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Funcionando como um “caminho”, a mitologia e o

ritual levam a uma transformação do indivíduo,


desprendendo-o de suas condições históricas locais e
conduzindo-o para algum tipo de experiência inefável.
(...) como uma “idéia étnica”, por outro lado, a imagem
prende o indivíduo ao seu sistema familiar de valores, atividades e crenças
historicamente condicionados, como um membro ativo de um organismo
sociológico. (...) O desafio característico da mitologia está em seu poder de
desempenhar essa dupla finalidade, e não reconhecer esse fato é perder todo o
sentido e mistério de nossa ciência. Joseph Campbell (1900-1986).

O mito, quando estudado ao vivo, não é uma explicação


destinada a satisfazer a uma curiosidade científica, mas uma
narrativa que faz reviver uma realidade primeva, que satisfaz a
profundas necessidades religiosas, aspirações morais, a
pressões e a imperativos de ordem social e mesmo a exigências
práticas. Nas civilizações primitivas, o mito desempenha uma
função indispensável: ele exprime, exalta e codifica a crença; salvaguarda e impõe
os princípíos morais; garante a eficiência do ritual e oferece regras práticas para a
orientação do homem. O mito é um ingrediente vital da civlização humana; longe
de ser uma fabulação vã, ele é, ao contrário, uma realidade viva, à qual sed recorre
incessantemente; não é, absolutamente, auma teoria abstrata ou uma fantasia
artística, mas uma verdadeira codificação da religião primitiva e da sabedoria
prática. Essas histórias constituem para os nativos a expressão de uma realidade
primeva, maior e mais relevante, pela qual são determinados a vida imediata, as
atividades e os destinos da humanidade. O conhecimento dessa realidade revela ao
homem o sentido dos atos rituais e morais, indicando-lhe o modo como deve
executá-los. Bronislaw Malinowski (1884-1942).

(…), o mito é sempre uma representação coletiva, transmitida


através de várias gerações e que relata uma explicação do
mundo. Mito é, por conseguinte, a parole, a palavra “revelada”,
o dito. E, desse modo, se o mito ´pde se exprimir ao nível da

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linguagem, “ele é, antes de tudo, uma palavra que circunscreve e fixa um
acontecimento”. Maurice Leenhardt precisa ainda mais o conceito: “O mito é
sentido e vivido antes de ser inteligido e formulado. Mito é a palavra, a imagem, o
gesto, que circunscreve o acontecimento no coração do homem, emotivo como
uma criança, antes de fixar-se como narrativa”.
O mito expresso o mundo e a realidade humana, mas cuja essência é
efetivamente uma representação coletiva, que chegou até nós através de várias
gerações. (…). O como afirma Roland Barthes, o mito não pode,
conseqüentemente, “ser um objeto, um conceito ou uma idéia: ele é um modo de
significação, uma forma”. Assim, não se há de definir o mito “pelo objeto de sua
mensagem, mas pelo modo como a profere”. Junito Brandão Souza (1924-1995).

A diferença entre os dois modos ficcionais – não obstante o ponto


de vista contrário de muitos estudiosos – é crucial. Pois o conto
de fadas é irresponsável; é francamente imaginário, e seu
propósito é gratificar desejos, “como um sonho lisonjeia”. (…).
Em suma, o conto de fadas é uma forma de desejo, e sua análise
freudiana explica, na íntegra, por que os adultos se sentem
perenemente atraídos, porém, nunca lhe dão crédito, mesmo na narração.
O mito, por outro lado, quer acreditado literalmente quer não, é aceito com
seriedade religiosa, seja como fato histórico seja como verdade “mística”. (…).
Duas divindades de um tipo um tanto similar – (…) – identificam-se; são um deus
com dois nomes. Mesmo estes nomes podem transformar-se em meros epítetos
que ligam o deus a diferentes cultos.
Isso distingue agudamente o herói do mito e o herói do conto de fadas. Não
importa quão estreitamente o Príncipe Encantado da Branca de Neve se assemelhe
ao cavalheiro que desperta a Bela Adormecida, as duas personagens não se
identificam. (…). Os contos de fadas não apreesentam relação uns com os outros.
Os mitos, por outro lado, tornam-se cada vez mais estreitamente entrelaçados em
uma textura, formam ciclos (…). Seu palco é o mundo real – o Vale de Tempe, o
Monte Olimpo, o mar, ou o céu – e não algum reino encantado fora da geografia.
O mito, de outro lado, pelo menos do que tem de melhor, é um reconhecimento de
conflitos naturais, de desejo humano frustrado por poderes inumanos, opressão

