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APOLO

Encontros Mito e Mente


Ciclo Grandes Deuses

Por Renato Kress


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Encontros Mito e Mente, por Renato Kress


Módulo Segundo: Grandes Deuses

O que estudaremos aqui?


Os encontros Mito e Mente são um projeto cultural de encontros criativos onde
estudaremos e aprenderemos sobre arquétipos - “Puer, Grande Mãe, Grande Pai,
Senex etc” - através de imagens arquetípicas - Hermes, Deméter, Zeus, Gaia.
Aprenderemos em conjunto através dos mitos de Gaia, Deméter, Hera, Afrodite e
companhia sobre o arquétipo da “Grande Mãe”1 ou da Grande Deusa, como
preferimos.

O conhecimento dos arquétipos


Ao contrário do que se veicula em muitas leituras sobre as deusas das mais variadas
tradições religiosas, não existe um “arquétipo de Hera” como não existe um “arquétipo
de Ártemis” ou “arquétipo da Mulher Selvagem”. Hera, Afrodite, Ártemis, Atená, assim
como Lilith, Pele, Amaterasu e Sif são, a se respeitar a leitura atenta da psicologia
analítica de Carl Gustav Jung, imagens arquetípicas que servem como espelho
refletindo - cada uma delas de maneira parcial e através de suas lentes - diversas
partes do arquétipo da Grande Deusa.

Como Jung salientou ao longo de quase toda a sua obra, o arquétipo, em si, é
inapreensível em sua totalidade, sendo passível de ser compreendido, em partes,
através de suas manifestações culturais. Estudar cada uma das grandes deusas que
traremos em nossos encontros é estudar uma das potencialidades expressivas que
remetem ao arquétipo da Grande Deusa. Este sim é um arquétipo e, como todos os
demais arquétipos, não pode ser completamente abarcado pela experiência ou pela
consciência humana.

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Substituiremos, nessa obra, o já consagrado termo “grandes mães” pelo mais lógico e correto “grandes
deusas” já que, por óbvio, perceberemos que nem toda grande divindade se caracteriza pela
maternidade. Compreendemos ser esse um vício danoso da cultura ocidental cristã que associa o
sagrado feminino apenas ao binômio “virgindade - maternidade”, o que é semente de muitas violências
contra outras formas de ser e viver a feminilidade em sociedade. O presente trabalho, por exemplo, trata
de forma muito peculiar a divina maternidade de Hera, como veremos.
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Já que conhecer de fato, conceber diretamente, a “numinosidade” (essência) dos


arquétipos é impossível, cabe a nós manter uma busca constante de aprendizado
sobre essas imagens arquetípicas, sobre cada uma das deusas, e sobre seus
horizontes simbólicos. Mantermos a leitura e a interpretação do mito em aberto nos
serve não só para nos conhecermos mais e melhor como indivíduos, sociedade e
cultura, mas, principalmente para termos uma boa saúde mental. A cada vez que
interpretamos um mito damos, a nós mesmos, um panorama dos movimentos da nossa
energia psíquica. Debater um mito, fazer uma roda de conversa sobre sua história e
sobre as maneiras como vemos ele em nós é um dos mais eficientes
psicodiagnósticos.

A alquimia dos encontros


Aqui nos encontros Mito e Mente aprenderemos sobre os arquétipos e suas
implicações em nosso comportamento, mente, cultura e dramas pessoais e sociais
através de suas imagens arquetípicas. Vamos penetrar na sempre virgem floresta dos
arquétipos estudando as diferentes formas pelas quais ele se expressa em diferentes
deusas. Só assim poderemos alcançar partes complementares e sempre vívidas de
sua infinita riqueza e potencial expressivo.

O processo que faremos será a “circulambulação”, ou seja: vamos eleger um tema para
os nossos estudos e colocaremos ele no centro de uma roda, assim como uma modelo
posando para uma escultura ou um quadro. Cada um de nós, na roda, terá um ponto
de vista diferente sobre aquele “modelo”, sobre aquela história. A uns ele parecerá
mais alto a outros mais baixo, a uns distante ou próximo.

O importante é que nenhum de nós deve pretender ter uma visão definitiva e, se
quisermos realmente entender a profundidade e a densidade do conteúdo daquela
imagem arquetípica (daquele mito) deveremos sempre considerar as visões uns dos
outros como “pontos cegos”, complementares à nossa visão. Encontrar nossa sombra
no comentário do colega, nossa ânima ou ânimus nas conclusões apaixonantes do
grupo, é, sempre, lidar com a alteridade e, através dela, descobrirmos a nós mesmos.
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O primeiro arquétipo que estudaremos será o arquétipo que comumente se associa à


ideia de “Grande Mãe”, mas aqui chamaremos ele de arquétipo da “Grande Deusa”.
Por isso chamamos esse ciclo de encontros de “Grandes Deusas”. Por quê? Para
facilitar um pouco a compreensão, já que nem todas as deusas que trabalharemos aqui
foram mães, para início de conversa, e porque - ao contrário do que prega nossa
cultura fortemente influenciada por séculos de cristianismo - não são apenas a
virgindade e a maternidade que compunham, para a maioria dos povos e culturas
ancestrais da espécie humana, o sagrado feminino.

O feminino sagrado já foi plural e, compreendendo o volume de sofrimento psíquico


gerado por esse cerceamento da sacralidade feminina, traremos aqui o sagrado
feminino, a Grande Deusa em diversas formas, para percebermos ela através de suas
imagens arquetípicas, as Grandes Deusas. Assim deixaremos a maternidade sagrada,
com toda a sua pluralidade de formas e expressões, para deusas que de fato sejam
mães, de maneira simbólica ou literal.

Mais do que nunca é preciso resgatar a sacralidade e o respeito ao feminino para além
dos campos da virgindade e da maternidade. Não para negar a existência eterna e
irrefutável das grandes mães virgens da mitologia (são muitas!), mas principalmente
para dar vez e voz às demais realidades e expressões do feminino essencial. Para que,
sendo reconhecidas como diferentes potenciais narrativas do sagrado, sejam aceitas e
socialmente admitidas como caminhos de expressão e vivência do feminino dignas de
respeito e reverência.

Sobre a vida do mito


toda narrativa mitológica comporta múltiplas interpretações. Aliás, é na variedade das
interpretações possíveis que encontramos a riqueza e a vida do mito. Como Carl
Gustav Jung, Nise da Silveira, Mircea Eliade, Joseph Campbell, Karen Armstrong e
tantos outros autores que estudaremos aqui reforçaram ao longo de suas obras:
delimitar apenas uma interpretação para o mito é matar o símbolo. Definir um único
significado para um mito é tirar dele todo o seu potencial transformador, sua essência
criativa e divina!
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Então desde já acostume-se com a ideia de que algumas versões oficiais contradizem
outras versões também igualmente oficiais, com a ideia de que um herói mítico teve de
estar presente - e então esteve presente! - em um acontecimento simbólico que
ocorreu duzentos anos antes de seu nascimento! É raro que esses “erros de roteiro”
ocorram na mitologia, mas eventualmente eles ocorrem. Quando isso acontece,
sempre, há uma razão simbólica que se antepõe à razão cartesiana.

O que nos importa, no estudo dos mitos, não é a razão cartesiana, matemática, o
tempo cronológico. Importa-nos a razão simbólica, a razão dos sonhos, da nossa
criatividade e psique, uma razão mais ligada ao significado, ao tempo circular - quantos
natais você já viveu e reviveu, entende? - do que às comprovações matemáticas e
suas narrativas retilíneas e uniformes.

Mas, Renato, afinal o que é mito?


Aqui começamos nossa brincadeira. Essa é a primeira pergunta séria que se deve
fazer a alguém que estude ou manifesta interesse por esse conhecimento. O que é,
afinal, um mito? Um mito é uma mentira? Uma lenda? Uma tradição morta de um povo
antigo? Uma metáfora? Um político que quer instaurar uma ditadura nepotista e
criminosa num país democrático? Que diabos é mito?

Para responder a essa questão aparentemente tão simples e tão profunda - digna de
um “decifra-me ou devoro-te” da Esfinge para Édipo - vou enfatizar aqui rapidamente
três aspectos possíveis da leitura e interpretação do que é um mito: o trágico, o mágico
e o social. Vamos pôr à prova o “decifra-me” até onde nos for possível, já que, como já
dissemos antes, a pluralidade de leituras faz parte do estudo eterno da inalcançável
profundidade do mito, que ao fim passará a língua sobre as presas, cerrando as
pálpebras enquanto nos dirá “devoro-te”.

A palavra grega Mythos, raiz da palavra “mito”, significa “narrativa sagrada”. Não se
trata aqui de uma narrativa qualquer e sim da narrativa que explica, restaura e recria o
sentido da própria vida! Quando estudamos uma narrativa e não vemos nela um
exemplo ou um modelo que sirva de inspiração para uma nova leitura da nossa
realidade cotidiana, da nossa forma de lidar com outras pessoas, com as nossas
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certezas e impulsos íntimos, essa narrativa não é um mito. É uma história, não
um mito.

Interessante, não? Apenas começamos a arranhar a superfície da entrada da gruta


infinita da mitologia. Mito é o discurso que tem sentido porque nos dá sentido: como
referencial, como trajetória em uma jornada e como significado. Mas há muito mais do
que isso. O mito têm, também, seus aspectos trágico, mágico e social.

Segundo Karen Armstrong em Breve História do Mito, página oito: “O ser humano
distingue-se pela capacidade de ter pensamentos que transcendem sua experiência
cotidiana”, tanto quanto ser dotado de consciência do trágico, como observaram
Schopenhauer, Goethe e Nietzsche, quanto da sensibilidade do aspecto mágico da
existência, daquilo que chamamos de “transcendente” como observado em Thomas
Mann, Mircea Eliade e Claude Lévi-Strauss, e, também, de um certo ethos psico-social,
do qual nos fala Junito Brandão e Carl Gustav Jung. Essas são três possíveis
compreensões que trabalharemos quando pensarmos na palavra “mito” daqui em
diante.

Mas Renato, o que é esse “trágico” do mito?

Você vai morrer!

Sim, você que está lendo esse texto vai morrer! Mas, fique tranquilo! Afinal, é
contagioso e incurável. O incômodo com o qual lemos essa frase nos mostra o quanto
negamos essa obviedade. Erigimos uma cultura completamente baseada na negação
dessa grande verdade, mas a tragédia principal da vida é a nossa consciência da
finitude. Negaremos o quanto pudermos - desenvolvendo depressão, pânico e outras
psicopatologias no caminho - mas todos nós temos, escondido em algum canto da
consciência, a clara percepção de que algum dia, pelo motivo que for, todos nós não
estaremos mais aqui.

Como forma de amaciar o terreno baldio desse grande deserto para além da última
passagem, nós, a espécie humana, projetamos e especulamos sobre o que haverá
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então. O doloroso é que, para além de nossas possíveis vivências da fé ou certezas


biofísicas sobre os átomos, somos condenados a viver a mais absoluta incerteza sobre
o que virá depois do apagar do aparelho biológico que habitamos. Ser honesto nesse
ponto é admitir que todas as pseudo-certezas são muletas.

Essa é, em essência, a dimensão trágica do mito. O mito aparece como narrativa já no


paleolítico, como uma forma de discurso que procure dar à morte um significado.
Corpos foram enterrados em posições fetais no paleolítico e tudo o que nossos
arqueólogos conseguem imaginar sobre isso é que já naquela época o homem, sem
saber lidar direito com o limite da finitude humana, queria que ela representasse um
novo nascimento. Da mesma forma encontramos em vários locais do planeta corpos
que foram enterrados com o rosto virado para o leste, direção de onde o sol nasceria,
inaugurando o dia seguinte.

Como consciência do trágico e reflexão acerca do fascínio do evento inexorável da


morte, segundo Armstrong, o mito se coloca “no limite da vida humana”, num limbo
onde a característica mais forte é exatamente essa experiência liminar, onde nos
defrontamos com o imenso desconhecido, aquilo que está completamente fora das
nossas categorias de compreensão. Para lidar com isso criamos uma narrativa que
possa fazer uma ponte, uma mistura de imanência e iminência psíquica ou espiritual
que levarão a um novo estado de compreensão existencial e psíquico.

A função do mito

A função do mito, nesse contexto trágico e existencial, é gerar uma espécie de


transmutação holística da consciência que operaria como um auxílio para lidar com as
dificuldades existenciais específicas da nossa espécie humana. O homem paleolítico
via o corpo de seu familiar e de seu amigo esfriar, paralisar, apodrecer. Era preciso lidar
com essa realidade e com os impactos psíquicos e emocionais da falta de alguma
forma. Criar - e acreditar - numa história sobre o que virá após a morte nos ajuda a dar
um sentido - como trajetória e como significado - para a incerta jornada da vida.

Quantas vezes eu vou viver um tema mitológico na vida?


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O psicólogo Carl gustav Jung percebeu, analisando os sonhos de pacientes idosos,


que a capacidade da psique de simbolizar e metaforizar os movimentos e
transformações da energia psíquica não pára na fase final da vida. Era como se a
psique não percebesse ou não se importasse com o iminente fim da vida e continuasse
fornecendo pistas para lidarmos com as questões do cotidiano, eternamente.

Então talvez a questão correta seria “quantas vezes nós reconheceremos a repetição
de um padrão de comportamento ou pensamento a ponto de saber responder
criativamente a ele, a ponto de dar um sentido a ele numa trajetória mais ampla da
nossa vida?”. Aí sim começaríamos de fato a vivência profunda e transformadora da
relação com os arquétipos e das suas atuações dentro da nossa vida. Outra das
famosas conclusões a que Jung chegou ao longo de suas investigações sobre a
natureza da vida psíquica da espécie humana foi a de que o que não reconhecemos
em nós mesmos tendemos a projetar na vida (e no outro) e encontrar como destino.

