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Como Jung salientou ao longo de quase toda a sua obra, o arquétipo, em si, é
inapreensível em sua totalidade, sendo passível de ser compreendido, em partes,
através de suas manifestações culturais. Estudar cada uma das grandes deusas que
traremos em nossos encontros é estudar uma das potencialidades expressivas que
remetem ao arquétipo da Grande Deusa. Este sim é um arquétipo e, como todos os
demais arquétipos, não pode ser completamente abarcado pela experiência ou pela
consciência humana.
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Substituiremos, nessa obra, o já consagrado termo “grandes mães” pelo mais lógico e correto “grandes
deusas” já que, por óbvio, perceberemos que nem toda grande divindade se caracteriza pela
maternidade. Compreendemos ser esse um vício danoso da cultura ocidental cristã que associa o
sagrado feminino apenas ao binômio “virgindade - maternidade”, o que é semente de muitas violências
contra outras formas de ser e viver a feminilidade em sociedade. O presente trabalho, por exemplo, trata
de forma muito peculiar a divina maternidade de Hera, como veremos.
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O processo que faremos será a “circulambulação”, ou seja: vamos eleger um tema para
os nossos estudos e colocaremos ele no centro de uma roda, assim como uma modelo
posando para uma escultura ou um quadro. Cada um de nós, na roda, terá um ponto
de vista diferente sobre aquele “modelo”, sobre aquela história. A uns ele parecerá
mais alto a outros mais baixo, a uns distante ou próximo.
O importante é que nenhum de nós deve pretender ter uma visão definitiva e, se
quisermos realmente entender a profundidade e a densidade do conteúdo daquela
imagem arquetípica (daquele mito) deveremos sempre considerar as visões uns dos
outros como “pontos cegos”, complementares à nossa visão. Encontrar nossa sombra
no comentário do colega, nossa ânima ou ânimus nas conclusões apaixonantes do
grupo, é, sempre, lidar com a alteridade e, através dela, descobrirmos a nós mesmos.
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Mais do que nunca é preciso resgatar a sacralidade e o respeito ao feminino para além
dos campos da virgindade e da maternidade. Não para negar a existência eterna e
irrefutável das grandes mães virgens da mitologia (são muitas!), mas principalmente
para dar vez e voz às demais realidades e expressões do feminino essencial. Para que,
sendo reconhecidas como diferentes potenciais narrativas do sagrado, sejam aceitas e
socialmente admitidas como caminhos de expressão e vivência do feminino dignas de
respeito e reverência.
Então desde já acostume-se com a ideia de que algumas versões oficiais contradizem
outras versões também igualmente oficiais, com a ideia de que um herói mítico teve de
estar presente - e então esteve presente! - em um acontecimento simbólico que
ocorreu duzentos anos antes de seu nascimento! É raro que esses “erros de roteiro”
ocorram na mitologia, mas eventualmente eles ocorrem. Quando isso acontece,
sempre, há uma razão simbólica que se antepõe à razão cartesiana.
O que nos importa, no estudo dos mitos, não é a razão cartesiana, matemática, o
tempo cronológico. Importa-nos a razão simbólica, a razão dos sonhos, da nossa
criatividade e psique, uma razão mais ligada ao significado, ao tempo circular - quantos
natais você já viveu e reviveu, entende? - do que às comprovações matemáticas e
suas narrativas retilíneas e uniformes.
Para responder a essa questão aparentemente tão simples e tão profunda - digna de
um “decifra-me ou devoro-te” da Esfinge para Édipo - vou enfatizar aqui rapidamente
três aspectos possíveis da leitura e interpretação do que é um mito: o trágico, o mágico
e o social. Vamos pôr à prova o “decifra-me” até onde nos for possível, já que, como já
dissemos antes, a pluralidade de leituras faz parte do estudo eterno da inalcançável
profundidade do mito, que ao fim passará a língua sobre as presas, cerrando as
pálpebras enquanto nos dirá “devoro-te”.
A palavra grega Mythos, raiz da palavra “mito”, significa “narrativa sagrada”. Não se
trata aqui de uma narrativa qualquer e sim da narrativa que explica, restaura e recria o
sentido da própria vida! Quando estudamos uma narrativa e não vemos nela um
exemplo ou um modelo que sirva de inspiração para uma nova leitura da nossa
realidade cotidiana, da nossa forma de lidar com outras pessoas, com as nossas
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certezas e impulsos íntimos, essa narrativa não é um mito. É uma história, não
um mito.
Segundo Karen Armstrong em Breve História do Mito, página oito: “O ser humano
distingue-se pela capacidade de ter pensamentos que transcendem sua experiência
cotidiana”, tanto quanto ser dotado de consciência do trágico, como observaram
Schopenhauer, Goethe e Nietzsche, quanto da sensibilidade do aspecto mágico da
existência, daquilo que chamamos de “transcendente” como observado em Thomas
Mann, Mircea Eliade e Claude Lévi-Strauss, e, também, de um certo ethos psico-social,
do qual nos fala Junito Brandão e Carl Gustav Jung. Essas são três possíveis
compreensões que trabalharemos quando pensarmos na palavra “mito” daqui em
diante.
Sim, você que está lendo esse texto vai morrer! Mas, fique tranquilo! Afinal, é
contagioso e incurável. O incômodo com o qual lemos essa frase nos mostra o quanto
negamos essa obviedade. Erigimos uma cultura completamente baseada na negação
dessa grande verdade, mas a tragédia principal da vida é a nossa consciência da
finitude. Negaremos o quanto pudermos - desenvolvendo depressão, pânico e outras
psicopatologias no caminho - mas todos nós temos, escondido em algum canto da
consciência, a clara percepção de que algum dia, pelo motivo que for, todos nós não
estaremos mais aqui.
Como forma de amaciar o terreno baldio desse grande deserto para além da última
passagem, nós, a espécie humana, projetamos e especulamos sobre o que haverá
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A função do mito
Então talvez a questão correta seria “quantas vezes nós reconheceremos a repetição
de um padrão de comportamento ou pensamento a ponto de saber responder
criativamente a ele, a ponto de dar um sentido a ele numa trajetória mais ampla da
nossa vida?”. Aí sim começaríamos de fato a vivência profunda e transformadora da
relação com os arquétipos e das suas atuações dentro da nossa vida. Outra das
famosas conclusões a que Jung chegou ao longo de suas investigações sobre a
natureza da vida psíquica da espécie humana foi a de que o que não reconhecemos
em nós mesmos tendemos a projetar na vida (e no outro) e encontrar como destino.
Nesse sentido o papel do mito é operar como um eterno retorno de si mesmo, só que
de diferentes formas através das quais aprendemos diferentes coisas sobre nós
mesmos e nossa relação com o mundo, o outro e, principalmente, conosco.
O mito é, também, uma explicação para o mistério, uma ponte para aquilo que - ainda
que leiamos todos os livros e conheçamos todas as religiões e filosofias - jamais
poderemos abarcar através de certezas. Uma explicação para aquilo que transcende e
engole todas as certezas. Para a mitóloga Karen Armstrong, o mito nasceria
justamente por esse contato inicial com a experiência trágica da morte.