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hostil ou desejos contrários; (…). Seu fim último não é desejosa distorção do
mundo, mas visualização séria de suas verdades fundamentais; orientação moral,
não escape. Daí por que não esgota sua função inteira o contar, e por que os mitos
separados não podem permanecer inteiramente desvinculados uns dos outros. O
mito tende a tornar-se sistematizado, porque apresenta, não importa quão
metaforicamente, um quadro do mundo, uma introvisão da vida em geral, não uma
biografia imaginária pessoal. (…). Além disso, por não ser o sujeito de um
devaneio egocêntrico, mas um sujeito maior do que qualquer indivíduo, o herói
mítico é sempre tido como sobre-humano, ainda que não inteirmente divino.
Suzanne K. Langer (1895-1986).

A imitação dos gestos paradigmáticos dos Deuses, dos Heróis e


Ancestrais míticos não se traduz numa “eterna repetição da mesma
coisa”, numa total imobilidade cultural. A Etnologia não conhece
um único povo que não se tenha modificado no curso dos tempos,
que não tenha tido uma “história”. À primeira vista, o homem das
sociedades arcaicas parece repetir indefinidamente o mesmo gesto
arquetípico. Na realidade, ele conquista infatigavelmente o mundo, organiza-o,
transforma a paisagem natural em meio cultural. Graças ao modelo exemplar
revelado pelo mito cosmogônico, o homem se torna, por sua vez, criador. Embora
pareçam destinados a paralisar a iniciativa humana, por se apresentarem como
modelos intangíveis, os mitos na realidade incitam o homem a criar, e abrem
continuamente novas perspectivas para o seu espírito inventivo.
O mio garante ao homem que o que ele se prepara para fazer já foi feito, e ajuda-o
a eliminar as dúvidas que poderia conceber quanto ao resultado de seu
empreendimento. Por que hesitar ante uma expedição marítima, quando o Herói
mítico já a efetuou num Tempo fabuloso? Basta seguir seu exemplo. De modo
análogo, por que ter medo de se instalar num território desconhecido e selvagem,
quando se sabe o que é preciso fazer? Basta, simplesmente, repetir o ritual
cosmogônico, e o território desconhecido (= o “Caos”) se transforma em
“Cosmo”, torna-se uma imago mundi, uma “habitação” ritualmente legitimada. A
existência de um modelo exemplar não entrava o processo criador. O modelo
mítico presta-se a aplicações ilimitadas. Mircea Eliade (1907-1986).

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(…). Uma pedra que chama a atenção por seu tamanho ou sua
forma singular está repleta de mana e exercerá poderes mágicos.
A nada está preso em particular, o mana de um homem pode ser
roubado dele e transferido para um novo possuidor. Não
podemos distinguir nele nenhum aspecto individual, nenhuma
identidade pessoal. Uma das primeiras e mais importantes
funções de todas as religiões superiores foi a de descobrir e
revelar tais elementos pessoais no que era chamado de Santo, Sagrado, Divino.
Mas, para atingir essa meta, o pensamento religioso teve de percorrer um
longo caminho. O homem só pôde dar aos seus deuses uma forma individual
definida depois de encontrar um novo princípio individual definida depois de
encontrar um princípio de diferenciação em sua própria vida e em sua vida social.
Não o encontrou em seu pensamento abstrato, mas em seu trabalho. Na verdade,
foi a divisão social do trabalho que introduziu uma nova era de pensamento
religioso. Muito antes do surgimento dos deuses pessoais, vemos aqueles deuseds
que foram chamados de deuses funcionais. Não são ainda os deuses pessoais da
religião grega, os deuses olímpicos de homero. Por outro lado, não têm mais o
caráter vago das concepções míticas primitivas. São seres concretos, mas
concretos em suas ações, não em sua aparência ou existência pessoal. Logo, não
têm nomes próprios – como Zeus, Hera, Apolo – mas nomes adjetivais que
caracterizam sua função ou atividade especial. (…). Se quisermos entender o
verdadeiro caráter desses deuses funcionais e o papel que representam no
desenvolvimento do pensamento religioso, deverrmos olhar para a religião
romana. (…). Em todo trabalho agrícola, não havia um único ato que não
estivesse sob a orientação e a proteção das deidades funcionais, e cada classe tinha
seus próprios ritos e obsservâncias.
(…). Para um romano, a vida significa uma vida ativa. (…). A expressão
religiosa dessa tendência pode ser encontrada nos deuses funcionais romanos.
Estes têm de cumprir tarefas práticas definidas. Não são produto da imaginação ou
da inspiração religiosa, mas são concebidos como regentes de atividades
particulares. São, por assim dizer, deuses administrativos que dividiam entre si as
diferentes províncias da vida humana. Não têm uma personalidade definida;
contudo, são claramente diferenciados por seu ofício, e deste ofício depende a sua
dignididade religiosa. Ernst Cassirer (1875-1945).

