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ISSN 0042 - 3955

REVISTA TRIMESTRAL DE FILOSOFIA E CIENCIAS


HUMANAS DA PUCRS
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“,VLIANI
l
PR ESSAO: Nao necessariamente as idéias emitidas
-
BECE nos artigos devem coincidir com as da
Universidade.

V517VERlTAS Vol.
1, n.1 (nov. 1955)
I Porto Alegre: PUC, 195
'220m
5
Trimestral

1.Peri6dicos Gerais 2. Cul


tura - Periédicos l. PUCH
S
coo 059.8165
cou 05(816.5)
lndices para Catalogo Sistematico:
Periédicos Gerais: Rio Grande do
Sul 05(816.5)
Rio Grande do Sul: Periédicos Gera
is (816.5)05
Catalogagéo elaborada pelo
Selma?fig‘QWSMWQJiéemcogasumimeaaserum:Pumas M W
ISSN 0042 — 3955

NA1DA.ELLCR§
REVISTA TRIMESTRAL DE FILOSOFIA E CIENCIAS-.H.UMA
PMCZr—flt}. !

SUMARIO BIBLIL'DTEC A
CEi'1 Flint.

as ..é. Lilia.
....i.c>
Apresentagao ..........................

Um autor, uma abordagem: Pierre Bourdieuv'

O referencial teorico de Bourdieu


............ 207
e as condigoes para sua aprendizagem e utilizagao
Odaci Luiz Coradini
........... 221
O poder e o politico na teoria dos campos ........
Céli Regina Pinto
............ 229
Conceitos e métodos de anélise do campo artistico
Maria Lucia Bastos Kern
................ 237
Pierre Bourdieu e as Iegras dolcampo literério
Vera Teixeira de Aguiar
As contribuigoes de Bourdieu para a analise 243
.............
do campo educacional ....................
Tomaz Tadeu da Silva

A dinamica estrutural do campo religioso:


........ 249
alguns dados empiricos ........................
Julieta Beatriz Ramos Desaulniers

[TIERITAS ‘ Porto Alegre [v.41 l [19162 1 Junho 1996


i

i mmmm :1: \: fikfil E» 5i


Um autor, uma abordagem: Jiirgen Habermas ............ 261
Habermas e a comunicagéo idealizada ..................... 263
Luis Milman
A perspective habermasiana na investigagéo cientifica: 279
consideragoes iniciais ..................................
Julieta Beatriz Ramos Desaulnrers

A perspectiva habermasiana na investigaoéo oientifica 1


e a construgéo do conhecimento .......................... 28
MarilL’z Fontoura de Medeiros
A perspective habermasiana na investigagéo cientifica:
a racionalidade comunicativa na educagao .................. 291
Nadja Hermann Prestes
A teoria da agéo comunicativa como referencial teérico
a0 estudo da interdisciplinaridade .........................
299
Monica Bragaglia
Habermas e a pOS-modernidade ....................
...... 307
Rosa Maria F. Martini
Tempo: uma categoria, vérias abordagens ....
.......... 313
Tempo — uma categoria, Vérias abordagens ....
.............. 315
Julieta Beatriz Ramos Desau
lniers
O tempo e a fisica ...............
......... ............. 323-
Solon Pereira da Cruz Filh
o
O tempo na pesquisa psicanalit
ica ........................ 333
Jose Luiz Caon

Tempo e narrative ........................


............. 339
Maria da Gloria Bordini

O tempo e a(s) memona(s) ................


.............. 349
Elizabeth Wendha usen Rochadel Torresin
i
Tempo e construgéo do social ................
............ 355
Julieta Beatriz Ramos Desa ulniers

Noticias bibliogréficas ..............................


... 361

33 3,! 3: 33 $3333 33333.,3835323‘3 3.1 3: 33 33: 333.. .3 1‘ {333333 33%;)” 3E 33 3E3 3333 31:33 33.333333 33333 E 3.5% 13.333333333333333.
APRESENTAQIXO

O presente nrimero da VERITAS refine a maioria das palestras profe-


ridas por professores e pesquisadores da PUCRS e de outras universida-
des, junto aos Cursos de Extensao que forarn realizados em 1994 e
1995, na PUCRS.
* Urn autor, uma abordagem: Pierre Bourdieu. (13/04 a 01/06/94)
* Urn autor, urna abordagem: Jiirgen Haberrnas. (05/06 a 09/06/95)
* Tempo: uma categoria, varias abordagens. (25/04 a 28/04/95)
alguns
Tais cursos forarn organizados corn 0 intuito de aprofundar
investigagoes que
dos pressupostos epistemolégicos que embasam as
se articu-
venho desenvolvendo, juntarnente corn uma equipe, as quais
Nessa
larn a sublinha de pesquisa "formagao, trabalho, instituigao".
—se no referencial ‘
perspectiva, o foco de interesse desses eventos centra
n Habermas —
reorioo—metodologico de autores — Pierre Bourdieu e Jiirge
e na categoria de analise de carater universal — o tempo — enquanto
fundamentos indispensaveis ao ato de pesquisar.
revis—
Essa publicagéo e mérito, ern primeiro lugar, do diretor dessa
os meios para reali-
ta que ern varios momentos instigou—rne a encontrar
s que acei—
zar esse empreendimento. Em segundo lugar, dos palestrante
abordado ha a1-
taram produzir um texto sobre o assunto que haviam
manifestaram in—
guns meses atras. Tambérn, é Inérito das pessoas que
n esses eventos, o
teresse em obter o texto das palestras que integrarar
lho. E, obviarnen—
que assegurou o ammo para se concretizar esse traba
subprojetos que
te, é mérito da equipe de bolsistas* que atua junto aos
estéo em andamento. '
os meus
Por isso, aproveito a oportunidade para expressar a todos
sinceros agradecimentos.
ar es-
Quero, ainda, observer que o esforgo empreendido para realiz
pensado sempre
ses cursos e a sua decorrente publicaoao sera recom
seja utili—
que o conjunto de conhecimentos cientificos abordados aqui

Arcari.
' Dulcemara Guazzelli Gonzaga; Maria Alice Canzi; Terezinha Venturin e Liana

WERITAS ( Porto Alegre )v. 41 i n9 162 1 Jun:—


flip/$335311) if: {E N15139:) ii $633319 1
zado conforms postula Pierre Bourdieu: "como um capital produtivo que
se investe na pesquisa para produzir resultados”. Com essa postura ten-
de-se a ampliar as possibilidades de se instaurar algumas ruptures junto
a nossa formagéo, que tem insistido em tratar o saber Cientifico como
uma cultura no sentido de "um tesouro que se contempla, que se vene—
ra, que se celebra", constituindo—o assim num capital destinado a ser
exibido e a produzir dividendos simbolicos, ou simples gratificagoes
narcisistas.
Corn 0 intuito de superar a logica dessa formagao convido-o, caro
leitor, a utilizar todos os saberes contidos nos textos apresentados a se—
guir, sob a responsabilidade dos seus respectivos autores, como um ca—
pital produtivo que se invests na pesquisa e em outras atividades que
empreendemos, enquanto profissional ou cidadao.

Julieta Beatriz Ramos Desaulniers

EM‘ME E>E €935§3§E E? E EEEEE EE E


‘ NH. ‘1' I
we:
. ”WWI?!”
' 1
-' .
O curso visou apresentar as concepcoes de ciéncia e de pesquisa defendidas
por Pierre Bourdieu e 0s principals pressupostos e categorias de sua abordagem
te6rica. O debate em torno dos campos que compoem o espaco social e que se
constituem objeto de estudo do referido autor, sera articulado a investigacoes reali—
zadas recentemente ou em andamento, procurando salientar a importancia da uni:
dade entre teoria e método. Com essa preocupacao, o referencial de Bourdieu sera
confrontado com 0 de outros estudiosos (Michel Foucault, por exemplo), para colo-
car em relevo a questao das diferentes bases epistemolégicas das teorias gerais e
03 reflexos disso a pesquisa.
Os textos apresentados procuram:
a) discutir e analisar as principais categories e pressupostos da abordagem
teérico-metodolégica de Pierre Bourdieu, destacando o significado e a utilidade
desse referencial para a construcéo dos saberes cientificos junto a diversas areas
do
conhecimento, no ambito das Ciéncias Humanas e Social
s.
b) assinalar a importancia das teorias gerais para a retificacao e conseqi
iente
avanco do conhecimento cientifico, que se realiza essencialment
e através do pro-
cesso de pesquisa.
o REFERENCIAL~TEORICO
DE BOURDIEU E AS CONDIQOES PABA
SUA APRENDIZAGEM E UTILIZAQAO*
Odaci Luiz Coradlni“

— The paper exposes some


SINTESE — Neste artigo sao expostos alguns fun- ABSTRACT
l science
damentos da abordagem e da concepcao de cién- iundaments of the approach and socia
followed by the
cias sociais de Bourdieu, para, com base nisso, conceptualization oi Bourdieu.
comm on problems in
apresentar os problemas mais freqtientes nos es- presentation of the more
learn ing and appli catio n. The main
forcos em sua'aprendizagem e utilizacao. O argu- their
same time that Bourdieu's
mento principal é 0 de que. se por um lado, 0 es- argument is that at the
tical sche me may repre sent an advance ti
analy
quema analitico de Bourdieu pode representar um due to its learning
the social scien ces.
avanco para as ciéncias sociais, por outro lado, itions for the
devido aos seus requerimentos quanto a aprendi-
requirements and the e>dsting cond
in Brazil, it also
pratice of professional activity
zagem e condicces de exercicio profissional, fren-
presents new challenges and difficulties.
ta 2‘: situacéo brasileira, apresenta tambem novos
desalios e diiiculdades.

maio
uma palestra realizada pelo autor em
A motivacao inicial deste artigo fol principais cate go-
al tedrico de Bourdieu e suas
de 1995 com o titulo de "0 referenci e a atua lidad e de al-
vista a Oportunidade
rias de analise", na PUCRS. Tendo em em
algu ns problemas comumente presentes
guns temas conexos, especialmente acao , nas cond i-
desta abordagem e sua utiliz
esforcos da aprendizagem e dominio Brasil e nas qua is ocor rem
lares encontradas no
cees culturais, institucionais e esco
tica e inclui-los.
estes esforcos, resolveu-se ampliar a temé

____'_’_———-
ceriam ser abordados, come, por
problemas relevantes que mere
Ha ainda uma série de outros do esquema analitico de
cées (ou nae) de compatibilizacao
exemplo, o das possibilidades e condi decor rentes das diferencas nos refer-
ou entéo, os proble mas
Bourdieu com outros disponiveis; ma, Comp arativarnente as con-
das formulacoes daquele esque
enciais empiricos que estéo na base nivel, nos restringimos. neste
em vista 0 espaco dispo
dicoes encontradas no Brasil. Porém, tendo do esquema analitico de Bourdieu em
texto. aos problemascomumente encontrados na utilizacao
nosso meio.
S.
“ Universidade Federal do Rio Grande do Sul. UFRG
‘ v.41 l n9 162 Junho 1996 l p. 207-220
VVERITAS Porto Alegre
a x t Midst: rl£t $35 TEQEQGESQ m Ed
1 — A concepcao de "ciéncia do mundo social" de Bourdieu
e as origens de alguns problemas em sua utilizacao

N510 se tern nenhuma pretensao de se fazer uma "apresentacao" deste "refe-


rencial teérico", inclusive porque ela se tornaria "manualesca" e iria de encontro a
propria concepcao de seu autor relativamente ao ensino das Ciéncias sociais. 0 ob-
jetivo principal deste artigo é destacar alguns elementos dos fundamentos da abor-
dagem de Bourdieu que podem estar na origem de dificuldades em sua utilizacao,
nas condicoes existentes no Brasil.1
Como qualquer abordagem, a de Bourdieu é o resultado de um conjunto de
condicoes que abarcam diferentes niveis, ou seja, intelectuais, escolares e institu-
Cionais, existentes na Franca e em outros centros culturais nas ultimas décadas.
Suas bases epistemolégicas e conceituais decorrem de suas estratégias de Ieelabo—
racao e reformulacao nos confrontos entre diferentes concepcoes de ciéncias sociais
vigentes e por outro lado, de sua posicao especifica ao tentar enfrentar a "agenda
de problemas" subjacente. Estas estratégias de contraposicao e elaboracao de uma
nova "agenda de problemas", no entanto, nao partem de um vazio, mas do conjun-
to de avancos e problemas entao existentes. O que ocorre de novidade é a forma
de repor estes problemas em novas bases, a partir de uma posicao especifica nes-
tes conl‘rontos.2
O que ha de especifico nesta posicao? Mesmo sem a possibilidade de detalhé-
los, devem ser destacados alguns de seus fundamentos, tendo em vista o que é
exposto adiante e, neste sentido, o primeiro elemento a ser destacado é o raciona-
lismo como base para a concepcao de ciéncias sociais. Obviamente, qualquer
"ciéncia" que se pretenda como tal, inclusive as ”sociais“, tern no "racionalisrno
aplicado", de um modo ou de outro, seu fundamento. Mas no case da abordage
m
de Bourdieu, é necessario especificar que nao apenas se trata de um "racionalismo
radical", como também é uma condicao sine qua non e de modo exclusivo
, o que
tern uma série de implicacoes. Assim, neste esquema analitico, a unica
“utopia"
aceita para as ciéncias sociais é a "utopia racionalista“, ou seja, fica
excluida como
ilegitima qualquer relacao com as mesmas enquanto busca de "sentido
" ou "ontolo—
gia" ou entao, tendo em vista algum objetivo "préitico".3
Um segundo principio basico, vinculado a esta exigéncia das ciéncias
sociais
enquanto “racionalismo aplicado", é sua autonomia frente
as demandas e determi—
nacoes sociais, até porque “nao existem [...] demandas sociais
por urn saber total
sobre o mundo social". Assim, nesta concepcao, as ciéncia
s sociais somente podem
se desenvolver na medida em que ha "a autonomia do
campo de producao cientifi—

1 Devido a isso, inclusive, nao sao abordadas as alteracoes pelas


quais passou este esquema analitico
no decorrer da carreira do promo autor. Para tanto, podem ser
consultados, entre outros, particular-
mente Bourdieu (1979, 1980 e 1987),
Ouanto aos fundamentos epistemologicos e teéricos (a epistem
ologia de Bachelard, o estruturalismo
lingiiistico e de Levi-Strauss, a sociologia de Marx. Durheim
e Weber, etc.) e as apropriacoes 6 con-
frontos com outras abordagens, ver principalmente Le Sens
Praiique (1980) e La Distinction (1979).
Para um maior aprofundamento destas formulacées. particular
mente no que tange aos fundamentos
do campo cientifico e a diferenca entre "autoridade cientifica" e “autoridad
e social" 9 os principios de
sua legitimacao. ver particularmeme Bourdieu (1975, 1976. 1982b
e 1986b).
, 1982b:
3a" e dos "interesses especificos que se engendram no mesmo" (Bourdieu
26/32).
[...]
Embora o prOprio Bourdieu reconheca que, de fato, a "sociologia partilha
seja, "a logica do campo politico" e
de duas lOgicas radicalmente discrepantes", ou
376. Grlfos no original ), para o mes-
a "ldgica do campo Cientiflco" (Bourdieu, 1991:
que nao o préprio
mo, as ciéncias soclais que dependem de outras determinacoes
"deman das externa s", sac desleg itimadas en-
"racionallsmo aplicado", ou seja, de
a "autono mia" é uma condicé o sine qua non
quanto tais. Esta proposicao de que
existén cla) das ciéncia s socials , tern uma
para o desenvolvimento (e para a prépria
pelo menos ser esque rnatica mente elenca -
série de desdobramentos, que devem
da ruptur a com a "ilusao da transp arénoi a“ e
dos. Em primeiro lugar, a necessidade
apenas com a "compreensao ime-
com as "prenocoes" e, consequentemente, nao
ées" de cunho "cultural" ou das "filosofias so-
dlata", rnas tambérn corn as "quest
acao” (Bourdieu et a], 1968:
ciais” ou as ”questées ultimas do futuro da clviliz tores
47/48). Desse modo, as “questées” postas pelos ”intelectuais" ou pelos "produ
estudo 9 11510 incorporadas como ref-
culturais” devem ser tomadas como objeto de
s nao podern "cornungar corn seu
erenclais pelas Ciéncias sooiais. As ciéncias social
cia crimplice pelas expectatlvas esca-
objeto", para nao sucumbirem na "complacén
Isso inclui a rendncia tanto do profetis—
tolégicas" do "grands pdblico intelectua “.
de sucesso e seu’publico" (Bourdieu
mo, como da "lc'Jgica da relacao entre o autor
ldade baseadas no "reconhecirnento" e
et a], 1968: 47/48), ou seja, relacoes e legitim
pares.
nao no controls do campo clentiflco pelos
Nesta perspectiva, a unlca forma de as Ciéncias sociais romperem corn as pre-
“visoes e dl-visoes do mundo social",
nOQOes e explicitarem os fundamentos das
s” e nao "racionais") on as bases culturais
que sac "culturais" (e portanto, “arbitréria
nsao dos principios que estruturam os
da dominacao simbélica, é através da apree
posigoes nos campos de luta (Bourdieu et
respectivos illusio e doxas subjacentes as o
este pressuposto da ”autonomia do camp
al., 1968: 48).4 Em sintese, devido a "renu nciar ao pro-
éncia da sociologia é a de
cientifico”, uma das condicoes de exist far
r da ciéncia ou do efeito da ciéncia para triun
veito social” e asslm nao “se servl pode r" um "ins—
, de fazer da ”cléncia do
socialmente no campo Cientifico” ou entao
1984: 24 e passim), Visto que o "poder social" tern
trumento de poder" (Bourdleu, o
o "poder clentiflco”. A ”logica do camp
outro fundamento e "racionalidade" que recon hece so-
mais avancados, conhece e
cientifico". pelo menos em seus ”estados
“ e, portanto, na "comunicacao clentifi—
mente a "forca intrinseca da idéia verdadeira social" (Bourdieu,
inculada de sua forca
ca" a "forca dos argumentos" esta "desv
1991: 376).
requerimento de "autonomia" das
Urn terceiro principio geral, decorrente deste
iqao sine qua non para esta abordagem, é
ciéncias socials, que também é uma cond
"sujeito objetivante". Porém, nao se trata
a necessidade da "objetivacao" do préprio
a e controle de suas "prenocoes",
apenas da necessidade de 0 sooiélogo ter clarez
____________..—--—-
cao e consagracao cultural, das oposicoes
4 Sobre os fundamentos da analise sociologica da domina
cultura escolar, ver particul armente Bourdjeu (1979); sobre a analise
entre a cultura dominante e a
(1983) e sobre o confronto entre a sociologia e o
dos determinantes sociais da filosofia, ver Bourdieu ver, entre outros,
a chamada cléncia politics,
campo politico ou as vinculacées de sua doxa com
particularmente Bourdieu (1988).

sasfiffis
"sentimentos", valores, preferéncias tematicas, etc. Esta objetivacao abarca o socio-
logo como "ser social" 9 as préprias condicoes de existéncia da sociologia e, por-
tanto, o conjunto de determinacoes sociais por ele interiorizadas; em segundo lu-
gar, as condicoes culturais e institucionais e 0s principios de classificacao e legiti-
macao subjacentes e que estao na base das possibilidades de existéncia das c1en-
cias sociais. Para tanto, "o sociologo encontra armas contra os determinismos so-
ciais na propria ciéncia". particularmente na "sociologia da sociologia" (Bourdieil.
1982b: 9). Entretanto, esta "sociologia dos determinantes sociais da pratica sociolo~
gica", ou seja, a explicitacao 9 controle de tudo aquilo que pode nao ser "raciona-
lismo aplicado", nao se constitui em algo facil e generalizavel. Iss0 porque, além da
mencionada autonomla das ciéncias sociais e da iormacao escolar e conseqiiente
"capital cientifico" necessarios, esta ”objetivacéo“ pressupoe também que as cien-
cias sociais nao sejam utilizadas contra outros, nem como instrumento de defesa,
”mas como arma contra si mesmo. Mas ao mesmo tempo, para ser capaz de utili—
zar a sociologia até o fim, sem se proteger demasiadamente, é necessario [...] estar
numa posicao social tal que a objetivacéo néo seja insuportavel” (Bourdieu, 1987:
38). .
Em quarto lugar, esta concepcao de ciéncias sociais pressupoe uma distincao
rigorosa entre a "razao" e 0 "sentidc pratico" e por outro lado, a "16gica tactica“
(esta, um “privilégio” do analista que, numa posicao ”externa", suspende sua “ade-
séo primordial" e ontologica ao mundo social). Por sua vez, a "iogica pratica" supoe
sempre uma "economia das praticas" e um ”sentido prético” na relacao com o mun-
do social, ou seja, uma "sooio-logica", cuja confusao com a "ldgica tecrioa" resulta
no "intelectualismo" (projecao da posicao do "intelectua1") (Bourdieu,
1980: passim)
Uma das principais decorréncias disso para o cientista social é que
esta "légica teo-
rica" requer uma forma de pensamento que pressupoe "uma
reconversao de toda a
visao ordinaria do mundo social que se Vincula unicamente as coisas
visiveis" e
"implica uma ruptura radical com a filosofia da histéria que
esta inscrita no uso or-
dinario ou semi-culto da linguagem [...] ou nos habito
s de pensamento assoclados
as polémicas da politics”... (Bourdieu, 1982b
: 32).
Mas esta distincao entre a "razao pratica“ e a "razao tedrica
" tem muitas outras
decorréncias, tanto em termos conceituais como
metodologicos. Ocorre que, nesta
perspectiva, nao é o estatuto epistemolégico que
diferencia as ciéncias sociais das
ciéncias da natureza, mas o fato de que diferenteme
nte destas, o objeto das cién—
cias sociais sac “sujeitos classificantes". Cons
eqiientemente, é necessario "romper
com a ambicao, que é a das mitologias, de funda
r na razao as divisoes arbitrarias
da ordem social e em primeiro lugar a divisa
o social do trabalho e dar assim uma
solucao légica cu cosmolégica a0 problema da
classificacao dos homens", a qua] "a
sociologia deve tomar como objeto, em vez de se
deixar tomar por ela", pois a “luta
pelo monopélio da representacao legitima do mund
o social" e a "luta de classifica-
coes” é "uma dimensao" de qualquer luta (de classe
s, de idade, sexuais, etc.) (Bour-
dieu, 1982b: 14). Em sintese, as ciéncias sociais devem
renunciar a pretensao de
ser 0 arbitro das classificaQOes sociais (por example,
"0 conceito de classe“, de "Es-
tado", etc.) a tomar a légica das prdprias ClassificaQOe
s e suas condic6es de objeti—
vacao social como objeto, com base numa posicao "externa". Porém,
nao se trata
apenas dos principios de classificacao e legitimacao, mas também
de sua objetiva-

it, EfiTfififik {'3 33333 E {E} 1E5}.