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com novos olhos”2, os mitos são discursos simbólicos que configuram estruturas
psíquicas, sociais e culturais.
O Aspecto Mágico
Antes mesmo de constituir uma norma social, o mito é vivido como um mergulho na
experiência do sagrado. “Mergulho” porque é na experiência ritual do mito - que se
deforma e perde o sentido de segredo-sagrado que o constitui se executado fora do
seu contexto ritualístico - que o xamã ou mistagogo inicia o neófito ou permite à sua
sociètas banhar-se na mesma espécie de energia fluídica primordial de que são
constituídas essas divindades, experimentar a divindade, tornar-se uno com
determinada imagem arquetípica constituinte da psique ou com qualquer força
primordial que o possibilite obter êxito em uma tarefa da qual depende, em última
instância, sua sobrevivência e a de seus pares.
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Armstrong, Karen. Breve História do Mito. Companhia das letras.
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Segundo Mircea Eliade3, o mito não é “uma etapa na história do pensamento humano”,
mas uma categoria de pensamento que ocorre simultaneamente na
contemporaneidade. É importante que tenhamos em mente que a forma primária de
comunicação do nosso inconsciente com a nossa consciência é a forma simbólica
exercida através da linguagem mitológica! Isso se expressa nos sonhos, por exemplo,
para ficarmos no caminho mais simples e inevitável dessa relação e dessa
comunicação.
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Historiador Romeno das Religiões e um dos maiores estudiosos de mitos e sistemas de crenças no
mundo.
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O estudo do mito “in loco” (no seu lugar de origem), “in natura”, em sociedades em que
a função do mito ainda pode ser minuciosamente observada e descrita pelos etnólogos
permite situar o mito em seu contexto sócio-religioso original. Mas eu confesso, entre
nós, aqui, que duvido que não aprenderíamos muito sobre mitos observando, por
exemplo, como os sacerdotes do “Deus Mercado” explicam - em suas manifestações
entre vídeos do youtube ou nas digressões patrocinadas na televisão - sobre a
natureza incerta e duvidosa das ações intempestivas desse “deus” punidor que exige
novos e novos ajustes e flexibilidade e austeridade e obediência cega sobre obediência
cega, novos e novos “sacrifícios” para que essa entidade abstrata a “economia
(financeira)” continue “crescendo”.
Definições possíveis
Eliade define mito de uma forma bem aberta: “O mito é uma realidade cultural
extremamente complexa, que pode ser abordada e interpretada através de
perspectivas múltiplas e complementares.” Ajudou? Não? Então vamos tratar isso nos
nossos encontros. Por hora ficamos com a ideia de que os mitos descrevem as
diversas, e às vezes dramáticas, irrupções do sagrado no mundo. É essa irrupção do
sagrado que realmente fundamenta o mundo e o converte no que é hoje.
Diante da consciência do trágico - vamos todos morrer e não há o que possamos fazer
contra isso - da certeza da condição de mortalidade e do húmus (“terra”, “homem”)
constituinte do ser humano, encontramos também a dimensão pessoal e existencial do
mito. Todos nós, ao longo de nossas vidas, teremos de lidar com perdas: a perda da
inocência, dos parentes, amigos, certezas, valores, posturas, amores. Nesse sentido
empreendemos a catábase (Katávassis) - a “descida às trevas” - onde o encontro com
a “fera interior”, sua morte e aceitação ou incorporação dentro da “jornada do herói”,
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efetiva a nossa catarse (kátharsis, “purificação”), o primeiro passo para a segunda fase,
a transcendência do estado anterior pela assimilação do posterior na anágnossis
(leitura, interptretação), no “tornar-se mestre do próprio destino” ou, para alguns poucos
escolhidos, como Herácles, Psique e Buda, a apothéossis - tornar-se uno com os
deuses. Aí, nesse trecho acima, temos a “função simbólica” no contexto psicossocial do
mito em Lévi-Strauss, a “jornada do Herói” de Campbell e o “processo de individuação”
de Jung.
O Social
Na formação do ethos psico-social temos o mito como elemento estruturador de uma
cultura. Como uma espécie de cadeia genética de uma civilização, o mito atua fiando e
fortificando o tecido social, criando relações de sociabilidade e estabelecendo desde
relações de parentesco até os códigos legais que regem uma determinada sociedade,
passando pelas brincadeiras infantis, modos de cozer alimentos, cortar ou pentear
cabelos, marcar o corpo, rituais de passagem e de iniciação em determinados mistérios
na vida adulta ou no fim da vida.
Uma sociedade sem um fio condutor de sua narrativa de sentido, sem mythos, fica
confusa, perdida, desestabilizada e desesperada. Perde a direção e o significado,
perde sua herança e raízes.
pessoa viva”, escrevia o mestre Junito Brandão4. Nasceu para ser livre, para ser a
essência do discurso numa função dupla - digna do adjetivo “mítica” - que existe em si
de forma cronológica e dotado de uma unicidade e tempo vital, já que é contado no
tempo do ritual, e, simultaneamente, existe como universal, como essencial, na medida
em que o próprio ritual constitui uma suspensão deste mesmo tempo cronológico e um
retorno às origens.
Criando e sendo criado por essa leitura, o mito atua num processo de retroalimentação
que cria, recria, legitima ou destrói determinada realidade, seja ela psíquica,
existencial, cultural, mística, judicial-legal, afetiva ou filosófica. O mito existe e atua
constelando, arquitetando, toda a existência consciente, inconsciente, cultural social,
jurídica, de forma sistêmica. O mito é a tessitura da realidade.
Num exemplo simples e direto: Yahvéh, Adonai, Indra, Zeus, Posídon, Odin são
imagens arquetípicas que fazem referência - e dão diferentes panoramas simbólicos -
da dinâmica maior do arquétipo do “Grande Pai”. Nenhum deles é, em si, o “arquétipo
do Grande Pai”, apenas imagens arquetípicas, figuras literárias dotadas de uma
parcela possível da energia presente no Arquétipo do Grande Pai que, em sua
totalidade, é inapreensível à alma humana. Estudar mitos é se aproximar
constantemente de um maior entendimento das bases da estrutura da experiência
psíquica que faz de nós o que somos como espécie.
Exercendo suas energias de caráter “urobórico”, Eliade nos propõe “a principal função
do mito consiste em revelar os modelos exemplares de todos os ritos e atividades
humanas significativas: tanto a alimentação ou o casamento, quanto o trabalho, a
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Brandão, Junito. Mitologia Grega Volume I, ed. Vozes, Petrópolis.
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APOLO
prove sua força, determinação e comprometimento em vir à luz. Ambos são aspectos
possíveis na interpretação do símbolo.
Há versões que contam que a ilha flutuante se chamava Ortígia, ou Astéria, e que,
consentindo que a infeliz Leto pudesse dar à luz a seus filhos, recebeu, depois de
todos os dois partos, o nome de Delos, dado por Apolo que, também, fixou a ilha,
fazendo dela um dos centros do mundo.
