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JEAN-JACQUES ROUSSEAU
DO CONTRATO SOCIAL
*
ENSAIO SOBRE A
ORIGEM DAS LÍNGUAS
*
DISCURSO SOBRE A'J
CIÊNCIAS E AS ARTES
*
DISCURSO SOBRE A ORIGEM E OS
FUNDAMENTOS DA DESIGUALDADE
ENTRE OS HOMENS
DISCURSO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3 61
DO CONTRATO SOCIAL,
OU PRINCÍPIOS DO DIREITO POLÍTICO
ADVERTÊNCIA
DELOUruVALGOMESMACHADO
1. e ircunstâncias da composição
1
Confissões, XI. (N. de L. G. M.)
10 INTRODUÇÃO
2
Confissões, IX. (N. de L. G. M.)
INTRODUÇÃO 11
quando cedia à esperança de retirar-se para uma existência quase isolada, resig-
nasse o grande projeto de outrora, sobretudo se assim conseguia preservar e
imediatamente tornar conhecida aquela sua obra que considerava capital.
No conjunto da produção de Rousseau, o Contrato não se destaca só por
merecer a preferência sentimental do próprio autor. Já e suaforma revela-se o
intuito de constituir um caso singular, pois nessa produção feita de romances
filosóficos, cartas polêmicas e discursos acusatórios, todos vazados numa lingua-
gem candente, impiedosa e por vezes até áspera, surge como um verdadeiro trata-
do redigido num estilo que é "sóbrio, amargo e forte", como queria Jaurés, e
sempre aspira à objetividade técnica, em que pesem os percalços passionais ofe-
recidos pelo temperamento apaixonado do autor. Mais ainda, nada tem de obra
de circunstância, como sucede com a maioria dos textos rousseaunianos, ten-
dendo a desenvolver-se, graças à longa e profunda meditação, num ptano de ver-
dadeira universalidade. Nela, Beaulavon encontrou "a expressão amadurecida,
sistemática e definitiva do pensamento de Rousseau".
2. Fontes e influências
_,,,
~ autor, a começar, sem dúvida, pelos Evangelhos propiciados, logo à infância,
pelo protestantismo de Genebra.
Nessas condições, excelente parece o caminho tomado recentemente por
Derathé 4 , aliás seguindo o exemplo de Halbwachs. Mais do que a investigação
restrita ou lata das fontes, no sentido comum do termo, valerá investigarmos
quais foram as leituras políticas de Rousseau. E, segundo aquele autor, devemos
referir dois grupos distintos de tratadistas que Jean-Jacques estudou mais detida
e proveitosamente, como se pode supor por citações explícitas ou por inferências
bem fundadas.
Em primeiro lugar, temos os jurisconsultos. Grotius e Pufendorf represen-
tavam o melhor da cultura jurídica do tempo e a eles atirou-se Rousseau para
adquirir conhecimentos sem os quais não chegaria a dominar os problemas do
Estado, porém soube colocar o espírito crítico acima da humildade de estudioso.
Assim, em Grotius repele método e doutrina e, se Pufendorffornece-lhe preciosas
informações, nem por isso concorda com seus princípios e suas conclusões.
Quanto a Burlamaqui, discípulo daqueles dois grandes mestres da escola do
Direito Natural e no qual muito tempo se desejou encontrar a principal fonte de
Rousseau, hoje já foi reduzido às suas verdadeiras proporções: tradutor e conti-
nuador quase servil dos grandes juristas, nele pouco de novo se encontraria e,
pois, certa abundância de referências a seus trabalhos nos textos rousseaunianos
dever-se-á, muito provavelmente, àfixação psicológica que/ata/mente causavam
ern Jean-Jacques os trabalhos, nem por isso admirados, de um genebrino e mem-
bro do Conselho . .. Cabe, afinal, assinalar o nome de Johannes Althusius, o
autor àa importante Politica Methodice Digesta (1603), que tanto tempo perma-
neceu ignorada pelos historiadores das idéias políticas. Otto von Gierke, que
recuperou sua memória e sua doutrina, foi o primeiro a suspeitar de uma
influência direta em Rousseau. Vaughan reforçou a indicação citando uma pas-
sagem das Cartas da Montanha em que há referência expressa a Althusius, autor
então praticamente desconhecido. Uma/rase do Contrato - ~'Tem muita razão
aqueles que pretendem não ser · um contrato, em absoluto, o ato pelo qual um
povo se submete a chefes."(!. III, c. I) - parece tomada diretamente a Althusius
e, se assimfor, Rousseau terá tido afelicidade de encontrar, entre os velhos trata-
distas, ao menos um, disposto, como ele, a negar os pretensos direitos superiores
dos reis.
Compõe-se, o segundo grupo, de escritores políticos. Aqui, muito embora a
amplitude das leituras de Rousseau seja bem maior, podemos fixar-nos em três
nomes: Hobbes, Montesquieu e Locke. A força desses três pensadores fez-se sen-
tir, de forma decisiva, nas preocupações de quem estava destinado a colocar-se
no mesmo nível. Em cada um deles, Rousseau distinguiu a verdade fundamental
das fraquezas acessórias e, tomando-lhes o que era essencial, soube criticá-los
pelas fragilidades de método e doutrina que não poderia aceitar, para afinl~ gra-
ças a esses pontos de apoio, positivos e negativos, tentar sua própria construção
sistemática. Em Hobbes, sentiu a necessidade de conceber-se como absoluto o
poder do Estado, mas repeliu, com veemência quase brutal, o sacrifício da liber-
dade do homem. Em Locke, contrariamente, aproveitou muito das formulações
4
Robert Derathé: Jean-Jacques Rousseau et la Science Politique de son Temps, Paris, 1950. (N. de
L.-G.-M.)
14 INTRODUÇÃO
3. Resenha analítica
LIVRO!
menta de uma nova entidade, de "um corpo moral e coletivo ", com "sua unidade,
seu eu comum, sua vida e sua vontade", que não é o simples agregado de
homens, mas a ''pó/is·: a "república·: ou, como prefere Rousseau, o "corpo
político ". Como um todo orgânico, chama-se "Estado·: quando passivo; "sobe-
rano", quando ativo, e ''potência" no trato com seus iguais. Quanto aos homens,
constituíram um ''povo", sendo "cidadãos" ou "súditos" conforme os conside-
remos ativa ou passivamente.
"Do Soberano", ou seja, dos homens considerados coletivamente e depois
de legitimamente investidos no poder que lhes conferiu o pacto, cuida o Capítulo
VII, que analisará as relações entre o corpo político ativo e seus próprios campo~
nentes,formulando a mais transcendente questão do Contrato Social: a vontade
geral. Importa saber, desde logo, onde auscultá-la e estabelecer que nos próprios
homens é que ela se revela, não pelo que de geral haja em suas vontades particu-
lares, mas pelo que de comum as torna interligadas. Por isso mesmo, a vontade
geral é sempre certa e, não podendo errar, jamais atentará contra a liberdade de
qualquer dos membros do corpo social. O Capítulo VIII, estudando o "Estado
civil", num balanço entre o que perde e o que ganha o homem pelo contrato,
traça o contraste entre, de um lado, o direito ilimitado atomar para si tudo que
suas forças permitirem e, de outro, a liberdade civil e a propriedade de tudo que
possui legitimamente, enquanto o Capítulo IX examina as relações entre a
propriedade privada e o poder do soberano.
LIVRO II
o Estado precisar das vidas dos súditos, a elas tem direito, porém, malgrado um
contido protesto sentimental, apressa-se a distinguir tal situação, configurada
pelas exigências da guerra, da pena de morte que se aplica aos criminosos, por-
quanto estes, pelo seu crime, já se colocaram à margem do pacto social.
"Da Lei" é o título do Capítulo VI, que começa, aliás, por uma clara propo-
sição do problema: se ''pelo pacto social demos existência e vida ao corpo políti-
co, resta atribuir-lhe, pela legislação, movimento e vontade". De fato, à descrição
genética, que nos deu uma visão segura, porém apenas estática, anatômica, do
organismo político, impõe-se acrescentar o exame de sua fisiologia, de seu
comportamento ativo. E o Estado vive e age pela lei.
Não nos percamos, a tal propósito, em idéias metafisicas que, apelando
para a lei da natureza ou afirmando que toda ajustiça vem de Deus ou ainda que
há uma justiça universal emanando da razão, não chegam a definir, na essência,
o que é a lei do Estado. Ora, impõe-se saber, exatamente, a relação que resulta do
disposto pela vontade geral "quando todo o povo estatui algo para todo o povo",
pois, sendo a matéria de deliberação "geral como a vontade que a estatui '', aí
teremos o que se pode e se deve chamar de lei. Em outras palavras, a lei, que pof
isso mesmo jamais pode discriminar ou particularizar, é a expressão das condi-
ções da associação civil, tais como as estabelece o mesmo povo a quem virá a
obrigar. Conseqiientemente, se chamarmos de república a todos os Estados regi-
dos por leis, só os governos republicanos, sem embargo daforma particular de
sua administração, serão legítimos.
A noção de lei, que completa e amplia as noções fundamentais do Livro 1,
exige, contudo, uma nova cogitação básica, pois faz-se necessário supor, para o
primeiro e imprescindível estabelecimento legal, uma "inteligência superior" que
se interessasse pelos interesses dos homens, sem ter ela própria nenhum interesse.
"Do Legislador" trata o Capítulo III, que muitos comentários tem suscitado pelo
fato de, nele, Rousseau abandonar decidida e declaradamente qualquer rigor
analítico e racional para, depois de afirmar que "seriam precisos deuses para dar
leis aos homens", supor que só será verdadeiro legislador aquele que, "homem
extraordinário no Estado'', não obstante permanece praticamente fora do Estado,
sem poderes e sem autoridade. E admite até que em estágios sociais rudimentares
recorra a apelos às divindades, para ser melhor compreendido e aceito pelos ho-;
mens que nelas creit~m. Como se vê, não basta o pacto constitutivo do corpo
político, pois quase tão substancial quanto ele é o estabelecimento das conven-
ções gerais que só um legislador pode realizar devidamente.
Suposto tal elemento, os capítulos VIII, IX e X, sob o título geral "Do
Povo'', passam em exame as condições de adequação dos sistemas de legislação
a cada povó, considerado segundo sua própria constituição, as condições natu-
rais de sua vida e cada momento particular de sua história. O Contrato Social
começa a tanger o campo dos problemas, se não concretos, ao menos práticos,
ou ainda melhor: técnicos, da organização estatal. Essas considerações se con-
cluem no Capítulo XI, onde a análise dos "diversos sistemas de legislação '"se re-
sume àfixação de "dois objetos principais: a liberdade e a igualdade, sempre os
mesmos, enquanto variam os recursos específicos empenhados em sua pres~va
ção conforme as específicas condições de cada caso concreto". O Capítulo XII
estabelece uma divisão das leis que distingue as políticas das civis e das crimi-
nais, porém não se encerra sem apaixonada referência - em que repercutem as
18 INTRODUÇÃO
concepções sobre o legislador - a uma quarta espécie de lei, "a mais importante
de todas, que não se grava no mármore, nem no bronze, mas nos corações dos
cidadãos". Como dessas leis imateriais decorre a "verdadeira constituição do
Estado", podemos concluir que, no momento em que se vê levado a examinar
problemas mais técnicos, Rousseau julga necessário reafirmar a importância
capital do conteúdo ético da vida política.
LIVROIJI
LIVRO/V
Iniciando-se o último livro com um capítulo sob o título "De como a Vonta-
de Geral é Indestrutível", impõe-se esclarecer que não nos defrontamos aqui com
uma tardia seqiiência da primeira porção do segundo livro, on.de se tratou dos
atributos essenciais da soberania, mas apenas com uma conclusão do que se tra-
tou no Livro III sóbre as refações entre o governo e o soberano. É curlosa a loca-
lização desse trecho conclusivo no quarto livro, sobretudo se tivermos em vista
que nos demais capítulos, entre os quais não se reconhece a mesma unidade siste-
mática e a mesma coerência expositiva até agora constantes, surge uma série de
ponderações sobre certos problemas de minúcia, certas implicações concretas do
funcionamento da máquina política que,fartamente entremeadas de referências
tomadas à história romana por intermédio de Sigonius, instigam a suspeita de
tratar-se de um aproveitamento fragmentário de porções das Instituições que a
Rousseau custava abandonar.
Assim vemos sucessivamente abordados os problemas do sufrágio (Capítulo
II) e das eleições (Capítulo III), onde ainda ressoam considerações sobre a legí-
tima expressão da vontade geral, para logo toparmos com uma verdadeira mono-
grafia sobre os comícios romanos (Capítulo IV), que se relacio'Tta com o assunto,
mas dispensava tratamento exaustivo. O "tribunato ·: palavra que Rousseau
emprega com significação muito especial, e a ditadura (capítulos V e VI), ou seja,
os remédios excepcionais a que se pode recorrer quando o Estado, ameaçado em
sua integridade, chega às bordas da crise, também se ligam ao exemplo de Roma,
porém nele não encontram mais do que inspiração para uma inédita figura de
ditador-repúblico jamais vista na prática e que parece significar o temor de ver-se
irremissivelmente perdida a essência do ente político. E, como sempre que cuida
do Estado em perigo, não pode Rousseau esquecer-se de seu conteúdo ético, pelo
que normalmente se passa, no Capítulo VII, à questão da censura que corres-
ponde, para a opinião pública, ao que, para a vontade geral, é a lei. Não se bus-
que aí, contudo, a raiz da exposição sobre a religião civil que surge no capítulo
seguinte, fruto de diversa inspiração e de circunstânciàs distintas das responsá-
veis pelo mais que se encontra nesse livro. Embora não constitua, propriamente,
um corpo estranho ao conjunto do Contrato Social, esse capítulo sempre exigirá
estudo e comentário à parte. Afinal, o derradeiro capítulo não passa de brevís-
20 INTRODUÇÃO
sima conclusão em que, à guisa de escusa, Rousseau enumera o que não pôde
expor, isto é, o que constituiria o plano completo das Instituições Políticas.
Na edição Dreyfus-Brisac, famosa por ser a primeira a tentar a reposição do texto segundo as
fontes originais, figura um fac-símile da primeira folha do Manuscrito de Genebra, primitivo es-
boço do Contrato Social. Aí se encontram as muitas variantes por que passou o título da obra.
Primeiro, foi mesmo "Do Contrato Social". Depois, provavelmente para fugir ao sabor indivi-
dualista dessa expressão, foi ela riscada e substituída por "Da Sociedade Civil". A seguir, cons-
ciente da originalidade de sua interpretação do esquema contratual, Rousseau retoma o primeiro
títuio. Quanto ao subtítulo, encontramos sucessivamente "Ensaio sobre a Constituição do Esta-
do", "Ensaio sobre a Formação do Corpo Político", "Ensaio sobre a Formação do Estado" e
"Ensaio sobre a Forma da República". "Princípios do Direito Político" é novidade que só surge
na versão definitiva do Contrato. (N. de L. G. M.)
2
A citação em epígrafe é tomada com grande largueza interpretativa, pois o texto latino alude
expressamente à igualdade de leis para os membros de uma aliança entre povos ou nações,
enquanto o objeto do livro que agora se inicia é a igualdade dos homens unidos em um corpo
político pelo pacto social. (N. de L. G. M.)
ADVERTÊNCIA
Este pequeno tratado foi extraído duma obra mais extensa 3 , outrora ini-
ciada sem que houvesse consultado minhas forças e de há muito abandonada.
Dos vários trechos que se podiam tomar ao que estava/eito, este é o mais consi-
derável e pareceu-me o menos indigno de ser oferecido ao público. O resto não
mais existe 4 •
3 Alusão às Instituições Políticas, cujo destino aqui se sela. Seriam fragmentos da "obra mais
extensa" o manuscrito de Neuchâtel , sobre O Estado de Guerra, outros textos menores que Vaug-
han a esse junta em sua coleção dós Escritos Políticos de Rousseau, e, talvez, os dezesseis capítu -
los sobre a federação que d' Antraigues diz ler recebido do próprio Rousseau e destruído por
causa de seu teor revolucionário. (N. de L. G. M.)
4 A sobrevivência ocasional dos fragmentos referidos na nota anterior não desmente essa afir-
mação: Rousseau desistira, em definitivo, das Instituições e destruíra, delas, o que estava em suas
mãos. "Renunciando a essa obra, resolvi tirar dela o que se podia destacar, e queimar todo o
resto." (Confissões, II parte, livro X.) (N. de L. G. M.)
LIVRO PRIMEIRO
Quero indagar se pode existir, na nessa procura, para unir o que o direi-
ordem civil 5 , alguma regra de adminis- to permite ao que o interesse prescreve,
tração legítima e segura, tomando os a fim de que não fiquem separadas a
homens como são e as leis como justiça e a utilidade 7 •
podem ser 6 • Esforçar-me-ei sempre, Entro nà matéria sem demonstrar a
importância de meu assunto. Pergun-
5
Não se trata de estudar as relações de tar-me-ão se sou príncipe ou legisla-
homem a homem, como faria supor a expres- dor, para escrever sobre política. Res-
são "ordem civil", tão próxima do que moder- pondo que não, e que por isso escrevo
namente é regulado pelo direito civil. O obje- sobre política. Se fosse príncipe ou
tivo em mira é a organização geral da
sociedade, os seus princípios fundamentais e
legislador, não perderia meu tempo,
as regras institucionais do que hoje chamamos dizendo o que deve ser feito; haveria de
de "ordem pública". (N. de L. G. M.) fazê-lo, ou calar-meª.
6
Aqui se encontram dois elementos substan- Tendo nascido cidadão de um Esta-
ciais do pensamento de Rousseau: do livre e membro do soberano 9 ,embora
1. ª) Separa-se, neste ponto, de Montesquieu,
pois, se o Espírito das Leis procura com- fraca seja a influência que minha opi-
preender as leis tais como existem para expli- nião possa ter nos negócios públicos, o
cá-Ias segundo as situações reais que as gera- direito de neles votar basta para impor
ram, o Contrato Social procura o que as leis o dever de instruir-me a seu respeito,
"podem ser" e devem ser para corresponder às
vicissitudes, individuais e coletivas, dos "ho- sentindo-me feliz todas as vezes que
mens como são". Rousseau parte, pois, do
conhecimento profundo e genérico do homem 8
Se houve quem aproximasse de tão ácida
para estabelecer as regras da organização recriminação os propósitos teóricos de Frede-
consciente da sociedade: "É preciso estudar a riêo II, da Prússia, em seu Anti-Maquiavel,
socieda~ pelos homens e os homens pela resta lembrar que a referência pode ser esten-
sociedade", dirá o Emílio (livro IV). dida a todos os chamados "déspotas esclareci-
2°) Os objetivos ambiciosos de Rousseau não dos", que, sempre dispostos ao convívio inte-
o levam a esquecer-se das considerações práti- lectual com os filósofos da liberdade e por
cas. Dos "princípios de direito político", anun- vezes teorizando, eles próprios, sobre o direito
ciados no subtítulo e que serão abstratos e e o homem, diversa atitude assumiam quando
genéricos, deverá decorrer "uma regra de se tratava de exercer o poder de mando. (N. de
administração legítima e segura", isto é, ade- L. G. M.)
quada aos homens e posta ao alcance de sua 9 Cidadão de Genebra, Rousseau chegou a
ação imediata. (N. de L. G. M.) tomar parte numa reunião do Conselho Geral
7
Cf. nota anterior, 2.ª parte. Nem puramente daquela república, quando de sua viagem de
teórico, nem exclusivamente utilitário, Rous- 1754. Para tanto, tivera de voltar ao protestan-
seau deseja princípio e ação atendidos a um só tismo, mas sentira-se, então, "membro do
tempo. (N. de L. G . M.) soberano". (N. de L. G. M.)
28 ROUSSEAU
medito sobre os governos, por sempre tivos para amar o governo do meu
encontrar, em minhas cogitações, mo- país!,º
1 o Apesar da indiferença e, depois, da hostili- na Economia Política: " ... para expor aqui o
dade de seus concidadãos, Rousseau sempre sistema econômico de um bom governo,
manteve Genebra como modelo de república. freqüentemente voltei os olhos para o desta
Para tanto, deveu ·idealizar bastante a reali-
república" ... Agora, faz nova referência ao
dade genebrina, cuja estrutura constitucional,
segundo certos comentaristas, não conhecia caso modelar. E só se calaiá depois de sua
bem. Exalta Genebra na "Dedicatória" do condenação pelo Governo genebrino. (N. de L.
Discurso sobre a Desigualdade. Não a esquece G.M.)
CAPÍTULO 1
O homem nasce livre 1 1 , e por toda a tal mudança? Ignoro-o 1 2 • Que poderá
parte encontra-se a ferros. O que se crê legitimá-la? Creio poder resolver esta
senhor dos demais, não deixa de ser questão 1 3 •
mais escravo do que eles. Como adveio Se considerasse somente a força e o
efeito que dela resulta, diria: "Quando
1 1
Por causa dessa expressão, graves equívo- um povo é obrigado a obedecer e o faz,
cos têm .prejudicado a interpretação do pensa-
mento de Rousseau e, em particular, do Con- age acertadamente; assim que pode
trato Social. De fato, aqui não se trata .apenas sacudir esse jugo e o faz, age melhor
da liberdade (melhor diríamos: da irrestrição) ainda, porque, recuperando a liberdade
individual, da qual já se cuidou no Discurso
sobre a Desigualdade, com claro e preciso sen- pelo mesmo direito por que lha arreba-
tido. O objetivo primordial do Contrato Social taram, ou tem ele o direito de retomá-
está em assentar as bases sobre as quais legiti-
mamente se possa efetuar a passagem da liber- la ou não o tinham de subtraí-la". A
dade natural à liberdade convencional, como ordem social, porém, é um direito
mais adiante se verá. Não obstante, essa
expressão genérica, posta à entrada do texto e sagrado 1 4 que serve de base a todos os
antes de ~stabelcr- o sentido dos termos outros 1 5 • Tal direito, no entanto, não
que a compõem, leva a pensar numa defesa do se origina da natureza 1 6 : funda-se,
individualismo, quando em verdade se inicia
uma exposição acerca da organização social.
(N. de L. G. M.) 1 4
"Sagrado", nesse ponto, não constituí
1 2 Não o ignora. Tampouco o esqueceu, palavra vã ou mero reforço literário da frase.
como alguns desejam supor. A interpretação Aí figura para significar algo superior ao indi-
histórico-conjetural estabelecida no segundo víduo e que, não obstante, se processa no pró-
Discurso está presente ao espírito de Rousseau prio homem: sua transfiguração pelo social.
e o guiará através de todo o Contrato Social. Na Economia Política há alusão à "mais subli-
Acontece, porém, que agora deseja deixar de me de todas as instituições humanas" que
lado as interpretações de fatos para lançar-se capacita a criatura a "imitar cá embaixo os
ao problema político no plano da moral racio- decretos imutáveis da Divind.ade" e à impres-
nal. (N. de L. G. M.) são que temos, em face de seus resultados, de
13
V. nota anterior. Se o segundo Discurso uma "inspiração celeste". Essa imagem aqui
registrara a passagem da liberdade natural à reaparece. (N. de L. G. M.)
servidão civil, o que era um "fato", e o mesmo 1 5
A afirmação ressurge, mais clara ainda, no
fato a que se refere a primeira frase deste capí- capítulo IX, primeiro parágrafo.
tulo, agora se buscará estabelecer em que con- 1 6
Isto é, não se origina na natureza funda-
dições a mesma transição poderá fazer-se mental do homem, no substrato físico e mental
legitimamente, isto é, em favor da liberdade. do indivíduo considerado em si mesmo. (N. de
(N. de L. G. M.) L. G. M.)
DO CONTRATO SOCIAL 1 29
CAPÍTULO II
pai; o povo, a dos filhos, e todos, tendo nião de Hobbes 2 5 • Vemos assim, a
nascido iguais e livres, só alienam sua espécie humana dividida como mana-
liberdade em proveito próprio. A dife- das de gado, tendo cada uma seu chefe,
rença toda está em que, na família, o que a guarda para devorá-la.
amor do pai pelos filhos o paga pelos Assim como um pastor é de natu-
cuidados que lhes dispensa, enquanto reza superior à de seu rebanho, os pas-
no Estado o prazer de mandar substi- tores de homens, que são os chefes,
também possuem natureza superior à
tui tal amor, que o chefe não dedica a
de seus povos. Desse modo - segundo
seus povos.
Filo 2 6 - raciocinava o imperador
Grotius 2 2 nega que todo o poder hu- Calígula, chegando, por essa analogia,
mano se estabeleça em favor daqueles à fácil conclusão de que os reis eram
que são governados: cita, como exem- deuses, ou os povos, animais.
plo, a escravidão 2 3 • Sua maneira mais O raciocínio de Calígula leva ao de
comum de raciocinar é sempre estabe- Hobbes e ao de Grotius. Aristóteles,
lecer o direito pelo fato 2 4 • Poder-se-ia antes de todos eles, também dissera
recorrer a método mais conseqüente, que os homens em absoluto não são
não, porém, mais favorável aos tira- naturalmente iguais, mas nascem uns
nos. destinados à escravidão e outros à
dominação 2 7 •
· Resta, pois, em dúvida, segundo Aristóteles tinha razão, mas tomava
Grotius, se o gênero humano pertence o efeito pela causa. Todo homem nas-
a uma centena de homens ou se esses cido na escravidão, nasce para ela;
cem homens pertencem ao genêro nada mais certo. Os escravos tudo per-
humano. No decorrer de todo o seu dem sob seus grilhões, até o desejo de
livro parece inclinar-se pela primeira
suposição, sendo essa também a opi- 2 5
Hobbes tem importantes pontos de contato
com Rousseau, podendo mesmo ser tido como
2 2 O Direito da Paz e da Guerra, de Grotius, seu direto inspirador no respeitante ao con-
mantinha inabalável seu prestígio já secular. ceito de uma natureza humana primária e
Combatendo-o fr0ntalmente, Rousseau aqui fundamental, considerada à margem das trans-
contradiz o capítulo III do livro I, onde se afir- formações trazidas pela vida em sociedade.
ma que o poder pode estabelecer-se em pro- Não obstante, como conclui afirmando que o
veito de quem o exerce. (N. de L. G. M.) poder se funda no medo e na força, Rousseau
insiste em repudiar explicitamente sua concep-
2 3 Abandonando o "modelo" da família, ção política. (N. de L. G. M.)
Rousseau passa agora ao caso da escravidão 2 6
que os tratadistas, como o mesmo Grotius, pu- Filo de Alexandria, ou Filo, o Hebreu,
nham em paralelo com o poder político. (N. de relata, no De Legatione, o interesse de Calí-
L. G. M.) gula por demonstrar possuir natureza superior
2 4 "As perquirições eruditas sobre o direito
à de seus súditos, porquanto "nascido para um
destino mais alto e mais divino'', para o que se
público freqüentemente não passam da história serviu do paralelo com os pastores. (N. de L.
de antigos abusos, e tem-se porfiado intempes- G.M.)
tivamente por sua causa quando se ·dá o tra-
balho de estudá-las em demasia." (Traité des
2 7
"A natureza, para atender à conservação,
criou certos seres para comandar e outros para
Intérêts de la France avec ses Voisins, pelo Sr.
obedecer. É que ela quis que o ser dotado de
Marquês d'Argenson, impresso por Rey, em
razão e previsão ordenasse como senhor, e que
Amsterdam.) Foi precisamente isso que se pas- o ser capaz, por suas faculdades corpóreas, de
sou com Grotius*. (N. do A.) executar ordens, obedecesse como escravo;
* O livro de d'Argenson, que então circulava assim se confundem o interesse do senhor e o
manuscrito, foi publicado pelo editor Rey, de do escravo." (Aristóteles, Política, 1. 1, c. 1.)
Amsterdam, em 1765. (N. de L. G. M.) (N. de L. G. M.)
DO CONTRATO SOCIAL I 31
CAPÍTULO III
CAPÍTULO IV
Da escravidão
Visto que homem algum tem autori- vo de um senhor, por que não o pode-
dade natural sobre seus semelhantes e ria fazer todo um povo e tornar-se sú-
que a força não produz qualquer direi- dito de um rei? 3 7 Nessa frase existem
to, só restam as convenções como base muitas palavras equívocas a exigir
de toda a autoridade legítima existente explicação, mas prendamo-nos só à
entre os homens 3 6 • palavra alienar. Alienar é dar ou ven-
Se um particular, diz Grotius, pode der. Ora, um homem, que se faz escra~
alienar sua liberdade e tornar-se escra- vo de um outro, não se dá; quando
muito, vende-se pela subsistência. Mas
3 6 Voltamos ao tema central do Contrato, tal
um povo, por que se venderia? O rei,
como se propôs no capítulo inicial. Mas não se longe de prover à subsistência de seus
refutaram todas as teorias despóticas. Se a súditos, apenas dele tira a sua e, de
autoridade não se justifica nem pela força nem acordo com Rabelais, um rei não vive
pela vontade de Deus, provirá de uma conven- com pouco. Os súditos dão, pois, a sua
ção, mas desde logo se impõe demonstrar que
tal convenção não importa na total renúncia à
liberdade. Assim pensava Grotius e, seguindo- 3 7
Resumo de idéias que se encontram no
o, a maior parte dos adeptos da escola do Direito da Paz e da Guerra, 1. 1, c. III , e 1. III,
direito natural. (N. de L. G. M.) c. VII. (N. de L. G. M.)
DO CONTRATO SOCIAL 1 33
tanto mais legítima quanto resulta em rio aos princípios do Direito N aturai e
proveito de ambas as partes 4 2 • a qualquer boapolitia 4 4 •
É claro que esse pretenso direito de A guerra não representa, pois, de
matar os vencidos de modo algum modo algum, uma relação de homem
resulta do estado de guerra 4 3 • Apenas para homem, mas uma relação de Es-
porque, vivendo em sua primitiva tado para Estado, na qual os particu-
independência, não mantêm entre si lares só acidentalmente se tornam ini-
uma relação suficientemente constante migos, não o sendo nem como homens,
para constituir quer o estado de paz nem como cidadãos 4 5 , mas como sol··
quer o de guerra, os homens em abso- dados, e não como membros da pátria,
luto não são naturalmente inimigos. É mas como seus defensores. Enfim,
a relação entre as coisas e não a rela- cada Estado só pode ter como inimigos
ção entre os homens que gera a guerra, outros Estados e não homens, pois que
e, não podendo o estado de guerra não se pode estabelecer qualquer rela-
originar-se de simples relações pes- ção verdadeira entre coisas de natu-
soais, mas unicamente das relações reza diversa.
reais, não pode existir a guerra particu- Esse princípio está mesmo de acor-
lar ou de homem para homem, nem no do com as máximas estabelecidas em
estado de natureza, no qual não há
propriedade constante, nem no estado 4 4
Rousseau serviu-se da transcrição francesa
social, em que tudo se encontra sob a literal da "politeia" grega, grafando " politie".
O -mesmo recurso, em português, daria ambi-
autoridade das leis. güidade com o vocábulo "polícia". Em conse-
Os combates particulares, os duelos, qüência, adotamos o latino "politia'', de acep-
os recontros são atos que de maneira ção muito próxima à desejada por
alguma constituem um estado; quanto Rousseau. Numa carta ao editor Rey, Rous-
seau recomenda que evite confusões de "poli-
às guerras privadas, autorizadas pelas tie" com "politique". (N . da T.)
ordenaçàes de Luís IX, rei de França, 4 5
Os romanos que, mais do que qualquer
e suspensas pela Paz de Deus, são outra nação do mundo, compreenderam e
abusos do . governo feudal, sistema respeitaram o direito da guerra, levavam tão
absurdo, se jamais foi sistema, contrá- longe os escrúpulos a tal respeito, que não se
permitia a um cidadão servir como voluntário
sem ter-se alistado expressamente contra o ini-
migo e nominalmente contra certo inimigo.
4 2 Assim raciocina Grotius no Direito da Paz
Tendo sido reformada a legião em que Catão,
(1. III, c. VII), nisso seguido por Pufendorf, no o Moço, sob o comando de Popílio, se iniciava
Dos Deveres do Homem e do Cidadão (1. II, c. na guerra, Catão, o Velho, escreveu a Popílio
I). Locke vai mais longe, acreditando encon- que, se desejasse a continuação de serviço de
trar fundamento para a escravidão não só no seu filho, se tornava ·necessária a prestação de
direito das gentes, mas também no direito novo juramento militar, visto que, estando o
natural. (N: de L. G. M.) primeiro anulado, não podia mais voltar as
43 A argumentação, que reaparece em outros armas contra o inimigo. O mesmo Catão
textos, tem sua forma mais explícita e convin- escreveu ao filho recomendando-lhe que se
cente no fragmento sobre O Estado de Guerra, abstivesse de entrar em combate, enquanto não
no manuscrito de Neuchâtel. Assim pode ser tivesse prestado novo juramento. Sei que pode-
resumida: 1. 0 ) a guerra, enquanto choque rão contraditar-me com o sítio de Clu sium e
entre duas forças, não cria direito porque não outros fatos particulares, mas o que faço é
o cria a força; 2. 0 ) se houver um direito da citar leis e costumes. Os romanos são aqueles
guerra, esta passará a representar uma relação que menos freqüentemente transgrediram suas
entre dois seres morai s que não alcança aos leis e foram os único s a tê-las tão belas*. (N.
indivíduos, sendo a disputa, ademais, referente do A.)
a interesses reais e não pessoais. (N. de L. G. * Essa nota só aparece nas edições do Con -
M.) trato a partir de 1782. (N. de L. G. M.)