9510 social nas lutas, nas instituicées, na linguagem, nas filosofias e praticas so-
ciais, e isso abrange inclusive as préprias divisées que atravessam as ciéncias so-
ciais e suas utilizacoes nestas lutas.
O primeiro objetivo destes esforcos é evitar a coniuséo entre a "razao pratica" e
a "razao tedrica", com o conseqiiente "intelectualismo" e ern segundo lugar, atraves
disso, estabelecer condicoes tedricas e metodolégicas para a apreensao desta "ra-
zao" e "sentido pratico”. Dito de outro modo, nas ciéncias sociais, o ”racionalismo
aplicado" requer que ele seja aplicado inclusive contra si mesmo, tendo em vista
evitar uma adesao "nao racional” ao préprio "racionalismo", visto que se cone 0 ris-
co de torna—lo "néo ref lexivo". E com base nisso que, mantendo a epistemologia do
“racionalismo aplicado“ de Bachelard, sao formuladas as criticas a0 "estruturalismo
objetivista” de Levi-Strauss (porém, mantendo sua abordagem "relacional"), ac ”in—
etc,
dividualismo metodologico" ou "teoria da escolha racional”, ao ”positivismo",
como, por outro lado, as
ou seja, as abordagens unilateralrnente "objetivistas", bern
abordagens “subjetivistas” ou "fenomenolégicas"; visto que se trata de projecoes
r", confun-
"intelectualistas" do "sujeito objetivante" que nao conseguiu se "objetiva
ou entao, no caso do
dindo "objetivacao sociolégica“ com "objetivacao social";
base no "raciona lismo" (Bour—
"subjetivisrno". que desiste de uma sociologia com
dieu, 1980: passim).
inadas propo-
Isso conduz também, simultaneamente, a valorizacéo de determ
nocao de "estraté-
sicoes de Weber (além de Wittgenstein, entre outros), como a
uo“) e suas relacées
gia", as condicées de formacao do "agente" (e nao do ”individ
as relacoe s entre "sentido",
com a “estrutura estruturante" (e nao "estruturada"),
sociais da produc ao do ”pen-
"acao" e "recursos sociais", etc, on seja, as condicoes
on OS meios e recurs os para a
savel" e suas relacdes com o "dizivel" e o "factivel"
is no esquerna analiti-
objetivacao social (Bourdieu. 1981). Além disso, torna centra ”his-
“, a "historia reiiicada” e a
co do autor as relacbes entre a "histéria incorporada
metodologicarnente conexos,
téria objetivada” (Bourdieu, 1980b), bem corno temas
ria de Vida”) (Bourdieu, 1986), de "re-
tais como a nogéo de "trajetdria" (e nao "histé
converséo", etc.5
principios e a necessidade
Metodologicamente, a principal decorréncia destes
mente, tanto "perspectivista" quanto
de se operar corn uma abordagem, simultanea
lado, os principios de classificacao e
"objetivista" 9, com isso, apreender, por um
ive as classificacoes "cultas" ou "erudi—
luta pela legitimacao no mundo social, inclus
outro lado, as condicoes de sua emer—
tas“ (ou seja, a geracao do ”pensavel") e, por
lizacao, institucionalizacao), conforms
géncia e realizacao social (legitimacao, oficia
l (Bourdieu, 1984: 31 e passim; 1981).
as respectivas posicoes e estruturas de capita
as dicotomias que se apresentam
Uma das principais conseqiiéncias disso é que
as sociais, vinculadas a princi-
como oposicdes teéricas e metodolégicas nas ciénci
sociais, tais como, por example, a
pios de classificacao e legitimacao on a filosofias
oridade" ou "exterioridade",
énfase no "individuo"/"pessoa" ou "sociedade", "interi
___,_._____
ntos tecricos e conirontos com outras
5 Para maiores detalhes sobre estas formulagées, seus fundame
acao nao analitica mas informativa rela-
abordagens, ver Bourdieu (1979 e 1980) e para uma apresent
decorrer da carreira do autor.
tivamente as alteracées destas bases teéricas e énfases conceituais no
9 intelectua l nisso, ver Bourdieu (1987: particu-
inclusive os efeitos de suas origens e trajetéria social
larmente 13—46) e Bourdieu & Wacquant (1992).
"subjetividade" ou "objetividade", "simbélico" ou "real", entre outras, sac tornadas
como "falsos probiemas" decorrentes de "debates ético-politicos" (Bourdieu, 1982b:
35/36). Uma segunda implicacao metodolégica é que as oposigoes entre metodolo-
gias e técnicas de trabalho (por exemplo, entre as "quantitativas" e as "qualitati-
vas") perdem o sentido, visto que sua validade se define relativamente aos requeri-
mentos do objeto de estudo e as "condenacées metodoidgicas" sao uma forma de
justificar a precariedade do dominio do conjunto das metodologias (Bourdieu,
1989b: 25). '
Tudo isso, evidentemente, tern implicacoes profundas no que tange ao ensrno
das Ciéncias sociais, das quais cabe pelo menos elencar aigumas: a) nesta concep-
céo, as ciéncias sociais se deiinern (mica e exclusivamente corrio problemas anahti-
cos, que inciuem a pesquisa empirica e excluem todos os demais usos que se pOS-
sa fazer das mesmas; b) seu ensino, além da inculcacéo de seus instrumentos e
das disposicdes necessarias para utilize-103, requer que se rompa com "as rotrnas
do ensino pedagégico" e sen ”ritual da exposicéo canénica“ (Bourdieu et a], 1968:
10); C) este "saber sociolégico" nao pode ser visto como "uma some de técnicas ou
corno um capital de conceitos, separados ou separaveis de sua utilizacéo na pes-
quisa", mas como a ”interiorizacéo dos principios da teoria do conhecimento socio-
logico" (Bourdieu et a1, 1968: 10/11); d) para romper com a "epistemologia esponté~
nea", através do “racionalisrno aplicado", é necessério inverter "a relacéo entre a
teoria e a experiéncia” e chegar a0 "primado epistemolOgico da razéo sobre a expe-
riéncia" (idem: 91); e) néo é possivel separar a epistemologia da teoria e da meio-
dologia; f) a relevéncia do objeto de pesquisa é dada exciusivamente por sua fun-
damentacao tearica e nunca peia sua “importéncia social ou politica" (Bourdieu, en-
tre outros, 1989b: 20); g) 03 conceitos servem somente para operacionalizar os
pressupostos teoricamente iundamentados e néo como "instrumentos tedricos" em
si mesmos (Bourdieu, 1989b: 27); h) como nas ciéncias sociais as "ruptures episte-
mologicas” s50 também ”rupturas com as crencas fundamentais do grupo", praticar
a "drivida radical em sociologia é por-se um pouco fora da lei", ou seja. "romper
com 0 Dréprio grupo" (Bourdieu, 1989b: 39).6

2 — Os "problemas" da abordagem de Bourdieu


e os "nossos problemas"

Boa parte dos problemas abordados sumariamente a seguir, dentro de uma


perspectiva geral, esté presents em qualquer esforco na introducéo e adocao de es-
quemas anali’ticos das ciéncias sociais numa realidade distinta daqueia em que os
mesmos foram gerados. Porém, no caso especifico da abordagem de Bourdieu, es—
tes probiemas assumem determinadas especificidades e, o que é pior, ern gerai se
agravam.
As dificuldades comecam pelo fato de que a "agenda de problemas" contida
em seu esquema analitico nao é, necessariamente e de fato, a mesma dos interes-
sados em sua utilizacéo. Isso porque sua concepcéo de ciéncias sociais, seus pro-

5 Para maiores desdobramentos e detalhes, ver particularmente Bourdieu er a] (1968) e Bourdieu


(1989b).

”ism itaiirsafliés tagger:


oes rnetodolégicas séo
blemas teéricos, fundamentos epistemologicos e as derivac
interessados em sua utiliza-
outros e, portanto, perdem ou mudam de sentido se 03
mas", objetivos e preocupa-
gao partern de outras perspectivas, com seus "proble
te existe eietivamente em
gees proprios. Dito de outro modo: o instrumental somen
I relacao ao objeto em que podera ser utilizado.
produto da historia escolar
Na medida em que qualquer referencial teérico é o
exportadores de cultura escolar,
e intelectual dos respectivos paises produtores e
outra tradicao escolar, tendem a
quando exportados para outras situacoes que tern
e/ou amalgama com esta tradicao
ser reinterpretados e redefinidos. em confronto
ao escolar, numa situaoao de
escolar.7 Porém, além da inexisténcia de uma tradig analiticos ou
ntos entre esquemas
dependéncia cultural, a disponibilidade e confro
sos e complexes. Ocorre que, como
referenciais teoncos se tornam bem mais confu
em boa medida. séo escolarizadas
as elites "intelectuais" (e escolares) brasileiras,
leiros, mas de qualquer modo através
no Exterior ou entao em alguns centros brasi
analiticos ou referenciais teoricos importa—
da absorcao de determinados esquemas
s em detrimento de outros, existem di—
dos, em geral com adesao exclusive a algun pri-
de "comunicacéo horizontal". Isso, em
ficuldades ou mesmo a impossibilidade ", em gera l com 0
em a ser ”vert icaliz adas
meiro lugar, porque as afiliacoes tend ées esco lares e,
paises centr ais, corn tradic
p010 dominante situado em diferentes
no que tang e as ciénc ias sociais, completamente distintas. Em se-
particularmente, que
mais com base no reconhecimento do
gundo lugar. come as adesoes se déo te o domi nio dos
significa nece ssari amen
numa escolha seletiva, e esta adesao néo e muit o meno s a
ema analitico utiliz ado
fundamentos epistemolégicos do esqu
is, os confrontos dos resultados da utili—
compreensao e a comparacao com os dema
se tornar inécuos, visto que incomuni-
zaqao destes esquemas analiticos tendem a listicos.
ucional, meramente ritua
caveis, ou entao. por conveniéncia instit
ema analitico tende a redefinir e
No caso especifico de Bourdieu, este esqu
razoes e corn diversas conseqiiéncias.
aprofundar estes problemas por uma série de
ja estivesse presente nos primérdios dag
Um dos problemas mais gerais, embora
o de estudo. Porém, as novas condicoes
ciéncias sociais, é 0 da construcao do objet
distintas e no limits, tendem a impor uma
em que se apresenta sac completamente ma
e utilizacao parcializada, como se costu
barreira intransponivel para a apreensao Bour dieu, mais
. Ocorre que, no oaso de
fazer com os demais esquemas analiticos
se de um modo de encaminhar uma série de problemas pro-
que uma teoria, trata-
______’__————-—
-
reinterpretacoes de filosoiias e esquemas analiti
7 Como é sabido, um dos melhores exemplos destas mericana. Mas para o que estz'i
, é a sociologia norte-a
cos europeus, no que tange as ciéncias sociais de com~
0 norte-a merica no nfio tém nenhuma importéncia. como parametro
em pauta, cases come de uma tradicao escolar en—
outras, a comec ar pela inexist éncia
paracao, visto que as condicces silo , ideologia e
pretenda come 0 "guardiéo" da cultura
tre nés; por néo haver urn grupo étnico que se
nos E.U.A. (Collins , 1979). Para algumas interpretacoes e criticas a esta so-
ética dominantes, como
eu, ver, por exemplo, Bourdieu (1987: 50-52 e 1991),
ciologia norte-americana pelo préprio Bourdi
ante a Franca, lnglaterra, Alemanha. onde,
Em sintese, no nosso caso, n50 se trata de algo semelh
u (1982: 227), a "person alidade intelectual“ da “sociedade — ou melhor das
segundo o préprio Bourdie
ido ou reforca do pelo sistema de ensino. profunda-
classes cultivadas desta sociedade — é constitu
de modelar os espiritos dos discentes e docentes
mente marcado por uma histéria singular e capaz
que transmits como pelos métodos segundo os quais efetua
pelo conteudo e pelo espirito da cultura
'smo" inglés, o “racionalismo” irancés.
esta transmissao“ (do que resultam, por exemplo, o "positim
etc.).

ENJZQESS‘ET t, 'Eié $323.3»:


prios das ciéncies sociais no sentido do “racionelisrno eplicedo“, o qual deslegl'tim
a
explicitamente as demais possibilidades e, portanto, tome-o exclusivo, tendo
corno fundamento 111timo a mencionade "utopia racionalista“.
Este “racionalismo radical" e reflexive, se por um lado pode representer um sal-
to para as ciéncias sociais, por outro lado significa também urn obsteculo para sue
epreenseo parcial, provocando uma série de desdobramentos. O primeiro e que,
nestes termos, embora exista socialmente, nao é legitima qualquer relacao corri as
Ciénoias sociais, enquanto tais, ou seus objetos, como uma relaceo "prética", orien-
tade por uma adesao "0ntolégioe" e nao analitica, ou seja, é pressuposta uma rup-
ture radical entre a ”razeo pratica”, objeto de estudo, e a "rezao anelitice” (Bourdieu,
1980) e como visto, a legitimidade des ciéncias socieis e seus produtos, necessarie-
mente, se tomem completamente desvinculados da legitimaceo maior ou menor
que o tema eventualmente transformedo em objeto de estudo posse ter em termos
sociais e culturais, ficando restrite ao campo cientifico e a suas regras prépries. Por
exemplo, neste esquema anelitico, neo ha a possibilidade de se opor, normative

mente, uma "néo—dominacéo" as formas de dominagéo que estruturam
e déo a di-
némica das lutas sociais. Ora, é sabido que, mas nossas condicées, a quese
totali-
dede dos que investem na aprendizagem e na utilizagao das ciéncia
s sociais vi-
sam, basicamente, a busce de "sentido", ou seja, a fundamentaga
o de "utopias" ou
entao, outros objetivos mais diretamente "pragmaticos". Além
disso, boa parte das
nocoes de ciéncias sociais em voga tende a legitim
ar este perspective.
Este "descolamento" das ciéncias sociais frerite as relagoes
"praticas" com o
universo social também remonta aos seus primo
rdios e, de modo mais geral, ao
processo de autonomizaceo relative das diferentes
dimensoes da sociedade moder-
na, com seus principios fundedores e dinam
icas préprias, destacado particular-
mente por Weber (1984). Mas no caso de Bourd
ieu, as barreiras, inclusive estretegi-
cemente impostas a apreenseo e utilizacao
parcializada de suas premisses e con-
ceitos (através, por exemplo, da recusa de uma expos
igeo meramente "tedrica" das
b.3893 de seu trabalho e do "did<':1tif>‘U10")8 se tornam bem mais
dificilmente transpo-
nlvfsls. Como visto, a pressuposiceo de uma
autonomia da légica das ciéncias so—
Clele. caiceda no "racionelisrno eplioedO“, abran
ge term a chemade "objetivegao do
SUleltO Objetivante“, ou seja, as condicoes socia
dest
is e culturais das possibilidades
ehcorihecimento "racional", como
também o controle das possibilidad
terferencras das determinapoes es das in-
sociais sempre presentes (Bourdi
lfor Ollt lado, ocorre um conjunto eu (198 4).
de dificuldades decorrentes des
relacoes logicas entre, de um lado prdpries
, os conceitos entre si e, por outr
core 03 pressupostos que os fund o lado , destes
amentam epistemologicamente,
elem de suas re-
139095 com 0 arsenal met0d01égico que os tornem operacionais. Iss0 tudo fez corn
we riao apenas a epreensao e utiliz
egao deste esquema analitico, mas
propria leitura da producao socioldg inclusive a
ica, somente seja possivel para que
seus proprios codigos (Bourdieu, 1984 m dispée de
: 34-52). Dito de outro modo, ao mes
mo tem-
po em que a Chemeda abordagem "relacional" pressupoe uma “de-substancia
géo“ das categorie s empirices e os principios classifica
liza-
térios que es fundementam,
as relacoes légicas entre os conceitos
e suas premissas tornam inoperantes
as ten-
8 Ver, por exemplo, Bourdieu (1987:
66-71 9 1982: 11-52).

Rial?
to. A estas dificuldades se
tativas de sua utilizacao sem o dominio de seu conjun
conceitos e premissas,
acrescem ainda as diferencas de niveis de abstragao destes
e. Por exemplo, nao tern
em termos de graus de generalizacao e de especifioidad
suas vinculacoes com 0 de
sentido o conceito de “capital", sem se ter presentes
, com formacao de “clas—
"estrutura de capital"; por sua vez, com "posicao social“
s de domin acao", com "legitima-
ses", com ”principios de classificacao“, com "forma
illusio e assim por diante. Mas
cao”, com "estratégias de reproducao social“, com
relaco es légica s que os hierarquiza
isso nao basta, se nao se tiver presentes as
conforme os respectivos niveis de abstracao.
como qualquer proposta, suscita
Evidentemente, urn tipo de proposta assim,
s de origem, seja no interior da pro-
oposicoes ou ambivaléncias inclusive nos parse
as, como a ciéncia politics, até por-
pria sociologia ou entao, de disciplines conex
dolég icos, como destacou Caro (1980:
que, além dos confrontos conceituais e meto
a "em presence de uma objetivacao de
1171), este tipo de abordagem nos coloc
reticéncias“, na medida em que "contradiz
nosso ser social que suscita numerosas
isso ”pode set vista como uma verdadeira
as representacoes pre-existentes“ e por re-
es de defesa", podendo levar “a oposicao
agressao intelectual" que ”suscita reaco e cri-
Dito de outro modo, muitas oposioées
soluta" ou uma "compreensao seletiva".
os requerimentos deste tipo de sociologia
ticas tem como fundamento muito mais pro-
das Ciéncias sociais, que propriamente
quanto a posture e a concepcao e usos cau—
forms as melhores "intencées" e “boas
blemas de metodologia, visto que trans u-
l. Ou seja, alem dos problemas de instr
sas" em estratégias de dominacao socia ha tam-
ou urna "dificuldade do intelecto“,
mentalizacao conceitual e metodolégica
ds” (Bourdieu, 1984: 51).
bém 0 problems da "dificuldade da vonta
ida como “urn mecanismo de censura e su-
Mas se a sociologia pode ser defin
olado pelos pares (Bourdieu, 1991: 375).
blimacao“ mutuamente legitimado e contr con-
tura académica e escolar que crie as
isso pressupoe a emsténcia de uma estru de estra tégia s
que possibilite o surgimento
dicées para sua existéncia de fato, para éncia de um
do. Em tais condicoes de exist
académicas e profissionais neste senti esta
insti tucional, o ethos correspondente a
campo cientifico e de uma estrutura ciénc ias socia is,
nao é uma exclusividade das
"sublimacao" racionalista e ascetica Bour dieu da estru -
. As preprias analises de
sendo constitutivo da prépria academia expl icita r 0 con-
consistem num esforgo para
tura da academia e do campo escolar e as
legit imacao e hierarquizacao em confronto
junto de principios de Classificacao, icao é aque le que
o eixo basico de opos
estrategias decorrentes do mesmo. Mas estri tame nte esco lar
léncia e hierarquizacao
tern um p010 no racionalismo, na exce dente s; e por outro
Orias sociais correspon
e no ethos, estilo de Vida ascético e trajet
o e mais "mun dano", vinculado mais diretamente ao
lado, o pdlo menos académio
ral) e portanto menos racionalista 9 es-
campo do poder (economico, politioo, cultu
colar.
nas divisoes e oposicoes entre os
Estes mesmos principios estao presentes
ipalmente o confronto entre, por um
préprios cursos e areas de conhecimento. princ
de produtos das ciéncias (medicine,
lado, os cursos visando a aplicacao "pratica"
outro lado, os voltados para a in—
direito, etc.) ou entao as "escolas de poder” e por
s de hierarquizacéo
vestigacao cientifica, com principios de legitimacao e criterio
& Saint Martin, 1987).
distintos e proprios (Bourdieu, 1979, 1982, 1989 e Bourdieu
Para o que esta em pauta, cabe destacar que as ciéncias sociais encentramse erlll-
tre estes ultimos, cuja legitimacéo nao esta baseada em suas aplicacoes "praticas .
nem come recurso para estratégias de acumulaeae de poder. Uma das consequen-
cias disso é que, deixande—se de lado 0s trabalhes de Bourdieu sobre a Argelia,~a
maier parte daqueles sobre a Franca e em especial es que tomam a educaeao
come objeto, tern na objetivacéo socielegica da ideologia meritocratica e, inclusn/e.
a utilizacao das ciéncias sociais para fundamentar "sociedice’ias", um de seus prin-
cipals objetivos. Ora, nos encontramos numa situacae cultural e eseelar erri que~0
meritecratismo nunca chegou a emergir come principie estruturante e tambem nao
se trata de algo semelhante as cendicoes da Argélia. Desse mode, mais que cen-
ceitos, come 03 de "capital escolar", "cientifico", etc., é o conceite de “capital so-
cial" (Bourdieu, 1980) e e mais pertinente para a maior parte das situacées eneon-
tradas. Pore’m, nem sempre é fécil a compatibilizaeao deste tipo de conceito e seus
fundamentos epistemolégicos com eutros esquemas analiticos forjados especial—
mente para a analise de situaeoes sociais nao "modernas e ocidentais" (Coradini,
1995).
A primeira vista, tude poderia ser reduzido a uma questao de grau. Entretan-
to, na medida em que es esquemas analiticos nao pedem ser tomades
de med-O
parcializado, em situacees come as do Brasil, séo as preprias condieces
de pOSSlbl-
lidade e a "legica" escolar que entram em pauta. Estas condico
es e "legica", que
tornam a apreensao e utilizacao de esquemas analiticos come 0 de Bourdie
u muito
dificeis, decorrem de determinantes de diferentes niveis,
alguns dos quais devem
ser mencionades, pelas conseqfiéncias que tém. Em prime
iro lugar, a inexisténcia
(com excecao de algumas "ilhas", em alguns centre
s) de um campo escolar e aca-
démico que possa propiciar o surgimento e estru
turaeao de um ethos e das respec-
tivas regras calcadas em principles de legiti
macao "racionalistas". Iss0 por uma sé-
rie de razoes culturais e institucionais que nao
podem ser detalhadas aqui, mas
que estao diretamente vinculadas a fermaeao
e estruturacéo do ensino superior no
Brasil. Em segundo lugar, algo vinculado a0 ante
rior, ou seja, a néo-conformacao
de pelo menos um segmento escolar signi
ficative predisposto e em condicées so—
ciais e culturais para encarar e elab
orar estratégias de investimentos para
velvimento deste tipo de sociolog o desen-
ia, ou seja, sem preocupacoes
apostande tudo nas possibilidades do "praticas". mas
"racionalisrno aplicado". Além da pou
ca atta-
tividade desta 0139510 propiciada pelas prepn'as condicees
cial e profissional e seus efeit sociai s de realiza gae so-
os nas opcoes pela area, 0 principa
l determinante dis-

