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de que, no seu próprio entender, foi investido pela ciência, guerreia contra a alma
religiosa da humanidade. O lugar próprio e objeto desse combate é o campo do
simbolismo sagrado, pois a religião só pode ser compreendida através das formas
(sensíveis e intelectuais) que a exprimem e fazem existir culturalmente. Desencadeando
esse conflito, a filosofia queria única e simplesmente purificar a razão humana, quer
dizer, restituí-la em seu estado natural despojando-a de todas as impurezas acumuladas
pela ignorância e pela superstição. Todavia, à medida que se desenvolvia essa vasta
crítica da razão religiosa, impunha-se a obrigação, não somente de combatê-la, mas
também de explicar seu surgimento na história humana. Erguendo-se contra a religião,
a razão não tardaria a perceber que seu inimigo residia em si mesma, no segredo da
consciência humana. Ela tentou extirpá-lo, tentativa que, em trezentos anos, conduziu a
crítica filosófica à rejeição até da razão pura, destituída de sua pretensão hegemônica, e
portanto a uma espécie de suicídio especulativo de que o pós-estruturalismo dá hoje
espetáculo: a alma religiosa morrendo arrasta consigo a alma racional.
Uma vez que essa autodestruição é na verdade impossível (nem Deus, nem a
inteligência podem “morrer”), devemos questionar esses três séculos de filosofia
europeia[1], e buscar, através da imensa rede de proteções antirreligiosas com que a
crítica racionalista cercou-se, a orientação natural da inteligência para o sagrado. E,
como o sagrado existe para nós sempre sob a forma de símbolos, salvar a inteligência
desses enganos é ordená-la ao simbolismo, fazer com que converta-se ao símbolo é
reconduzir o logos para o mythos. Mas a inteligência obedece unicamente a si mesma,
quer dizer à evidência do verdadeiro. Seria necessário, para operar essa conversão,
provar racionalmente a verdade dos símbolos religiosos? Ora, esta é uma tarefa
impossível e aliás contraditória: se a inteligência pudesse demonstrar a verdade dos
símbolos, ela não teria nenhuma necessidade de sua mediação para atingir o
Transcendente que neles se presentifica e se dá a conhecer. Em outras palavras, a fé
seria inútil e cederia seu lugar à razão. Isso nos dá uma ideia da importância do nosso
assunto, bem como da amplitude e abundância dos debates que ele suscitou. Foi
entretanto essa via direta (e positiva) que seguiu a mais vasta tentativa filosófica dos
tempos modernos, o hegelianismo: reconciliar o saber e a fé, o espírito e as formas
culturais de que se revestiu, pela redução de sua contingência à necessidade lógica de
seu surgimento, constituindo assim uma pseudognose racionalista e totalitária. O preço
pago foi o da própria Transcendência, que desapareceu e mergulhou na indefinitude de
suas formas imanentes, o que desembocou no necessitarismo mais sistemático e
horizontal possível.
II – Era preciso então recusar a via direta, e certamente jamais pensamos em provar
dedutivamente a verdade do simbolismo religioso. Ao contrário, acreditamos que é
preciso manter um hiato, humanamente intransponível, entre a inteligência e os
símbolos (análogo ao que separa o sujeito cognoscente dos objetos conhecidos,
naturalmente ou por revelação), pois é justamente aceitando essa distância que o
intelecto realiza a verdade de sua natureza: a inteligência é relação e não acede à sua
identidade senão por meio de sua ordenação consentida à alteridade do ser; ela somente
“integra” aquilo a que se submete. Levar a inteligência filosófica a consentir
especulativamente nessa submissão, eis o que designamos como sua conversão ao
símbolo, e tal era a tarefa que se nos impunha. Por isso, a única solução era o que
denominamos de via indireta ou negativa.
Esta via consiste em mostrar como a revolta contra o símbolo, se levada até o fim,
conduz a razão a sua própria destruição. Ora, evidentemente a razão não tem o poder de
aniquilar a si mesma: quem racionalmente nega a razão afirma-a. Só resta então abrir-
se para a inteligência do símbolo a fim de receber sua luz. Nossa démarche, pode-se
ver, assemelha-se à de Descartes nas Meditações metafísicas: através de uma dubitatio
universalis (o exercício de uma dúvida universal), estabelecer a necessidade de uma
conversão intelectual ao simbolismo. Também se pode ver as diferenças. Diferença de
objeto: não é mais com suas representações ideais que a consciência deve procurar
romper (a fim de constatar a resistência que sua própria existência consciente oferece a
essa dúvida), é com suas representações religiosas. Diferença de terreno: o lugar para o
exercício da dubitatio não é mais o do conhecimento, mas o da cultura, de acordo com
a natureza da crise filosófica de nosso tempo, que não é mais, como em Descartes, a de
nossa situação cognitiva (ligada ao surgimento da ciência no século XVII), mas a de
nossas raízes culturais (ligada aos transtornos de nossa maneira de viver através das
técnicas e pelo desmoronamento das sociedades no século XX). Diferença de método,
enfim: é inútil proceder “artificialmente”, através de meditações pouco “naturais”,
como diz Descartes; basta acompanhar o trabalho de desconstrução do símbolo tal
como o realizou a história do pensamento europeu ao longo de mais de trezentos anos e
que hoje parece estar completamente acabado.