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V - APÊNDICE 

Invetigação Psicossocial da Mitologia

UM ENFOQUE SEMIÓTICO

Dentre as mais diversas façanhas culturais, são os Mitos um universo


“hermético” (à primeira vista) e uma produção que encanta, ou magiacamente ou
a todo aquele que se permite sentir seu aspecto intencional, a saber: o caráter
educativo, prescritivo e narrativo.
Porém, antes do ser humano pensar simbolicamente (por palavras) e
iconicamente (por imagens), há uma atividade que lhe é anterior: os rituais e o
pensamento mágico. Se aqueles são gestos concatenados com fins sociais e
psíquicos, este é uma fórmula que visa manipular à distância.
Digamos que a magia e os ritos são o suporte propedêutico pelo qual os
mitos desenvolveram-se. Se no rito há encenação e movimento coordenado (numa
metáfora ao teatro), os mitos são narrações de estórias pelos quais um mundo,
uma dimensão sobrenatural, invisível e paralela ao empírico ganham status de
“história”, de memória de um povo, casta, raça ou grupo social.
Se na magia há fórmulas, simulacros e desenhos, os mitos revestem-se
tanto de palavras que narram eventos fantásticos dum período de domínio de
divindades que atuam com os humanos, bem como das imagens que figuram entre
Deuses e Deusas, como reprodução sensório-visual daquilo que vivemos no
cotidiano.
Nos estudos de antropologia – e mesmo no esquema de Comte sobre os
estágios do grau de abstração a que um grupo social chega à etapa assim
considerada civilizatória – antes mesmo que alcancemos o estágio científico e
filosófico, passamos pelo momento religioso. Este, certamente, é uma progressiva
passagem, transformação por grau de complexidade tanto da magia, como dos
ritos. Na magia, as instituições religiosas herdaram o caráter de prece, oferenda,

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sacrifício.. ainda que por uma roupagem menos individualista se comparado à
magia. Nos ritos, as instituições religiosas guardam aquele sentimento de
pertença, de unidade do grupo, só que agora, para incrementar os movimentos e
processos ritualísticos, somam-se o caráter teórico, discursivo, explicativo que
falta tanto na magia como nos ritos.
Se na magia há o intento de controle, de poder e manifestação, nas
religiões há a observância de determinados códigos de conduta (para não tocarmos
no intento de castração e manipulação sistemática das consciências e condutas de
seus adeptos): não apenas no local “sacro”, mas na vida cotidiana que encerra o
desafio do adepto a praticar e aplicar os preceitos de tais normas sancionadas pela
instituição religiosa vigente. Se nos ritos há o envolvimento gregário através de
práticas conjuntas com o conseqüente sentimento de pertença, de subjetividade
acrescida dum estrato social maior do que nós e que nos engloga e nos
identificamos; agora, nas religiões, é o aspecto doutrinário, explicativo, tanto dos
códigos de conduta, como mais fortemente, do ideário do “outro mundo”, seus
aspectos, seus elementos, e suas “entidades” com seus respectivos interesses,
personas, poderes e posição na hierarquia “divina”.
O esquema mediante o grau e passagem, do mais simples para o mais
complexo é o seguinte: rituais, magia, instituições religiosas, filosofia e ciência.
Sabemos que o advento do filosofar configura-se com a superação do aspecto
dogmático, seja dos mitos, seja dos discursos oficiais da classe sacerdotal.
Ora, como os Mitos encerram uma explicação, superam em abstração as
meras fórmulas mágicas, bem como o movimento encenado no mito. Ainda que
guarde o caráter mágico da magia com o equivalente dos feitos fantásticos de
personalidades de deuses, deusas e heróis, bem como a natureza processual dos
ritos nas narrativas com início, desenvolvimento e desfecho, os Mitos
caracterizam-se pelo instinto gregário da encenação dos ritos com o deslocamento
do mesmo para um enfoque do cenário que será descrito ou pintado ou esculpido
da dimensão mítica de seus “seres”.
Outro teor guardado, é aquele da magia, em que nos Mitos deslocam-se
dos efeitos supostos das fórmulas, para os “seres” que povoam o cenário mítico.
Do poder individual da magia, para o coletivo da prece, há um intermediário: O
poder das divindades sobrenaturais que fazem parte da “nossa história”. Ou seja, o
senso identidário é retroalimentado também na narrativa mítica, pela oralidade de
sua transmissão, bem como o assumir de valores e atributos de deuses, deusas e