visto que nao sao estes os principa


is critérios de realizacao e cons
sional. agracao profis—
Em sintese, a existéncia e exercicio
deste tipo de ciéncia social pressupe
come condicéo basica, a existéncia efeti e,
va de um campo cientifico, com Sue
nomia relativa, ethos e regras prep auto-
rias, tendo como principio de legitimidade e ra—
cionalismo e isso nunca ocorreu no Bras
il. Per exemplo, no que tange ao elemento
bésico da existéncia da autonomia
relativa, ou seja, a desvinculacao das
ciéncias
melhor pro-
sociais do campo politico—ideolégico, as proprias posiooes das esfeIas
adas, como por exempl o, membro s destaca dos da
fissional e socialmente consagr
inexisténcia.9 Alguma s
ANPOCS, sao prédigos em demonstrar extensivamente sua
das Ciéncias sociais as
das poucas analises dedicadas a demonstrar a subordinaoao
-ideolo gicas, sintom aticam ente, foram realizadas por fiance-
preocupaooes politico
equipe de Bourdieu (Saint
ses (Pécaut, 1990) e ate mesmo por componentes da
Martin, 1988).
mas simplesmente des-
Nao Gabe aqui entrar numa discussao sobie este tema,
em pauta, ou seja, as condi-
tacar aigumas de suas conseqiiéncias para o que esta
comeo ar, é muito dificil encon-
QOes de utilizagao do referencial de Bourdieu. Para
poe como um reque rimento
trar sentido na utilizaoao de um referencial que pressu
numa situag ao na qual a pro-
basico sua desvinculaoao de qualquer filosofia social,
ios de legitim aoao e onde, por
pria estrutura escolar esta baseada em outros princip
as subme tem a uma utiliza gao
exemplo, as prépnas concepodes de ciéncias sociais
de profetismo ou entao, utilita—
"piatica" (seja por motivaooes politico-ideolégicas
m ocorre em situacoes como as
rias). Evidentemente, este tipo de problema també
confro ntos tern outras bases. Dei-
da Franga, porém. a ”legica" predominante dos
bases episte molégicas nao raciona-
xando de lado as posiooes explicitamente em
se legitim am por outros critérios, os
listas, no atual estado do campo académico
i na capac idade explicativa das di-
confrontos mais académicos tandem a se centra
mas conce ituais e metodoiogi-
ferentes abordagens e, portanto, enquanto probie
entos e objetiv os das ciéncias so-
cos,10 mas néo abrangendo os préprios fundam
ntos com a dita ciéncia poiitica e
ciais, Urn outro born exemplo disso sao os confro
esforoos de politicélo—
suas vinculaoées com a doxa da politica e 03 conseqiientes
de critica, visto que 0 pro-
gos mais académicos em incorporar e superar este tipo
das ciencias sociais e
prio principio do IaCionalismo se mantém como fundamento
condiqées.
dificilmente pode ser posto em questao, nestas
Portanto, uma das dificuldades mais gerais da adooao de um referencial como
é a prépria inexist éncia de um campo cientifi—
0 de Bourdieu nas nossas condiooes
garant am as possib ilidades da realizaoao so-
co e sua organizagao institucional que
, os principios e cri-
cial do ethos e das regras correspondentes. Conseqiientemente
"profissional" vao de encon-
téiios de exceléncia e hierarquizaoao ou de realizagao
icas e, particu larmen te, de um referencial
no as regras mais estritamente académ
isso se acresc em as condig oes culturais mais
teonco como o que esta em pauta. A
autono mizaga o das esferas sociais, que ca—
gerais, visto que a mencionada relativa
o", no Brasil nao se realizo u, peio menos da
iacterizam o Chamado “mundo modem
disso é que os usos das ciéncia s sociais
mesma forma. A principal conseqiiéncia
das externa s" (motiva gées com base em filo-
tandem a ser "praticos" on por "deman

poderiam sei mulciplicados indefi-


9 Mesmo restringindo-se vexclusivamente a ANPOCS, os exemplos
as exposigoes na Mesa-Radon-
nidameme, mas para se tomar apenas um dos mais ilustrativos, ver Revista
Atualidade“, publicadas na
da denominada "Teoria e Método e as Ciéncias Brasileiras da
(q. do 1991). Simultane amente com a prépria defesa do ensino do
Brasfleira de Ciéncias Sociai's
explicitamente om termos
“teoria”, as concepgées do ciéncias sociais om pauta chegam a defini-las
an).
"normativos" e "pragmaticos" (ver particularmente a intervonqao de Reis e de Schwartzm
em Ranciére
1° Relativamente a0 referendal de Bourdieu, ver. por exemplo. os argumentos das criticas
et a1 (1984).

dais: aaéfissass i
sofias sociais, em estratégias politico-ideolégicas, como conformacao de identida-
des sociais, corno estratégia de ”ilustracao" e consagracao social, etc). 1nclus1ve
porque os critérios de sua legitimacao sac desta ordem. Sendo assim, uma das es—
tratégias possiveis é a adocéo de referenciais teoricos que prescindam ou passem
ac largo deste tipo de problema, buscando a legitimacao do objeto de estudo atra-
vés de sua suposta relevancia social, no que algumas disciplinas, particularmente a
ciéncia politica (para nao falar da economia) tern grandes vantagens, devido a cha-
mada "demanda social” por seus produtos. . _
Mas na medida em que o referencial de Bourdieu passou a ter uma Inalor 1991-
timidade, aumentaram também o interesse e as tentativas de sua utilizacao a, con-
seqiientemente, as dificuldades e malentendidos. Numa primeira fase, a pr1n01pa1
"critica" que lhe era apresentada se centrava na suposta énfase na "reproducao ‘SQ'
cial", o que vai de encontro a busca de referenciais calcados em filosofias somats
que valorizarn a "transformacao". Ou seja, mais que um problema analitico, estava
em pauta uma demanda por "utopias", por definicao, excluidas do referencial de
Bourdieu. Nesta linha, inclusive apresentadores consagrados chegaram a destacar
esta énfase na "reproducéo" e portanto, num "certo pessimismo politico 9 social”.
como um limite do referencial, como é o caso, por exemplo, de Ortiz (1983: 29).
Posteriormente, a tendéncia passou a ser as tentativas no sentido de sua utili-
zacao parcializada. E neste ponto que atualrnente se encontram os maiores proble-
mas e dificuldades. Uma das mais gerais destas dificuldades é a da exigéncia por
parte do esquema analltico de Bourdieu de qualquer filosofia social enquanto pre-
missa e de relacao ”pratica” com o objeto e, por extensao, com o conseqiiente
prescretivismo, normativismo ou mesmo, profetismo. Na medida em que isso su-
poe uma ruptura ou suspensao da relacéo ontolégica com o mundo social, sua
apreensao e utilizacao nao pode ser parcial, pelo fato de que se trata de perspecti-
vas excludentes e, sendo assim, nao é possivel se romper corn as doxas
e illusio
dos Iespectivos "campos" e muito memos, da "cultura erudita”, sern esta
ruptura an-
terior. Isso requer uma posicéo de "extern'alidade", que
por sua vez supde um d0-
minio completo das bases epistemolégicas do referencial. Requer
, ainda, uma abor-
dagem que metodologicamente contemple simultaneam
ente tanto o “perspectivis—
mo“ como o ”objetivismo“, para que consiga apreen
der as condiooes sociais de
existéncia tanto do "pensavel" como de sua "objetivacao
social" (Bourdieu, 1980 e
1984).
Esta mesma impossibilidade de apreensao parcia
lizada nao se restringe aOS
fundamentos epistemolr'Jgicos e premissas gerais
, mas abrange tambérn o conjunto
da estrutura conceitual da abordagem e suas relacces
com os métodos e técnicas
de investigacao. Como ja mencionado, tanto os conce
itos como seus desdobramen-
tos metodologicos perdem seu sentido se nao
estiverern referidos as suas relacoes
légicas entre si a com as premissas que lhe dao
fundamento, o que nao significa
que a opcao da utilizacao de conceitos e métodos
nao esteja vinculada a0 objeto
de estudo. Porém, esta utilizacao seletiva supoe, neces
sariamente, o dominio des-
tas relacées legicas entre premissas, conceitos, metod
ologias e indicadores a ser
utilizados.
Embora esta néo seja uma exclusividade do referencial
tedrico de Bourdieu, a
diferenca principal é que no caso, mais que uma teoria, trata-se
da formulacao de
um esquema analitico mais rigoroso no sentido destas relagoes IOgicas entre pres
missas, conceitos, encaminhamentos metodolégicos e evidéncias empirioas. Con-
seqfientemente. aqueles usos que se fazem de outros referenciais, como, por exem-
p10, 0 de Marx, de Weber, etc., que consistem numa apreensao e uso de algumas
de suas idéias gerais ou "conceitos", de modo desvinculado do restante, freqr‘iente-
mente transformando o autor numa espécie de "icons” para servir meramente como
argumento de autoridade, ou entao, a utilizagao de conceitos corno "escudos" nas
lutas pela afirmaqao de idéias ou posiooes aprioristicas, so tornam bem mais difi-
ceis. O resultado disso é a ilusao de que se "usa" determinado autor ou abordagern,
sem o dominio do conjunto de sens fundamentos e estrutura conceitual, como se
fosse uma espécie de "shave dos segredos“ e cujo critério de escolha do "autor pre-
ferido" tendiam a se pautar pelo "gosto". Nesta ponto também, ao mesmo tempo
cién-
em que o esquema analitico de Bourdieu pode significar um avanoo para as
um obstaculo para sua apreensa o parcializa da, até
Cias sociais, representa também
Ou seja, nesta onca, como visto, as "escolhas "
porque ele deslegitima os "ismos".
e excluden tes, por exemplo, por metodolo gias
conceituais e metodologicas parciais
consti-
”qualitativas” ou "quantitativas" ou entéo por esta ou aquela abordagern, se
éncia", visto que decorrern do nao-dom inio de seu
tui numa ”confissao de incompet
conjunto.
Uma das conseqdéncias mais imediatas e generalizadas disso é uma apreen-
séo nao apenas parcializada, mas também uma espécie de "retradugao" das premis-
fre-
sas e conceitos. Para mencionar apenas alguns exemplos de problemas mais
quentes: a) a chamada abordagem "relaciona l", em sua apreensao fora de seus fun-
a
damentos epistemologicos e metodologicos, acaba sendo reduzida ou convertid
em algo como relaooes no sentido fisico; b) a apreensao parcializada daqueles con-
nao
ceitos mais gerais e abstratos e, portanto, mais simples. mas por isso mesmo,
os "campos" , o habitus, eta, como se 03 conceitos fossem
operacionais, tats como
lado,
operacionais sern suas premissas e suas relaoées IOgicas entre si; 0) por outro
da prOpria concepca o generaliz ada de "teoria" que se
o que é o resultado também
difundiu nas Ciéncias sociais locais, ou seja, "teoria" cdmo equivale nte de abstragéo
légi—
e generalidade e 1150 enquanto estrutura conceitual e metodolégica, epistemo
"teo-
ca 9 logicamente fundamentada. Certamente, é desse tipo de concepcao de
de nesta apreensé o do referenci al em pauta, ou
ria" que decorre mars urna dificulda
a fenome-
seja, a tendéncia de se tomar os conceitos como "coisas", equivalentes
nos reais e r1510 enqua nto instrum ental analiti co.
Por fim, algo que pode parecer irénico, ou seja, a adocao de referenciais tedri—
cos tidos como ”criticos" pelo p610 dominado das ciéncias sooiais, em oposioao a0
establishment, néo é uma exclusividade brasileira. Este é um fendrneno que ocorre
inclusive em paises culturalmente dominantes e com urna forte tradigéo escolar,
oomo os E.U.A., onde também a posiqéo dominada, ao adotar referenciais teéricos
"alternativos" as ciéncias sociais dominantes, acabam nem sempre se instrumenta—
lizando metodologicamente para enfrentar a legitimidade destas (Bourdieu. 1991:
383). Ocorre que em situagées some as do Brasil, frente as condiooes de ensino
das ciéncias, sociais, a apreensao e utilizaoao de referenciais corno 0 de Bourdieu,
que pode ser visto como "critico", ao supor urna melhor escolarizagao e profissiona-
Iizaoao das Ciéncias sociais, pode ter um efeito de "elitizagao da critica”.

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Portanto, conjuntamente com a discusséo dos esquernas analiticos das cien~
cias sociais e as condicées ,de sua elaboracao, é necessario também incluir as con—
dicoes escolares e profissionais necessaries para a sua apreenséo e utilizacéo. No
nosso caso, se inclui particularmente as condicées de ensino e exercicio e também
as concepcoes de ciéncias sociais em voga.

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$71.39.? 97% «W i
2

o PODER E o POLITICO
NA TEORIA DOS CAMPOS
Céli Regina Jardim Pinto*

ABSTRACT — The present text doesn't intend to


SlNTESE — O presente texto nao pretende serum
be analytic article about Bourdieu but a written
artigo analitico sobre Bourdieu mas um ensaio es-
crito da perspectiva de uma cientista politica so- practice of a politic scientist's perspective about
the possibilities opened by the theory developed
bre as possibilidades abertas pela teoria desenvol-
Vida pelo socidlogo francés para o estudo dos fe-
by the French sociologist to the studies of the
political phenomena. With this purpose I’ll work
nomenos da politica. Com este propésito trabalha—
rei com as nocoes de campo e capitais.
with the notions of field and funds.

u mas um
O presente texto néo pretends ser um artigo analitico sobre Bourdie
as possibilidades
ensaio escrito da perspective de uma oientista politica sobre
dos fenome—
abertas pela teoria desenvolvida pelo sociélogo francés para o estudo
de campo e capitals.
nos da politica. Corn este propdsito trabalharei com as nogdes
a
As paginas que se seguem derivaram-se de anotacées de uma aula proferid
uma lingua-
em um curse de extenséo sobre Bourdieu e guarda daquele momento
fazer um
gem coloquial. Naquela oportunidade meu objetivo era antes de tudo
ho agora a mes-
exercicio buscando instrumentos para a analise da politica. Manten
a construcéo
ma pretenséo. Nestes tempos de pds—modernidade a mode parece ser
sos reivindicam a
de teorias que explicam um unico caso. Tedricos e seus estudio
r a linha divi-
criacéo de uma teoria para cada caso em analise. Dificil aqui percebe
o puro modismo.
séria entre o rigorismo Cientifico, urna certa irresponsabilidade ou
guarda-ehuvas capa—
Penso que, se por um lado, nao se pode mais aceitar teorias
pode abrir mao de
zes de grandes explicagées generalizantes, por outro, nao se
de teneme-
buscar na produséo tedrica sociologica noodes capazes de darem conta
E
nos urn pouco mais abrangentes do que aqueles que fundam a prepria teoria.
este e aqui o meu propésito.
Buscar uma definigéo de poder na obra de Bourdieu envolve trabalhar com
po‘
duas nocoes fundamentais de seu aporte teOIico. capital e campo. Na verdade
der—se-ia comegat a discutir estas modes a partir de duas afirmagées bastante
um
simples: 1. o poder carece de identidade prepria e so pode ser entendido como
evento decorrent e de agentes corn capital; 2. o poder dos agentes resulta do volu-

Universidade Federal do Rio Grarrde do Sul, UFRGS.

rVERlTAS Porto Alegre ] v.41 I n9 162 Junl101996 p. 221-227


gt
me e qualidade dos capitais em urn oampo de luta, portanto, so faz sentido anali-
sar 0s fendmenos do poder no interior do campo.
Como poderemos perceber ao longo da explanagéo, os conceitos desenvolvi—
dos por Bourdieu possuem urn grands rigor por conta de cuidadosas definiooes.
Com isto em mente cabe uma questao com reférencia a relaoao poder—campo: se
as relaQOes de poder so acontecem dentro de um campo, toda vez que é identifica-
da uma relaoao de poder estamos frente a um campo? Se a resposta é positiva de-
riva—se que se nao conseguimos identificar este campo, estamos frente a duas pos-
sibilidades: ou néo se trata de reiaooes de poder ou houve uma falha na identifica—
Qéo do campo. Bourdieu talvez néo considerasse apenas estas duas possibilidades,
na medida em que poderia argumentar que a relagéo poder-campo so acontece em
organizaQOes sociais complexes e altamente diferenciadas. Menos por pretender SGT
intérprete fiel de Bourdieu e mais pelo propésito de buscar na sua proposta teonca
instrumentos para a analise de soceidades distintas da francesa, defendo aqui que
é possivel indentificar o campo e sens limites mesmo em sociedades onde exite
urna aparente promiscuidade de interesses e capitais.
, Para avangarmos nesta questao vale buscar nas palavras do autor as caracte-
rlstioas do campo: ”espaoo estruturado de posigées ou de postos onde as prOpIie-
dades dependem de sua posigéo dentro destes espaoos e que podem ser analisa~
dos i‘ndependentemente das caracten’sticas de seus ocupantes".
O campo é caracterizado por quatro leis fundamentais: 1. para que exista um
campo deve existir interesses especificos que sao irredutiveis, isto é, nenhum outro
campo e capaz de supri-los; 2. todo o campo é regido por regras e leis de funciona-
mento e para que funcione os agentes devem estar predispostos a aceita-las e se-
rem dotados de capacidades para enrendé-las; 3. a estrutura do campo é definida
pelo estado da luta e pela qualidade e quantidade de capital distribuidos entre os
agentes; 4. todos os agentes de um campo tern pelo menos um interesse comum:
a
proprra existéncia do campo (Bourdieu, 1983,
p. 89).
. A teoria dos campos em Bourdieu, corno pode ser visto nestes breves
pontos,
e oonstrurda com rigor, o que torna a identificacéo de campos urn trabaiho
que en-
volve grande cuidado metodoiogico. E evidente que ern socieda
des mais estratifi-
cadas e corn sistemas politicos mais estéveis como a frances
a a identificaoao dos
campos, de seus limites, de son funcionamento é mais Clara que
em sociedades
menos organizadas como a do Brasil. A0 mesmo tempo nao se pode
assumir a
quantldade de formalismo como a prova ou néo da existéncia
de campos e de inte-
resses irredntiveis. Talvez o reconhecimento e analise da promis
cuidade dos cam-
pos em somedades como a brasileira permita romper quando
da anélise de socie-
dades desenvolvrdas, corn urna pretense pureza na conce
ituagao de Bourdieu.
Com 0 proposrto de avanoar na teoria dos campos uma nova questé
o se colo—
ca: pelo que se luta em um campo? Luta-se para impor
uma vontade, urna viséo
de mundo, os interesses de uns sobre os outros. Luta-s
e enfim para se ter poder
dentro do campo. E, por paradoxal que possa parecer, so
se luta porque ja se tem
poder. Qnem nao tern nenhum poder, nenhum capital dentro
do campo nao tern in-
teresses Irredutlveis e, portanto, n50 tern nern razao, nem
cacife para pertencer a
um campo. Por mais destituido de poder que possa parecer um agente
no interior
do campo, ainda assim o analista deve se perguntar por que eie é admitid
o no
campo, por que ele ali permanece. Poder-se—ia dizer que permanece porque nao
tern poder para sair. lsto pode até ser verdade, quando se trata de pensar urn indi-
viduo em particular e suas razdes pessoais, mas quando se pensa na sua posicao
relacional no campo e é corn este fenomeno que Bourdieu esta preocupado, sua
permanéncia se da pelo capital que acumula, mesmo que seja independente de
sua vontade.
A admissao e a permanéncia dos agentes no campo se da mimprindo duas
luta,
exigéncias: ter os mesmos interesses irredutiveis do conjunto dos agentes em
ser potencia lmente satisfeito s no campo; ter a dis-
isto é, interesses que so poderao
posicao de cumprir as regras de funciona mento do campo.
A ma-
O campo estrutura—se pelo estado da relacao de forca entre os agentes.
capital de cada agente que varia tanto quanto a quanti-
téria-prima desta luta é 0
u como “uma relacao
dade como quanto a qualidade. Capital é definido por Bourdie
social que nao existe a mic produz seus efeitos a mac ser
social, isto é, uma energia
produz e se reprodu z“ (Bourdi eu, 1979, p. 127).
dentro do campo onde ele se
o, que 0 capital (3 o conteu do do poder em urna dada
Podemos dizer, portant
s, capital cultural, capi—
relacao de forcas. Bourdieu discrimina uma série de capital
capital's so terao sentido em
tal econérnico, capital social, capital religioso. Estes
tes em campos diferentes
uma dada relacao: um mesmo capital tern valores diferen
e absolutamente nenhum em
e pode inclusive ter um grande valor em um campo
outro.
l cultural: um escritor
Pensemos, como exemplo, o campo intelectual e 0 capita
herdeiro de uma grande fortu-
ou um cientista nao tern poder neste campo por ser
to cienti'fico jamais seré
na. Um agente com muito dinheiro mas sem conhecimen
interior deste campo um capi-
reconhecido como intelectual. Seu dinheiro nao é no
eiro: urn grande cientista ou escri-
tal . O mesmo poder-se-ia dizer do campo financ
gue ter poder a partir deste tipo de
tor, por mais reconhecido que seja, nao conse
capital neste campo.
esgota nos exemplos acima.
A questao nao e’, no entanto, tao simples a Halo se
ber a possibilidade de conversao de
Mesmo para o leitor menos atento é facil perce
nte claro, de criar urn novo tipo de
capital. Nao se trata aqui, e isto deve ficar basta
l econdmico possa ser convertido
determinismo econémico, aceitando que 0 capita
o capitalista ha
em outras formas decapital. Sem deixar de apontar que no mund
o que quero enfatizar, entretan-
uma grande preponderéncia do capital economico.
agentes acumularem tal quantidade
to, é outro aspecto: isto é, a possibilidade dos
bilite um transito de um campo a0
de capital em um determinado campo que possi
do campo da politica para o campo
outro através da conversao. O caso do transito
comum. O mesmo acontecendo en-
da producao cultural, ou vice versa, é bastante
iro caso nao é dificil dar-se conta
tre sub—campos da producao cultural. No prime
facilidade de encontrar espaco
que urn politico de grande popularidade tern mais
do que urn cidadao andnimo. Da
para expor seus quadros ern uma galeria de arte
muito mais espaco para satisfa-
mesma forma. urn ator de popularidade encontrara
do que urn agents cuja atividade
zer sua vontade de entrar no campo da politica
publica.
nao pressuponha popularidade e exposicao
A relacao entre os capita ls nao se da apena s pela conversao, mas também pela
éncia de ja ter outro. Bour-
possibilidade de adquirir um tipo de capital em deporr