Mas o símbolo não opera somente, do ponto de vista do referente metafísico, uma
“distinção-unificação” vertical de diversos graus de realidade; opera também, e em
consequência, uma “diferenciação-mediação” horizontal no plano da existência
humana. Enquanto signo, com efeito, interpõe sua mediação entre o homem e o mundo,
despertando-nos à consciência diferencial do sujeito e do objeto, e permite-nos ao
mesmo tempo entrar em relação com as coisas. Em suma, a triangulação significante-
significado-referente é uma consequência, no interior do próprio símbolo, da
triangulação signo-homem-mundo (ou cultura-consciência-natureza, ou revelação-
alma-criação) que estrutura o campo da existência humana.
Certamente não pretendemos que Galileu se tenha proposto elaborar uma crítica do
simbolismo, embora tenha abordado a questão por várias vezes. Mas, ainda que
indiretamente, a nova ciência não poderia deixar de ter seus efeitos sobre as formas do
sagrado. Ela constitui o primeiro momento da crise do simbolismo por ter destruído seu
fundamento ontocosmológico. E é estudada aqui somente sob esse aspecto. Ora, se
admitirmos que o ato final do simbolismo realiza-se na determinação do referente,
compreenderemos também que o momento inicial ou inaugural da crise pode ser
definido como a suspensão da referência: sob a influência da nova física, os símbolos
sagrados perdem tanto seu referente metafísico, do qual deixam de ser a
presentificação, quanto seus referentes particulares, cuja existência objetiva é negada.
Vê-se que o primeiro momento da crise concerne necessariamente ao último polo do
triângulo simbólico. Por isso nossa primeira parte bem poderia intitular-se: A negação
do referente ou a destruição do mitocosmo.
Como se pode ver, a crise do simbolismo toma então expressamente a forma de uma
crítica da religião. E essa crítica incide necessariamente sobre o segundo polo do
triângulo do símbolo, ou seja sobre o significado cuja gênese situa-se no fundo de uma
consciência religiosa desconhecida de si mesma. Este é o lugar próprio e central da
crítica do signo simbólico, e portanto é também o momento mais importante na crise do
simbolismo. À hermenêutica tradicional dos símbolos sagrados, a razão filosófica opõe
uma hermenêutica desmitificante da consciência religiosa: o significado dos símbolos
não é o que se pensava porque a consciência religiosa não sabe o que diz. Por isso
nossa segunda parte bem se pode intitular: A subversão do significado ou a
neutralização da consciência religiosa.
Pensava-se assim ter curado a alma para sempre da loucura religiosa. Entretanto,
concentrando todos os esforços de sua crítica na subjetividade de uma consciência
alienada, a filosofia esqueceu-se dos próprios símbolos. Ela talvez explicasse o
processo de simbolização (ao menos a seus próprios olhos), mas, certamente, deixava
inexplicados os símbolos enquanto tais, em sua contingência e variedade. É entretanto
neles, é o que diz essa crítica, que o homem descobre a verdade sobre si mesmo. Como
não acabariam eles por monopolizar a atenção do pensamento moderno? Compreender
de que inconsciência nossa consciência é feita, e como, enganando-se a si mesma,
produz sem perceber toda a simbólica religiosa, desperta de início o mais vivo
interesse, e mesmo um reconhecimento admirativo pelos sutis hermeneutas que
souberam desmontar o estratagema. Chega entretanto o momento em que, esgotado
esse gênero de interesse, a questão se desloca: que a consciência engane-se a si mesma
e se oculte, muito bem; mas por que sob tal disfarce e não sob outro? É então o
primeiro polo do triângulo semântico, o significante enquanto tal, em sua singularidade,
que vem enfim ao primeiro plano, depois que o referente e o significado,
definitivamente neutralizados, deixaram de ocupar o primeiro plano da cena crítica.
Com isto somos conduzidos à terceira fase da crise do simbolismo; daí o título de nossa
terceira parte: O império do significante ou o esfacelamento do símbolo, consagrada
essencialmente aos estruturalismos contemporâneos. Podemos avaliar a diferença no
tratamento que essas três críticas infligem ao símbolo: se a primeira nega o referente, se
a segunda subverte o significado, a terceira exalta o significante, confiando-lhe aliás
uma carga esmagadora: agora são as unidades significantes que, é o que se pretende,
organizam o campo cultural e que portanto estruturam tanto a consciência quanto a
razão. O logos, destituído de sua realeza, torna-se um simples efeito do funcionamento
da ordem dos signos.