Nesse sentido o papel do mito é operar como um eterno retorno de si mesmo, só que
de diferentes formas através das quais aprendemos diferentes coisas sobre nós
mesmos e nossa relação com o mundo, o outro e, principalmente, conosco.

Por seu caráter de “eterno retorno”, o mito parece atemporal e eternamente


compreensível e identificável, tornando-se um poderoso fármakon (remédio) para os
dilemas e questões humanas. Por isso o lema dos nossos encontros: Quem sabe mito
se sabe mais!

Mas o que faz de uma narrativa um mito?

O mito é, também, uma explicação para o mistério, uma ponte para aquilo que - ainda
que leiamos todos os livros e conheçamos todas as religiões e filosofias - jamais
poderemos abarcar através de certezas. Uma explicação para aquilo que transcende e
engole todas as certezas. Para a mitóloga Karen Armstrong, o mito nasceria
justamente por esse contato inicial com a experiência trágica da morte.
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Neste sentido a pesquisa dos túmulos dos homens de Neandertal, oriundos do


paleolítico, complementa sua tese e determina cinco aspectos importantes do discurso
mitológicos:
1. Todo mito se baseia na experiência da morte e no medo da extinção;
2. A mitologia seria, em geral, inseparável do ritual a que fornece e do qual retira seu
significado;
3. A força da experiência do extremo, já que os mitos mais poderosos se relacionam
com o extremo, com “situações limite” da vida humana ou da ordem social
estabelecida, tratando, muitas vezes, por isso mesmo, do desconhecido. Não à toa
Dioniso é o filho que é escolhido para substituir Zeus, mas essa é uma outra história,
para outro momento.
4. O mito nos serve como um manual de condutas sociais, psíquicas, éticas e
culturais. Muitas narrativas míticas servem como uma pedagogia lúcida e lúdica sobre
assuntos humanos.
5. Toda mitologia fala de um plano que existe paralelamente ao nosso mundo e que
forma uma espécie de “infra (ou super) estrutura” que ordena o nosso mundo. Seja o
“mundo das ideias” Platônico ou o Alcheringa australiano, ele exprime uma realidade
que influencia e dota de sentido a nossa realidade.

Como podemos perceber, essas cinco características são interconectadas e


intercambiantes, influenciando umas às outras reciprocamente. Essa crença na
existência dessa realidade invisível que estrutura a nossa realidade (como o “Plano
Espiritual” para os Kardecistas ou a roda do Samsara para os Budistas) tem sido
chamada de “Filosofia Perene”, pois alimentou a organização mitológica, social e ritual
de todas as sociedades até o advento da modernidade científica.

A ideia base é a de que o conhecimento mitológico (o conhecer das narrativas


sagradas) permite que o sujeito conhecedor desses mitos acesse uma parcela de
divindade que lhe fornecerá um determinado atributo, força ou destemor, fornecendo
uma visão holística do universo, da cultura, leis ou sendo o veículo de uma
transfiguração da consciência, na medida em que “pareciam (...) erguer homens e
mulheres a um plano diferente da existência, de modo que passavam a ver o mundo
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com novos olhos”2, os mitos são discursos simbólicos que configuram estruturas
psíquicas, sociais e culturais.

Conhecer essas narrativas do sagrado (mythos) nos ajuda a “sintonizar” áreas


diferentes da nossa psique e a pensar “como se” fôssemos aquele padrão de
pensamento específico da divindade ou do herói X ou Y. Isso ajuda demais a entender
e dialogar com outras pessoas, criar personagens mais intensos e realistas em obras
literárias, teatrais, roteiros etc. O mito nos ajuda a compreender o que há de particular
e universal em nós!

O Aspecto Mágico

Como sensibilidade do mágico, da transcendência, o mito reproduz comportamentos,


características, eventos ou intimidades da vida dos deuses que existiriam em uma
dimensão mais rica, forte e duradoura que a nossa, dando forma e aparência à nossa
intuição, sociedades, crenças, instintos.

Antes mesmo de constituir uma norma social, o mito é vivido como um mergulho na
experiência do sagrado. “Mergulho” porque é na experiência ritual do mito - que se
deforma e perde o sentido de segredo-sagrado que o constitui se executado fora do
seu contexto ritualístico - que o xamã ou mistagogo inicia o neófito ou permite à sua
sociètas banhar-se na mesma espécie de energia fluídica primordial de que são
constituídas essas divindades, experimentar a divindade, tornar-se uno com
determinada imagem arquetípica constituinte da psique ou com qualquer força
primordial que o possibilite obter êxito em uma tarefa da qual depende, em última
instância, sua sobrevivência e a de seus pares.

O mito permite retornar ao tempo primordial e banhar-se da energia criadora


abundante da primeira caçada, da primeira formação de cidade, do primeiro
navio, o primeiro nascimento, dos modelos universais da criação. É essa
potência criadora, abundante no mito, que nos excita, fascina e seduz para

2
Armstrong, Karen. Breve História do Mito. Companhia das letras.
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conhecê-lo. Conhecer o mito é, também, se apropriar da potência do divino e do


terror do profano.

Segundo Mircea Eliade3, o mito não é “uma etapa na história do pensamento humano”,
mas uma categoria de pensamento que ocorre simultaneamente na
contemporaneidade. É importante que tenhamos em mente que a forma primária de
comunicação do nosso inconsciente com a nossa consciência é a forma simbólica
exercida através da linguagem mitológica! Isso se expressa nos sonhos, por exemplo,
para ficarmos no caminho mais simples e inevitável dessa relação e dessa
comunicação.

Se não considerarmos essa função primária do mito, esse caráter universal -


arquetípico - podemos cair no erro de, inflados pela pretensão racional típica do
ocidente, julgarmos o mito sob o rótulo de “selvagem” e querer substituí-lo pelos
valores em voga dentro deste ou daquele processo de “civilização” atuais. As
estruturas de que falam os mitos estão e estarão presentes em quaisquer culturas: a
maternidade, a vergonha, o ódio, a camaradagem, o enamoramento, a perda, a traição,
a reconciliação etc. Por isso as culturas passam, mas os arquétipos nos quais se
baseiam os “roteiros” mitológicos e os seus mitologemas permanecem.

O mito é um padrão de socialização, de aprendizagem da vida em sociedade, ele não é


um padrão específico de sociedade. Ou seja: mito não é o discurso ultrapassado de
uma sociedade passada que não conhecia a “ciência”, mito é o discurso que
preenche de significado a cultura de uma sociedade. A mitologia, o
conhecimento (“logos”, logia) da narrativa sagrada (“Mythos”), evolui e
transforma-se conosco. Quem quer entender o mistério da nossa vida
contemporânea não pode deixar de entender, pelo menos um pouco, da narrativa
sagrada e hermética (fechada) da economia de Mercado, por exemplo. E acreditem, o
Mercado de Ações é um mundo mitológico movido à base de crenças! Por sinal, a
origem da palavra “crédito” (do latim credere) é essa: crença. E pergunte a qualquer
economista se a economia pode viver sem crédito (sem crença!).

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Historiador Romeno das Religiões e um dos maiores estudiosos de mitos e sistemas de crenças no
mundo.
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A mitologia de uma cultura é reformulada e remanejada por sacerdotes ou novas


crenças, ela não é “pura” e “casta”, mas sobrevive como dínamo, se transforma e
enriquece ao longo dos tempos, por contato com diversas culturas ou quando encontra
aqueles raros indivíduos excepcionalmente bem dotados que nos revelam uma faísca
do incêndio para além das aparências do cotidiano, como Cristo, Buda, Krishna,
Lao-Tsé etc.

O estudo do mito “in loco” (no seu lugar de origem), “in natura”, em sociedades em que
a função do mito ainda pode ser minuciosamente observada e descrita pelos etnólogos
permite situar o mito em seu contexto sócio-religioso original. Mas eu confesso, entre
nós, aqui, que duvido que não aprenderíamos muito sobre mitos observando, por
exemplo, como os sacerdotes do “Deus Mercado” explicam - em suas manifestações
entre vídeos do youtube ou nas digressões patrocinadas na televisão - sobre a
natureza incerta e duvidosa das ações intempestivas desse “deus” punidor que exige
novos e novos ajustes e flexibilidade e austeridade e obediência cega sobre obediência
cega, novos e novos “sacrifícios” para que essa entidade abstrata a “economia
(financeira)” continue “crescendo”.

Definições possíveis

Eliade define mito de uma forma bem aberta: “O mito é uma realidade cultural
extremamente complexa, que pode ser abordada e interpretada através de
perspectivas múltiplas e complementares.” Ajudou? Não? Então vamos tratar isso nos
nossos encontros. Por hora ficamos com a ideia de que os mitos descrevem as
diversas, e às vezes dramáticas, irrupções do sagrado no mundo. É essa irrupção do
sagrado que realmente fundamenta o mundo e o converte no que é hoje.

Diante da consciência do trágico - vamos todos morrer e não há o que possamos fazer
contra isso - da certeza da condição de mortalidade e do húmus (“terra”, “homem”)
constituinte do ser humano, encontramos também a dimensão pessoal e existencial do
mito. Todos nós, ao longo de nossas vidas, teremos de lidar com perdas: a perda da
inocência, dos parentes, amigos, certezas, valores, posturas, amores. Nesse sentido
empreendemos a catábase (Katávassis) - a “descida às trevas” - onde o encontro com
a “fera interior”, sua morte e aceitação ou incorporação dentro da “jornada do herói”,
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efetiva a nossa catarse (kátharsis, “purificação”), o primeiro passo para a segunda fase,
a transcendência do estado anterior pela assimilação do posterior na anágnossis
(leitura, interptretação), no “tornar-se mestre do próprio destino” ou, para alguns poucos
escolhidos, como Herácles, Psique e Buda, a apothéossis - tornar-se uno com os
deuses. Aí, nesse trecho acima, temos a “função simbólica” no contexto psicossocial do
mito em Lévi-Strauss, a “jornada do Herói” de Campbell e o “processo de individuação”
de Jung.

O Social
Na formação do ethos psico-social temos o mito como elemento estruturador de uma
cultura. Como uma espécie de cadeia genética de uma civilização, o mito atua fiando e
fortificando o tecido social, criando relações de sociabilidade e estabelecendo desde
relações de parentesco até os códigos legais que regem uma determinada sociedade,
passando pelas brincadeiras infantis, modos de cozer alimentos, cortar ou pentear
cabelos, marcar o corpo, rituais de passagem e de iniciação em determinados mistérios
na vida adulta ou no fim da vida.

O mito é o tecido narrativo da vida em sociedade. As histórias que, em conjunto, nos


dizem que pertencemos ao mesmo bando, clã, grupo, tribo, cidade, país ou planeta. É
a leitura social do universo, leitura que, em seu caráter oral, permite releituras que
reestruturam esse mesmo universo. Numa identificação antropológica estrita seria
impossível compreender uma sociedade e uma cultura à parte de sua mitologia, das
suas narrativas sagradas.

Uma sociedade sem um fio condutor de sua narrativa de sentido, sem mythos, fica
confusa, perdida, desestabilizada e desesperada. Perde a direção e o significado,
perde sua herança e raízes.

O mito como Constelação Sistêmica


O mito é um fenômeno humano eminentemente verbal, discursivo, não cabendo sua
plenitude viva e transmutável em simulacros como expressões artísticas ou a palavra
escrita. “O mito escrito está para a o mito ‘em função’ como a fotografia está para a
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pessoa viva”, escrevia o mestre Junito Brandão4. Nasceu para ser livre, para ser a
essência do discurso numa função dupla - digna do adjetivo “mítica” - que existe em si
de forma cronológica e dotado de uma unicidade e tempo vital, já que é contado no
tempo do ritual, e, simultaneamente, existe como universal, como essencial, na medida
em que o próprio ritual constitui uma suspensão deste mesmo tempo cronológico e um
retorno às origens.

Criando e sendo criado por essa leitura, o mito atua num processo de retroalimentação
que cria, recria, legitima ou destrói determinada realidade, seja ela psíquica,
existencial, cultural, mística, judicial-legal, afetiva ou filosófica. O mito existe e atua
constelando, arquitetando, toda a existência consciente, inconsciente, cultural social,
jurídica, de forma sistêmica. O mito é a tessitura da realidade.

Como exemplo podemos tomar o campo da psicologia analítica e perceber como o


Self, o centro estruturador da psique, atua equilibrando nossa unilateralidade da
consciência por meio da ativação de arquétipos - cuja forma apreensível para a
experiência humana se dá através das inúmeras imagens arquetípicas, que se referem
direta ou indiretamente aos arquétipos em si. Essas imagens arquetípicas são os mitos,
que atuam, cada qual em seu núcleo temático - o mitema - de forma a equilibrar as
tendências da consciência e do inconsciente.

Num exemplo simples e direto: Yahvéh, Adonai, Indra, Zeus, Posídon, Odin são
imagens arquetípicas que fazem referência - e dão diferentes panoramas simbólicos -
da dinâmica maior do arquétipo do “Grande Pai”. Nenhum deles é, em si, o “arquétipo
do Grande Pai”, apenas imagens arquetípicas, figuras literárias dotadas de uma
parcela possível da energia presente no Arquétipo do Grande Pai que, em sua
totalidade, é inapreensível à alma humana. Estudar mitos é se aproximar
constantemente de um maior entendimento das bases da estrutura da experiência
psíquica que faz de nós o que somos como espécie.