«a zzm
; Nfifi » ‘s‘g E LE WAS
dieu ao discutir as formas de capital cultural chama a atencao para 0 fato d? que
quanto mais este exige um tempo longo para ser adquirido, somado a necessidade
de freqiiéncia a instituigdes altamente especializadas, mais 0 capital economlco
torna~se pré-requisito (Bourdieu 1964, p. 69).
. ~
No que concerns ao sub-campo da producao cultural, basta ligar a televrsao '
para que se possa ver uma serie de atores famosos tendo espacos em gfaVadOIaS e
programas de musica para cantar, em que pese a total auséncia de voz. De outra
forma, pode-5e encontrar cantores famosos declamando infantilrnente papers mal
decorados em telenovelas. O mesmo acontece com o tornar—se escritor. Muitas ve-
zes é mais importante ter um programa de televisao de sucesso do que ter talento
literario para ser publicado por uma grande editora. Nao se trata de nenhum dos
casos de pura malicia de empresarios de televisao, editoras de eSpaQOS de arte
0U
mesmo dos agentes, mas de verdadeiro acrimulo de capital que provoca uma trans-
formacao na natureza original do capital exigido em cada campo.
.
Em um mundo dominado pela midia e corn grande apelo para o consumo 1me—
diato e de'scartavel, a popularidade passou a ser um capital altamente disputavel
pelos diversos campos e transferivel de um campo para o outro. Alguém que tern
popularidade em um campo tern facilidade de transitar de um campo
para OUUO, O
que desvaloriza no interior do campo os agentes que tém uma
grande quantidade
de capital originario do proprio campo. Urn exemplo flagrante é a perda de poder
do militants partidario cujo capital origina-se apenas do fato de ser
militante W's-a-
Via a pastores evangélicos ”comunicadores" e mesmo atores
variados.
Ao analisarmos as varias questdes envolvidas na nocao de capital,
devemos
ter sempre presente que os capitals em que pesem os proceseos de
transferéncia
apontados acima, estao sempre atuando no espaco
limitado do campo. EspaQO
este que tern regras a serem cumpridas e interesses a
serem preservados. Porque 0
capital para se reproduzir necesslta do campo; os agente
s no interior do campo
tandem a lutar por sua preservagao. Dal o aspec
to conservador deste espaco.
Um exemplo bastants claro da condicao ccnservado
ra do campo pode ser vis-
to ma ldgioa do campo politic
o da democracia parlamentar representativa. Quando
militantes de extrema esquerda acusam seus amigo
s companheiros de terem se
acomodado ou terem se tornado de direita quando
crescem as chances eleitoralS
de seus partidos, nao estao longs da verdade. Os partidos de
esquerda quando se
tornam eleitoralmente fortes e atuantes no parlam
ento, passam a defender as re-
gras do jogo deste parlamento e do preprio sistem
a politico como um
todo, Ira me-
dida em que sua reproducao garante a prepria repro
dugao dos agentes. No Brasil,
os desencontros entre os militantes, a burocracia
e os parlamentares do PT. que
muitas vezes chegam as paginas dos jornais,
sac bons exemplos da tendéncia que
estou apontando.
Até aqui me preocupei em apontar as caracteri'sti
cas constituidoras do campo
e a dinamica dos capitais em seu interior. Cabe
agora discutir a forma como os
agentes transformam capital em poder e para isso
se faz necessario introduzir o
conceito de capital simbolico cu poder simbdlico.
Este é o resultado da naturaliza-
gao dos diversos capitals que deixam de ser perceb
idos como resultados de rela—
goes de dominagao e passam a ser aceitos como legitim
os. 0 capital simbdlico en-
cobre os outros capitais. A respeito dele Bourdieu afirma
: "O poder simbolico, po-
der snbordinado, é uma forrna transformada, quer dizer, irreconhecr’vel, transfignra-
da e legitimada, das outras formas de poder" (Bonrdien, 1989, p. 15).
A luta politica é a luta simbolica por exceléncia, pois sen principal objetivo é
converter, (3 o fazer crer que sua proposta é a melhor para todos: transformar 03 in-
teresses localizados de grupo, isto e, de classe on fracao de classe, em interesses
gerais. Bonrdien define as lutas simbélicas entre as classes on fracoes como aque-
las que tern como objetivo imporem a definioéo do mnndo mais conforme com
sens interesses.
A centralidade do poder simbdlico deve sempre ser considerada na analise vis—
a-vr‘s aos demais poderes, na medida em que é considerado um poder dependente,
isto é, uma conversao. Nao parece haver aqui nenhuma determinaoéo, isto é, a
presence: de um poder material 1150 pressnpoe poder simbélico, mas, por ontro
lado, nao existe poder simbélico sem um outro tipo de poder.
O que eston tratando de enfatizar aparece exemplificado na obra de Bonrdien
quando descreve o capitalismo “corno uma economia que se define some recnsan-
do a reconhecer a verdade ‘objetiva’ de préticas ‘econémicas’, isto é, a lei do inte-
resse e do calcnlo egoista, 0 capital econérnico nao pode agir a nao ser que se pre-
vina de ser reconhecido a0 prego de uma reconversao prépria, para tornar-se irre-
conhecr'vel o verdadeiro principio de sua eficacia: 0 capital sirnbdlico e 0 capital
denegado, reconhecido corno legitimo. isto é, nao reconhecido como capital” (Bour-
dieu, 1980 p. 200).
Neste fim de sécnlo em que o consumo snntuario tornon-se um valor comple—
pessoal tor-
tamente desassociado da ntilidade inicial dos prodntos, onde o éxito
es a ele
non-se um valor que se instalon mesmo entre aqueles grupos mais resistent
o privile—
no interior da sociedade, podemos dizer que estamos frente a urn moment
giado de sucesso de reconversao do capital econdmico em sirnbolico.
de
Tendo traoado este quadro geral das nocées de campo e capital gostaria
politica.
me deter nas paginas restantes na questao especifica do campo da
Onando se fala de politica fala-se de um campo de poder por exceléncia. Em
vez que em nltima
que este campo de poder se distingue dos demais campos, uma
ser urn espaco
insténcia todos OS campos envolvem luta e force? Distingne-se por
es, e um espaco de
de luta pelo poder em 31 "entre detentores de poderes diferent
o fato de possnr’rem
jogo onde os agentes e as institnicoes que tern em comnm
posicoes dominan-
uma quantidade de capital especifico sufiCiente para ocnpar as
ias destina-
tes no seio de sens respectivos campos de lnta afrontarn-se em estratég
1990, p. 375)
das a conservar on a transformer esta relacao de forge” (Bourdien
sen pro-
Um aspecto peculiar do campo politico é a sua indefinicao quanto ao
cam-
prio carater. Os agentes chegam ate ele porqne acnmnlam capital em ontros
desta
pos e necessitarn dele para que sen campo de origem se reproduza. Dentro
e irredutr’vel
legica a questao que se coloca é a de que tipo de interesse prdprio
s
que constitni o campo politico. Parece que se pode apontar dois tipos de interesse
préprios e irredutr'veis: um decorrente da prdpria existéncia do campo, isto é, o in-
teresse irredntr’vel seria sua prépria existéncia que garantiria a manntenoao de po-
deres nos campos de origem dos agentes, dai inclusive 0 estabelecimento de regras
rigidas tanto no que concerns as formas de jogar corno nas formas de acesso. Um
segnndo tipo de interesse é decorréncia de formas especificas de competigao poll'-
tica: estou me referindo aos interesses constituidos em decorréncia do preprio jogo
e materializado no poder das burocraclas de estado e de partidos, definidoras de
regimes totalitarios, mas nunca totalmente ausentes no campo politico em geral.
Para que os agentes do campo politico alcancem seus objetivos necessrtam
produzir mercadorias para o cidadao eleitor; dai ser 0 campo "o lugar em que SB
geram na concorréncia entre 0s agentes que nele se acharn envolvidos, produtos
politicos, problemas, analises, comentérios, conceitos, acontecimentos entre os
quais os cidadaos comuns, reduzidos ao estatuto de 'Consumidores’ devem esco—
lher com probabilidade de mal entendldos, quanto mai's afastados estiverem do lu~
gar de producao“ (Bourdieu. 1989, p. 165).
A distincao entre campo de producao e campo de consumo é especialrnente
interessante para o entendimento dos fenémenos politicos. O campo da producao e
o campo propriamente politico, onde cs diversos agentes lutam para tornar o esta-
do através da imposicao de sua visao de mundo, imposicao esta legitimada pelo fa-
zer crer. Neste campo, cs diversos capitais se transformam em capital politico que
em uma democracia pode ser traduzido pela capacidade dos agentes de conseguir
votos. Aqui fica muito Clara a transferéncia de capital de um campo a0 outro. A ca-
pacidade de conseguir voto deriva-se do capital simbdlico dos agentes e este, da
converséo de capitals acumulados e transformados em poder, na grande maioria
das vezes em outros campos que n50 0 politico. Talvez o Unico capital eminente-
mente politico é o derivado da militancia, cada vez menos presente nas democra-
cias liberals do fim do seculo.
Dentro da légica de mercado assumida p0! Bourdieu d0 campo d8 pduQéO e
d0 Cfimpo de consumo, a questao que se impoe diz respeito a mercadoria oferecida
pelo primeiro ao segundo. E e neste particular que a centralidade do capital sim-
bolico no campo politico fica claro. O campo politico como campo de producao
produz visoes de mundo, cada grupo, classe ou fracao de classe trata de transfor-
mar seus interesses particulares em interesses gerais. Cada fracao trata de fazer
crer ao campo consumidor que seu produto vai preencher melhor as suas necessi-
dades. Neste sentido 0 capital politico é 0 capital simbdlico por exceléncia.
Na medida em que cada vez male 0 capital politico é um capital convertido,
algurnas conseqfiéncias dai se derivarn: primeiro, que o campo da politica deixa de
ser um campo produtor stricto sensu para ser um campo de reconversao; segundo,
que nao sendo um campo de producao a "mercadoria" politica tende a ter minimi—
zado seu contet’rdo ético, idealista e utépico em favor de visoes de mundo mais
pragmaticas e imediatistas; terceiro, os agentes do campo de consumo tandem a
cada vez mais ver a politica COHlO um espaco para especialistas.
Para concluir esta aula—ensaio gostaria de sugerir algumas possibilidades de
anallse a partir do que for visto aqui da situacao em relacao a politica brasileira.
Nao pretendo criar um modelito, nem tao pouco instrumentalizar a teoria bour-
dieuana. Apenas pretendo argumentar que a formalizacao nela encontrada nao e 11-
mjte para ser aplicada em realidades como a brasileira, mas ao contrario, é um ins-
trumento particularmente um para decanter alguns fendmenos que se apresentam
de forma bastante nebulosa. ’
Uma questao bastante complicada de analisar no Brasil é a composicéo do ca-
pital dos agentes nos campos de poder, quer seja ele polltico, quer de outra nature—

:23fi}: Karma as E
za. Enquanto Bourdieu parece ter muito bem definido em que campos cabe qua]
capital, no caso brasileiro isto néo esté claro. Se existe, como chamei anteriormen-
te, uma promiscuidade de capitais e de campos, identificar a composioao dos capi—
tais em cada campo e 03 interesses irredutiveis de cada campo permitiria tragar
urna radiografia bastante proficua das relagoes de poder na politica .
Tendo tido as terras brasileiras uma forte tradigao clientelista em sua histéria
politica, tendo passado por experiéncias populistas e autoritarias e estando agora
ensaiando Viver em um regime democrético, seria bastante interessante analisar a
composioao do capital do campo politico historicamente e até a prépria constitui—
950 do campo enquanto espaco de interesses irredutiveis ao longo do tempo.
Dentro desta mesma problematica geral uma questao particularmente interes-
sante de discutir em relaoao ao Brasil é a da reconversao de capital ou da possibili-
dade de adquirir um capital na medida em que se é possuidor de outro. Mesmo
sendo problematico, seria possivel no Brasil identificar ainda que quase como me—
tafora, o campo da corrupgao onde seria possivel encontrar interesses irredutiveis,
regras claras do jogo e agentes com predisposioéo para jogar. A arrélise da compo-
sioao do capital deste campo seria extremamente importante para mapear os focos
e as fronteiras do campo, tanto com o campo politico tradicional, como com o
oampo da contraverséo mais completamente representado pelo narcotrafico.
As propostas de investigagao poderlam se multiplicar. Néo é meu propdsito
listar questées para serem resolvidas pela teoria de Bourdieu, mas apenas sugerir
possibilidades. com perdao dos especialistas.

Referéncias bibliogréficas

BOURDIEU. Pierre. La Distinction. Paris: De Minuit, 1979.


. Le Sens Praticquo. Paris: De Minuit, 1980.
. Ouasréos de Sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983.
NH

A 0 Poder Simbéh‘co. Rio da Janeiro, 1989.


. La Noblesse D‘Etar Pan's: De Minuit, 1989.

“‘iflfifirfiébitfi? § 22H amasggaw


CURSOS DE POS-GRADUAQAO DA PUCRS
(ESPECIALIZAQAO)

Instituto de Filosofia e Ciéncias Humanés

- Antropologia Social
* Aprovado pe|o1COCEP -Parecer n° 07/89 de 18/05/89
Duracéo: 360 horas/aula '
Coordenacéo: Francisco Coelho dos Santos

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Aprovado pelo COCEP - Parecer n° 17/90 de 28/06/90
Duracéo: 360 horas/aula
Coordenacéo: Leo Voigt

Histéria da América Latina


Aprovado pelo COCEP — Parecer n° 11/92 de 01/10/92
Duracéo: 360 horas/aula
- Coordenacéoz Braz Augusto Aquino Brancato
Informacées: IFCH - Fone (051) 339-1511 — Ramal 3189

11‘g3111r1111111c11 111111111 - «1
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3

CONCEITOS E IVIETODOS DE ANALISE


909 DO CAMPO ARTiSTICO
\9 ‘ 7/
Maria Lucia Bastos Kern*

SlNTESE — O presente estudo tem em vista reto- ABSTRACT ~ The present study intends to retake
mar os conceitos desenvolvidos por Pierre Bour- the main concepts developed by Pierre Bourdieu
dieu para a analise do sistema de relacoes objeti— to the analysis of the system of objective relations
vas que se desenvolvem no interior do campo ar- developed insides of the artistic area and the
tistico e os fundamentos teéricos que medeiam a theoretic bases that make a mediation of the
atuacao do artista como agente social e individuo. artist's actuation as a social agent and individual
Para tal, o estudo sera baseado apenas nos textos On account of that, the study will be based just
s
que se centralizam nas problematicas especificas on the texts centralized in the specific problem
do campo artistico, apesar da numerosa e sigmifi- of the artistic area, although the numerous and
cativa producao publicada pelo mencionado so- significant production published by the mentioned
ciélogo de 1958 a 1995. sociologist since 1958 until 1995.

1 - Introdugao
os desenvolvidos
O presente estudo tem em vista retomar os principais conceit
s que se desen-
por Pierre Bourdieu para a analise do sistema de relacées objetiva
mediam a
volvem no interior do campo artistico e 0s fundamentos teoricos que
estudo sera baseado
atuacéo do artista como agente social e individuo. Para tal, o
se centralizam nas problem aticas especifi cas do campo ar-
apenas nos textos que
sa e significa tiva produca o publica da pelo mencionado
tisticof apesar da numero
sociélogo de 1958 a 1995.2
olvimento de
A producao inteleetual de Bourdieu caracteriza-se pelo desenv
tendo como fundam entacao uma vasta e testada
um pensamento social critico,
e tornar transpa rentes os fendmen os e as re-
pesquisa empirica, que visa analisar
sociais. Esta conduta dirigida a transpar éncia da
gras que orientarn as relacoes
o seu papel nao se limite apenas a funcao de clen—
construcao social faz com que

Professora da Pontificia Universidade Catolica do Rio Grande do Sul, PUCRS.


das tocas simbdli-
1 De forma mais especifica os textos que se referem as artes plasticas. Economia
e Schnapper; La distinction — criti—
cas; O poder simbolico; L'Amour de l'art, publicado com Darbel
plastico Hans Haac-
que sociale du jugement; RégIes de l‘art; Libre — échange, escrito com o artista
ke.
2 343 publicacoes segundo CHAUVIRE, C, In: Critique, ag./set. 1995. p. 547.

VERITAS Porto Alegre I v.41 I n9162 Junho 1996 l p. 229-236‘]


it. ESTEEER {I E:
tista social mas também ao exercicio de militéncia, proourando esclarecer os agen-
tes sociais desprovidos de poder. Para éle, "todo o conhecrmento do mundo socral'e
urn ato de construcao [...] que deve se constituir contra as representacoes paICIaIS
e interessadas“.3

2 — Campo artistico

A Constituicao de um campo artistico para Bourdieu ocorre quando ha urna


progressive autonomizacao do sistema de relaQOes de producao, circulacao e con-
sumo de bens simbélicos, que se estabelece como urn sistema de relaQoeS
‘ObJPU'
vas, definindo-se em oposicao aos campos econémiCO, 1301111
00: {91191030 e as ins-
tancias que tern pretensées de legislar a esfera artistica.4 . _ ~
0 processo de autonomizacao da producao artistica é paralelo a constitu1oao
da categoria de artistes profissionais distinta, que nao aceita as regras firmadas pe-
los artistas que os precederam e propde novas condicoes para liberar a arte da de-
pendéncia de campos nao culturais. "O campo artistico enquan
to tal significa 0 10'
cal da arte enquanto arts".5
0 processo de autonomizacao exige do artista urna nova funcao para
Si e a sua
obra. Bourdieu exemplifies com o Renascimento, momento histérico de formacao
do campo artistico, que permits aos artistas legislarem com exclusividade o seu
préprio campo. Poder-se-ia mencionar que a criacéo de tratados de
arquitetura.
pintura, escultura por Alberti, Leonardo da Vinci e a construcao de um novo classi-
cismo formalizam os principios internos a0
campo.6
O processo de autonomia do campo artistico é interrompido com a Contra-Re-
forma e as monarquias absolutistas, visto que
a Igreja e o Estado passam a interfe-
rir novamente na pratica artistica.
A busca de autonomia é retomada no século XIX, quando os artistas
romanti-
cos reagern a Revougao Industrial 9 ao mercado de arte,
declarando_ a supe-
rioridade da arts. 0 seu posicionamento é fortalecido a partir da
faléncia do discur-
so filosofico em atingir o absoluto e da atribuicéo a arte
desta fungéo pelos pensa-
dores roménticos. Eles defendem assim a sacralizacao da arte
e os artistas afirmam
a sua singularidade e a sua irredutibilidade ao estatuto de
simples mercadoria. Se-
gundo Bourdieu, é em oposicao aos campos nao cultura
is que surgem as teorias
"puras" da arte. Essas instauram "a dissociaqao entre arte como
simples mercadoria
e arte corno pura significacao",7 fato que permite també
rn reafirmar a singularidade
da condigao artistica e separar o artista
do pi’ibliCO.
Bourdieu acrescenta a esse processo de autonomizacao'o
fato de que a ruptura
de dependéncia em relacao ao mecenas e as encomendas
diretas propicia ao artis-

3 BOURDIEU, P. La distinction. Paris: Minuit, 1979. p. 544-5.


4 Os principais conceitos sobre campo, autonomia e sistema de
relacoes sociais no interior do campo
basearam-se no texto "O mercado de hens simbélicos". In:
Economia das trocas simbélicas. Sao
Paulo: Perspectiva, 1974.
m

BOURDIEU, P. Régles de I'art. Paris: Seuil, 1992. p.