O ato de fixar uma ilha móvel é simbolicamente assemelhado à ideia de coagular na
alquimia. Através dela vemos a criação de “raízes” terrenas que vão coligar aquele
espaço de terra à grande mãe Gaia, conectando com a matéria, todas as referências
estão apontando para o simbolismo do parto enquanto realização, tornar real, físico,
palpável, manifestar no mundo.
O nascimento de Apolo
Diante da promessa de Leto de que seu filho construiria um magnífico templo em
homenagem e gratidão à ilha que ousou opor-se à vontade de Hera compadecendo-se
de uma mãe que sofria inúmeras dores num eterno e infindável trabalho de parto, duas
pedras monstruosas irromperam do fundo do mar e sobre elas apoiou-se a ilha. Dessa
forma Delos estabilizou-se e acolheu Leto.
Podemos pensar na maneira como conteúdos do inconsciente emergem e dão
sustentação para que outros conteúdos possam se assentar e desenvolver no campo
da consciência, que fica, imageticamente, acima das ondas do mar, eterno
representante da dinâmica móvel e inconstante do inconsciente.
O colar
De imediato muitas deusas vieram auxiliar Leto no trabalho de parto. Menos a deusa
Hera, que, ao tomar conhecimento de que Leto havia encontrado leito onde dar à luz,
havia pedido à sua filha Ilítia, deusa do parto, que cruzasse suas pernas, a fim de que o
parto não pudesse se realizar.
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Por nove dias e nove noites fortes dores atormentaram a poderosa deusa. As deusas
que acompanhavam Leto montaram um estratagema para que o parto pudesse ser
realizado. Para tanto enviaram Íris, a mensageira divina, ao Olimpo para que trouxesse
Ilítia sem o consentimento de Hera, prometendo-lhe uma grinalda com fios de ouro
entrelaçados, de três metros de diâmetro. Tudo criado por Hefesto, o deus das forjas e
dos metais. Hefesto teria ido até a ilha de Delos e cortado parte do cabelo de Leto.
Esse cabelo foi colocado dentro de uma pedra de âmbar e costurado com fios de ouro
para formar o colar que Ilítia receberia.
Junito Brandão conta que o presente enviado pelas deusas teria sido para Hera: um
colar de âmbar, com fios de ouro entrelaçados, também com três metros de diâmetro.
Essa jóia teria a função de quebrar a resistência da grande senhora do Olimpo. Hera
mantinha Ilítia sentada com as pernas cruzadas, para impedir a circulação de energia
que traria o nascimento do novo. A energia, mana, prana, ki, estava condensada,
tensa.
“De modo geral, o colar simboliza o elo entre aquele ou aquela que o traz e aquele ou
aquela que o ofertou ou impôs. Nessa qualidade liga, obriga, se reveste, por vezes de
uma significação erótica. Num sentido cósmico e psíquico, o colar simboliza a redução
do múltiplo ao uno, a tendência a pôr cada coisa em seu devido lugar e em ordem uma
diversidade qualquer mais ou menos caótica.” - Verbete Colar, in Dicionário dos
Símbolos de Jean Chevalier e Allain Gheerbrant.
Resistência e consentimento
Como nos sentimos quando tudo na nossa vida deseja mudar de rumo e, ainda assim,
por medo, incerteza, insegurança ou mesmo comodismo, lutamos com unhas e dentes
contra as manifestações óbvias e constantes do que está para nascer em nós?
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Apresentado ao pai
Apolo tinha apenas quatro dias de vida e já era uma criança robusta, cheia de poderes
divinos. Recebeu de seu pai, Zeus, um arco, uma lira de ouro, um carro puxado por
cisnes, assim como repetiu os mesmos presentes para sua irmã, Ártemis. Todos os
presentes eram obra de seu irmão, o deus Hefesto, deus do fogo e das forjas. Seu
novo arco de ouro (algumas interpretações o colocam de prata) incentivou o jovem
deus a iniciar uma caçada ao monstro Píton, que atormentara sua mãe durante a
penosa busca por um solo para pari-lo.
Enfrentando a fera
A questão da busca por esse enfrentamento da fera interior, do ser umbralino, sombrio,
indefinido e pantanoso representa uma katábasis – palavra grega que significa ‘descida
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muitas vezes, como na Ilíada, era também cantando antes da batalha ou depois de um
triunfo, em sinal de agradecimento.
O deus enterrou Píton na encosta do monte Parnaso, sobre sua sepultura fundou um
templo e um oráculo. Trata-se do famoso Oráculo de Delfos, que prediz aos homens as
decisões de Zeus, pai de Apolo e, para além disso, o destino traçado pelas Moiras,
deusas mais antigas e ainda superiores a Zeus no que tange a decidir os destinos dos
homens e dos deuses.
A partir de então Apolo ganhou um de seus epítetos, o de Apolo Pítio, já que, na
estrutura simbólica do mito, é comum deixar que parte desse monstro que se encontra
e se derrota no interior viscoso e umbralino, torne-se parte integrante da personalidade
do ser que o haja derrotado. Da mesma forma como a irmã de Apolo, Atená,
acrescentou a cabeça da górgona Medusa a seu escudo. Devorar simbolicamente o
inimigo e tornar ele parte do que somos, essa parece ser a atitude básica desse
movimento da jornada heróica que aparece em Apolo, como em Zeus e Atená. Essa
estrutura pode ser encontrada quando Jasão engana ou mata o dragão que guardava o
velocino de ouro e, ao fugir, leva Medeia, sua futura esposa, que também era parte
integrante do dragão, da mesma forma Hércules veste-se com a pele do leão de
Neméia após matá-lo, ou Perseu usa a cabeça da medusa para salvar Andrômeda.
Esse aspecto é magistralmente desenvolvido por Joseph Campbell na obra “O Herói de
Mil Faces”.
O Oráculo de Delfos estava, então, associado à práticas ancestrais de invocação dos
mortos, já que era realizado sobre o corpo putrefato da serpente Píton e, pode-se dizer,
valia-se de sua força vital, de sua ligação com sua mãe Gaia, a Terra, para realizar
suas predições. Dessa maneira o Oráculo de Delfos, assim como Apolo, também tinha
sua ‘sombra’, seu enraizamento nessa dimensão ctônica (do grego chthón, “terra,
terreno”) do reino dos mortos e do contato com os ancestrais. Com a diferença de que
os gregos, à época, tinham uma relação simbólica mais direta e clara em relação à
velhice, à decrepitude, à terra e à morte do que a que temos hoje em dia, onde
projetamos psíquica e simbolicamente sobre tudo o que está na terra, uma atmosfera
do “terrível”, tudo o que é do mundo se torna então “mundano” e seguimos
desvalorizando o solo sobre o qual vivemos e o planeta através do qual respiramos.