DO CONTRATO SOCIAL I 35
CAPÍTULO V
Ainda que houvera concordado com existe nem bem público, nem corpo
tudo que até aqui refutei, não se encon- político 5 1 • Mesmo que tal homem do-
trariam em melhor situação os fautores mine a metade do mundo, sempre será
do despotismo 4 9 • Haverá sempre gran- um particular; seu interesse, isolado do
dos outros, será sempre um interesse
de diferença entre subjugar uma multi-
privado. Se esse homem vem a perecer,
dão e reger uma sociedade. Sejam ho- seu império, depois dele, fica esparso e
mens isolados, quantos possam ser sem ligação, como um carvalho, de-
submetidos sucessivamente a um só, e pois de consumido pelo fogo, se desfaz
não verei nisso senão um senhor e e se transforma num monte de cinzas.
escravos, de modo algum consideran- Um povo, diz Grotius 52 , pode dar-
do-os um povo e seu chefe. Trata-se, se a um rei. Portanto, segundo Grotius,
caso se queira, de uma agregação, mas um povo é povo antes de dar-se a um
não de uma associação 5 0 ; nela não rei. Essa doação mesma é um ato civil,
4 9 "Fautores do despotismo" são Hobbes,
supõe uma deliberação pública. Antes·,
Grotius e os mais até aqui refutados. Convém mente. Então a relação puramente física que se
esclarecer que Rousseau a eles se opõe não pode supor num simples agregado cederá lugar
porque afirmem que o poder político é superior a valores e padrões de comportamento defini-
ao indivíduo, mas porque nessa superioridade dores de um verdadeiro grupo social. (N. de L.
de fato encontram razão suficiente para im- G.M.)
por-se o mando ao súdito. O Contrato busca 5 1 No contexto social, a que aludimos na
saber como tal imposição do poder pode tor- nota anterior, o bem comum é noção coletiva,
nar-se legítima e, conseqüentemente, quando incluindo-se, por isso mesmo , na consciência
há (ou não) o direito de impor-se aos homens o de cada um, e todas as decisões, visando a
poder do Estado. (N. de L. G. M.) atendê-lo, serão decisões de um "corpo políti-
50 Na oposição de "agregação" a " associa- co", isto é, de uma sociedade consciente de sua
ção", C. E. Vaughan encontra, em germe, todo unidade, necessidades e aspirações. (N. de L.
o pensamento antiindividualista de Rousseau. G.M.)
De sua parte, Beaulavon assinala que aí se 5 2 Para bem entender a insistente refutação
assenta, com toda a sua originalidade e pene- de Grotius, convém primeiramente lembrar
tração, uma inédita visão do contrato social, que no capítulo III do 1 livro do Direito da Paz
pois agora- só. as relações morais, implicando e da Guerra se pergunta "por que um povo
ações mútuas, são consideradas capazes de livre não poderia submeter-se a uma ou várias
formar um povo por intermédio de uma con- pessoas, de tal sorte que lhe transferisse intei-
venção fundamental que lhe dá feição de corpo ramente o direito de governar sem dele reser-
político. No estado atual de desenvolvimento var-se qualquer parcela", desde que "é permi-
da sociologia, a concepção de Rousseau adqui- tido a cada homem livre tornar-se escravo de
re caráter de verdadeira antecipação do papel quem quiser". Essa ousada defesa do despo-
essencial representado pelos liames sociais na tismo vem precedida · de verdadeiro desafio
caracterização da vida coletiva: para termos "aos que pretendem pertencer, sempre e sem
uma sociedade, não basta que se agrupem os exceção, o poder soberano ao povo, de sorte
homens, sendo necessário que os liames entre que este tem o direito de reprimir e punir os
eles estabelecidos se tornem deles indepen- reis todas as vezes que abusem de sua autori-
dentes e a eles venham a impor-se coercitiva- dade". A duplicidade de Grotius, aliás seguida
DO CONTRATO SOCIAL 1 31
pois, de examinar o ato pelo qual um fosse unânime, onde estaria a obriga-
povo elege um rei, conviria examinar o ção de se submeterem os menos nume-
ato pelo qual um povo é povo, pois rosos à escolha dos mais numerosos?
esse ato, sendo necessariamente ante- Donde sai o direito de cem, que que-
rior ao outro, constitui o verdadeiro rem um senhor, votar em nome de dez,
fundamento da sociedade 53 • que não o querem de modo algum? A
Com efeito, caso nao haja conven- lei da pluralidade dos sufrágios é, ela
ção anterior, a menos que a eleição própria, a instituição de uma conven-
por seus continuadores, era patente - a sobe-
~ -
çao e supoe, ao menos por uma vez, a
rania popular, admitida em princípio, era dimi- unanimidade.
nuída pelas distinções teóricas e anulada na
prática - e Rousseau não pode calar-se: ou o cuidamos da "doação" dos súditos ao podero-
princípio é moralmente válido e não pode a ne- so, mas de uma organização política que se
nhum pretexto ser contrariado, ou simples- enraíza direta e profundamente na organização
mente não existe e só haverá a tirania. Assim social. Consideramos, pois, a sociedade una e
responde à verdadeira provocação contida na agindo como um todo, em lugar de basear nos-
mesma passagem do Direito da Guerra e da sos raciocínios nos indivíduos. Senão, adver-
Paz, num trecho que acusa como o princípio te-nos Rousseau no período seguinte, seria pre-
da soberania popular "causou tantos males, e ciso sempre supor unanimidade nas
poderá ainda causá-los se de novo os espíritos deliberações, pois que a regra da maioria (à
se deixarem persuadir". (N. de L. G. M.) qual, no capítulo VIII do segundo Ensaio
5 3 Afirmada a conexão substancial entre o sobre o Governo, Locke atribuiu o papel de
social e o político {v. notas n. 05 50 e 51), trans- titular natural do poder) não passa, também
figura-se o esquema do contrato social: já não ela, de uma convenção. (N. de L. G. M.)
CAPÍTULO VI
do ato, que a menor modificação as cial como uma convenção formal e concreta-
tornaria vãs e de nenhum efeito, de mente instituída, muitos intérpretes encontram
modo que, embora talvez jamais enun- dificuldade em compreender este e os dois
seguintes capítulos. O texto torna-se, contudo,
ciadas de maneira formal, são as mes- claro quando, ao invés de raciocinar como se
mas em toda a parte, e tacitamente aqui se descrevesse o que sucede "antes" e "de-
mantidas e reconhecidas em todos os pois" do contrato, se procura ler Rousseau
lugares 5 8 , até quando, violando-se o como se descrevesse nossa condição "fora" e
"dentro" da sociedade. Para viver em socieda-
pacto social, cada um volta a seus pri- de, cada um de nós "dá-se completamente" ,
meiros direitos e retoma sua liberdade isto é, submete aos padrões coletivos todos os
natural, perdendo a liberdade conven- impulsos naturais da criatura individual,
cional pela qual renunciara àquela. porém, sendo tal submissão uma "condição
igual para todos", a ninguém interessa agra-
vá-la. Se, porventura, alguém intentar reser-
5 6 Superadas as forças individuais, só o poder var-se algo de seus "direitos naturais", isto é,
da coletividade pode atender às solicitações da atender a seus impulsos como se vivera isola-
existência. (N. de L. G. M.) do, está se colocando à margem da sociedade e
5 7 •• • "tão livre quanto antes". . . porque assim deve ser tratado a menos que se queira
igualmente capacitado a suprir e dominar as comprometer a própria sociedade, em cujo
suas necessidades e, pois, a agir livremente. seio, portanto, sempre se impõe uma igualdade
Trata-se, contudo, de uma liberdade diferente básica. Afinal, ainda quando o corpo s_o cial
da naturãl - é a liberdade convencional, de destaca certos elementos para o Governo , não
que se fala a seguir. (N. de L. G. M.) será a eles, mas ao corpo, que "nos damos",
58
Não se procure encontrar um ato real de com o que se compreenderá a vida política sem
instituição formal do contrato. Este passou a diferenças (além das funcionais) entre gover-
ter valor simbólico: suas "cláusulas" são nantes e governados - "cada um dando-se a
"determinadas pela natureza do ato", dispen- todos, não se dá a ninguém". Entram em cone-
sam enunciado explícito, sendo "mantidas e xão substancial a realidade sócio-antropo-
reconhecidas" de maneira tácita. (N. de L. G. lógica e a reivindicação histórico-política de
M.) liberdade. (N. de L. G. M.)
DO CONTRATO SOCIAL I 39
CAPÍTULO VII
Do soberano
Vê-se, por essa fórmula, que o ato de cial 6 7 • Tal não significa não poder esse
associação compreende um compro- corpo comprometer-se com outrem, no
misso recíproco entre o público e os que não derrogar o contrato, pois, em
particulares, e que cada indivíduo, relação ao estrangeiro, torna-se um ser
contratando, por assim dizer, consigo· singelo, um indivíduo.
mesmo, se compromete numa dupla Mas o corpo político ou o soberano,
relação: como membro do soberano não existindo senão pela integridade 6 8
em relação aos particulares, e como do contrato, não pode obrigar-se,
membro do Estado em relação ao mesmo com outrem, a nada que derro-
soberano. Não se pode, porém, aplicar gue esse ato primitivo, como alienar
a essa situação a máxima do Direito uma parte de si mesmo ou submeter-se
Civil que afirma ninguém estar obri- a um outro soberano. Violar o ato pelo
gado aos compromissos tomados con- qual existe seria destruir-se, e o que
sigo mesmo 6 6 , pois existe grande dife- nada é nada produz.
rença entre obrigar-se consigo mesmo
e em relação a um todo do qual se faz 6 7
Agindo, em sua própria esfera, como pes-
parte. soa, o corpo social permanece livre mesmo em
Impõe-se notar ainda que a delibera- relação ao pacto fundamental. Com isso, ao
ção pública, que pode obrigar todos os contrário do que acreditaram certos individua-
súditos em relação ao soberano, devi- listas (aos quais faz eco Paul Janet na História
do às duas relações diferentes segundo da Ciência Política), não se reconhece ao Esta-
as quais cada um deles é encarado, não do um poder ilimitado e superior até à moral e
ao direito, mas, sim, que a sociedade, matriz
pode, pela razão contrária, obrigar o dessa moral e desse direito, pode a qualquer
soberano em relação a si mesmo, momento tomar novas direções que seus mem-
sendo conseqüentemente contra a na- bros, na medida de suas consciências, busca-
tureza do corpo político impor-se o rão estabelecer de forma concreta. (N. de L. G.
M.)
soberano uma lei que não possa infrin- 68
No original figura a expressão "la sainteté
gir. Não podendo considerar-se a não du contrat", porém traduzi-la, literalmente, por
ser numa única e mesma relação, "a santidade de contrato" importaria em per-
encontrar-se-á então no caso de um der-se o essencial do sentido da frase que esta-
particular contratando consigo belece como só se mantém unido o corpo so-
cial enquanto a integridade do contrato não
mesmo, por onde se vê que não há nem sofrer abalo. Em que pese a real dificuldade da
pode haver qualquer espécie de lei tradução, cabe registrar que a "sainteté" do
fundamental obrigatória para o corpo original é indicativa do caráter supra-humano,
do povo, nem sequer o contrato so- embora não sobrenatural, do ente coletivo (e
em mais de um ponto Rousseau vale-se desse
símile com a esfera divina) que aqui já surge
6 6 O direito civil, regulando relações entre como a necessária relação entre o político
indivíduos, não pode alcançar uma situação (necessidade de cumprir o contrato) e o moral
em que age um "ser moral" de natureza (dever de obedecer a uma entidade superior ao
supra-individual. (N. de L. G. M.) indivíduo). (N. da T.)
DO CONTRATO SOCIAL 1 41
Desde o momento em que essa mul- O mesmo não se dá, porém, com os
tidão se encontra assim reunida em um súditos em relação ao ·soberano, a
corpo, não se pode ofender um dos quem, apesar do interesse comum, nin-
membros sem atacar o corpo, nem, guém responderia por seus compromis-
ainda menos, ofender o corpo sem que sos, se não encontrasse meios de asse-
os membros se ressintam. Eis como o gurar-se a fidelidade dos súditos 7 1 • .
dever e o interesse obrigam igualmente Cada indivíduo, com efeito, pode,
as duas partes contratantes a se auxi- como homem, ter uma vontade parti-
liarem mutuamente, e os mesmos ho- cular, contrária ou diversa da vontade
mens devem procurar reunir, nessa geral que tem como cidadão. Seu inte-
dupla relação, todas as vantagens que resse particular pode ser muito dife-
dela provêm 6 9 • rente do interesse comum. Sua existên-
Ora, o soberano, sendo formado cia, absoluta e naturalmente
tão-só pelos particulares que o cqm- independente, pode levá-lo a conside-
põem, não visa nem pode visar a inte-
rar o que deve à causa comum como
resse contrário ao deles, e, conseqüen-
uma contribuição gratuita, cuja perda
temente, o poder soberano não
necessita de qualquer garantia em face prejudicará menos aos outros, do que
de seus súditos, por ser impossível ao será oneroso o cumprimento a si pró-
corpo desejar prejudicar a todos os prio. Considerando a pessoa moral que
seus membros, e veremos, logo a constitui o Estado como um ente de
seguir, que não pode também prejudi- razão 7 2 , porquanto não é um homem,
car a nenhum deles em particular. O ele desfrutará dos direitos do cidadão
soberano, somente por sê-lo, é sempre sem querer desempenhar os deveres de
aquilo que deve ser 7 0 •
71
Se os liberais do século passado se preocu-
69 Entram em conexão substancial o dever e param com garantir o indivíduo contra o Esta-
o interesse. Em sua totalidade, o parágrafo do, fiel à sua própria conjuntura hi stórica
exprime a antecipação, por Rousseau, da Rousseau cuida de garantir o Estado contra o s
noção de "síntese social" que dá :base a toda a indivíduos, ou melhor, certos indivíduos, poi s
sociologia moderna para a qual o individual e o que via era a usurpação dos poderes do Esta-
o coletivo são simples aspectos especiais de do pelo monarca ou por uma classe privile-
uma mesma realidade. (N. de L. G. M.) giada. A solução do problema, que surge no s
70 O poder soberano continua, pois, a ser parágrafos seguintes, é incutir no comporta-
insuperável, isto é, absoluto. A soberania abso- mento individual a consciência da vontade
luta, não obstante, longe de representar uma geral, de sorte a dominar a vontade particular.
potência adversa à liberdade individual, como A teoria política de Rousseau toca ao mai s
afirmava, entre outros, Hobbes, passa a ser fundo dos princípios gerais, confundindo-se
entendida como o resultado da associação de com a ética e propondo o problema da educa-
todos os particulares e, por isso mesmo, como ção. (N. de L. G. M.)
uma força incapaz de afetar a seus próprios 72
Em linguagem filosófica, ente de razão é
elementos constitutivos sem a si mesma afe- "objeto de pensamento artificialmente criado
tar-se. Entram, pois, em equação dois velhos pelo espírito para atender às neces sidades do
temas da teoria política: só a soberania popu- discurso e sem existência, quer em si, quer na
lar é soberania absoluta, perfeita e legítima. representação concreta" (Lalande, Vocabu-
Como, na prática, em nome dessa soberania os laire, verb. "Raison" ). No Contrato Social, a
governos exercem seu mando, freqüentemente expressão assume diversa significação, como
se tem confundido as garantias das liberdades anota Beaulavon: "Para Rousseau, como para
individuais contra os excessos da autoridade os sociólogos contemporâneos, o Estado é,
com limitações da soberania. Assim pensavam pois, um ente real, e de modo algum uma enti-
os individualistas, como Benjamin Cónstant, dade abstrata; desconhecê-lo é recair no
mas ainda hoje percebemos ecos, discretos egoísmo individualista. Mas esse ente, para ele,
mas positivos, dessas restrições nos comentá- é moral no sentido próprio da palavra: só a
rios de um Vaughan , por exemplo. (N. de L. G . vontade racional pode criá-lo" . (N. de L. G.
M.) M.)
42 ROUSSEAU
e AP fruLo v111
Do estado civil
CAPÍTULO IX
Do domínio real 7 7
blico, estando respeitados seus direitos Terminarei este capítulo e este livro
por todos os membros do Estado e por uma observação que deverá servir
sustentados por todas as suas forças de base a todo. o sistema social: o
contra o estrangeiro, adquirem, por pacto fundamental, em lugar de des-
assim dizer, tudo o que deram por uma truir a igualdade natural, pelo contrá-
cessão vantajosa ao público e mais rio substitui por uma igualdade moral
ainda a eles mesmos 83 • O paradoxo e legítima aquilo que a natureza pode-
explica-se facilmente pela distinção ria trazer de desigualdade tisica entre
entre os direitos de que o soberano e o os homens, que, podendo ser desiguais
proprietário gozam sobre os mesmos na força ou no gênio, todos se tornam
bens, como se verá mais adianteª 4 • iguais por convençãoª 6 e direitoª 7 •
Pode também acontecer que os ho-
mens comecem a unir-se antes de pos- 8 6 Se a liberdade natural, no estado civil,
suir qualquer coisa e que, apossando- transmuta-se em liberdade convencional, é
se depois de um terreno bastante a bem de ver que a desigualdade natural (física e
todos, o fruam em comum ou dividam mental) não pode transformar-se em desigual-
entre si, seja em partes iguais, seja de dade social, salvo numa perversão do contrato,
ou melhor, da organização da sociedade. V.
acordo com proporções estabelecidas nota de Rousseau sobre os maus governos. (N.
pelo soberano. De qualquer forma que de L.G. M.)
se realize tal aqµisição, o direito que 8 7
Sob os maus governos*, essa igualdade é
cada particular tem sobre seus pró- somente aparente e ilusória; serve só para
manter o pobre na sua miséria e o rico na sua
prios bens está sempre subordinado ao usurpação. Na realidade, as leis são sempre
direito que a comunidade tem sobre úteis aos que possuem e prejudiciais aos que
todos, sem o que não teria solidez o nada têm, donde se segue que o estado social
liame social, nem força verdadeira o só é vantajoso aos homens quando todos eles
exercício da soberania 8 5 • têm alguma coisa e nenhum tem demais. (N.
do A.)
* No Emílio torna-se explícito que "maus
8 3 À semelhança da passagem da liberdade governos" são todos os que Rousseau conhe-
natural à convencional. (N. de L. G. M.) cia: "O espírito universal das leis de todos os
a 4 No capítulo IV do II livro. (N. de L. G. países é de sempre favorecer o forte contra o
M.) fraco, e o que tem contra o que não tem; tal
a s Aplicação ao "domínio real" do princípio inconveniente é inevitável e sem exceção". O
geral do contrato: a ninguém é lícito aceitar o socialismo de Rousseau não se resume, pois,
pacto e buscar manter-se, por sua pessoa ou ao plano da condição econômica, mas alcança
por seus bens, à margem do compromisso a condição social resultante daq.uela. (N. de L.
total. (N. de L. G. M.) G.M.)
. LIVRO SEGUNDO
CAPÍTULO 1
A soberania é inalienável
de geral, jamais pode alienar:. se, e que algo contrário ao bem do ser que ·dese-
o soberano, que nada ·é senão um ser ja. Se, pois, o povo promete simples-
coletivo, só pode ser representado por mente obedecer, dissolve-se por esse
si mesmo. O poder pode transmitir-se; ato, perde sua qualidade de povo -
não, porém, a vontade. desde que há um senhor, não há mais
Se não é, com efeito, impossível que soberano e, a partir de então, destrói-se
uma vontade particular concorde com o corpo político 9 4 •
a vontade geral em certo ponto, é pelo Isso não quer dizer que não possam
menos impossível que tal acordo se as ordens dos chefes ser consideradas
estabeleça duradouro e constante, pois vontades gerais, desde que o soberano,
a vontade particular tende pela sua livre para tanto, não se oponha 9 5 • Em
natureza às predileções e a vontade tal caso, pelo silêncio universal deve-se
geral, à igualdade 92 • Menor possibili- presumir o consentimento do povo. O
dade haverá ainda de alcançar-se uma que se explicará mais amplamente 9 6 •
garantia desse acordo; ainda quando
devera sempre existir, não seria ·um 9 4 A noção de soberania implica, forçosa-
produto da arte, mas do acaso 93 • O mente, poder sem contraste. De outra parte,
soberano pode muito bem dizer: não se concebe o ente moral, nascido do pacto,
"Quero, neste momento, aquilo que um sem vontade própria. Eis por que um povo não
tal homem deseja, ou, pelo menos, pode entregar-se a um senhor sem deixar de ser
povo, soberano e corpo político. (N. de L. G.
aquilo que ele diz desejar". Mas não M.)
poderá dizer: "O que esse homem qui- 9 5
Assim chegamos a certas regras práticas
ser amanhã, eu também o quererei", acerca do exercício do poder: 1) pode-se trans-
por ser absurdo submeter-se a vontade mitir o poder, nunca, porém, a vontade geral;
a grilhões futuros e por não depender 2) qualquer compromisso de submissão do
povo, como tal, põe fim ao estado civil; 3) pre-
de nenhuma vontade o consentir em sume-se que as ordens da autoridade estejam
de acordo com a vontade geral, desde que esta
9 2 O impulso natural é egoísta, a vida em silencie. A observação impõe-se quando sabe-
sociedade impõe padrões iguais para todos. mos que este capítulo é tido, por muitos, como
(N. de L. G. M.) cogitando só de problemas "abstratos". Rous-
9 3 Seguimos, nesta passagem, a correção de seau, aqui, começa a realizar sua promessa ini-
pontuação proposta por G. Beaulavon em sua cial: dos princípios fundamentais deriva "re-
ediçãó do Contrato e que torna inteligível a gras de administração". (N. de L. G. M.)
frase. (N. da T.) 9 6 No Livro III . (N. de L. G. M.)
CAPÍTULO II
A soberania é indivisível
CAPÍTULO III
privado e não passa de uma soma das em relação a seus membros e particu-
vontades particulares 1 0 7 • Quando se lar em relação ao Estado: poder-se-á
retiram, porém, dessas mesmas vonta- então dizer não haver mais tantos
des, os a-mais e os a-menos que nela se votantes quantos são os homens, mas
destroem mutuamente 1 0 8 , resta, como somente tantos quantas são as associa-
soma das diferenças 1 0 9 , a vontade ções. As diferenças tornam-se menos
geral. numerosas e dão um resultado menos
Se, quando o povo suficientemente geral 1 1 2 • E, finalmente, quando uma
informado delibera, não tivessem os dessas associações for tão grande que
cidadãos qualquer comunicação entre se sobreponha a todas as outras, não se
si, do grande número de pequenas dife- terá mais como resultado uma soma
renças resultaria sempre a vontade das pequenas diferenças, mas uma
geral e a deliberação seria sempre diferença única - então, não há mais
boa 1 1 0 • Mas quando se estabelecem vontade geral, e a opinião que dela se
facções 1 1 1 , associações parciais a ex- assenhoreia não passa de uma opinião
pensas da grande, a vontade de cada particular 1 1 3 •
uma dessas associações torna-se geral Importa, pois, para alcançar o ver-
dadeiro enunciado da vontade geral ,
1 o 7 Cf. Emilio (1. II) - " Nos meus Princípios que não haja no Estado sociedade par-
de Direilo Político, ficou demonstrado que cial e que cada cidadão só opine de.
nenhuma vontade particular pode ser ordenada acordo consigo mesmo 1 1 4 • Foi essa a
no sistema social " . (N. de L. G. M.)
108
"Cada interesse", diz o Marquês
· d' Argenson , "tem princ.í pios diversos. O acor- 1 1 2 Novamente, malgrado os respeitáveis pre-
do de dois interesses particulares se forma por cedentes, impõe-se evitar uma compreen são
oposição ao de um terceiro." Ele poderia ter "matemática" dos termos: quanto mais dife-
acrescentado que o acordo de todos os interes- rem entre si as opiniões, tanto mai s oportuni-
ses se forma por oposição ao de cada um. Se dades haverá de emergir o substrato comum , o
não houvesse interesses diferentes, reconhe- que parece sumamente improvável quando ,
cer-se-ia com dificuldade o interesse comum, pela união em facções , as opiniões encontram
que jamais encontraria obstáculos. Tudo anda- apoio mútuo nas diferenças facciosas e não no
ria por si e a política deixaria de ser uma arte*. interesse do todo. (N. de L. G. M.)
(N. do A.) 1 1 3 Porque a associação supõe o prévio acor-
* Isto é: a organização social funcionaria do de seus associados que se unem , contra a s
natural e espontaneamente, dispensando a arte opiniões divergentes dos demais, exatamente a
política de revelá-la às consciências. (N. de L. fim de sustentar a opinião comum a toda a
G . M .) associação que, contudo, por não ser expres-
109
Soma das diferenças: substrato comum às são da vontade geral, "não passa de uma opi-
opiniões variadas. Totalmente inútil será atri- nião particular" . (N. de L. G. M.)
11 4 "Vera cosa e", disse Maquiavel , " che 'al -
buir qualquer sentido "aritmético" a esta
expressão e a, outras semelhantes, ~ncotra cuni divisioni nuocono alie repub\ic'ne e a\cune
diças em Rousseau, muito embora ·o façam giovano: quelle nuocono che sono dalle sette e
bons comentaristas. (N. de L. G. M.) da partigiani accompagnate: quelle giovano
1 1 o Não se supõe, pois, para que se estabeleça che senza sette, senza partigiani, se manten -
a vontade geral, qualquer acordo consciente e gono. Non potendo adunque provedere um
deliberado . Mesmo no concerto tácito ou não- fondatore d'uma republica che non siano nimi-
preparado das opiniões particulares (necessa- cizie in quella, ha de proveder almeno che non
riamente discordantes, posto que correspon- vi siano sette " (Hist. Florent., Liv. VII).* (N.
dendo a impulsos individuais e a interesses do A.)
privados), ela emerge natural e espontanea- • "Em verdade, há divisões que prejudicam as
mente, pois que subjaz em todas as consciên- repúblicas e outras que lhes aproveitam: preju-
cias capacitadas a exprimir-se. (N. de L. G . diciais são as que suscitam seitas e partidários,
M.) proveitosas, as que se mantêm sem seitas nem
1 1 1 Na República (1. V), Platão perguntava: partidários. Não podendo, pois, o fundador
"Para um Estado, o maior mal não é que o duma república impedir que nela existam
dividam? que, de um só, façam muitos?" (N. inimizades, impedirá ao menos que haja sei-
de L. G. M.) tas." (N. de L. G. M,)
54 ROUSSEAU
CAPÍTULO IV
invencível 1 3 3 • A própria vida, que feita para ser uma profissão. Todo o homem
devotaram ao Estado, é por este conti- deve ser soldado para defender sua liberdade,
nenhum o deve ser para invadir a liberdade de
133 ·v. a comparação entre o estado natural e outrem, e morrer servindo à pátria é tarefa bela
o estado civil, do capítulo VIII do Livro I. (N. demais para colifar-~e a mercenários." (Emí-
de L. G. M.) lio, l. III.) (N. de L. G. M.)
CAPÍTULO V
permitam para a conservação de sua pessoa e natural, como se lê na Nova Heloísa (III parte,
a d() g_ênero humano".(N. de L. G.M.) carta 22). (N. de L. G. M.)
58 ROUSSEAU
o grande número de crimes assegura a minosos delas não terão mais necessi-
sua impunidade quando o Estado defi- dade e todos podem ver aonde isso
nha. Na república romana, nem o se- leva. Sinto, porém, que meu coração
nado nem os cônsules jamais tentaram murmura e retém minha pena: deixe-
conceder graça, e mesmo o povo não o mos essas questões para serem discuti-
fazia, embora por vezes revogasse seu das pelo homem justo que nunca fa-
próprio julgamento. As graças fre- lhou e nunca tenha tido, ele próprio,
qüentes anunciam que em breve os cri- necessidade de graça.
CAPÍTULO VI
Da lei
Pelo pacto social demos existência e ções humanas 1 4 4 • Toda a justiça vem
vida ao corpo político. Trata-se, agora, de Deus, que é a sua única fonte; ·se
de lhe dar, pela legislação, movimento soubéssemos, porém, recebê-la de tão
e vontade, porque o ato primitivo, pelo alto, não teríamos necessidade nem de
qual esse corpo se forma e se une, nada governo, nem de leis. Há, sem dúvida,
determina ainda daquilo que deverá uma justiça universal emanada somen-
fazer para conservar-se 1 4 3 • te da razão; tal justiça, porém, deve ser
Aquilo que está bem e consoante à recíproca para ser admitida entre nós.
ordem, assim o é pela natureza das coi- Considerando-se humanamente as coi-
sas e independentemente das conven- sas, as leis da justiça, dada a falta de
sanção natural, tornam-se vãs para os
homens; só fazem o bem do mau e o
1 4 3
No Emílio (ao resumir o Contrato Social
que só contava publicar mais tarde), Rousseau
afirma, ao falar da lei, que "o assunto é abso- 1 4 4
O caráter vivo e dinâmico da vida em
lutamente novo; a definição de lei resta por sociedade (v. nota anterior) é aqui oposto ao
fazer". Vê-se, pois, que considerava sua contri- estatismo duma vida conformada exclusiva-
buição como algo inteiramente original. E, de mente pela ordem natural. Em todo o pará-
fato, o é na medida em que seus antecessores, grafo, Rousseau esforçar-se-á por deixar bem
ao tratar da questão, ou seguiam o esquema claro que, qualquer que seja a origem superior
tradicional para pôr em relação a lei natural e que se atribua (ou melhor: que seus anteces-
a lei positiva, ou, como Montesquieu fizera sores e contemporâneos atribuam) à justiça
pela primeira vez, aceitavam as leis tais como (seja Deus, seja a razão), esse primeiro princí-
são para investigar suas relações com certas pio não basta para escapar à necessidade de
circunstâncias geográficas, ecológicas e so- firmar convenções e estatuir leis que estabe-
ciais. Abandonando qualquer relação neces- leçam os padrões das relações entre os
sária com a lei natural - pois, se o corpo so- homens. Permanece ainda presente algo das
cial é fruto de uma convenção, suas leis não críticas a Diderot, do capítulo anterior. De
podem ter outra fonte - , Rousseau não se fato, não se pode esperar que, cada um consul-
satisfaz com saber como são as leis feitas pelo tando sua consciência, sobrevenha a conver-
homem, mas quer sobretudo saber como gência espontânea de todos: desprovidas de
devem ser, tendo em conta sua origem e sua sanção natural, as leis (racionais ou divinas)
essência. Mais ainda: tendo plena noção de da justiça viriam a ser um peso injustamente
que, ao desenvolver sua teoria do contrato, só imposto aos que as obedecessem, porquanto
vira a sociedade em sua organização e estrutu- não seriam obedecidas por todos. Impõe-se
ra, deseja agora examinar-lhe o dinamismo: restabelecer, mais uma vez, a igualdade de
além da "existência e vida" do corpo social, é direitos e deveres e isso só se conseguirá pela
preciso conhecer seu "movimento e vontade". sanção coletiva, isto é, de todos a todos. (N. de
(N. de L. G. M.) L. G. M.)
60 ROUSSEAU
mal do justo, pois este as, observa com guais. Segue-se que a vontade de uma
todos, sem que ninguém as observe não é mais geral em relação à
com ele. São, pois, necessárias conven- outra 1 4 7 •
ções e leis para unir os direitos aos Mas, quando todo o povo estatui
deveres, e conduzir a justiça a seu .algo para todo o povo, só considera a
objetivo. No estado de natureza, no si mesmo e, caso se estabeleça então
qual tudo é comum, nada devo àqueles uma relação, será entre todo o objeto
a quem nada prometi; só reconheço sob um certo ponto de vista e todo o
como de outrem aquilo que me é inútil. objeto sob um outro ponto de vista 1 4 8 ,
Isso não acontece no estado divil, no sem qualquer divisão do todo. Então, a
qual todos os direitos são fixados pela matéria sobre a qual se estatui é geral
Lei. como a vontade que a estatui. A esse
Mas que será, finalmente, uma lei? ato dou o nome de lei.