Exercendo suas energias de caráter “urobórico”, Eliade nos propõe “a principal função
do mito consiste em revelar os modelos exemplares de todos os ritos e atividades
humanas significativas: tanto a alimentação ou o casamento, quanto o trabalho, a

4
Brandão, Junito. Mitologia Grega Volume I, ed. Vozes, Petrópolis.
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educação, a arte ou a sabedoria”. O próprio ato de identificar e recortar “o que é mito”


em algumas poucas páginas é defini-lo pelo que não é, pelo que inevitavelmente faltará
a essas páginas, por isso a charada mítica, por isso e mesmo por Jonas ou Pinóquio
na barriga da baleia: Devora-me!

Por Renato Kress


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Hino Homérico a Apolo

Vem, Febo, feliz Peã, Licoreu, Matador de Títio,


Menfita, daimoso, santo, saudado com o grito hierático,
Pítio, senhor da áurea Lira, Titã, seminal e agrário,
Grínio, délfico, esminteu, matador de Píton, profeta,
argênteo, dador de luz, amável, mancebo ilustre,
Fere-Longe, sagitário, ó musageta e corega,
Brânquio, sacro, Didimeu, Loxias, que longe alcanças,
délio dos olhos de luz, que tudo vês, soberano,
aurícomo, a revelar puros preceitos e oragos,
Ouve benévolo a prece que faço em nome dos povos,
tu que tudo vês do alto, no éter ilimitado
e sobre a Terra ditosa, assim como no profundo
da noite, na escuridão por estrelas ocelada
em que enxerga as raízes e os lindes do mundo inteiro
como princípio que és e fim de todas as coisas.
Músico todo virente, com a multissonora cítara
fazes do mundo a harmonia, quer toques nos tons mais graves,
quer nos agudos, ou mistos ambos no dório,
assim fazes variar o céu e as espécies vivas,
temperas com harmonia a sorte comum dos homens
juntas inverno e verão em partes que se equilibram
nos tons agudos o inverno, nos graves tons o verão,
e amável a primavera nos tocas no dório modo.
Os humanos te atribuem o cognome de Pan
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- O régio nume bicorne, deus dos ventos sibilantes -


porquanto os selos deténs das várias formas do cosmo.
A voz escuta, ditoso, do mista – e acorre a salvá-lo.

APOLO

Leto na Ilha de Delos


Delos, ilha sagrada do arquipélago das Cíclades, não estava no local onde atualmente
se encontra. Era uma ilha flutuante, vagando incessantemente pelos mares. Um certo
dia uma linda deusa, com terror e agonia estampados no rosto, pôs os pés naquela
ilha. Era a deusa Leto e trazia no ventre dois filhos de Zeus, Ártemis e Apolo.
Amaldiçoada por Hera – a legítima esposa de Zeus –, que pediu à deusa Gaia, a Terra,
que não desse abrigo para Leto, a fim de que não conseguisse dar à luz aos frutos do
adultério de seu marido, a mãe dos gêmeos sagrados estava impossibilitada de dar à
luz em qualquer terra que se ligasse a Gaia. Não satisfeita com essa punição, Leto
também era perseguida por uma monstruosa serpente denominada Píton, que Hera
havia enviado atrás de Leto para não deixar que permanecesse tempo o suficiente para
dar à luz em lugar nenhum.
Dessa forma Leto chega a Delos, desesperada, cansada, esgotada. A qualidade de ilha
flutuante - em algumas tradições criada especialmente por Posídon, deus dos mares e
tio de Apolo e Ártemis - de ser um espaço de terra não ligado a Gaia, fazia com que a
ilha de Delos, ao contrário dos territórios da Ática e Trácia e das ilhas de Lesbos e
Quios, por onde a deusa passara anteriormente, pudesse guarnecê-la e escondê-la de
Píton para que desse à luz a seus gêmeos divinos.
Percebemos aí um complô de Gaia com Hera, duas deusas da terra, para evitar o
nascimento de uma nova ordem, de Leto, uma deusa dos céus que vem do Oriente e
torna-se amante de Zeus. Todo esse ponto já prenuncia nossa leitura da jornada
heróica de Apolo, que trataremos a seguir. O que importa vermos agora é: parte
importante da ordem estabelecida (Hera, Gaia) não quer ver o nascimento da ordem
nova. Ou, conforme vimos no nosso capítulo sobre Hera, quer que essa ordem nova
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prove sua força, determinação e comprometimento em vir à luz. Ambos são aspectos
possíveis na interpretação do símbolo.
Há versões que contam que a ilha flutuante se chamava Ortígia, ou Astéria, e que,
consentindo que a infeliz Leto pudesse dar à luz a seus filhos, recebeu, depois de
todos os dois partos, o nome de Delos, dado por Apolo que, também, fixou a ilha,
fazendo dela um dos centros do mundo.
O ato de fixar uma ilha móvel é simbolicamente assemelhado à ideia de coagular na
alquimia. Através dela vemos a criação de “raízes” terrenas que vão coligar aquele
espaço de terra à grande mãe Gaia, conectando com a matéria, todas as referências
estão apontando para o simbolismo do parto enquanto realização, tornar real, físico,
palpável, manifestar no mundo.

“A ilha é, assim, um mundo em miniatura, uma imagem do cosmo completa e perfeita,


pois que apresenta um valor sacral concentrado. A noção se aproxima, sob esse
aspecto, das noções de templo e de santuário. A ilha é simbolicamente um lugar de
eleição, de silêncio e de paz, em meio à ignorância e à agitação do mundo profano.” -
Verbete Ilha, Dicionário de Símbolos, Jean Chevalier e Allain Gheerbrant.

O nascimento de Apolo
Diante da promessa de Leto de que seu filho construiria um magnífico templo em
homenagem e gratidão à ilha que ousou opor-se à vontade de Hera compadecendo-se
de uma mãe que sofria inúmeras dores num eterno e infindável trabalho de parto, duas
pedras monstruosas irromperam do fundo do mar e sobre elas apoiou-se a ilha. Dessa
forma Delos estabilizou-se e acolheu Leto.
Podemos pensar na maneira como conteúdos do inconsciente emergem e dão
sustentação para que outros conteúdos possam se assentar e desenvolver no campo
da consciência, que fica, imageticamente, acima das ondas do mar, eterno
representante da dinâmica móvel e inconstante do inconsciente.

O colar
De imediato muitas deusas vieram auxiliar Leto no trabalho de parto. Menos a deusa
Hera, que, ao tomar conhecimento de que Leto havia encontrado leito onde dar à luz,
havia pedido à sua filha Ilítia, deusa do parto, que cruzasse suas pernas, a fim de que o
parto não pudesse se realizar.
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Por nove dias e nove noites fortes dores atormentaram a poderosa deusa. As deusas
que acompanhavam Leto montaram um estratagema para que o parto pudesse ser
realizado. Para tanto enviaram Íris, a mensageira divina, ao Olimpo para que trouxesse
Ilítia sem o consentimento de Hera, prometendo-lhe uma grinalda com fios de ouro
entrelaçados, de três metros de diâmetro. Tudo criado por Hefesto, o deus das forjas e
dos metais. Hefesto teria ido até a ilha de Delos e cortado parte do cabelo de Leto.
Esse cabelo foi colocado dentro de uma pedra de âmbar e costurado com fios de ouro
para formar o colar que Ilítia receberia.
Junito Brandão conta que o presente enviado pelas deusas teria sido para Hera: um
colar de âmbar, com fios de ouro entrelaçados, também com três metros de diâmetro.
Essa jóia teria a função de quebrar a resistência da grande senhora do Olimpo. Hera
mantinha Ilítia sentada com as pernas cruzadas, para impedir a circulação de energia
que traria o nascimento do novo. A energia, mana, prana, ki, estava condensada,
tensa.

“De modo geral, o colar simboliza o elo entre aquele ou aquela que o traz e aquele ou
aquela que o ofertou ou impôs. Nessa qualidade liga, obriga, se reveste, por vezes de
uma significação erótica. Num sentido cósmico e psíquico, o colar simboliza a redução
do múltiplo ao uno, a tendência a pôr cada coisa em seu devido lugar e em ordem uma
diversidade qualquer mais ou menos caótica.” - Verbete Colar, in Dicionário dos
Símbolos de Jean Chevalier e Allain Gheerbrant.

Colocar as contas em um fio equivale a colocar em ordem, estruturar e estabelecer


uma ordem para aquilo que estava fora do fluxo - talvez e principalmente do fluxo do
tempo. Se considerarmos Leto, teremos o tempo da gravidez e o tempo do parto que,
como todos os demais fluxos envolvidos no processo natural da vida, precisam do seu
próprio tempo e não podem ser paralisados ou retroceder. O colar, nesse sentido, pode
ser também um lembrete das deusas e de Hefesto, a Hera, de que a vida tem suas
necessidades, que precisam ser respeitadas.

Resistência e consentimento
Como nos sentimos quando tudo na nossa vida deseja mudar de rumo e, ainda assim,
por medo, incerteza, insegurança ou mesmo comodismo, lutamos com unhas e dentes
contra as manifestações óbvias e constantes do que está para nascer em nós?
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Percebemos a luta do sistema pela adaptação e sobrevivência? Ou insistimos no


colapso? Hera consentiu no nascimento.

Nascendo à luz do dia


Quando na décima noite ela deu à luz a seus dois filhos, na hora mais negra da noite,
justamente aquela que antecede o nascer do dia, nasceu sua primeira filha, a mais
velha, Ártemis, deusa da Lua, das feras e dos animais selvagens, do que Thomas
Hobbes chamou de “estado de natureza”. E essa pequena deusa foi a deusa parteira
de seu irmão. Percebendo as dores e o desespero da mãe para conseguir dar à luz no
parto complicado de Apolo, Ártemis ficou ali, auxiliando como pôde, temendo pela vida
da mãe e do irmão. Então a escuridão noturna aprofundou-se totalmente nos gritos da
deusa, um arfar suado e gemido nas trevas que precederam o luminoso dia. O Sol
(deus Hélio) surgiu majestoso no céu, lançando em direção à ilha seus raios de ouro.
Não podia ser diferente uma vez que havia nascido o deus da luz, Apolo de cabelos
dourados e sua irmã Ártemis, a deusa da noite enluarada.
No momento em que o deus nasceu, nas primeiras horas do dia, voaram sobre a ilha
cisnes sagrados, dando a volta sete vezes, pois estava no sétimo dia do mês. O cisne,
em geral está associado tanto às ideias de pureza quanto da morte, já que o seu canto
popularizou-se como um presságio da chegada de Thanatos. Segundo o estudioso de
mitologia hindu Heinrich Zimmer, o cisne é a “máscara animal do princípio criador”.
Como um dos animais sagrados de Apolo - além do lobo e do falcão, como veremos -
ele nos traz as facetas de pureza e morte ligadas a essa divindade.

Apresentado ao pai
Apolo tinha apenas quatro dias de vida e já era uma criança robusta, cheia de poderes
divinos. Recebeu de seu pai, Zeus, um arco, uma lira de ouro, um carro puxado por
cisnes, assim como repetiu os mesmos presentes para sua irmã, Ártemis. Todos os
presentes eram obra de seu irmão, o deus Hefesto, deus do fogo e das forjas. Seu
novo arco de ouro (algumas interpretações o colocam de prata) incentivou o jovem
deus a iniciar uma caçada ao monstro Píton, que atormentara sua mãe durante a
penosa busca por um solo para pari-lo.

Apolo caça Píton


Num instante Apolo voou ao monte Parnaso, onde o odioso monstro tinha seu covil.
Até então ninguém ousara de indispor contra Píton, que espalhava por toda parte
desgraças extraordinárias. Nos locais onde arrastava seu corpo de serpente a terra e
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seus frutos apodreciam e uma imundície se esparramava em tudo o que havia ao


redor, enquanto os homens morriam assim que se deparavam com seu horroroso
semblante. Píton era uma serpente alada - aquilo que outras mitologias entenderiam
como um dragão - e, na sua faceta sombria, tinha aquela nossa velha característica
simbólica da Medusa. Dentro desse ponto de vista, a serpente poderia simbolizar o
terror da fixação afetiva e intelectual nos conteúdos obscuros do inconsciente.
Nas narrativas heróicas é através do reforço do desafio proporcionado pelo “vilão” que
o herói, por contraste, adquire sua grandiosidade. Então, para que vejamos Apolo
como grande protetor e herói civilizador, teremos uma Píton inversamente perigosa e
maléfica. A mesma leitura pode ser invertida sem perder nada da realidade do símbolo.
Píton pode muito bem ser vista como uma protetora da velha ordem que foi
assassinada por Apolo enquanto herói-civiliador - ou vilão colonizador - que vai trazer a
nova ordem. Precisamos estar atentos à polissemia eterna dos símbolos e às
mensagens plurais dos mitos que, ao serem interpretados por nós, trarão muito mais
um diagnóstico sobre o nosso posicionamento e as nossas dinâmicas internas, do que
sobre o mito em si. A estrutura polissêmica do texto mitológico garante que todas as
nossa certezas absolutas e indiscutíveis sobre o mito nada mais são do que
expressões fieis e certeiras dos nossos preconceitos e dos nossos juízos de valores
projetados sobre eles.
Essa terrível serpente, ao perceber que alguém ousara se medir consigo, saiu do covil
escuro e seu corpo monstruoso escorregou por entre as rochas, à procura do inimigo.
Tão logo viu que tinha diante de si o filho de Leto, ficou enlouquecida de cólera e sua
boca viscosa espumava ódio. Píton ergueu-se, colossal, bem à frente de Apolo, como
se, com seu volumoso corpo, desejasse ridicularizar a coragem e ousadia do deus
menino.
Conta-se também - versão de Karl Kerényi - que Píton também era chamada de Delfine
e que estava ali, em Delfos, como protetora de um velho oráculo destinado à deusa
Têmis, a deusa da justiça natural, ou justiça da lei da natureza, onde vence e prevalece
o mais forte, o mais astuto ou o mais jovem. Mas Píton estava devastando a região ao
invés de cuidar do oráculo, sujando a água das nascentes dos rios e poluindo os afetos
da região, devastando a planície de Crissa e assustando as Ninfas. Nesse ponto de
vista, veremos Apolo como um grande deus purificador.