310.
Deve~se destacar que é no Renascimento que é definida a posice'io
social do artista, diferenciando—a
do artesao. O anesanato foi a atividade com a qual a arte esteve vinculad
a durante a Idade Me'dia.
7 BOURDIEU, P. "Mercado de bens simbélicos". p. 103.
ta uma liberdade que rapidarnente é percebida oomo formal, ja que este tern que
se submeter as leis de mercado de bens simbolicos. As novas relacoes sociais que
sao estabelecidas caracterizarn-se pela impessoalidade, levando o artista a se afas-
tar progressivamente do pliblico.
No século XIX, na Franca estrutura—se o campo da producao erudite e o cam-
po da Industria Cultural, oujas funcoes sao estabelecidas no interior do primeiro e
pelas leis de mercado, no ultimo. O campo artistico configura—se oomo urn dos
Campos da producao erudite que produz bans simbélicos destinados a um priblico
de produtores de bens culturais; enquanto a Indfistria Cultural é dirigida aos nao—
produtores, isto é, o grande publico. Segundo Bourdieu, o campo da producao eru—
dita tende a elaborar as suas normas, os critérios de avaliacao de seus produtos e a
lei de concorréncia pelo reconhecimento cultural, ooncedido ao artiste pelos seus
pares, que sao também clientes e concorrentes. As leis que regulam objetivamente
as relaQOes socials tandem a se constituir em normas explicitas. Caso elas nao se-
jam seguidas, o artista podera sofrer a "exclusao sirnbolica",B isto é, a rejeicao de
suas obras em salées, bienais, exposicoes, etc. Os principios internos ao campo
sao oriados em oposicao aos externos, sendo os primeiros considerados face as de-
mandas externas: sociais, economicas e politicas.
A autonomia do campo artistico pode ser avaliada pelo papel que o critico de
se
arte exerce, corn vistas a fornecer uma interpretacao das obras de artistas que
distanciam do priblico, a0 utilizarem os principios da teoria "pura". A critica de arte
se
reforca este afastamento, porque intermedia o contato entre estas duas instancia
desenvolve discursos hermético s que sao em geral compreen didos apenas pelos
seus pares.
Artistas, criticos de arte, teéricos e historiadores constituem, segundo Bour-
le-
dieu "sociedades de admiracao mutua” ou "seitas fechadas",g ja que as obras sao
das e consumid as entre produtore s de cultura. As vezes, os es-
gitimadas, consagra
re e
critores atuarn como criticos de arte, como por exemplo, Emile Zola, Baudelai
Apollinaire, militando em prol de novas concepcoes e pratlcas artisticas e reforcan-
arte cria as
do um "esprit de corps” que resiste as tradigoes candnicas. A critics de
que é
"condicoes de nova crenca, capazes de dar um sentido a arte" neste mundo
o universo artistico.10
Para Bourdieu, o fecharnento do campo a partir do estabeleoimento de normas
revelarn um
internas, de teorias ”puras“ e do monopélio da consagracao do artista
certo ternor de intervenc ao do grande priblico. Enfirn, todos esses meoanism os sao
criados com o objetivo de evitar a interferéncia de outros campos nao culturais.
O campo funciona ainda oomo espaco de competicao para a legitimidade cul—
tural, fendrneno que gera a busca de distincoes culturais, isto e, de temas, técnicas
sao
e estilos que sao dotados de valor, na medida que os grupos que os produzem
reconhecidos culturalme nte, atribuindo -lhes marcas de distincao: especialida de,
maneira, estilo. Essas marcas sao reconhecid as no campo pelas taxionomias cultu-
rais disponiveis. Bourdieu exemplifica com um texto de Proudhon, o qual apresenta

8 Idem, p. 106.
9 Idem, p. 107.
‘0 BOURDIEU, P. Régles de I’art. p. 195.
as diferentes especialidades dos artistes: pintores de igreja, de histona de batalhas,
de marinhas, retratos, etc; cada artiste destaca-se na sua especialidade. Para ele,
é a prdpria lei do campo que envolve os artistes na busca da distincao e e ela que
impée também os limites para que a mesma seja urn exercicio legitimo. "As lutas
de definicao ou classificacao tern o fim de estabelecer fronteiras entre os géneros
[...] e dai as hierarquias", sendo um dos mecanismos utilizados para a defesa da or-
dern no interior do campo.“
O campo so afirma a sua autonomia quando controla a distincao cultural, valo—
rizando sobretudo a forma sobre a funcao e o sistema de representacao sobre 0 ob-
jeto representado. A lute pela independéncia do campo é paralela as pesquisas es-
téticas que libertam a arte do tradicional sistema representative oriu'ndo do Renas-
cimento, e que se orientam na busca de suas especificidades e de sua esséncia. "O
monoteismo incarnado na Academia cede lugar a concorréncia de multiplos deuses
incertos".12
O processo de circulacao e consumo — dominado pelas relacoes objetivas entre
as instancias e os agentes — constitui—se no sentido priblico da obra, pelo qual 0 ar-
tista é definido e em relacao a0 qual ele é obrigado a definir-se. As relacoes sociais
em que se concretiza o sentido publico da obra, sac aquelas que se estabelecem
entre o artiste e o critico, o curador e o musedlogo. Estas relacdes sac comandadas
p918 posicao que tais agentes ocupam na estrutura do campo da arte (artistes mais
conservadores mantém relacdes corn criticos mais conservadores), e definidas pela
posse do poder simbélico. Portanto, e no processo de recepcao que o artiste assu-
me uma determinada representacao, condicionada a0 tipo de consagracao.
Os principios internos do campo artistico sofrem mudancas a medida que se
reproduzem ruptures em relacao aos modes de expressao anteriores. O artiste mo—
derno exclui as referéncias externas a0 campo, mas reavalia constantemente 0s
principles internos do mesmo, tendo assim o fim de manter as suas especificidades
e regras. No entanto, as instancias do sistema de ensino do campo artistico, se—
gundo Bourdieu, nao acompanham as transformacoes sofridas na arte, asseguran
-
do a reproducao de sistemas de representacao artistica mais tradicionais contra
concorrentes heréticos. A Academia francesa, no século XIX, para preserva
r OS
seus canones tem a necessidade de contar com alguma heresia externa para
com-
hater.
O sistema de ensino cria uma certa defasagem entre a arte praticada e a
edu-
cacao artistica, sendo essa banalizada e racionalizada por necessidades
de inculca-
cao. Para Bourdieu, a banalizacao seria o processo de tornar banal
e cotidiano os
esquemas perceptivos e de apreciacao dominados pelo publico intelectualizado.1
3
O sistema de ensino trata, assim, de contribuir para a decodificacao de
esquemas
perceptivos em desuso. Poderia-se acrescentar que o sistema de museus
reforca 0
sistema de ensino, ao eXpor geralmente obras do passado.

“ Idem. p. 313.
12 Idem, p. 191.
13 O conceito e oriundo de Max Weber de cotidianizacaor In: BOURDIEU, P. "Mercado de hens
simbo—
licos", p. 123.

mime;erratum w E: misses:
Para Bourdieu, o campo caracteriza—se ainda como espaoo no qual as posigoes
dos agentes se encontram a priori fixadas, porque este se constitui em dois pélos:
dominantes e dominados. Dominantes sao os agentes que térn o seu capital simbé-
lico reconhecido; e dominados sao aqueles em que ha auséncia ou menor capital
simbolico.M
No campo artistico, os dominantes possuem o poder de legitimagao dos bans
simbélicos, detendo desta forma o poder de estabelecer urna ordern e um sentido
ao mundo social. Eles sao dotados de autoridade para consagrar e revelar as novas
concepgoes de arte, desfrutando uma posioao hierarquica reconhecida Portanto, o
poder simbc'Jhco nao reside nos sistemas simbolicos e nem é arbitrario, mas se defi—
ne numa relacao social determinada na prépria estrutura do campo.“
As estratégias dos agentes orientam--se de acordo com a posigao que eles ocu-
parn no interior do campo. Ao pélo dominante correspondem praticas ortodoxas
que térn em vista preservar 0 capital simbolico; enquanto ao p010 dominado cor—
respodem as praticas heterodoxas que buscarn desacreditar os detentores reais do
capital legitimado. Os dominados utilizam estratégias para subverter a hierarquia
institucionalizada, o que implica no confronto permanente. Estas estratégias para
Bourdieu, destinarn se a socializaoao e a criagao de novas crengas. 6No entanto, a
contestacao do poder nao coloca em questao os principios que estruturam o cam-
po da arte. Para ele, a ortodoxia necessita da heresia porque a sua 1mpos1gao 1m—
plica em reconhecirnento, permitindo assim a continuidade do campo.17
As relagoes de poder no interior do campo reproduzem, segundo o sociélogo,
as relaooes que lhe sao externas entre dominantes e dominados e as produgoes
artisticas servem as duas posigoes sociais. Para ele, ha uma homologia arms a dis-
tribuigao de produtos culturais no mercado e a posicao social. A partir desta cons-
tatagao ele afirma que existe uma relagao mais estreita entre capital simbélico e
capital economico. 8
Bourdieu concebe as relapées sociais como relapdes de poder, visto que estas
reproduzem 0 sistema de dominacao interiorizado pelos agentes sociais Para ele, a
reprodugao da ordem nao é originaria apenas dos aparelhos coercitivos do Estado
como pensava Althusser ou das ideologias oficiais, mas se inscreve e111 niveis mais
profundos, atingindo inclusive as escolhas estéticas.19
A sua nogao de poder fundamenta--se em parte na nooao de habitus, retomada
por Bourdieu da escolastica medieval, a qua] concebe que os habitos precocemente
transmitidos pela educagao, sobretudo familiar, se constituem em condutas profun-
damente arraigadas através da repetioao, capazes de engendrar agoes previsiveis. 20
O habitus significa esta capacidade adquirida socialmente pelo individuo de esta-

M BOURDIEU, P. 'Sobre o poder simbolico". In: 0 poder sirnbéiico. Lisboa: Diiel, 1989. p. 11-14.
15 Idem, p. 14. ‘
16 ORTIZ, Renato. ”A procura de uma sociologia da pratica". In: Pierre Bourdieu. sao Paulo: Atica.
1983. p. 22-23.
17 BOURDIEU, P. Libre — échange. Paris: Seuil, 1994. p. 57.
‘8 BOURDIEU, P.Re‘g1es de I’art. p. 238.
‘9 011112, R. op. cit, p. 26.
2° DUBAR, Claude. “Bourdieu”. In: Dictionnaire encyclopédique de I'éducation et de la formation. Paris:
Nathan Université. 1994. p. 127.
belecer as suas relagées de forma objetiva e sem a necessidade de reflexao preme-
d1tada.Da1 a reprodugao da ordem ser objetiva e subjetiva a0 mesmo tempo, visto
que o agente pode revesti-la aparentemente de um carater pessoal Os esquemas
de habitus devem a sua eficacia pelo fato deles funcionarem a dssgeito da cons—
ciéncia e do discurso,portar1to fora do exame 8 controls voluntario E a partir do
conceito de habitus que Bourdieu estabelece a articulaoao entre 0 agents indivi-
dual e o grupo social, sendo assim de extrema importancia para o estudo objetivo
da arte.
O sociologo relaciona a nogao de habitusao retomar 0 cuoncneito de presto de
Kant corno uma disposlgao que se adquire para "diferenciar e apreciar, isto é,
para marcar as diferencas por uma operagao de distingao O habitugunciona nesta
circunsténcia independents da consciéncia e do controle voluntano.
Bourdieu analisa ainda o conceito de “gosto puro" de Kant, mostrando como
este é recorrente nos discursos sobre arte, com o fim de esclarecer que o mesmo‘e
outro mecanismo de afirmar a distingéo social, jé que se fundamenta no pr1nc1p1o
do prazer desinteressado, sendo assim oriundo do refinamento. Este. opoe-se a0
prazer vulgar, o qual se vincula a finalidade da obra de arte e a um um de gosto
grosseiro.23 Comprovando estes pressupostos através de pesquisas empiricas, ele
demonstra que os diferentes tipos de prazer sao condicionados pelo habitus.“

3 — Consideragées gerais
O arcabouoo teérico desenvolvido por Bourdieu para o entendimento do siste-
ma de relaooes entre as diferentes instancias, da pratica artistica a recepgao e a co-
mercializagao do objeto, permits novas abordagens nos dominios da Histéria da
Culture 9 da Arte, conduzindo os estudiosos a revisarem certas h1péteses concebi-
das como ja solucionadas, sobretudo no que se refers ao Renascimento italiano. A
articulagao entre as agdes individuais e 05 agentes sociais colaborou para o estudo
mais objetivo da arte, visto que a Histona da Arte desde Vasari se peculiariza por
ser uma Histona de Artistes, e mais recentemente, a partir de Wolfflin, uma Histo-
ria de Formas. Aby Warburg, Erwin Panofsky 9 Pierre Francastel criam novos méto-
dos de estudo das artes plasticas, com vistas a terminar com as analises parciais e
reducsionistas; sendo que o ultimo desenvolve os fundamentos da sociologia da
arte.25No entanto,Bourd1eu a0 criar os conceitos de campo de arte,autonom1a,
habitus, e estudar o sistema de relaooes sociais internas e externas a0 campo, es~
tabelece um quadro de referéncia teérica mais amplo que permits a anélise da arte
em todas as suas instancias sociais.

2‘ BOURDIEU, P, La distinction. p. 543.


22 Idem, p. 543.
23 Idem, p. 576.
24 No livro L’Amour de I‘art, Bourdieu e 05 dois outros colaboradores fazem uma grande investigacao
sobre o tipo de publjco que frequenta os museus de arte,serv1ndo como subsidios para a construoao
de seu pensamento social.
25 O método de analise de Francastel nae se limita a sociologia, peculiarizando—se também p01 envere-
dar nos dominios formal do objeto e da estética.

":13 E éEi €13.13


Os historiadores da arts so as apropiarem do suporte conceitual e metodolégi-
cc de Bourdieu procuram fazsr a analise interns do objeto, isto é, ds ordern formal,
paralela as consideracoes sociolégicas, estabelecendo as ligacoes e condicionantes
entre o fazer artistico e o sistema de relacoes sociais.Este procedimento nao é, em
geral, ds interesse do cientista social.
Observe-3e a adocao de conceitos ds Bourdieu sendo aplicados também pelos
estudiosos de estética, condicionando—os a buscarem a explicacao de certos fenc-
menos no piano social.26 Esta interdisciplinaridade tern possibilitado abordagens
extremarnents mais ricas e conduzido os pesquisadores a novos conhecimentos.
Bourdieu no livro "Coisas ditas" afirma que é necessario levar em conta além
do campo, a analise interna da obra em particular e a sua intertextualidade, isto é,
o seu relacionamento com o conjunto de obras. Para ele, a leitura da textualidade
da obra pods ser executada via intertextualidade, atraves do sistema de desvios
psla qual ela se situa face as obras contemporaneas. Ele demonstra que esta leitura
da obra deve ser feita de modo inseparavel da apreensao estrutural do artista.27 Per-
cebe-se, assim, nos seus estudos o maior interesse pcr aqueles artistes que produ-
zem obras singulares e desta forma geram desvios face as concepcoss estéticas vi-
gentes.23 Nestes casos, ele considers os fatos que conduzem as ruptures, podendo
os mesmos serem ds ordem extra-artistica: moral, social,etc. A questao formal nao
chega a ser abordada.
O sociélogo francés ao construir um pensamento social critico com vistas a
tornar os fendmenos sociais transparentes, demonstra buscar aliar a sua condicao
ds cisntista com a conduta militants, que tsm caracterizado a sua trajstoria. Frente
a esta posture pessoal, percebe-se na produgao intelectual de Bourdieu uma certa
preferéncia pelo artista militants, ficando esta mais evidenciada em "Libre-échan-
ge", livro publicado juntamente com o artista alernéo Hans Haacke.”
No dialogo que se formalize entre o cientista social e 0 artists plastico, Bour-
dieu identifies sste ultimo como 0 agents social capaz de enfrentar as elites diri—
gentes e de subverter os meios de cornunicacao, sobretudo os jornalistas que tern
colaborado para a comercializacao da producao cultural. Apesar do sociologo depo-
sitar as suas espsrancas nesta catsgoria profissional, ele tern plena consciéncia das
suas limitacoes de militancia, quando demonstra que a mesma se une no momenta
em que a autonomia do campo e ameacada.
Ouanto a aplicacéo de seus conceitos e aportes teoncos para a pesquisa da
Histdria da Arte no Rio Grande do Sul, observa-se algumas dificuldades, face prin-
cipalmente a questao da autonomia do campo artistico e de sua constituicao.

26 SCHAEFFER, Jean-Marie. L‘Art de I'ége modems. Paris: Gallimard, 1992.


27 BOURDIEU, P. Cojsas ditas. sac Paulo: Brasiliense, 1990. p. 42.
23 Edouard Manet é o artista plastics mais focalizado pelo sociélogo graces cs desvios produzidos face
aos pricipios académicos, Vide Régles de I’art. op. cit; "L'institutionalisation de l‘anomie“ In: Les
Cahi‘srs du Muse’s National de L‘Art Modems, junho 1987, p. 6-19; Coisas ditas, op. cit.
29 Viva em Nova Iorque e tern se notabilizado por produzir instalacoes, nas quais emits juizos criticos
contra o Estado e as elites dirigentes norte-americanas e alemaes, assim como denuncia a depen-
déncia de csrtos museus as estratégias conservadoras de alguns senadores e do Estado. Haacke es-
tabelece, assim, uma critica publica a0 sistema de relaqoes sociais interno e externo a0 campo, iato
pouco comum entre os artistes.

N:3
Bourdieu mesmo demonstrando que a autonomia e relative e que existe uma certa
dependéncia em relaoao a outros campos, néo menciona casos como 0 do Rio
Grande do Sul, cujo campo artistico tem se peculiarizado pela constante fragilida-
deg0 Deve—se destacar ainda que o campo so comeoa a se formalizar nos anos 50,
quando emerge o sistema de relaoées entre as instancias de produoao, Circulaoao e
consumo. Como aplicar os métodos de anéllse do campo artistico nas décadas que
antecedem a sua constituigao? Como aplicar a taxlonomla do gosto puro e do gos-
to vulgar, quando as esporédicas exposioées de arte apresentam conjuntamente
objetos oriundos de cdplas, industrializados e de arte? Muitas decades da Histona
da Arte do Rio Grande do Sul ficam a descoberto, sendo necessarlo se repensar a
metodologia mais adequada a ser utilizada, porém sem esquecer de se levar em
oonta os problemas especificos a serem tratados.
Se por um lado, o suporte conceitual de Bourdleu é extremamente significati-
vo; por outro, nao se pode deixar de estabelecer um dialogo constante com o obje-
to de arte, pols ele nao é uma mera ilustragao dos modos de Vida social de uma
época. A sue génese é mals complexa e as suas motivaooes podem ser de nature-
zas diversas, fendmeno que possibllita mnltiplas leituras do mesmo. Asslm, a anall—
se formal do objeto de arte aliada a urn olhar antropologlco e histonco, isto é, "um
olhar atento as condigoes de existéncia, de uso e de apresentaoao das formas ana-
lisadasf“ pode nos conduzir a uma outra leitura. Nenhuma invalida a outra.

3 As 1nst1tu1¢oes de arte em geral nao possuem regulamentos propnos, sofrendo a cada mudanoa de
0 . . . .. ,. . .

direcelo e governo interleréncjas nos sous programas e rumos, além dos problemas de ordem finan—
celra que tem conduzido a deteriorizacéo das mesmas.
3‘ DIDI-HUBERMAN, G. Le cube et la visage. Pan's: Macula, 1993. p. 212.
(

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mr'

\” ' PIERRRE BOURDIEU


E AS REGRAS DO CAMPO LITERARIO
'9
ll . . .
‘ Vera Telxeira de Agurar*

SlNTESE — Este estudo apresenta as principais ABSTRACT — This work presents Pierre
idéias de Pierre Bourdieu referentes a analise so- Bourdieu’s main ideas for a sociological
cioldgica da literatura, quando discute as seguin- investigation of literature, considering the
tes questoes: as relacoes entre a literatura e a following subjects: the relationships between
ciéncia, as possibilidades do analise sociolégica literature and science, the possible sociological
da literatura, a definicao do campo literario, as re— analyses of literature, the definition of the iield of
laooes do campo literario com o campo economi- literature, the relationships of the field of
co e os demais campos do espaco social, as rela- literature, the economical iield and the others, the
goes de oposicao no interior do campo, a analise opposition relationships in the field itself, the
das obras literarias considerando as relacoes entre analysis of literary compositions, considering the
o cédigo literario e os que se referem a Vida coti- relationship between the literary code and the
diana, a proposioao de um estudo histérico da 1i- way of daily life, a possibility of a historical
teratura, a critica a analise imanente da literatura. approach of literature. the criticism of immanent
analysis.

' Ao propor uma abordagem sociolégica da literatura, Pierre Bourdieu1 salienta a


litera—
resisténcia dos estudiosos da area em aceitarem a leitura cientiiica do objeto
a morte do prazer estético. Para 0 autor. no en-
rio, por perceberem nessa atitude
a manuten cao de privilegi os para os "iniciado s",
tanto, tal posicionamento significa
transcen dental e intangiv el da obra artistica ,
t’micos capazes de captar o sentido
comum esta desprepa rada. A analise cienti-
para o qual a sensibilidade do homem
os instru-
fica do texto literario como produto de conhecimento humane fornece
mentos e 03 caminhos para a melhor compree nsao de sua estrutura e funciona—
cia estétioa, ao invés de destrui-la .
mento, o que vern a intensificar a experién
Como a ciéncia é passivel de aprendiza gem, sen dominio nao se limita a uma
casta especiiica. mas pode estender-se a camadas mais amplas da sociedade . Des~
sa forma, a literature deixa de ser urn bem seletivo, distintivo de classe, para demo-
cratizar-se entre todos os homens. Partindo desses pressupostos, Bourdieu dispOe-
se a entender a génese social do campo literario, os jogos de linguagem e de inte-

PontificiaUniversidade Catdlica do Rio Grande do Sul, PUCRS.