Enquanto se contentarem em ligar a Quando digo que o objeto das leis é
·essa palavra somente idéias metafísi- sempre geral, por isso entendo que a
cas 1 4 5 , continuar-se-á a raciocinar Lei ·considera os súditos como corpo e
sem fazer-se compreender, e, quando as ações como abstratas, e jamais um
se disser o que é uma lei da natureza, homem como um indivíduo ou uma
não se saberá melhor o que é uma lei ação particular 1 4 9 • Desse modo, a Lei
do Estado.
1 4 7 O símile geométrico aqui empregado por
Já disse não haver vontade geral
Rousseau, aliás como todas as comparações
visando objeto particular 1 4 6 • Com de ordem matemática que se encontram no
efeito, esse objeto particular encontra- Contrato Social, tem suscitado a re&istência
se dentro ou fora do Estado. Se está dos comentaristas, que o qualificam de obscu-
fora do Estado, uma vontade que lhe é ro. Ora, a analogia é meramente superficial,
estranha não é geral em relação a ele. verbal. Ademais, toma-se claro que Rousseau
aqui figura duas hipóteses nitidamente confi-
Se está no Estado, faz parte dele: for- guradas acerca dos efeitos das decisões do
ma-se então, entre o todo e a parte, corpo político quando delibera sobre algo de
uma relação que produz dois seres particular: a) se o objeto está fora da alçada do
separados, sendo a parte um deles, e o Estado em questão, não pode ser do interesse
de nenhum dos membros do corpo político e,
todo, menos essa parte, o outro. Mas o pois, não haverá vontade geral; b) se, no inte-
todo menos uma parte não é o todo e, rior do Estado, o objeto é particular, na melhor
enquanto subsistir essa relação, não hipótese interessará a alg:uns membros do
existe o todo, senão duas partes desi- corpo e, pois, transformar-se-á no motivo de
uma relação entre os interessados e os não-in-
teressados, com o que, novamente, não haverá
1 4 5
Nessa ironia se tem enxergado uma crí- vontade geral. Comprova-se o princípio: não
tica a Montesquieu que, na, parte inicial do Do · há vontade geral visando objeto particular. (N.
Espírito das Leis, esmiuçava os vários sentidos de L. G. M.)
da palavra "lei" e as relações entre a lei civil e 1 4 8
·os dois pontos de vista são o ponto de
a \ei natural. Não obstante, Rousseau não só vista dos membros do soberano, ao estatl-rírem
reconheceu explicitamente o valor excepcional a lei; e o ponto de vista dos súditos, que a
de Montesquieu, mas ainda buscou marcar a obedecerão, ten,do-se presente que membros do
diferença de suas posições. Seriam, pois, inú- soberano e súditos são os mesmos indivíduos
teis quaisquer referências irônicas ao Do Espí- qu.e constituem o corpo político. (N. de L. G.
rito das Leis, sobretudo quando "metafisica" M.)
era quase a totalidade das teorias então em 1 4 9 Que não h~ direito "ad -hominerri'', ou
curso sobre a lei. (N. de L. G. M.) seja, disposição legislativa que vise particular-
1 4 6 V. capítulo IV deste mesmo Livro. (N. de
mente determinada pessoa, é princípio que se
L. G. M.) integrou no direito público moderno. Rousseau
DO CONTRATO SOCIAL Il 61
poderá muito bem estatuir que haverá não passam de registros de nossas
privilégios, mas ela não poderá conce- vontades 1 5 3 •
dê-los nominalmente a ninguém: a Lei Vê-se ainda que, reunindo a Lei a
pode estabelecer diversas classes de universalidade da vontade e a do obje-
cidadãos, especificar até as qualidades to, aquilo que um homem, quem quer
que darão direito a essas classes, mas seja, ordena por sua conta, não é mais
não poderá nomear este ou aquele para uma lei: o que ordena, mesmo o sobe-
serem admitidos nelas; pode estabe- rano, sobre um objeto particular não é
lecer um governo real e uma sucessão uma lei, mas um decreto, não é ato de
hereditária, mas não pode eleger um soberania, mas de magistratura 1 5 4 •
r:ei ou nomear uma família real: Em Chamo pois de república todo o Es-
suma, qualquer função relativa a um tado regido por leis, sob qualquer
óbjeto individual não pertence, de · forma · de administração que possa
modo algum, ao poder legislativo 1 5 0 • conhecer, pois só nesse caso governa o
interesse público e a coisa pública 1 5 s
Baseando-se nessa idéia, vê-se logo passa a ser qualquer coisa. Todo o
ctue não se deve mais perguntar a quem · governo legítimo é republicano 1 5 6 •
cabe fazer as leis, pois são aros da von- Explicarei logo adiante o que é gover-
tade geral, nem .se o príncipe-1 5 1 está no.
acima das leis, visto que é membro do - As leis não são, propriamente, mais
Estado; ou se a Lei poderá ser injusta, do que as condições da associação
pois ninguém é injusto consigo civil. O povo, submetido _às leis, deve
mesmo 1 5 2 , ou como se pode ser livre e ser o seu autor. Só àqueles que se asso-
estar sujeito às leis, desde que estas ciam cabe regulamentar as condições
da sociedade. Mas, como as regula-
formula com rigor teorético o que Locke entr.e-
-vira em termos prático-empíricos: "Os regula- 1 63
"É-se livre quando submetido às leis,
mentos serão os mesmos para o rico e para o 1 porém não quando se obedece a um homem,
pobre, para o favorito e para o cortesão, para o porque nesse último caso obedeço à vontade
burguês e para o trabalhador". (Governo Civil, de outrem, enquanto obedecendo à lei não obe-
c. X.) Já Burlamaqui, na esteira de sua escola, deço senão à vontade pública que tanto é
acreditava que o legislador, se pode derrogar minha como de quem quer que seja" - dizia
toda a lei, melhor ainda poderia suspender Rousseau no manuscrito de Neuchâtel. (N. de
seus efeitos para tal ou qual pessoa. (Prinçí- L. G. M.)
pios de Direito Natural, t. I, c. X .) (N. de L. G. 1 5 4
Cf. Platão (Leis l. IV): "Se aos magis-
M.~ 1 6 trados chamei de ·servidores da lei, não foi por
Ao executivo, na ação governamental, desejar mudar o sentido habitual dos termos,
toca aplicar aos casos particulares e às pessoas mas por estar persuadido de que a salvação do
a regra geral da lei. Esta, por sua própria natu- Estado depende prinçipalmente disso, en-
reza, obriga o legislativo a manter-se em plano quanto o contrário fatalmente trará sua ruína".
bem diverso. (N. deL.G. M.) (N. de L. G. M.)
1 6 6 No sentido etimológico da palavra "repú-
1 61
O governo, não importando sua forma ou
composição. (N. de L. G. M.) blica". (N. de L. G. M.}
:l 15 2 Claro que esta ex:pressão não é rigorosa- 1 5 6
Por essa palavrá não enten9o somente
mente baseada na realidade concreta, pois um ·uma aristocracia ou uma democracia, mas em
homem pode ser injµsto consigo mesmo. Mas, geral todo governo dirigido pela vontade geral,
em tal .,çaso, o seria 'p or erro ou paixão - vol- que é a lei. Para ser legítimo, não é preCiso que
tamos seJ1lpre à regra socrática do "ninguém é o governo se confunda com o soberano, mas
mau voluntariamente" (v. nota 105, supra), que seja seu ministro. Então, a própria monar-
agora compreendida na forma reflexiva. (N. de quia é república. Isso será esclarecido no Livro
'-'· G. M:.) . ~eguint. (N. do A.}_
62 ROUSSEAU
mentarão? Será por um comum acor- rejeitam; o público quer o bem que não
do, por uma inspiração súbita? O discerne. Todos necessitam, igual-
corpo político dispõe de um órgão mente, de guias 1 5 8 • A uns é preci$o
para enunciar suas vontades? Quem obrigar a conformar a vontade à razão,
lhe dará a previsão necessária para e ao outro; ensinar à conhecer o que
constituir e publicar antecipadamente quer. Então, das luzes públicas resulta
os atos relativos a tais vontades? Ou a união do entendimento e da vontade
como as manifestaria em caso de no corpo social, daí o perfeito con-
urgência? Como uma multidão cega, curso das partes e, enfim, a maior
que freqüentemente não sabe o que de- força do todo. Eis donde nasce a neces-
seja porque raramente sabe o que lhe sidade de um Legislador.
convém, cumpriria por si mesma em-
presa tão grande e tão difícil quanto
um sistema de legislação? O povo, por 1 5 7 Uma das interpretações mais simplistas
si, quer sempre o bem, mas por si nem (porém não pouco enconttadiça) do pensa-
sempre o encontra. A vontade geral é mento de Rousseau deseja fazê-lo um defensor
da infalibilidade da vontade geraL De equiva-
sempre certa, mas o julgamento que a lente simplificação decorreu uma "mística
orienta nem sempre é esclarecido 1 5 7 • democrática" que veria no povo soberano uma
É preciso fazê-la ver os objetos tais fonte de decisões perfeitas. Ora, se Rousseau
como são, algumas vezes tais como exaltou a vontade geral, foi para deixar bem
·claro que na sua ausência não há lei, nem
eles devem parecer-lhe, mostrar-lhe o governo legítimo. Não obstante, sua simples
caminho certo que procura, defendê-la presença não constitui garantia absoluta,
da sedução das vontades particulares, senão quando esclarecida. Também a vontade
aproximar a seus olhos os lugares e os geral pode errar. É o que fica claramente
tempos, pôr em balanço a tentação das expresso nesse trecho, base, aliás, da teoria do
"Legislador' ~ que a seguir se exporá. (N. de L.
vantagens presentes e sensíveis com o G.M.)
perigo dos males distantes e ocultos. 1
s·s Ou seja: do Legislador. (V. nota anterior.)
Os particulares discernem o bem que (N. de L. G. M:)
CAPÍTULO VII
Do !Jegislador
e APfruLo v111
Do povo
Assim como, antes de erguer um Platão recusou dar ieis aos árcades e ·
grande edifício, o arquiteto observa e aos cirênios, pois sabia serem ricos
sonda o solo para verificar se susten- esses dois povos e não poderem admi-
tará o peso da construção, o instituidor tir a igualdade; · por isso, também
sábio 1 s 2 não começa por redigir leis houve em Creta boas leis e homens
boas em si mesmas, mas antes examina- ruins, pois Minos havia simplesmente
se o povp a que se destinam mostra-se
apto a recebê-las 1 8 3 • Por esse motivo disciplinado um povo cheio de vícios.
Brilharam na terra inúmeras nações
que jamais poderiam viver sob leis
1 82
O Legislador. (N. de L. G. M.)
1 83
É preciso ter em conta que progressiva-
boas e mesmo aquelas que o poderiam
mente o Contrato Social entra em considera- durante toda a sua existência não
ções cada vez mais ligadas aos casos concretos dispuseram, para tanto, senão de um
e à prática. No Manuscrito de Genebra, Rous- período muito curto. A maioria dos
seau sublinhava essa transição com as seguin- povos, como dos homens 1 8 4 , só são
tes palavras: "Embora trate aqui do direito e
não de conveniências, não posso proibir-me de
lançar os olhos, de passagem, a algumas des- 18 4
A primeira versão, mais cortante, -dizia:
tas, que são indispensáveis a qualquer boa "os povos, como os homens ... "(N. de L. G .
. instituição"; (N. de L. G. M.) M.)
. DO CONTRATO SOCIAL II 67
CAPÍTULO IX
Continuação
Assim como a natureza deu limites cidade tem a sua administração, que o
à estatura de um homem bem confor- povo paga; cada distrito, a sua, tam-
mado, além dos quais produz gigantes bém paga pelo povo; depois, cada
ou anões, do mesmo modo existem, província; e ainda, os grandes gover-
relativamente à melhor constituição de nos, as satrapias, os vice-reinos - que
um Estado, limites da possível exten- é preciso pagar cada vez mais ·caro na
são, a fim. de que não seja .demasiado medida em que se sobe, e sempre à
grande para ser bem governado, nem custa do povo infeliz - ; finalmente,
muito pequeno para manter-se por si encontramos a administração suprema
mesmo. Em todo o corpo político há que tudo esmaga. Tantas sobrecargas
um máximo de força que não se deve esgotam continuamente os súditos.
ultrapassar e do qual o Estado freqüen- Longe de serem melhor governados
temente se afasta por muito cres- por todas essas ordens diferentes, o são
cer 1 8 9 • Quanto mais se estende o liame _ muito menos do que se houvesse uma
social, tanto mais se afrouxa, e em só acima deles. No entanto, mal res-
geral um Estado pequeno é proporcio- tam recursos para os casos extraordi-
nalmente mais forte do que um grande. nários e, quando se tem de recorrer a
Mil razões demonstram essa máxi- eles, o Estado está sempre à borda da
ma. Em primeiro lugar, a adminis- ruína.
tração torna-se mais difícil nas grandes Isso não é tudo: não somente o
distâncias, como um peso se torna governo tem menos força e presteza
mais pesado na ponta de uma alavanca para fazer observar as leis, impedir as
mais longa. Toma-se também mais vexações, mitigar os abusos, prevenir
onerosa na medida em que se multi- as empresas sediciosas que possam
plicam seus graus, pois, primeiro, cada surgir nos lugares afastados, como
ainda o povo tem menor afeição pelos
18 9
Dizia Aristóteles: "Os primeiros elemen- chefes que nunca vê, pela pátria que a
tos exigidos pela política são os homens, com seus olhos é como o mundo, e pelos
o número e as qualidades naturais que devem seus concidadãos cuja maioría lhe é
ter, e o território, com a extensão e as proprie-
dades que deve apresentar ... " (Política, 1. IV, estranha. As mesmas leis não podem
c. IV.) Montesquieu seguiu a mesma orienta- convir a tantas províncias difererttes,
ção. (N. de L. G. M.) que têm costumes diversos, vivem em
DO CONTRATO SOCIAL II 69
CAPÍTULO X
Continuação
abarque mais terreno do que parece essas épocas de perturbação para con-
necessário. Assim, expandir-se-á bas- seguir ditar, graças ao temor público,
tante numa região montanhosa, onde leis destrutivas que o povo jarnais ado-
as produções naturais, como as flores- taria com sangue frio 1 9 8 • A escolha do
tas e os pastos, exigem menos traba- momento da instituição representa um
lho; onde a experiência mostra que as dos caracteres mais seguros pelos
mulheres são mais fecundas do que nas quais se pode distinguir a obra do
planícies, e onde vastas terras inclina- Legislador da de um tirano 1 9 9 •
das não oferecem senão uma pequena Qual o povo, pois, que está apto à
base horizontal, a única com que se legislação? Aquele que, encontrando-
conta para a vegetação. Pode-se, pelo se já ligado por qualquer laço de ori-
contrário, comprimir-se à borda do gem, interesse ou convenção, ainda
mar, até em rochedos e areias quase não sofreu o verdadeiro jugo das leis;
estéreis, porque aí a pesca pode substi- que não tem nem costumes nem su-
tuir em grande parte os produtos da perstições muito arraigadas; que não
terra e permanecerem os homens mais teme ser arrasado por uma invasão sú-
unidos para repelir os piratas, tendo- bita; que, sem imiscuir-se nas brigas
se, aliás, mais facilidades para aliviar o entre seus vizinhos, pode resistir sozi-
país dos habitantes que o sobrecar- nho a cada um deles, ou ligar-se a um
regam, encaminhando-os para as colô- para expulsar o outro; aquele de que
nias. cada membro pode ser conhecido por
A tais condições para formar um todos e no qual não se está de modo
povo, deve-se acrescentar uma, que algum forçado a sobrecarregar um
não pode suprir a qualquer das demais, homem com um fardo mais pesado do
mas sem a qual todas são inúteis - o que possa suportar; o que pode viver
gozo da abundância e da paz, pois o sem os outros povos e que qualquer
momento em que se forma um Estado, outro povo pode dispensar 2 0 0 ; o que
como aquele em que se forma um bata- não é nem rico nem pobre e pode bas-
lhão, é o instante em que o corpo se tar-se a si mesmo; enfim, aquele que
mostra menos capaz de resistência e une, à consistência de um povo antigo,
mais fácil de ser destruído. Resistir-se-
á melhor numa desordem absoluta do 1 9 8 · Leis que, em condições normais, só se-
que num momento de fermentação, no riam aceitas, na melhor das hipóteses, por uma
qual cada um se preocupa com sua pequena parcela dos cidadãos e, portanto, ja-
dignidade, e ninguém com o perigo. O ria mais seriam verdadeiras leis, porque lhes falta-
a sanção da vontade geral. (N. de L. G . M.)
Estado subverter-se-á inevitavelmente 1 9 9 A instituição de tempos convu\sos é sem-
se sobrevier a guerra, a fome ou a pre tirânica. (N. de L. G. M.)
sedição. 2 0 0
Se, ·de dois povos vizinhos, um não pudes-
Na verdade, há muitos governos se passar sem o outro, tal situação seria insus-
. tentável para o primeiro e bastante perigosa
estabelecidos durante essas tempesta- para o segundo. Em tal caso, qualquer nação
des, mas, então, são esses mesmos prudente esforçar-se-á prontamente para livrar
governos que destroem o Estado 1 9 7 • a outra dessa dependência. A República de
Os usurpadores suscitam .ou escolhem Thlascala, encravada no Império do México,
preferiu ficar sem sal a comprá-lo dos mexica-
nos ou mesmo aceitá-lo gratuitamente. Os pru-
19 7
Entenda-se: o Estado legítimo, que Rous- dentes thlascalianos perceberam a armadilha
seau chama de "republicano", pois o Governo oculta sob essa liberalidade. Conservaram-se
tirânico poderá considerar-se um Estado e, livres e esse pequeno Estado, encerrado no
comumente, como tal é tratado pelos demais grande império, foi por fim o instrumento da
Estados. (N. de L. G. M.) ruína deste. (N. do A.)
72 ROUSSEAU
CAPÍTULO XI
Dos vários sistemas de legislação
supõe, nos grandes, moderação de bens vez em si mesmo, mas para o Estado a
e de crédito e, nos pequenos, modera- . que se destina 20 5 • Se, por exemplo, o
ção da avareza e da cupidez. solo é ingrato e estéril ou a região
Tal igualdade, dizem, é uma quime- muito acanhada para os habitantes,
ra do espírito especulativo, que não voltai-vos para a indústria e as artes,
pode existir na prática. Mas, se o cuja produção trocareis pelas merca-
abuso é .inevitável, segue-se que não dorias que vos faltam 20 6 • N ~ caso
precisemos pelo menos regulamentá- contrário - ocupais planícies ricas e
lo ?20 4 Precisamente por sempre tender colinas férteis? numa boa terra faltam
a força das coisas a destruir a igualda- homens? - , dedicai todo o vosso cui-
de, a força da legislação deve sempre dado à agricultura, que multiplica os
tender a mantê-la. homens, e expulsai as artes 20 7 , que só
Esses objetivos gerais de todas as contribuirão para acabar de despovoar
boas instituições devem, porém, ser a região reunindo em alguns pontos do
. modificados em cada país pelas rela- território os poucos habitantes existen-
. ções oriundas tanto da situação local tes2 °8 • Ocupais praias extensas e cô-
quanto do caráter dos habitantes. modas? ~ cobri o mar com n~vios,
Sobre tais relações precisa-se conceder cultivai o comércio e a navegação; te-
a cada povo um sistema particular de reis uma existência brilhante e
instituição, que seja o melhor, não tal- curta 20 9 • Se o mar só banhar em vos-
sas costas rochedos quase inacessíveis,
2
o 4
O parágrafo anterior previa que, embora permanecei bárbaros e ictiófagos: vive-
distinguindo-se pelo posto e pelos bens, jamais reis mais tranqüilos, talvez melhores, e
os mais poderosos e os mais ricos o fossem em
tal grau que pudessem invadir, pela violência
ou pela corrupção, a esfera da liberdade alheia. 20 5
Há, pois, uma variedade de situa.;ões con-
Beaulavon julga que tal definição se completa cretas que leva à relatividade constitucional,
no campo político, não tocando ao moral nem nunca, porém, à inércia legal ou à incúria
ao social. Se a nota de Rousseau parece refor- governamental. (N. de L. G. M.)
çar tal interpretação, impõe-se observar que 20 6
É a situação, perigosa e geradora de
esta não encontra melhor base no texto agressões bélicas, que conhecemos do capítulo
propriamente dito, sendo que depois, no Proje- anterior. Se, contudo, essa é a conjuntura real,
to de Constituição para a Córsega, o sentido impõe-se aceitá-la como tal, recorrendo até
social da propriedade aparece francamente àquelas "artes" tão acusadas (exatamente
sublinhado: "cada um só terá sua parte nos nesse sentido) pelo primeiro Discurso. (N. de
bens comuns na proporção de seus serviços" e L. G. M.)
a propriedade particular, se não é destruída; 20 7
Agora, é a situação pacífica e "normal",
rosume-se "aos limites os mais estreitos que sendo-lhe adequada a solução equilibrada e
seja possível", estando "sempre subordinada sadia da economia baseada na agricultura. As
ao bem público". Aliás, nas Cartas da Monta- "artes" tornam-se inúteis e nocivas. (N. de L.
nha, Rousseau deixa perceber que a classe G.M.)
média é aquela que mais se aproxima do ideal 20 8
"Qualquer ramo de comércio exterior",
republicano, pelos costumes e condição, como diz o Marquês d' Argenson, "não espalha, num
vira em Genebra. Neste ponto, Rousseau tam- reino em seu todo, senão uma falsa vantagem.
bém repele a acusação de utópico que sempre Ele pode enriquecer alguns pàrticuJares e até
se atira às suas afirmações igualitárias. O certas cidades, mas a nação como um todo
Contrato Social é um livro de princípios que, nada ganha com ele, e o povo também não fica
contudo, toca à prática e, pois, no campo prá- em melhor situação." (N. do A.)
tico combate essa desigualdade que se busca 20 9
Como Cartago. Ou como pensava Rous-
preservar com a fraca escusa de constituir um seau que viesse a suceder em breve com a
fato consumado. A legislação é, precisamente, Inglaterra. Para fugir a essa existência "curta",
o instrumento para corrigir as coisas tais como os povos marítimos deveriam resignar-se à cul-
são, aproximando-as do que devem ser. (N. de .tura bárbara dos simples pescadores. (N. de
L. G. M.) L. G. M.)
74 ROUSSEAU
CAPÍTULO XII
A fim de ordenar o todo ou para dar Primeiro, a ação do corpo inteiro agin-
a melhor forma possível à coisa públi- do sobre si mesmo, isto é, a relação do
ca, há várias relações a considerar. todo com o todo, ou do soberano com
'no CONTRATO SOCIAL II 75
o Estado; como logo veremos, tal rela- de relação entre o homem e a Lei, a
ção compõe-se da relação dos termos saber, a da desobediência à pena,
intermediários 2 1 3 • dando origem ao estabelecimento das
As leis que regulamentam essa rela- leis criminais que, no fundo, instituem
ção recebem o nome de leis políticas e menos uma espécie particular de leis
chamam-se ·também leis fundamentais, do que a sanção de todas as outras.
não sem alguma razão no caso de A essas três espécies de leis, junta-se
serem sábias, pois, se existe em cada uma quarta, a mais importante de
Estado somente uma boa maneira de todas, que não se grava nem .no már-
ordená-lo, o povo que a encontrou more, nem no bronze, mas nos cora-
deve conservá-la; se a ordem estabele- ções da cidadãos; que faz a verdadeira
cida é, porém, má, por que se toma- constituição do Estado; que todos os
riam por fundamentais leis que a impe- dias ganha novas forças; que, quando
. dem de ser boa? 21 4 Aliás, seja qual for as outras leis envelhecem ou se extin-
a situação, o povo é sempre senhor de guem, as reanima ou as supre, con-
mudar suas leis, mesmo as melhores, serva um povo no espírito_de sua insti-
pois, se for de seu agrado fazer o mal a
si mesmo, quem terá o direito de tuição e insensivelmente substitui a
força da autoridade pela do hábito.
impedi-lo?
A segunda relação é a dos membros Refiro-me aos usos e costumes e,
entre si ou com o corpo inteiro, e essa sobretudo, à opinião 2 1 6 , essa parte
relação deverá ser, no primeiro caso, desconhecida por nossos políticos, mas
tão pequena, e, no segundo, tão grande da qual depende o sucesso de todas as
quanto possível, de modo que cada outras; parte de que se ocupa em segre-
Cidadão se encontre em perfeita inde- do o grande Legislador, enquanto pa-
pendência de todos os outros e em uma rece limitar-se a regulamentos particu-
excessiva dependência da pó/is - o lares que não são senão o arco da
que se consegue sempre graças aos abóbada, da qual os costumes, mais
mesmos meios 2 1 5 , pois só a força do lentos para nascerem, formam por fim ·
Estado faz a liberdade de seus mem- a chave indestrutível.
bros. É desta segunda relação que nas- Entre essas várias classes, as leis
cem as leis civis. políticas, que constituem a forma do
Pode-se considerar um terceiro tipo Governo, são as únicas ligadas ao meu .
assunto.
2 1 3 Os problemas do Governo são objeto do
CAPÍTULO 1
Do governo em geral
Advirto ao leitor que este capítulo o ato, e a outra física, que é o poder
deve ser lido pausadamente e que não que a executa. Quando me dirijo a um
conheço a arte, de ser claro para quem objeto, é preciso, primeiro, que eu
não quer ser atento 21 7 • queira ir até ele e, em segundo lugar,
Toda ação livre tem duas causas que que meus pés me levem até lá. Queira
concorrem em sua produção: uma um paralítico correr e não o queira um
moral, que é a vontade que determina homem ágil, ambos ficarão no mesmo
lugar. O corpo político tem os mesmos
2 1 7 Este capítulo incitava em Rousseau, que móveis. Distinguem-se nele a força e a
provavelmente o conservou das primeiras_ vontade, esta sob o nome de poder
notas para as Instituições Políticas, uma curio- legislativo e aquela, de poder executi-
, sa contradição sentimental. Por um lado, pare- vo2 1 8 • Nada nele se faz, nem se deve
ce julgá-lo excelente, sobretudo pela explana- fazer, sem o seu concurso.
ção pseudomatemática nele contida, pois não
hesita em repro<;iuzi-la, quase integralmente, Vimos que o poder legislativo per-
1 no resumo do Contrato que incluiu no Emílio,
em flagrante contraste com o restante dessa 2 1 a Será útil voltar ao segundo capítulo do
resenha sintética. De outra parte, não _lhe esca- Livro II, onde se condena vigorosamente a
pa o caráter demasiado abstrato, e também confusão entre "partes" e "emanações" da
precário, desse processo expositivo, daí decor- soberania, tendo-se em vista, explicitamente,
rendo o pedido de atenção especial feito ao lei- os "atos particulares" que muitas vezes se
tor. Halbwachs não teme aproximar esse ape- tomam, por erro, como "atos de soberania".
gamento ao texto difícil e àquele incidente Só assim se compreenderá que, empregando
amoroso, acontecido em Vene:Za e ao cabo do duas expressões também utilizadas por Mon-
qual Rousseau ouviu a famosa frase irônica: tesquieu, como sejam poder legislativo e poder
"Lascia /e donne Zanetto, ed studia la mathe- executivo (cf. Do Espírito das Leis, 1. XI, c.
matica ': A aproximação, embora careça de VI), Rousseau considere o executivo como
base objetiva, é assaz sugestiva, sobretudo ten- mera função do Estado, enquanto o legislativo
do-se em conta, segundo as Confissões, que, é sua própria essência, ao passo que Montes-
ainda em Veneza, Rousseau começou a con- quieu coloca a ambos em perfeito pé de igual-
vencer-se da importância dos estudos políticos. dade, como "poderes" componentes do todo
(N. de L. G. M.) estatal. (N. de L. G. M.)
80 ROUSSEAU
mente submetido a ele 2 3 5 • Seja o povo próprio de cada súdito não muda (E = 1), mas
composto de cem mil homens, e não a potência total do soberano aumenta na pro-
muda a situação dos súditos, supor- porção do número de seus membros (S =
10 000; S 100 000, etc.). Logo, a importância
tando cada um igualmente todo o relativa do súdito em relação ao soberano
império das leis, enquanto seu sufrá- diminui"em proporção inversa. Ele está subme-
gio, reduzido a um centésimo de milé- tido a uma autoridade tanto mais forte quanto
simo, tem dez vezes menos influência o Estado for mais numeroso e, conseqüente-
mente, é tanto menos livre." (G. Beaulavon.)
na redação delas. O súdito permane- (N. de L. G. M.)
cendo sempre um, a relação com o 2
3 7
No original: exposant, termo que no sécu-
soberano aumenta em razão do núme- lo XVIII servia aos matemáticos de língua
ro de cidadãos. Conclui-se que, quanto francesa para significar o quociente da divisão
do numerador pelo denominador. (N. de L. G.
2 3 3 Em francês: Le nombre du peuple, isto é, M.)
o número de componentes da pólis, dos mem- 23 a '~Rousea aqui distingue -d uas acepções,
bros do soberano. (N. de L. G. M.) efetivamente contrárias, da palavra relação: 1)
2 3 4 "Note~s que a palavra relação, que nesta no sentido preciso dos geômetras, significa a
passagem surge quase em todas as linhas, cada relação de duas quantidades das quais uma é
vez é tomada em acepção diferente e, com div~a pela outra (exemplo:-1}-), sendo a
freqüência, vaga. Assim, o número de um povo
relação expressa, em valor absoluto, pelo quo-
não é uma relação. Rousseau quer dizer que
estudará as relações dos três termos, S, F, e G, ciente; 2) no sentido vulgar e corrente, diz-se
só tendo em conta o número dos cidadãos."
que duas coisas têm relação, quando se asse-
(G. Beaulavon.) (N. de L. G. M.)
melham. Ora, quanto mais diferentes forem os
2 3 5 "Com efeito, é por um ato coletivo que os
dois termos duma relação, tanto maior será o
cidadãos, enquanto membros do soberano, quociente que mede tal relação. Há, pois, desa-
fazem as leis, porém essas leis aplicam-se a cordo entre a linguagem comum e a linguagem
matemática." (G. Beaulavon) (N. de L. G. M.)
cada um deles tomado individualmente en-
quanto membro do Estado. Pode-se, pois,
23
s Agora, a relação é tomada no sentido vul-
gar, para significar a maior ou menor seme-
escrever:i=.roku, por exemplo." (G. Beaula- lhança entre a vontade geral e as particulares.
von) (N. de L. G. M.) (N. de L. G. M.)
DO CONTRATO SOCIAL III 83
que o povo for mais numeroso 2 4 0 • sessem que, para encontrar essa média
Por outro lado, o crescimento do Es- proporcional e formar o corpo do
tado oferecendo aos depositários da Governo, bastaria, segundo o que afir-
autoridade pública mais tentações e mo, extrair a raiz quadrada do número
meios de abusar de seu poder, mais de componentes do povo 2 4 3 - res-
força deve ter o Governo para conter o ponderia, então, que não tomo aqui
povo e mais força deverá ter o sobera- esse número senão como exemplo; que
no, de sua parte, para conter o Gover- as relações de que falo não se medem
no. Não me refiro aqui a uma forç~ unicamente pelo número de homens,
absoluta, mas à força relativa das vá- mas em geral pela quantidade de ação
rias partes do Estado 2 4 1 • que se combina por múltiplas causas;
Segue-se, dessa dupla relação, que a que, de resto, se, para exprimir-me por
proporção contínua entre o soberano, meio de palavras, tomo de empréstimo
o príncipe e o povo não é absoluta- termos à geometria, não ignoro, no
mente uma idéia arbitrária, mas uma entanto, não ter nenhum cabimento a
conseqüência necessária da natureza precisão geométrica nas quantidades
do córpo político. Segue-se, ainda, que morais 2 4 4 •
um dos extremos, a saber, o povo, O Governo é em ponto pequeno o
enquanto súdito, sendo fixo e represen- que o corpo político, que o encerra, é
tado pela unidade, todas as vezes que em ponto grande. É uma pessoa moral
aumentar ou diminuir a razão dupla, dotada de certas faculdades, ativa
também a razão simples aumentará ou como o soberano, passiva como o
diminuirá, modificando-se, conseqüen- Estado, e que pode ser decomposta em
temente, o termo médio 2 4 2 • Isso mos- outras relações semelhantes, donde,
tra não haver uma constituição de por conseqüência, nasce uma propor-
Governo única e absoluta, mas que ção nova e desta, uma outra ainda, de
podem existir tantos Governos diferen-
tes pela natureza quantos Estados dife- 2 42
Nota de G . Beaulavon: "A razão ou rela-
rentes pelo tamanho. ção dupla é a que resulta da multiplicação de
Se, pondo o sistema no ridículo, dis- duas relações iguais, cada uma das quais se
chama relação ou razão simples". (Aritmética
de Bezout, citada por Brune!, na Revista de
-t-,
2 4 0 D ir-se-ia que, segundo certos dados da História Literária da França, julho de 1904.)
sociologia moderna, o crescimento quantita- Portanto, dado quefr = sendo E = 1,
tivo duma sociedade acarreta maior generali-
zação de valores, idéias e hábitos de vida. multiplicando temos sg. Logo, a população de
um Estado basta para determinar a forma de
Rousseau, contudo, interessa-se pela tendência
das grandes sociedades a consentir na forma- seu governo:. (N. de L. G. M.)