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heróis. Se nos ritos o sentimento de pertença é vaticinado pelas ações encenadas,
no fazer uma “história” pela qual participo ativamente; no mitos, por sua vez, o
modo de participar difere qualitativamente: do modo ativo, passamos para o
passivo, ou seja, não agimos, mas assimilamos as “histórias” míticas como nosso
passado remoto, e que explica verbalmente o estado atual da situação do grupo
social, de seus indivíduos, classes, e estado cultural adquirido até então.
A diferença entre Mito e Religião difere no grau e tipo de explicação: nos
mitos: narrações; nas instituições religiosas: narrações e dissertações.. ainda que
estas guardem o caráter mágico, o que lhes confere o estatuto ideológico no
discurso que se configura predominantemente dogmático. A distinção
fundamental entre Rito e Mito é o seguinte: o rito é a ação do grupo enquanto o
mito é memória do mesmo. O rito é a participação em práxis do que o mito é o
enredo, a estória pela qual o rito lhe é dependente. O mito sugere a participação
ideativo-imaginária de seus convivas. Nesse aspecto, o rito incorpora-se e é
influenciado pelo mito, se e na medida em que os rituais tomam por modelo os
agentes míticos como formas a serem introjetadas, tanto enquanto causa da
situação atual, como também do status que cada indivíduo guarda no seio da
organização social a que está inserido, sendo este aceito pelo grupo tanto quanto
identifica-se com o mesmo.
Proponho um novo esquema que se deduz das passagens acima:

Ritos, Magias, MITOS, Religiões, Filosofias e Ciências.

Poderíamos pensar que por anteceder às religiões e filosofias, o mito seja


algo ultrapassado. Depende do critério como lidamos com os mitos! Se for para
vivê-los, podem ser até menos dogmáticos que as instituições religiosas com seus
artífices sutis de persuasão discursiva, mas um entrave no tocante ao trocarmos
História pela estória mítica. Ainda que o movimento Filosófico preocupe-se em
desvendar, inferir causas sobre determinados efeitos, os Mitos podem nalgum
momento, no limiar mesmo de seu enredo, atingir um grau de abstração e
explicação que estimule a autonomia no pensar, uma vez que as categorias
explicativas utilizadas e o grau de organização e discriminação míticas forneçam o
pano de fundo pelo qual a Filosofia em cada indivíduo e grupo social, ofereça uma
alternativa mais ativa dos porquês que rodeiam nossa vida inquieta de
conhecimento.

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Assim como para uma dada ou sociedade ou comunidade, atingimos um
grau e qualidade de saber maior, quando comparamos a ‘nossa’ com a dos
‘outros’, pela simples comparação, alcançamos que muitos dos aspectos
considerados absolutos, são relativos. Muitos dos aspectos assim considerados
necessários são contingentes. Muitos dos aspectos culturais são questionáveis,
seja pela injustiça pelos quais os membros são tratados, seja pelo enviesamento de
interesses de classes que assolam as possibilidades de desenvolvimento dos
mesmos no seio da sociedade.
Ao estudarmos mitos, estaremos diante do questionamento análogo do que
ocorre com a organização social em que vivemos, a saber: o questionamento
dirigido ao ideário “religioso”, seus fundamentos, seus critérios, sua implicações,
seus resultados...
Se a comunicação desenvolve-se a ponto da narrativa mítica, esta deve ser
inquerida em sua validade: histórica, axiomática, social, psíquica, filosófica,
religiosa, política e artística. O temperamento, valores, categorias explicativas,
organização social, desenvolvimento comunicativo e lingüístico e econômico
podem ser inferidos dos mitos. O segredo está na questão Semântica do mito, ou
seja, no significado implícito e potencial, pelo qual colocaremos em ato um
explícito e relacional.
Se a filosofia e ciência utilizam-se do aspecto simbólico em seu modo
denotativo; os mitos e religiões utilizam-se, por sua vez do aspecto simbólico em
seu modo conotativo. Se a religião propõem explicações mais sutis e elaboradas
que as narrativas míticas, é porque elas fazem uso do caráter estilístico
dissertativo; enquanto, porém, nos mitos, há a preponderância do caráter estilístico
narrativo. Neste ínterim, faz-se mister predicarmos que os mitos geram processos,
sucessões de eventos, o que as religiões utilizam-se mais de conceitos e
categorias. Ora, A Filosofia e a Ciência são quase totalmente Simbólicas;
enquanto que os Mitos obtêm sua eficácia pela Iconicidade, ou seja, um “pensar
por imagens”, mais do que por conceitos. Ainda que as Religiões sejam um pouco
mais conceituais e dissertativas que os Mitos, ainda guardam o caráter icônico dos
contos fantásticos sobrenaturais.
Ora, já que a linguagem intervém aqui como um superar o estado anterior,
onde fica o estatuto da poesia?
A Poesia é o aspecto simbólico (porque veiculadas por palavras) que ainda
guardam o aspecto icônico em seus efeitos. Seus efeitos suscitam imagens, cenas,