Enfrentando a fera
A questão da busca por esse enfrentamento da fera interior, do ser umbralino, sombrio,
indefinido e pantanoso representa uma katábasis – palavra grega que significa ‘descida
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às trevas’ – realizada por Apolo, um momento em que o deus confronta o


desconhecido que já existia e influenciava antes mesmo de seu nascimento e que
agora estava sendo posto em xeque. De certa forma a serpente Píton pode significar
um lado obscuro da própria Leto, um lado que não queria os filhos, que queria
mantê-los como uma parte de si mesma, eternamente “em trabalho de parto”. Claro
que será ridículo literalizarmos a metáfora, pensando em alguém eternamente parindo,
mas quando consideramos o mito enquanto linguagem simbólica, vemos aí aquela
potência de repressão da criatividade ou também aquele sentimento de posse sobre as
nossas criações. O mito é, sempre, para nós, aquilo que interpretamos, porque o que
interpretamos é o que vemos e o que vemos fala das lentes com que olhamos o
mundo.
Para que Apolo pudesse nascer essa Píton, essa ‘mãe serpente’ teve de ser destruída.
Já veremos como o grego coloca esse ‘desconhecido familiar’ em xeque.

Variações sobre a origem de Apolo


As opiniões acerca da origem deste deus divergem bastante: há quem lhe dê por berço
a Ásia, fazendo dele, primitivamente, uma divindade Hitita (os Hititas eram a raça do
povo da cidade de Ílion, ou Tróia); outros o dizem um deus da Lícia; outros ainda, como
Robert Graves, consideram-no uma divindade nórdica ou britânica. A própria Ilíada
apresenta-o como aliado dos troianos (asiáticos), o que a princípio parece muito
estranho, visto tratar-se do deus grego por excelência. Somente as mais recentes
tradições gregas contam que Apolo, filho de Zeus e de Leto (identificada com a noite e
também denominada ‘Latona’) é irmão gêmeo de Ártemis, pertencendo à segunda
geração dos Olímpicos.
Confesso que, a meu ver, mais importa observar os movimentos que o mito faz - de
afastamento ou aproximação - ao longo do tempo e dos lugares que ocupa. Isso vai
nos mobilizando a olhar a divindade - e a narrativa sobre a divindade - como um
dínamo, um caminho, fluxo da narrativa que fala tanto do leito quanto das margens
dela. Assim, creio, é mais rico ver o mito.

Apolo mata Píton


Mais rápido que um raio, Apolo atirou sobre Píton uma única flecha. Acertou-o bem no
meio da testa. Um urro terrível encheu os barrancos das montanhas e o horrendo
monstro, fatalmente ferido, ia batendo nas rochas e encostas do Parnaso. Seu corpo
monstruoso se enrolava e desenrolava desesperado de dor e, num dado instante,
arremeteu-se imenso para o alto e, antes que pudesse alcançar Apolo, caiu de novo,
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enrolando-se como um caracol exatamente sobre o umbigo de Gaia, o local conhecido


como Ônfalos, ou o centro do mundo. Caiu para não mais levantar.
A imagem de Apolo como um deus da luz que ostenta uma certa frieza em ação, um
certo ‘sangue-frio’ e objetividade, destaca um lado mais sombrio, mais simbolicamente
‘lunar’ do deus. A princípio, ao menos para Homero, Apolo seria uma divindade
noturna, como veremos adiante em ‘O Apolo simbólico’.

Os jogos píticos e o trípode


Para honrar a morte de Píton e se livrar do miasma por ter assassinado uma criatura
sagrada, Apolo inaugura os jogos píticos, que são celebrados em Delfos. O oráculo,
que alguns autores diziam pertencer a Gaia e outros à deusa Têmis, foi tomado por
Apolo que consagrou o santuário a si mesmo e colocou ali uma trípode. A trípode é
uma banqueta com três pés que, segundo David Caparelli, em sua Enciclopedia
Esotérica, representaria, para os gregos homéricos, o Caos, as divindades (theói) e a
Ordem (Cosmos), é um símbolo da totalidade imanente. Representa o masculino, o
feminino e a ambiguidade ou neutralidade, o presente, o passado e o futuro, as
oposições (dois pontos) e a possibilidade de convergência (terceiro ponto) ou o ponto
primário cuja energia se subdivide em outros dois, o feminino e o masculino, positivo e
negativo, ativo e reativo etc. A pessoa, sobre o trípode representaria o quarto elemento,
a quarta potencialidade, a transcendência para além da oposição e da união. Em
termos junguianos podemos falar de função transcendente.

Apolo canta o Peã


Cheio de alegria por sua grande vitória, Apolo apanhou o amado instrumento, a lira
dourada, e começou a cantar o Peã da vitória. Através de Homero e sobretudo no Hino
Homérico a Apolo, conhecemos o peã como sendo formado por um proêmio do solista
e um clamor ritual do coro com base no grito ié paián. O peã era um hino cantado por
homens, caracterizado pelo estribilho ié paián e variantes do mesmo. Trata-se de um
grito ritual sem sentido – ou cujo sentido originário esteja perdido ao longo do tempo –
e que somente depois foi interpretado como sendo um deus ou uma invocação a um
deus. O lançamento do grito ritual era interpretado como uma invocação a Apolo.
O peã era cantado com várias intenções: para pedir a salvação por ocasião de uma
peste, para festejar um casamento ou em uma simples cerimônia de comemoração
pela vinda do deus Apolo (Hino agora acompanhado de um outro triunfo – e este não
era nada além de uma canção. O triunfo de uma grande façanha era a Apolo); mas
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muitas vezes, como na Ilíada, era também cantando antes da batalha ou depois de um
triunfo, em sinal de agradecimento.

A música como conexão


Pela primeira vez no universo ouviu-se uma canção tão magnífica. Pelos seus versos e
pela melodia fazia desaparecer todo o contraste entre a luta selvagem e a paz, entre a
destruição e a criação, entre a morte e a vida. Era uma canção que abalava com sua
força e beleza. Uma canção que fazia o universo ficar mudo e os homens, que tanto
padeceram por causa de Píton, arrepiaram-se de emoção, com lágrimas de alegria a
lhes encher os olhos.
Quando Apolo terminou seu peã, um barulho espalhou-se por toda a parte. Era o
barulho dos gritos e urros de júbilo dos homens ao ouvir aquele hino triunfal. É com
justiça que, desde então, Apolo é também incontestavelmente o deus da música.

Música, Mosaico, Musas


Entre os gregos geralmente se atribui a invenção da música a Apolo, depois a Cadmo,
então a Orfeu e então a Anfião. Entre os egípcios a Tot ou Osiris, entre os hindus a
Brahma, entre os judeus a Jubal etc. Os historiadores da ciência musical louvam
Pitágoras, que inventou um monocórdio para determinar matematicamente as relações
dos sons. Os pitagóricos também consideravam a música como a harmonia dos
números e do cosmo, ele próprio redutível a números sonoros. Fazer música era dar
aos números toda a plenitude inteligível e sensível do ser. É à escola pitagórica que se
liga a concepção de “música das esferas”.
A palavra Música vem do grego mousa, musa, pelo adjetivo mousikos, aquilo que se
refere às musas e às suas expressões artísticas e criativas, bem como pelos
substantivos mousiké (a técnica musical) e mousika (a linguagem das musas, que
chamamos de música). São duas as musas que presidem de forma mais direta a arte
musical: Euterpe, inspiradora do que hoje chamaríamos de música instrumental e
Aede, a protetora do canto. Mas, em linhas gerais, a música é a linguagem das musas.
E as musas são o cortejo de Apolo e vivem ao redor dele.
Música é uma organização intencional, expressiva e audível de sons. São as vibrações
oriundas dos corpos (os instrumentos e a voz) e que se espalham em ondas regulares,
estáveis e constantes. Cada som, em particular, é um feixe de ondas, um conjunto
superposto de frequências (ou “colorido” sonoro), embora o percebamos como um
fenômeno único, que é a acústica. A música possui sua própria harmonia, os sons
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harmônicos são múltiplos e funções matemáticas do som fundamental. Um harmônico


é o som gerado pela frequência de vibração da mesma corda quando dividimos ela
pela metade, terça parte, quarta parte e assim por diante. Logo, a música, a métrica e a
matemática estão intimamente correlacionadas como expressões sagradas das musas
e de Apolo.
A música também contém seus mistérios e desvendar suas estruturas é desvendar a
organização do universo. A linguagem das musas é uma forma de movimento sonoro,
cambiante e delimitado por tempos, reconstruindo, simbólica e simultaneamente,
estados emocionais ou sentimentos de ordem espiritual. Por isso a música nos comove
e nos excita. Ela floresce em meio a práticas religiosas - com o canto do Peã -
evocando e ampliando sentimentos sagrados de pavor ou esperança, desafio e
consolação, tudo isso integrando psique e soma, alma e corpo, através de vibrações.
Através da música, invenção de Apolo e linguagem das musas, alcançamos o
Mysterium Tremendum mencionado por Jung.
A organização desse substrato sonoro requer uma intenção em se expressar
conscientemente, não sendo um resultado fortuito ou termo do acaso. Música depende
de uma ordem ou sequência previamente concebida, ainda que uma intuição “não
racional” tenha sido “sentida” pelo autor antes de sua posterior organização mental.
Essa organização prévia se dá pela melodia, pela harmonia e pelo ritmo. Três pilares
que alcançam uma oitava acima, como o tripode de Apolo no templo de Delfos.
Mosaico é o local destinado às musas, sua morada simbólica, espaço de sua
invocação e de nossa comunhão com essas divindades e com Apolo. Um mosaico é
uma forma que agrada às musas, assim como um museu é o espaço de invocação das
musas. E se elas são as deusas da inspiração, pense em como você se sente quando
vai a uma boa exposição.
O recurso à música, com seus timbres, suas tonalidades, seus ritmos, instrumentos
diversos, é um dos meios de se associar à plenitude da vida cósmica. Em todas as
civilizações, os atos mais intensos da vida social ou pessoal são decompostos em
manifestações, nas quais a música desempenha um papel mediador para alargar as
comunicações para além dos limites mundanos, até os limites do divino. Dentro de uma
concepção do deus Apolo, a música seria a reguladora dos ritmos íntimos de cada um
de nós. O que as músicas que você ouve dizem sobre seu mundo interior?

O Oráculo de Delfos e o Apolo Pítio


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O deus enterrou Píton na encosta do monte Parnaso, sobre sua sepultura fundou um
templo e um oráculo. Trata-se do famoso Oráculo de Delfos, que prediz aos homens as
decisões de Zeus, pai de Apolo e, para além disso, o destino traçado pelas Moiras,
deusas mais antigas e ainda superiores a Zeus no que tange a decidir os destinos dos
homens e dos deuses.
A partir de então Apolo ganhou um de seus epítetos, o de Apolo Pítio, já que, na
estrutura simbólica do mito, é comum deixar que parte desse monstro que se encontra
e se derrota no interior viscoso e umbralino, torne-se parte integrante da personalidade
do ser que o haja derrotado. Da mesma forma como a irmã de Apolo, Atená,
acrescentou a cabeça da górgona Medusa a seu escudo. Devorar simbolicamente o
inimigo e tornar ele parte do que somos, essa parece ser a atitude básica desse
movimento da jornada heróica que aparece em Apolo, como em Zeus e Atená. Essa
estrutura pode ser encontrada quando Jasão engana ou mata o dragão que guardava o
velocino de ouro e, ao fugir, leva Medeia, sua futura esposa, que também era parte
integrante do dragão, da mesma forma Hércules veste-se com a pele do leão de
Neméia após matá-lo, ou Perseu usa a cabeça da medusa para salvar Andrômeda.
Esse aspecto é magistralmente desenvolvido por Joseph Campbell na obra “O Herói de
Mil Faces”.
O Oráculo de Delfos estava, então, associado à práticas ancestrais de invocação dos
mortos, já que era realizado sobre o corpo putrefato da serpente Píton e, pode-se dizer,
valia-se de sua força vital, de sua ligação com sua mãe Gaia, a Terra, para realizar
suas predições. Dessa maneira o Oráculo de Delfos, assim como Apolo, também tinha
sua ‘sombra’, seu enraizamento nessa dimensão ctônica (do grego chthón, “terra,
terreno”) do reino dos mortos e do contato com os ancestrais. Com a diferença de que
os gregos, à época, tinham uma relação simbólica mais direta e clara em relação à
velhice, à decrepitude, à terra e à morte do que a que temos hoje em dia, onde
projetamos psíquica e simbolicamente sobre tudo o que está na terra, uma atmosfera
do “terrível”, tudo o que é do mundo se torna então “mundano” e seguimos
desvalorizando o solo sobre o qual vivemos e o planeta através do qual respiramos.
A vidência ou mântica, na Grécia, é uma prática ligada ao transe e a sacerdotisa do
templo de Apolo, a chamada Pitonisa (sim, também derivado da nossa velha amiga
serpente), além de só poder fazer predições após ter passado por um estado de transe,
também incorporava essa atmosfera perigosa, subterrânea, ligada à morte, às
sementes e às famílias passadas tanto quanto ao renascimento e à reestruturação dos
caminhos da alma. É preciso morrer para reviver, a vida se alimenta da morte também
em termos simbólicos.
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Sentada sobre um banquinho em tripé forrado com peles de serpente e que se


equilibrava sobre uma fenda no chão de onde se desprendiam vapores que auxiliavam
na entrada no estado de transe, a Pitonisa passava as mensagens divinas a
sacerdotes que a interpretavam e passavam para o consulente. Quem fosse consultar
o Oráculo de Delfos não podia travar contato com a Pitonisa, somente com os
sacerdotes- intérpretes de Apolo. Era importante estabelecer barreiras para que o
sagrado não pudesse se manifestar diretamente, já que uma hierofania - a
manifestação plena e imediata de uma divindade - geralmente era seguida da morte ou
do surto psicótico do mortal que a vislumbrasse. Um dos casos mais célebres na
mitologia grega é a manifestação de Zeus para Sêmele, mãe de Dioniso. Ela fez com
que Zeus cumprisse a promessa de realizar um desejo dela e ele, preso à própria
palavra, mostrou-se em toda a sua grandeza. Sêmele explodiu no ar, junto com o
palácio onde ela morava.