A vidência ou mântica, na Grécia, é uma prática ligada ao transe e a sacerdotisa do
templo de Apolo, a chamada Pitonisa (sim, também derivado da nossa velha amiga
serpente), além de só poder fazer predições após ter passado por um estado de transe,
também incorporava essa atmosfera perigosa, subterrânea, ligada à morte, às
sementes e às famílias passadas tanto quanto ao renascimento e à reestruturação dos
caminhos da alma. É preciso morrer para reviver, a vida se alimenta da morte também
em termos simbólicos.
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Antes de Apolo a mântica (prática de adivinhação), estava ligada aos mortos e agora
assumia a forma da mântica “solar” de Apolo, sem perder algumas características
anteriores. O templo de Apolo em Delfos era um local de purificação, de cura de
doenças, contendas e chagas, mas ao mesmo tempo estava intimamente ligado à
terra, aos mortos, ao subterrâneo e ao que dali caminhava para os céus, como os
vapores que a pitonisa inalava. Não precisamos ficar infantilmente insistindo em uma
dicotomia que é tão deletéria para o nosso meio-ambiente, para as mulheres e para o
feminino, nessa ideia tacanha de que tudo o que está relacionado com a Mater, a
matriz e a mãe são inerentemente “inferiores” se comparados com o que está
relacionado com o pai, o espírito e aquilo que nossa cultura projeta “acima”. Já temos
maturidade simbólica suficiente para podemos ver uma possibilidade de integração
entre as partes que Santo Agostinho ajudou a separar junto com Descartes.
Principalmente se quisermos trabalhar os danos causados por essa esquizofrenia
social.
ao Oráculo de Delfos que você iria peregrinar, e aos sacerdotes de Apolo que você
pediria orientação. Eles lhe falariam em enigmas, através das revelações que ouviriam
da Pítia, dentro do templo.
Peregrinar a Delfos é peregrinar em direção ao Ônfalos, ao “umbigo” de Gaia. Ora, o
que é o umbigo se não o ponto médio do corpo? O Ônfalos era justamente o centro do
mundo grego. O que se faz quando você comete uma Hýbris (“pecado”,
“descomedimento”) senão procurar voltar ao seu próprio centro, ao seu próprio eixo?
Perder-se é, para Apolo, o primeiro caminho para encontrar-se. E veremos isso intensa
e dolorosamente mais à frente.
Conhecer o centro
Para Apolo é muito claro, matematicamente claro, que só se pode discernir o exato
local do centro, quando conhecemos as extremidades e os limites. Assim como
Sidharta Gautama Sakyamuni, o primeiro Buda, conheceu os prazeres e as dores, as
delícias da juventude e os horrores da decrepitude antes de desenvolver sua doutrina
do caminho do meio, cada um de nós deve experimentar (não conhecer
intelectualmente, mas vivenciar) seus limites e, através da dolorosa experiência da
determinação desses limites na vida, em sociedade, nas parcerias, nos jogos, em
família, nas amizades, aprender e construir quem se é e o que devemos
conscientemente nos tornar. Apolo é um deus do conhecimento sim, da consciência e
principalmente de uma consciência dolorosa.
A pretensão de que a via do autoconhecimento é uma via de pura luz, a expectativa da
pura luminosidade incandescente que a todos libertará para todo o sempre, trazendo
de volta o estado primordial e paradisíaco do Éden abandonado no útero quente e
macio das lembranças projetadas nos primórdios dos primórdios é o que faz, muitas
das vezes, com que sintamos ainda mais dolorosamente os impactos pesados de nos
defrontarmos com nossas sombras. Apolo, como veremos, vai trazer o olhar para
dentro, vai mudar a direção da consciência progressiva, trazendo uma regressão e uma
introversão dolorosamente libertadoras. Mas isso só acontecerá se você entender o
que está escrito no pórtico do Oráculo de Delfos: “Conhece-te a ti mesmo” e “Nada
além da justa medida”.
Todos os que entram no Oráculo de Delfos, como veremos, tem sua vida transformada
drasticamente. Em geral a grande tragédia não vem antes do Oráculo, mas depois. Ela
vem, como veremos, para aqueles que querem descobrir os desígnios dos deuses,
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saber o último dos destinos, e para aqueles que projetam sua autonomia em instâncias
externas, que projetam seu centro pessoal no centro do mundo, no Ônfalos, no umbigo
de Gaia. Mas você? Você não é o mundo e talvez você devesse conhecer a si mesmo,
porque afinal, quem sabe, conhecendo a si mesmo, você saiba respeitar a justa
medida. Ao menos o suficiente para não ultrapassar certos limiares. Como aquele
limiar onde está escrito “Conhece-te a ti mesmo” e “Nada além da justa medida”.
Admeto, jovem e belo, orgulhava-se de sua riqueza. Montado em seu cavalo branco,
saía para a planície, admirando seus rebanhos. Seus cavalos, cheios de vigor, beleza e
agilidade, corriam pela vasta campina e seus bois puxavam com força o arado, que se
metia bem fundo dentro da terra fértil, como se Gaia houvesse reatado amizade ou ao
menos perdoado Apolo, diante de sua humildade.
Não era de se admirar que muitos reis agora quisessem Admeto como seu genro e,
para isso, lhe apresentavam as filhas. Porém seu coração era de Alceste, a belíssima
filha de Pélias, o rei da vizinha Iolco.
A façanha de Admeto
Pélias, no entanto, não tinha a intenção de casar sua filha, pois queria que ela cuidasse
dele em sua velhice – o que era a desculpa aberta para encobrir uma paixão platônica
e incestuosa que o rei de Iolco sentia pela própria filha. Por isso Pélias declarou que
daria a mão de Alceste em casamento somente àquele que conseguisse atrelar a um
carro de bois um leão e um javali juntos.
Como alguém poderia atrelar lado a lado dois animais tão selvagens e diferentes, uma
vez que até então ninguém ousara nem mesmo jungir apenas um deles?
Admeto, no entanto, inflamado de amor por Alceste, decidiu enfrentar o grande desafio.
Sua coragem suicida motivada por seu amor comoveu Apolo. O perigo de que o
ousado jovem fosse despedaçado pelas duas feras era iminente e o deus de cabelos
dourados resolveu ajudá-lo e dar a ele a força necessária para atingir seu intento.
Assim o intrépido Admeto realizou a grande proeza exigida por Pélias e eis que agora
corria em direção a Iolco, sobre o carro puxado por um leão e um javali juntos!
Cheio de admiração pela inacreditável façanha do rapaz – e um certo receio
compreensível de que o jovem rei estivesse sobre a proteção de algum deus –, Pélias
deu-lhe a mão de sua filha em casamento. Alceste sentou-se no mesmo carro e
Admeto a levou em triunfo para o seu palácio, onde realizou um grandioso casamento.
Mais adiante, na Tragédia Alceste, veremos como Apolo avisou a Admeto que as
Moiras, as deusas do destino, haviam predito a morte dele para breve. Mas esse já é
um outro tema, que falaremos no nosso encontro sobre Hades. O que nos importa aqui
é saber que Apolo tornou-se tão amigo de Pélias que não só o avisou dessa morte
prevista como também regateou com as Moiras a possibilidade de que Admeto
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trocasse sua morte pela de qualquer pessoa que se predispusesse a morrer no lugar
dele. Essa pessoa foi justamente Alceste, sua esposa.