Tal é a conclusão geral a que chega, segundo seu próprio testemunho, a filosofia
contemporânea, e que põe a questão do simbolismo sagrado no cerne dos debates
especulativos do Ocidente. É também essa conclusão que nos conduz ao princípio
metafísico de toda démarche intelectual, e que compõe o título de nossa quarta parte: O
princípio semântico ou a evidência primeira do logos. Era com efeito necessário que o
logos fosse até o limite de sua autopurificação para que experimentasse seu caráter
impossivelmente suicida (a exigência de sentido é absoluta) e reconhecesse a
indissolubilidade de facto de sua relação ao símbolo. É a isto que tende nossa
interpretação do célebre paradoxo de Epimênides, ao qual atribuímos o valor de uma
prova iniciática para entrar na via filosófica. Fica assim estabelecida, per absurdum, a
essencial conjunção do logos e do mythos, e portanto reconhecido, em sua necessidade,
o fato do simbolismo religioso: ninguém pode extirpar o sagrado da alma humana sem
destruí-la. Quanto aos símbolos, não se pode ir mais longe: demonstrar racionalmente
sua necessidade lógica equivaleria a negar o mythos, fundamentando-o dedutivamente
sobre o logos e portanto reduzindo-o. Mas quanto ao intelecto, é possível transformar
em uma ordenação legítima a relação de fato que o une ao símbolo. Meditando sobre o
argumento ontológico, na formulação que lhe dá Santo Anselmo, a inteligência,
defrontando-se com a suprema tarefa de pensar o Infinito, descobre sua própria
natureza teofânica.
Assim alcançamos nossa quinta e última parte, onde opera-se enfim A conversão da
inteligência ao símbolo, que é, em verdade, o princípio hermenêutico fundamental. Se
com certeza a exigência de sentido, constitutiva da inteligência, prevalece
absolutamente, ela entretanto só pode realizar-se na renúncia (aparente) à sua própria
luz e em sua submissão à revelação do símbolo. Se meditarmos no caminho percorrido
veremos que face às exigências de uma autêntica filosofia não é possível haver outro. O
que significa também que, nessa conversão, resolve-se o conflito da razão e da fé, da
universalidade do logos perante a contingência das culturas religiosas: aqui, o sentido
une-se ao ser, a inteligência informal une-se às formas sagradas, morre nelas e
ressuscita transfigurando-as. Ao impossível suicídio especulativo de uma razão
ilusoriamente desmitificada responde o sacrifício de um intelecto que só encontra sua
realização na mediação crucificante do símbolo, como nos ensina, exemplarmente, o
mistério da Noite pascal.
[1] Nem toda a filosofia europeia é antirreligiosa. Mas toda a filosofia moderna – a que se quer
propriamente filosófica e moderna – o é.
[2] Pode-se aplicar esta análise a outros símbolos, à cruz por exemplo: o significante, é a
intersecção ortogonal de dois segmentos de reta; o sentido, é a ideia de conjunção entre dois
elementos ou duas ordens diferentes; o referente particular, pode ser o sacrifício de Cristo, a
Santíssima Trindade, o encontro do raio criador com um plano de existência, ou do Céu e da
Terra, ou do divino e do humano; o referente metafísico, é a implicação recíproca da
Transcendência absoluta e da Imanência total.
[3] Existe entretanto um protótipo incriado do simbolismo: o Filho é símbolo do Pai no espelho do
Espírito. Nesse sentido, o Verbo, lugar divino dos arquétipos, síntese de todas as possibilidades de
criação, identifica-se ao Ser como princípio dos existentes e deve ser visto como o Simbolizante
supremo de que o Espírito Santo é o supremo Hermeneuta, e o Pai o supremo Referente.
Reencontramos assim, transposto em modo principial, o triângulo semântico. Quanto ao referente
metafísico, que evidentemente não é um referente no sentido próprio do termo, e que constitui a
identidade dos polos do triângulo, ele corresponde à Essência divina ou Deidade.
[4] A primeira corresponde à essência do símbolo, a segunda à sua existência como entidade
significante.
[5] Considerado de cima para baixo, a partir do Princípio, o raio semântico corresponde ao raio
criador.
[6] O que não implica em nenhum panteísmo. O mundo só proclama de Deus o que d'Ele é
enunciável. Sua glória (ou irradiação da Sua palavra criadora), não sua Essência absoluta. O que
não é pouco: sabemos assim que Deus tem a beleza da rosa, a força do leão, a pureza da água, o
esplendor da luz, a majestade de uma montanha, a imensidão do oceano, a doçura do leite, a
nobreza da águia, a sabedoria do elefante, a realeza do sol, a profundeza da noite, a perfeição do
céu, o rigor da morte, a alegria da vida, a centralidade do homem, e assim por diante; mas tudo
isto subsiste n'Ele em um modo supereminente e inefável.