2 4 3 "Efetivamente, fazendo-se S = 10 000 e
ção de grupos internos, isto é, a complicar sua
estrutura, como dizem os sociólogos. Não só o E = 1, teremos G = V 10 000." (G. Beaula-
fato é verdadeiro, como ainda interessa direta- von.) Importa acrescentar que, neste passo,
mente ao problema central da política de Rousseau começa a dar-se conta do ponto a
Rousseau, que busca a melhor maneira de pre- que poderia levá-lo o paralelo matemático e
venir ou, pelo menos, mitigar a desigualdade. reage a esse hipotético mas provável ridículo,
(N. de L. G. M.) opondo-se a qualquer exagero. (N. de L. G.
241 Ou melhor: à relação das forças internas, M.)
pois do jogo entre o poder do soberano, Estado 2 4 4
Todo esse parágrafo, que poderá resultar
e Governo depende o domínio do Governo duma segunda revisão da primitiva explanação
sobre os súditos, e o do soberano sobre o pseudomatemática, praticamente a anula no
Governo. Essa relação não é arbitrária, mas que tem de abstrata e de pretensamente exata.
decorre da natureza social, como se afirma no O Rousseau moralista reassume seus direitos.
parágrafo seguinte. (N. de L. G. M.) (N. de L. G. M.)
84 ROUSSEAU
acordo com a ordem dos tribunais 2 4 5 , dominante do príncipe só é, ou deveria
até que se alcance um termo médio ser, a vontade geral ou a Lei, e sua
indivisível, isto é, um único chefe ou força não é senão a força pública nele
magistrado supremo, que pode ser concentrada: desde que deseje derivar
representado, no centro dessa progres- de si mesmo qualquer ato absoluto e
são, como a unidade entre a série das independente, começa a afrouxar-se a
frações e a dos números 2 4 6 • ligação do todo. Enfim, se porventura
Sem nos embaraçarmos nessa multi- tivesse o príncipe uma vontade particu-
plicação de termos 2 4 7 , contentemo- lar mais ativa do que a do soberano e,
nos em considerar o Governo como para obedecer a essa vontade particu:-
um novo corpo no Estado, distinto do lar, se utilizasse da força pública de
povo e do soberano, e intermediário que dispõe, de modo que se teriam, por
entre um e outro. assim dizer, dois soberanos, um de
Há uma -diferença essencial entre direito e outro de fato, imediatamente
esses dois corpos: o Estado existe por a união social desapareceria e dissol-
si mesmo e o Governo só existe pelo ver-se-ia o corpo político 2 4 8 •
soberano. Desse modo,_ a vontade No entanto, para que o corpo do
2 4 5 "O corpo de magistrados decbmpõe-se,
Governo tenha uma existência, uma
com efeito, em um grande número de grupos vida real que o distinga do corpo do
ou de tribunais subordinados uns aos outros, Estado; para que todos os seus mem-
cada um deles recebendo do alto uma determi- bros possam agir concertadamente e
nada porção de poder que aplica abaixo. O possa ele atender ao fim para o qual é
mesmo simbolismo matemático poderia, pois, instituído, é-lhe necessário um eu parti-
aplicar-se a essas relaço .-es múlt~Jas e. comp. le-
cular, uma sensibilidade comum a seus
xas, podendo-se escrv~-8=i , ~.
membros, uma força, uma vontade
etc." (G. Beaulavon.) (N. de L. G. M.)
2 4 6 "Se considerarmos o poder executivo própria que busque a sua conservação.
como concentrado num único magistrado Essa existência particular supõe as- ·
supremo, G = 1, teremos, em lugar das rela- sembléias, conselhos, um p-o der de
ções-Õ-e ~ , as relações-f-ef-. Essas rela- deliberar e de resolver, direitos, títulos,
ções seriam iguais se o povo não tivesse senão privilégios pertencendo exclusivamente
um cidadão, pois então seria S = 1 e, ao príncipe e que tornam a condição
conseqüentemente, E = 1. Mas, à medida que do magistrado mais digna na pro~
aumenta o número de cidadãos e, por isso,
cresce a potência do príncipe, cada súdito 2 4 e Como já sabíamos do artigo sobre a Eco-
toma à potêacia do príncipe uma fração tanto
nomia Política, embora o governo venha a for-
menor. Num Estado de dois cidadãos,+ mar um corpo distinto e, pois, dotado de von-
exprimiria a relação numérica entre soberano e tade (particular) própria, nele deve dominar
príncipe, e+a relação entre príncipe e súdi- sempre a vontade geral, sob pena de, não
sabendo os súditos quando é legítimo (vontade
tos. Se S assume sucessivamente os valores 3,
3- e -1-, .lQ..QQQ. e 1 geral) e ilegítimo (vontade particular) o mando
10 000, etc., teremos- governamental, anular-se, por impraticável, o
1 3 1 10 000
, etc. As duas relações de nossa primitiva pro- próprio contrato social. (Esse raciocínio conti-
porção afastam-se, pois, mais e mais uma da nua no parágrafo seguinte.) Além do sentido
outra, como a série dos números inteiros e a genérico, a afirmação tem ainda implicações
série dos números fracionários, enqanto o prín- imediatas e concretas, pois o governo dos
cipe permanece igual à unidade." (G. Beaula:.. monarcas do século XVIII caracterizava-se
von.) (N. de L. G. M.) exatamente por uma total confusão da vontade
2 4 7 Pela segunda vez, Rousseau abandona o e interesses particulares da pessoa real com os
paralelo aritmético, voltando a uma linguagem objetivos e o exercício do poder do Estado. A
simples e direta para exprimir suas afirmações Revolução, enquanto fiel às suas fontes doutri-
sobre o mecanismo do Governo no complexo nárias, lutou por estabelecer um Estado total-
social. (N. de L. G. M.) mente impessoal. (N. de L. G. M.)
DO CONTRA1'0 SOCIAL III 85
ção em que é mais penosa. As dificul- rapidez, gozar, por assim dizer, de uma
dades residem na maneira de ordenar, saúde mais ou menos robusta. Final-
no todo, esse todo subalterno, de modo mente, sem distanciar-se diretamente
que em nada altere a constituição do objetivo de sua instituição, poderá
geral, ao fortalecer a sua, e que dis- dele afastar-se mais ou menos, de acor-
tinga sempre sua força particular, des- do com a maneira pela qual se consti-
tinada à própria conservação, da força tuiu.
pública consagrada à conservação do De todas essas diferenças nascem as
Estado; em uma palavra: que esteja várias relações que o Governo deve ter
sempre pronto a sacrificar o Governo com o corpo do Estado, segundo as
ao povo, e não o povo ao Governo. relações aCidentals e particulares pelas
Aliás, embora o corpo artificial2-4 9 quais esse mesmo Estado é modifi-
do Governo seja a obra de um outro cado. Freqüentemente, o melhor Go-
corpo artificial e, de certo modo, não verno em si mesmo pode tornar-se o
possua senão uma vida emprestada e mais vicioso, se suas relações não
subordinada, tal não impede que possa forem alteradas segundo os defeitos do
agir com maior ou menor vigor ou corpo político ao qual pertence.
CAPÍTULO II
examinar seu comportamento real nos três pla- mente, a distância entre o ideal abstrato e
nos em que se concretiza como reflexo, respec- absoluto da "legislação perfeita", que recusa
tivamente, da vontade coletiva do todo social, qualquer força à vontade particular, e as inves-
da vontade coletiva do corpo do Governo e da tidas dessa mesma vontade particular em
vontade individual de seus componentes. E, da nome da "ordem natural", ou seja, dos impul-
relação entre esses três aspectos duma mesma sos egoístas da personalidade humana. Nova-
realidade, resulta o campo de análise que mente, aqui temos uma afirmação teórica e
Rousseau chamou de "artifício e jogo da má- genérica envolvendo críticas à realidade ime-
quina política", considerada em sua ação efeti- diata, que continuam as comentadas na nota
va de cada dia. (N. de L. G. M.) 248, supra. (N. de L. G. M.)
DO CONTRATO SOCIAL III . 87
Ora, coino é do grau da vontade que isso maior força real, porque tal força
depende o uso da força e que não varie é a do Estado, cuja medida é sempre
de forma alguma a força absoluta do igual. Eis como a força relativa ou a
Governo, segue-se que o mais ativo atividade do Governo diminui, sem
dos governos é o de um só 2 5 4 • que possa aumentar sua força absoluta
Unamos, pelo contrário, 0 Governo ou real.
à autoridade legislativa; façamos um Certo, ainda, que o expediente dos
prín~ie do soberano e tantos magis- negócios se torna mais lento à medida
trados de quantos são os cidadãos, e que mais pessoas são encarregadas
veremos que a vontade do corpo, con- dele; que, concedendo-se muito à pru-
fundida com a vontade geral, não terá
dência, não se dá o bastante à fortuna;
maior atividade do que esta e deixará à
que se deixa fugir a ocasião e que, à
vontade particular toda a sua força.
Assim o Governo, sempre com a força de deliberar-se, se perde o fruto
mesma força absoluta, permanecerá no da deliberação.
seu mínimo de força relativa ou de AcabO de provar que o Governo se
~tivdae. enfraquece à medida que os magis-
Essas relações são incontestáveis e trados se multiplicam, e provei, mais
outras considerações ainda mais as acima, que, quanto mais numeroso for
confirmam. Verifica-se, por exemplo, o povo, tanto mais a força repressora
que cada magistrado se mostra mais deverá aumentar. Segue-se que a rela-
ativo no seu corpo do que cada cida- ção entre magistrados ~ Governo deve
dão no que lhe é próprio, e, conseqüen- ser o inverso da relação entre os súdi-
temente, que a vontade particular tem tos e o soberano, ou seja, que quanto
muito maior influência nos atos do mais o Estado crescer, mais o Governo
Governo do que nos do soberano, pois deve contrair-se, de modo que o núme-
cada magistrado está quase sempre
ro de chefes diminua em razão do
encarregado de alguma função do
aumento do povo.
Governo, enquanto cada cidadão, to-
1
no e a extensão numérica do povo, como se considera apenas uma das faces da questão: a
verá mais adiante. Cabe pois evitar, em que força que fica ao dispor do Governo. Diferente
pese a atitude de certos bons comentaristas, e relevante questão é saber da "retidão" com
qualquer antecipação do julgamento de Rous- que se utilizará essa força, ou seja, da sua apli-
seau acerca das diversas formas de governo. cação segundo a vontade geral. (N. de L. G.
(N. de L. G. M.) M.)
88 ROUSSEAU
CAPITULO III
CAPÍTULO IV
Da democracia
Aquele que faz a lei2 6 1 sabe, melhor não o são, porque o príncipe e o sobe-
do que ninguém, como deve ser ela rano, não sendo senão a mesma pes-
posta em execução e interpretada 2 62 • soa, formam por assim dizer um
Parece, pois, que não se poderia ter Governo sem Governo.
uma constituição melhor do que aque- Não será bom que aquele que faz as
la em que o poder executivo estivesse leis as execute 2 6 4 , nem que o corpo do
jungido ao legislativo. No entanto, jus-
tamente isso torna o Governo insufi-
ciente em certos aspectos, porque as
2 6 4
Também aqui não se cuida, malgrado as
aparências, da separação de poderes. Rous-
coisas que devem ser distinguidas 2 6 J seau já a ironizava no capítulo II do Livro II e,
se agora .afirma como necessária uma distin-
2 61 A potência legislativa. -(N. de L. G. M.) ção entre o legislativo e o executivo, não pode-
2 62 Interpretar e executar são as duas faces mos esquecer que, por esta altura, já temos ·
da aplicação da lei, função precípua do execu- estabelecido que o legislativo é, de fato, ·um
tivo. (N. de L. G. M.) poder ou, melhor, o próprio poder inalienável e
2 6 3 Tudo que se relacione com o público e o indivisível, enquanto o executivo não passa de
privado, por isso mesmo deve ser distinguido. uma função, de uma "emanação" da potência.
Não se trata, ainda, da separação entre os Nessa mesma diferença se funda a necessidade
poderes, mas, antes, de bem caracterizar o ob- de delegar o executivo, a fim de que nele não se
jeto do exercício desses poderes. (N. de L. G. imiscua, desviando-se, o povo, cuja principal
M.) tarefa é legislar. (N. de L. G. M.)
90 ROUSSEAU
povo desvie sua atenção dos desígnios nasse bem, não teria necessidade de ser
gerais para emprestá-la aos objetivos govemado 2 68 •
particulares 2 6 5 • Nada mais perigoso Tomando-se o termo no rigor da
que a influência dos interesses priva- acepção, jamais existiu, jamais existirá
dos nos negócios públicos; o abuso da uma democracia verdadeira 2 69 • É con-
lei pelo Governo é mal menor do que a tra a ordem natural governar o grande
corrupção do Legislador, conse- número e ser o menor número governa-
qüência infalível dos desígnios particu- do. Não se pode imaginar que perma-
lares2 6 6 • Estando, então, o Estado neça o povo continuamente em assem-
alterado em sua substância, torna-se bléia para ocupar-se dos negócios
impossível qualquer reforma 2 6 7 • Um públicos e compreende-se facilmente
povo que jamais abusasse do Governb, que não se poderia para isso estabe-
também não abusaria da indepen- lecer comissões sem mudar a forma de
dência; um povo, que sempre gover- administração 2 7 0 •
Creio, com efeito, poder estabelecer
2 6 5
Rousseau aprendera com Aristóteles (Po- em princípio que, quando as funções
lítica, l. VI, c. IV) que há cinco espécies de do Governo são divididas por inúme-
democracia: 1. ª) a que se funda na igualdade ros tribunais, os menos numerosos
de direitos políticos e tem a maioria por regra adquirem, mais cedo ou mais tarde, a
de legislação; 2. ª) a que distribui a magistra-
tura segundo um censo econômico módico;
maior autoridade, quando mais não
3. ª) a que admite à magistratura todos os cida- fosse, somente pela facilidade de resol-
dãos irrepreensíveis, mas deixa que "a lei reine ver as questões, que naturalmente a
soberana"; 4. ª) nesta, basta ser cidadão, mas tanto os leva 2 71 •
ainda impera a lei; 5.ª) em que a condição é a
mesma, porém "a soberania passa à multidão
que toma lugar à lei", substituindo-a por 2 68
Um Governo que não abusa da.lei sempre
decretos populares e deixando-se levar por está conforme à vontade geral, e um povo sem"
demagogos. Sem dúvida, a classificação aristo- pre submisso à lei dispensa qualquer coerção.
télica influi neste capítulo do Contrato, porém Rousseau aponta esses casos extremos como
seria difícil aceitar o estrito paralelismo indi- meras hipóteses irrealizáveis, pois o faz contra
cado nos comentários de Halbwachs. De Aris- a evidência da necessidade de um Governo que
tóteles, Rousseau retém, sobretudo, a caracte- caracteriza a vida de todos os povos. (N. de L.
rização dos vícios da democracia. Assim, na G.M.)
frase que anotamos, o povo que "desvia sua 2 6 9
A democracia pura, integral, não poderá
atenção dos desígnios gerais para emprestá-la realizar-se na prática, pois as circunstâncias e
aos objetos particulares" é aquele mesmo povo as contingências acabam sempte por exigir
do texto aristotélico que se põe em lugar da lei, formas "mistas". Tampouco o regime das
por meio de decretos. (N. de L. G. M.) cidades-estados antigas, até certo ponto inspi-
radoras da democracia rousseauniana, corres-
2 6 6
Se o governo é entregue a um pequeno nú-
mero, há o risco de vê-lo abusar da lei em seu pondia à forma ideal; pois a igualdade política
interesse privado; se permanece na mão da só preyalecia no seio do grupo privilegiado dos
Cidadãos ativos. (N. de L. G. M.)
totalidade <los cidadãos, o mesmo perigo há,
mas o mal é muito maior, pois a própria fun-
2 70
Se o povo verdadeiramente governa como
ção de fazer leis (e, conseqüentemente, de cor- um todo, nada mais poderá fazer, tornando-se
rigir os abusos) se compromete. Ora, a função improdutivo. Se delega a função, já aceitou
legítima é o princípio fundamental da organi- uma forma "mista". (N. de L. G. M.)
zação política. (N. de L. G. M.) ~ 7 1 É naturalmente mais fáeil abusar da lei já
feita do que fazer nova lei para corrigir o
2 6 7
Se o governo abusa das leis, impõe-se abuso - eis a clássica vantagem dos governos
reformá-las, isto é, fazer novas leis. Mas o sem virtude. Beáulavon julga encontrar na
legislativo estará impossibilitado de praticar frase uma alusão a Genebra, onde o "Conselho
tal reforma sempre que, havendo sofrido Geral" dos cidadãos cedia passo, na prática, à
influência do governo, já se encontre afastado autoridade do "Pequeno Conselho". (N. de L.
da vontade geral, corrompido. (N. de L. G. M.) G.M.)
DO CONTRATO SOCIAL III 91
Além disso, quantas coisas, difíceis sárias, a esse belo espírito freqüente-
de reunir, supõe esse Governo ! Em mente faltou justeza e algumas vezes
primeiro lugar, um Estado muito pe- clareza, e não percebeu ele que, a auto-
queno2 72 , no qual seja fácil reunir o ridade soberana sendo a mesma em
povo e onde cada cidadão possi sem todos os lugares, deve o mesmo princí-
esforço conhecer todos os demais; pio vigor ar em todo o Estado bem
segundo, uma grande simplicidade de constituído, embora mais ou menos, é
costumes que evite a acumulação de verdade, segundo a forma de gover-
questões e as discussões espinhosas; no2 1 s .·
depois, bastante igualdade entre as Acrescentemos que não há torma de
classes e as fortunas, sem o que a governo tão sujeita às guerras civis e
igualdade não poderia subsistir por às agitações intestinas quanto a forma
muito tempo nos direitos e na autori- democrática ou popular, porque não
dade; por fim, pouco ou nada de há outra que tenda tão forte e conti-
nuamente a mudar de forma, nem que
luxo 2 7 3 - pois o luxo ou é o efeito de exija mais vigilância e coragem para
riquezas ou as toma necessárias; cor- ser mantida na forma original 2 7 6 • É
rompe ao mesmo tempo o rico e o sobretudo nessa constituição que o
pobre, um pela posse e outro pela cobi- cidadão deve armar-se de força e cons-
ça; entrega a pátria à frouxidão e à vai- tância, e ter presênte no coração, todos
dade; subtrai do Estado todos os cida- os dias da vida, o que dizia um pala-
dãos para subjugá-los uns aos outros, e tino virtuoso 2 7 7 na dieta da Polônia:
todos à opinião. M alo pericu/osam libertatem quam
Eis por que um autor célebre 2 7 4 quietum servitium 2 7 8 •
estabeleceu a virtude-por princípio da
repúbliea, pois todas essas condições 2 7 5
Mais uma vez se firma que o Contrato
não poderiam subsistir sem ela. Mas, Social não é o evangelho da utopia democrá-
por não haver feito as distinções neces- tica, mas um tratado sobre a essência iguali-
tária do Estado legítimo, seja qual for a sua
forma de governo. Essa igualdade essencial,
2 72
Uma velha tradição - de ~ristóel a encarada em seus múltiplos aspectos, admite
Montesquieu - só aconselhava a forma · variações de "mais ou menos" no que respeita
democrática aos pequenos povos, suscetíveis à política e à condição material, porém man-
de reunir-se em assembléias gerais e com rela- tém-se íntegra enquanto princípio moral. (N.
tivamente poucas questões a discutir. (N. de L. de L. G. M.)
G.M.) 2 7 6
Para além do relativismo circunstancial e
2 73
O tema do luxo, tão em voga ~.O século da dificuldade prática da instalação da demo-
XVIII, aqui volta a aparecer, mantedo ~ se cracia, Rousseau denuncia ainda um perigo
Rousseau fiel à posição assumida no primeiro estrutural que lhe é peculiar: a instabilidade e a
Discurso. (N. de L. G. M.) fragilidade da forma que, fundada na \%ua\-
2 7 4
Montesquieu, que no Do Espírito das dade política, se revela como de fácil acesso às
Leis (!. III, c. III) dizia: "Não é preciso muita ambições privadas e, pois, às subversões. (N.
probidade para que um Governo monárquico de L. G. M.)
ou um Governo despótico se marttenha ou se 2 7 7
O palatino da Posnânia, pai do rei da
sustenha. A força da lei em um e, em outro, o Polônia, Duque da Lorena*. (N. do A.)
braço do príncipe sempre erguido tudo regu- * Palatinados eram as antigas províncias da
lam e contêm. Mas num Estado popular preci- Polônia, e palatinos os seus governantes.
sa-se de um recurso a mais, que é a virtude". Vaughan anota que a mesma máXima foi repe-
Montesquieu, contudo, falara dos Estados tal tida pelo próprio rei da Polônia, Estanislau
como existiam, enquanto Rousseau, no Con- Leczinski: "É preciso optar, e os que não
trato, cuida de como legitimamente devem eles podem suportar o trabalho só terão de .buscar
organizar-se. Conseqüentemente, a virtude é o repouso na servidão". (N. de L. G. M.)
um princípio sempre necessário. (N. de L. G. 2 78
"Prefiro a liberdade perigosa à tranqüila
M.) servidão." (N. de L. G. M.)
92 ROUSSEAU
CAPITULO V
Da aristocracia
que jamais confunde a soberania com esta ou tações do Contrato Social. Em primeiro lugar,
aquela composição do corpo governamental. sobre o sentido democrático, essencial e não
(N. de L. G. M.) formal, do pensamento de Rousseau, que, ja~
2 92
1 Todos esses termos, etimologicamente, mais se apartando do princípio republicano (v.
ligam-se à idéia de "mais velhos". (N. de L. G. nota 281, supra), não hesita em favorecer· a
M.) forma aristocrática eletiva. Depois, sobre a
DO CONTRATO SOCIAL 93
sê-lo por eleição 2 8 7 , meio pelo qual a geiro por intermédio de senadores
probidade, as luzes e a experiência e veneráveis do que por uma multidão
todos os outros motivos de preferência desconhecida ou desprezada.
e de estima pública constituem outras Em uma palavra, a melhor ordem e
novas garantias qe que se será gover- a mais natural é que os mais doutos
nado sabiamente. governem a multidão, quando se tem
Além disso, as assembléias reúnem- certeza de que o fazem visando o bene-
se mais comodamente; os negócios me- ficio dela e não o seu. Não se deve
lhor se discutem e se executam com multiplicar em vão os recursos, nem
mais ordem e presteza; o crédito do fazer com vinte mil homens o que cem
Estado mais bem se firma no estran- homens escolhidos podem fazer ainda
melhor. É preciso notar, porém, que o
2 8 5
Assim se desfazem várias falsas interpre- interesse do corpo 2 8 8 , neste caso, co-
tações do Contrato Social. Em primeiro lugar, meça a enfraquecer a direção da força
sobre o sentido democrático, essencial e não
formal, do pensamento de Rousseau, que, ja- pública segundo a regra da vontade
mais se apartando do princípio republicano (v. geral, e que uma outra propensão
nota 281, supra), não hesita em favorecer a inevitável rouba às leis uma parte do
forma aristocrática eletiva. Depois, sobre a poder executivo.
interpretação excessivamente estrita que Halb- Tomando-se em consideração as
wachs, contra Beaulavon, deu ao conceito de
aristocracia em Rousseau, que aquele autor conveniências particulares, não é pre-
julga limitado a uma escolha no interior de ciso nem um Estado tão pequeno, nem
uma casta ou classe privilegiada, quando em um povo tão simples e tão reto para
verdade o Contrato distingue explicitamente que a execução das leis, como numa
entre a aristocracia "natural" (de idade), a
hereditária (classe ou casta) e a puramente ele-
boa democracia, suceda imediata-
tiva, reservando a esta última a categoria de mente à vontade pública. Não convém,
"aristocracia propriamente dita". Conseqüen- igualmente, uma nação tão grande que
temente, razão assiste a Beaulavon para consi- os chefes, distribuídos para governá-la,
derar aristocrático, no sentido rousseauniano, possam, cada um em seu departa-
o Governo parlamentar de gabinete praticado
em França. Afinal, podemos estender essa mento, fazer-se passar pelo soberano e
observação a todos os governos hoje por nós começar a tornar-se independentes
considerados "democráticos", como acima para, por fim, chegar a ser os senho-
notamos, pois, presidencialista, parlamenta- res2 as.
rista ou monarquista, neles impera a regra da
escolha eleitoral de alguns para exercer o
Mas, se a aristocracia exige algumas
Governo. (N. de L. G. M.) virtudes menos -que o Governo popu-
2 a 6 Isto é, potencialmente são magistrados, lar, exige ainda outras que lhe são pró-
faltando apenas realizar-se tal capacidade prias, como a moderação entre os ricos
latente, o que pode suscitar as comoções intes- e o contentamento entre os pobres,
tinas acusadas no capítulo anterior, enquanto
na aristocracia propriamente dita consagra-se
pois parece que nela estaria deslocada
a eleição como única regra de ascensão. (N. de uma igualdade rigorosa, que nem em
L. G. M.) Esparta foi observada.
2 8 7 É muito importante regulamentar pelas
De resto, se essa forma compreende
leis a forma de eleição dos magistrados, pois,
abandonando-a à vontade do príncipe, não se
2 8 8 Do pequeno corpo composto pelos gover-
pode evitar cair na aristocracia hereditária,
como aconteceu às repúblicas de Veneza e de nantes. (N. de L. G. M.)
Berna. Assim, a primeira é, há muito tempo, 2 a 9 Espalhados pelo território, os gover-
um Estado em dissolução, e a segunda só se nantes não se contrastam reciprocamente e,
mantém, contudo, devido à extrema sabedoria não havendo vontade geral do Governo, cada
de seu senado: é uma exceção muito honrosa, qual passa a usar do poder em interesse pró-
mas muito perigosa. (N. do A.) prio. (N. de L. G. M.)
94 ROUSSEAU
CAPÍTULO VI
Da monarquia
saltar sempre de uma máxima para riamente aqueles que a recebem, que se
outra, de um para outro projeto, o que deve esperar de um séqüito de homens
não acontece nos outros governos em educados para reinar? É, pois, querer
que o príncipe é sempre o mesmo. Vê- iludir-se, confundir o Governo real
se, também, que se, em geral, há mais com o de um bom rei. Para ver o que é
astúcia numa corte, há mais sabedoria esse Governo em si mesmo, impõe-se
num senado, e que as repúblicas alcan- observá-lo quando os príncipes são
çam seus fins por vias mais constantes tacanhos ou maus, pois chegarão
e mais freqüentadas, enquanto cada assim ao trono ou o trono assim os
revolução no ministério produz outra tomará.
no Estado - a máxima comum a Essas dificuldades não escaparam a
todos os ministros ·e a quase todos os nossos autores, mas eles em absoluto
reis é de tomar em todos os assuntos não se embaraçaram com elas. O
posição contrária à de seu predecessor. remédio, dizem eles, é obedecer sem
Dessa mesma incoerência se extrai murmurar. Deus dá os maus reis em
ainda a solução de um sofisma muito sua cólera e devemos suportá-los como
familiar aos políticos reais 3 0 8 - não castigqs do céu 3 1 1 • Sem dúvida, tal
somente comparar o governo civil ao discurso é edificante, mas não sei se
governo doméstico e o príncipe ao pai não conviria mais num púlpito do que
da família, erro já refutado 3 0 9 , mas num livro de política. Que dizer de um"
ainda conferir a esse magistrado todas médico que promete milagres, mas
as virtudes de que terá necessidade e cuja arte se limita a exortar seu doente
sempre supor que o príncipe é tal qual à paciência? Sabemos. muito bem que
devera ser. Baseando-se nessa suposi- devemos agüentar um mau Governo
ção, o Governo real é evidentemente quando o temos; a questão está em
preferíyel a qualquer outro porque é encontrar um bom.
incontestavelmente o mais forte e, para
ser também o melhor, não lhe falta J 1 1 Alusão direta a Bossuet, cuja Política
senão uma vontade de corpo mais de Extraída das Santas Escrituras não só defendia
acordo com a vontade geral. o poder absoluto dos reis ("contra sua autori-
dade só pode haver remédio em sua autorida-
Mas, se o rei, como diz Platão 3 1 0 , é de") que derivaria da natureza mesma de sua
por natureza uma pessoa muito rara, função ("o príncipe é, por seu cargo, o par do
quantas vezes a natureza e a sorte povo") e que estaria submetido ao poder direti-
concorrerão para coroá-lo? E, ainda, vo, mas não ao poder coativo das leis (lei IV,
art. I, proposições II, III e IV), como ainda se
se a educação real corrompe necessa- valia do "Dai a César o que é de César" para
justificar a completa obediência dos súditos (l.
30 8
A incoerência é a falta de continuidade VI, art. II, proposição inicial). Rousseau,
entre os reis hereditários que se sucedem; o porém, tinha um objetivo mais próximo e ime-
sofisma, que virá a seguir, está em tomar-se diato na condenação, por autoridades católi-
como virtudes do Governo monárquico as cas, de seus livros. Christophe de Beaumont,
qualidades de um rei perfeito. (N. de L. G. M.) arcebispo de Paris, condenando o Emz?io,
escreve um Mandamento no qual assegura que
3 0 9 V. parte inicial do Contrato, principal- até os piores tiranos, como Nero e Domiciano,
mente l. I, c. II. (N. de L. G. M.) "que prefia~ ser a maldição da terra ao
31 o ln Civili*. (N. do A.) invés de ser os pais de seus povos, não respon-
* Trata-se novamente do Político, aqui chama- diam senão perante Deus pelo abuso de seu
do de "Civilis". (N. de L. G . M.) poder". (N. de L. G. M.)
DO CONTRATO SOCIAL 99
CAPITULO VII
3 1 a Mais adiante (I. IV, e. V), Rousseau volta- 3 1 9 Entendam-se tais "tribunais" como ór-
e APÍTuLo v111
Que qualquer forma de governo não
convém a qualquer país
fogo grão por grão. As regiões menos à tirania: as bestas ferozes só reinam
povoadas são assim as mais propícias nos desertos 3 3 0 •
33o No manuscrito de Neuchâtel, Rousseau o tirano, e, dos domesticados, o bajulador" -
copiou uma frase de Diógenes Laércio -- que terá inspirado esta passagem. (N. de L. G.
"Tales dizia que o pior dos animais selvJigens é M.)
CAPÍTULO IX
rados; um fica contente quando o culos que merecem ser salientados devido à
dinheiro circula, e outro exige que o prosperidade do gênero humano. Muito se
povo tenha pão. Teríamos avançado admirou aqueles em que se viu florescer as le-
tras e as artes, sem penetrar no objeto secreto
mais se concordássemos nesses pontos de sua cultura, sem considerar o seu efeito
e em outros semelhantes? Não pos- funesto: "Idque apud imperitos humanitas
suindo as quantidades morais uma me- vocabatur, quam pars servitutis esset " ~ •. Não
dida precisa, mesmo que se estivesse enxergaremos nunca, nas máximas dos livros,
de acordo quanto ao critério, como se o interesse grosseiro que faz os autores fala-
rem? Não; apesar do que eles possam dizer,
estaria quanto à sua apreciação? quando um país se despovoa malgrado o seu
De minha parte, sempre me espanto brilho, não é verdade que tudo vai bem e não
por não reconhecerem um indício tão basta que um poeta ganhe cem mil libras de
DO CONTRATO SOCIAL 105
renda para que um século seja o melhor de dia que o povo francês vivesse feliz e numero-
todos. É preciso levar em consideração menos so, numa abastança honesta e livre. Outrora, a
o repouso aparente e a tranqüilidade dos che- Grécia floresceu no seio das mais cruéis guer-
fes do que o bem-estar das nações tomadas ras. O sangue lá corria aos borbotões e toda a
como um todo e, sobretudo, dos Estados mais região estava cheia de homens. Parece, disse
numerosos. O granizo destrói alguns cantões, Maquiavel, que no meio dos assassínios, das
mas raramente determina a miséria. As rebe- proscrições, das guerras civis, nossa república
liões, as guerras civis assustam muito os che- se tornou mais poderosa; a virtude de seus
fes, mas não determinam a verdadeira infelici- cidadãos, seus costumes, sua independência
dade dos povos, que podem até chegar a tiveram mais efeito para reforçá-la do que
experimentar uma folga enquanto se disputa todas essas dissensões o tiveram para enfra-
sobre quem irá tiranizá-los. É do seu estado quecê-la. Um pouco de agitação dá mais vigor
permanente que nascem suas prosperidades ou às almas, e o que faz verdadeiramente a espé-
as calamidades reais: quando tudo fica esma- cie prosperar é menos a paz do que a liberda-
gado sob o jugo, então tudo perece, e ainda os de. (N. do A.)
chefes os destroem à vontade "ubi so/itudinem • "'Os tolos chamavam de humanidade o que
.faciunt, pacem appellant "**. Quando os tor- já era uma parte da servidão." (Tácito: Agríco-
mentos dos grandes agitaram o reino de Fran- la, XXXI.) (N. de L. G. M.)