Escravo de Laomedonte
No início do reinado de Zeus, como falamos em seu capítulo, o soberano de deuses e
homens estava inseguro, agressivo, excessivamente vingativo e cruel e, diante disso,
os homens recorriam aos demais deuses por proteção. Hera, Apolo e Posídon então se
insurgiram contra o poderoso rei olímpico, acorrentando-o em seu sono por correntes
que só puderam ser retiradas pela intervenção de Tétis e de um dos gigantes
Hecatônquiros. Essa história nos é contada na Ilíada, de Homero.
Como castigo por essa insurgência, Zeus mandara Apolo para o Oriente, como escravo
do rei Laomedonte, para que este dele se servisse como melhor lhe aprouvesse. Esse
rei pediu a Apolo (e também a Posídon que se encontrava juntamente com Apolo na
condição de escravo) que construísse as muralhas da cidade de Ílion, também
conhecida como Tróia. É por isso que as muralhas de Tróia não puderam ser
derrubadas. Não foram construídas por mãos humanas e mãos ou armas humanas não
seriam capazes de pô-las abaixo, afinal.
Foi a segunda vez em que Apolo passou por uma jornada de crime e castigo, punição e
necessidade de aprender a humildade e o serviço ao próximo. Isso afetou
intensamente a natureza do deus e é também uma das razões míticas pelas quais ele
estaria lutando pelo lado dos troianos na famosa Guerra de Tróia.
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dourados do sol. Gorjeavam de modo tão belo que pareciam até mesmo as melodias
divinas da lira de Apolo.
Todavia, no mesmo instante, lá longe na Hélade, nuvens negras haviam coberto o sol.
Fazia frio e chovia, porque o deus da luz tinha partido, porque chegava o escuro
inverno – época em que Core, ou Perséfone, guiada por Hermes, voltava ao Hades
para conviver com seu marido e, sua mãe, Deméter, deusa da terra e das estações do
ano, entrava em profunda depressão. Os homens, reunidos em torno do fogo,
esperavam pacientemente pelo retorno de Apolo em luz e calor e de Perséfone, para
que Deméter florescesse a terra.
O Hiperbóreo, então, era uma espécie de super-homem, vivente feliz, sábio, mágico
até um certo ponto, e habitante de um país um tanto utópico. É interessante verificar
como, à medida que os deuses iam, passo a passo, se distanciando do mundo dos
mortais e à medida em que estes mesmos mortais se distanciavam das ‘leis’
personificadas nestes deuses, o país dos Hiperbóreos começou a florescer para os
homens como um Éden para os deuses, espaço em que eram valorizados ao máximo,
glorificados e exaltados por um povo que poderia ser interpretado pelo povo helênico (o
povo grego) como o povo merecedor dos deuses, o povo temente, sem disputas, sem
cismas, a raça perfeita, o paraíso na terra. É plausível que essa comparação social
feita pelos gregos aos seus ‘irmãos’ hiperbóreos tenha uma forte influência na
continuidade da religião helênica. Como se o fato da crença nos deuses estar se
tornando mais fluídica fosse também pelo fato desses mesmos deuses encontrarem
quem os adore de maneira mais própria em outros lugares.
Armadilhas do Ego
Esse mito que contaremos a seguir está no livro “As Metamorfoses” de Ovídio, portanto
é um livro romano e não grego e mostra uma faceta mais humanizada de Apolo. Pois
bem, Apolo amava muito o belo da vida. Uma vez, em Delfos, quando experimentava
com as setas de ouro sua habilidade no tiro ao alvo, o jovem Eros, filho alado de
Afrodite, apresentou-se diante dele. Sentia-se no ar o peso da tensão competitiva entre
eles: dois divinos arqueiros infalíveis, finalmente haviam se encontrado.
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Naquele momento a flecha de Apolo havia atingido o talo de uma maçã pendurada no
galho de uma macieira a nove cidades de distância. Eros apanhou então o seu arco e o
ergueu, alvejando a mesma maçã antes que esta chegasse ao solo.
- Deixe-me atirar minhas setas em paz, menino! – Disse Apolo aborrecido. – E te faria
muito bem não ousar medir-se comigo!
- Sei que suas flechas não erram o alvo – disse o risonho Eros -, mas as minhas
também são infalíveis.
“O deus de Delos, orgulhoso da recente vitória contra a serpente, vira Eros a dobrar o
arco, retesando-lhe a corda, e disse-lhe: ‘Que tens tu a ver, jovem folgazão, com essas
pesadas armas? Isso são apetrechos mais próprios para os meus ombros, pois posso
ferir certeiramente uma fera ou um inimigo. Ainda agora combati com incontáveis setas
a soberba Píton que cobria com seu pestífero ventre tão grande extensão de terra.
Satisfaz-te tu em espicaçar com a tua tocha não sei bem que amores e não te
candidates a glórias que só a mim pertencem!”
“Olha, Febo, teu arco pode ferir tudo. O meu vai ferir-te a ti. Quanto os animais são
inferiores a um deus, tanto a tua glória é inferior à minha” - Ovídio, Metamorfoses
Apolo e Dafne
Mais aborrecido ainda do que Apolo, Eros abriu as asas e voou para o alto do monte
Parnaso. Em seguida puxou da aljava duas flechas: uma era a flecha que despertava o
amor e a outra era aquela que o recusa e afugenta. Com a primeira feriu Apolo direto
no coração e com a segunda a ninfa Dafne, filha do rio Peneio, que àquela hora
passava, desapercebida, perto do deus de cabelos dourados.
Apolo, atingido pela seta do amor, ficou maravilhado com a beleza da ninfa e seu porte
delicado, e avançou para o lugar onde ela estava, com o intuito de lhe falar, de lhe
seduzir, lhe possuir. Dafne, porém, atingida pela flecha que recusa o amor, assim que
viu Apolo, afastou-se. Ele, então, se aproximou ainda mais, mas a ninfa, com passos
ligeiros, foi para mais longe. Apolo com saltos rápidos tentou chegar perto da bela
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Dafne. E foi isso. Ela saiu correndo. Como louco o deus a perseguia, gritando-lhe para
que parasse, mas ela corria cada vez mais.
- Pare, eu lhe peço! – implorava o filho de Leto. – Não quero lhe fazer mal!
Mas a ninfa de pés ligeiros não dava sinais de que iria parar e escapava dele
continuamente. Apolo, por sua vez, também não desanimava e sempre a perseguia e a
pedia que parasse: - Não tenha medo, bela ninfa. Por que foge como se algum animal
selvagem a perseguisse? Não sou mal, sou Apolo, filho de Zeus. Ordeno a você que
pare de correr assustada!
Por essa passagem percebe-se o ‘fino trato’ que Apolo possuía ao lidar com a natureza
feminina, ao ‘ordenar’ que ela deixasse de se assustar com ele. Apolo é um deus
intuitivo e espiritualizado e, simultaneamente, muito pouco versado nas artes da
sedução e dos sentimentos.
