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Poesia trovadoresca

► Contextualização histórico-literária Espaços medievais, protagonistas e circunstâncias

Poesia trovadoresca é a designação dada ao conjunto de composições poéticas medievais, enquadradas em


diferentes géneros, destinadas a serem cantadas, e que foram produzidas em Portugal, na Galiza e também nos
reinos de Castela, Leão e Aragão, por poetas que, para além de comporem esses poemas – cantigas –, tocavam e
cantavam, sendo por isso chamados trovadores. Regra geral, os trovadores eram de origem nobre e dedicavam-se
ao ofício de compor e musicar poemas apenas por prazer, por deleite, sem daí retirarem qualquer proveito material.
A poesia trovadoresca floresceu durante a Idade Média, mais concretamente durante o período que se estende
de meados do século XII a meados do século XIV.
A sociedade medieval é profundamente marcada pela religião, vivida de forma intensa e permanente. Deus é o
centro do mundo e de toda a vida do ser humano – teocentrismo. As romarias, as peregrinações, as festas religiosas
eram momentos de demonstração de fé, mas também de contacto entre as populações, de alegria e de diversão, já
que traziam consigo a música, a dança, o canto. A importância de Deus e da fé cristã é ainda atestada pela luta
contra os infiéis, levada a cabo nas Cruzadas quer a oriente (Jerusalém) quer a ocidente, como aconteceu na
Península Ibérica, onde se vivia a Reconquista Cristã.
Com efeito, nos séculos XII e XIII, os monarcas portugueses, com a ajuda da classe guerreira e de cruzados vindos
de outras regiões da Europa, conseguiram expulsar os muçulmanos e assim definir o território de Portugal tal como
hoje o conhecemos (a última conquista foi a de Faro e data de 1249).
A sociedade medieval era também fortemente estratificada. Cada classe social tinha um papel bem definido e o
nascimento numa determinada classe implicava assumir um estatuto que raramente seria alterado. O clero tinha a
função de rezar, transmitir valores, a nobreza de defender as terras pelas armas e o povo de lavrar a terra ou
integrar o exército.
A sociedade estava organizada segundo o feudalismo, sistema político, económico e social caracterizado pela
divisão da propriedade (feudo), conjugada com a divisão, a fragmentação da soberania, e pelas obrigações recíprocas
entre vassalos e suseranos, o que assegurava não só a manutenção da hierarquia social, como também a transmissão
e a permanência de valores importantes como a lealdade, a fidelidade, a coragem, a honra.
Dos três grupos sociais anteriormente referidos, o clero era aquele que mais contacto tinha com as Letras,
nomeadamente os monges, que, nos conventos, estudavam, compilavam e produziam os livros manuscritos. O clero
tinha, portanto, acesso a uma literatura e a uma cultura escrita – cultura monástica. Já a nobreza e, sobretudo, o
povo usufruíam apenas da literatura e da cultura oral – cultura profana.
É do património oral que nasce a literatura portuguesa e, em especial, a poesia trovadoresca, cujos textos são
coligidos em Cancioneiros de fins do século XIII e do século XIV e que reúnem textos desde finais do século XII.

As coletâneas que reúnem as composições trovadorescas são:


• Cancioneiro da Ajuda – encontra-se na Biblioteca da Ajuda, em Lisboa, e contém pouco mais de 310 cantigas (64
não têm correspondência nos outros dois cancioneiros).
• Cancioneiro da Biblioteca Nacional – cópia mandada fazer pelo colecionador italiano Angelo Colocci; documenta o
maior número de composições.
• Cancioneiro da Vaticana – contém 1205 cantigas de diversos trovadores galaico-portugueses, de fins do século XII
a meados do século XIV.