ça e o coadjutor de Paris ia ao parlamento ** Onde fazem o deserto, chamam-no de paz."
com um punhal no bolso, tal coisa não impe- (Tácito: Agrícola, XXI.) (N. de L. G. M.)
CAPÍTULO X
De dois modos pode dar-se o caso pam isoladamente o poder, que não
da dissolução do Estado 3 3 7 • devem exercer senão enquanto corpo,
Primeiro, quando o príncipe não o que não é menor infração das leis e
mais administra o Estado de acordo produz desordem ainda maior. Têm-se
com as leis e usurpa o poder soberano. então, por assim dizer, truitos príncipes
Dá-se, então, uma mudança notável quantos magistrados, e o Estado, não
que consiste em contrair-se não o menos dividido do que o Governo, pe-
Governo, mas o Estado; quero com rece ou muda de forma.
isso dizer que o grande Estado se dis- Quando o Estado se dissolve, o
solve, que se forma ou.t ro dentro dele, abuso do Governo, qualquer que seja,
composto unicamente de membros do toma o nome de anarquia 33 9 • A distin-
Governo, o qual, em relação ao resto guir-se: a democracia degenera em
d.o povo, não passa de senhor e tirano. oclocracia 3 4 0 , a aristocracia em oli-
Desse modo, no momento em que o garquia3 4 1 ; acrescentarei que a reale-
Governo usurpa a soberania, rompe-se za degenera em tirania, mas esta pala-
o pacto social e todos os simples cida- vra é equívoca e exige explicação 3 4 2 •
dãos, repostos de direito em sua liber- No sentido vulgar, um tirano é um
dade natural, estão forçados, mas não rei que governa com violência e sem
obrigados a obedecer 3 3 8 • levar em consideração a justiça e as
Acontece também o mesmo caso leis. No sentido preciso, um tirano é
quando os membros do Governo usur- um particular que se arroga a autori-
dade real, sem ter direito a isso. Assim
3 3 7 No fundo, só há uma causa de dissolu- os gregos entendiam a palavra tirano;
ção: a usurpação do poder soberano pelo aplicavam-na indiferentemente aos
Governo, distinguindo Rousseau o caso em bons e maus príncipes, cuja autoridade
que a usurpação se faz pelo corpo governa- não fosse legítima 3 43 • Desse modo, ti-
mental, daquele em que os usurpadores são os
membros desse corpo considerados pessoal-
3 -3 9 No sentido estrito: a au sência de liames
mente. Ajuntemos que, embora permaneçamos
no plano teórico, a passagem que aqui se inicia políticos, pois já não os há legítimos. A pala-
indubitavelmente tem aplicações diretas à vida vra anarquia, no texto, não corresponde ao
política do tempo, deixando transparecer a sentido moderno de ausência de Governo, seja
aversão à monarquia tirânica ou despótica que por causa da desordem social, seja como aspi-
caracterizava o sentimento cívico de Rous- ração de um individualismo extremo. (N. de L.
seau. (N. de L. G. M.) G.M.)
3 3 8 Voltamos, assim, à teoria geral do con-
3 40 Governo do populacho. (N. de L. G. M.)
trato social: os governos que usurpam a sobe- 3 4 1 Governo de poucos, de um pequeno nú-
rania, a um só tempo, colocam-se fora da pólis mero. (N. d~ L. G. M.)
como infratores da lei e decretam a morte do
Estado, que só existe enquanto impera a vonta-
3 4 2
Há, oois, como notou Halbwach'2>, ü-ua<.:, h -
de geral, isto é, enquanto todos os cidadãos nhas de uegenerescencia estatal: uma segue a
são detentores da soberania. Recai-se, pois, no evolução democracia-aristocracia-monarquia,
estado de natureza e, em sua liberdade natural, a outra faz-se pela passagem do legítimo ao
os homens só se dobrarão à força. "Não estão ilegítimo. (N. de L. G. M.)
obrigados a obedecer", diz Rousseau. Com 3 4 3 "Omnes enin et habentur et dicuntur
razão, Beaulavon registra que, se o Contrato tyranni, qui potestate utuntur perpetua in ea
Social deixa de recomendar a resistência à tira- civitate quae libertate usa est." (Com. Nep. in
nia - como todos os teóricos libertários, cujo Miltiad, cap. VIII.)* É verdade que Aristóteles,
ponto máximo são os "monarcômacos", defen- Etic. Nicam., Liv. VIII, c. 10, distingue o tira-
sores do direito de supressão física do usurpa- no do rei; salientando que o primeiro governa
dor - , essa abstenção se funda na certeza, em seu próprio proveito e o segundo somente
registrada no cap. VIII do Livro II, de ser no de seus súditos, mas, além de todos os auto-
irrecuperável, para um povo, a liberdade perdi- res gregos, de um modo geral, tomarem a pala-
da. (N. de L. G. M.) vra tirano num outro sentido. como se vê
108 ROUSSEAU
rano e usurpador são duas palavras é aquele que se intromete, contra as
perfeitamente sinônimas. leis, a governar segundo as leis; o dés-
A fim de dar nomes diferentes a coi- pota é aquele que se coloca acima das
sas diferentes, chamo tirano ao usurpa- próprias leis. Assim, um tirano pode
dor da autoridade real, e déspota, ao não ser um déspota, mas um déspota é
usurpador do poder soberano. O tirano sempre um tirano.
sobretudo pelo Híeron de Xenofonte, con- poder à custa da liberdade da cidade (isto é, do
cluir-se-ia da distinção de Aristóteles que, Estado), também é significativa: do ponto de
desde o começo do mundo, não existiu ainda vista etimológico, para a compreensão da frase
um único rei. (N. do A.) que se segue - tirano é quem usurpa, isto é,
* A citação de Cornélio Nepos, se importa usa, por tê-la arrebatado, a liberdade do corpo
para atestar que tirano é aquele que adquire o político. (N. de L. G. M.)
CAPÍTULO XI
Da morte do corpo político
lisar-se e o indivíduo continuar a viver. ria conservá-las por tão longo tempo.
Um homem torna-se imbecil e vive, Se o soberano não as tivesse reconhe-
mas, desde que o coração deixa de fun- cido como constantemente salutares,
cionar, o animal morre 3 4 6 • ele as teria revogado mil vezes. Eis por
O Estado de forma alguma subsiste que, em todo Estado bem constituído,
pelas leis, mas sim pelo poder legislati- as leis, longe de se enfraquecerem, ga-
vo3 4 7 • A lei de ontem não obriga hoje, nham continuamente nova força; o
mas o consentimento tácito presume-se preconceito 3 4 8 da antiguidade as
pelo silêncio e presume-se que o sobe- torna cada dia mais veneráveis, en-
rano confirma incessantemente as leis quanto, onde as leis ao envelhecer se
que, podendo, não ah-rogou. Tudo o enfraquecem, isso prova não haver
que uma vez declarou querer, quererá mais poder legislativo e não mais estar
sempre, a menos que o revogue. vivendo o Estado.
Por que, então, se confere tanto res-
peito às antigas leis? Justamente por 3 4 7
A lei, em si mesma, é mera expressão da
serem antigas. Deve-se crer que só a vontade soberana. Quando a identifica com a
excefencia das vontades anugas pode-: potência legislativa em ação, Rousseau grafa a
palavra com maiúscula, assim distinguindo-a
de sua acepção comum que significa algo tran-
3 4 6 Os paralelos com a realidade biológica
sitório e só adquirindo alguma estabilidade na
têm valor e função muito .relativos no pensa- medida em que continua a corresponder à von-
mento de Rousseau, que deles se utiliza como tade do soberano. (N. de L. G . M.)
meros recursos expositivos. V. Robert Dera- 3 4 8
Preconceito, aqui, não traz o sentido
thé: Jean-Jacques Rousseau et la Science Poli- pejorativo atual. É, rigorosamente, o conceito
tique de San Temps, Paris, 1950. (N. de L. G. que se antecipa pelo simples fato de serem
M.) antigas tais !eis. (N. deL G. M.)
CAPÍTULO XII
no, e até várias vezes. Ele não somente se, da possibilidade, a existência das coisas.
exercia os direitos da soberania, mas Invertendo-a, Rousseau dá-lhe maior verdade e
assim conclui a sua demonstração afirmando
também uma parte dos direitos do possível o exercício da soberania pelo povo
Governo. Tratava de certos assuntos, desde que, ao menos hisio.ricamente, existiu.
julgava certas causas, e todo esse (N. de L. q. M.)
e AP fruLo x111
Continuação
Não basta que o povo reunido tenha dicas pela simples data 3 5 2 , qualquer
uma vez fixado a constituição do Esta- assembléia do povo que não for convo-
do sancionando um corpo de leis; não cada pelos magistrados designados
basta, ainda, que tenha estabelecido para esse fim e segundo as formas
um Governo perpétuo ou que, de uma prescritas deverá considerar-se ilegí-
vez por todas, tenha promovido a elei- tima, e tudo o que nela se fizer, nulo,
ção dos magistrados; além das assem- porquanto a própria ordem de reunir-
bléias extraordinárias que os casos se deve emanar da Lei.
imprevistos podem exigir, é preciso Quanto à repetição mais ou menos
que haja outras, fixas e periódicas, que freqüente das assembléias legítimas,
nada. possa abolir ou adiar, de tal depende ela de tantas considerações,
modo que, no dia previsto, o povo se que não se poderia a tal propósito esta-
encontre legitimamente convocado belecer regras precisas. Pode-se unica-
pela lei, sem que para tanto haja neces- mente dizer, de modo geral, que, quan-
sidade de qualquer outra convocação to mais força possua o Governo, com
formal 3 51 • · tanto mais freqüência deve mostrar-se
Mas, além dessas assembléias, jurí- o soberano.
Dir-me-ão: isso pode convir a uma
3 51
Previa a constituição de Genebra a reu- única cidade, mas quP- fazer quando o
nião anual do Conselho Geral (assembléia da
totalidade dos cidadãos) para eleger os síndi- 3 52
O simples fato de a lei fixar a data atribui
cos. O "Pequeno Conselho" suspendeu tal reu- plena legitimidade à assembléia. (N. de L. G.
nião, infringindo a lei. (N. de L. G. M.) M.)
DO CONTRATO SOCIAL 111
CAPÍTULO XIV
Continuação
CAPÍTULO XV
Desde que o serviço público deixa fim, soldados para escravizar a pátria
de constituir a atividade principal dos e representantes para vendê-la.
cidadãos e eles preferem servir com É a confusão do comércio e das
sua bolsa a servir com sua pessoa, o artes, é o ávido interesse do ganho, é a
Estado já se encontra próximo da frouxidão e o amor à comodidade que
ruína. Se lhes for preciso combater, trocam os serviços pessoais pelo di-
pagarão tropas e ficarão em casa; se nheiro. Cede-se uma parte do lucro,
necessário .ir ao conselho, nomearão para aumentá-lo à vontade. Dai ouro, e
deputados e ficarão em casa. À força logo tereis ferros. A pai avra finança é
de preguiça e de dinheiro, terão, por uma palavra de escravos, não é conhe-
DO CONTRATO SOCIAL 113
a esse trecho o seguinte comentário: "Essa tese 3 63 O regime feudal de tributos impunha
incapaz de reagir contra ela, enquanto nosso aproxima-se sempre de seu ideal: uma pequena
Autor deseja uma liberdade real e radicada na sociedade simples e morigerada, com pouco
igualdade efetiva dos homens, sem importar-se comércio interno ou externo, vivendo quase
com a suposta dignidade dos magistrados, somente das trocas diretas e, pois, podendo
negociantes, padres e jovens fidalgos. (N. de L. dispensar a moeda. (N. de L. G. M.)
G.M.) 3 6 5 No Antigo Regime francês, os Estados
114 ROUSSEAU
pode "representar" o povo, mas apenas expri- nado preparava as leis (Atenas, Roma), estas
mir a sua vontade, depois de firmada e formu- só adquiriam vigor depois de submetidas dire-
lada. (N. de L. G. M.) tamente ao povo. (N. de L. G. M.)
DO CONTRATO SOCIAL 115
cargos, mas somente usurpando-os do dão dos orientais é querer dar-se grilhões, é
senado. submeter-se aos ferros ainda mais necessaria-
mente do que eles. (N. do A.)
Entre os gregos, tudo o que o povo 3 7 5 Aqui, Rousseau deve ceder ao peso da
tinha de fazer, fazia-o por si mesmo; evidência histórica: seus amados exemplos
encontrava-se freqüentemente reunido gregos e romanos, quando governados demo-
na praça. Residia num clima ameno, crática e diretamente, o eram por uma elite de
cidadãos para os quais trabalhava a multidão
não era de modo algum ávido, os de servos e escravos. Certa tendência moderna
e otimista do tecnicismo espera que a máquina
3 7 3
Já ao tempo de Cícero, os patrícios deixa- venha a conferir equivalente liberdade de ocu-
vam de comparecer aos comícios curiais, par-se com a causa pública, aos cidadãos da
sendo aí representados pelos litores. (N. de L. pó/is moderna. (N. de L. G . M.)
G.M.) 3 7 6 Cf. 1. 1, c. II e IV. (N. de L. G. M.)
116 ROUSSEAU
CAPITULO XVI
De como a instituição do governo não é
de modo algum um contrato
Uma vez bem estabelecido o poder no, considerado como tal, deter o
legislativo, resta estabelecer do mesmo poder executivo, o direito 3 8 o e o
modo o poder executivo, porquanto fato 3 8 1 confundir-se-iam de tal modo
este último, que só obra por meio de
atos particulares, não sendo da essên- que não se saberia mais o que é lei e o
cia do outro, dele é naturalmente sepa- que não é, e o corpo político, assim
rado3 7 9 • Se fosse possível ao sobera-
3 8 0 A lei, a expressão da vontade geral. (N.
3 79
Conclui-se, pois, a completa oposição a de L. G. M.)
Montesquieu: se este separa os poderes segun-
do a função, Rousseau os distingue segundo a
ª
3 1
O caso particular concreto a que se faz a
aplicação da lei por uma decisão do magis-
natureza. (N. de L. G. M.) trado. (N. de L. G. M.)
DO CONTRATO SOCIAL 117
CAPÍTULO XVII
Da instituição do governo
dentro da regra 3 93 . Não é possível ins- maneira legítima e sem renúncia aos
tituir o Governo por qualquer outra princípios acima estabelecidos.
3 93 Tornou-se clássica a objeção de Beaula-
que o cidadão, membro do soberano, possa
voil, endossada por Vaughan, segundo a quaL aparecer como magistrado temporário, pois já
desde que se constitui em democracia, o povo o vimos em outra dupla relação, qual seja a de
já não tem o direito de designar um rei. Para membro do soberano e súdito do Estado; 3. 0 )
Vaughan, há contradição com o capítulo ante- não é a soberania, mas o poder executivo, que
rior, pois esta escolha do rei seria um contrato passa às mãos do monarca, e, uma vez este
entre povo e Governo, um ato particular e, designado, extingue-se a assembléia sob regra
portanto, ilegítimo. Halbwachs, o terceiro dos democrática, para restar o soberano na plena
grandes comentaristas do Contrato Social, posse da soberania e o monarca no exercício
opõe-se a tais objeções argumentando que: 1. 0 ) de sua função executiva. Se a fórmula de
a regra democrática que se impõe pela simples Rousseau parece desnecessariamente compli-
instalação da assembléia não implica a adoção cada, cumpre notar que, graças a ela, chega-
de tal ou qual forma de governo (tendo idên- mos a uma insiitu-ição monárquica· escolhida
tico sentido o texto inspirador de Hobbes, v. em função do interesse comum e não tendo em
nota 392, supra); 2. 0 ) o povo, como soberano, vista determinada pessoa que se quer como rei.
decide criar um Governo monárquico, e, como Só depois de escolhida a forma de governo e
assembléia democrática, designa a pessoa que que se passa a considerar o problema da esco-
o exercerá, sem que vá contradição em admitir lha dos governantes. (N. de L. G. M.)
CAPÍTULO XVIII
que não se pode dar ao caso odioso 3 9 5 venir ou retardar essa infelicidade,
senão aquilo que não se lhe pode recu- sobretudo quando não têm necessidade
sar em todo o rigor do direito. É ainda, de convocação formal, pois então o
graças a essa obrigação que o príncipe príncipe não poderia impedi-las sem
consegue vantagem para conservar o abertamente declarar-se infrator das
seu poder malgrado o povo, sem que se leis e inimigo do Estado.
possa dizer que o haja usurpado, pois,
A abertura dessas assembléias, que
parecendo usar somente seus direitos,
só têm por objeto a manutenção do
é-lhe muito fácil dilatá-los e, pretex-
tando a tranqüilidade pública, impedir trabalho social, deve sempre se fazer
a realização de assembléias destinadas por duas proposições que jamais se
a restabelecer a boa ordem, prevàle- podem suprimir e que são submetidas
cendo-se assim de um silêncio que im- separadamente a sufrágio.
pede romper-se ou de irregularidades A primeira é: "Se apraz ao soberano
que faz cometer, para em seu favor conservar a presente forma de gover-
supor a aprovação daqueles que o no".
medo faz calar e para punir aqueles A segunda é: "Se apraz ao povo dei-
que ousam falar. Eis como os decênvi- xar a administração aos que se encon-
ros, eleitos a princípio por um ano e
tram atualmente encarregaàos dela".
depois conservados por mais um ano,
tentaram reter perpetuamente o poder, Suponho. neste ponto, o que creio
não mais permitindo a reunião dos ter demonstrado, isto é, que não há no
comícios. Valendo-se ainda desse meio Estado nenhuma lei fundamental que
fácil é que todos os governos do não possa ser revogada, nem mesmo o
mundo, uma vez revestidos da força pacto social3 9 7 , pois, se todos os cida-
pública, mais cedo ou mais tarde usur-
dãos se reunissem para, de comum
pam a autoridade soberana.
As assembléias periódicas, das acordo, romper esse pacto, não se pode
quais falei acima 3 9 6 , servem para pre- duvidar que fosse muito legitimamente
rompido. Grotius chega até a pensar
3 9 5 Na tradição jurídica romana, o "caso
que cada um pode renunciar ao Estado
odioso" é aquele em que o exercício do direito do qual é membro e retomar sua liber-
reivindicado pode trazer perigos, donde a má- dade natural e seus bens, saindo do
xima: "Odía restringenda,favores ampliandi':
(N. de L. G. M.) país 3 9 8 • Ora. seria absurdo que todos
3 9 s Cf. c. XIII. A insistência no recurso à os cidadãos reunidos não pudessem o
convocação das assembléias periódicas, clara que pode cada um deles em separado.
alusão ao caso de sua cidade natal, valeu a
Rousseau a queima pública, em Genebra, do
Contrato Social e a ordem de prisão contra seu 3 9 7 Cf. l. 1, c. VII. (N. de L. G. M.)
autor. O Procurador-Geral Tronchin apontou 3 9 8 É claro que não se sai dele para escapar
passagens deste capítulo ao "Pequeno Conse- ao dever e furtar-se a servir à pátria no
lho" e tanto bastou para desencadear a reação momento em que tem necessidade de nós. A
contra o até então venturoso- "cidadão de fuga seria, então, criminosa e punível ; · não
Genebra". (N. de L. G. M.) haveria retirada, mas deserção. (.N. do A.)
LIVRO QUARTO
CAPÍTULO 1
Enquanto muitos homens reunidos propuser não fará senão dizer o que
se consideram um único corpo, eles todos já sentiram, e não cabem nem
não têm senão uma única vontade que brigas nem eloqüência para fazer com
se liga à conservação comum e ao que se transforme em lei o que cada
bem-estar geral. Então, todos os expe- um já resolveu fazer, desde que esteja
dientes do Estado são vigorosos e certo de que os demais farão como ele.
simples, suas máximas claras e lumi- O que engana os discutidores é que,
nosas; absolutamente não há qualquer não vendo senão Estados mal consti-
interesse confuso, contraditório; o bem tuídos desde a origem 4 0 0 , chocam-se
comum se patenteia em todos os luga- com a impossibilidade de neles manter
res e só exige bom senso para ser per- semelhante polícia, rindo-se 4 0 1 só com
cebido. A paz, a união, a igualdade são imaginar todas as idiotices que um
inimigas das sutilezas políticas. Os ho- impostor esperto, um discursador insi-
mens corretos e simples são difíceis de nuante poderia impingir ao povo de
enganar, devido à sua simplicidade. Paris e de Londres. Não sabem que o
Não os impressionam de modo algum povo de Berna submeteria Cromwell
as astúcias e os pretextos rebuscados, aos guizos e os genebrinos passariam o
nem chegam mesmo a ser bastante Duque de Beaufort pela disciplina 4 0 2 •
sutis para serem tolos. Quando se
vêem, entre os povos mais felizes do hoje, resolvem os problemas comuns pelo sis-
mundo, grupos de camponeses regula- tema da democracia direta. A referência tam-
bém aparece no Projeto para a Córsega. (N. de
mentarem os negócios do Estado sob L. G. M.)
um carvalho e se conduzirem sempre 4 0 0 Essa, a maior deficiência do método de
Quando, porém, o liame social co- Cada um, desligando seu interesse do
meça a afrouxar e o Estado a enfr ~ que interesse comum, bem sabe que não o
cer, quandc os interesses particulares pode isolar completamente; sua parte
passam a se fazer sentir e as pequenas do mal público, porém, não lhe parece
sociedades a influir na grande, o inte- nada, em face do bem exclusivo de que
resse comum se altera e encontra pretende apropriar-se. Excetuado esse
opositores, a unanimidade não mais bem particular, ele deseja, tão forte-
reina nos votos, a vontade geral não é mente quanto qualquer outro, o bem
mais a vontade de todos 4 0 3 , surgem geral em seu próprio interesse. Mesmo
contradições e debates, e o melhor quando vende seu voto a peso de
parecer não é aprovado sem disputas. dinheiro, não extingue em si a vontade
Enfim, quando o Estado, próximo geral - ilude-a. A falta que comete é
da ruína, só subsiste por uma forma mudar a natureza da questão e respon-
ilusória e vã, quando se rompeu em der coisa diversa daquilo que se lhe
todos os corações o liame social, qu~ pergunta, de modo que, em lugar de
do o interesse mais vil se pavoneia dizer, com seu voto, "é vantajoso para
atrevidamente com o nome sagrado do . o Estado", ele diz "é vantajoso para tal
bem público, então a vontade geral homem ou tal partido que seja apro-
emudece 4 0 4 - todos, guiados por vada tal ou qual proposta". Assim, a
motivos secretos, já não opinam como lei da ordem pública nas assembléias
cidadãos, tal como se o Estado jamais não está tanto em nelas manter a von-
tivesse existido, e fazem-se passar tade geral, quanto em fazer com que
fraudulentamente, sob o nome de leis, sempre seja consultada e sempre res-
decretos iníquos cujo único objetivos é ponda 40 6 •
o interesse particular. Teria aqui muitas reflexões a fazer
Concluir-se-á daí que a vontade sobre o mero direito de votar em todo
geral esteja aniquilada e corrompida? o ato de soberania, direito do qual de
Não; ela é sempre constante, inalte-
rável e pura, mas encontra-se suborài- modo algum se poderá despojar os
nada a outras que a sobrepujam 4 º 5 • cidadãos, e sobre o referente4 a opinar,
a propor, a dividir, a discutir 0 7 , que o
4 0 3 Impõe-se bem compreender esse trecho, Governo tem sempre extremo cuidado
cuja linguagem é pouco precisa. Sabemos que
a vontade geral não precisa ser a vontade de em reservar para seus membros. Essa
todos, nem sequer da maioria - é o que há de importante matéria, no entanto, exigi-
comum na vontade de todos. Aqui Rousseau ria um tratado à parte e não posso,
se refere à vontade pretensamente geral, resul-
tante de uma coalização facciosa que se dispôs neste, dizer tudo.
seguir uma maioria para consagrar seu inte-
resse particular. (N. de L. G. M.) 40 6
Beaulavon duvida da possibilidade de
4 0 4
Agora, trata-se da vontade geral. Voltà- conseguir-se, por meio de leis regulamentares
mos àquele trecho da "Dedicatória" do segun- do funcionamento das assembléias, tal resulta-
do Discurso em que se fala dos povos, que, do. Parece, contudo, que "lei da ordem públi-
uma vez habituados à servidão, já não sabem ca", nesse passo, significa antes a regra moral
viver fora dela. (N. de L. G. M.) imposta pelo interesse público, isto é, uma
4 0 5
Confirma-se, pois, a interpretação que daquelas leis que não se gravam no bronze,
estas notas vêm dando à natureza essencial da mas no coração, como se diz no próprio Con-
vontade geral. Substrato comum das consciên- . trato Social. A reação moral impedirá as coali-
cias individuais, reflexo do processo de sociali- zões facciosas, que desviam a consulta à von-
zação·de cada um e todos os indivíduos, a von- tade geral e adulteram sua resposta. (N. de L.
tade geral está sempre presente neles. Mesmo o G.M.)
ato mais egoísta não a elide, senão apenas 40 7
Distinguem-se meticulosamente os mui-
passa por sobre ela. Ou, então, nela mesma tos passos, complementares porém distintos,
encontra algo que é de interesse particular. (N. que caracterizam a elaboração, fixação e
de L. G. M.) expressão da vontade geral. Não obstante, no
DO CONTRATO SOCIAL 125
CAPÍTULO II
Dos sufrágios
nime - é o pacto social, por ser a livre, porquanto, alhures, a família, os bens, a
falta de asilo, a necessidade, a violência podem
associação civil o mais voluntário dos reter um habitante no país, malgrado sua von-
atos. deste mundo. Todo homem, tendo tade; nesse caso, a sua permanência por si só
nascido livre e senhor de si mesmo, não supõe seu consentimento ao contrato ou à
ninguém pode, a qualquer pretexto violação do contrato*. (N. do A.)
* Não se confunda essa noção da residência
imaginável, sujeitá-lo sem o seu con- com a moderna teoria do "quase-contrato"
sentimento. Afirmar que o filho de um pela qual se considera·m submetidos às obriga-
escravo nasce escravo, é afirmar que ções comuns os que não exprimiram sua ade-
não nasce homem. são ao Estado (os incapazes jurídicos: crian-
Se, quando surge o pacto social, ças, insanos e, em certos casos, as mulheres).
Para Rousseau, o consentimento deve ser
aparecem, pois, opositores, sua oposi- explícito (ele cuida de indivíduos capacitados à
ção não invalida o contrato, apenas cidadania) e só se presume quando a condição
impede que se compreendam nele: são de presunção resulta de um ato voluntário,
estrangeiros entre os cidadãos 411 • qual seja o de ir residir naquele Estado. (N. de
L. G. M.)
Quando o Estado se instituiu, o con- 41 3
Por que a maioria é sempre legítima na
sentimento encontra-se no fato de resi- ascendência sobre a minoria, explicar-se-á
dir; habitar o território é submeter-se à mais abaixo, quando se tratar da relação entre
soberania 41 2 • o voto individual e a vontade geral. Aqui ape- ·
nas se considera que, dispostos a viver em
Fora desse contrato primitivo, e em comum, como decidiram ao aceitar o pacto
conseqüência do próprio contrato, o social, os homens não podem estar em risco
voto dos mais numerosos sempre obri- permanente de dissolver o corpo social cada
ga os demais 4 1 3 • Pergunta-se, porém, vez que não se alcance unanimidade nas
como o homem pode ser livre, e força- deliberações. (N. de L. G. M.)
4 1 4
Em Gênova, lê-se na fachada das prisões
e nos grilhões dos forçados às galés a palavra
41 0
flistor., I, 85. (N. do A.) Libertas. Essa aplicação da divisa é bela e
41 1
No Projeto para a Córsega, há uma apli- justa. Com efeito, só os malfeitores de todos os
cação prática para o princípio: os que não Estados impedem o cidadão de ser livre. Num
aceitam o pacto devem afastar-se da assem- país em que todas essas pessoas estivessem nas
bléia, assim significando seu alheamento do galeras, gozar-se-ia da mais perfeita liberdade.
corpo político nascente. (N. de L. G. M.) (N. do A.)
DO CONTRATO SOCIAL 127
Duas máximas gerais podem servir são das opiniões: nas deliberações em
para regulamentar essas relações: uma que se precisa resolver imediatamente,
diz que, quanto mais importantes e deve bastar a diferença de um único
graves as deliberações, tanto mais a voto. A primeira dessas máximas pare-
opinião que as provoca deve ·aproxi- ce mais conveniente às leis, e a segun-
mar-se da unanimidade; a outra diz da, aos negócios. De qualquer modo,
que, quanto mais celeridade exigir o pela sua combinação estabelecem-se as
assunto em questão, tanto mais se deve melhores relações que se podem dar à
abreviar a diferença prescrita na divi- pluralidade para pronunciar-se.
CAPITULO III
Das eleições
república: 1. 0 ) o Grande Conselho elegia 30 povo numa decisão que, pelo seu caráter parti-
cidadãos; 2. 0 ) os 30 elegiam 9; 3. 0 ) os 9 ele- cular, escapa à sua função de firmar leis
giam 40; 4. 0 ) dos 40 sorteavam-se 12; 5. 0 ) os gerais. A sorte substituía um desses atos parti-
' 12 elegiam 25; 6. 0 ) deles, sorteavam-se 9; 7. 0 ) culares: a eleição. (N. de L. G. M.)
os 9 elegiam 25; 8. º) dos 25~ sorteavam-se 11; 42 6
A sorte enquadra-se, assim, na teoria da
9. º) os 11 elegiam 41; 10. º) os 41 elegiam o vontade geral, tanto evitando o desvio egoísta
doge. (N. de L. G. M.) do eleitor ao votar, quanto supondo a igual-
423 No Do Espírito das Leis, l. II, e. II. (N. de dade de todos enquanto candidatos presumí-
L. G. M.) veis. (N. de L. G. M.)
DO CONTRATO SOCIAL 129
CAPÍTULO IV
mais nos falta. A experiência nos ensi- ção, u·ma polícia conveniente à capital
na todos os dias quais as causas que do mundo.
determinam as revoluções dos impé- Dessa primeira divisão logo resultou
rios; como, no entanto, não se formam um inconveniente - é que, conti-
mais povos, não dispomos senão de nuando a tribo dos albanos 43 7 e a dos
conjeturas para explicar como se for- sabinos 4 3 8 sempre no mesmo estado,
maram. enquanto a dos estrangeiros 4 3 9 crescia
Os usos que encontramos estabele- sem cessar, devido ao seu perpétuo
cidos atestam pelo menos que tiveram afluxo, esta última não tardou em
uma origem. Das tradições que remon- ultrapassar as duas outras. O remédio
tam a essas origens, as que são apoia- que Sérvio encontrou para esse abuso
das pelas maiores autoridades, e que perigoso foi mudar a divisão, abolindo
por razões mais fortes se confirmam, as raças e substituindo-as por outra
devem ser consideradas como as mais divisão baseada nos lugares da cidade
certas. São essas as máximas que me ocupados por cada tribo. Em lugar de
esforcei por seguir ao perquirir como o três tribos, organizou quatro, cada
povo mais livre e mais potente da terra uma das quais ocupava uma colina de
exerceu seu poder supremo. Roma e lhe trazia o nome. Reme-
Depois da fundação de Roma, a diando desse modo a desigualdade pre-
república nascente, isto é, o exército de sente, preveniu-a ainda para o futuro e,
fundadores composto por albanos, sa- a fim de que essa divisão não fosse
binos e estrangeiros 4 3 6 , foi dividida somente de lugares, mas também de
em três classes que, a partir dessa divi- homens, proibiu aos habitantes passa-
são, receberam o nome de tribos. Cada rem de uma para outra divisão, o que
uma dessas tribos foi subdividida em impediu as raças de se misturarem.
dez cúrias e cada cúria em decúrias, à Dobrou também as três antigas cen-
frente das quais se colocaram ch~fes túrias de cavalaria e acrescentou-lhes
chamados curiões e decuriões. doze outras, mas sempre sob os anti-
gos noJlles, meio simples e judicioso
Além disso, tirou-se de cada tribo pelo qual acabou por distinguir o
um corpo de cem cavaleiros ou cava- corpo dos cavalheiros do corpo do
lheiros, chamado centúria, por onde se povo; sem suscitar murmúrios deste
vê que essas divisões, pouco necessá- último.
rias num burgo, não eram a princípio A essas quatro tribos urbanas, Sér-
senão militares. Parece, porém, que um vio acrescentou quinze outras, chama-
instinto de grandeza levou a cidade- das tribos rústicas, por serem forma-
zinha de Roma a dar-se, por antecipa- das de habitantes do campo, divididas
em outros tantos cantões. Mais tarde,
4 3 6
Ainda hoje, essa questão histórica resta introduziram-se outras tantas novas e
em dúvida e sujeita a hipóteses interpretativas
mais ou menos bem fundadas. Do ponto de o povo romano encontrou-se, por fim,
vista da história dos fatos, Piganiol, no Ensaio dividido em trinta e cinco tribos, nú-
sobre as Origens de Roma ( 1917), crê que o mero a que se cingiram até o fim da
povoamento se fez por invasores ários (alba- república.
nos) e imigrantes lígures (sabinos), aos quais se Da distinção entre as tribos -·êia cida-
juntaram etruscos-úmbrios (lúceres). Do ponto
de vista mítico, Dumezil (v. nota anterior)
acredita que rammenses, tícios e lúceres 43 7
Rammenses. (N. do A.)
correspondem menos a etnias do que a funções 43 8
Tatienses*. (N. do A.)
sociais (religiosa, bélica e agrícola) distintas * Ou tícios. (N. de L. G. M.)
