo


• Voz feminina.
• Sentimentalidade espontânea, natural - expressão da saudade pelo amigo que tarda.
• Estrutura simples e repetida (paralelismo e refrão), que remete para um carácter
tradicional – origem autóctone.
Bailemos nós já todas três, ai amigas Caracterização temática
Bailemos nós já todas três, ai amigas, • Uma donzela, enamorada, alegre e feliz,
sô aquestas avelaneiras frolidas; confiante na sua beleza e na das suas amigas,
e quen for velida, como nós, velidas, certa da sua capacidade de sedução (v. 15),
se amigo amar, mostra-se ansiosa por ir bailar e faz um
sô aquestas avelaneiras frolidas convite às suas amigas ("Bailemos nós já
verrá bailar. todas três, ai amigas"; "Bailemos nós já
todas três, ai irmanas").1
Bailemos nós já todas três, ai irmanas, • Este convite é alargado a outras donzelas,
sô aqueste ramo destas avelanas; desde que sejam formosas ("e quen for
e quen for louçana, como nós louçanas, velida, como nós, velidas" - comparação) e
se amigo amar, belas ("e quen for louçana, como nós,
sô aqueste ramo destas avelanas; louçanas" - comparação) e desde que
verrá bailar. estejam apaixonadas ("se amigo amar").
Por Deus, ai amigas, mentr’al non fazemos, • As donzelas, sendo as destinatárias do
sô aqueste ramo frolido bailemos; convite da amiga, são suas confidentes.
e quen ben parecer, como nós parecemos, • Todas bailam, envolvidas com a Natureza,
se amigo amar, que com elas partilha a alegria do despertar
sô aqueste ramo so-l’ que nós bailemos; para o amor (as "avelaneiras frolidas" e o
verrá bailar. "ramo frolido" simbolizam a primavera).
Caracterização formal
Airas Nunes de Santiago ou Airas Nunes (CV • Cantiga de refrão, composta por três
462, CBN 818) estrofes de quatro versos, com refrão dístico
Poesia e Prosa Medievais (seleção, introdução e intercalado ("se amigo amar, / verrá bailar").
notas por Maria Ema Tarracha Ferreira), Ulisseia, • Cantiga paralelística:
1988
→ paralelismo anafórico ("Bailemos
Nota: Esta cantiga ora é atribuída a D. Sancho I nós já todas três" (vv. 1e 7); "sô
(1154-1211), ora a Afonso X, o Sáblo (1221-1284). aquestas... / sô aquestas... / sô
Glossário aqueste... / sô aqueste..." (vv. 2 e 5; 8
v. 2 – só aquestas avelaneiras frolidas – sob estas e 11; 14 e 17));
aveleiras floridas → paralelismo semântico ("ai amigas"
v. 3 – velida – linda, formosa
(v. 1) / "ai irmanas" (v. 7); "só aquestas
v. 6 – verrá – virá
v. 9 – louçana – bela, formosa avelaneiras frolidas" (v. 2) / "sô
v. 13 – mentr’al non fazemos – enquanto outra coisa aqueste ramo destas avelanas" (v.
não fazemos 8)).
v. 17 – so-l’ que – sob o qual

Marcas das cantigas de amigo


• Voz feminina que faz um convite a outras donzelas (suas confidentes).
• Autoelogio da figura feminina.
• Empatia com a Natureza, que parece estar em consonância com os sentimentos de
felicidade, arrebatamento amoroso e sedução da menina.
• Criação de um ritmo e de uma cadência através do refrão e do paralelismo, reforçando a
mensagem (o convite e as "condições" para a dança; a Natureza que floresce, tal como
os sentimentos da donzela) e contribuindo para o carácter musical desta cantiga.

1
Por ser um convite à dança, implicando certamente música, esta cantiga pode ser classificada como uma
bailia ou bailada.
e. Cantigas de amor

-a coita de amor e o elogio cortês

Antes de analisarmos algumas cantigas de amor galaico-portuguesas, convém referir que,


embora a influência da chamada poesia provençal seja notória, houve uma adaptação da cansó
provençal às formas já existentes, ou seja, à estrutura da cantiga de amigo e também à sua
sentimentalidade.
Com efeito, verifica-se o uso do refrão e, apesar do respeito pelo código de amor cortês, há uma
sinceridade superior à dos provençais.