É ainda referida a língua em que essas composições foram escritas: o galego-português. Com efeito, no século XII,
quer o português quer o galego estavam em formação e não eram línguas distintas. No Norte de Portugal, na região
de Entre Douro e Minho, e na Galiza falava-se galego-português, e é nestas regiões qua a poesia trovadoresca vai
florescer, através de diferentes intérpretes.
Alguns monarcas funcionaram como um modelo a seguir, como foi o caso de Afonso X, o Sábio (1221- -1284), rei
de Leão e Castela, autor de composições profanas e de poemas religiosos – Cantigas de Santa Maria –, e de D. Dinis,
seu neto (1261-1325), que compôs diversas cantigas de amigo, cantigas de amor e cantigas de escárnio e de
maldizer.
Mas também há outros intérpretes da poesia trovadoresca e com funções distintas:

Trovador – compositor de poesia, quase sempre fidalgo (podia até ser rei).
Jogral – executor (geralmente de baixa condição) que vivia do lucro da arte de cantar ou de tanger versos próprios
ou alheios.
Segrel – cavaleiro-trovador, da pequena nobreza, que andava de corte em corte a cantar e a declamar; fazia-se
acompanhar de um jogral ou substituía-o.
Menestrel – era, no século XIII, um músico-poeta (por vezes confundia-se com o jogral, só que vivia sob a proteção
de um nobre e andava de corte em corte).
Soldadeira ou jogralesa – cantadeira ou dançarina, a soldo, que acompanhava o jogral (tinha, muitas vezes, um
comportamento de moral duvidosa).

► Representações de afetos e emoções

Sendo uma manifestação cultural, a poesia trovadoresca reflete, de forma trabalhada e representada, vivências
do seu tempo, mas fá-lo subjetivamente, já que tem por base os sentimentos, as emoções, as atitudes.
Um dos temas predominantes desta poesia é o amor. No entanto, o sentimento amoroso pode assumir
diferentes matizes, que, em última análise, nos permitem distinguir dois géneros:

• cantigas de amigo – poesia autóctone, resultante da tradição lírica que existia no Norte de Portugal, entre Douro e
Minho e a Galiza;
• cantigas de amor – poesia que se desenvolveu sob influência dos poemas e temas de Provença, França.

As cantigas de amigo apresentam, na voz de uma donzela (o sujeito poético é feminino), os sentimentos por ela
vividos relativamente ao seu amigo que pode estar longe, ausente (por sua vontade ou por força das circunstâncias –
guerra, defesa da fronteira, viagem), levando-a, por isso, a manifestar saudade, tristeza, mágoa, angústia, temor.
Mas o sentimento que nutre pelo amigo pode também levá-la, noutras ocasiões, a expressar alegria, sensualidade,
confiança, em festas, romarias, peregrinações. É muito comum a donzela revelar aquilo que sente à sua mãe, às
amigas ou até à própria Natureza, funcionando todas elas como confidentes desse amor, umas vezes de forma
silenciosa, outras vezes intervindo e respondendo aos anseios, às dúvidas, aos medos da donzela. Esta ligação à
Natureza e esta vertente de confidência emprestam à cantiga de amigo uma espontaneidade e
uma naturalidade próprias.

Nas cantigas de amor, a voz é masculina e o sentimento amoroso é vivido por um homem que se coloca ao
serviço de uma mulher, regra geral, casada. A dama mostra-se distante, fria ou até indiferente e é colocada numa
posição superior ao poeta, que lhe presta um serviço de vassalagem seguindo o código de amor cortês. O sujeito
masculino vive, assim, uma paixão infeliz – coita de amor –, porque não pode ser concretizada. Nestas composições,
vamos, então, encontrar, por um lado, emoções em crescendo e que dizem respeito a esse sofrimento de amor,
como a dor, a angústia, o desespero, a loucura e a própria morte, e, por outro, emoções que fazem parte do quadro
do elogio cortês que estas cantigas reproduzem. O amador louva a sua amada, a sua senhor, e traça todo um retrato
idealizado da mesma, realçando quer as suas características físicas (cabelo loiro, pele clara), quer as suas
características morais (bom senso, bem falar). Para prestar um bom serviço à dama, o poeta deve ser discreto e não
a nomear, deve respeitá-la e deve submeter-se a ela – convenções da poesia provençal. Daí as cantigas de amor nos
parecerem, habitualmente, menos espontâneas que as cantigas de amigo.