Antes de Apolo a mântica (prática de adivinhação), estava ligada aos mortos e agora
assumia a forma da mântica “solar” de Apolo, sem perder algumas características
anteriores. O templo de Apolo em Delfos era um local de purificação, de cura de
doenças, contendas e chagas, mas ao mesmo tempo estava intimamente ligado à
terra, aos mortos, ao subterrâneo e ao que dali caminhava para os céus, como os
vapores que a pitonisa inalava. Não precisamos ficar infantilmente insistindo em uma
dicotomia que é tão deletéria para o nosso meio-ambiente, para as mulheres e para o
feminino, nessa ideia tacanha de que tudo o que está relacionado com a Mater, a
matriz e a mãe são inerentemente “inferiores” se comparados com o que está
relacionado com o pai, o espírito e aquilo que nossa cultura projeta “acima”. Já temos
maturidade simbólica suficiente para podemos ver uma possibilidade de integração
entre as partes que Santo Agostinho ajudou a separar junto com Descartes.
Principalmente se quisermos trabalhar os danos causados por essa esquizofrenia
social.

A cura, a medicina da alma e a medicina social


A cura efetuada no Oráculo de Delfos era a cura simbólica, psíquica. Apolo cura das
feridas da alma e, através delas, das feridas sociais. Caso você tenha assassinado
uma criança, maculado um juramento, assassinado alguém da sua própria casa, seria
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ao Oráculo de Delfos que você iria peregrinar, e aos sacerdotes de Apolo que você
pediria orientação. Eles lhe falariam em enigmas, através das revelações que ouviriam
da Pítia, dentro do templo.
Peregrinar a Delfos é peregrinar em direção ao Ônfalos, ao “umbigo” de Gaia. Ora, o
que é o umbigo se não o ponto médio do corpo? O Ônfalos era justamente o centro do
mundo grego. O que se faz quando você comete uma Hýbris (“pecado”,
“descomedimento”) senão procurar voltar ao seu próprio centro, ao seu próprio eixo?
Perder-se é, para Apolo, o primeiro caminho para encontrar-se. E veremos isso intensa
e dolorosamente mais à frente.

Conhecer o centro
Para Apolo é muito claro, matematicamente claro, que só se pode discernir o exato
local do centro, quando conhecemos as extremidades e os limites. Assim como
Sidharta Gautama Sakyamuni, o primeiro Buda, conheceu os prazeres e as dores, as
delícias da juventude e os horrores da decrepitude antes de desenvolver sua doutrina
do caminho do meio, cada um de nós deve experimentar (não conhecer
intelectualmente, mas vivenciar) seus limites e, através da dolorosa experiência da
determinação desses limites na vida, em sociedade, nas parcerias, nos jogos, em
família, nas amizades, aprender e construir quem se é e o que devemos
conscientemente nos tornar. Apolo é um deus do conhecimento sim, da consciência e
principalmente de uma consciência dolorosa.
A pretensão de que a via do autoconhecimento é uma via de pura luz, a expectativa da
pura luminosidade incandescente que a todos libertará para todo o sempre, trazendo
de volta o estado primordial e paradisíaco do Éden abandonado no útero quente e
macio das lembranças projetadas nos primórdios dos primórdios é o que faz, muitas
das vezes, com que sintamos ainda mais dolorosamente os impactos pesados de nos
defrontarmos com nossas sombras. Apolo, como veremos, vai trazer o olhar para
dentro, vai mudar a direção da consciência progressiva, trazendo uma regressão e uma
introversão dolorosamente libertadoras. Mas isso só acontecerá se você entender o
que está escrito no pórtico do Oráculo de Delfos: “Conhece-te a ti mesmo” e “Nada
além da justa medida”.
Todos os que entram no Oráculo de Delfos, como veremos, tem sua vida transformada
drasticamente. Em geral a grande tragédia não vem antes do Oráculo, mas depois. Ela
vem, como veremos, para aqueles que querem descobrir os desígnios dos deuses,
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saber o último dos destinos, e para aqueles que projetam sua autonomia em instâncias
externas, que projetam seu centro pessoal no centro do mundo, no Ônfalos, no umbigo
de Gaia. Mas você? Você não é o mundo e talvez você devesse conhecer a si mesmo,
porque afinal, quem sabe, conhecendo a si mesmo, você saiba respeitar a justa
medida. Ao menos o suficiente para não ultrapassar certos limiares. Como aquele
limiar onde está escrito “Conhece-te a ti mesmo” e “Nada além da justa medida”.

O bom pastor, o deus serviçal


Píton era filho da deusa Gaia, a Terra, que agora considerava Apolo um assassino por
o haver matado. Segundo o antigo direito grego, a Têmis, uma justiça que pode ser
compreendida como o ‘olho por olho’, Gaia tinha todo o direito de matar Apolo,
castigá-lo ou puni-lo como lhe aprouvesse. Mas como o jovem deus também era
predestinado a ser o deus que absolveria os pecados dos assassinos arrependidos, era
preciso que primeiro ele próprio se purificasse do crime.
Resolveu, então, fazer isso mesmo, ainda que o assassinato que cometera tivesse sido
uma bênção para deuses e homens. Toda bênção simbolicamente é também um
potencial de maldição. Por isso – em algumas interpretações por iniciativa própria e em
outras por ordem de seu pai Zeus – despojou-se de sua substância divina e rumou
para a Tessália, onde se tornou um humilde pastor a serviço do rei Admeto.
Coisas estranhas aconteciam quando Apolo saía para levar ao pasto os rebanhos de
seu patrão. Quando o deus pegava a lira e dedilhava suas cordas, os animais
selvagens, encantados, saíam da floresta e saltitavam alegremente ao redor dele, junto
com os carneiros e as vacas. Posteriormente essa habilidade de Apolo foi herdada por
seu filho Pan, o sátiro dos bosques.
Desde a época da chegada de Apolo a riqueza e a alegria inundaram a corte de
Admeto: seus animais se multiplicaram, seus estoques se encheram de sacas e sacas
de cereais, suas talhas transbordaram de azeite e vinho, de azeitonas e de manteiga.
Carregados também estavam os muros e o teto, de onde pendiam pesadas sacolas
com queijo e outros produtos comestíveis. Tudo do bom e do melhor, pois aquela
cidade era a morada – ainda que inadvertidamente – do deus da abundância, da fartura
e também, ironicamente, do “métron”, da moderação, do comedimento. Como Apolo
poderia ser simultaneamente o deus de tais opostos? Veremos mais adiante.
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Admeto, jovem e belo, orgulhava-se de sua riqueza. Montado em seu cavalo branco,
saía para a planície, admirando seus rebanhos. Seus cavalos, cheios de vigor, beleza e
agilidade, corriam pela vasta campina e seus bois puxavam com força o arado, que se
metia bem fundo dentro da terra fértil, como se Gaia houvesse reatado amizade ou ao
menos perdoado Apolo, diante de sua humildade.
Não era de se admirar que muitos reis agora quisessem Admeto como seu genro e,
para isso, lhe apresentavam as filhas. Porém seu coração era de Alceste, a belíssima
filha de Pélias, o rei da vizinha Iolco.

A façanha de Admeto
Pélias, no entanto, não tinha a intenção de casar sua filha, pois queria que ela cuidasse
dele em sua velhice – o que era a desculpa aberta para encobrir uma paixão platônica
e incestuosa que o rei de Iolco sentia pela própria filha. Por isso Pélias declarou que
daria a mão de Alceste em casamento somente àquele que conseguisse atrelar a um
carro de bois um leão e um javali juntos.
Como alguém poderia atrelar lado a lado dois animais tão selvagens e diferentes, uma
vez que até então ninguém ousara nem mesmo jungir apenas um deles?
Admeto, no entanto, inflamado de amor por Alceste, decidiu enfrentar o grande desafio.
Sua coragem suicida motivada por seu amor comoveu Apolo. O perigo de que o
ousado jovem fosse despedaçado pelas duas feras era iminente e o deus de cabelos
dourados resolveu ajudá-lo e dar a ele a força necessária para atingir seu intento.
Assim o intrépido Admeto realizou a grande proeza exigida por Pélias e eis que agora
corria em direção a Iolco, sobre o carro puxado por um leão e um javali juntos!
Cheio de admiração pela inacreditável façanha do rapaz – e um certo receio
compreensível de que o jovem rei estivesse sobre a proteção de algum deus –, Pélias
deu-lhe a mão de sua filha em casamento. Alceste sentou-se no mesmo carro e
Admeto a levou em triunfo para o seu palácio, onde realizou um grandioso casamento.
Mais adiante, na Tragédia Alceste, veremos como Apolo avisou a Admeto que as
Moiras, as deusas do destino, haviam predito a morte dele para breve. Mas esse já é
um outro tema, que falaremos no nosso encontro sobre Hades. O que nos importa aqui
é saber que Apolo tornou-se tão amigo de Pélias que não só o avisou dessa morte
prevista como também regateou com as Moiras a possibilidade de que Admeto
30

trocasse sua morte pela de qualquer pessoa que se predispusesse a morrer no lugar
dele. Essa pessoa foi justamente Alceste, sua esposa.

Deus do perdão da consciência


Por nove anos o deus da luz teve de permanecer nas terras de Admeto. Ao término do
nono ano, já purificado de seu crime, retornou a Delfos. Desde então Apolo é o deus do
grande e nobre sentimento de perdão e protege todo o homem que mostrar um real
arrependimento.
Estar em Delfos, onde agora erguiam-se o magnífico templo e o oráculo sagrado, muito
agradava a Apolo que, contudo, não se esquecia de Delos, sua ilha natal. Muito menos
da promessa que sua mãe, a deusa Leto, havia feito ali. Por isso, pouco tempo depois,
um templo resplandecente, o templo de Apolo, distinguia-se entre todos os santuários
de Delos. Apolo freqüentava os dois templos, embora o de Delfos fosse mais
significativo para a religião grega arcaica.

Escravo de Laomedonte
No início do reinado de Zeus, como falamos em seu capítulo, o soberano de deuses e
homens estava inseguro, agressivo, excessivamente vingativo e cruel e, diante disso,
os homens recorriam aos demais deuses por proteção. Hera, Apolo e Posídon então se
insurgiram contra o poderoso rei olímpico, acorrentando-o em seu sono por correntes
que só puderam ser retiradas pela intervenção de Tétis e de um dos gigantes
Hecatônquiros. Essa história nos é contada na Ilíada, de Homero.
Como castigo por essa insurgência, Zeus mandara Apolo para o Oriente, como escravo
do rei Laomedonte, para que este dele se servisse como melhor lhe aprouvesse. Esse
rei pediu a Apolo (e também a Posídon que se encontrava juntamente com Apolo na
condição de escravo) que construísse as muralhas da cidade de Ílion, também
conhecida como Tróia. É por isso que as muralhas de Tróia não puderam ser
derrubadas. Não foram construídas por mãos humanas e mãos ou armas humanas não
seriam capazes de pô-las abaixo, afinal.
Foi a segunda vez em que Apolo passou por uma jornada de crime e castigo, punição e
necessidade de aprender a humildade e o serviço ao próximo. Isso afetou
intensamente a natureza do deus e é também uma das razões míticas pelas quais ele
estaria lutando pelo lado dos troianos na famosa Guerra de Tróia.
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No País dos Hiperbóreos