1 Bourdieu. Pierre. Les régles de I'art: genése et structure du camp litteraire. Paris: Seuil, 1992.

VERITAS Porto Alegre l v.41 l n9162 Junh01996 p. 237-241J


resse e as apostas materiais e simbélicas que ali se realizam, de modo a desvendar
melhor o papal da obra de arte como agente de comunicacao inter—humane.
Para empreendimento de tal complexidade, o autor faz uma proposta de anali—
se da literatura nao so do ponto de vista estrutural a formal, mas de abrangéncia
social (socioanalise, como denomina). Para exemplificar, vale-se das obras de Gus-
tave Flaubert, A educacao sentimental e Madame Bovary, permitindo que se abs-
traia do exercicio pratico um modelo de abordagem textual sisternatico e cientifico.
Pode—se, assim, avaliar a dimensao da analise socioldgica literaria, segundo seus
principios. A leitura da obra de ficcao, por essa ctica, centra-se na realidade social
representada no texto através das personagens e suas acées, nos recursos estrutu-
Iais e lingiiisticos, que denotam as relacoes entre narrador e personagens, a na tra-
jetdria do autor, importando o lugar ocupado pela producao em foco.
A personagem, como elemento estruturador da seqiiéncia narrativa. é descrita
a partir da situacao economica e da posicao social, dados nem sempre evidentes
no relato e, por isso, passiveis de serem interpretados através de indicios deixados
por detalhes (utensilios, assessonos, vestimentas, expressoes, etc). 0 lugar que
OCUpa permite-lhe praticas e trocas sociais, todas elas configuradas como sua mo-
lgilidade possivel nos palos de poder politico, econémico, social, cultural e literario.
E necessario decifrar, por 1380, as ambigiiidades que denotam posicoes marcadas
nos campos de lutas e revelam as intencées da personagem. A acao é circunscrita
aos limites do espaco social por onde ela transits, uma vez que, segundo o plano
do escritor, cada personagem tern uma farmula geratriz.
A histo’ria desenvolve-se com as relacoes sentimentais dando uma ilusao de
realidade e dissimulando os interesses de poder e de classe (e de transmissao do
Doder entre as geracbes) que; verdadeiramente, regem as relacdes humanas. As-
sun, 03 sofrimentos submetem-se a dialética do ressentimento, como ambicao
frus-
trada e revolta submissa, pois todo o comportamento é subordinado as forces
do
poder. Para a progressao narrative, ocorrem acidentes, isto é, colisées imprevistas
de possibilidades sociais que mudam a estrutura da histona, garantin
do ao desfe-
cho uma distribulcao satisfatoria dos papéis sociais e, por isso, a
solucao dos con—
flitos.
As estratégias de construcao da obra conferem uma funcao especia
l ao narra-
dor como aquele elemento que controla as relaooes das personagens
e a interferen-
CIa do mundo do autor no espaco ficticio do texto. Através de recurso
s de lingua-
gcm~e estilo (como discurso direto, inditeto e indireto livre, dialogos, citacoes, des—
cr1coes...). o narrador garante sua eqiiidisténcia do objeto narrado, aproxim
ando-se
e afastando-se, segundo seus interesses de desvelar ou encobrir
as intencoes das
peISOIlagens no jogo do poder. Para tal, vale-3e também dos recursos do siléncio e,
através dos nao—ditos, deixa claras as razoes das personagens em
seus atos, toma
posicoes e divulga simpatias e antipatias do prépri
o autor.
Se a obra de arte é uma representacao simbolica da realidade, ela nao reporta
abertamente o posicionarnento do autor. O jogo do narrador, no entanto, permite
que se descubra na teia narrativa as 0pcées daquele que correspondem, por seu
turno, ao lugar que ocupa nas insténcias do poder. As revelacoes fornecidas sac
cotejadas com outras, advindas da observagao da importancia da obra na trajetéria
do autor, de modo a situa-la no campo literario. Urna lettura sociolégica, pois, nao

a as: a
rompe o charms da literature, mas redescobre—o, ao possibilitar a compreensao do
cédigo usado pelo escritor para dar impressao de realidade ao real que o texto en-
cobre.
Por campo literario Bourdieu entende o espaco social de producao, distribui—
cao e recepcao da literatura,1nc1uindo a1 todas as instituicc'xes encarregadas da di-
namica desses processos. Como tal, so adquire autonomia no séoulo XIX, com o
desenvolvimento da vida moderna, que lhe permite ligac6es estruturais cada vez
mais complexes e autonomas, podendo desprezar as benesses de um mecenas
(embora ainda viva um certo mecenato de Estado).
Inserida no modelo capitalista de economia, a literatura burguesa vem legiti—
mar esse sistema, embora seus escritores transitem em grupos sociais diferencia-
dos — mundanos, elitistas, boémios. Nesse sentido, a imprensa tem papel prepon-
derante, pois promove o alargamamento do publico, quer pela publicacao de obras,
quer pelo painel que desenha da imagem da vida boémia. Os escritores, por sua
vez, compéem urn grupo ambiguo, pois, se, por um lado, rompem com a burguesia
ao critica-la e apresentar alternativas de arte e de vida, de outro, buscam o reco-
nhecimento social.
Por conta da complexidade das relacoes entre os campos literario e economi-
co, tém-se literaturas de intencoes diversas — burguesa, puramente comercial; so—
cial, utilitaria e enga'ada; arte pela arte, contestadora em sentido amplo. Saliente—
se, aqui, que as possibilidades do artista puro estao diretamente relacionadase
vantagens economicas de berco, isto é, tern mais chance de produzir literatura C'
valor estético reconhecido aquele que detém 0 capital economico e cultural.
Para a criacao literaria, como de resto para a criacao artistica em geral, as ea
colhas possiveis estao condioionadas as praticas sociais e aos cedigos vigentes.
Para chegar a arte pura, o artista precisa dominar o estilo, usar a linguagem com a
mesma desenvoltura com que se move na vida social, isto é, fundo e forma estao
juntos, estilo literario é também estilo de vida.
Dai decorre que ao escritor é necessario o abandono da vida pequeno--burgue—
sa, 0 conhecimento de um novo ethos. que vai lhe perm1tir entrecruzar discursos,
construir personagens conflitantes, ampliar o horizonte social e cultural de son
texto. A emancipaoao do escritor, por sua autonomia no campo cultural, pode lava-
lo a interferir no politico, por exemplo, tentando impor leis particulares como se
fossem universais. Nesse movimento, ele acaba sacrificando o literario, em favor de
regras de outros campos, como acontece aos formalistas, aos estruturalistas e aos
marxistas.
Como capital simbolico e economico, a literatura participa da vida social lu-
tando por legitimacao. Nesse processo,ir1terferem a tradicao, o gosto e o mercado
organizado. Uma obra e avaliada a luz de tudo aquilo que se produziu antes dela e
101 valorizado pelo gosto socialmente hierarquizado. As distincoes simbélicas sao
tambem econémicas, o que permite estabelecer uma homologia entre o espaco do
autor e 0 do consumidor. Nesse memento, importa a tarefa das instituicoes litera—
rias que garantem o mercado — editor, livreiro, distribuidor, animador — e 3510 propi—
ciadoras da construcéo de um perfil da obra, como pura ou comercial, quer dizer,
as condicoes do mercado fazem o escritor e sua criacao.
O consumo da literatura depends diretamente do habito de ler como urn capi-
tal simbdlico, pratica adquirida no meio social, logo, nao transcendente, inerente
on universal. Como detentor desse capital, 0 leitor estabelece com o texto um dia-
logo de igual para igual, desfazendo a imagem da obra como fetiche. A leitura in-
terna, imanente, e acornpanhada de uma outra, atrelada ao social, nao havendo ab-
solutizacao do texto, mas compreensao da homologia entre o conter’rdo simbélico
e
03 referentes do espaco de producao. Em outras palavras, o leitor busca no objeto
literario as condicées sociais de possibilidades e escolhas e as razoes para a opcao
do autor.
Uma ciéncia das obras literarias, para Bourdieu, precisa dar conta de trés ope-
racoes: analise do campo literario no campo do poder e sua evolucao, analise da
estrutura interns do campo e sua evolucao e analise da génese das posicoes dentro
do campo. O primeiro caso diz respeito a autonomia do autor, tanto mais inde-
pendente quanto memos preso a demanda. A hierarquizacao do sucesso, por seu
turno, é externa, a cargo do grande priblico, e interna, como reconhecimento dos
pares. Assim, sao escritores de sucesso os comerciais e as vanguardas reconheci—
das, enquanto amargam o fracasso os fracos (comercialrnente) e os malditos.
A rivalidade literaria, portanto, diz respeito a0 monopolio do poder de dizer
com autoridade quem é escritor. As lutas dentro do campo legitimam, por urn lado,
aqueles que tern sucesso de vendas e, de outro, as vanguardas, que apontam para
as possibilidades ainda nao consagradas, mas corn lugar social garantido.
As constatacoes acima confirmam as estreitas relapées existentes entre o
campo literario e 0s demais (e, especialmente. entre o campo literario e 0 social),
uma vez que os novos autores 30’ se impoem quando ha condiQOes externas favora-
veis para isso. Suas obras tornam-se comerciais ou classicas, segundo a qualidade
social do pi'iblico que as consome. Nessa perspectiva, uma obra-prima é aquela
que atende aos interesses das classes letradas e sobrevive aos jogos de poder atra-
vés dos tempos.
No entanto, se 0 meio de origem do escritor interfere em sua trajetéria dentro
do campo literario, ele nao é, necessariamente, determinants de seu sucesso ou in-
sucesso. Como as relacoes entre os campos sao de homologia, e r1510 de Subordina-
a, ha interferéncias de um a outro e, dai, a importancia do tratamento da biobi—
bliografia do autor, para compreensao dos fatores que contribuiram para seu alcan-
ce de um lugar definido dentro do campo literario.
Uma obra com grande repercussao comercial orienta—se no sentido da
homo—
geneidade, fazendo confluir para ela os elementos dominantes do gosto
de uma
época. E, portanto, uma producao literaria que confirms as tendéncias de seu tem-
po e, por isso mesmo, atrai as simpatias da massa de leitores comuns. A0 contra—
rio, o texto de vanguarda é heterogéneo, contradizendo as normas dominantes e
carregando em seu bojo o germe da dissolucao. Capra as tendencies renovadoras
ainda em maturacao, dando-lhes forma e rompendo, assim, com aquilo que é con-
sagrado no momento de sua aparicao. Altera, portanto, o cédigo de leis internas
vigente em sua época.
Imports, no entanto, salientar trés aspectos nesse processo: primeiro, as rup-
turas sao sempre parciais, pois, do contrario, a comunicacao torna-se-ia inviavel e
o texto, irreconhecivel dentro do repertério literario; segundo, mesmo as negacoes

)3. §& ”€n s M lg:


mais profundas estéo sobre o pano de fundo da ordem estabelecida dentro do cam-
po, isto é, mudar as regras estabelecidas significa conhecé-las e levé—las em conta;
por ultimo, as escolhas do autor, em seu trabalho criativo, néo séo sempre e com-
pletamente conscientes. As trés questoes colocadas definem o processo de rompi-
mento da vanguarda oomo relativo e resultante da interferéncia de fatores de varlos
campos que se cruzam. Do mesmo modo, essa efervescéncia multifacetada val de-
terminer a permanéncia ou néo da nova obra.
Pela situaoao exposta, Bourdieu justifica o fracasso de uma analise da esséncia
do texto literario, como querem os formalistas e 03 estruturalistas. O estudo ima-
nente das caraoteristioas internas da literatura funciona como uma tentativa de
universalizaoéo do particular, através do siléncio sobre as condiooes histoncas 9
3001818 das possibilidades de escolhas que o autor teve em sua tarefa produtiva.
Em outras palavras, a investigaoao da esséncia da obra literaria é sempre empobre-
cedora, porque desconsldera a multiplicidade de elementos de todos os campos
que interagem no momento da criaoéo e 3510 codificados literariamente. Por outro
lado, se a analise essenciallsta considera a experiénoia estética universal e (mica,
ela transforma todas as propriedades particulares da obra (marcadas contextual-
mente) em privilégios, advirrdo dai a lama entre os pares.
A pesquisa sobre a histona das instituiqoes, do gosto, dos processos de produ-
oéo, da distribuioéo e da consagraoéo das obras, das categorias de peroepgéo e
avaliaoéo oferece uma gama variada de informaodes novas sobre os textos literarios
que estabelecem elos de ligaoéo entre a estrutura lnterna dos mesmos e a socieda-
de em que estéo inseridos e com a qual dialogam, através dos tempos. Nesse sen-
tido, a avaliaoéo do papel das instituicées de consumo importer para explicar as ra-
zoes da leitura ou néo das obras, 0s critérios de selegao adotados, os valores so-
ciais defendldos segundo a qualldade dos pliblicos. Justificam-se, assim, o sucesso
momenténeo de uma publicaoéo e seu esquecimento, a grands receptividade de
outra por apenas uma paroela do publico e sua desconsideraoéo pelas demais, e
assim por diante (pols o que esta em pauta é o jogo do poder).
Por esses camlnhos, a Cléncia ilumina o estudo da literatura, ao trazer a tona
todos os condioionamentos sociais que se fizeram presentes através da Histona e
detectar as respostas dadas pelas manifestaooes literarias, codificadas e arranjadas
estruturalmente. O saldo final é a melhor compreensao do dialogo das obras com a
sooiedade e a definioéo de son papel como agents cultural. E mister, portanto, que
se promova nao so a recuperacéo das formas, mas dos estilos de vida e das lutas
entre eles, chegando a historicizaoéo da produoao e da recepoao da literatura.
Nao erdste obra pura ou leitor puro, como pretendem as abordagens imanen-
tistas. Assim, nao se aspira a construoéo de uma visao de mundo homogénea, mas
ao mapeamento dos conflitos existentes dentro do oampo literario e daqueles entre
o campo literério e 0 do poder, pela legitimaoéo das produooes, ou dentro dos ou-
tros campos, para o conhecimento das homologias existentes. Para isso, entende-
se a obra literéria nao como um produto acabado e estatico, de dominio de uma
casta privilegiada, mas como um organismo em constants atividade, agindo e rea-
gindo, no seio da sociedade.

V as gs}: fi‘khms m;
CURSOS DE POS-GRADUAQAO DA PUCRS
(MESTRADO)

Instituto de Filosofia e Ciéncias Humanas

o Histéria do Brasil
. Histéria Ibero-Americana
. Arqueologia
* Recredenciado pelo Parecer n°638l93 do C.F.E. de
07/10/93.
* Conceito CAPES: B+
Informagées: IFCH - Fone (051) 339.1511 — ramal 3295

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AS CONIRIBUIeeES DE BOURDIEU PARA


A ANALISE DO CAMPO EDUCACIONAL
2f Tomaz Tadeu da Silva*

SINTESE — O texto assinala que os estudos e pes— ABSTRACT The text points out Pierre
quisas de Pierre Bourdieu apresenta uma Clara Bourdieu's studies and presents a clear
identificaeao com a educacao e com a anélise identification with education and with educational
educacional. Observa que no Brasil. ate bem pou- analysis. It notes that until recently, in Brazil, this
co tempo, a abordagem desse autor esteve asso- author's approach has been associated with one
ciada corn uma de suas obras A reproducao, sen- of his works, The Reproduction, thus being the
do per isso transformado num pedagogo ou num author transformed into an educator or an
filesofo educaoional, cuja pedagogia devia ser re- educational philosopher whose pedagogy should
jeitada em nome de um humanismo otimista. que be rejected on behalf of an optimistic humanism,
era justamente o que ele estava criticando. Mais which was exactly what he was criticizing. More
recentemente, no entanto, verifioa-se que Bour- recently, however, it can be verified that Bourdieu
dieu passa a ser considerado como um teonco so- has begun to be considered as a social
cial importante para a analise e para a prepria theoretician, important both for the analysis and
teoria da educaeao, for the theory of education itself.

0 habitus de Bourdieu e o habitus da Pedagogia ‘

Para corneear, devo admitir que, como nas antigas secees de passatempo dos
jornais, minha fala tern um jogo embutido, uma espécie de charada que os ouvin-
tes mais atentos poderao ir decifrando a medida que for me aprom‘mando do fim.
Aos que nae chegarern a soluoéo, também a maneira dos antigos jornais, ela ser~
lhes-a fornecida ao final — mas nao de cabeca para baixo, como nas folhas informa-
tivas de antanho.
Ha uma Clara identificaeao do trabalho de Bourdieu com a educaeao e corn a
analise educacional. Por urn lado, porque ele preprio concede um papel central a
educaoao em suas pesquisas empirioas e em sua construeao tedrica. Per outro,
porque a publicacao de sua analise mais conhecida da educaeao, feita juntarnente
com Passeron, A reprodugao, coincidiu com uma serie de outros desenvolvirnentos
analiticos e tedricos que coloeararn em xeque as visoes convencionais e liberais do
aparato educacional e pedagégico ate entao predominantes — Althusser na prepria
France, a Nova Sociologia da Educaeao na Inglaterra, Bowles 8: Gintis nos Estados
Unidos, Paulo Freire no Brasil.

Universidade Federal do Rio Grande do Sul, UFRGS.