Para além destes dois géneros, a poesia trovadoresca comporta ainda uma dimensão satírica, expressa nas
chamadas cantigas de escárnio e maldizer. Na verdade, os trovadores e os jograis sentiram também necessidade de
apontar o dedo a algumas figuras da sociedade, a algumas situações ou comportamentos, e fizeram-no ora de forma
direta, nomeando os visados e usando uma linguagem clara, satírica, por vezes até violenta e grosseira – cantigas de
maldizer –, ora de forma indireta, não especificando concretamente quem era ou qual era o alvo e recorrendo a uma
linguagem mais camuflada, irónica – cantigas de escárnio. Numas e noutras, verifica-se uma intenção crítica,
moralizadora e, por vezes, cómica.
O amor cortês e o seu carácter dramático (evidenciado na morte de amor), o ofício da criação poética, mas
também os comportamentos imorais de certos elementos do clero ou a vida miserável de alguns elementos da
nobreza são alguns dos temas destas cantigas. Nesse sentido, as cantigas de escárnio e maldizer oferecem-nos
um retrato mais completo da sociedade daquele tempo e de alguns dos seus protagonistas.
► Linguagem, estilo e estrutura

Para compreendermos o alcance desta poesia, é imprescindível considerar a linguagem, o estilo e a estrutura que
subjaz a cada um dos géneros já referidos. Embora muitos dos aspetos que se prendem com estes três tópicos sejam
mais visíveis através da leitura e da análise de cantigas específicas, o que faremos nos pontos d), e) e f), importa aqui
explicitar algumas marcas destas composições, sobretudo no que diz respeito à estrutura, ou seja, à organização, ao
arranjo que os versos assumem nas composições poéticas.
Nesse sentido, chamamos a atenção para o facto de as cantigas de amigo se caracterizarem por uma estrutura
estrófica e rítmica que aproxima a poesia da música. Esse efeito resulta do facto de estas cantigas recorrerem,
frequentemente, a dois processos (em simultâneo ou isoladamente): o refrão – repetição de um ou mais versos no
final de cada estrofe – e o paralelismo.

Sobre este último, vejamos a explicação que se segue, a partir da análise da composição de Martim Codax.

Ondas do mar de Vigo

Ondas do mar de Vigo,


se vistes meu amigo!
E ai Deus, se verrá cedo!

Ondas do mar levado,


se vistes meu amado!
E ai Deus, se verrá cedo!

Se vistes meu amigo,


o por que eu suspiro!
E ai Deus, se verrá cedo!

Se vistes meu amado,


por que ei gran cuidado!
E ai Deus, se verrá cedo!

Martim Codax
(CV 884, CBN 1227)
Poesia e Prosa Medievais (seleção, introdução e notas por Maria Ema Tarracha Ferreira), Ulisseia, 1988
Glossário
v. 3 – verrá – virá; v. 4 – mar levado – mar bravo; v. 8 – o por que eu suspiro – aquele por quem eu suspiro

Caracterização temática

• Nesta cantiga, a amiga dirige-se às ondas do mar (apóstrofe), querendo saber novas do seu amigo. (1)
• A Natureza é, pois, confidente (personificação), mas o mar (símbolo da distância e do perigo – “mar levado”) não
responde.
• As ondas simbolizam a inquietação, o estado de espírito da menina.
• Essa confidência ao mar é acentuada pela súplica que a menina faz a Deus (“E ai Deus, se verrá cedo!” – apóstrofe).
• Por sua vez, o apelo a Deus traduz um outro sentimento: a expectativa pelo regresso do amigo.