43 9 Lúceres. (N. do A.)
(Nascimento de Roma, 1944). (N. de L. G. M.)
l32 ROUSSEAU
lia, semelhantes às paganalia que mais forma, Sérvio simulou 4 4 2 dar-lhe foi-
tarde apareceram entre as tribos rústi- ção militar. Incluiu na segunda classe
cas. duas centúrias de escudeiros, e duas de
Quando da nova divisão feita por máquinas de guerra, na quarta; em
Sérvio, não podendo esse total de trin- cada classe, com exceção da última,
ta ser igualmente dividido entre as qua- distinguiu os jovens dos velhos, isto é,
tro tribos, não quis nele tocar. As aqueles que ficavam obrigados a trazer
cúrias, independentes das tribos, torna- armas dos que, pela idade, disto esta-
ram-se uma outra divisão dos habitan- vam isentos pela lei, distinção que,
tes de Roma, mas de modo algum se mais do que a dos bens, determinou a
cogitou das cúrias, nem entre as tribos necessidade de freqüentemente refazer
rústicas nem entre o povo que as com- o censo ou a contagem. Por fim, quis
punha, porque, tornando-se as tribos que a assembléia se reunisse no
um estabelecimento puramente civil e Campo de Marte e que todos os que
introduzindo-se uma outra polícia para estivessem em idade de prestar serviço
o recrutamento das tropas, as divisões comparecessem armados.
militares de Rômulo tornaram-se su- O motivo pelo qual não adotou na
pérfluas. Assim, embora estando todo última classe essa mesma divisão entre
cidadão inscrito numa tribo, dificil- jovens e velhos é que se não concedi a
mente não estaria cada um inscrito ao populacho, de que se formava, a
também numa cúria. honra de carregar armas para a defesa
Sérvio estabeleceu ainda uma ter- da pátria; era preciso ter lar para obter
ceira divisão, que não tinha nenhuma o direito de defendê-lo e, dessas inúme-
relação com as precedentes, e, por seus ras tropas de mendigos que hoje bri-
resultados, se tomou a mais impor- lham nos exércitos dos reis, não have-
tante de todas. Distribuiu todo o povo ria talvez um só que não fosse
romano em seis classes, que não distin- rechaçado com desprezo de uma coor-
guiu nem pelo lugar nem pelos ho- te romana, quando os soldados eram
mens, mas sim pelos bens. Desse os defensores da liberdade.
modo, as primeiras classes eram ocu- Não obstante, distinguiam-se ainda,
padas pelos ricos, as últimas pelos po- na última classe, os proletários daque-
bres e as médias por aqueles que goza- les que chamavam capite censi. Os pri-
vam de fortuna medíocre. Essas seis meiros, que não se encontravam com-
classes dividiam-se em cento e noventa pletamente reduzidos a nada, davam,
e três outros corpos, chamados centú- ao menos, cidadãos ao Estado e, algu-
rias, e esses corpos eram distribuídos mas vezes, nas necessidades urgentes,
de tal modo, que só a primeira cl~se soldados. Aqueles que não tinham
compreendia mais da metade deles, e a absolutamente nada e que só podiam
última formava um único. Resultou ser contados pela cabeça eram consi-
que a classe menos numerosa em ho- derados nulos e foi Mário o primeiro a
mens era a mais numerosa em centú- se dignar arrolá-los.
rias, e que a última classe só represen- Sem afirmar aqui se esse terceiro
tava uma subdivisão, ainda que
4 4 2 A alegada simulação atribuiria a Sérvio
compreendesse, sozinha, mais da meta-
uma argúcia sobre-humana, porém as necessi-
de dos habitantes de Roma. dades militares de Roma parecem suficiente-
A fim de que o povo percebesse mente exigentes para explicar a utilização dire-
menos as conseqüências desta última ta dessa composição política. (N. de L. G. M.)
134 ROUSSEAU
arrolamento era bom ou mau em si nos comícios, e, como não havia cida-
mesmo, creio poder afirmar que ele dão que não estivesse inscrito numa
somente se tornou possível devido aos cúria, numa centúria ou numa tribo,
costumes simples dos primeiros roma- conclui-se que nenhum cidadão era
nos. seu desinteresse. seu gosto pela excluído do direito do sufrágio e que o
agricultura, seu desprezo pelo comér- povo romano era verdadeiramente so-
cio e pela febre do ganho. Qual seria o berano de direito e de fato.
povo moderno a que a devoradora avi- Para que os comícios fossem legiti-
dez, o espírito .inquieto, a intriga, os mamente convocados e para que aqui-
deslocamentos contínuos, as perpétuas lo que neles se fazia tivesse força de lei,
revoluções das fortunas permitiriam impunham-se três condições: primeira,
durar vinte anos um tal arranjo sem que o corpo, ou o magistrado, que as
_perturbar todo o Estado? É preciso
mesmo notar que os costumes e a cen- convocasse estivesse para tanto reves-
sura, mais forte que essa instituição, tido da autoridade .n ecessária; segun-
corrigiram o vício em Roma, e que um da, que a assembléia se realizasse num
certo rico se viu relegado à classe dos dos dias permitidos pela lei; terceira,
pobres por ter ostentado em demasia a que os augúrios fossem favoráveis.
sua riqueza. . O motivo da primeira exigência não
Por tudo isso pode-se facilmente precisa ser explicado; a segunda é uma
compreender por que quase sempre se questão de polícia, pois assim não se
faz menção a cinco classes, apesar de permitia que se realizassem os comí-
terem. realmente, existido seis. A sexta, cios nos _dias nefastos e no.s _dias de
não fornecendo nem soldados ao exér- mercado nos quais as pessoas do
cito, nem votantes ao Campo de campo, vindas a Roma para negócios,
Marte 4 4 3 , e não sendo quase de nenhu- não tinham tempo para passar o dia na
ma utilidade na república, raramente praça pública. Por meio da terceira, o
era contada para alguma coisa. senado refreava um povo orgulhoso e
Tais foram as várias divisoes do reclamador, e temperava conveniente-
povo romano. Vejamos, agora, o efeito mente o ardor dos tribunos sediciosos,
que produziam nas assembléias. Essas porém estes encontraram mais de um
assembléias, legitimamente convoca- meio para se livrarem de tal incômodo.
das, chamavam-se comícios. Realiza- As leis e as eleições dos chefes não
vam-se comumente na praça de eram os. únicos pontos submetidos ao
Roma 4 4 4 ou no Campo de Marte e julgamento dos comícios; tendo o povo
distinguiam-se em comícios por cúrias, romano usurpado as funções mais
comícios por centúrias e comícios por importantes do Governo, pode-se dizer
tribos, segundo aquela dessas três for- que o destino da Europa era regula-
mas para a qual eram ordenadas. Os mentado nessas assembléias. Essa va-
\:omkios por cúrias ligavam-se à insti- riedade de objetivos dava lugar às vá-
tuição de Rômulo; os por centúrias, à rias formas que tomavam as
de Sérvio; os por tribos, à dos tribunos assembléias, de acordo com os assun-
do povo. Nenhuma lei recebia sanção, tos sobre os quais tinham de pronun-
nenhum magistrado era eleito senão ciar-se.
Para julgar essas diversas formas,
4 43 Digo no Campo de Marte, porque era aí
basta compará-las. Rômulo, ao insti-
que se reuniam os comícios por centúrias; nas
duas outras formas, o povo se reunia no
tuir as cúrias 4 4 5 , tinha em vista conter
Forum ou em outro lugar, e então os capite
censi tinham tanta influência e autoridade 4 4 5 Rousseau ja ressalvou a possibilidade de
quanto os primeiros cidadãos. (N. do A.) tratar-se de uma instituição puramente legen-
4 4 4
Ou seja, no Forum. (N. de L. G. M.) dária, como hoje sabemos ser. (N. de L. G. M.)
DO CONTRATO SOCIAL 135
o senado pelo povo e este pelo senado, classe suplantava em número de votos
dominando igualmente a todos. Deu, todas as outras. Quando todas essas
pois, ao povo, por esse meio, toda a centúrias estavam de acordo, nem se
autoridade do número para equilibrar continuava a recolher sufrágios; o que
a do poder e das riquezas que deixava o menor número tinha decidido passa-
aos patrícios. Mas, de acordo com o va como decisão da multidão e pode-se
espírito da monarquia, deixou, no dizer que, nos comícios por centúrias,
entanto, maior vantagem aos patrícios, os assuntos se regulamentavam muito
dada a influência de seus clientes na mais pela pluralidade dos escudos do
pluralidade dos sufrágios. Essa admi- que pela dos votos.
rável instituição dos patrões e dos Essa extrema autoridade, porém, era
clientes foi uma obra-prima de política contrabalançada de dois modos: pri-
e de humanidade sem a qual o patri-
meiro, de ordinário, os tribunos e, sem-
ciado, tão contrário ao espírito da
pre, um grande número de plebeus,
república, não poderia ter subsistido.
Somente Roma teve a honra de dar ao pertencendo à classe dos ricos, contra-
mundo esse belo exemplo, do qual ja- balançavam o crédito dos patrícios
mais resultaram abusos e que não obs- nessa primeira classe.
tante nunca se repetiu. O segundo meio consistia no seguin-
te: em lugar de fazer-se de início vota-
Tendo essa mesma forma de cúria
rem as centúrias pela sua ordem, o que
subsistido sob os reis até Sérvio, não
sempre teria feito começar pela primei-
sendo considerado legítimo o reino do
último Tarqüínio, tal coisa fez com ra, escolhia-se uma pela sorte e
que se distinguissem em geral as leis essa 4 4 6 procedia sozinha à eleição; de-
reais pelo nome de leges curiatae. pois disso, todas as centúrias, chama-
das num outro dia de acordo com a
Sob a república, as cúrias, sempre
limitadas às quatro tribos urbanas e só sua classificação, repetiam a mesma
compreendendo o populacho de Roma, eleição, e comumente a confirma-
não podiam convir nem ao senado, que vam 4 4 7 • Destituíã-se assim a hierar-
se colocava à frente dos patrícios, nem quia da autoridade do exemplo, para
aos tribunos, que, apesar de plebeus, se atribuí-la à sorte, segundo o princípio
colocavam à frente dos cidadãos abas- da democracia.
tados. Caíram, pois, no descrédito e Resultava desse uso ainda outra
sua degradação foi tal, que seus trinta vantagem, qual seja a de os cidadãos
litores reunidos faziam o que os comí- do campo terem tempo, entre as duas
cios por cúrias deveriam fazer. eleições, para se informar quanta ao
A divisão por centúrias era tão favo- mérito do candidato · provisoriamente
rável à aristocracia, que a princípio nomeado, a fim de só dar seu voto com
não se percebia como o senado não conhecimento de causa. Mas, a pre-
vencia sempre nos comícios que tra- texto de celeridade, chegou-se ao ponto
ziam esse nome e pelos quais eram de abolir esse uso e as duas eleições
eleitos os cônsules, os censores e os de- passaram a ser feitas nó mesmo dia.
mais magistrados curuis. Com efeito,
das cento e noventa e três centúrias 4 4 6 Essa centúria, tirada assim ao acaso, cha-
que formavam as seis classes de todo o mava-se proerogativa, por ser ela a primeira a
quem se pedia o sufrágio, e daí veio a palavra
povo romano, a primeira compreendia prerrogativa. (N. do A.)
noventa e oito, e, só se contando os 4 4 7
Foi Caio Graco o autor dessa reforma.
votos por centúrias, só esta primeira (N. deL. G. M.)
136 ROUSSEAU
Os comícios por tribos eram pro- maus desígnios, acabaram por cair no
priamente o Conselho do povo roma- descrédito, abstendo-se os próprios
no. Só eram convocados pelos tribu- sediciosos de um meio que lhes punha
nos; os tribunos neles eram eleitos, e os projetos demasiado à mostra. É ver-
neles aprovados os plebiscitos. Não dade que toda a majestade do povo ro-
somente o senado aí não fruía de mano só se encontrava nos comícios
nenhuma posição especial como tam- por centúrias, os únicos completos,
bém não possuía sequer o direito de a porquanto nos comícios por cúrias fal-
eles assistir 4 4 8 e, obrigados a obedecer tavam as tribos rústicas e, nos comí-
a leis que não haviam podido votar, os cios por tribos, o senado e os patrícios.
senadores eram nesse ponto menos li- Quanto à maneira de recolher os
vres do que os últimos cidadãris. Essa sufrágios, era, entre os primeiros roma-
injustiça era, de todo, mal compreen- nos, tão simples quanto os seus costu-
dida, e bastaria só ela para invalidar os mes, embora menos simples ainda do
decretos de um corpo no qual não que em Esparta. Cada um dava seu
eram admitidos todos os seus mem- sufrágio em voz alta, um escrivão os
bros 4 4 9 • Mesmo que todos os patrícios anotava à medida que iam sendo
·assistissem a esses comícios de acordo dados; a pluralidade de votos em cada
com o direito que tinham como cida- tribo determinava o sufrágio da tribo;
dãos, tornando-se então simples parti- a pluralidade de votos entre as tribos
culares, não teriam sequer influído determinava o sufrágio do povo; assim
numa forma de sufrágios que se conta- também para as cúrias e as centúrias.
vam por cabeça e na qual o mais ínfi- Esse uso aproveitou enquanto domi-
mo proletário podia tanto quanto o nava entre os cidadãos a honestidade e
príncipe do senado. cada um envergonhava-se de dar publi-
Vê-se pois que, além da ordem resul- camente seu sufrágio a um projeto
tante dessas várias distribuições para a injusto ou a um súdito indigno, mas,
contagem dos sufrágios de um povo quando o povo se corrompeu e se pas-
tão numeroso, essas distribuições não sou a comprar os votos, tornou-se mais
se reduziam a formas indiferentes em conveniente que fossem dados em
si mesmas, dando cada uma efeitos segredo, a fim de conter os compra-
relativos aos fins que as tornavam dores pela desconfiança e também
preferidas. para fornecer aos velhacos um meio de
Sem entrar, a esse respeito, em mais não se tornarem traidores.
numerosos pormenores, resulta dos Bem sei que Cícero censura essa
esclarecimentos precedentes que os mudança e, em parte, lhe atribui á
comícios por tribos eram mais favorá- ruína da república 4 5 0 • Mas, ainda que
veis ao Governo popular, e os comí- sinta o peso que deve ter aqui a autori-
cios por centúrias, à aristocracia. Rela- dade de Cícero, não posso concordar
tivamente aos comícios por cúrias, nos com ele; penso, ao contrário, que, por
quais somente o populacho de Roma não se ter praticado um número sufi-
formava a pluralidade, como só ser- ciente de mudanças semelhantes, se
viam para favorecer a tirania e os acelerou a perda do Estado. Como o
regime das pessoas sãs não é apro-
4 4 8 Nem o senado tinha, coletivamente, um priado aos doentes, não se deve querer
posto superior nesses comícios, nem os sena- governar um povo corrompido pelas
dores podiam deles participar. (N. de L. G. M.)
4 4 9 Pois nem todos os cidadãos participavam
CAPÍTULO V
Do tribunato
mental em face da resistência dos súditos. (N. que depois os imperadores jamais abandona-
de L. G. M.) riam. (N. de L. G. M.)
4 5 6
- A origem plebéia do tribuno romano não 4 59
Esses dados históricos são bastante incer-
lhe conferia direito a auspícios nas eleições, tos (v. nota 436, supra). Só se sabe que, a par-
nem a séquito ou qualquer insígnia de sua fun- tir de 471, se elegeram quatro tribunos e que o
ção. (N. de L. G. M.) número passou a de~ em 457. (N. de L. G. M.)
DO CONTRATO SOCIAL 139
CAPÍTULO VI
Da ditadura
A inflexibilidade das leis, que as im- lidade ao mais digno. Essa comissão
pede de se ajustarem aos aconteci- pode se dar de dois modos, segundo a
mentos, pode, em certos casos, torná- espécie do perigo.
las perniciosas e determinar, por seu Se, para remediá-lo, basta aumentar
intermédio, a perda do Estado em a atividade do Governo, há que con-
crise. A ordem e a lentidão das formas centrá-lo em um ou dois de seus mem-
exigem um lapso de tempo que às bros. Desse modo, não é a autoridade
vezes as circunstâncias recusam. das leis que se altera, mas somente a
Podem surgir mil casos que o Legisla- forma de sua administração. Se o peri-
dor de modo algum preveniu, e será go for tal que o aparelho das leis repre-
previdência muito necessária saber-se sente um obstáculo a evitar, nomeia-se
que não se pode prever tudo. então um chefe supremo que faça com
Não se deve, pois, querer firmar as que todas as leis se calem e, por um
instituições políticas a ponto de afastar momento, suspenda a autoridade do
a possibilidade de suspender-lhes o soberano. Em tal caso, a vontade geral
efeito. Até Esparta deixou suas leis não é duvidosa e evidencia-se, como
cochilarem. primeira intenção do povo, que não pe-
Mas só os perigos muito grandes reça o Estado. Dessa maneira, de
podem compensar o de alterar a ordem modo algum a suspensão da autori-
pública, e jamais se deve sustar o dade legislativa abole a vontade geral:
poder sagrado das leis, senão quando o magistrado que a faz calar, não a
se trata da salvação da pátria. Nesses pode fazer falar; domina-a, sem poder
casos raros e evidentes, previne-se a representá-la pode fazer tudo,
segurança pública por um ato parti- menos leis 4 6 1 •
cular 4 6 0 que confere a responsabi-
4 6 1 A vontade geral, para que pudesse indicar
muitas faltas, como, por exemplo, não não procurou o meio mais legítimo e
ter nomeado um ditador no caso de seguro de salvar o Estado, mas sim, o
C atilina. Tratando-se somente de um de receber toda a glória desse caso 4 6 6 •
caso interno da cidade e, no máximo, Com muita justiça foi, portanto, glori-
de uma certa província da Itália, com a ficado como libertador de Roma, e jus-
autoridade sem limites que as leis da- tamente punido como infrator das leis.
riam ao ditador, facilmente ele debela- Se brilhante foi sua recondução, nem
ria a conjuração que só foi abafada de- por isso deixou d·e, na verdade, consti-
vido a um conjunto de acasos felizes tuir uma graça.
que a prudência humana jamais devera Ademais, seja qual for o modo por
esperar. que se confere essa importante comis-
Em lugar disso, o senado se conten- são, é preciso fixar sua duração num·
tou com conferir todo o seu poder aos prazo bastante curto, que jamais possa
cônsules. Daí resultou que Cícero,
para agir eficientemente, se viu obri- 'ser prolongado 4 6 7 • Nas crises que
gado a ultrapassar esse poder num determinam o seu estabelecimento, o
momento capital e, se os primeiros Estado é logo destruído ou salvo e,
transportes de alegria aprovaram sua uma vez passada a necessidade urgen-
conduta, foi com justiça que depois se te, a ditadura toma-se tirânica ou vã.
pediu conta do sangue dos cidadãos Em Roma, só havendo ditadores por
derramado contra as leis 4 6 5 , censura seis meses, a maioria deles abdicava
que não se poderia fazer a um ditador. antes desse termo. Se o termo fosse
A eloqüência do cônsul, porém, tudo mais longo, talvez se sentissem tenta-
arrebatou e ele mesmo, apesar de dos a prolongá-lo ainda mais, como
romano, preferindo sua glória à pátria, fizeram os decênviros com os termos
de um ano. Os ditadores só tinham o
4 6 5 Entre os poderes do senado, de que então
tempo de atender às necessidades que
dispunha Cícero, não se incluía o de suspender determinavam sua eleição; não o de
o direito de apelar para o povo, que cabia a
qualquer cidadão, quando condenado. Assim,
pensar em outros projetos.
a execução dos companheiros de Catilina
exorbitou da lei. Clódio propôs uma lei que 4 6 6
O que ele não poderia garantir-se se pro-
punia genericamente os autores de abusos pusesse um ditador, não ousando nomear a si
dessa ordem, e Cícero exilou-se antes de vê-la mesmo e não podendo ter certeza de que seu
votada. Outra lei, visando-o pessoalmente, colega o nomearia. (N. do A.)
condenou-o depois ao exílio. (N. de L. G. M.) 4 6 1
V. nota 461, supra. (N. de L. G. M.)
CAPÍTULO VII
Da censura
nos e, mais ainda, entre os lacedemô- sobre o que é e o que não é honesto, a
nios. Grécia não recorre de seu julgamento.
Tendo um homem ·de maus costu-
4 7 5 Os exemplos aqui citados vêm de Plutar-
mes apresentado uma boa proposta ao
co, nos Ditos Notáveis dos Lacedemônios. (N.
conselho de Esparta, os éforos, serri deL.G.M.) .
levar em consideração essa proposta, 4 7 6 Eles eram de outra ilha, que a delicadeza
fizeram com que um homem de bons de nossa língua proíbe nomear neste momen-
costumes a apresentasse 4 7 5 • Que to* . (N. do A.)
honra para um e que infâmia para o * Na cópia do Contrato dedicada a
d'Yvernois e que está na biblioteca de Gene-
outro, sem fazer elogio ou censura a bra, há a seguinte nota manuscrita: "Eles eram
qualquer dos dois! Alguns bêbados de de Quios [na grafia francesa: Chio] e não de
Samos 4 7 6 macularam o tribunal dos Samos. Mas, dado o assunto, jamais ousei
éforos; no dia seguinte, por edito públi- empregar essa palavra no texto. Creio, contu-
co, permitiu-se aos sâmios serem vi- do, ser tão ousado como qualquer outro. Mas
a ninguém se permite ser sujo ou grosseiro,
lãos. Um verdadeiro castigo teria sido seja qual for o caso. Os franceses puseram
menos severo do que semelhante impu- tanta decência em sua língua, que nela não se
nidade. Quando Esparta se pronuncia pode dizer a verdade". (N. de L. G. M.)
e APfruLo v111
Da religião civil 4 1 1
segunda década de nosso século Max Weber deus foram dados como adeptos, desde cedo,
analisaria mais amplamente o poder carismá- de um monoteísmo rigoroso e exclusivista. (N.
tico. (N. de L. G. M.) de L. G. M.)
DO CONTRATO SOCIAL 145
quais não se conhece outro exemplo tado deixasse de ser uno e determinou
antes do cristianismo 4 ª 4 • as divisões intestinas que jamais deixa-
Encontrando-se, pois, cada região li- ram de agitar os povos cristãos. Ora,
gada unicamente às leis do Estado que não podendo essa nova idéia de um
as prescrevia, absolutamente não havia reino do outro mundo penetrar na ca-
maneira de converter um povo senão beça dos pagãos, .eles sempre conside-
dominando-o, nem outros missionários raram os cristãos como verdadeiros
que não os conquistadores. Como a rebeldes que, por sob uma submissão
obrigação de mudar de culto era a lei hipócrita, só esperavam o momento
dos vencidos, necessário se fazia come- oportuno para se tornarem indepen-
çar por vencer antes de falar nisso. dentes e senhores, assim usurpando,
Longe de serem os homens a combater pela habilidade, a autoridade que fin-
pelos deuses, eram, como em Homero, giam respeitar em sua fraqueza. Tal a
os deuses que combatiam por eles; causa que determinou as persegui-
cada um pedia a vitória ao seu, e paga- ções 48 s.
va-a com novos altares. Os romanos, O que os pagãos temiam aconteceu
antes de tomarem um lugar, intimavam e, então, tudo mudou de aspecto. Os
os deuses a abandoná-lo. Quando dei- humildes cristãos mudaram de lingua-
xaram irritados os deuses dos tarenti- gem e logo se viu esse pretenso reino
nos, fizeram-no por considerarem esses do outro mundo tornar·-se neste, sob
deuses submetidos aos seus e obriga- um chefe visível, o mais violento
dos a lhes prestar homenagem. Deixa- despotismo.
vam aos vencidos seus deuses, como No entanto, como sempre houve um
deixavam suas leis. Uma coroa ao Jú- príncipe e leis civis, resultou dessa
piter do Capitólio era o único tributo dupla posse um conflito perpétuo de
que freqüentemente lhes impunham. jurisdição que tornou toda a boa poli-
Tendo, por fim, os romanos estendi- tia impossível nos Estados cristãos e
do, com seu império, o seu culto e seus jamais se conseguiu saber se era ao se-
deuses, e tendo freqüentemente eles nhor ou ao padre que se estava obri-
mesmos adotado os dos vencidos, con- gado a obedecer.
cedendo a uns e a outros o direito de Inúmeros povos, no entanto, mesmo
pó/is, · os povos desse vasto império na Europa ou nas suas vizinhanças,
passaram sem sentir a contar com uma quiseram conservar ou restabelecer o
multidão de deuses e de cultos, quase antigo sistema, sem obter sucesso. O
que os mesmos em todos os lugares, e, espírito do cristianismo tomou conta
assim, o paganismo foi finalmente de tudo. O culto sagrado sempre per-
conhecido no mundo como uma única maneceu ou tornou-se independente do
e mesma religião. soberano e sem ligação necessária com
Foi nessas circunstâncias que Jesus o corpo do Estado. Maomé teve idéias
veio estabelecer na terra um reino espi- muito boas, ligou muito bem seu siste-
ritual; separando, de tal sorte, o siste- ma político e, enquanto a forma de seu
ma teológico do político, fez que o Es- Governo persistiu entre os califas seus
4 a 4 É da melhor evidência que a guerra dos 4 8 5
Depois de levantar muitas hipóteses sobre
fócios, chamada guerra sagrada, não foi uma as causas das perseguições, Piganiol conclui:
guerra de religião. Seu objetivo estava em "De qualquer forma, a opinião pública odiava
punir sacrilégios e não em submeter os incréus. os cristãos, sobretudo por considerá-los
(N. do A.) ateus". (N. de L. G. M.)
146 ROUSSEAU
sucessores, esse Governo foi · exata- Mas ele devera compreender que o
mente uno e, por isso, bom. Mas os espírito dominador do cristianismo era
árabes, tomando-se florescentes, letra- incompatível com seu sistema ·e que o
dos, educados, fracos e covardes, interesse do padre sempre seria mais
foram subjugados por bárbaros e, forte do que o do Estado. Não foi tanto
então, recomeçou a divisão entre os o que há de horrível e de falso na sua
dois poderes. Ainda que ela seja menos política, senão o que nela existe de
aparente entre os maometanos do que justo e verdadeiro, que a tornou odio-
entre os cristãos, existe entre aqueles, sa 4 88.
sobretudo na seita de Ali, e há Esta- Acho que desse ponto de vista
dos, como a Pérsia, .em que não deixa desenvolvendo os fatos históricos, re-
de fazer-se sentir. futar-se-ia com facilidade os s~nti
Entre nós, os reis da Inglaterra mentos.opostos de Bayle e de Warbur-
tornaram-se chefes da Igreja e a ton, um dos quais pretende não ser
mesma coisa fizeram os czares; com nenhuma religião útil ao corpo político
esse título, porém, tornaram-se menos e o outro afirma, pelo contrário, que o
seus senhores do que seus ministros, cristianismo é o seu mais forte apoio.
adquiriram menos o direito de mudá-la Ao primeiro, poder-se-ia provar que ja-
do ·que o poder de mantê-la, não são mais se fundou qualquer Estado cuja
nela legisladores, mas somente prínci- base não fosse a religião e, ao segundo,
pes. Em todo lugar em que o clero que a lei cristã, no fundo, é mais preju-
forma um corpo 4 8 6 é, na sua alçada, dicial do que útil à firme constituição
senhor e legislador; há, pois, na Ingla- dp Estado. Para melhor fazer-me en-
terra e na Rússia, do mesmo modo tender, basta dar um pouco de precisão
como alhures, dois poderes e dois às idéias, muito vagas, sobre religião,
soberanos 4 8 7 • relativas ao meu assunto.
De todos os autores cristãos, o filó-
sofo Hobbes é o único que viu muito A religião considerada em relação à
bem o mal e o remédio, que ousou pro- sociedade, que é geral ou particular,
por a reunião das duas cabeças da pode também dividir-se em duas espé-
águia, e reconduzir-se tudo à unidade cies, a saber: a religião do homem e a
política, sem a qual jamais serão bem do cidadão. A primeira, sem templos,
constituídos o Estado e o Governo. altares e ritos, limitada ao culto pura-
mente interior do Deus . supremo e aos
4
e s Deve-se notar que não são tanto as deveres eternos da moral, é a religião
assembléias formais, como as de França, pura e simples do Evangelho, o verda-
quanto a comunhão das igrejas que faz do deiro teísmo e aquilo que pode ser cha-
clero um corpo. A comunhão e a excomunhão mado de direito divino natural. A
são o pacto social do clero, pacto com o qual
será sémpre o senhor dos povos e dos reis. outra, inscrita num só país, dá-lhe seus
Todos os padres, que comungam juntos, são deuses, seus padroeiros próprios e tute-
concidadãos, ainda que estejam nos dois extre- lares, tem seus dogmas, seus ritos, seu
mos do mundo. Essa invenção é uma obra-
prima de política. Não havia nada de seme-
lhante entre os padres pagãos, mas também 4 8 8
Vede, entre outras, numa carta de Grotius
eles jamais organizaram um corpo de clérigos. a seu irmão, datada de 11 de abril de 1643, o
(N. do A.) que esse sábio homem aprova e o que censura
4 8 7
Dois soberanos, porque só o sôberano no livro De Cive. É verdade que, levado pela
tem poder de legislar e aí a legislação da maté- indulgência, parece perdoar ao autor o bem
ria religiosa vem do clero e não do monarca. tendo em consideração o mal; mas nem todo
(N. de L. G. M.) mundo é tão clemente. (N. do A.)
DO CONTRATO SOCIAL 147
culto exterior prescrito por lei. Afora a devotá-lo à cólera dos deuses: Sacer
única nação que a segue, todos os de- esto 492 •
mais para ela são infiéis estrangeiros e É, porém, má, pois, fundando-se no
bárbaros; ela só leva os deveres e os erro e na mentira, engana os homens,
direitos do homem até onde vão seus torna-os crédulos, supersticiosos, e
altares. Foram assim as religiões dos submerge o verdadeiro culto da Divin-
primeiros povos, às quais se pode dar o dade num cerimonial vão. Ainda é má
nome de direito divino civil ou positi- quando, tornando-se exclusiva e tirâni-
vo. ca, transforma um povo em sangui-
Há uma terceira espécie de religião, nário e intolerante, de forma que ele só
mais estranha, que, dando ao homem respira a atmosfera do assassínio e do
duas legislações, dois chefes, duas pá- massacre, e crê estar praticando uma
trias, o submete a deveres contradi- ação salutar ao matar todos aqueles
tórios e o impede de poder ao mesmo que não admitem seus deuses. Isso põe
tempo ser devoto e cidadãos. Tal é a tal povo num estado natural de guerra
religião dos lamas 4 8 9 , a dos japoneses com todos os demais, situação essa
e a do cristianismo romano. Pode~s muito prejudicial à sua própria segu-
chamar, a esta, religião do padre. Dela rança.
resulta uma espécie de direito misto e Resta, pois, a religião do homem ou
insociável 4 9 0 que não tem nome. o cristianismo, não o cristianismo de
Se considerarmos politicamente hoje, mas o do Evangelho, que é
essas três espécies de religião, veremos completamente diverso. Pois nessa re-
que todas elas têm seus defeitos. A ter- ligião santa, sublime, verdadeira, os
ceira é tão evidentemente má, que se homens, filhos do mesmo Deus, reco-
perde tempo no divertimento de de- nhecem-se todos como irmãos, e a
monstrá-lo. Tudo o que rompe a unida- sociedade que os une não se dissolve
de social, nada vale; todas as institui- nem com a morte.