Mesmo com toda a ‘sensibilidade’ de Apolo, Dafne continuava a correr. Ora Apolo se
aproximava dela parecendo que iria alcançá-la, ora ela se distanciava dele com um
súbito solavanco. Em seguida ele a alcançava de novo, pronto para tocá-la, mas uma
outra vez a ninfa escapava, como uma borboleta assustada.
A borboleta tem um vôo oscilante e aleatório. Apolo, como deus representante do raio
solar, é retilíneo e uniforme. Podemos tirar algumas interpretações dessa relação,
principalmente se considerarmos que Apolo é um deus que tem toda uma preocupação
- ao menos no seu Oráculo - em criar diversas camadas de separação entre o sagrado
e o humano. Agora, enfeitiçado por Eros, tenta se esparramar para cima de Dafne,
desesperadamente, diretamente.
O deus de cabelos dourados, no entanto, não parecia estar disposto a parar sua
desenfreada perseguição. A flecha de Eros havia despertado nele uma paixão feroz.
- Por mais que ela resista, uma hora se cansará e eu a alcançarei. – E, de fato, Dafne
começou a ficar cansada. O deus da luz aproximava-se cada vez mais... e eis que
estendia os braços e chegava perto de tocá-la, de apanhá-la...
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- Oh, deuses! E você, meu pai, por que me deixas cair nas mãos deste monstro? Não o
quero para meu amante! Melhor eu me transformar numa pedra ou numa árvore, do
que ser tocada por alguém que não amo! Ainda que seja ele um deus!
A Metamorfose de Dafne
E, realmente, naquele instante, Dafne enrijeceu-se. De seus braços e cabelos
despontaram galhos e folhas, enquanto seu corpo tornou-se o tronco de uma árvore.
Assim, a jovem ninfa se transformou no perfumado loureiro, que todos conhecemos.
Apolo, em alta velocidade, em vez de agarrar a linda moça, agarrou a copa de uma
árvore.
Uma grande tristeza se apossou então do deus da luz. Ficou muito aflito por ter
causado o desaparecimento da ninfa que ele amara tão repentina e fervorosamente.
Com olhos tristes, acariciou as folhas do cheiroso loureiro e, em seguida, cortou um
ramo e o colocou na cabeça. Nunca Apolo esqueceria a bela a indomável ninfa. E é por
isso que muito freqüentemente ele se apresenta com folhas de louro à cabeça. O
primeiro amor sempre estava “na cabeça” do deus.
Apolo e Marpessa
Apolo jamais de casou. Era o mais belo de todos os deuses, levava sua vida como lhe
agradava, e estava satisfeito. No entanto uma vez prometeu casamento, mas nem
nessa ocasião era seguro que permaneceria fiel e, felizmente, o casamento não
aconteceu.
Isso ocorreu com Marpessa, a filha do rei da Etólia. O pai da moça, o rei Eveno, era
muito duro com ela, mas também era um guerreiro digno e valente. Tomou então a
decisão de que daria sua filha em casamento somente àquele que o vencesse em um
duelo de carros.
Pela mão da formosa Marpessa e pela sua abundante fortuna, muitos tiveram a
coragem de duelar com Eveno, mas todos foram mortos e ninguém mais ousava se
medir com ele. Até que um dia apresentou-se diante de Marpessa, montado em
Pégaso, um cavalo alado, um lindo e audacioso rapaz. Esse era o invencível herói
Idas, filho do rei da Messênia.
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Marpessa, que havia escutado muitas histórias sobre as proezas de Idas, ficou
aterrorizada ao vê-lo. Melhor não se casar nunca do que tomar como esposo aquele
que matasse seu pai! Afinal, Eveno não tinha que lutar agora contra um rapaz qualquer,
mas com o célebre herói Idas, que poderia realmente matá-lo!
Marpessa e Idas
O herói, ao ver o rosto assustado de Marpessa, percebeu o que ela estava pensando e
lhe disse bondosamente: - Ouça, linda princesa: não vim para assassinar o seu pai.
Nem desejo a sua riqueza, nem o seu trono. Venha, pois, para que fujamos antes do
dia nascer!
Marpessa, ao ouvir as sensatas palavras do gentil rapaz, sentiu-se envolvida pela
felicidade e prontamente aceitou acompanhar Idas. Ele a fez montar o belo Pégaso,
que fora presente do deus Posídon, e agora corriam rapidamente para a Messênia.
Assim que o rei Eveno tomou conhecimento de que sua filha havia fugido com Idas,
chamou Apolo em seu auxílio. O deus de cabelos dourados, que secretamente
desejava Marpessa, aceitou de bom grado ajudá-lo e, como um raio, os dois partiram
para alcançá-los.
Entretanto, enquanto atravessavam o rio Licormas, Eveno foi arrastado por suas
furiosas águas. Apolo correu e conseguiu apanhá-lo, mas já era tarde: ergueu das
águas um corpo sem vida. O deus da luz prometeu então ao rei morto que tomaria
Marpessa de Idas e a tornaria sua mulher, que seu neto seria um famoso herói. Disse-
lhe ainda que, mesmo morto, seu nome seria imortal, porque aquele rio que lhe tomara
a vida passaria a se chamar Eveno. E, tendo dito estas palavras, como um raio partiu
novamente ao encalço de Idas que, antes de conseguir chegar à Messênia, viu-se face
a face com Apolo.
no meio deles. Caíram cada qual para um lado, temporariamente cegos, zonzos e
surdos.
Ao se separarem o deus dos raios ordenou que lhe pusessem a par do que estava
acontecendo:
- Zeus, meu pai – disse Apolo – quero Marpessa para minha esposa e é um grande
desrespeito que um mortal queira me impedir!
- Pai dos deuses e dos homens – disse Idas – Marpessa é minha e nada irá me fazer
recuar!
Zeus ficou pensativo por alguns instantes e em seguida, virando-se para Marpessa,
disse-lhe:
- Linda princesa, você tem todo o direito de escolher sozinha o marido que deseja e eu
lhe prometo que será como você decidir!
Marpessa, tendo primeiramente agradecido humildemente ao grande Zeus por aquela
decisão, voltou-se para o deus da luz e lhe disse:
- Apolo, você é um deus. Goza e sempre gozará de eterna juventude, jamais
envelhecerá. Eu, porém, ficarei velha um dia e, então, você me abandonará. Senhor
Zeus, há anos vivo sofrendo, destinada a tomar por esposo, caso venha a me casar, o
assassino de meu pai. Apenas Idas demonstrou ter amor, sabedoria e bravura sem
igual entre todos os meus pretendentes. Eu o amo e quero me tornar sua esposa.
E assim foi, Apolo se submeteu à vontade de Zeus e, cheio de admiração pelo bom
senso de Marpessa e pela audácia de Idas, desejou-lhes que vivessem felizes e partiu
para Delfos.