Proençaes soen mui bem trobar1


Proençaes soen mui bem trobar
Ca os que troban e que s’alegrar
e dizen eles que é con amor;
van eno tempo que ten a color
mais os que troban no tempo da flor a frol consigu’, e, tanto que se for
e non en outro, sei eu ben que non aquel tempo, logu’ en trobar razon
an tan gran coita no seu coraçon non na, non viven en qual perdiçon
qual m’eu por mia senhor vejo levar.
oj’ eu vivo, que pois m’á-de matar.
Pero que troban e saben loar D. Dinis (CV 127, CBN 489)
sas senhores o mais e o melhor
que eles poden, soõ sabedor Poesia e Prosa Medievais (seleção, introdução e
notas por Maria Ema Tarracha Ferreira), Ulisseia,
que os que troban, quand’ a frol sazon 1988
á, e non ante, se Deus mi perdon,
non na tal coita qual eu ei sen par. Glossário
v. 1 – soen – costumam; v. 3 – tempo da flor –
primavera; v. 5 – coita – sofrimento (amoroso);
1 Esta v. 10 – frol sazon – estação, tempo de flor; v. 14
cantiga não tem refrão (cantiga de mestria).
– eno – no; color – cor

Caracterização temática
• O tema desta cantiga é a coita de amor "sen par", ou seja, inigualável, e a morte por amor
- "pois m'á-de matar".
• O trovador compara o seu amor com o dos provençais. Embora lhes reconheça
capacidade de trovar (vv. 1-2), considera que os sentimentos que exprimem resultam mais
de um artificialismo, de um fingimento, pois só trovam na primavera ("no tempo da flor")
e fora desse tempo não (vv. 15-17).
• Logo, o trovador critica e distancia-se dos poetas provençais – vv. 3-6. E essa diferença vai
sendo acentuada: na 2.ª copla, já refere a "coita qual eu ei sen par" e, na 3.ª, a morte por
amor ("non an, non viven en qual perdiçon/oj' eu vivo, que pois m'á-de matar"). O
sofrimento do intérprete é verdadeiro, por oposição ao convencionalismo provençal. Há,
assim, toda uma gradação e uma reiteração de argumentos a favor da poesia do sujeito
poético.
• Por isso mesmo, esta cantiga pode também funcionar como uma espécie de arte poética
da arte de trovar: uma poesia convencional e artificial (a dos provençais) e uma poética
autêntica, assente na coita de amor profunda (a do trovador). Ainda assim, o poema
termina com um lugar-comum característico da poesia provençal - a morte de amor.

Marcas das cantigas de amor


• Sujeito poético masculino - é um trovador.
• Coita de amor associada ao amor cortês.
• Relação direta entre a senhor e o sofrimento do poeta.
f. Cantigas de escárnio e maldizer

-a dimensão satírica: a paródia do amor cortês e a crítica de costumes

Já vimos que os trovadores e os jograis não compuseram apenas cantigas de amigo e cantigas
de amor. Na verdade, para além da poesia lírica, dedicaram-se também à poesia satírica.
Podemos até dizer que esta foi bastante fecunda entre nós, revelando já um gosto pela crítica,
pelo cómico e pelo ridículo.
Segundo a Arte de Trovar1, documento que representa uma espécie de poética da poesia
trovadoresca e que se encontra no início do Cancioneiro da Biblioteca Nacional, havia dois tipos
de poesia satírica.
Assim, nas cantigas de escárnio, a crítica é mais subtil, não sendo revelada a identidade de quem
se crítica. Nas cantigas de maldizer, a crítica é mais direta, identificando-se o alvo visado.