Também chegava o tempo em que deixava a Hélade (Grécia) para ir ao iluminado, ao
fabuloso país dos Hiperbóreos, onde morava sua mãe. Apolo é um deus com traços
transculturais e especialmente orientais e não é de se estranhar que sua mãe pudesse
aparecer algumas vezes como ‘estrangeira’. O fato de ser um deus oriental também
explica a atuação de Apolo ao lado dos troianos na Ilíada, de Homero.
Apolo realizava uma longa, mas belíssima viagem para chegar àquele país encantador.
Montado em um carro alado, puxado por dois grandes e branquíssimos cisnes, viajava
por sobre as nuvens, deixando a Hélade (Grécia) para trás de si. Conforme rumava
mais e mais para o norte, apareciam do alto as primeiras neves que cobrem os picos
das montanhas, como se fossem capuzes muito brancos. Em seguida a neve ia ficando
mais abundante, até que enfim, tudo o que se via abaixo do carro de Apolo parecia
estar coberto com um alvíssimo lençol. No alto, porém, onde voava o deus de cabelos
dourados, o tempo era como de primavera e os cisnes arrastavam incansavelmente o
carro divino.
Enfim, prosseguindo ainda mais para o norte, a neve começava novamente a diminuir e
ao longe, além do norte, sobressaíam os raios dourados do sol, que passavam pelas
nuvens e iluminavam uma terra fascinante.
Esse era o país dos Hiperbóreos - o país acima do vento Bóreas, que é o vento que
vem do norte - país do eterno e fresco verão, das muitas cores e da abundância de luz,
das águas cristalinas e dos pássaros paradisíacos que cantavam docemente. A
tradução de ‘Hiperbóreos’ é ‘habitantes além do Bóreas’ (o vento norte), um povo
lendário que na imaginação mítica dos gregos morava na região norte do mundo, onde
o sol nascia e se punha apenas uma vez por ano, e onde esse povo vivia em paz e era
feliz. Segundo constava os Hiperbóreos tinham uma veneração especial por Apolo.
Estaria aí, talvez, a lembrança nostálgica dessas paragens longínquas, de onde os
primeiros helênicos passaram à Grécia, no começo do décimo milênio antes da era
cristã. Os gregos consideravam o Hiperbóreo um pouco à maneira da Etiópia e da
Atlântida, como uma espécie de paraíso remoto, um sítio de recreio para bem
aventurados, mal definido geograficamente. Foi de lá que partiu a flecha prodigiosa que
formou, no céu, a constelação de Sagitário.
Mal o deus de cabelos dourados descia do carro e pisava a relva verde, uma
verdadeira festa acontecia, com os pássaros que voavam entre as árvores e os raios
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dourados do sol. Gorjeavam de modo tão belo que pareciam até mesmo as melodias
divinas da lira de Apolo.
Todavia, no mesmo instante, lá longe na Hélade, nuvens negras haviam coberto o sol.
Fazia frio e chovia, porque o deus da luz tinha partido, porque chegava o escuro
inverno – época em que Core, ou Perséfone, guiada por Hermes, voltava ao Hades
para conviver com seu marido e, sua mãe, Deméter, deusa da terra e das estações do
ano, entrava em profunda depressão. Os homens, reunidos em torno do fogo,
esperavam pacientemente pelo retorno de Apolo em luz e calor e de Perséfone, para
que Deméter florescesse a terra.
O Hiperbóreo, então, era uma espécie de super-homem, vivente feliz, sábio, mágico
até um certo ponto, e habitante de um país um tanto utópico. É interessante verificar
como, à medida que os deuses iam, passo a passo, se distanciando do mundo dos
mortais e à medida em que estes mesmos mortais se distanciavam das ‘leis’
personificadas nestes deuses, o país dos Hiperbóreos começou a florescer para os
homens como um Éden para os deuses, espaço em que eram valorizados ao máximo,
glorificados e exaltados por um povo que poderia ser interpretado pelo povo helênico (o
povo grego) como o povo merecedor dos deuses, o povo temente, sem disputas, sem
cismas, a raça perfeita, o paraíso na terra. É plausível que essa comparação social
feita pelos gregos aos seus ‘irmãos’ hiperbóreos tenha uma forte influência na
continuidade da religião helênica. Como se o fato da crença nos deuses estar se
tornando mais fluídica fosse também pelo fato desses mesmos deuses encontrarem
quem os adore de maneira mais própria em outros lugares.

As desventuras amorosas de Apolo


Talvez não seja a mais sábia atitude do mundo menosprezar o amor.

Armadilhas do Ego
Esse mito que contaremos a seguir está no livro “As Metamorfoses” de Ovídio, portanto
é um livro romano e não grego e mostra uma faceta mais humanizada de Apolo. Pois
bem, Apolo amava muito o belo da vida. Uma vez, em Delfos, quando experimentava
com as setas de ouro sua habilidade no tiro ao alvo, o jovem Eros, filho alado de
Afrodite, apresentou-se diante dele. Sentia-se no ar o peso da tensão competitiva entre
eles: dois divinos arqueiros infalíveis, finalmente haviam se encontrado.
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Naquele momento a flecha de Apolo havia atingido o talo de uma maçã pendurada no
galho de uma macieira a nove cidades de distância. Eros apanhou então o seu arco e o
ergueu, alvejando a mesma maçã antes que esta chegasse ao solo.
- Deixe-me atirar minhas setas em paz, menino! – Disse Apolo aborrecido. – E te faria
muito bem não ousar medir-se comigo!
- Sei que suas flechas não erram o alvo – disse o risonho Eros -, mas as minhas
também são infalíveis.

“O deus de Delos, orgulhoso da recente vitória contra a serpente, vira Eros a dobrar o
arco, retesando-lhe a corda, e disse-lhe: ‘Que tens tu a ver, jovem folgazão, com essas
pesadas armas? Isso são apetrechos mais próprios para os meus ombros, pois posso
ferir certeiramente uma fera ou um inimigo. Ainda agora combati com incontáveis setas
a soberba Píton que cobria com seu pestífero ventre tão grande extensão de terra.
Satisfaz-te tu em espicaçar com a tua tocha não sei bem que amores e não te
candidates a glórias que só a mim pertencem!”

“Olha, Febo, teu arco pode ferir tudo. O meu vai ferir-te a ti. Quanto os animais são
inferiores a um deus, tanto a tua glória é inferior à minha” - Ovídio, Metamorfoses

Apolo e Dafne
Mais aborrecido ainda do que Apolo, Eros abriu as asas e voou para o alto do monte
Parnaso. Em seguida puxou da aljava duas flechas: uma era a flecha que despertava o
amor e a outra era aquela que o recusa e afugenta. Com a primeira feriu Apolo direto
no coração e com a segunda a ninfa Dafne, filha do rio Peneio, que àquela hora
passava, desapercebida, perto do deus de cabelos dourados.
Apolo, atingido pela seta do amor, ficou maravilhado com a beleza da ninfa e seu porte
delicado, e avançou para o lugar onde ela estava, com o intuito de lhe falar, de lhe
seduzir, lhe possuir. Dafne, porém, atingida pela flecha que recusa o amor, assim que
viu Apolo, afastou-se. Ele, então, se aproximou ainda mais, mas a ninfa, com passos
ligeiros, foi para mais longe. Apolo com saltos rápidos tentou chegar perto da bela
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Dafne. E foi isso. Ela saiu correndo. Como louco o deus a perseguia, gritando-lhe para
que parasse, mas ela corria cada vez mais.

- Pare, eu lhe peço! – implorava o filho de Leto. – Não quero lhe fazer mal!

Mas a ninfa de pés ligeiros não dava sinais de que iria parar e escapava dele
continuamente. Apolo, por sua vez, também não desanimava e sempre a perseguia e a
pedia que parasse: - Não tenha medo, bela ninfa. Por que foge como se algum animal
selvagem a perseguisse? Não sou mal, sou Apolo, filho de Zeus. Ordeno a você que
pare de correr assustada!
Por essa passagem percebe-se o ‘fino trato’ que Apolo possuía ao lidar com a natureza
feminina, ao ‘ordenar’ que ela deixasse de se assustar com ele. Apolo é um deus
intuitivo e espiritualizado e, simultaneamente, muito pouco versado nas artes da
sedução e dos sentimentos.
Mesmo com toda a ‘sensibilidade’ de Apolo, Dafne continuava a correr. Ora Apolo se
aproximava dela parecendo que iria alcançá-la, ora ela se distanciava dele com um
súbito solavanco. Em seguida ele a alcançava de novo, pronto para tocá-la, mas uma
outra vez a ninfa escapava, como uma borboleta assustada.
A borboleta tem um vôo oscilante e aleatório. Apolo, como deus representante do raio
solar, é retilíneo e uniforme. Podemos tirar algumas interpretações dessa relação,
principalmente se considerarmos que Apolo é um deus que tem toda uma preocupação
- ao menos no seu Oráculo - em criar diversas camadas de separação entre o sagrado
e o humano. Agora, enfeitiçado por Eros, tenta se esparramar para cima de Dafne,
desesperadamente, diretamente.
O deus de cabelos dourados, no entanto, não parecia estar disposto a parar sua
desenfreada perseguição. A flecha de Eros havia despertado nele uma paixão feroz.

- Por mais que ela resista, uma hora se cansará e eu a alcançarei. – E, de fato, Dafne
começou a ficar cansada. O deus da luz aproximava-se cada vez mais... e eis que
estendia os braços e chegava perto de tocá-la, de apanhá-la...
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- Oh, deuses! E você, meu pai, por que me deixas cair nas mãos deste monstro? Não o
quero para meu amante! Melhor eu me transformar numa pedra ou numa árvore, do
que ser tocada por alguém que não amo! Ainda que seja ele um deus!

A Metamorfose de Dafne
E, realmente, naquele instante, Dafne enrijeceu-se. De seus braços e cabelos
despontaram galhos e folhas, enquanto seu corpo tornou-se o tronco de uma árvore.
Assim, a jovem ninfa se transformou no perfumado loureiro, que todos conhecemos.
Apolo, em alta velocidade, em vez de agarrar a linda moça, agarrou a copa de uma
árvore.
Uma grande tristeza se apossou então do deus da luz. Ficou muito aflito por ter
causado o desaparecimento da ninfa que ele amara tão repentina e fervorosamente.
Com olhos tristes, acariciou as folhas do cheiroso loureiro e, em seguida, cortou um
ramo e o colocou na cabeça. Nunca Apolo esqueceria a bela a indomável ninfa. E é por
isso que muito freqüentemente ele se apresenta com folhas de louro à cabeça. O
primeiro amor sempre estava “na cabeça” do deus.

Apolo e Marpessa
Apolo jamais de casou. Era o mais belo de todos os deuses, levava sua vida como lhe
agradava, e estava satisfeito. No entanto uma vez prometeu casamento, mas nem
nessa ocasião era seguro que permaneceria fiel e, felizmente, o casamento não
aconteceu.
Isso ocorreu com Marpessa, a filha do rei da Etólia. O pai da moça, o rei Eveno, era
muito duro com ela, mas também era um guerreiro digno e valente. Tomou então a
decisão de que daria sua filha em casamento somente àquele que o vencesse em um
duelo de carros.
Pela mão da formosa Marpessa e pela sua abundante fortuna, muitos tiveram a
coragem de duelar com Eveno, mas todos foram mortos e ninguém mais ousava se
medir com ele. Até que um dia apresentou-se diante de Marpessa, montado em
Pégaso, um cavalo alado, um lindo e audacioso rapaz. Esse era o invencível herói
Idas, filho do rei da Messênia.
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Marpessa, que havia escutado muitas histórias sobre as proezas de Idas, ficou
aterrorizada ao vê-lo. Melhor não se casar nunca do que tomar como esposo aquele
que matasse seu pai! Afinal, Eveno não tinha que lutar agora contra um rapaz qualquer,
mas com o célebre herói Idas, que poderia realmente matá-lo!

Marpessa e Idas
O herói, ao ver o rosto assustado de Marpessa, percebeu o que ela estava pensando e
lhe disse bondosamente: - Ouça, linda princesa: não vim para assassinar o seu pai.
Nem desejo a sua riqueza, nem o seu trono. Venha, pois, para que fujamos antes do
dia nascer!
Marpessa, ao ouvir as sensatas palavras do gentil rapaz, sentiu-se envolvida pela
felicidade e prontamente aceitou acompanhar Idas. Ele a fez montar o belo Pégaso,
que fora presente do deus Posídon, e agora corriam rapidamente para a Messênia.
Assim que o rei Eveno tomou conhecimento de que sua filha havia fugido com Idas,
chamou Apolo em seu auxílio. O deus de cabelos dourados, que secretamente
desejava Marpessa, aceitou de bom grado ajudá-lo e, como um raio, os dois partiram
para alcançá-los.
Entretanto, enquanto atravessavam o rio Licormas, Eveno foi arrastado por suas
furiosas águas. Apolo correu e conseguiu apanhá-lo, mas já era tarde: ergueu das
águas um corpo sem vida. O deus da luz prometeu então ao rei morto que tomaria
Marpessa de Idas e a tornaria sua mulher, que seu neto seria um famoso herói. Disse-
lhe ainda que, mesmo morto, seu nome seria imortal, porque aquele rio que lhe tomara
a vida passaria a se chamar Eveno. E, tendo dito estas palavras, como um raio partiu
novamente ao encalço de Idas que, antes de conseguir chegar à Messênia, viu-se face
a face com Apolo.

A luta de Apolo e Idas


Idas percebeu de imediato o que o deus queria e, em vez de recuar, entrou
rapidamente na frente de Marpessa para protegê-la, enquanto seu olhar taciturno
mostrava que estava pronto para tudo. Ele, que não quisera duelar com Eveno, não
hesitava agora em se indispor com um deus! Assim, os dois rivais não demoraram a
começar a briga.
A luta entre Idas e Apolo seria terrível. Impulsionado por seu amor por Marpessa, Idas
avançou sobre Apolo como um leão e Zeus, notando a batalha do alto do Olimpo, quis
apartá-los, o que parecia impossível, até que o rei dos deuses decidiu lançar um raio
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no meio deles. Caíram cada qual para um lado, temporariamente cegos, zonzos e
surdos.
Ao se separarem o deus dos raios ordenou que lhe pusessem a par do que estava
acontecendo:
- Zeus, meu pai – disse Apolo – quero Marpessa para minha esposa e é um grande
desrespeito que um mortal queira me impedir!
- Pai dos deuses e dos homens – disse Idas – Marpessa é minha e nada irá me fazer
recuar!
Zeus ficou pensativo por alguns instantes e em seguida, virando-se para Marpessa,
disse-lhe:
- Linda princesa, você tem todo o direito de escolher sozinha o marido que deseja e eu
lhe prometo que será como você decidir!
Marpessa, tendo primeiramente agradecido humildemente ao grande Zeus por aquela
decisão, voltou-se para o deus da luz e lhe disse:
- Apolo, você é um deus. Goza e sempre gozará de eterna juventude, jamais
envelhecerá. Eu, porém, ficarei velha um dia e, então, você me abandonará. Senhor
Zeus, há anos vivo sofrendo, destinada a tomar por esposo, caso venha a me casar, o
assassino de meu pai. Apenas Idas demonstrou ter amor, sabedoria e bravura sem
igual entre todos os meus pretendentes. Eu o amo e quero me tornar sua esposa.
E assim foi, Apolo se submeteu à vontade de Zeus e, cheio de admiração pelo bom
senso de Marpessa e pela audácia de Idas, desejou-lhes que vivessem felizes e partiu
para Delfos.