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cenários, entes... Se as religiões têm uma comunicação que prevalece a forma
poética de manifestação – como vimos acima, o teor conotativo – os Mitos
também estão impregnados de conotação e poesia... cedendo paulatinamente para
uma maior sistematização, provocando em seu interior, manifestações de
denotação, e também dum pouco de história, ou seja, da mescla de fatos e
fantasia. Obs.: Uma dos mais curiosos fenômenos dos mitos reside no fato de que
neles, sempre que uma comunidade cresce para a vida urbana, para a chamada
civilização, há um distanciamento do enredo mítico: a estória das Deusas e
Deuses cede lugar para a história humana e natural.
A continuidade religiosa é garantida pela eficácia simbólica mais do que
da icônica. Se com a religiões há mais discurso, nos mitos há mais integração; se
na religião os códigos de conduta são em sua maioria heteronômicos – impostos
de fora – nos mitos são em sua maioria autonômicos – porque vivenciados de
dentro – .
Proponho um novo esquema:

Ritos, Magias, Mitos, Religiões, Poesias, Filosofias e Ciências.

Mas o que tem a ver Poesia com Mito?

Se nossa preocupação primária é a interpretação multidisciplinar do


conteúdo implícito do mito, seu significado aproximado, bem como a
operatividade que subjaz a todo mito em seu aspecto psíquico; resta ainda uma
avaliação da funcionalidade dos mitos. Poesia é um modo peculiar de teor
conotativo que provoca imagens e sentimentos, daí seu emprego na arte, no
aumento da sensibilidade e, de maneira menos ingênua e menos emancipadora,
nas religiões por seus porta vozes sequiosos de angariar adeptos para repetirem a
doutrina e os ‘valores’, muito menos do que vivendo e introjetando de maneira
sadia, sem coerções.
Perguntarmos pela função é explicitarmos algo implícito, latente, ou seja, a
comunicação mítica, como tudo que é cultural e humano, carrega em seu bojo a
intencionalidade: os diversos interesses e motivos inclusos na manifestação e
produção míticas. Se a vivência onírica são Imagens e Discursos (mais imagens
do que discursos), os Mitos guardam similaridade, com a diferença de sua
produção parecer impessoal e sob estado de vigília... ainda que para alguns

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teóricos, os mitos sejam um limiar entre atividade inconsciente dum estrato mais
coletivo e menos idiossincrártico se comparados aos sonhos, como também uma
atividade consciente, como modo de organizar a experiência natural e cultural
através da narrativa mito-poética enquanto discurso, e icônico-fantasiosa,
enquanto imaginação ativa oriunda de conteúdos abstraídos, separados do estrato
social, para serem elaborados por esse agente impessoal formar, gerador de mitos,
agente esse que analisaremos perante o percurso dessa investigação.
Ofereci no início dessa introdução 3 aspectos de todo mito: formação
educativa, prescrição e narração. Ainda que eu careça demonstrá-los no decorrer
desse estudo – que visa trazer mais subsídios para meu Amigo e Mestre Marcos
de Oliveira, em seu futuro curso de Mitologia –, fornecer-vos-ei definições
básicas dos motivos que cada aspecto cumpre em todo aquele que vive o mito
como sendo seu patrimônio cultural, senão, subjetivo e objetivo: subjetivo pelos
valores, objetivo pelos papéis sociais.

Narração: mitos são descrições de acontecimentos que oferecem uma “história”


para seus adeptos e integrantes. Neles, o indivíduo situa-se perante o conteúdo,
enredo, personagens e modelos. Ser historicizado é o primeiro fator de pertença:
gregário e vinculativo.