f VERITAS i Porto Alegre ! v.41 I n9162 Junho 1996 i p. 243-25
Swish: i§i§§*ifit §€¥3 FEfiiéa‘ix. a
As condicées da recepcao de Bourdieu no Brasil, na area da educacao, entre-
tanto, foram bastante peculiares. Parte da interpretacao educacional de Bourdieu
no Brasil foi feita através da critica do alegre filésofo Georges Snyders — nesse épo—
ca as pessoas leram muito mais Snyders e seu interprets brasileiro, Dermeval Sa—
viani, que Bourdieu. Nessa operacao, Bourdieu foi estranhamente transformado
num pedagogo ou num filésofo educacional cuja pedagogia devia ser rejeitada em
nome dum' humanismo otirnista que era justamente o que ele estava criticando.
Prova disso sao os diversos exercicios classificatérios feitos nessa época na qua]
Bourdieu figura como um pedagogo entre tantos outros e sua pedagogia era classi-
ficada como reprodutivista, numa ilustracao dos riscos de operacées de descontex—
tualizacao corno essa. Um dos subprodutos dessa operacao foi a petrificacao de
Bourdieu como o autor de um i'mico livro, A reproducao, que muito poucos leram.
mas que serviu, nao obstante, para que uma multidao de leitores dos fabricantes
de rdtulos o classificassem definitivamente como um irremediavel reprodutivista.
Estava selada a sorte do “pedagogo” Bourdieu. Se sua pedagogia, assim deduzida,
proclamava o triunfo de uma inevitavel reproducao cultural e social, na qual a edu—
cacao estava centralmente envolvida, ela, constituia, entao, um obstaculo a acao.
Mas noticias — melhor conjura-las, eliminando o mensageiro.
Por um longo tempo, pois, a rejeicao do assim construido pedagogo Bourdieu
levou a um distanciamento em relacao a0 Bourdieu socidlogo e sociélogo da educa—
cao. Quando muito ele era rapidamente caracterizado como reprodutivista apenas
para ser evitado: demasiado pessimista!
Apenas muito recenternente com o declinio do prestigio das otimistas meta-
narrativas educacionais (mas nao me deixem esquecer da ascensao de uma nova —
o construtivismo!) é que Bourdieu passe novamente a ser considerado como um
teorico social cuja contribuicéo pode ser importante para a analise educacional e
ate mesmo para a teoria educacional. Mas esperemos que dessa vez prestem
mais
atengéo a sua sociologia que a sua suposta pedagogia, mas duvido muito.
E possivel que se espere de mim aqui, nesta noite, que lhes dé algumas indi—
cacoes de como se podem aplicar os conceitos desenvolvidos por Bourdieu para
analisar aspectos da area educacional. Sinto decepciona-los, mas nao é isso que eu
vou fazer aqui, pois nao acredito nesse tipo de aplicacao. Vou tentar desenvolver
justarnente um argumento contrario: que aplicar Bourdieu, ser fie] ao programa de
Bourdieu, nao consists em extrair de sua obra certos conceitos centrais para apli-
ca-los, mecanicamente, a algum processo, instituicéo ou fendmeno educacional. A
operacao tipica desse tipo de "raciocinio" consiste em destacar alguns desses con-
ceitos, tentar defini—los no inicio da "pesquisa" ou trabalho 9 logo passer 3
SUB apli-
cacao, que em geral se resume a identificacao de instancias do conceito, num mo-
vimento parecido ao que fazem aqueles pesquisadores que saem em busca da
identificacao do curriculo oculto. E o jogo do "isto é", "isto nao é“, muito popular no
ambito da pesquisa educacional porque parece preencher o vazio deixado pela falta
de criatividade e imaginacao. Nao, aplicar Bourdieu, na perspectiva que vou tentar
desenvolver, consistiria em tentar reproduzir seu modus operandi, tentar reproduzir
o mesmo tipo de raciocinio que caracteriza o pensamento sociolégico corporificado
nas suas pesquisas, fazer o tipo de perguntas que ele faria. Iss0 riao quer dizer que
os conceitos desenvolvidos por Bourdieu nao possam ser utilizados, mas que a un-
llzaoao desses conceltos desencarnada de seu modus operandi so pode oonduzlr a
oriaoao de um monstro epistemolégico. Seu opus operanturn, seus conceitos e teo-
rias, seus resultados, transpostos para um outro contexto, destitur’dos das mesmas
dlsposicoes oientificas que o produziram, nao fazem o menor sentldo.
Justamente aqui reside a principal dificuldade de se "aplicar" Bourdieu a anall-
se educacional. Pole existe uma forma de pensar, uma matriz mental, predominan-
te na area da educaoéo, que conspira contra a transposioao das disposlooes men—
tais manifestas no esforoo lnvestigativo e teonco de Bourdieu. O "pensamento pe—
dagégico", caracten’stico das pessoas que atuam na area da educaoéo, de certa for-
ma situa-se no pdlo oposto a0 "pensamento sooiolégioo” que caracterlza a agao
cientifica de BourdieuIEsta ai talvez a primelra e principal contribuigao de Bour—
dieu a analise educacional: a de permitir uma analise das condicées que produzem
os esquemas mentals caracten'sticos da ocupaoao pedagogica. Mas vou deixar isso
como exercicio para vocés. Aqui vou apenas fazer um ensalo de descriqao de quais
sao essas caracten’stlcas, para depois contrapo-las as caracten’sticas do esquema
mental implicito no pensamento (essa palavra sendo usada aqui precisamente no
sentido de processo e nao de obra acabada) sociolégico de Bourdieu. Em que con-
siste a matriz mental do pedagogo e da pedagoga? Ouais sao suas lncllnacoes e
disposigoes no terreno que aqui nos interessa, 0 da anallse educacional?
O esquema mental pedagdgico, em algumas de suas vertentes pretensamente
marxistas, muitas vezes pretends ser dialético, mas é apenas essencialista e meta-
fisico. Ele muitas vezes pretende ser materialista (de novo: em algumas das corren-
tes de inspiraqao supostamente marxistas) mas é apenas idealista, quando néo
simplesmente espiritualista, sobretudo em suas vertentes religiosas (nao esquecer
o grande mimero de eX-padres e ex-seminaristas na area). 0 pensamento pedagé-
gico é declaradamente humanista e subjetivista, acreditando na autonomia ultima
do homem (e esperamos, também da mulher), Ele tende a ser totalizante, eterna-
tudo expli-
mente em busca da grande teoria que vai gular todas as suas agoes e
A forma de pensar pedagég ica é a historical
car — do fracasso escolar a Vida eterna.
eternas e artefato s estaveis . A forma pedago-
e naturalizante, acredlto em verdades
ao juridicis mo e ao oflcialls mo, tomand o
glca de raciocinar freqiientemente tende
sua aparénc la, por sua verdade . Ouando de
as nomeaooes oficiais do mundo social,
de forma
oposloao, o pensamento pedagogico é maniqueista, dividindo o mundo,
pedagégico é ale—
simplista, em opressores e opnmidos. Finalmente, o pensamento
alegria que vem da lnconsciéncia e
gre, otimista, feliz e irreflexivo, pleno daquela
do desreconheclmento.
no mo-
Em contraposlgéo, 0 quadro mental cientifico-socioldgico que resulta
comple tamente diferent es e, em mul-
dus operandi bourdieuniano opera em chaves
rar esse modus operand i slgnifica nao
tos casos, opostas. Imitar, emular, incorpo
mas antes incorpo rar as disposio oes
utilizar os conceitos que sao seus produtos,
r, 1993). Significa nao simples-
que tém como resultado esses conceitos (Brubake
0 mundo
mente importar os conceitos e sua IOgica, mas a forma de pensar e ver
350 a expressa o de uma
social que deram origem a esses conceitos. Os conceitos
visao, de uma perspectiva, que néio fazem sentldo sem ela.
Esse quadro mental, essa forma bourdieuniana de "olhar o mundo social“ su-
pée uma disposigéo a: 1) problematizar as categorias e mecanismos sociais toma-
dos como dedos e naturals pelo senso pretico, ai incluidos os do proprio sociologo-
observador; 2) pensar relecionalmente. o que implica neo a busca da esséncia dos
fendmenos, dos processos ou dos elementos do mundo social, mas situa-los uns
em relaceo aos outros 9 na estrutura a qual pertencern; 3) perceber padroes na
aparente desordem e falte de sentido do mundo social; 4) historicizer o mundo so-
cial, reletivize-lo, demonstrer e arbitrariedade histérica dos ertefatos da criageo hu-
mane e social; 5) objetivar o mundo social, Vinculendo-o as condiQOes objetivas de
sue produceo; 6) mostrar desconfiance em releceo as formas oficiais e correntes de
nomear e clessificar o mundo — tomadas nao como nomeacées da realidade, mas
como operacoes de constituigeo interessada da realidade; 7) mac dicotomizar o
mundo social: estrutura/sujeito, micro/macro, individuo/sociedade, ecao/estruture,
objetivismo/subjetivismo, mas a considers-10$ integradamente; 8) destacar como
unidedes de analise neo o mundo social em sue totalidade, a sociedade em seu
conjunto, mas instituiooes ou preticas localizadas, governades por pratices especi-
ficas, embore homologas a outras praticas sociais; 9) var todas as pretices como in-
teressadas, a situa-las em relegao aos interesses de manutencao des estruturas
existentes de acumuleceo de prestigio simbélico e ventegens material's e formas
perticuleres de poder — a sociologia é para Boudieu a ciéncia do poder, das lures de
poder
Uma enalise educacional que levasse e sério a sociologie de Bourdieu deveria
ser capez de distinguir entre um probleme educacional e um problema sociolég
ico.
Deverie saber a diferenca entre uma perspective analitice e uma perspective
nor-
mative. Uma analise educecional bourdieuniana so pode ser uma
sociologie da
educaceo e corno tal n50 deveria ester preocupada com as finalida
des de educa-
ceo, corn a netureza epistemolégica do conhecimento educac
ional, corn es melho-
res forrnas de organizer o sisterna educacional ou de desenv
olver melhores métodos
de ensmo ou de avaliacao. Uma analise sociolégica
de educacao inspirede em
Bonrdieu deveria, em vez disso, preocupar-se em
compreender como a educaceo
este irnplicada ne constituioeo da sociedade, da estrutu
ra social e do agente social.
Deverie preocupar-se em compreender como as catego
ries de pensemento e de
classi
ficagao da realidade estao ancoradas em interesses
e em relacoes de poder e
em compreender de queforrna a educaoéo esté
implicada nesse processo. Mais do
que os~conceitos bourdieunianos o que definirie uma analis
e bourdieuniana da
educecao seria o tipo de pergunta, o tipo de proble
ma formulado. A questao neo
consiste em saber se estou aplicando os conceitos
corretos e corretamente, mes se
estou fazendo tipo certo de pergunta.
Umaperspectiva de analise sociolégice da educaoeo
deveria, sobretudo, ester
preocupeda em romper corn as categories do senso
comurn de compreensao do
mundo social, em se conrrepor a tendéncie a neturalizaca
o, ao fatalismo, as expli-
cagoes individualizantes caracteristicas do senso cornum.
Aplicar Bourdieu a enali-
se da educageo significa tentar efetuar essa rupture a naturalizacao
e a desistorize-
a, significe tenter desneturalizar o mundo social, ultrapa
ssar o nivel das explica-
goes individualizantes, fatalistas, metefr’sicas, essencialistas. Tornar
visivel o invisi-
vel, produzir um efeito de desencantamento, destruir a ilusao
da transparéncia do
mundo social, desenvolver a "imaginacao sociologice” sao todas
operagoes que es-
tao no centre de melhor sociologia, ai incluida a de Bourdieu e que se contrapoe ao
senso comum da Vida cotidiana e ao senso comum do pensamento pedagégico. O
quadro mental sociolégico se opoe radicalmente as retinas cognitivas e afetivas ca-
racteristicas do senso prético e de certas orientacoes ocupacionais e profissionais.
Romper com essas rotinas é uma tarefa bem mais complexa e dificil do que a mere
transposicao de conceitos sociolégicos.
Para finalizar, proponho urn exercicio, uma espécie de teste para verificar se
houve uma real transposicao dos esquemas sociologicos de Bourdieu para a espe-
cie de analise sociolégica da educagao que alguém se propuser a fazer: realizar
uma anaiise bourdieuniana que nao nomeasse, uma so vez, os conceitos centrais
de Bourdieu. Os ouvintes mais atentos terao percebido que foi justamente isso que
fiz na minha faia desta noite, numa tentative de demonstrar que nao é essa a con—
tribuigao importante que Bourdieu pode dar para a pesquisa em educacéo. Com
isso espero ter passado também mais uma licao de Bourdieu: a de ensinar mos-
trando. Com isso posso também enunciar o argumento que vim desenvoivendo
nesta noite em termos bourdieunianos: o habitus pedagégico predominante no
campo da analise educacional é incompativel com o habitus cientifico-socioiogico
de Bourdieu. Ou, ainda, em outros termos: em vez de utilizar a légica da pratica
(bourdieuniana) aplicar a pratica da légica (bourdieuniana), o que significa aplicar
Bourdieu de modo pratico e nao teorico, conceitual, fazendo como ele faz e nao im-
portando conceitos e sua teoria para o contexto de um modus operandi completa-
mente estranho a0 seu. Se a contribuiqao de Bourdieu a analise educacional deve
fazer qualquer sentido. o senso pratico pedagégico deve dar lugar ao senso pratico
sociolégico bourdieuniano. Os conceitos, proposicées e teorias de Bourdieu sao
apenas as formas objetificadas de um habitus. Apropriar—se delas sem internalizar
o habitus que lhes deu origem demonstra a mesma artificialidade das "maneiras"
do novo rico. A maior contribuigao que Bourdieu poderia dar a anélise educacional
seria a de modificacao desse habitus pedagégico. A {mica forma de apiicar Bour-
dieu a analise da educacao é aplicando sua sociologia e nae transformando-o num
pedagogo ou sua sociologia numa pedagogia. A Unica pedagogia resultante da sua
sociologia consistiria no ensino da sécio—anélise que lhe e conexa e a primeira coi-
sa que deveria ser submetida a essa SOCio-analise, a essa probiematizagao, seria
justamente o senso prético do pedagogo, seu habitus.

Referéncia Bibliogréfica
POS-
BRUBAKER. Rogers. "Social Theory as Habitus". In: Craig CALHOUN, Edward LIPUMA 8: Moishe
TONE (Eds). Bourdieu: Critical perspectives. Chicago: University of Chicago Press, 1993: 212—234.
CURSOS DE PCs-GRADUAQAO DA PUCRS
(DOUTORADO)

Instituto de Filosofia e Ciéncias Humanas

Histéria do Brasil
Histéria Ibero-Americana
. Arqueologia
* Recredenciado pelo Parecer n°638l93 do C.F.E. de
07/10/93.
* Conceito CAPES: B+
lnformagées: IFCH - Fone (051) 339.1511 - ramal 3295

§3>i§§§¥gRWE§§§T§§ 131E? RR S'§¥:§§t§‘§3i§¥%x éiéffiiméfi Whit“; mmms: EM mg! E§¢§31§1§32§§3$ E ii: ”iiytmnlaiwwmm
o\ ’ 6

A DINAMICA ESTRUTURAL DO QAMPO


RELIGIOSO: ALGUNS/DADOS EMPIRICOS
r Julieta Beatriz Ramos Desaulniers*

SiNTESE — Este artigo constitui urn esforco no ABSTRACT — This article consists of an effort
sentido de articular teoria, método e dados, quan- towards articulating theory. method and data,
do procura expor alguns resultados sobre as pes- while seeking to display some results on research
quisas desenvolvidas junto a escolas de oficio ca- carried out in catholic vocational schools of Porto
tolicas do Porto Alegre/RS, que tern no referenoial Alegre, Rio Grande do Sul, which have in Pierre
Bourdieu one of their main theoretical
de Pierre Bourdieu urn dos seus principais refe-
renciais teéricos. foundations.

A abordagem de Pierre Bourdieu constitui uma referéncia importante para cap-


,
tar os mecanismos e relagoes que configuram o processo de formagao instaurado
junto as escolas de oficio catolicas, situadas em Porto Alegre/RS, no periodo de
1895 a 1970, as quais integram a dinémica do oampo religioso.1

1 — Consideragées sobre o referencial teérico de Pierre Bourdieu


Aos diversos "mundos", relativamente auténomos, que compéem uma socieda-
de, Bourdieu atribui a denominaoao de campo.2 Entende-se que essa nogao e a de
grupos sociais se referern a estrutura social, 9 as associa também ao conceito de
Classes sociais.3
A nocao de campo — central nessa abordagem — serviu, inicialrnente, "para in-
dicar uma direcao a pesquisa".4 Em certo sentido, essa nocao "é uma estenografia

Pontificia Universidade Catolica do Rio Grande do Sul, PUCRS.


1 O referido ienémeno vem sendo pesquisado a partir de varies sub»projetos que estao articulados a
sub-linha de pesquisa "Forrnacao, Trabalho. Instituicao“. bem como ao Projeto Integrado “Urbanida-
de e cidadania: processos de formacao e de instauracao de saberes, sec. XX/RS“, o qual conta com
o financiamento do CNPq e da FAPERGS. Alguns trechos desse item forarn extraidos da Tese de
Doutorado “Trabalho: a escola do Trabalhador7", defendida em maio/93, junto a0 PPGRAD em Edu-
cacao/UFRGS — Porto Alegre/RS/Brasil. p. 47 a 52.
2 BOURDIEU, Pierre. Coisas Ditas. Séo Paulo. Ed. Brasiliense. 1990. p. 93.
3 Idem. p. 149.
4 BOURDIEU, Pierre. 0 poder simbélico. Lisboa, Editora Difel, 1989, p. 64.

l VERITAS Porto Alegre Iv. 41 l n9 162 Junh01996 p. 249-260 J


memo to r "a a trww
conceituai de um modo de construcao do objeto que vai comandar — ou orientar —
todas as opgoes préticas da pesquisa“.5
Com 0 tempo, foi sendo elaborada a teoria geral da economia dos campos, a
qual "permite descrever e definir a forma especifica de que se revestem, em cada
campo, os meCanismos e 03 conceitos mais gerais"6 Obtém-se a anaiise da es-
séncia do campo, através da analise da histéria do campo.7 E, assim, apreende-se a
particularidade na generalidade e a generalidade na particularidade.8
O autor define campo como um "sistema de desvios de niveis diferentes e
nada, nem nas instituiQOes ou nos agentes, nem nos atos ou nos discursos que eles
produzem, tem sentido senao relacionalmente, por meio do jogo das oposigées e
das distingées".9
Em outros termos, o campo "constitui-se de forces, variando de acordo com as
pesicoes que os agentes ocupam e lutas de concorréncia que tendem a conservar
ou transformer o campo de forQ as”.10 E a luta entre os agentes que faz a historia do
campo,“ sendo este, alias, o proprio "lugar de lutas".12
D12 0 auto: que "a anaiise das estruturas objetivas — as estruturas dos diferen-
tes campos — é inseparével da génese, nos individuos biolégicos, das estruturas
mentais e da anélise da génese das préprias estruturas sociais: o espaco social,
bem como os grupos que nele se distribuern sao produtos de lutas historicas”...13
Bourdieu propoe o modelo da reiaoao entre os campos e 03 habitus — sistema
de disposigées adquiridas na relacao com um determinado campo — fornecendo,
assim, a "unica maneira rigorosa de reintroduzir os agentes singulares e suas acoes
singulares", sem incorrer na historia factual.”
Porém, séo as disposigdes dos individuos que mediatizam as posigoes e as to-
madas de posicéo dos agentes. Assim, mesmo sendo bastante significativo o efeito
do campo sobre os agentes, ele n50 se exerce mecanicamente.15
Observe-3e, todavia, que "a relacéo entre habitus e campo e, em primeiro lu-
gar, uma relacao de condicionamento em que o campo estrutura o habitus, que é
produto da necessidade imanente" deste ou de outros campos concordantes. E
também uma relagéo de conhecimento ou construcéo cognitive. Por isso, na rela-
céo entre habitus e campo, "a histéria entra em relacéo com ela mesma: é uma ver-
dadeira cumplicidade ontolégica que une o agente e o mundo
social".16

5 Idem. p. 27.
5 Idem, p. 69.
7 Idem, p. 71.
B BOURDIEU, op. cit., p. 171 (1990).
9 BOURDIEU, op. cm, p. 179 (1989).
BOURDIEU, Pierre. ”Le Champ littéraire". In: Revue Acnes de la Recherche en Sciences Sociaies.
Pa-
ris. Editions de Minuit, n9 89, sept/1991, p. 5. (Trad. da autora).
“ Idem, p. 24.
‘2 BOURDIEU. op. cit., p. 172 (1990).
13 Idem, p. 26 (1990).
1" Idem, p. 63.
‘5 BOURDIEU, 'op. om, p. 42 (1991). (Trad. da autora).
16 BOURDIEU, Pierre. Réponses — pour une anthropologie reflexive. Paris, Editions du Seuil. 1992, p.
103. (Trad. da autora).

. iEMiE‘i‘ESFo W‘XNH E
Vérios 3510 OS elementos que compéem a nogao de habitus, os quais 5510 pro-
duzidos pelos condicionamentos, associados a uma classe particular de condioées
de existéncia. E definido como ”sistema de disposigoes duraveis e transponiveis,
estruturas estruturadas, predispostas a funcionar como estruturas estruturantes.17
E importante notar que nem tudo no mundo, nem todas as disposigoes farao
parte do habitus de uma pessoa. Suas experiéncias passadas exerceréo urn papal
de filtro, e 86 as que forem mais compativeis com seu habitus serao assimiladas.18
O habitus exprime sempre a posicao social em que fol constituido, tanto na
condicao de um sistema de esquemas de produgao de praticas, quanto, ao mesmo
tempo, 11a condioao de um sistema de esquemas de percepgao e apreciaoéo das
praticas.19
A incorporacao do habitus ocorre por meio de "uma aoao pedagégica que visa
inculcar, o mais profundamente possivel, o mais durével possivel, através de com-
portamentos precisos, singulares uma atitude. Ou seja um certo tipo de relagao
global consigo mesmo e com as coisas, com a Vida 9 com o mundo".2
A constituigao do habitus. que resulta nas propriedades dos ocupantes das po-
sioées, vai depender de varias circunsténcias do préprio campo: sua autonomia,
posigao ocupada pelo agente no campo e o grau de institucionalizagéo do posto ou
posigéo correspondente.
121
Mesmo que o habitus nao seja imutave — é uma estrutura sempre em vias de
reestruturagao, ja que as experiéncias acumulam saberes22 — enquanto sistema de
disposigoes para a prética, constitui o fundamental objetivo de condutas regulares.
E por isso que é possivel obter regularidade de condutas e prever as praticas: "o
habitus faz com que os agentes que o possuem comportem-se de uma determina-
da maneira em determinadas circunstancias".
Assim enquanto produto da historia os habitus produzem pratioas individuais
e coletivas que garantem a presenga das experiéncias passadas como também
através dos tempos, "a conformidade das praticas e a sua constancia”. Em fungao
a prati-
de sens limites consignados as suas invenqoes, é que a estrutura governa
ca.24
Em sintese, conforms Heran, o habitus:
— é um saber que se tern a mic;
— habita a alma, assim como a mum habita o corpo;
— é algo poderosamente gerador;
— ativa o passivo e atualiza o passado;
— engloba os resultados e o processo;

17 BOURDIEU, Pierre. Le sens pran‘que. Paris. Les Editions de Minuit. 1980, p. 88. (Trad. da autora).
‘8 Idem, p. 89.
19 BOURDIEU, Op. Cit, p. 158. (Trad. da aurora).
2° ACCARDO, Alain. Initiation a la SocioIogie. Bordeaux, Editions Le Marcaret, 1983, p. 141. (Trad. da
autora).
21 BOURDIEU, op. 011., p. 109 (1992). (Trad. da autora).
22 ACCARDO, 0p. on, p. 146. (Trad. da autora).
23 BOURDIEU, op. 011., p. 98 e 26 (1990).
24 BOURDIEU, op. 011., p. 91 (1980). (Trad. da autora).

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— é produto das praticas individuais e coletivas e, assim, é produto da histona;
— é uma forma particular de capital;
— ocupa varias regioes da pratica;
— é a interiorizacao do exterior e a exteriorizacao da interioridade;
— possibilita ser e ter sido.25
Assim, utiliza—se esse referencial tanto para analisar o processo de formacao
instaurado no PAO DOS POBRES — um processo totalizante e propicio a produoao
de um novo habitus junto ao interno drféo — corno para captar 0 sistema de relaco-
es construido nesse mesmo processo, e que é representado pela dinamica estrutu-
ral do campo religioso, em confronto com os demais campos do poder.

2 — O campo religioso e a formacao de trabalhadores

Pretende—se destacar como a ocupacao controlada do tempo e do espago


constituiram-se numa das principals estratégias do processo de formacao de futu-
ros trabalhadores, que foi instaurado em escolas de oficio carolicas dirigidas por di-
versas congregacdes religiosas, a partir do final do século XIX.26
O grande objetivo desse empreendimento era 0 de "formar o homem todo para,
assim, produzir um novo homem, iitil a si e a sociedade". Isso supunha a utilizagao
de um conjunto de estratégias, capazes de instaurar uma rupture no habitus dos
alunos que ingressavam em tais escolas, a fim de garantir as possibilidades de se
produzir a forma que esse processo educativo pretendia alcancar.
Os estudos realizados desde 1988 com o intuito de reconstituir tal dinamica
(com base em diversas fontes primaries como documentos, fotografia, material pe-
dagégico, depoimentos, etc.), indicam a PIA UNIAO DO PAO DOS POBRES, fun-
dada em Porto Alegre/RS/Brasil, em 1895, pelo Cdnego Marcelino Bittencourt,
como o caso exemplar dentre as demais escolas de oficio catOIicas. Por isso, os'co-
mentarios a serem apresentados dizem respeito, especialmente, a essa instituicao.
Sem dnvida, foi nessa entidade que os postulados do novo discurso religioso
desencadeado em 1891, com a publicacao da Enciclica Rerum Novarum, foram
reinterpretados de modo mais radical e verticalizado, através da pedagogia
aplica-
da pelos Irmaos Lassalistas — os representantes da Igreja catOIica — que assumira
m
o PAO DOS POBRES, apes 1916.
Ate 1930, as bases institucionais estavam adequadas para o pleno desenvolvi—
mento desse tipo de formacao que recorreu ao regime de internato fechado
para
drfaos pobres, utilizando modalidades religiosas, disciplinares e praticas técnicas,
com os tempos prévia e rigorosamente definidos e 03 espacos visivelmente demar-
cados peios limites dos muros e dos prédios, assim como pelas imimeras ativida—
des que o interno era obrigado a realizar durante todo
0 dia.

25 HERAN, Francois. "La seconde nature de l’Iiabitus — tradition philosophique et sens commun dans
le
langage sociologique". In: Revue Francaise de Sociologie. Juillet/Sept n9 XXVHI — 3, 1087.
p. 385-
413. (Trad. da autora).
26 As consideracées
apresentadas a seguir referem-se a contefidos abordados na Tese de Doutorado,
op, cit, os quais foram expostos no XVI Congresso lnternacional de Histéria da Educacéo (ISCHE),
em Amsterda/Holanda a Agosto/94 e na XVII Reuniao Anual da Associacao Nacional de Poe—Gra-
duacao em Educacéo (ANPEd), em Caxambu/MG — outubro/94.
Corn esse conjunto de dispositivos, garantido por uma supervisao austera dos
Irmaos que aumentavam a cada ano, a formagéo realizada em escola de oficio ca-
tolica diferencia-se significativamente dos demais processos voltados as classes po-
pulares. A sua trajetéria esteve sempre articulada a dinamica capital-trabalho cons—
tituida nas bases de um poder elitista e é possivel afirmar, a partir da realidade vi-
vida pelos ex—alunos do internato, que tal {-1a educativa foi capaz de, através da
gama de saberes, instaurar alguma competéncia (”saber-ser”) junto aos seus forma-
dos.