Ai dona fea, fostes-vos queixar


Ai dona fostes-vos queixar Dona fea, nunca vos eu loei
que vos nunca louv'en'[o] meu cantar; Em meu trobar, pero muito trobei;
mais ora quero fazer um cantar mais ora já um bom cantar farei
em que vos loarei todavia; em que vos loarei todavia;
se vedes como vos quero loar: e direi-vos como vos loarei:
dona fea, velha e sandia! dona fea, velha e sandia!
Dona fea, se Deus mi pardom, João Garcia de Guilhade (B 1486, V 1097)
pois havedes [a]tam gram coraçom
Graça Videira Lopes, Cantigas de Escárnio e
que vos eu loe, em esta razom Maldizer dos Trovadores e Jograis Galego-
vos quero já loar todavia; Portugueses, Editorial Estampa, 2002
e vedes qual será a loaçom:
Glossário
dona fea, velha e sandia! v. 5 – loar – louvar; v. 6 – sandia – louca, doida;
v. 8 – pois havedes [a]tam gram coraçom –
temdes tanto desejo; v. 9 – em esta razon – por
este motivo; v. 14 – pero – ainda que, pois
Caracterização temática
• A composição apresentada enquadra-se nas chamadas cantigas de escárnio, visto que se
critica, de forma indireta (o nome nunca é referido), a atitude, o comportamento de uma
dona (aludindo-se, assim, à senhor das cantigas de amor) que quer ser louvada, apesar
de não possuir atributos para tal, pois é "fea, velha e sandia".
• Por essa razão, esta cantiga é também considerada uma paródia do amor cortês, pois é
uma imitação de uma cantiga de amor com um propósito irónico e cómico.
• A ironia é, aliás, evidente ao longo da cantiga. Vejamos:
→ a dona queixou-se de não ser louvada e manifestou um grande desejo em sê-lo;
o "eu" lírico parece aceder a esse desejo – "mais ora quero fazer um cantar / em
que vos loarei todavia" (1.ª estrofe); "vos quero já loar todavia; / e vedes qual
será a loaçom" (2.ª estrofe); "mais ora já um bom cantar farei/ em que vos loarei
todavia" (3.ª estrofe);
→ no entanto, apesar de o sujeito poético louvar a dona, não o faz da maneira que
esta pretenderia, uma vez que o louvor repetido no refrão é "dona fea, velha e
sandia!", o que prova a ironia presente nesta cantiga.
• O refrão assinala, assim, o efeito cómico que se cria ao elogiar-se não uma dona bela,
jovem e com bom senso, habitualmente retratada nas cantigas de amor, mas antes uma
mulher cuja imagem extremamente negativa.

1
Arte de Trovar do Cancioneiro da Biblioteca Nacional de Lisboa (introdução, edição crítica e fac-símile por Giuseppe
Tavani), Colibri, 2002
Marcas das cantigas de escárnio
• Crítica ao objeto de louvor – "dona fea, velha e sandia": evitando-se a identificação
direta, aponta para o escárnio e para a sátira.
• Linguagem rude conotada com a poesia satírica: veja-se, a título de exemplo, a tripla
adjetivação do refrão – "fea, velha e sandia".