ções que põem o homem em Mas essa religião, não tendo nenhu-
contradição consigo mesmo, nada ma relação particular com o corpo
valem. político 4 9 3 , deixa as leis unicamente
com a força que tiram de si mesmas,
A segunda é boa por unir o culto di- sem acrescentar-lhes qualquer outra, e,
vino ao amor das leis e porque, fazen- desse modo, fica sem efeito um dos
do da pátria objeto da adoração dos grandes elos da sociedade particu-
cidadãos, lhes ensina que servir o Esta- lar 4 9 4 • Mais ainda, longe de ligar os
do é servir o deus tutelar. É uma espé- corações dos cidadãos ao Estado,
cie de teocracia, na qual não se deve de
modo algum ter outro pontífice que
não o príncipe, nem outros padres
4 92
Declarando-se "sagrado", com esta fór-
mula, qualquer indivíduo, ele estava excomun-
além dos magistrados 4 9 1 • Nesse caso, gado, separado dos homens e entregue aos
morrer pela pátria é alcançar o martí- deuses. (N. de L. G. M.)
rio, violar as leis é ser ímpio, e subme- 4 9 3
Seu campo de ação é toda a humanidade
ter um culpado à execração pública é e, pois, permanece acima das sociedades parti-
culares. (N. de L. G. M.)
4 9 4
Que será a profunda e constante cons-
4 8 9
Sacerdotes do budismo tibetano. (N. de L. ciência, em cada cidadão, da vontade geral, do
G.M.) "eu comu.m" da coletividade. Aqui Rousseau
4 9o Ou seja: anti-social. (N. de L. G. M.) aponta uma função política que o elemento
491 Como nas cidades-estados da antigui- religioso pode preencher. (V. nota 463, supra.)
dade. (N. de L. G. M.) (N. de L. G. M.)
148 ROUSSEAU
desprende-os, como de todas as coisas seria preciso que todos os cidadãos,
da terra. Não conheço nada mais con- sem exceção, fossem igualmente bons
trário ao espírito social. cristãos, mas, se, por infelicidade,
Dizem que um povo de verdadeiros encontrar-se entre ele um único ambi-
cristãos formaria a sociedade mais per- cioso, um único hipócrita - por
feita que se poderia imaginar. Contra exemplo: um Catilina, um Cromwell
essa suposição só vejo uma grande - , certamente esse único faria tábua
dificuldade - uma sociedade de ver- rasa de seus piedosos compatriotas. A
dadeiros cristãos não mais seria uma caridade cristã não permite facilmente
sociedade de homens 4 9 5 • que se pense mal do próximo. Desde
Afirmo até que essa suposta socie- que ele, por qualquer artimanha,
dade, com toda a sua perfeição, não aprenda a arte de impor-se e de apode-
seria nem a mais forte, nem a mais rar-se de uma parte da autoridade pú-
duradoura, pois, à força de ser perfeita, blica, será um homem constituído em
faltar-lhe-ia coesão, estando seu vício dignidade - Deus quer. que o respei-
destruidor na sua própria perfeição. tem. Logo mais, ei-lo uma potência -
Cada um desempenharia seu dever, Deus quer que ele seja obedecido. O
o povo estaria submetido às leis, os depositário desse poder abusa? - é o
chefes seriam justos e ponderados, os açoite com o qual Deus pune seus
magistrados íntegros e incorruptíveis, filhos. Toma-se como obrigação de
os soldados desprezariam a morte, não consciência expulsar o usurpador: ter-
existiria nem vaidade, nem luxo. Tudo se-á de perturbar a calma pública, usar
isso está muito bem, mas passemos
de violência, verter sangue - tudo
adiante.
O cristianismo é uma religião intei- isso não condiz com a doçura do cris-
ramente espiritual, preocupada unica- tão e, depois, que importa ser livre ou.
mente com as coisas do céu, não escravo neste vale de misérias? O
pertencendo a pátria do cristão a este essencial é alcançar o paraíso, e a
mundo. É verdade que ele cumpre o resignação nãopassa de mais um meio
seu dever, mas o faz com uma indife- para isso.
rença profunda quanto ao bom ou mau Sobrevém uma guerra estrangeira,
sucesso de seus trabalhos 4 9 6 • Con- os cidadãos marcham sem dificuldade
tanto que nada tenha a censurar em si para o combate, nenhum deles pensa
mesmo, pouco lhe importa se tudo vai em fugir; cumprem seu dever, mas sem
bem ou mal cá embaixo. Se o Estado paixão pela vitória; melhor sabem
está florescente, dificilmente ousa mor~ do que vencer. Que importa
gozar da felicidade pública, teme orgu- sejam vencidos ou vencedores? A
lhar-se da glória de seu país; se o Esta- Providência não sabe, melhor do que
do perece, bendiz a mão de Deus que eles, o que lhes convém? Pode-se ima-
~a ~bre seu povo. ginar o partido que um inimigo orgll-
Para que fosse pacífica a sociedade lhoso, impetuoso e apaixonado pode
e para que se mantivesse a harmonia, tirar desse estoicismo ! Colocai-lhes à
frente esses povos generosos a quem
4 9 5
Porque seu interesse comum se coloca no devora o amor ardente da glória e da
outro mundo e não neste, onde o Estado tem pátria, suponde vossa república cristã
seus alicerces e encontra sua finalidade. (N. de
L. G.M.) à frente de Esparta e de Roma: os cris-
4 9 6
Porque não tem por ele um interesse real, tãos piedosos serão dominados, esma-
particular ou geral. (N. de L. G. M.) gados, destruídos, antes de conse-
DO CONTRATO SOCIAL 149
e não pode mais existir qualquer reli- é pernicioso. O motivo pelo qual se diz
gião nacional exclusiva, devem-se tole- ter-se convertido Henrique IV à reli-
rar todas aquelas que toleram as gião romana 5 0 5 deveria fazer com que
demais, contanto que seus dogmas em a deixassem todos os homens honestos
e, sobretudo, todo príncipe que sou-
nada contrariem os deveres do cida- besse raciocinar.
dão. Mas, quem quer que diga: Fora
da Igreja não há salvação - deve ser 5 0 5 Diz-se que os ministros protestantes sus-
excluído do Estado a menos que o Es- tentaram que Henrique IV poderia salvar a
tado seja a Igreja, e o príncipe, o pontí- alma em qualquer religião, enquanto os padres
católicos afirmavam que só a sua fé teria tal
fice. Tal dogma só serve para um efeito. E o rei decidiu-se segundo o que consi-
Governo teocrático; em qualquer outro derou de maior prudência ... (N. de L. G. M.)
e APfruLo 1x
Conclusão
1. e ircunstâncias da composição
Este Ensaio, que só foi publicado depois da morte de Rousseau, inclui-se,
presumivelmente, entre as obras de seu período inicial de produção. Indicam-no
o estilo, a própria organização da matéria e, sobretudo, os assuntos de que trata.
Não obstante, os especialistas ainda não conseguiram indicar uma datá provável
de redação que seja unanimemente aceita.
Vaughan afirma que, ao menos em parte, o Ensaio já estava escrito antes,
com certeza, do Discurso sobre a Desigualdade e, talvez, até do primeiro Discur-
so. Toma, como base para essa inferência, o fato de surgirem no texto elementos
que pertencem aos estudos de música originalmente destinados à Enciclopédia.
P. M. Masson acredita que o Ensaio não passa de uma das muitas e extensas
notas adicionadas, como apêndices, ao segundo Discurso; que, contudo, acabou
por assumir proporções e caráter de texto autônomo. Petitain, que iniciou as pes-
quisas mais aprofundadas sobre a cronologia da produção de Rousseau, data o
Ensaio de 1759, porém não justifica tal indicação.
Podemos tomar a data indicada por Petitain como a máxima provável, pois
já no ano seguinte estava escrito o Emílio, que se editaria simultaneamente em
Amsterdam e Paris, no ano de 1762. A liás, uma nota, que figura nas primeiras
edições do Emílio, faz referências a esse texto, chamando-o de Ensaio sobre o
Princípio da Melodia, surgindo o título com que hoje o conhecemos na mesma
nota, porém em edições posteriores. Dificilmente, entretanto, podemosfzxar com
igual segurança uma data provável mínima. As preocupações musicais de Rous-
seau duraram longo período de sua vida, vindo a predominar em sua vida intelec-
tual por três vezes: deixando de lado as singularidades da juventude, podemos
contar, primeiro, o episódio da nova notação musical, que se resume na Disserta-
ção sobre a Música Moderna e que termina com a viagem a Veneza; depois há
o capítulo em que Rousseau parece destinado a representar, entre os enciclope-
distas, o papel de especialista em assuntos musicais (1143-17 48) e durante o qual
se dá o primeiro efugaz desentendimento com Voltaire; afinal, vêm os dois anos
(1753-1754) que antecedem a concepção do segundo Discurso (e são marcados
pela famosa querela entre os adeptos da música francesa e os da italiana) para
alcançarem o auge com a publicação rumorosa da Carta sobre a Música France-
sa, que teve duas edições no ano de 1753. Caberá escolher um desses períodos
para aí localizar a redação do Ensaio. A versão de Vaughan parece bastante
verossímil, mas para adotá-la precisaríamos da certeza, que nos falta, de ter o
Ensaio saído dos escritos destinados à Enciclopédia, porquanto a hipótese con-
156 INTRODUÇÃO
3. Resenha analítica
Distinguem-se no Ensaio três partes bem caracterizadas e correspondendo a
três interesses bem definidos: a) a origem da linguagem - estudo da necessidade
de comunicação no homem natural; b) diferenciação das línguas - estudo da
evolução dos grupos humanos e dos meios de expressão,· c) estudo particular das
questões musicais relacionadas com a evolução lingiiística e social. Quanto aó
último capítulo, cuja importância desejamos sublinhar expressamente, parece
constituir caso à parte, embora logicamente ligado às duas partes iniciais, como
se mostrará mais adiante.
A. ORIGEM DA LINGUAGEM
É a diferenciação das línguas que dá interesse e conteúdo à pesquisa de sua
origem. Eis por que o Ensaio se inicia (cap. I) assinalando que a linguagem dife-
rencia o homem entre os seres vivos, enquanto os homens entre si se distinguem
pela variedade das línguas - "não se sabe de onde é um homem antes de ter
falado ': Por que causas semelhantes terão levado os homens a resultados tão
· diferentes? Rousseau começa por traçar uma hipótese explicativa única para
demonstrar como todos os homens, por sua condição, precisaram servir-se da
palavra.
A necessidade de comunicar-se com o semelhante pode ser satisfeita tanto
pelo movient~ (gesto) quanto pela voz (palavra), mas. a comunicação sonora
não se impõe forçosàmente. Há signos mudos (símbolos desligados de palavras)
'poderosamente eloqiientes. "Assim se fala aos olhos muito melhor do que aos
ouvidos': ao menos quando se trata de exprimir sentimentos simples. Por isso,
pode-se imaginar que "se sempre conhecêssemos tão-só necessidades físicas bem
poderíamos jamais ter falado ".
Não falamos porque sejamos mais aptos para isso do que os outros animais,
nem tampouco apenas para exprimir as mesmas necessidades físicas que são co-
muns a eles e a nós. Se, em maior ou menor proporção, todos os seres vivos se
comunicam, "a língua de convenção só pertence ao homem, e es~a é a razão por
INTRODUÇÃO 159
que o homem progride, seja para o bem ou para o mal, e por que os animais não
o conseguem ".
Distingamos, pois, no homem considerado em estado natural, as necessi-
dades que "ditaram os primeiros gestos" das paixões que "arrancaram as primei-
ras vozes" (cap. II). Não se creia que o desenvolvimento das línguas seja racio-
na/, geométrico, porquanto de sua essência resulta o serem vivas e figuradas.
"Não se começou raciocinando, mas sentindo"; enquanto as necessidadesfisicas
opunham os homens, as necessidades morais, as paixões, aproximavam-nos, sus-
citando a linguagem que, f6rçosamente, seria .figurada (cap. III). Supondo-o
assim (cap. IV), a primeira língua se comporia de combinações de sons simples
que, além do arranjo sonoro, ainda conheceriam a diversificação do tempo e da
qualidade, criando expressões capazes de proteger as paixões que se quer comu-
nicar. Poucas consoantes, bastantes apenas para evitar os hiatos, imensafartura
de sons e acentos, largo recurso à onomatopéiafariam dessa língua inicial algo
mais próximo da música do que da linguagem de que nos valemos em nossa con-
dição atual. Eis por que o Crátilo platônico, bem compreendido, está longe de ser
ridículo.
Nessa hipótese evolutiva, pode-se avançar ainda um passo, pois parece
natural o progresso que irá multiplicando as consoantes, em prejuízo das infle-
xões, numa transição da língua passional à racional (cap. V). Rousseau não se
contenta, contudo, com a explicação hipotética - em tudo conforme com seu
método genético. No caso particular das línguas, pode oferecer-nos uma compro-
vação objetiva, válida ao menos para um largo período do desenvolvimento das
línguas e que encontra, na escrita, documentos de importância singular.
À escrita ficou realmente reservada a função de registrar boa parte da evo-
lução da língua, sendo três as principais maneiras de escrever que se conhecem:
a) representar, não os sons, mas os próprios objetos, seja diretamente (anti-
gos mexicanos), seja alegoricamente (antigos egípcios);
· b) representar as palavras por caracteres convencionais (chineses);
e) representar as partes elementares das palavras, sejam vogais, sejam arti-
culadas, para depois combiná-las em vocábulos.
"Esses três modos de escrever correspondem, exatamente, aos três diferen-
tes estados em que se pode considerar os homens reunidos em nações.": povos
selvagens, povos bárbaros e povos policiados. Não se creia, contudo, que a arte
de escrever dependa da arte de falar - sua evo/uçã9 prende-se a outras necsi ~
dades que são, sobretudo, de precisão e clareza. Inevitavelmente, pois•. a escrita
altera a língua, tirando-a do domínio da paixão desejosa de exprimir-se para
entregá-la à força e à clareza da razão. Eis por que só quando os gregos já escre-
viam suas poesias é que puderam sentir todo o encanto da composição pura-
mente verbal dos poemas homéricos (cap. VI).
Conseqüentemente, nas línguas modernas procura-se, em pura perda, qual-
quer acento real, isto é, musical, pois nelas só se encontra o acento prosódico e
o vocal, acrescentando-se, ainda, o acento gráfico que, malgrado freqüentes
confusões, nada tem de comum com aqueles (cap. VII). A acentuação surge exa-
tamente quando desaparecem os acentos - as velhas línguas, faladas por nós,
não' seriam entendidas pelos que delas se serviram correntemente. Por outro lado,
. nenhuma música .há nas línguas modernas e, quando falamos de sua musicali-
160 INTRODUÇÃO
d ade, apenas .indicamos sua maior ou menor aptidão para serem aproveitadas na
composição musical. Tal é o caso até mesmo do italiano.
ao prazer e, pois, se fez de acentos sedutores até que novas alterações levassem
. o homem a só pensar em si mesmo.
Já o Norte é região de vida dura, que seleciona os homens mais fortes - ou
seja: as vozes mais ásperas - e lhes impõe o dever de uma constante atividade
- isto é, de expressões secas e diretas. A língua nasce de uma constante carência
e não do amor e da ternura. É a linguagem "da cólera e das ameaças, e essas
vozes sempre se acompanham de articulações fortes, que as tornam ásperas e
estridentes': Assim se marcam "as causasfisicas mais gerais da diferença carac-
terística das línguas primitivas", que hoje ainda caracterizam "as línguas moder-
nas, centenas de ~ezs misturadas e refundidas':
C. A QUESTÃODAMÚSICA
D. O CAPÍTULO FINAL
NO QUAL SE FALA DA
MELODIA E DA IMITAÇÃO MUSICAL
1 Nas primeiras edições do Erru1io, Rousseau, ao referir-se a este texto em nota que figura no Livro IV, cha-
mava-o de Ensaio sobre o Princípio da Melodia. O título atual surge na mesma nota, porém nas edições
subsequentes. (N. de L. G. M.)
CAPITULO 1
a morte de sua mulher, não escreveu às impressiona por meio de golpes redo-
tribos de Israel; dividiu-lhe o corpo em brados, proporciona-vos emoção bem
doze pedaços que enviou a elas. A hor- diversa da causada pela presença do
rível visão, empunharam rapidamente próprio objeto, diante do qual, com um
as armas, gritando todos a uma só voz: só golpe de vista, tudo já vistes. Supon-
Não! nunca tal coisa aconteceu em de uma situação de dor perfeitamente
Israel, desde o dia em que nossos pais conhecida - vendo a pessoa aflita,
saíram do Egito até hoje. E a tribo de dificilmente vos comovereis até o pran-
Benjamim foi exterminada 7 • to; dai-lhe, porém, tempo para dizer-
Em nossos dias, o assunto, transfor- vos tudo que sente e logo vos desman-
mado em arrazoados, em discussões, chareis em lágrimas. Assim as cenas
até mesmo em brincadeiras, arrastar- de tragédia conseguem efeito 9 • Somen-
se-ia, e permaneceria impune o mais te a pantomima, sem o discurso,
tremendo dos crimes. O rei Saul, vol- deixar-vos-á quase tranqüilo e o dis-
tando da lavoura, também despedaçou curso, sem "O gesto, arrancar-vos-á lá-
os bois de seu arado e serviu-se de um grimas. As paixões possuem seus ges-
sinal semelhante para fazer Israel tos, mas também suas inflexões, e
socorrer a cidade de J abés. Os profetas essas inflexões que nos fazem tremer,
dos judeus, os legisladores dos gregos, essas inflexões a cuja voz não se pode
oferecendo freqüentemente ao povo fugir, penetram por seu intermédio até
objetos visíveis, falavam-lhe melhor o fundo do coração, imp~ndo-lhe,
com esses objetos do que o teriam feito mesmo que não o queiramos, os movi-
com longos discursos, e o modo pelo mentos que as despertam e fazendo-
qual Ateneu conta como o orador nos sentir o que ouvimos. Concluamos
Hipérides fez absolver a cortesã Fri- que os sinais visíveis tornam a imita-
néia, sem alegar em sua defesa uma ção mais exata e que o interesse me-
única palavra, constitui ainda uma lhor se excita pelos sons 1 0 •
eloqüência muda, cujo efeito, em todos Inclino-me, por isso, a pensar que,
os tempos, não é raro 8 • se sempre conhecêssemos tão-só neces-
Assim se fala aos olhos muito me-
lhor do que aos ouvidos. Não há uma 9 Em outro trecho, expliquei por que as infel i-
só pessoa que não reconheça a verdade cidades fingidas nos tocam bem mais do que
do juízo de Horácio a tal respeito. as verdadeiras. Uma pessoa pode soluçar
ouvindo uma tragédia e nunca, durante toda a
Compreende-se mesmo que os discur- Vida, sentir piedade por qualquer infeliz. O tea-
sos mais eloqüentes são aqueles em tro se presta admiravelmente para enobrecer
que se introduz o maior número de nosso amor-próprio com todas as virtudes que
imagens e os sons nunca possuem_ não possuímos. (N. do A.)
maior energia do que quando fazem o
10 Aqui se esboça uma teoria psicológica da
comunicação e, -aparentemente, uma estética
efeito das cores. baseada na imitação, cabendo, por isso
Temos coisa totalmente diversa, mesmo, lembrar que no pensamento de Rous-
contudo, quando se trata de comover o seau as paixões constituem a mais _direta
coração e inflamar as paixões. A expressão natural do homem e, corresponden-
temente, as inflexões emocionais importam
impressao sucessiva do discurso; que mais do que a significação racional das pala-
vras. Assim, o caráter imitativo da arte acaba
7 Restaram somente seiscentos homens, sem por passar para segundo plano, prevalecendo a
mulheres e filhos. (N. do A.) comunicação emotiva e, portanto, ganhando a
8 Apresentando-a nua aos juízes. (N. de L. G. palavra falada um valor que não possuem os
M.) símbolos puramente visuais. (N. de L. G. M.)
168 ROUSSEAU
sidades tisicas, bem poderíamos jamais que dizem, vêem-se forçados a ensi-
ter falado, e entender-nos-íamos perfei- nar-lhes, antes, uma outra língua, não
tamente apenas pela linguagem dos menos complicada, por meio da qual
gestos 11 ~ Poderíamos ter estabelecido possam fazer com que entendam aque-
_sociedades, pouco diversas do que são la.
hoje, ou que alcançassem até melhor o Chardin 1 4 conta que, nas índias, os
seu objetivo. Teríamos podido instituir mensageiros, um segurando a mão do
leis, escolher chefes, inventar artes, outro e modificando as pressões de um
estabelecer o comércio e, numa pala- modo que ninguém pode perceber, tra-
vra, fazer quase tantas coisas quantas tam assim, publicamente mas em se-
. fazemos com o auxílio da palavra. A gredo, de todos os negócios sem dizer
língua epistolar dos ''salames" 12 uma só palavra. Suponde esses mensa-
transmite, sem temor dos ciumentos, geiros cegos, surdos e mudos - não se
os segredos da galantaria oriental para · entenderiam menos bem, mostrando
o interior dos haréns mais bem guarda- tal fato que, dos dois sentidos pelos
dos. Os mudos do sultão se entendem quais somos ativos, um só bastaria
para formar-nos uma linguagem.
•entre si _e compreendem por sinais tudo Parece, ainda pelas mesmas obser-
o que se lhes diz, tão bem quanto se vações, que a invenção da arte de
poderia dizer-lhes por meio do discur-
comunicar nossas idéias depende
so. O Sr. Pereyra 1 3 e todos aqueles menos dos órgãos que nos servem para
que, como ele, ensinam os mudos não tal comunicação do que de uma facul-
somente a falar mas também a saber o dade própria do homem, que o faz
1 1 Desenvolvendo as afirmações anteriores empregar seus órgãos com esse fim e
(v. nota n.º 3, supra) chegamos agora à convic- · que, caso lhe faltassem, o fariam
ção de que as simples necessidades físicas, isto empregar outros órgãos com o mesmo
é, individuais, dispensariam a palavra, que, fim. Dai ao homem uma organização
pois, como se dizia no início do Ensaio, tem
sua origem nas necessidades mais complexas
tão grosseira quanto possais imaginar:
que resultam do convívio com os semelhantes indubitavelmente, adquirirá menos
- defrontamos uma convenção soeial. O tre- idéias, mas, desde que haja entre ele e
cho é, contudo, complexo e de difícil interpre- seus semelhantes qualquer meio de
tação, pois nele se admite que o homem natu- comunicação pelo qual um possa agir
ral viva em grupo são, porém,
agrupamentos "naturais", resultantes diretos e o outro sentir, acabarão afinal por
dos impulsos biológicos, algo mais complexos, comunicar todas as idéias que pos-
porém da mesma natureza dos grupos animais. suem 1 5 •
Não obstante, nesta passagem, Rousseau enca-
rece o valor da simbólica em si, distinguindo-a 1 4
Trata-se do mesmo Chardin, autor das
do instrumento de simbÕ~zação .. Viagens e especialmente da Viagem à Pérsia,
(N:. de L. G. M.) que já conhecemos de citações em outros tex-
1 2 Os ••salames" são multidões de coisas as tos (v ., por ex., nota j ao Discurso sobre a
mais comuns, como uma lar.anja, uma fita, um . Desigualdade). Convém registrar que no Di-
pedaço de carvão, etc., cujo envio possui um cionário de Música também surgem fartas
sentido conhecido de todos os amorosos nas referências a essa mesma fonte, que assim se
regiões onde se usa tal língua. (N. do A.) torna um ponto de reparo para as hipóteses
13 Em 1760, o espanhol Jacob Rodríguez
sobre a data em que se escreveu este Ensaio.
Pereyra foi chamado a Paris, e aí passou a (N. de L. G. M.)
viver como pensionista real. Impressionado 1 5 Concluindo anteriores desenvolvimentos,
com sua atividade reeducativa, Buffon lou- aqui se rejeita em definitivo qualquer explica·-
vou-o no capítulo da História Natural do ção meramente fisiológica da comunicação
Homem dedicado ao sentido da audição. (N. pela linguagem. Assim se afirma a origem so·-
de L. G. M.) cial da linguagem, tal como hoje a aceitam a
ENSAIO SOBRE A ORIGEM DAS LÍNGUAS .
CAPITULO II
De como a primeira invenção das palavras não
vem das necessidades, mas das paixões
Pode-se, pois, crer que as necessi- Assim devia ser. Não se começou
dades ditam os primeiros gestos e que raciocinando, mas sentindo. Pretende-
as paixões arrancaram as primeiras se que os homens inventaram a palavra ·
vozes. Seguindo a trajetória dos fatos para exprimir suas necessidades; tal
com base nessas distinções, seria tal- opinião parece-me insustentável. O
vez preciso raciocinar sobre a origem efeito natural das primeiras necessi-
das línguas de um modo totalmente dades 1 7 consistiu em separar os ho-
diverso do que se fez até hoje. O gênio mens e não em aproximá-los 1 8 • Era
das línguas orientais, as mais antigas preciso que assim acontecesse para
que conhecemos, desmente por com- que a espécie acabasse por esparra-
pleto a marcha didática que se imagina mar-se e a terra se povoasse com rapi-
para a sua composição. Essas línguas dez, pois sem isso o gênero humano ·
nada possuem de metódico e racioci- ter-se-ia amontoado num canto do
nado; são vivas e figuradas. Apresen- mundo e todo o resto ficaria deserto.
tam-nos a linguagem dos primeiros ho- Daí se conclui, por evidência, não se
mens como línguas de geômetras e veri- dever a origem das línguas às primei-
ficamos que são línguas de poetas 1 8 •
,- 7 Mais exatamente: das necessidades físicas
1 • Não se deve tomar esta afirmação - tão instintivas, como a seguir ficará claro. (N. de
admiravelmente formulada - como uma L. G. M.)
1 a Há, aqui, uma clara ressonância de Hob-
expressão do . alegado anti-racionalismo de
Rousseau, senão como uma inferência baseada bes, embora logo depois adquira inesperada
em dados históricos. (N. de L. G . M.) extensão finalista. (N. de L. G. M.)
170 ROUSSEAU
ras necessidades dos homens; seria vozes. Os frutos não fogem de nossas
absurdo que da causa que os separa mãos, é possível nutrir-se com eles sem
resultasse o meio que os une. Onde, falar; acossa-se em silêncio a presa que
pois, estará essa ori'gem? Nas necessi- se quer comer; mas, para emocionar
dades morais 1 9 , nas paixões. Todas as um jovem coração, para repelir um
paixões aproximam os homens, que a agressor injusto, a natureza impõe
necessidade de procurar viver força a sinais, gritos e queixumes. Eis as mais
separarem-se. Não é a fome ou a sede, antigas palavras inventadas, eis por
mas o amor, o ódio, a piedade, a cóle- que as primeiras línguas foram cantan-
ra, que lhes arrancaram as primeiras tes e apaixonadas antes de serem sim-
1 9 Tais necessidades já derivam de um conta- ples e metódicas. Tudo isso não será
to com os semelhantes, de um primeiro rudi- indistintamente verdadeiro, porém den-
mento de vida social. (N. de L. G. M.) tro em pouco voltarei ao assunto.
CAPITULO III
De como a primeira linguagem teve de ser
figurada
CAPITULO IV
Dos caracteres distintivos da primeira língua
e das mudanças que teve de sofrer
Os sons simples saem naturalmente guem, podem do mesmo modo multi-
da garganta, permanecendo a boca, plicar-se. Todas as notas musicais são
naturalmente, mais ou menos aberta. outros tantos acentos. É verdade que
Mas as modificações da língua e do só temos três ou quatro na palavra,
palato, que fazem a articulação, exi- porém os chineses possuem muitos
gem atenção e exercícios; não as mais e, em compensação, possuem_
conseguimos sem desejar fazê-las.
Todas as crianças têm necessidade de próprio Rousseau, encontramos o seguinte:
"A CCENT. Assim se chama, na acepção mais
aprendê-las e inúmeras não o conse- geral, qualquer modificação da voz falada na
guem com facilidade. Em todas as lín- duração e tom das sílabas e palavras de que se
guas, as exclamações mais vivas são compõe o discurso, o que demonstra uma rela-
inarticuladas. Os gritos e gemidos são ção exata entre os dois usos dos acentos e as
duas partes da melodia, a saber, o ritmo e a
vozes simples; os mudos, ou seja, os entonação. Accentus, diz o gramático, quasi
surdos, só lançam sons inarticulados. ad ·cantus [ . . . ] .
O Padre Lamy não concebe mesmo "Distinguem-se ·três desses gêneros [de acen-
que os homens pudessem jamais.inven- tos] no discurso simples: o acento gramatical,
tar outros sons, se Deus não os ensi- que inclui a regra dos acentos propriamente
nasse expressamente a falar. As articu- ditos, segundo os quais o som da sílaba é grave
ou agudo, e a da quantidade, .segundo a qual
lações são poucas, os sons são cada sílaba é breve ou longa, etc ... "
inúmeros e os acentos 2 0 , que os distin- O que nos traz de volta ao gramático brasi-
2 0 Adotamos, para traduzir a palavra accent,
leiro, quando diz:
sua correspondente mais próxima em portu- "Tem havido, no domínio prosódico, tradi--
guês: acento. O emprego do termo parece cional confusão entre quantidade, qualidade e
exato, a nos basearmos em Eduardo Carlos tonicidade. A tradição latina e a sutileza da
Pereira: "Acento (do latim accentus = canto) distinção entre a extensão, timbre e intensidade
é a modulação da voz humana, que se· reforça das vogais são a fonte constante de baralha-
e se enfraqúece sobre certas sílabas do vocábu- mento entre os gramáticos. A quantidade silá-
lo, dando-lhe maior ou menor sonoridade; do bica quase desapareceu no domínio romano.
que resulta a variedade, a harmonia, a beleza Entretanto, representou ela o papel proemi-
musical das palavras, elemento tão necessário nente nas línguas clássicas - o grego e o
como o próprio som. Há na palavra, disse Cí- latim. Nelas, era o acento tônico subordinado
cero, uma espécie de canto: est in dicendo à quantidade, ao passo que fenômeno inverso é
etiam quidam cantus ". O acento dos · gramá- o que se dá nas línguas neolatinas, nas quais ~
ticos latinos correspondia, em significação quantidade se subordina à tonicidade. Naque-
·etimológ~ca e uso, ao termo prosódia dos las línguas antigas, a quantidade, na expressão
gramáticos gregos [ ... ] . de Guardia, era a alma do acento tônico; hoje
"Por uma natural transladação de sentido, a a .tônica é o centro de gravidade do vocábulo ·
palavra acento designa também os sinais gráfi- neolatino". (Idem, § 80, observações.) .
cos, chamados acento agudo, grave e circun- Quanto ao plural da palavra, em sendo o caso,
flexo, com que indicamos certos valores fonéti- seguimos a indicação de Rousseau no citado
cos na deficiência de símbolos literais:'. Dicionário:
(Eduardo Carlos Pereira, Gramática Exposi- ·~ CCENS. Os poetas empregam freqüente-
tiva, Curso Superior, São Paulo, Companhia mente esta palavra nq plural para significar o
Editora Nacional, § 82, observações.) próprio canto e o fazem acompanhar ordina-
Ora, consultando o Dicionário de Música, do riamente por um epíteto, etc ... "(N. da T.)
172 ROUSSEAU
CAPITULO V
Da escrita
Quem quer que estude a história e o tes, e que as inflexões que desaparecem
progresso das línguas, verificará que, e as qualidades que se igualam são
quanto mais se tomam monótonas as substituídas por combinações gramati-
vozes, mais se multiplicam as consoan- cais e por novas articulações. Somente,
ENSAIQ_S.OBRE A ORIGEM DAS ÚNGUAS· 173
sam formar todas as palavras e todas Carta a Christophe de Beaumont, sabemos que
o método histórico de Rousseau admit~ na
falta de documentação precis~ as hipóteses
23 Cabe lembrar que, como é óbvfo, os dois interpretativas provadas apenas pela maior ou
exemplos dados não passavam, então, de menor capacidade de explicar coerente e veros-
meras suposições sem base objetiva. (N. de L. similmente a evolução dos fatos conhecidos.