Caracterização formal

• Dois pares de estrofes (1.ª e 2.ª coplas; 3.ª e 4.ª coplas) em paralelismo – os dois versos da 2.ª copla exprimem
praticamente o mesmo sentido dos dois versos da 1.ª copla, apresentando subtis variantes (“mar de Vigo” / “mar
levado”; “amigo” / “amado”); o mesmo se passa com a 3.ª e a 4.ª coplas. No caso destas duas, há ainda a destacar o
uso do leixa-prem, que ajuda a criar um sentido de unidade e de progressão na cantiga (o segundo verso do primeiro
e do segundo dísticos é o primeiro verso do terceiro e quarto dísticos, respetivamente).
• Cada estrofe de dois versos (dístico) é seguida de um refrão – cantiga de refrão. Concentrado apenas numa frase,
que assume sempre a mesma formulação, o refrão acentua o sentimento de ansiedade da amiga (veja-se o emprego
da interjeição e do ponto de exclamação).
Marcas das cantigas de amigo

• O sujeito poético é uma donzela que deseja saber novas do seu amigo distante.
• A Natureza é confidente da menina. É às ondas que a donzela pergunta pelo amado.
• O cenário é primitivo e singelo – o mar.
• A simplicidade da cantiga é evidente na sua estrutura repetitiva (refrão, paralelismo) e também no tipo de rima
utilizada (alternância entre as vogais -i e -a, bastante musicais).

Quanto ao estilo, podemos afirmar que diz respeito às opções que cada autor toma relativamente a vários
aspetos, entre os quais se contam, por exemplo, a seleção e o uso de recursos expressivos. Entre aqueles que
podemos encontrar nas cantigas, destacamos a comparação, a ironia e a personificação, recursos que serão
analisados em cantigas específicas.

(1) A importância do mar e todo o cenário desta cantiga permitem classificá-la como uma barcarola ou marinha.

► Cantigas de amor

Antes de analisarmos algumas cantigas de amor galaico-portuguesas, convém referir que, embora a influência da
chamada poesia provençal seja notória, houve uma adaptação da cansó provençal às formas já existentes, ou seja, à
estrutura da cantiga de amigo e também à sua sentimentalidade.
Com efeito, verifica-se o uso do refrão e, apesar do respeito pelo código de amor cortês, há uma sinceridade
superior à dos provençais.

Proençaes soen mui ben trobar

Proençaes soen mui ben trobar


e dizen eles que é con amor;
mais os que troban no tempo da flor
e non en outro, sei eu ben que non
an tan gran coita no seu coraçon
qual m’eu por mia senhor vejo levar.

Pero que troban e saben loar


sas senhores o mais e o melhor
que eles poden, soõ sabedor
que os que troban, quand’ a frol sazon
á, e non ante, se Deus mi perdon,
non an tal coita qual eu ei sen par.

Ca os que troban e que s’alegrar


van eno tempo que ten a color
a frol consigu’ , e, tanto que se for
aquel tempo, logu’ en trobar razon
non an, non viven en qual perdiçon
oj’ eu vivo, que pois m’á-de matar.

D. Dinis
(CV 127, CBN 489)

Poesia e Prosa Medievais (seleção, introdução e notas por Maria Ema Tarracha
Ferreira), Ulisseia, 1988

Glossário
v. 1 – soen – costumam; v. 3 – tempo da flor – primavera;
v. 5 – coita – sofrimento (amoroso); v. 10 – frol sazon – estação, tempo de flor; v. 14 – eno – no; color – cor
Caracterização temática

• O tema desta cantiga é a coita de amor “sen par”, ou seja, inigualável, e a morte por amor – “pois m’á-de matar”.
• O trovador compara o seu amor com o dos provençais. Embora lhes reconheça capacidade de trovar (vv. 1-2),
considera que os sentimentos que exprimem resultam mais de um artificialismo, de um fingimento, pois só trovam
na primavera (“no tempo da flor”) e fora desse tempo não (vv. 15-17).
• Logo, o trovador critica e distancia-se dos poetas provençais – vv. 3-6. E essa diferença vai sendo acentuada: na 2.ª
copla, já refere a “coita qual eu ei sen par” e na 3.ª a morte por amor (“non an, non viven en qual perdiçon / oj’ eu
vivo, que pois m’á-de matar”). O sofrimento do intérprete é verdadeiro, em oposição ao convencionalismo
provençal. Há, assim, toda uma gradação e uma reiteração de argumentos a favor da poesia do sujeito poético.
• Por isso mesmo, esta cantiga pode também funcionar como uma espécie de arte poética da arte de trovar: uma
poesia convencional e artificial (a dos provençais) e uma poética autêntica, assente na coita de amor profunda (a do
trovador). Ainda assim, o poema termina com um lugar-comum característico da poesia provençal – a morte de
amor.