Prescrição: embora variem quanto ao grau, o caráter exortativo, ou seja, de crítica


e prescrição de valores, oferecem uma função axiomática, tanto no plano
individual (enquanto vivência diária), como no plano coletivo (enquanto práxis a
desempenhar no grupo em questão). Assimilar valores, ser virtuoso nos valores
disseminados em cada personagem e no enredo como um todo, oferece-nos o
segundo fator de pertença: Ser identificado.

Educação: a formação da subjetividade é garantida com a interiorização dos


personagens principais que atuam na estória mítica. Uma vez que possuímos
história, herança e memória; uma vez introjetamos um , ou seja, um projeto,
uma meta (tanto na vida diária, como no papel social assumido), principalmente
nos Mitos dos Heróis, notamos a formação, a iniciação dum neófito frente a um
mestre. A relação Deus/Deusa-neófito será o paradigma para a reprodução social
do Mestre-Discípulo nas instituições religiosas e, também nas relações Mestre-
Discípulo da Filosofia e das Ciências nas primeiras escolas organizadas. Em

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suma, o terceiro fator de pertença: Ser preparado subjetivamente e
objetivamente, formado culturalmente, pronto a assumir as implicações histórico-
axiomático-prático-oficiais.
Se Mitos reproduzem relações humanas na esfera sobrenatural, também as
relações sociais, práxis instituições nutrem-se dos Mitos como paradigma de dar
forma àquilo que ainda está desprovida de uma. Historicizar é sistematizar.
Identificar é reconhecer e introjetar. Desenvolvimento subjetivo e objetivo é
formação que completa o projeto mítico de suprir uma demanda sócio-psíquica de
relações humanas, ainda que por meio de fantasias mescladas com história.
Após esta breve Introdução à Mitologia, ou ciência interpretativa
multidisciplinar do significado, dos axiomas, das relações humanas e naturais que
se travam no interior dum grupo social num dado espaço geográfico, esboçarei
diversas definições sobre Mitos, para que iniciemos o trajeto munidos das
problemáticas, da natureza e das implicações que os Mitos estão para o sujeito, e
como este está para os Mitos.
Depois de lermos esta dissertação sintética que digitei nos estudos de
mitos de 2011 a 2012, veremos definições de mitos por diversos autores para que
sejamos iniciados ao estudo dos mitos a partir do que têm de essencial (ou seja,
dos aspectos – fatores – comuns, a todos eles):

O mito surge da necessidade consciente e inconsciente que o ser humano tem de


explicar seu meio, seus problemas desconhecidos. Depois da explicação, sente-se como
que dono da situação. Apossa-se intelectualmente do fato.
Ora, quando o ser humano surgiu na Terra, tudo era incógnito e, por conseguinte, sua
imaginação começou a criar explicações numa função existencial de dar sentido a seu
meio. Estas explicações primitivas recebem a denominação de mitos.
Os primeiros mitos. O ser humano primitivo colocou algumas perguntas sobre a
natureza e sobre todos os problemas que o afligiam, dando-lhes ele mesmo respostas
explicativas. Estas explicações primitivas, fantasiosas, eram os mitos. (TELES, 1976: 14
e 15).

Mito é um contexto explicativo, não lógico, muitas vezes fantástico, motivado


pelo meio físico e humano em que vive a coletividade. (TELES, 1976: 15).
Os índios bacairis do Brasil Central explicam o Sol como uma bola de penas de arara
que faz o seu percurso através do firmamento. Essa interpretação realmente ilógica, como
quase todo mito, reflete uma configuração local muito nítida. Um grupo esquimó não

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poderia criá-lo. (TELES, 1976: 15).

O mito é:

Fantasioso: apela mais para as forças da imaginação.

Pouco lógico: não tem coerência interna, é contraditório.

Explicativo: se não tiver por função explicar algum fenômeno, alguma coisa, não é mito.
(TELES, 1976: 15).

Mito e Mitologia

Mito: é um contexto explicativo feito para esclarecer um fato até então


desconhecido.

Relato mitológico: é aquela elaboração de natureza poética, literária, moral,


que se faz sobre um mito ou algum fato de natureza literária ou histórica.

Mitologia: é o conjunto dos relatos mitológicos, podendo incluir alguns mitos de


determinado povo.

O mito, em suma, é o pensamento anterior à reflexão mais crítica. Nasceu de uma


atitude primária diante das coisas, sem rigor racional e sem crítica pessoal. Isto seria
característica do momento seguinte: o filosófico. (TELES, 1976: 16).