Cassandra
Apolo também apaixonou-se por sua sacerdotisa Cassandra, filha de Príamo, o sábio
rei de Ílion (Tróia) e ela lhe prometeu que, se o deus da luz lhe desse acesso completo
à última das verdades, acesso ao sagrado e ao destino dos homens de forma direta,
ela, de posse dessa habilidade, se entregaria a ele.
Um outro efeito do miasma de Apolo foi uma espécie de epilepsia de fundo nervoso
que fazia com que a profetisa não conseguisse se conter ao fazer previsões, que as
fizesse sempre aos berros, sacudindo o corpo, arrastando-se ao chão, enrolando a
língua e arrancando os cabelos, de forma que nunca era acreditada pelos outros.
Quando profetizou que o Cavalo dos gregos, dado de presente para a cidade de Ílion
(Tróia) após dez anos de guerra, estava repleto de soldados que incendiariam a cidade
à noite, quando profetizou que seu irmão Páris traria a ruína para a cidade de Tróia,
quando viu sua própria morte nas mãos de Clitemnestra. Jamais foi levada a sério.
Cassandra foi tomada como escrava de Agamêmnon, o grande comandante das forças
gregas na Guerra de Tróia e levada como sua escrava e amante na viagem de volta a
Micenas. Em Micenas, após o assassinato de Agamêmnon por sua esposa
Clitemnestra, Cassandra foi assassinada também, a machadadas, pela esposa traída.
Calíope
A união de Apolo com a ninfa Calíope deu nascimento ao músico e herói Orfeu. É
significativo que tanto Pan quanto Orfeu, conhecidos por sua habilidade musical, sejam
filhos de Apolo, o deus da música. Muito embora tivessem uma relação relativamente
boa, não foi dessa vez que Apolo conseguiu a sorte no amor. Ou Calíope é descrita
como desinteressada de Apolo depois do nascimento de Orfeu ou, na versão órfica do
mito, ela morre no parto do herói da música.
Corônis
A bela Coronis, filha de Flégias, rei dos Lápitas, da Tessália, fugia das investidas de
Apolo, que conseguiu encurralá-la numa caverna e lá a forçou a entregar-se a ele. Ao
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saber, depois, que Corônis o havia “traído”, Apolo flecha a princesa na barriga, mas
salva o próprio filho, Asclépio, que se torna o patrono da medicina.
Colocamos essa traição entre aspas porque o sentido de fidelidade, para Apolo nesse
mito, era impositivo, assim como seu amor e seus desejos. Talvez uma reação eterna
de ressentimento de Eros pela ofensa que o filho de Leto havia feito a ele e suas
flechas logo após matar a serpente Píton. Seja como for ele jamais condescendeu ou
acordou com Corônis ou com qualquer outra das suas amantes sobre a questão da
fidelidade de ambos. Apenas retaliava, unilateralmente, quando se sentia traído.
Esse é um dos mitos que bem explica a unilateralidade da visão consciente de Apolo.
Lembramos aqui que todas essas leituras são simbólicas e, da mesma forma como
Apolo é o deus da consciência ele é também – do ponto de vista do inconsciente – o
masculino invasor e conquistador, cheio de ordens e com nenhuma compaixão para
com o feminino. Apenas para com a sua própria sensibilidade ou, eventualmente, para
com seus filhos, como veremos no caso de Asclépio.
Cirene
Depois de várias desventuras amorosas frustradas, Apolo resolve se consultar com seu
pai Zeus, que, ao contrário do absurdamente belo filho, não perdia uma conquista
amorosa. Zeus lhe aconselhou que, para que se aproximasse de sua escolhida, Apolo
se metamorfoseasse em um animal pequeno e aparentemente frágil e brincasse um
pouco com ela para deixá-la mais à vontade, para que não fugisse dele como era o
modus operandi das vítimas dos flertes do deus da luz.
Então Apolo, enamorado da Náiade (divindade marítima) Cirene, metamorfoseou-se
em uma pequena tartaruga (convenhamos: Zeus se metamorfoseava em cisne, urso,
chuvas de ouro, touro, tinha um pouco mais de charme) e Cirene se interessou pela
frágil tartaruguinha. Pegou-a, acariciou, brincou com sua cabeça e, já e sentindo bem à
vontade com o pequeno réptil, colocou-o em seu colo e o abraçou. Apolo não se
contendo mais abriu a boca em direção ao seio de Cirene e o abocanhou com força tal
que jorraram gotas de sangue enquanto a bela náiade se desvencilhava do pequeno
animal traiçoeiro jogando-o longe.
Ele pode aprender as estratégias de Zeus e mesmo repeti-las, mas sem a malícia de
Zeus (que a adquiriu por ter engolido Métis, deusa da astúcia), estava condenado a
nunca ter o mesmo sucesso do pai, mesmo sendo considerado o mais belo dos
deuses!
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Apolo também teve alguns filhos. Um deles era Pã de pés de bode, o deus dos
bosques. Outro filho seu era o célebre médico Asclépio. Sua mãe era Corônis, filha do
rei da Tessália. Porém, ela morreu assim que deu à luz. Seu pai então entregou-o nas
mãos do maior preceptor que havia no mundo: o centauro Quíron, que morava no
verdejante monte Pélion. Foi junto a Quíron que Asclépio aprendeu tantas coisas sobre
medicina e, por fim, superou seu mestre. Além de não haver doença que ele não
pudesse tratar, chegou mesmo a ressuscitar mortos! Entretanto, esse grande bem para
a humanidade não haveria de durar muito...
Asclépio
Hades, o inominável, irmão de Zeus e senhor do mundo subterrâneo, enviou Hermes
para se queixar ao seu irmão Zeus da ressurreição dos mortos, pois teve medo de que
o reino do mundo inferior deixasse de receber suas almas. Ou, segundo Robert
Graves, Hades teria comunicado a Hermes que Asclépio havia ressuscitado um único
homem e o senhor do submundo exigia que Zeus eliminasse essa ameaça à ordem
natural das coisas o mais imediatamente possível.
O soberano dos deuses e dos homens, ao ouvir falar da ressurreição dos mortos, pôs-
se de pé de um salto, cheio de ira! Suas sobrancelhas se franziam, seus olhos
ganharam um brilho de cólera e imediatamente nuvens negras encheram o céu! O que
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afinal diferencia os homens dos deuses senão a imortalidade? Que poder é esse que
meu neto, filho de Apolo, está dando indiscriminadamente e sem autorização aos
humanos? Começou a relampejar e a trovejar, abalando a terra como se o céu inteiro
viesse abaixo!
- Quem é ele para querer modificar a ordem e as leis que existem no mundo? – Gritou
com voz de trovão. E, com um raio, atingiu Asclépio imediatamente e o enviou ao reino
do Hades.
Apolo chorou a perda do filho, porém os homens choraram ainda mais, pois o
adoravam, mais até que a muitos deuses. Entretanto, mesmo do reino do mundo
inferior, Asclépio tinha forças para ajudar os homens e curar doentes. Toda a Grécia
estava cheia de templos de Asclépio, os ‘asclepeions’, que eram como hospitais ou
centros de cura, construídos no ponto mais saudável de uma região, eram chamados.