Marcas das cantigas de amor

• O sujeito poético é masculino – é um trovador.


• Coita de amor associada ao amor cortês.
• Relação direta entre a senhor e o sofrimento do poeta.
Nota
• Esta cantiga não tem refrão (cantiga de mestria).

► Cantigas de escárnio e maldizer

Já vimos que os trovadores e os jograis não compuseram apenas cantigas de amigo e cantigas de amor. Na
verdade, para além da poesia lírica, dedicaram-se também à poesia satírica. Podemos até dizer que esta foi bastante
fecunda entre nós, revelando já então um gosto pela crítica, pelo cómico e pelo ridículo.
Segundo a Arte de Trovar (1), documento que representa uma espécie de poética da poesia trovadoresca e que
se encontra no início do Cancioneiro da Biblioteca Nacional, havia dois tipos de poesia satírica.
Assim, nas cantigas de escárnio, a crítica é mais subtil, não sendo revelada a identidade de quem se critica.
Nas cantigas de maldizer, a crítica é mais direta, identificando-se o alvo visado.

Ai dona fea, fostes-vos queixar

Ai dona fea, fostes-vos queixar


que vos nunca louv'en’[o] meu cantar;
mais ora quero fazer um cantar
em que vos loarei todavia;
e vedes como vos quero loar:
dona fea, velha e sandia!

Dona fea, se Deus mi pardom,


pois havedes [a]tam gram coraçom
que vos eu loe, em esta razom
vos quero já loar todavia;
e vedes qual será a loaçom:
dona fea, velha e sandia!

Dona fea, nunca vos eu loei


em meu trobar, pero muito trobei;
mais ora já um bom cantar farei
em que vos loarei todavia;
e direi-vos como vos loarei: Graça Videira Lopes, Cantigas de Escárnio e Maldizer dos
dona fea, velha e sandia!
Trovadores e Jograis Galego-Portugueses, Editorial
João Garcia de Guilhade Estampa, 2002
(B 1486, V 1097)
Glossário
v. 5 – loar – louvar; v. 6 – sandia – louca, doida; v. 8 – pois havedes [a]tam gram coraçom – tendes tanto desejo; v. 9
– em esta razom – por este motivo; v. 14 – pero – ainda que, pois

Caracterização temática

• A composição apresentada enquadra-se nas chamadas cantigas de escárnio, visto que se critica, de forma indireta
(o nome nunca é referido), a atitude, o comportamento de uma dona (aludindo-se, assim, à senhor das cantigas de
amor) que quer ser louvada, apesar de não possuir atributos para tal, pois é “fea, velha e sandia”.
• Por essa razão, esta cantiga é também considerada uma paródia do amor cortês, pois é uma imitação de uma
cantiga de amor com um propósito irónico e cómico.
• A ironia é, aliás, evidente ao longo da cantiga. Vejamos:
› a dona queixou-se de não ser louvada e manifestou um grande desejo em sê-lo; o poeta parece aceder a esse
desejo – “mais ora quero fazer um cantar / em que vos loarei todavia” (1.ª estrofe); “vos quero já loar todavia; / e
vedes qual será a loaçom” (2.ª estrofe); “mais ora já um bom cantar farei / em que vos loarei todavia” (3.ª estrofe);
› no entanto, apesar de o sujeito poético louvar a dona, não o faz da maneira que esta pretenderia, uma vez que o
louvor repetido no refrão é “dona fea, velha e sandia!”, o que prova a ironia presente nesta cantiga.
• O refrão assinala, assim, o efeito cómico que se cria ao elogiar-se não uma dona bela, jovem e com bom senso,
habitualmente retratada nas cantigas de amor, mas antes uma mulher cuja imagem é extremamente negativa.

Marcas das cantigas de escárnio

• A crítica ao objeto de louvor – “dona fea, velha e sandia” –, evitando-se a identificação direta, aponta para o
escárnio e para a sátira.
• A linguagem rude identifica-se com a poesia satírica. Veja-se, a título de exemplo, a tripla adjetivação do
refrão: “fea, velha e sandia”.