Cassandra
Apolo também apaixonou-se por sua sacerdotisa Cassandra, filha de Príamo, o sábio
rei de Ílion (Tróia) e ela lhe prometeu que, se o deus da luz lhe desse acesso completo
à última das verdades, acesso ao sagrado e ao destino dos homens de forma direta,
ela, de posse dessa habilidade, se entregaria a ele.

Apolo então deu a Cassandra o dom divino do acesso imediato ao sagrado e à


consciência das Moiras. A ela foi dado o acesso completo à consciência divina das
deusas do destino, as Moiras que fiam os destinos dos deuses e dos homens e,
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também, à consciência do próprio Zeus em suas decisões. Conhecendo o futuro e


percebendo que, futuramente, seria abandonada pelo deus, Cassandra se recusou a
entregar-se e Apolo, ultrajado por haver sido descartado, cuspiu na boca de Cassandra
gerando um miasma, uma chaga, uma espécie de marca mágica que impedia qualquer
pessoa de acreditar nas predições de Cassandra, muito embora ela nunca houvesse
errado uma única vez sequer!

Um outro efeito do miasma de Apolo foi uma espécie de epilepsia de fundo nervoso
que fazia com que a profetisa não conseguisse se conter ao fazer previsões, que as
fizesse sempre aos berros, sacudindo o corpo, arrastando-se ao chão, enrolando a
língua e arrancando os cabelos, de forma que nunca era acreditada pelos outros.
Quando profetizou que o Cavalo dos gregos, dado de presente para a cidade de Ílion
(Tróia) após dez anos de guerra, estava repleto de soldados que incendiariam a cidade
à noite, quando profetizou que seu irmão Páris traria a ruína para a cidade de Tróia,
quando viu sua própria morte nas mãos de Clitemnestra. Jamais foi levada a sério.

Cassandra foi tomada como escrava de Agamêmnon, o grande comandante das forças
gregas na Guerra de Tróia e levada como sua escrava e amante na viagem de volta a
Micenas. Em Micenas, após o assassinato de Agamêmnon por sua esposa
Clitemnestra, Cassandra foi assassinada também, a machadadas, pela esposa traída.

Calíope
A união de Apolo com a ninfa Calíope deu nascimento ao músico e herói Orfeu. É
significativo que tanto Pan quanto Orfeu, conhecidos por sua habilidade musical, sejam
filhos de Apolo, o deus da música. Muito embora tivessem uma relação relativamente
boa, não foi dessa vez que Apolo conseguiu a sorte no amor. Ou Calíope é descrita
como desinteressada de Apolo depois do nascimento de Orfeu ou, na versão órfica do
mito, ela morre no parto do herói da música.

Corônis
A bela Coronis, filha de Flégias, rei dos Lápitas, da Tessália, fugia das investidas de
Apolo, que conseguiu encurralá-la numa caverna e lá a forçou a entregar-se a ele. Ao
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saber, depois, que Corônis o havia “traído”, Apolo flecha a princesa na barriga, mas
salva o próprio filho, Asclépio, que se torna o patrono da medicina.
Colocamos essa traição entre aspas porque o sentido de fidelidade, para Apolo nesse
mito, era impositivo, assim como seu amor e seus desejos. Talvez uma reação eterna
de ressentimento de Eros pela ofensa que o filho de Leto havia feito a ele e suas
flechas logo após matar a serpente Píton. Seja como for ele jamais condescendeu ou
acordou com Corônis ou com qualquer outra das suas amantes sobre a questão da
fidelidade de ambos. Apenas retaliava, unilateralmente, quando se sentia traído.
Esse é um dos mitos que bem explica a unilateralidade da visão consciente de Apolo.
Lembramos aqui que todas essas leituras são simbólicas e, da mesma forma como
Apolo é o deus da consciência ele é também – do ponto de vista do inconsciente – o
masculino invasor e conquistador, cheio de ordens e com nenhuma compaixão para
com o feminino. Apenas para com a sua própria sensibilidade ou, eventualmente, para
com seus filhos, como veremos no caso de Asclépio.

Cirene
Depois de várias desventuras amorosas frustradas, Apolo resolve se consultar com seu
pai Zeus, que, ao contrário do absurdamente belo filho, não perdia uma conquista
amorosa. Zeus lhe aconselhou que, para que se aproximasse de sua escolhida, Apolo
se metamorfoseasse em um animal pequeno e aparentemente frágil e brincasse um
pouco com ela para deixá-la mais à vontade, para que não fugisse dele como era o
modus operandi das vítimas dos flertes do deus da luz.
Então Apolo, enamorado da Náiade (divindade marítima) Cirene, metamorfoseou-se
em uma pequena tartaruga (convenhamos: Zeus se metamorfoseava em cisne, urso,
chuvas de ouro, touro, tinha um pouco mais de charme) e Cirene se interessou pela
frágil tartaruguinha. Pegou-a, acariciou, brincou com sua cabeça e, já e sentindo bem à
vontade com o pequeno réptil, colocou-o em seu colo e o abraçou. Apolo não se
contendo mais abriu a boca em direção ao seio de Cirene e o abocanhou com força tal
que jorraram gotas de sangue enquanto a bela náiade se desvencilhava do pequeno
animal traiçoeiro jogando-o longe.
Ele pode aprender as estratégias de Zeus e mesmo repeti-las, mas sem a malícia de
Zeus (que a adquiriu por ter engolido Métis, deusa da astúcia), estava condenado a
nunca ter o mesmo sucesso do pai, mesmo sendo considerado o mais belo dos
deuses!
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Ao som da Lira de Ouro

Apolo, de posse de sua lira, espantava toda e qualquer preocupação e concedia


tranqüilidade e alegria. Era o dom da música, expressão das Musas, que lhe fluía e
vibrava. Freqüentemente tocava seu amado instrumento nos banquetes do Olimpo.
Quando o deus de cabelos dourados encostava os dedos nas cordas mágicas de sua
lira de ouro, as nove Musas corriam alegres para o seu lado e começavam a cantar.
Todo o palácio se enchia de doces melodias divinas. Logo vinha a vontade de dançar,
saltavam imediatamente as Musas e as Graças e com elas a belíssima Afrodite.
Quanto mais aumentava a alegria no Olimpo, mais diminuía a infelicidade na Terra.

Apolo também teve alguns filhos. Um deles era Pã de pés de bode, o deus dos
bosques. Outro filho seu era o célebre médico Asclépio. Sua mãe era Corônis, filha do
rei da Tessália. Porém, ela morreu assim que deu à luz. Seu pai então entregou-o nas
mãos do maior preceptor que havia no mundo: o centauro Quíron, que morava no
verdejante monte Pélion. Foi junto a Quíron que Asclépio aprendeu tantas coisas sobre
medicina e, por fim, superou seu mestre. Além de não haver doença que ele não
pudesse tratar, chegou mesmo a ressuscitar mortos! Entretanto, esse grande bem para
a humanidade não haveria de durar muito...

Asclépio
Hades, o inominável, irmão de Zeus e senhor do mundo subterrâneo, enviou Hermes
para se queixar ao seu irmão Zeus da ressurreição dos mortos, pois teve medo de que
o reino do mundo inferior deixasse de receber suas almas. Ou, segundo Robert
Graves, Hades teria comunicado a Hermes que Asclépio havia ressuscitado um único
homem e o senhor do submundo exigia que Zeus eliminasse essa ameaça à ordem
natural das coisas o mais imediatamente possível.

O soberano dos deuses e dos homens, ao ouvir falar da ressurreição dos mortos, pôs-
se de pé de um salto, cheio de ira! Suas sobrancelhas se franziam, seus olhos
ganharam um brilho de cólera e imediatamente nuvens negras encheram o céu! O que
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afinal diferencia os homens dos deuses senão a imortalidade? Que poder é esse que
meu neto, filho de Apolo, está dando indiscriminadamente e sem autorização aos
humanos? Começou a relampejar e a trovejar, abalando a terra como se o céu inteiro
viesse abaixo!

- Quem é ele para querer modificar a ordem e as leis que existem no mundo? – Gritou
com voz de trovão. E, com um raio, atingiu Asclépio imediatamente e o enviou ao reino
do Hades.

Apolo chorou a perda do filho, porém os homens choraram ainda mais, pois o
adoravam, mais até que a muitos deuses. Entretanto, mesmo do reino do mundo
inferior, Asclépio tinha forças para ajudar os homens e curar doentes. Toda a Grécia
estava cheia de templos de Asclépio, os ‘asclepeions’, que eram como hospitais ou
centros de cura, construídos no ponto mais saudável de uma região, eram chamados.
Neles os sacerdotes do ‘deus-médico’ cuidavam dos doentes com conselhos, plantas e
orações.

As netas Higia e Panacéia


Asclépio ainda contava em seu trabalho com a ajuda de suas filhas, a deusa Hígia e a
deusa Panacéia. A primeira cuidava para que os homens vivessem de forma saudável,
para não adoecerem, e a segunda era uma importante farmacêutica. Tinha elaborado
ainda um remédio que levava seu nome. Como a ‘panacéia’ não havia outro, era um
remédio muito raro, mas curava todas as doenças. Assim diziam.

Apolo e Hélios, quem diabos é o deus-Sol?


Sendo o deus do dia e da luz, Apolo não era, contudo, o próprio sol. Conduzia apenas
o seu carro, o carro do Sol, e, no desempenho dessa função, tinha o nome de Febo
(Phoibos, “o luminoso”). Vivificava os seres, fazia germinar as plantas e amadurecer os
frutos e as searas, purificava a atmosfera e destruía os miasmas, mas era ele
igualmente o deus da canícula, das secas; o deus forte e sempre vitorioso, mas
também o deus que mata pela seca, pela sede e pela fome.
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Hélios era o deus-Sol, o sol em si, o astro, filho dos titãs Hipérion e Téia, irmão de Eos,
deusa da aurora e de Selene, a Lua. Era uma divindade muito atarefada em percorrer o
mundo e pouco se envolvia nos assuntos de deuses e homens. Tem uma participação
importante em Homero, na Odisséia, onde, em sua ilha, tem seus bois roubados e
assados pelos homens de Ulisses.

Um é o astro, o Sol, outro a luz, seu efeito.

Apolo na tragédia grega

O Apolo da Oréstia

A Oréstia é uma tragédia de Ésquilo, autor de Prometeu Acorrentado e Os Persas. A


Oréstia demonstra de maneira espetacular o conflito que se forma entre o poder
decrescente dos deuses e da sua justiça arcaica, a Têmis, e o poder ascendente do
homem grego dentro da Polis democrática.

O conflito básico em Ésquilo (e também em Sófocles) se dá entre o Cosmo legitimado


dos deuses e o poder profano, a independência do homem arquitetada no seu arbítrio
que lhe conferia também a responsabilidade por seus atos. Esse homem da Polis
grega, responsável por seus atos, é o ‘homem trágico’ que o magistral autor Jean
Pierre Vernant elabora em sua obra Mito e Tragédia na Grécia Antiga.

O Apolo da Oréstia é um deus Kourós (jovem entre 13 e 19 anos, ainda não adulto e já
não mais criança), ligado à iniciação, um guia iniciático de adolescentes em ritos de
passagem. O papel do Oráculo de Delfos na Oréstia está ligado à passagem da Têmis
(justiça dos valores Homéricos, do pensamento mítico e do homem como objeto dos
deuses) para a Dike (justiça alicerçada nos valores da Pólis e do cidadão, do homem
como sujeito dotado de livre-arbítrio), a um processo de moralização da cultura grega
para os moldes da Pólis, com a responsabilidade individual como um grande marco, o
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horror ao crime como uma nova perspectiva e tendo o auto-conhecimento, o famoso


‘conhece-te a ti mesmo’ (em grego gnoti sáuton) inscrito no portal do templo de Apolo,
como um conhecimento dos próprios limites, como uma recomendação do métron (a
‘moderação’).

O funcionamento do ‘conhece-te a ti mesmo’ de Apolo e a lógica interna da atuação, a


princípio “incoerente” do deus, é expresso perfeitamente na Oréstia. O primeiro passo é
forçar o indivíduo a ir ao seu limite, a cometer um crime, uma Lyssa, uma hamartia,
uma ‘falta trágica’, ir às trevas de seu ser, literalmente descer ao mais baixo ponto em
que aquele ser humano em especial pode chegar. Apolo, na qualidade de deus de uma
tradição patriarcal, pede a Orestes que ‘vingue o assassinato de seu pai’. Orestes, para
ser guiado por esse Apolo Kourós, por esse Apolo guia dos jovens em seus ritos
iniciáticos, estava com seus 15 ou 16 anos. O segundo passo é descer às trevas
interiores, efetuar a Katábasis, que implica em realizar a hamartia, a descer no mais
profundo de sua alma, a conhecer, por dentro, as trevas interiores do próprio
inconsciente, da própria alma, pois para que Orestes pudesse se vingar do assassinato
de seu pai era preciso que ele assassinasse também quem havia tomado a vida de seu
pai, e essa era sua mãe, Clitemnestra.

Clitemnestra, após alguns anos de guerra em que seu marido, Agamêmnon, ficou em
terras estrangeiras para resgatar a esposa do irmão, Helena, uniu-se com Egisto, o
primo de seu marido, com o qual tramou e executou a morte de Agamêmnon, pai de
Orestes.