Roi Queimado morreu com amor Caracterização temática


Roi Queimado morreu com amor • Crítica direta e explícita a um poeta – Roi
em seus cantares, par Santa Maria, Queimado – que, nas suas composições e
por ũa dona que gram bem queria; por causa do amor por uma dona, anunciava
e por se meter por mais trobador, a sua morte, embora continuasse a viver.
porque lh'ela nom quis[o] bem fazer, Trata-se, por isso, de uma cantiga de
feze-s'el em seus cantares morrer; maldizer, que põe a ridículo o
mais ressurgiu depois ao tercer dia. comportamento desse poeta, em particular.
• Crítica mordaz e irónica à morte de amor
Esto fez el por ũa sa senhor tão convencional das cantigas de amor:
que quer gram bem; e mais vos en diria: > Roi Queimado afirmou nas suas cantigas
porque cuida que faz i maestria, que estava tão apaixonado por uma dona
en'os cantares que fez há sabor que, por ela, morreu de amor;
de morrer i e des i d'ar viver. > fez tudo isto para provar que era um
Esto faz el, que x'o pode fazer, trovador com grandes qualidades ("e por se
mais outr'homem per rem nõn'o faria. meter por mais trobador");
E nom há já de sa morte pavor, > no entanto, "ressuscitou" no terceiro dia
senom sa morte mais la temeria, ("mais ressurgiu depois ao tercer dia").
mais sabe bem, per sa sabedoria, • Recurso à ironia para satirizar o poder que
que viverá, des quando morto for; Roi Queimado parece ter - morrer e depois
e faz-[s'] em seu cantar morte prender, viver: "mais ressurgiu depois ao tercer dia"
des i ar vive: vedes que poder (alusão à ressurreição de Jesus Cristo). Aliás,
que lhi Deus deu - mais quen'o cuidaria! na última estrofe, remate da cantiga (finda),
o próprio sujeito poético revela o desejo de
E se mi Deus a mi desse poder também ele possuir esse poder.
qual hoj'el há, pois morrer, de viver, • Por fim, podemos ainda considerar que os
jamais [eu] morte nunca temeria. dotes poéticos de Roi Queimado são
Pero Garcia Burgalês (B 1380, V 988) igualmente alvo de crítica, já que se diz dele
"por se meter por mais trobador" e "porque
Graça Videira Lopes, Cantigas de Escárnio e Maldizer
cuida que faz i maestria".
dos Trovadores e Jograis Galego-Portugueses,
Editorial Estampa, 2002 • Esta cantiga demonstra o artificialismo dos
trovadores e das convenções poéticas do
Glossário
amor cortês.
v. 1 – Roi Queimado – poeta trovador que viveu nos
reinados de D. Afonso III e de D. Dinis; v. 4 – por se Marcas das cantigas de maldizer
meter por mais trobador – para se dar ares de grande
• Voz masculina que manifesta a sua posição
trovador; v. 5 – nom quis [o] bem fazer –
corresponder ao seu amor; v. 7 – mais – mas; v. 10 – crítica perante o comportamento ridículo de
faz i maestria – faz versos como mestre; v. 11 – há um poeta específico (Roi Queimado) e
sabor – tem prazer; v. 12 – e des i d'ar viver – e desde perante uma convenção – a morte por amor.
então torna a viver; v. 14 – per rem – por coisa
• Efeito cómico obtido através das antíteses
nenhuma; nõn’o - não o; v. 20 – des i ar vive – depois
disso volta a viver; v. 21 – mais quen'o cuidaria – – "morrer" / "viver" (v. 12), "morrer" / "viver"
mais do que poderia supor; v. 23 - pois morrer, de (v. 23) – e da ironia.
viver – (o poder...) de, depois de morrer, viver
Síntese de conteúdos
Linguagem,
Representação de afetos e Espaços, protagonistas e
Género Sujeito poético estilo e
emoções circunstâncias
estrutura
• Voz feminina • Variedade do sentimento • Ambiente doméstico e • Paralelismo
(donzela, menina) amoroso: amor, saudade, familiar, marcadamente • Refrão
tristeza, mágoa, ansiedade, feminino (donzela ou menina e • Regularidade
alegria as amigas, ou a mãe e a filha) estrófica e
• Confidência amorosa à • Ambiente coletivo (romaria, métrica
Natureza, às amigas, à mãe santuário) • Recursos
Cantigas • Relação com a Natureza: • Ambiente rural e natural expressivos: ex.:
de amigo confidente (personificação), (campo, rio, mar) personificação,
em harmonia com o estado de • Elementos simbólicos: água, comparação,
espírito da donzela aves, cervos… apóstrofe
Ex.: “Pois nossas madres van a • Origem autóctone,
San Simon” resultante da tradição lírica já
“Ai flores, ai flores do verde existente na região
pino”
• Voz masculina • Coita de amor – paixão • Ambiente aristocrático (rei, • Cantiga de
(trovador) que se infeliz, sofrimento por amor, nobres, senhores) mestria (sem
dirige à sua armada que pode levar à morte por • Palácio refrão) ou com
(sua senhor), amor – hiperbolização do • Corte recurso a refrão
habitualmente sentimento amoroso • Ambiente marcado por um • Regularidade
casada, a quem • Elogio cortês – louvor da código e por convenções (o estrófica e
Cantigas
presta vassalagem senhor, modelo de beleza e de amor cortês, a mesura – métrica
de amor
amorosa virtude autodomínio, cerimónia –, a • Recursos
Ex.: “A dona que eu am’e tenho cortesia – boa educação, expressivos: ex.:
por senhor” civilidade) adjetivação,
• Cantigas importadas, em hipérbole,
particular da zona da Provença comparação,
antítese
• Voz masculina • Paródia do amor cortês • Ambiente palaciano e da • Sátira, cómico
(trovador) que faz (louvor da dona; morte por corte • Recursos
uma crítica indireta amor) • Cruzamento da influência expressivos: ex.:
Cantigas
(cantiga de • Crítica de costumes (falta de autóctone e provençal ironia
de
escárnio) ou direta dotes poéticos de um trovador,
escárnio e
(cantiga de a miséria de elementos da
maldizer
maldizer) nobreza, etc.)
Ex.: “Roi Queimado morreu
com amor”

Termos da poesia trovadoresca


Ata-finda - processo métrico que consiste no encadeamento de versos e de estrofes entre si até ao fim da cantiga; consiste na ligação
sintática e ideológica entre as estrofes.
Copla - estrofe.
Dístico - estrofe de dois versos.
Dobre - repetição, ao longo do poema, de palavras na mesma posição do verso ou estrofe.
Finda - estrofe final de um a três versos, espécie de conclusão; os poemas podem ter mais do que uma finda.
Leixa-prem - artificio poético que consiste em começar uma estrofe pelo verso da parelha de coplas anterior (por exemplo, o segundo
verso de dois dísticos paralelos é o primeiro verso dos dois dísticos seguintes).
Mozdobre - repetição, ao longo do poema, de formas diferentes da mesma palavra, no mesmo ponto do verso ou estrofe.

Você também pode gostar