Roi Queimado morreu com amor

Roi Queimado morreu com amor


em seus cantares, par Santa Maria,
por ˜ua dona que gram bem queria;
e por se meter por mais trobador,
porque lh’ela nom quis[o] bem fazer,
feze-s'el em seus cantares morrer;
mais ressurgiu depois ao tercer dia.

Esto fez el por ˜ua sa senhor


que quer gram bem; e mais vos en diria:
porque cuida que faz i maestria,
en’os cantares que fez há sabor
de morrer i e des i d'ar viver.
Esto faz el, que x’o pode fazer,
mais outr’homem per rem nõn’o faria.

E nom há já de sa morte pavor,


senom sa morte mais la temeria,
mais sabe bem, per sa sabedoria,
que viverá, des quando morto for;
e faz-[s’] em seu cantar morte prender,
des i ar vive: vedes que poder
que lhi Deus deu – mais quen’o cuidaria!

E se mi Deus a mi desse poder


qual hoj’el há, pois morrer, de viver, Graça Videira Lopes, Cantigas de Escárnio e
jamais [eu] morte nunca temeria. Maldizer dos Trovadores e Jograis Galego-
Pero Garcia Burgalês Portugueses, Editorial Estampa, 2002
(B 1380, V 988)
Glossário
v. 1 – Roi Queimado – poeta trovador que viveu nos reinados de D. Afonso III e de D. Dinis
v. 4 – por se meter por mais trobador – para se dar ares de grande trovador
v. 5 – nom quis[o] bem fazer – corresponder ao seu amor
v. 7 – mais – mas
v. 10 – faz i maestria – faz versos como mestre
v. 11 – há sabor – tem prazer
v. 12 – e des i d'ar viver – e desde então torna a viver
v. 14 – per rem – por coisa nenhuma; nõn’o – não o
v. 20 – des i ar vive – depois disso volta a viver
v. 21 – mais quen’o cuidaria – mais do que poderia supor
v. 23 – pois morrer, de viver – (o poder…) de, depois de morrer, viver

Caracterização temática

• Crítica direta e explícita a um poeta – Roi Queimado – que, nas suas composições e por causa do amor por uma
dona, anunciava a sua morte, embora continuasse a viver. Trata-se, por isso, de uma cantiga de maldizer, que põe a
ridículo o comportamento desse poeta, em particular.
• Crítica mordaz e irónica à morte de amor tão convencional das cantigas de amor:
› Roi Queimado afirmou nas suas cantigas que estava tão apaixonado por uma dona e que, por ela, morreu de amor;
› fez tudo isto para provar que era um trovador com grandes qualidades (“e por se meter por mais trobador”);
› no entanto, “ressuscitou” no terceiro dia (“mais ressurgiu depois ao tercer dia”).
• Recurso à ironia para satirizar o poder que Roi Queimado parece ter – morrer e depois viver: “mais ressurgiu depois
ao tercer dia” (alusão à ressurreição de Jesus Cristo). Aliás, na última estrofe, remate da cantiga (finda), o próprio
sujeito poético revela o desejo de também ele possuir esse poder.
• Por fim, podemos ainda considerar que os dotes poéticos de Roi Queimado são igualmente alvo de crítica, já que se
diz dele “por se meter por mais trobador” e “porque cuida que faz i maestria”.
• Esta cantiga demonstra o artificialismo dos trovadores e das convenções poéticas do amor cortês.

Marcas das cantigas de maldizer

• Voz masculina que manifesta a sua posição crítica perante o comportamento ridículo de um poeta específico (Roi
Queimado) e perante uma convenção – a morte por amor.
• Efeito cómico, obtido através das antíteses – “morrer” / “viver” (v. 12), “morrer” / “viver” (v. 23) e da ironia.

(1) Arte de Trovar do Cancioneiro da Biblioteca Nacional de Lisboa (introdução, edição crítica e fac-símile por
Giuseppe Tavani), Colibri, 2002

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