Orestes, por instrução de Apolo e com a ajuda da irmã Electra, mata a mãe e o tio,
chega ao fundo de seu inconsciente, ao limite trágico de sua existência. O terceiro
passo é o resgate de Orestes, quando pensa que estará livre de qualquer sanção por
haver executado a mãe a mando de Apolo, o espírito da mãe invoca as Eríneas,
deusas ancestrais que salvaguardavam a família e o poder do matriarcado para seguir
o filho invocando-lhe a culpa e a loucura. Orestes foge das Eríneas e vai ao templo de
Apolo em Delfos para que o deus o salve dessa culpa e dessa loucura que o
perseguem sempre de perto.
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É aí que Apolo aparece, como personagem, na Oréstia, em sua terceira parte, nas
Eumênides. Aqui abaixo destaco algumas falas de Apolo como guia iniciático, dirigindo-
se a Orestes:

“- Jamais te trairei! Serei até o fim teu guardião fiel, quer esteja a teu lado, quer nos
separem distância intermináveis e em tempo algum protegerei teus inimigos.

- Deves, porém, fugir daqui e ter cuidado. Elas querem continuar a perseguir-te e te
procurarão por todos os lugares, tentando sempre te expulsar de onde estiveres em
tuas longas caminhadas sem destino, além do mar e das cidades que ele cerca. E não
te deixes dominar pelo cansaço enquanto pastoreias tuas desventuras; mas, quando
perceberes que afinal chegaste à nobre cidade de Palas (Palas Atena, a deusa, a
cidade referida é a cidade de Atenas), ajoelha-te e abraça a imagem antiqüíssima da
deusa...”

Fala de Apolo como representante da nova geração patriarcal de deuses e sem


respeito pela antiga geração:

“- Já podes ver as fúrias dominadas; vencidas por pesado sono, ei-las imóveis, estas
virgens malditas, filhas antiqüíssimas de um passado remoto (...) criaturas malditas por
todos os homens e pelos deuses que se reúnem no Olimpo.”

Apolo envia Orestes para Atenas pois não pode efetuar a viagem para Orestes, não
pode tirar de Orestes o mérito por haver ido ao mais fundo de seu ser, ao seu último
limite, e ter retrocedido plenamente consciente de quem é de que escolhas é capaz.
Esse Apolo é plenamente consciente de seu papel como guia e protetor.

Apolo como guia

Na qualidade de deus purificador, de deus da luz, em contraposição às sombras, aos


fantasmas representados pelas Eríneas, essas antigas deusas protetoras do
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matriarcado e da dimensão pantanosa, nebulosa, terrena e aquosa do princípio


feminino, Apolo sai de seu templo infestado pelas Eríneas com o arco na mão pronto
para ser usado. Após humilhá-las verbalmente nos versos 235 ao 254: “- Abandonai
agora mesmo a minha casa! Ordeno-vos! Deixai em paz o santuário onde proclamo
profecias verdadeiras; se não obedecerdes sereis atingidas pelas serpentes sibilantes
de asas brancas (referência às próprias flechas) que, saltando da corda de meu arco
áureo, vos forçarão a vomitar, entre estertores a negra espuma que deveis a tantos
homens e a expelir o sangue que sugaste deles!”, demonstra como a questão da
aparência é importante para Apolo: “- E vosso aspecto é condizente com tal gosto.”

A estratégia argumentativa de Apolo para com as Eríneas é impressionante em sua


capacidade de reverter os ditos das antigas deusas, mas contém seus hiatos porque
coloca em conflito direto duas lógicas essencialmente contrárias e complementares, o
matriarcado e o patriarcado. Ao mesmo tempo em que cumpre às Eríneas “expelir do
lar os matricidas” [verso 245], Apolo relativiza a questão perguntando-lhes o que faziam
quando a mulher, Clitemnestra, mata o marido, Agamêmnon.

Uma questão que fica levantada é a de que, ao instruir Orestes a que procure a deusa
Atena ao invés dele mesmo, Apolo, eliminar as Eríneas, Apolo estaria apenas ciente de
que Orestes precisava expiar ainda mais sua culpa e a ‘loucura’ de haver chegado ao
ponto de assassinar a própria mãe, ou se ele mesmo, Apolo, possuía discernimento
suficiente sobre si mesmo para perceber que julgaria Orestes sem uma visão clara do
lado representado pelo fantasma de Clitemnestra e suas Eríneas, do lado matriarcal.

Ou será que Apolo, como deus das predições, sabia do destino das Eríneas, que
haviam de se transformar em Eumênides e mudar sua natureza, ou da importância da
criação do tribunal em Atenas para julgar o crime de Orestes? Estão aí questões
abertas à eterna interpretação e, como sempre, a interpretação falará mais de nós e da
nossa maneira de ver a vida, o matriarcado e o patriarcado, da relação de poder
estabelecida entre esses dois princípios, do que de Apolo e das Eríneas. Sempre
lembrando que é Atená quem inocenta Orestes, é Atená que se diz, nessa tragédia,
como sendo “toda pelo Pai” e é também Atená quem transforma as deusas da
vingança familiar, as Eríneas, em deusas benfazejas, as Eumênides.
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O Apolo simbólico
Ao surgir durante a noite, na Ilíada, Febo Apolo, deus do arco de prata (canto 1), brilha
como a lua. Será preciso levar em conta a evolução dos espíritos e a interpretação dos
mitos para que se possa reconhecer nele, muito mais tarde, o deus solar, o deus de
luz, e para entender que seu arco e suas flechas sejam comparados ao sol com seus
raios.

Originalmente talvez se relacionasse mais à simbólica lunar. Apresenta-se no canto 1


acima mencionado como um deus vingador de flechas mortíferas: “O senhor arqueiro,
o toxóforo, o argirotoxo (que tem o arco de prata)”.

De início revela-se sob o signo da violência e de um orgulho desvairado. Mas, ao


reunirem-se elementos diversos de origem nórdica, asiática e do mar Egeu, esse
personagem divino torna-se cada vez mais complexo, sintetizando em si inúmeras
oposições que consegue dominar, terminando por encarar o ideal de sabedoria que
define o “milagre” civilizatório grego. Realiza o equilíbrio e a harmonia dos desejos, não
pela supressão das pulsões humanas, mas por orientá-las no sentido de uma vivência
e conscientização progressiva que se processa graças ao desenvolvimento da
consciência alicerçado na experiência dos limites.

Deus muito complexo, terrivelmente banalizado quando o reduzem à figura de um


homem jovem, sábio e belo, ou quando – numa simplificação do pensamento de
Nietzsche – o opõem a Dioniso, como a razão contraposta ao entusiasmo. Pelo
contrário, Apolo é o símbolo da vitória sobre a violência, do autodomínio do
entusiasmo, da aliança entre a paixão e a razão – filho de um deus (Zeus) e uma Titã
(Leto é da geração dos filhos de Titãs que não se aliou aos Olímpicos). Sua sabedoria
é fruto de uma conquista vivencial, e não uma herança. Todas as potências da vida
nele se conjugam a fim de incitá-lo a não encontrar seu equilíbrio senão nos extremos
e exageros vivanciados, e para conduzi-lo da entrada da caverna imensa (Ésquilo) aos
cimos dos céus (Plutarco).
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Apolo simboliza a suprema espiritualização que só se consegue através da vivência; é


um dos mais belos símbolos da potencialidade de ascensão humana ou do processo
de individuação.

Cuidados para um ensaio de tipologia honesto

Apolo posiciona-se no mundo de forma introvertida, o que quer dizer que a sua
percepção dos processos internos é mais considerada nas situações do que os fatos
externos. Sua vooerdade vale mais que a verdade do mundo ou a verdade dos outros.
Pelo menos para ele. E parece ser exatamente isso que ele ensina, indiretamente,
através do oráculo de Delfos.

Apreende o mundo através do julgamento, exercendo-se com uma atitude analítica e


reflexiva diante dos acontecimentos, expressa, dessa forma o pensamento como
função secundária, diante da intuição principal. Essa atitude por vezes pode ser mal
entendida, sendo vista como uma pressa diante dos acontecimentos ou mesmo uma
ausência. Vamos lembrar, eternamente, nos nossos encontros, que qualquer divindade,
representada em qualquer cultura como sendo pertencente a um gênero específico
pode ser constelada por qualquer pessoa de qualquer gênero. E vamos repetir isso à
exaustão, diante dos descalabros sexistas que têm sido perpetrados por um desejo
sintomático da nossa sociedade de seccionar o sagrado em gêneros para contrapô-los
em uma disputa, ao invés de congregá-los em cada uma das nossas consciências.

Se Apolo é - e ele é - o deus da intuição e ele só se constelasse (absurdo dos


absurdos!) em homens, nenhuma mulher poderia ser intuitiva. Percebem o nível raso
dessa asserção cada vez mais comum nos “estudos” mitológicos? Se Apolo é - e ele é
- o deus do perdão da consciência, o deus que faz com que a nossa própria
consciência consiga discernir o tamanho de nossa hýbris, o tamanho do nosso
descomedimento, do nosso desconhecimento da nossa própria “justa medida” e ele só
se sintonia ou expressa através dos homens, então só eles podem ter esse
autoconhecimento. Percebem a completa ausência de sanidade desse uso
mercadológico do discurso de gênero aplicado de maneira genérica sobre deuses e
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deusas? Mulheres não podem ser grandes musicistas? Pois é! Precisamos ter muito
cuidado de, no afã de privilegiar uma leitura, não acabarmos cortando fora uma das
pernas do próprio feminino que é seu animus. O sagrado transcende e integra, quem
desagrega e secciona é o humano quando está desvinculado do seu próprio sagrado.
Poderia comentar sobre Apolo ser o deus da medicina e sobre mulheres que curam,
mas acho que já levamos o argumento o suficiente e já podemos parar de projetar
nossas próprias sombras na divindade. Aliás, em qual ponto exatamente a inflação de
Apolo atingiu a inflação dos que se julgam capazes de julgar e condenar uma
divindade? E o que acontece, sempre, que negligenciamos uma parte do que temos
dentro de nós, uma potência psíquica? Se o excesso de luz cega, sua ausência
também.

Formuladas suas questões, hipóteses ou opiniões, as pessoas - de ambos os gêneros


e de todas as sexualidades! - consteladas em Apolo, soam aos que as ouvem como
portando verdades incontestáveis, devido à sua coerência e profundidade. Apolo tem
como função principal a intuição introvertida, e é importante atentarmos também para a
sua segunda função auxiliar, a sensação, pois será através dessa função que Apolo
poderá fazer, simbolicamente, a conexão com sua anima dispersa, as musas, através
da inspiração musical, do ritmo e da vibração.

A sensação é, então, a sua via de acesso à função transcendente (inferior) sentimento,


o que possibilitaria sua coniunctio, sua conjunção harmônica com as musas.
Representa a noção de distância propiciatória tanto à objetividade quanto ao senso de
identidade, atributos necessários para que o deus possa se exercer como um deus da
razão e do conhecimento. Um dos epítetos de Apolo, “aurigládio”, quer dizer “espada
de ouro”. A espada é um símbolo do que separa o todo em partes. O ouro é
comumente utilizado como símbolo da luz. Assim Apolo é o responsável pelos atos de
discriminação, que é uma das grandes características da consciência.

Bibliografia:
1. Serra, Ordep (tradutor). Hinos Órficos: perfumes, ed. Odysseus
2. Lamas, Maria. Mitologia Geral vol.1, editorial estampa
49

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4. Chevalier, Jean & Alain Gheerbrant. Dicionário de Símbolos, editora José
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6. Vernant, Jean-Pierre &Pierre Vidal-Naquet. Mito e Tragédia na Grécia Antiga,
Editora Perspectiva.
7. Vernant, Jean-Pierre. Mito e Pensamento entre os gregos. Editora Paz e Terra
8. Roy Willis (organizador). Mitologias: Deuses, Heróis e xamãs nas tradições e
lendas de todo o mundo Editora Publifolha
9. Franz, Marie-Louise Von. O Feminino nos contos de fadas. Editora Vozes
10. Stephanides, Menelaos. Jasão e os Argonautas. Editora Odysseus
11. Eliade, Mircea. Mefistófeles e o Andrógino: comportamentos religiosos e valores
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12. Bastide, Roger. O Sagrado Selvagem e outros ensaios. Companhia das Letras
13. Brandão, Junito de Sousa. Mitologia Grega Volumes 1, 2 e 3. Editora Vozes
14. Cotterell, Arthur. Encyclopedia of World Mythology. Parragon Publishing Books
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16. Bolen, J. S. (2003). Las Diosas de La Mujer Madura. Buenos Aires: Kairós.
17. Kerényi, Karl. A Mitologia dos Deuses. Editora Vozes.
18. Vial, Claude. Vocabulário da Grécia Antiga. Editora Martins Fontes
19. Edinger, Edward F. Ego e Arquétipo. Individuação e função religiosa da psique.
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20. Jacobi, Jolande. Complexo, Arquétipo, Símbolo. Editora Cultrix.
21. Jaffé, Aniela. O Mito do Significado. Editora Pensamento.
22. Weffort, Fancisco. Os Clássicos da Política Vol.1. Editora Ática
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24. Campbell, Joseph. Mitologia Ocidental. Editora Palas Atená
25. Stephanides, Menelaos. Os deuses do Olimpo, Ed. Odysseus
26. Vernant, Jean Pierre. Mito e Tragédia na Grécia Antiga, Ed. Perspectiva
27. Vernant, Jean Pierre. O Universo, os deuses, os homens, Ed. Companhia das
Letras
28. Victoria, Luiz A. P. Dicionário Básico de Mitologia., Ediouro
29. Lamas, Maria. Mitologia Geral – o mundo dos deuses e dos heróis Vol.1, Ed.
Editorial Estampa
30. Cunha, Antônio Geraldo da. Dicionário Etimológico Nova Fronteira da língua
portuguesa, Ed. Nova Fronteira
31. Chevalier, Jean. Dicionário de Símbolos. Ed. José Olympio
50

32. Harvey, Paul. Dicionário Oxford de Literatura Clássica. Ed. Jorge Zahar
33. Ésquilo. Oréstia Ed. Jorge Zahar

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