(...) Historicamente, a filosofia desenvolveu-se concorrendo com o mito. Mito significa


na verdade “palavra”, “discurso”, ou ainda “lenda”, “narrativa”. O mito tem autoria
desconhecida; ele é transmitido de geração a geração. Sua autoridade é considerada
incondicional, não-nomeável e evidente. Como cosmogonia (doutrina do surgimento do
mundo), projeta um significado do mundo em sua totalidade. Como lenda isolada,
explica determinados fenômenos da natureza e da vida em geral. (HELFERICH, 2006:
02).

Assim como, por exemplo, o devir e o perecer no ciclo anual, no mito egípcio de Ísis
e seu irmão Osíris, que anualmente morrem e despertam novamente para a vida; ou a
narrativa bíblica do paraíso e do pecado original, o significado profundo da relação entre
consciência de si e culpa. (HELFERICH, 2006: 02).

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(...) Em todo caso é essencial que os deuses, os humanos e a natureza, por princípio,
nunca sejam separados. Como na experiência onírica, as passagens permanecem fluidas,
pois o cosmo (literalmente: ordem) é sempre compreendido como um todo, como uma
unidade de forças atuantes. (HELFERICH, 2006: 02 e 03).

Nada seria mais equivocado do que definir o mito como “irracional”413, já que o
pensamento mítico tem sua própria lógica. É uma força de percepção ou pensamento
integrada, em harmonia consigo mesma, com traços certamente marcantes e
característicos. Nós o chamamos simplesmente de “outro” pensamento, e dele hoje
parecemos separados como que por mundos diferentes. (HELFERICH, 2006: 03).

O que narrava o mito? A origem das coisas a partir da ação ordenadora de um deus
ou de um rei mago. A vitória do deus ou do rei mago sobre outras forças punha ordem no
real, separava os elementos, impunha a sucessão e a repetição temporal, o ciclo da
geração e da corrupção das coisas e seu retorno eterno. (CHAUÍ, 2002: 36).

O mito é essencialmente uma narrativa mágica ou maravilhosa, que não se define


apenas pelo tema ou objeto da narrativa, mas pelo modo (mágico) de narrar, isto é, por
analogias, metáforas e parábolas. (CHAUÍ, 2002: 36).

Sua função é resolver, num plano imaginativo, tensões, conflitos e antagonismos sociais
que não têm como ser resolvidos no plano da realidade. A narrativa os soluciona
imaginariamente para que a sociedade possa continuar vivendo com eles, sem destruir a si
mesma. Graças ao encantamento do mundo – cheio de deuses e heróis, de objetos
mágicos e feitos extraordinários – o mito conserva a realidade social dando-lhe um
instrumento imaginário para conviver com suas contradições e dificuldades. (CHAUÍ,
2002: 36).

(...) para os Antigos, este termo tinha um significado objetivo, dinâmico, conceitual e em
relação direta com a realidade. Em sua origem, todas as mitologias – egípcia, cretense,

413Quando Antônio Xavier Teles afirma que a narrativa mítica é irracional ele não afirma que
os mitos são desprovidos de critérios! Afirma apenas que o critério que discrimina fantasia e
percepção sensorial são confundidos… é o Ato Constatativo de Jürgen Harbemas que é
desrespeitado… todo mito possue critérios associativos (uma outra ‘lógica’) para sua
produção, mas são incoerentes enquanto: averiguação externa, consenso entre versões de
outros povos e auto índice de contradição na própria narrativa. O pensamento mítico é uma
maneira de organizar sígnicos com a pretensão explicativa; porém, não explica aspectos
denotativos: apenas projeta aspectos conotativos (desejantes, autoconstrução) na vida
natural e social!

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grega, romana, indiana, meso-americana, nórdica etc. – tinham por objetivo fornecer uma
explicação plausível para os fenômenos naturais e cósmicos: ciclos das estações do ano,
do dia e da noite, da vegetação, da vida e da morte... e para os fenômenos históricos. Mas
essas mitologias também exerceram uma função moral, didática e iniciática durante
milhares de anos.
Através das narrativas mitológicas podem-se extrair a filosofia e as concepções
específicas de uma civilização, uma povo, ou uma época traduzidas em imagens, figuras,
situações, relatos, aventuras, lugares ou abstrações. (...) As narrativas mitológicas
descrevem comportamentos sobre os quais o tempo não exerceu um efeito e, relendo-as
séculos após sua concepção, percebemos que, afinal de contas, o ser humano nada mudou
e continua a ser animado pelas mesmas motivações: amor, amizade, ódio, vingança,
ambição, ciúme... (JULIEN, 2005: 05).