2.1 — Alguns aspectos da formacao no Pao dos Pobres:


uma escoIa de ofr’cio catéh'ca

As praticas pedagégicas utilizadas pela entidade catOIica — A PIA UNIAO DO


PAO DOS POBRES de SANTO ANTONIO ~ baseavam—se num sistema de relagoes
fortemente hierarquizado, o que garantia a estruturagao de um novo habitus, pelo
qual se operacionalizava o objetivo ultimo do novo discurso: formar o homem inte-
gral, enraizado na foroa divina e capaz de servir a si e a Patna.27
Apes 1930, a rotina continuava praticamente a mesma dos primeiros tempos
do ORFANOTROFIO, porém incluia major diversidade e quantidade de tarefas a se-
rem realizadas pelos internos num ritmo muito mais intense, com o tempo e 0 es—
pago austeramente controlados pelos Irmaos.
Ao se referir a rotina do Orfanato, urn dos ex-internos lembra:

Acordava as 6 horas com o Irmao tocando a campainha. Rezava ao pe' da oama


e depor's 1'a me lavar; no pro’pn‘o dormitén'o havia pias. Depoz's de arrumar a oama
descr'a em fila para a capela onde assistia a missa (6h30m1'n as 7h30mr'n), Depor’s,
novamente em fila, dirigr'a-se para o refeito’n‘o para tomar cafe; Isso durava uns
qujnze minutos mars ou menos. Em segur‘da, cada menino se din'gr'a para o seu
servico de Iimpeza (lavar banher’ros, varrer os corredores, etc). As 8 h, todo mundo
ficava em f1‘1a em frente as salas de aula para dar micro aos estudos. Eram mars ou
menos duas horas do auJa, depois tinha o recreio. Mas a auIa era a manha” toda
para a turma dos menores (a tame dos maiores de 14 a 18 anos, flcava na ofr'or'na 0
dia todo). Depois Vinha o almooo e um recreio de uma hora. Em seguida reinioia-
vam as auIas. A tarde fazr'am os temas também. Tr'nha aulas de desenho, de canto,
de geografia, ate’ as 17 horas. A catequese era dada na part9 da manha, a ultima
hora antes do almooo, quando a turma ja estava um pouco cansada.
As 17h30 min, mars ou menos, todos se reum’am numa saIa grande, ~chamavam
de estudo geraI. Todos fazr‘am os temas supervisionados pelo prefer’to. As 19 hs ti-
nha a janta. Are’ as 20 h tinha um recreio no patio, hora em que os menores subiam
para dormir. Os majores ram para uma sala que chamavam de estndr'o: 1a se fazr'a
temas e escutava—se radio.
Todos esses tempos, vividos em varios espagos do internato, repletos de agoes
e movimentos, tinham seus ritmOs préprios e eram vividos pelo orfao na sua posi-

27 Conforms pensamento de Jean-Baptism de La Salle. In: JUSTO, E. Henrique, La Salle, patrono do


magiste’n'o — Vida, biografia, pensamento, obra pedagégica. Porto Alegre, Livraria Santo Antdnio,
1961, p. 35,

is} §§§$ mfitfi as “El ‘33: r «


9510 de subordinado frente a Deus. Nos momentos de oraoao (na missa, na cateque-
se, nas preces, antes e depois de cada atividade) tanto o interno como o
Irméo si-
tuavam—se na mesma posigao, voltados para a transcendéncia. Ja nos ritmos
do
dormitério, do refeitério, da sala de aula, das oficinas e das atividades
de lazer, o
erféo ficava subordinado a Deus, ao Irmao, ao mestre, ao coiega mais velho.
Exer-
Cia—se assim sobre ele uma dupla pedagogia: a de Deus. que "ensinava" aos
Irma-
os, e a destes, responséveis diretos pela educaoao dos internos.
O modo de comportar—se durante todo o tempo, em cada uma das atividades
da rotina, estava previsto em um Regulamento impiantado em 1927, que passou
a
vigorar, com mais intensidade, apes 1930. O seu primeiro artigo estabelecia
que
"agasalhados exciusivamente por caridade, os driaos deverao tratar sempre corn
muito respeito e grande veneracao aos sens superiores".
Assim, ao se estipular a posioao a ser ocupada pelo interno no espaoo do OR-
FANOTROFIO, determinava-se também o contexto (o ambiente, o clima, o lugar)28
em que seriam vividos os varios tempos, os quais passariam a fazer parte da histo
ria do erfao, reconstruida e construida no interior desse novo espago.
Foram esses os componentes que definiram 9, a0 mesmo tempo, diferenciaram
a forma do trabalhador "gestada" pelo PAO DQS POBRES, em relaoao a outros pro-
cessos instaurados em escolas de ofi’cio nao catOIioas ou mesmo catolioas, em Por-
to Alegre, no periodo considerado nesse estudo (1930 a 1970), os quais estavam es—
treitamente associados com a utilizaoao controiada do tempo e do espago dos sens
formandos.
Nesse sentido, a estrutura e o funcionamento do PAO DOS POBRES apresen-
tararzr; muitos pontos semeihantes ao que Goffman denomina de instituioé
es to-
tars.
E certo que as experiéncias passadas do erfao interno exerciam influéncia,
no
sentido de facilitar ou de impor Iesisténcias a incorporagao de vaiores
e comporta-
mentos mais on memos compativeis com o seu habitus anterior ao
ingresso no Or-
fanato. No entanto, foi esse ambiente, permeado de austeros principi
os, que provo-
cou a rupture daquelas disposiQOes adquiridas ate aquele momen
to, e a instaura~
960 de um novo habitus, construido durante sua permanéncia
no Orfanato, como
um produto da cumplicidade entre esse espago
e o interno.30
As consideragoes de um dos Irméos entrevistados referern-se
a estratégias em-
pregadas para a instauraoao de um novo habit
us no interno:
[...] a discipline era terrivei porque eram criangas que vinham da sazjeta,
[...]
mas so 59 aceitava fiIhos de familias Iegitimamente constitu
idas [...] Na Vila, a Vida
e diner] [...] pois entao se comegou a aceitar somente com oito
on nove anos, para
néo trazerem muitos Vicios [...]. Isto ajudou a equilibrar [...] so que
o regime era
23 A categoria lugar, enquanto urn espaoo construido num dado tempo
e a sua dimense'ro educativa, é
analisada no estudo de FRAGO, Antonio Vinao. "Del espacio escolar y la esouela
como lugar: pro-
puestas e questiones". In: Revista de Histén'a de la Educacio’n, Salamanca, Ediciones
Univesidad de
Salamanca, nQ 12-13, 1993-94. Dentre os autores que desenvolveram estudos importante
s com base
no controle do tempo e/ou do espaco como meio de "formagao" menciona-
so também Edward
Thompson e Andre Petitat.
29 Ver GOFFMANN
. Erving. Manicémios, prisoes e conventos. Séo Paulo. Editora Perspective, 1974.
30 BOURDIEU,
P. Re’ponses — pour une anthoropologie reflexive. Paris, Editions du Seuil, 1992, p. 103,
muito rigoroso: nao sar’am todo o ano, nae tinham férias do internato [...] Para man-
ter a disciplina havia castigos: ficar de pé, dar voltas no patio, ficar fora do time de
futebol.
Apesar do reduiido espaoo para as iniciativas e deoisées do interno, a possibi-
lidade de interagir sempre existiu, permeando as relagoes que ele estabelecia com
os demais membros do ORFANOTROFIO. Sendo assim, o orfao como qualquer
agents social, constituiu—se nas relaooes de certa iorma ja deiinidas também nas
sdas tomadas de posioao, face as constantes lutas pelo poder que permearam 0
FAQ DOS POBRES.
Por isso, na relagao com os seus superiores, o interno foi também cfimplice na
constituigao desse “novo homem". O relato31 de um eX-interno, é um born exemplo
de como os meninos também tiravam partido das disputas com os seus superiores:
"Um outro foi o que aconteceu com o Antdnio Krieger. O Irmao vivia pegando
o pé dale e um dia no refeitério deu uns tapas nele, arrodeou-o pela mao e acabou
jogando—o em cima de um balaio de paes. Ouando ele oaiu sobre o balaio ainda
teve tempo de pegar um pao sem o Irmao ver, foi a forra dale. Ele apanhou, mas
saiu com dois paes e os outros fioaram so com um ”.
Ser disciplinado quase todo o tempo e em todos os espagos trazia também al-
gumas vantagens:
”Nas festas de Santa Antdm‘o ou de 8550 Joao B. de La Salle, eu tinha o privile—
al-
gio de trabalhar como gargom. Aproveitava para comer bem e até para guardar
que eu
gumas coisinhas pra depor's; guardava nas caixinhas vazias de marmelada
escondia".
os
A principal estratégia para instaurar uma formagao integral era a de ocupar
utilizagao do tempo, em todas as agées e
internos e, mais do que isso, controlar a
ntos a seguir fazem referénci a a0 trata«
espagos por onde ele andava. Os depoime
estipula—
mento do tempo, nos varies espagos e atividades dos internos, que estava
do no Regulamento lnterno.
era in—
"[...] Havia horario para tudo. Para se ir ao banheiro, apenas para urinar,
tinha que
dicado um local mais aberto, mais publico. Se fosse no caso de defecar
situagao mais
solicitar aos Irmaos a chave de um outro banheiro, pois essa era uma
demorada e porisso mesmo mais controlada".

s realizadas com os ex-intemos


31 Os depoimentos mencionados nesse estudo reierem-se as entrevista
lembrangas sobre
do PAO DOS POBRES, que ai permaneceram do 1930 a 1970. E certo que as suas época
taram Ira
os fatos vividos ha tanto tempo nao representam a mesma imagem que experimen
9, com ela, suas idéias, seus
do Orianato: ja nao sao mais os mesmos, sua percepgao ioi alterada
valor. Mesmo assim, a memona é uma expressao do sou relacionamento
juizos de realidade e de
varies anos do suas vidas; pox
com o espaqo institucional do PAO DOS POBRES. no qual passaram
o passado - para
isso, os registros sao da maior importancia — 5510 a lembranga fazendo sobreviver
objetivo era iormar trabalhadores,
captar as principais caracteristicas e a extensao do processo. cujo
da membria In:
dentro de um espirito cristao. Mais detalhes sobre a importanoia e o significado
dentre varios outros autores
HALBWACHS. Maurice. La mémore colletive. Paris, Edition PUF, 1950,
que abordam essa questao.

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O tempo do dormitdrio mencionado no Regulamento, no Art. 159 dizia que "o
siléncio e a modestia 5510 de rigor [...] durante as horas de descanso“.
Os relatos dos ex-internos confirmam a maneira austere como era encarado o
descanso.

”Nc'io se podja nem se mexer. O Irmao passava com uma varr'nha de marmelo,
ele controlava [...] e se pegava a genre se mexendo na came dava com a van'nha,
aquilo ddi!"

Mesmo com todo o controle, o interno encontrava uma maneira de se opor:

"[...] A senhora sabe que gun‘, a gente tem fome. Eu tInha no bidezinho, uns
pass duros de quinze dies. Chegavam a ser verdes. Eu comia, quietinho, nunca me
fez me] e a ningue'm. Comia todo 0 p50 como um ratinho. As vezes, o Irmao pegou
a gente“.

O relato de um lrméo, que foi prefeito de discipline na década de 50, confirma


0 controls que o Regulamento previa para os tempos no espago do Refeitorio:

”[...] Ouando eles jam para o refeitério, 9193 1am em flla militar, em siléncr'o, era
tudo por sinal. O prefer‘to de discipline tinha uma sineta, dava uma batida assr'm e,
entéo, ja sabr'am que era 0 final do almoco. Entao rezavam e sar’am. O chefe de
mesa reunia 0 material 9 levava para a cape. Além dessa, a sua funcao era a de cui-
dar se todos se serviam de forma igual, pra ninguém seir prejudicado".

O Regulamento também estipulava a utilizacao do tempo nos lugares de re—


oreios. No artigo 28g consta que "Os orfaos iréo aos recrer'os em ordem e siléncr'o e
aguardaréo, enflleirados no patio, o sinal de 03 comecar“. Art. 309: "Nunca se afas-
taréo do lugar do recrer'o sem licenca do Prefeito".
Sobre esse aspecto, um eX-interno disse:

”Os Irméos tinham cuidado para que na‘o se formassem paneh'nhas, amizades
muito profundas, homossexualismo e outras coisas que, geralmente, ocorrem em
internatos. Os grupos n50 podiam andar isolados pelos locals na escola; manti-
nham os alunos em constante ocupacéo; na hora da aula era verificado se todos es—
tavam nas sales; na hora dos jogos todos tr'nham que participar, tinham que inte—
grar o grupo em movr'men to com movimento”.

E impressionante como foi forte essa exigéncia, que impunha aos internos o
movimento constants nos varios espaoos e tempos vividos por eles. Todos 03 en-
trevistados referiram-se a isto, parecendo representar algo que mobilizou sues vi-
das, mesmo apés a época e fora do espaco do internato.
"[...] Durante o intervalo das aulas na parte da manna por volta das 91130 todos
flcavarn no patio para brincar (corrida, futebol, etc). So’ que todos deviam se mexer
ninguém podia ficar parado. O Irméo usava um apito e se algo ocorresse mal du-
Iante o recrer‘o ele apitava e todos eram obn’gados a parar, viravam estétuas. Ele do~
minava”.

i3 Wrigmos 3:2,33 33
mov3£3t2”313e%§oe$éiteéli§3§‘§§S$“‘Z%§§;“d?§ “9 ale d“? W em
internato tiriham pouquissimas chances de se instalainsoe'S' que nao fossem as do
novo sistema de disposicées que 0 processo estava im elm. Integrando ou mlbmdo‘o
. pretendia neutralizar
Qia . ‘ ' '
tudo o que Significasse alguma ameaca Afrnal,
p antando. tal estrate-
ao s1stema, orga-
nizado para produzrr o "novo homem“.
Vérios tempos do interno eram vividos no patio, mas todos eles eram devida-
mente controlados, para que fossem ocupados conforme prescrevia o Regulamento,
As oportumdades para circular fora do espaco do Orfanotréfio eram bastante
raras, apenas ocasiées especiais, em que, igualmente, as acoes e 03 comportamen-
tos determinados pelo Regulamento eram atentamente observados. E o caso de ex-
cursdes, idas ao circo, nos desfiles da Semana da Patna, procissoes, visitas as au-
toridades, festas religiosas e jogos de futebol em outras instituicées, onde a ordem
era "falar a meia voz”, nao abandonar o grupo e nem "olhar pelas portas e janelas
das casas".
No final da década de 50 e no decorrer dos anos 60, os varios momentos em
que os internos estavam realizando uma atividade recreativa e foram fotografados,
revelam que nessas ocasioes, apesar do Regulamento, existia um Clima de maior
descontracao entre os internos e com os préprios Irmaos.
O tempo dedicado as artes, que representou para o Orfao a oportunidade de
contactar corn situacoes externas ao espaco do Orfanato, era também disciplinado;
as atividades de teatro, banda ou coral eram supervisionadas ou dirigidas por urn
Irmao, com uma hora marcada na rotina diaria.
As recomendacoes sobre o tempo do interno, corn seus familiares ou respon-
saveis, eram bem detalhados no Regulamento, a ponto de se prever dia, local e
tempo limitados para as visitas.
A interacao do interno com outros agentes sociais dava—se, ainda, em festas: a
de Santo Antonio, 0 Natal, as formaturas, as apresentagoes em homenagem a Se-
mana da Patria e aos benfeitores. Estes eram as pessoas que mais circulavam no
espaco do PAO DOS POBRES, afora os Irmaos, os orféos 9 0s funcionarios da casa.
Isso tinha um objetivo: legitimar o poder dos benfeitores, através do poder que
essa obra de caridade estava significando no periodo, em especial até meados dos
anos 60.
POI isso, vérios dos tempos, de cunho mais social, foram bem lembrados pelos
eX-internos, e sempre associados a presenca desses personagens — os benfeitores.

”[.,.I No Nata] ou Pascoa as families nobres como 0s Chaves Barcelos, que eram
benfeitores, podiam ir até la fazer uma visitinha. No mais nao entrava ningue’m la”.
"[...] A minha madrinha era a Dona IIda, uma benfer‘tora do Orfanato. Ela era
quern escoIhia urn para ser seu afilhado; ela perguntava so 911 havia me comporta—
do, como eu ia indo nas aulas e no fim do ano dava presentes no Natal. Havia tam-
bém outros benfeitores, os padrinhos, o Ildo Meneguetti, o Malvasio“.
"[...] A festa de Santa Antonio era tradicional. Na Igreja tinham trés dias de
oracdes, mas no patio era um dia 30 onde estouravam bombinhas, faziam fogueiras,
etc. Nestas festas os Irmaos flcavam mais tolerantes mas sempre controlando tudo.
EIes nao aliviavam nunca. Tinha o casal festeiro que organizava essa festa e as es—
colhidos eram sempre da alta sociedade. Muitos berrfeitores marcavam a sua pre—
senca nesses festejos”.
“[...] Na festa de 15 de agosto, festa de Séo Roque, um benfeiror da Instituicao
é que dava o churrasco. Tinha missa, apresentacao da banda, jogos, etc; era uma
solenidade. O Rafael MaIVarsio era quem doava esse churrasco".

Um espago que ocupava um tempo considerével da rotina diéria vivida pelo


interno, era 0 da Igreja, um lugar em que se pressupunha, conforme ditava o Regu-
lamento, "uma posture impecavel“.
"[...] Havia missas todos os dias; no Domingo eram duas missas, uma as 7 ho-
ras e outra as 9 horas (essa era mars festiva), onde havia a participaca‘o da comuni~
dade. A religiosidade dentro do PAO DOS POBRES era aigo muito forte, tanto que
an era para ser padre".
"[...] Havia muitas misses e an sempre freqiieritava porque meus parenres e
meus Vizinhos também freqr'r'entavam. Era entao um ponto de encontro onde eu po-
dia vé-Ios".
”[...] Fundei a JOC dentro do PAO DOS POBRES, juntamente com os Irmaos
para transmitir a mensagem social cristao para os alunos".
"[...] Fui coroinha durante muitos anos".
"[...] Fui presidente da Juventude Carciica, eram escolhidos os presidentes
coma na maconaria, convidados”.
"[...] Participei da Congregacao do Menino Jesus quando estava na turma dos
menores e, depois, quando entrei para a oficina, fui congregado mariano".

Parte do tempo do interno era dedicado a sua aparéncia ou a cuidados de or-


dem fisica: limpeza do corpo e das roupas, tratamento de doencas ou de proble-
mas por acidentes.
Para que todos esses tempos fossem cumpridos nos eSpagos previamente indi-
cados, segundo o Regularnento e de acordo com a maneira de cada responsavel in-
':erpreté-lo e aplicé-lo — desde 0 Ir. Diretor até o interno chefe de equips — as puni-
Qoes para o nae-cumprimento podiam ser da repressao feita em particular, as bai—
xas notas em disciplina até a expulsao definitiva do orfao.
~ Uma das constantes nos depoimentos dos ex-internos é a memona da repres-
sao fisica, utilizada pelos Irméos, quando eles julgavam inadequadas as atitudes
dos internos, mesmo se néo estava prevista no Regulamento.32 Os depoimentos di-
ferenciam-se quanto a intensidade da agressao e sugerem que ela se tornou mais
branda, a partir da década de 60. Mas todos os internos tém as suas histérias para
contar sobre o tempo vivido no espago do Orfanotréfio, quando o tema é castigo;
alguns relatam com veeméncia, procuram contudo camuflar a indignaoao:

— O Irmao prefeito era muito violenro; muita surra apanbei dele; muita bolacha
no rosto eu lever; on ficava arrasado, mas nao tinha nada O que fazer e ninguém

32 Observa—se que, sob determinadas condicées. La Salle permitiu o uso da vara e da férula. Dizia que
se deve dar um e, no maximo, dois golpes com a férula e somente o Irmao autorizado polo diretor
poderia ter uma vara na aula. In: JUSTO, Ir. Henquieu. La Salle — O patrono do magistén'o. Porto
Alegre, Livraria Santo Antonio, 1961, p. 193.

Nsa m masses as its:


para 'desabafar ou pedir protecao; fiquei marcado por muito tempo depois. Era o
sufrcrente III on cochichar na fiIa para ser Iepreendido e ate' mesmo agredido fisica—
mente com pontapés.
~ Eu era rebeide e recebia muitos castigos. Um deIes foi néo participar de um
piquenique na Pedra Redonda. Eu fiquei muito marcado, visado. Isso tudo ja na
turma dos maiores. [...] Va’rios foram os castigos: correr cinqiienta voitas em torno
do patio "Iimpissimo" e recoiher cinqiienta pecas (sujeiras); davam fortes empurroes
na genie; pnxavam a orelha; pegavam pelos cabelos; davam bofetadas na cara. Era
30193130 na cara que entortava a cara para o outro Jada; aqueies monstrengos, com
aquelas maos.
[...] O Irmao usava batina e no bolso eie tinha um cinto, Quando um aluno con-
versava em auia, ele dava umas duas Iambadas nas costas do aluno.
[...] Certa vez fiquei durante trés meses num canto oihando para a parede. O
pessoal saia da auia e ia pro patio brincar e eu ia pro castigo. Nao devo ter feito
aigo muito grave pois nem me lembro o que r’iz.
— O principal castigo, quando eu entrei, era ficar interno permanentemente,
nao sair para a ma, nem no periodo de férias. Constituia—se no principal castigo
pois en considerava aquilo uma priseio. Certa vez ganhei um tape do Irmaio Arsénio
casti-
DOIQUe o Irmao pensou que en havia feito uma certa brincadeira na fila. Foi o
go mais grave que eu Iembro ter recebido. Outra forma de castigar era raspar 0 ca-
beio.

3 — Algumas consideragées finais

A trajetéria da iormacéo instaurada no PAO DOS POBRES esteve associada ao


aprofundamento de uma nova pedagogia, proposta e executada por membros da
Igreja Catéiica. Iniciou com o ABRIGO 1895, depois transformado em ORFANO— ‘
TROFIO (1916) onde jé havia ensinamentos rudimentares sobre alguns oficios, e se
desenvolveu até a instalacéo das oiicinas que deram origem ao Liceu de Artes e
Oficio. apes 1930.
Assim, dadas as condigoes referidas anteriormente com destaque ao rigor com
que 0 espaco e o tempo eram controlados no decorrer do processo, o interno do
PAO DOS POBRES incorporou um novo habitus, construido na reiacao com os de-
mais agentes sociais. Foi também através desse sistema de disposicEJes — o habitus
~ mais ou menos ajustado as posicoes dos internos, que se realizaram as possibili-
dades nelas inscritas.33 Em funcao disso. é possivel dizer que o ex-interno do Oria-
notréfio constituiu-se num "produto da histéria, da histéria de todo o campo social
e da experiéncia acumulada através de uma trajetéria determinada dentro do sub-
campo": 0 FAQ DOS POBRES, enquanto uma esfera do campo religioso.
Vale lembrar que as condicées iavoréveis a instauracao do habitns encontram-
so no ambiente familiar ou em regimes de internato. As disposicoes definidoras do
habitus sao incorporadas, em sua grande maioria, na inféncia. Porém I150 560 imu-

33 BOURDIEU, P. “Le Champ littéraire“. In: Revue Actes de la Recherche en Sciences Sociaies. Paris.
Editions de Minuit, n9 89, Sept/1991, p. 36.

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