Neles os sacerdotes do ‘deus-médico’ cuidavam dos doentes com conselhos, plantas e
orações.
Hélios era o deus-Sol, o sol em si, o astro, filho dos titãs Hipérion e Téia, irmão de Eos,
deusa da aurora e de Selene, a Lua. Era uma divindade muito atarefada em percorrer o
mundo e pouco se envolvia nos assuntos de deuses e homens. Tem uma participação
importante em Homero, na Odisséia, onde, em sua ilha, tem seus bois roubados e
assados pelos homens de Ulisses.
O Apolo da Oréstia
O Apolo da Oréstia é um deus Kourós (jovem entre 13 e 19 anos, ainda não adulto e já
não mais criança), ligado à iniciação, um guia iniciático de adolescentes em ritos de
passagem. O papel do Oráculo de Delfos na Oréstia está ligado à passagem da Têmis
(justiça dos valores Homéricos, do pensamento mítico e do homem como objeto dos
deuses) para a Dike (justiça alicerçada nos valores da Pólis e do cidadão, do homem
como sujeito dotado de livre-arbítrio), a um processo de moralização da cultura grega
para os moldes da Pólis, com a responsabilidade individual como um grande marco, o
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Clitemnestra, após alguns anos de guerra em que seu marido, Agamêmnon, ficou em
terras estrangeiras para resgatar a esposa do irmão, Helena, uniu-se com Egisto, o
primo de seu marido, com o qual tramou e executou a morte de Agamêmnon, pai de
Orestes.
Orestes, por instrução de Apolo e com a ajuda da irmã Electra, mata a mãe e o tio,
chega ao fundo de seu inconsciente, ao limite trágico de sua existência. O terceiro
passo é o resgate de Orestes, quando pensa que estará livre de qualquer sanção por
haver executado a mãe a mando de Apolo, o espírito da mãe invoca as Eríneas,
deusas ancestrais que salvaguardavam a família e o poder do matriarcado para seguir
o filho invocando-lhe a culpa e a loucura. Orestes foge das Eríneas e vai ao templo de
Apolo em Delfos para que o deus o salve dessa culpa e dessa loucura que o
perseguem sempre de perto.
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É aí que Apolo aparece, como personagem, na Oréstia, em sua terceira parte, nas
Eumênides. Aqui abaixo destaco algumas falas de Apolo como guia iniciático, dirigindo-
se a Orestes:
“- Jamais te trairei! Serei até o fim teu guardião fiel, quer esteja a teu lado, quer nos
separem distância intermináveis e em tempo algum protegerei teus inimigos.
- Deves, porém, fugir daqui e ter cuidado. Elas querem continuar a perseguir-te e te
procurarão por todos os lugares, tentando sempre te expulsar de onde estiveres em
tuas longas caminhadas sem destino, além do mar e das cidades que ele cerca. E não
te deixes dominar pelo cansaço enquanto pastoreias tuas desventuras; mas, quando
perceberes que afinal chegaste à nobre cidade de Palas (Palas Atena, a deusa, a
cidade referida é a cidade de Atenas), ajoelha-te e abraça a imagem antiqüíssima da
deusa...”
“- Já podes ver as fúrias dominadas; vencidas por pesado sono, ei-las imóveis, estas
virgens malditas, filhas antiqüíssimas de um passado remoto (...) criaturas malditas por
todos os homens e pelos deuses que se reúnem no Olimpo.”
Apolo envia Orestes para Atenas pois não pode efetuar a viagem para Orestes, não
pode tirar de Orestes o mérito por haver ido ao mais fundo de seu ser, ao seu último
limite, e ter retrocedido plenamente consciente de quem é de que escolhas é capaz.
Esse Apolo é plenamente consciente de seu papel como guia e protetor.
Uma questão que fica levantada é a de que, ao instruir Orestes a que procure a deusa
Atena ao invés dele mesmo, Apolo, eliminar as Eríneas, Apolo estaria apenas ciente de
que Orestes precisava expiar ainda mais sua culpa e a ‘loucura’ de haver chegado ao
ponto de assassinar a própria mãe, ou se ele mesmo, Apolo, possuía discernimento
suficiente sobre si mesmo para perceber que julgaria Orestes sem uma visão clara do
lado representado pelo fantasma de Clitemnestra e suas Eríneas, do lado matriarcal.
Ou será que Apolo, como deus das predições, sabia do destino das Eríneas, que
haviam de se transformar em Eumênides e mudar sua natureza, ou da importância da
criação do tribunal em Atenas para julgar o crime de Orestes? Estão aí questões
abertas à eterna interpretação e, como sempre, a interpretação falará mais de nós e da
nossa maneira de ver a vida, o matriarcado e o patriarcado, da relação de poder
estabelecida entre esses dois princípios, do que de Apolo e das Eríneas. Sempre
lembrando que é Atená quem inocenta Orestes, é Atená que se diz, nessa tragédia,
como sendo “toda pelo Pai” e é também Atená quem transforma as deusas da
vingança familiar, as Eríneas, em deusas benfazejas, as Eumênides.
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O Apolo simbólico
Ao surgir durante a noite, na Ilíada, Febo Apolo, deus do arco de prata (canto 1), brilha
como a lua. Será preciso levar em conta a evolução dos espíritos e a interpretação dos
mitos para que se possa reconhecer nele, muito mais tarde, o deus solar, o deus de
luz, e para entender que seu arco e suas flechas sejam comparados ao sol com seus
raios.
Apolo posiciona-se no mundo de forma introvertida, o que quer dizer que a sua
percepção dos processos internos é mais considerada nas situações do que os fatos
externos. Sua vooerdade vale mais que a verdade do mundo ou a verdade dos outros.
Pelo menos para ele. E parece ser exatamente isso que ele ensina, indiretamente,
através do oráculo de Delfos.
deusas? Mulheres não podem ser grandes musicistas? Pois é! Precisamos ter muito
cuidado de, no afã de privilegiar uma leitura, não acabarmos cortando fora uma das
pernas do próprio feminino que é seu animus. O sagrado transcende e integra, quem
desagrega e secciona é o humano quando está desvinculado do seu próprio sagrado.
Poderia comentar sobre Apolo ser o deus da medicina e sobre mulheres que curam,
mas acho que já levamos o argumento o suficiente e já podemos parar de projetar
nossas próprias sombras na divindade. Aliás, em qual ponto exatamente a inflação de
Apolo atingiu a inflação dos que se julgam capazes de julgar e condenar uma
divindade? E o que acontece, sempre, que negligenciamos uma parte do que temos
dentro de nós, uma potência psíquica? Se o excesso de luz cega, sua ausência
também.
Bibliografia:
1. Serra, Ordep (tradutor). Hinos Órficos: perfumes, ed. Odysseus
2. Lamas, Maria. Mitologia Geral vol.1, editorial estampa
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32. Harvey, Paul. Dicionário Oxford de Literatura Clássica. Ed. Jorge Zahar
33. Ésquilo. Oréstia Ed. Jorge Zahar