É a fé da comunidade sobre as grandes questões do mundo e da vida, dos deuses e


dos humanos, que dá ao povo a matéria do seu pensamento e do seu agir. Recebem-no da
tradição popular, irrefletida, crente e cegamente. (HIRSCHBERGER, 1957: 17).

(...) mesmo aqui não tem conotação usual de fábula, lenda414, invenção, ficção, mas a
acepção que lhe atribuíam e ainda atribuem as sociedades arcaicas, as impropriamente
denominadas culturas primitivas, onde o mito é o relato de um acontecimento ocorrido
num tempo primordial, mediante a intervenção de entes sobrenaturais. (BRANDÃO,
2004: 35).

De outro lado, o mito é sempre uma representação coletiva, transmitida através de várias
gerações e que relata uma explicação do mundo. (...) Maurice Leenhardt precisa ainda
mais o conceito: “O mito é sentido e vivido antes de ser inteligido e formulado. Mito é a
palavra, a imagem, o gesto, que circunscreve o acontecimento no coração humano,
emotivo como uma criança, antes de fixar-se como narrativa”.
O mito expressa o mundo e a realidade humana, mas cuja essência é efetivamente uma

414 Mito se distingue de lenda, fábula, alegoria e parábola. Lenda é uma narrativa de cunho,
as mais das vezes, edificante, composta para ser lida (provém do latim legenda, o que deve
ser lido) ou narrada em público e que tem por alicerce o histórico, embora deformado.
Fábula é uma pequena narrativa de caráter puramente imaginário, que visa a transmitir um
ensinamento teórico ou moral. Parábola, na definição de Monique Augras, em A Dimensão
Simbólica, Petrópolis, Vozes, 1980, p. 15, “é um mito elaborado de maneira intencional”. Tem,
antes do mais, um caráter didático. (...) Alegoria, etimologicamente, dizer outra coisa, é uma
ficção que representa um objeto para dar idéia de outro ou, mais profundamente, “um
processo mental que consiste em simbolizar como ser divino, humano ou animal uma ação
ou qualidade”.

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representação coletiva, que chegou até nós através de várias gerações. (...) E, como afirma
Roland Barthes, o mito não pode, conseqüentemente “ser um objeto, um conceito, uma
idéia: ele é um modo de significação, uma forma”. Assim, não se há de definir o mito
“pelo objeto de sua mensagem, mas pelo modo como o prefere”. (BRANDÃO, 2004: 36).

(...) poucos se dão o trabalho de verificar a verdade que existe no mito, buscando apenas a
ilusão que o mesmo contém. Muitos vêem no mito tão-somente os significantes, isto é, a
parte concreta do signo. É mister ir além das aparências e buscar-lhe os significados, quer
dizer, a parte abstrata, o sentido profundo.
(...) um elo entre o consciente e o inconsciente coletivo, bem como as formas através das
quais o inconsciente se manifesta.
Compreende-se por inconsciente coletivo a herança das vivências das gerações
anteriores. Desse modo, o inconsciente coletivo expressaria a identidade de todos os
homens, seja qual for a época e o lugar que tenham vivido. (BRANDÃO, 2004: 37).

Os mitos são a linguagem imagística dos princípios. “Traduzem” a origem de uma


instituição, de um hábito, a lógica de uma gesta, a economia de um encontro.
(BRANDÃO, 2004: 38).

Retratando os desníveis interpretativos por diferentes graus de percepções por parte dos
indivíduos, salienta Joseph Campbell:A mitologia – e, portanto, a civilização – é uma
imagem poética supranormal, concebida, como toda a poesia, em profundidade, mas
suscetível de interpretação em vários níveis. As mentes mais superficiais vêem nela o
cenário local; as mais profundas, o primeiro plano da vacuidade, e entre esses extremos
estão todos os estágios do Caminho da idéia étnica para a elementar, do ser local para o
universal, que é o Todo-Humano, e tanto sabe quanto teme saber. (CAMPBELL, 1992:
380).

(...) Os mitos e lendas são uma invenção humana universal. Em diversas épocas e em
diversos lugares surgiram como explicações dos problemas críticos que os seres humanos
enfrentam sempre. Entre as suas preocupações mais importantes figura o propósito da
vida, o infortúnio, o êxito, a crueldade, o amor e a fertilidade, a morte, a vida futura, as
relações familiares, a traição, o velho contra o novo, o humano contra o divino, a magia, o
poder, o destino, a guerra, os acidentes, o azar, a loucura, a criação e a natureza do
universo. (COTTERELL, 1989: 7).

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