_G.M.) -(N. de L. G. M.)
174 ROUSSEAU
c1encia de sua análise;-uns, como os uma tal escrita pode bastar a um povo
gregos, multiplicaram os caracteres de policiado prova-o o exemplo dos mexi-
seu alfabeto, e outros contentaram-se - canos,-que possuíam uma ainda menos
em variar o sentido e o som por meio cômoda.
de posições ou combinações diferentes. Comparando-se o alfabeto copta
Desse· modo parecem ser escritas as com o siríaco ou com o fenício,
inscrições das ruínas de Tchelminar, conclui-se, com facilidade, que um
das quais Chardin nos oferece écti- vem do outro. E não causaria espanto
pos2 5 • Não se distinguem neles senão que fosse este último o original, nem .
duas figuras ou caracteres 2 6 , porém de que, nesse ponto, o povo mais moder-
tamanhos diferentes e colocadas em no tivesse instruído o mais antigo.
vários sentidos. Essa língua desconhe- Também é certo que o alfabeto grego
cida e de uma antiguidade quase vem do fenício; compreende-se mesmo
espantosa, todavia, deveria ser, a seu que devesse vir. Não se sabe se Cadmo
tempo, bem formada, se a julgarmos ou qualquer outro o trouxe da Feníciâ,
pela perfeição das artes patenteada mas o certo é que os gregos não o
pela beleza dos caracteres e pelos foram procurar e que os próprios fenf-
monumentos admiráveis em que se cios o trouxeram, pois, dos povos da
acham tais inscrições 2 7 • Não sei por Ásia e da África, foram os primeiros e
que se fala tão pouco dessas ruínas quase os únicos 28 que comerciaram na
impressionantes. Quando li a sua des- Europa e chegaram à Grécia muito :
.crição por Chardin, pensei estar-me
transportando para um outro mundo. 2 7 "Essa escrita parece muito bela e nada tem
Parece-me que tudo isso leva à refle- de confusa ou bárbara. Dir-se-ia que as letras
xão apaixonada. foram douradas, pois hã muitas, sobretudo
maiúsculas, onde ainda· aparece o ouro e certa-
A arte de escrever não se liga à de mente constitui fato admirável e inconcebível
falar. Prende-se a necessidades de que o ar não tenha conseguido,-Ourante tantos
.outra natureza que, mais cedo ou mais séculos, apagar essa douração. Quanto ao
tarde, aparecem, de acordo com cir- mais, não constitui prodígio que tantos sábios
cunstâncias totalmente independentes do mundo nunca ~tenham conseguido com-
preender qualquer coisa dessa escrita, dado
da duração dos povos, e que jamais que de forma alguma se aproxima de nenhuma
poderiam ter surgido no seio de nações escrita que chegou até nossü .conhecimento,
muito antigas. Não se sabe por quanto enquanto todas as escritas atualmente conheci-
tempo a arte dos hieróglifos cónstituiu das, com exceção do chinês, possuem ·grande
afinidade entre si e parecem provir da mesma
talvez a única escrita dos e~pcios. Que fonte. ó que existe nesta de mais maravilhoso
é que os guebros, últimos remanescentes dos
2 5 - Embora éctipo, em sentido estrito, signifi- antigos persas, cuja religião conservam e per-
que a reprodução em relevo do cunho de moe- petuam, não só não conhecem melhor do que
das (e ectipografia, a tipografia em relevo), a nós esses caracteres como também seus carac-
pfilavra, no caso, é usada para indicar reprodu- teres não se assemelham a eles mais do que os
ção, por moldagem, de inscrições gravadas na nossos. Conclui-se daí que oü é um caráter de
pedra. (N. de L. G. M.) cabala, o que não é verossímil por ser comum
2 6 "Muitos se admiram", diz Chardin, "com
e natural ao edifício em todas as suas partes,
o fato de duas figuras poderem produzir tantas ou que não existe outra da mesma mão, ou que
letras, mas, quanto a mim, não ·vejo nisso mo:. é de uma tal antiguidade que quase não ousa-
tivo para tão grande espanto, desde que as le- ríamos dizer." Chardin, efetivamente, com esse
tras de riosso alfabeto, em número de vinte e trecho, faria presumir que, no tempo de Ciro e
três, se compõem apenas de duas linhas - a dos ,magos, essa escrita já estava esquecida e
reta a circular, isto é, com um C e um I for- tão pouco conhecida quant_o hoje. (N. do A .)
mam-se todas as letras que compõem nossas 2 8 Considero os cartagineses · fenícios, por
como lhe apraz. Menos preocupado taria esse defeito, seria a pontuação, se a tives-
sem deixado menos imperfeita. Por que, por
em ser claro, dá maior importância à exemplo, não possuímos o ponto vocativo? O
força; não é possível que uma língua ponto de interrogação que possuímos era
escrita guarde por·muito tempo a viva- muito menos necessário, pois, pelo menos na
cidade daquela que só é falada. Escre- nossa língua, tão-só pela construção já se sabe
vem-se as vozes e não os sons. Ora, quando se interroga ou não. Mas, como distin-
numa língua acentuada são os sons, os guir, na escrita, um homem que se nomeia de
um que se chama? Certamente constitui-se um
acentos, as inflexões de toda sorte que equívoco, que seria sanado pelo ponto vocati-
constituem a maior energia da lingua- vo. O mesmo equívoco se encontra na ironia,
gem, que tornam uma frase, fora daí quando o acento não afaz sentir. (N. do A.)
CAPITULO Vl
Se é provável que Homero soubesse escrever
Apesar do que se diz sobre a inven- mar que toda a Odisséia é um conjunto
ção do alfabeto grego, eu a considero de idiotices e de inépcias que uma ou
muito mais moderna do que se julga, e duas letras teriam reduzido a fumo,
é principalmente no caráter da língua enquanto que se pode tornar esse
que fundamento tal opinião. Muitas poema razoável e mesmo muito bem
vezes veio a meu espírito a dúvida não conduzido supondo-se que seus heróis
só de que Homero soubesse ler, mas tenham ignorado a escrita. Se a Ilíada
até de que no seu tempo se escrevesse. tivesse sido escrita seria muito menos
Sinto muito que tal dúvida tão formal- cantd~, os rapsodos menos procura-
mente seja desmentida pela história de dos e menos multiplicados. Nenhum
Belerofonte na Ilíada e; como tenho a outro poeta foi tão cantado, salvo
infelicidade de ser, como o Padre Har- Tasso em Veneza e, assim mesmo, só
douin, um pouco obstinado em meus pelos gondoleiros, que não são grandes
paradoxos, sentir-me-ia bastante tenta- leitores. Outro preconceito bastante
do, se fosse menos ignorante, a esten- enraizado concerne à quantidade de
der minhas dúvidas até sobre essa his- dialetos empregados por Homero. Os
tória e de acusá-la de ter sido, sem dialetos, distinguidos pela palavra,
muito exame, interpolada pelos compi- aproximam-se e confundem-se ria es-
ladores de Homero. Não somente crita; tudo, insensivelmente, se liga a
encontram-se, no resto da Ilíada, pou- Um modelo comum. Quanto mais uma
cos traços dessa arte, mas ouso afir- nação lê e se instrui, mais desaparecem
ENSAIO SOBRE A ORIGEM DAS LÍNGUAS 177
seus dialetos e, por fim, só permane- reunidos por escrito muito mais tarde e
cem como gíria no seio do povo, que lê com grande dificuldade. Foi quando
pouco e nunca escreve. começaram a abundar na Grécia os li-
Ora, sendo esses dois poemas poste- vros e as poesias escritas que se sentiu,
riores ao sítio de Tróia, não é absoluta- por comparação, todo o encanto da de
mente certo que os gregos, que realiza- Homero. Os outros poetas escreviam,
ram o sítio, conhecessem a escrita e só Homero tinha cantado, e só se dei-
que o poeta que o cantou tivesse ciên- xou de ouvir com encantamento esses
cia dela. Esses poemas por muito cantos divinos quando a Europa se en-
tempo permaneceram inscritos unica- cheu de bárbaros que se meteram a jul-
, mente na memória dos homens; foram gar o que não podiam sentir.
CAPITULO VII
Da prosódia moderna
gua, do palato, que determinam a pelo mais a que se refere, vê-se que o
diversidade das vozes; nenhum pelas Sr. Duelos não reconhece qualquer
modificações da glote, que é o que acento musical em nossa língua, mas
determina a diversidade de sons. unicamente o acento prosódico e o
Assim, quando o nosso acento circun- vocal. Acrescenta-se-lhe um acento
flexo não é uma voz simples, é uma ortográfico que em nada influencia a
longa, ou então nada é. Vejamos, voz, o som ou a quantidade, mas que
agora, o que acontecia entre os gregos. às vezes indica uma letra suprimida,
Dionísio de H a/icarnasso diz que a como o circunflexo, e, outras vezes,
elevação do tom no acento agudo e o fixa o sentido equívoco de um monos-
abaixamento no grave formavam uma sílabo, como o pretenso acento grave
quinta; assim também o acento prosó- ou
que distingue advérbio de lugar de
dico era mustcal, sobretudo o circun- ou partícula disjuntiva e à usado como
f7.exo, no qual a voz, depois de ter subi- artigo de a como verbo. Acento que
do uma quinta, descia, na mesma distingue esses monossílabos somente
sz1aba_, _uma qu~nta 3 3
• ~or esse trecho e à vista, não determinando nenhum
efeito na pronúncia3 4 • Assim, a defini-
ê da prosodia. Em absoluto não se segue que ção de acento adotada geralmente
tais signos fossem usados entre os gregos, que pelos franceses não convém a quais-
deles não tinham qualquer necessidade. (N. do
A.) quer dos acentos da sua língua.
• "A este cuidado segue-se o do ritmo e da Estou certo de que muitos de seus
forma das palavras; o que então receio que pa- gramáticos, preocupados em marca-
reça pueril a Catulo. Entretanto, os próprios rem nos acentos uma elevação ou um
iantigos achavam que a prosa deveria ser senti-
abaixamento de voz, acusarão, tam-
da quase como um verso, isto é, que uns certos
ritmos devessem ser admitidos por nós. Quise- bém neste ponto, um paradoxo e, por
ram, com efeito; que pausas para a respiração não recorrerem suficientemente à expe-
·fossem introduzidas nas orações, marcadas riência, acreditarão poder determinar
não pelos sinais da nossa fadiga, nem por si- por modificações da glote esses mes-
nais dos escritores, mas pelo ritmo das pala-
vras e seritenças; e sabe-se que Isócrates foi o mos acentos que se emitem tão-só
primeiro a ensinar isso, e subordinava, restrin- variando a abertura da boca ou as
gia a maneira de falar, desordenada, dos anti- posições da língua. Eis, porém, o que
gos a números, em razão do prazer e dos ouvi- tenho a dizer-lhes para comprovar a
dos (como escreve Náucrates, seu discípulo).
"Com efeito, dois músicos, eles mesmos outro- experiência e tornar irreplicável a
ra poetas, a· fim de agradar, procuravam o minha prova.
verso e o canto, de modo a vencer, pelo prazer, Assumf com a voz exatamente o
a fadiga do ouvido, não só com o número das uníssono de um instrumento musical e,
palavras, mas também com o modo das vozes.
Julgaram, . pois, que estas duas coisas - a sobre esse uníssono, pronunciai exata-
moderaçã6 da voz e a cadência das palavras mente todas as palavras francesas mais
- deviam ser transferidas, tanto quanto a gra- diversamente acentuadas que puderdes
vidade da oração o permitisse, da poética para reunir. Como não se trata, nesse caso,
a eloqüência." - Cícero, De Oratore.
"Além disso..t entre os mai~ . célebres aulor:~s
do acento oratório, mas somente do
antigos, havia certos sinais de sentenças que gram~ticl, não é sequer necessário
apunham aos versos e histórias a fim de sepa-
rar as escrituras. Tal sinal tem figura própria,
3 4 Poder-se-ia crer que por esse mesmo acen-
à maneira de uma letra, para pôr em relevo a
razão de alguma palavra, sentença ou verso. to os italianos distinguem, por exemplo, e
Os sinais, porém, usados nos versos, são vinte verbo de e conjunção; o primeiro, porém, se
e seis, cujos nomes se transcrevem abaixo ... " distingue ao ouvido por um som mais forte e
Isidoro, - Origines. (N. de L. Q; M.) mais sustentado, o que toma vogal o acento
3 3 D.uclos, Remarques sur la Grammaire Gé._ com o qual é assinalado - observação que
nérale et Rai~onée. pág: JO. (N. do A.) Buonmattei fez mal em não anotar. (N. do A.)
ENSAIO SOBRE A ORIGEM DAS LÍNGUAS 179
que as várias palavras formem um sen- estivesse bem jzxado, não tinham ainda
tido coritínuo. Falando desse· modo, valor igual ao do uso. Acrescentaria,
observai se não marcais sobre esse mais, que foram substitutivos. Os anti-
som todos os acentos tão sensível e gos hebreus não possuíam quaisquer
nitidamente quanto os pronunciáveis pontos ou acentos, nem mesmo vogais.
sem dificuldade, variando vosso tom Quando as outras nações se resolve-
de voz. Ora, posto esse fato, que é ram a falar hebreu e os judeus falaram
incontestável, eu asseguro que, expri- outras línguas, a sua perdeu o seu
mindo-se todas as vossas inflexões no acento; tornaram-se necessários pon-
mesmo tom, não assinalam sons dife- tos e sinais para regulamentá-la e isso
rentes. Não imagino o que se possa antes restabeleceu o sentido das pala-
responder a isso. vras. do que a pronúncia da língua. Os
Toda língua, em que se pode colocar judeus de hoje, falando hebreu, não
inúmeras árias musicais sobre as mes- mais seriam compreendidos por seus
mas palavras, não possui um acento antepassados. ·
musical determinado. Fosse ele deter- Para saber o inglês é preciso apren-
minado e a ária também o seria; desde dê-lo duas vezes - uma a ler e outra a
que o canto é arbitrário, o acento nada falar. Se um inglês lê em voz alta e um
vale. estrangeiro lança os olhos sobre o
As línguas modernas da Europa livro2 - ~ e§trangeiro não percebe liga-
estão, todas, mais ou menos no mesmo ção alguma entre o que vê e o que
caso. Não excetuo sequer a italiana. A ouve. Por que assim acontece? Porque,
língua italiana, tanto quanto a france- tendo sido a Inglaterra sucessivamente
sa, não é em si mesma musical. A dife- conquistada por v~os povos, as pala-
rença reside unicamente em · que urría vras sempre foram escritas do mesmo
se presta à música e outra nãó. modo, enquanto o modo de pronun-
Tudo isso leva à confirmação. do ciá-las mudou freqüentemente. Há
princípiQ que diz deverem todas as lín- muita diferença entre os sinais que
guas escritas, por um progresso natu- -
determinam ---
o sentido . da escrita e
ral, mudar de caráter · e perder força, aqueles que regulamentam a pronún-
ganhando clareza; que quanto mais se cia. Seria muito fácil criar, unicamente
procurar aperf~iço a gramática e a com consoantes, uma língua muito
lógica, mais se acelerará esse progres- clara .para ser escrita, mas que não se
so; e que, para rapidamente tornar poderia falar. A álgebra eossui algo
uma língua fria e monótona, basta dessa fíngua. Quando uma língua é
estabelecer academias no seio do povo mais clara por sua ortografia do que
que a fala. · por sua pronúncia, isso constitui sinal
Conhecem-se as línguas derivadas de ser mais escrit~ A<? _que falada.
pela diferença entre a ortografia e a Assim poderia ser a língua erudita dos
proniíca ~ · Quanto mais antigas e ori- egípcios e assim são, para nós, .as lín-
, ginais são as línguas, . menos arbitra- guas mortas. Naquelas que são sobre-
riedade existe no modo de pronunciá- carreg_adas de consoantes inúteis, _pare-
las e, conseqüentemente, menos ce que a escrita precedeu a palavra -
complicação de caracteres _para deter- quem não diria estar o polonês nesse
minar a sua pronúncia. Todos os sinais caso? Se fosse verdade, a língua polo-
prosódicos dos antigos, diz o Sr. nesa deveria ser a mais fria de todas as
Duelos, supondo-se que seu emprego línguas.
180 ROUSSEAU
e APfruLo vnI
Diferenças geral e local na origem das línguas
Tudo o que afirmei até agora se refe- mais longe; impõe-se começar obser-
re em geral às línguas primitivas e ao .vando as diferenças, para descobrir as
progresso que resulta de sua duração, propriedades 3 5 •
mas não explica nem a sua origem nem O gênero humano, nascido nas
as suas diferenças. A principal causa regiões quentes, daí passa para as
que as distingue é local, resulta dos cli- frias; nestas se multiplica e, depois,
mas em que nascem e da maneira pela volta às regiões quentes. Dessa ação e
qual se formam. A tal causa deve-se reação resultam as revoluções da terra
recorrer para conceber a diferença e a agitação contínua de seus habitan-
geral e característica que se nota entre tes. Esforcemo-nos, nas nossas pesqui-
· as línguas do sul e as do norte. O gran- sas, para seguir a própria ordem da
de defeito dos europeus consiste em natureza. Inicio uma longa digressão
sempre filosofarem sobre as origens sobre um assunto tão repisado quanto
das coisas baseando-se no que se passa trivial, mas ao qual sempre se tem
à sua volta. Nunca deixam de nos necessidade de voltar, mesmo quando
apontar os primeiros homens, habi- já muito se tenha dito, a fim de encon-
tando uma terra ingrata e rude, mor- trar a origem das instituições huma-
rendo de frio e de fome, impelidos a nas.
conseguirem um abrigo e roupas; vêem
3 5 Com esta notável repulsa ao etnocentrismo
em todos os lugares somente a neve e
os gelos da Europa, sem se lembrarem europeu, afastamo-nos decididamente da
orientação unanimemente aceita pelos autores
de que a espécie humana, como todas do século XVIII, para os quais era válido um
as outras, nasceu nas regiões quentes, e conceito de homem deduzido de certos princí-
que em dois terços do globo pouco se pios gerais anistóricos. Rousseau quer buscar,
conhece o inverno. Quando se quer para além da "ordem natural" e na própria
vida dos homens tal qual existem em todo o
estudar os homens, é preciso olhar em mundo, a ordem humana, isto é, o conheci-
torno de si, mas, para estudar o mento do homem em sua própria realidade.
homem, importa que a vista alcance (N. de L. G. M.)
CAPITULO IX
Formação das línguas meridionais
uns dos outros. Essa opinião era-lhes não pode ser clemente, justo, ou piedo-
comunicada por sua fraqueza e igno- so, nem tampouco mau e vingativo.
rância. Nada conhecendo, tudo te- Quem nada imagina não sente mais do
miam: atacavam para se defenderem. que a si mesmo: encontra-se só no
Deveria ser um animal feroz esse meio do gênero humano.
homem abandonado sozinho na super- A reflexão nasce das idéias compa-
fície da terra, à mercê do gênero huma- radas; a pluralidade dessas idéias é que
no. Estava pronto a fazer aos outros leva à comparação. Quem vê um único
todo o mal que neles temia. As fontes objeto não pode fazer comparações.
da crueldade são o temor e a fraque- Quem vê somente um pequeno número
za3 ª. de objetos e, desde a infância, sempre
As afeições sociais só se desen- os mesmos, também não os compara,
volvem em nós com nossas luzes. A porque o hábito de vê-los impede a
piedade, ainda que natural ao coração atenção necessária para examiná-los.
do homem, permaneceria eternamente À medida, porém, que nos impressiona
inativa sem a imaginação que a põe em um objeto novo, queremos conhecê-lo
ação. Como nos deixamos emocionar e procuramos relações entre ele e os
pela piedade? - Transportando-nos que já conhecemos. Assim aprendemos
para fora de nós mesmos, identifican- a conhecer o que está sob nossos olhos
do-nos com o sofredor. Só sofremos e somos levados, pelo que nos é estra-
enquanto pensamos que ele sofre; não nho, a examinar aquilo que nos interes-
é em nós, mas nele, que sofremos. sa 3 9.
Figuremo-nos quanto de conheci- Aplicai essas idéias aos primeiros
mentos adquiridos supõe tal transposi- homens e encontrareis os motivos de.
ção. Como poderia eu imaginar males sua barbárie. Sempre vendo tão-só o
dos quais não formo idéia alguma? que estava à sua volta, nem mesmo
Como poderia sofrer vendo outro isso conheciam, nem sequer conheciam
sofrer, se nem soubesse que ele sofre? a si próprios. Tinham a idéia de um
Se ignoro o que existe de comum entre pai, de um filho, de um irmão, porém
ele e mim? ~quel que nunca refletiu, não a de um homem. Sua cabana con-
tinha todos os seus semelhantes: para
3 7 As verdadeiras línguas absolutamente não ele, era a mesma coisa um estrangeiro,
possuem uma origem doméstica; somente uma
convenção mais geral e mais duradoura pode um animal, um monstro. Além de si
estabelecê-las. Os selvagens da América quase mesmos e de sua família, todo o uni-
nunca falam, a não ser fora de casa; cada um verso nada significava para eles.
guarda silêncio em sua cabana e fala à família Resultam daí as contradições apa-
por sinais, sendo tais sinais pouco freqüentes, rentes que se notam entre os pais das
pois um selvagem é menos inquieto e impa-
ciente do que um europeu, não tendo tantas nações. Tanta naturalidade e tanta
necessidades e esforçando-se mais para supri- desumanidade; costumes tão ferozes e
las sozinho. (N. do A.) corações tão ternos; tanto amor pela
3 8 Nova ressonância de Hobbes faz-se sentir
própria família e tanta avsrsão pela
aqui, de tal modo, contudo, que esclarece a sua espécie. Todos os seus sentimen-
posição de Rousseau, desfazendo certos equí-
vocos. De fato, o seu "homem natural", como
o hobbesiano, é um feixe de reações primárias 3 9 Esta descrição psicológica já nos traz do
fisiopsicológicas (aqui suposto como agindo "homem natural" ao homem posto num pro-
num passo real - porém, não histórico - de cesso inicial de integração social. Cabe assina-
sua evolução), mas não é "naturalmente bom". lar que a imaginação, motor da razão, só co-
Sua "bondade" precisa de estímulo para entrar meça a agir e crescer nos contatos com os
em _ação. (N. de L. G. M.) - semelhantes. (N. de L. G . M.)
182 ROUSSEAU
estado de guerra de todos contra todos. Aqui Geralmente, entre todos os povos
s.e torn.a bem clara a posição de Rousseau: se o cuja origem conhecemos, os primeiros
filósofo inglês acertara ao descrever o feixe de bárbaros mostram-se mais vorazes e
reações impulsivas constitutivo do homem carnívoros do -que agricultores e g r aní~
natural - que Rousseau concebia, fundamen-
talmente, como o equipamento fisiopsicológico voros. Os gregos citam quem primeiro
básico de qualquer homem em qualquer lugar os ensinou a cultivar a terra e parece
e a qualquer tempo - , errara, contudo, ao jul- que só bem tarde conheceram essa
gar que tais elementos individuais determinam arte. Quando dizem, porém, que antes
o comportamento dos seres. A conjuntura, as
relações com os semelhantes, é que possibili- de Triptólemo só viviam de bolotas,
tam, ou não, tal ou qual atitude. (N. de L. G. afirmam algo que não pode· ser verdji-
M.) . deiro e que é desmentido pela sua pró-
ENSAIO SOBRE A ORIGEM DAS LÍNGUAS 183
pria história, pois ao tempo de Triptó- vra "junta" 4 2 mostra que esses bois
lemo comiam carne, tanto que ele os ~ram assim jungidos para o trabalho.
proibiu de comê-la. De resto, não se Fica claramente dito que esses bois
sabe que tenham levado em grande trabalhavam quando os sabeus os rou-
consideração tal proibição. Nos festins baram e pode-se imaginar qual a exten-
de Homero matava-se um boi para são de terra que quinhentos pares de
regalar os hóspedes, como hoje se bois deviam cultivar.
mataria um leitãozinho. Lendo-se que Tudo isso é verdadeiro, porém não
Abraão serviu um bezerro a três pes- confundamos os tempos. A época
soas, que Eunieu mandou assar dois patriarcal, que conhecemos, está bem
cabritos para o jantar de Ulisses e que longe da primeira idade. A Escritura
o mesmo fez Rebeca para o de seu enumera, entre uma e outra, dez gera-
marido, pode-se imaginar que tremen- ções, naqueles séculos em que os ho-
dos devoradores de carne eram os ho- mens viviam muito. Que fizeram du-
mens daqueles tempos. Para conceber rante essas dez gerações? Nada
como eram as refeições dos antigos, sabemos. Vivendo separados e quase
basta ver a dos selvagens de hoje - sem sociedade, apenas falavam -
quase disse: a dos ingleses. como poderiam escrever? E, na unifor-
O primeiro bolo que-se comeu foi a midade de sua vida isolada, que acon-
comunhão do gênero humano. Quando tecimentos poderiam comunicar?
os homens começaram a se fixar, surri- Adão falava, Noé falava - seja.
baram um pouco de terra em torno da Adão foi instruído pelo próprio Deus.
cabana: era mais um jardim do que Ao se dividirem, os filhos de Noé
uma lavoura. O pouco de grão colhido abandonaram a agricultura e a língua
era moído entre duas pedras; dele se comum pereceu com a primeira socie-
faziam alguns bolos que eram cozidos dade. Tal coisa aconteceria ainda que
sob a cinza ou sobre a brasa ou, ainda, nunca tivesse existido uma Torre de
sobre uma pedra aquecida, e só eram Babel. Sabe~s de solitários esquece-
comidos durante os festins. Esse uso . rem, em ilhas desertas, a ·sua própria
antigo, que foi consagrado pela Páscoa língua. Bem raramente os homens con-
entre os judeus, conserva-se ainda hoje servam, depois de muitas gerações fora
na Pérsia e nas Índias. Aí só se come de seu país, a sua própria língua,
pão sem fermento, e esses pães, feitos
mesmo trabalhando em comum e ~i
em folhas delgadas, cozinham-se e
vendo, entre si, em sociedade.
comem-se em cada refeição. Só se lem-
braram de fermentar o pão quando se Esparsos no vasto deserto do
preçisou de uma quantidade maior, niundo, os homens tornaram a cair na
pois a fermentação não se processa estupidez bárbara em que se encontra-
bem numa quantidade pequena. ríam se tivessem nascido da terra.
Açeitando-se essas idéias, tão naturais,
Sei que já no tempo -dos patriarcas torna-se fácil conciliar a autoridade da
se pode encontrar a agricultura em
larga escala. A proximidade do Egito Escritura com a dos monumentos anti-
cedo a terá levado para a _Palestina. O gos, não se ficando reduzido a tratar
como fábulas tradições tão antigas
livro de Jó, talvez o mais antigo de
todos os livros e~istn, fala da cultu- 4 2
No texto francês está paire, que significa
ra dos campos; cita quinhentas juntas indiferentemente quaisquer seres postos dois a
de bois entre as riquezas de Jó. A pala- dois. (N. de L. G. M.)
184 ROUSSEAU
quanto os povos que no-las transmiti- basta a ·si mesma. Oferece ao.homem,
ram 43 • quase sem trabalho, alimento e roupa;
Nesse estado de embrutecimento, dá-lhe até moradia. As tendas dos pri-
tinha-se, contudo, de 'viver. Os mais meiros pastores se faziam com peles de
ativos e robustos, aqueles que sempre animais. Era também de peles o teto da
andavam à frente, não podiam viver arca e do tabernáculo de Moisés.
somente de frutos e da caça. Toma- Quanto à agricultura, . que demorou
ram-se caçadores, violentos, sanguiná- mais para nascer, liga-se a todas as
rios; depois, com o decorrer dos tem- artes; leva à propriedade, ao Governo,
pos, guerreiros, conquistadores, às leis e, pela mesma via, à miséria e
usurpadores. A História enodoou seus aos crimes, que são inseparáveis, para
monumentos com os crimes desses pri- a nossa espécie, da ciência do bem e do
meiros reis; a guerra e a conquista não mal. Por isso os gregos não conside-
passam de caça de homens. Depois de ram Triptólemo unicamente como o
tê-los conquistado, só faltava devorá- inventor de uma arte útil, mas também
los - foi o que aprenderam a fazer como um instituidor e um sábio a
seus sucessores. quem deviam sua primeira disciplina e
O maior número, menos ativo e suas primeiras leis. Moisés, pelo con-
mais pacífico, desde que pôde, parou, trário, parece formar sobre a agricul-
reuniu gado, cercou-o e tomou-o dócil tura um juízo de desaprovação, dan-
ao homem; para alimentar-se, apren- do-lhe por inventor um mau e
deu a guardá-lo, a multiplicá.:10, e considerando desprezíveis suas oferen-
assim se iniciou a vida pastoril. das aos olhos de Deus. Dir-se-ia que o
primeiro lavrador denunciou, em seu
A indústria humana desenvolve-se
segundo as necessidades que determi- caráter, os maus resultados de sua arte.
nam o seu aparecimento. Dos três O autor do Gênesis viu bem mais
modos de viver possíveis para o longe do que Heródoto.
homem, ou seja: a caça, o trato dos Prendem-se à precedente divisão os
rebanhos e a agricultura - a primeira três estados do homem considerado em
adestra o corpo para a força, para a relação à sociedade. O selvagem é
habilidade, para a corrida, e a alma caçador; o bárbaro, pastor; o homem
para a coragem, a astúcia, enrijecendo civilizado, agricultor.
· Quer, pois, procurando a origem das
o homem e tomando-o feroz. A região
dos caçadores não continua sendo, por artes, quer observando os primeiros
muito tempo, a da caça 4 4 • É preciso costumes, veremos que tudo se liga, em
seguir de longe a presa, e· daí vem a seu princípio, aos meios de atender à
equitação. É preciso alcançar a mesma subsistência e, no que concerne àqueles
presa que foge, e daí as armas leves desses meios que reúnem os homens,
4 4 O ofício de caçador não é favoráve} ao
como a funda, a flecha ~ · o dardo. A
arte pastoril, mãe do repouso e das pai- povoamento. Essa observação, que foi feita
quando as ilhas de São Domingos e das Tarta-
xões ociosas., é aquela que melhor se rugas eram habitadas por caçadores de touros
selvagens, confirma-se pela condição em que
4 3 Nova hipótese evolutiva.bem característica
se encontra a América Setentrional. Jamais se
da metodologia rousseauniana. Assinale-se verifica que os pais de qualquer nação nume-
ainda que todo este trecho não passa de uma rosa tenham sido caçadores; todos foram agri-
árdua tentativa para expor, em termos mais ou cultores ou pastores. A caça deverá, pois, ser
menos históricos, uma realidade que trans- considerada, neste ponto, menos como um
cende os fatos ordenados cronologicamente. recurso de subsistência do que como um aces:.
(N. de L. G. M.) sório do estado p~storil. (N. do A.)
ENSAIO SOBRE A ORIGEM DAS LfNGUAS 185
çam sobre nossas regíões férteis uma . em conjunto as perdas comuns. As tra-
perpétua colônia que promete nunca se dições das desgraças da terra, tão
esgotar. freqüentes nos tempos antigos, mos-
Dir-se-á natural que os -habitantes tram de quais instrumentos se serviu a
de uma região hostil a deixem para Providência para forçar os seres huma-
· ocupar uma melhor. Muito bem; mas, nos a se unirem. Depois que se estabe-
por que essas regiões melhores, em leceram as sociedades, cessaram esses
lugar de formigarem de habitantes grandes acidentes ou então se torna-
seus, se transformam em asilo dos ram raros. Parece que isso continuará
outros? Para sair de uma região hostil a acontecer ..--- as mesmas infelicidades
é preciso estar nela e por que, então, que reuniram os homens esparsos
nascem aí preferencialmente tantos dispersaram aqueles . que se reuni-
homens? Parece mais razoável que ram so.
devessem as regiões ingratas povoar-se. As . mudanças das estações repre-
unicamente com o excedente das fér- sentam outra causa, mais geral e mais
teis e vemos acontecer justamente o permanente, · que deve produzir o
contrário. A maioria dos povos latinos mesmó efeito nos climas expostos a tal
dizia-se aborígine 4 8 , enquanto a variação. Forçados .a se abastecerem
magna Grécia, muito mais fértil, só era para o inverno, vêem-se os habitantes
povoada por estrangeiros; todos os na contingência de se auxiliar mutua-
povos gregos originavam-se de várias mente, coagidos a estabelecer entre si
colônias, salvo aquele cujo solo era o uma espécie de convenção. Quando se
pior, o povo ático, que se dizia autóc- tornam impossíveis as expedições e o
tone ou nascido de si mesmo. Final- o
rigor do friO os faz parar, tedio liga-
mente, sem penetrar na noite dos tem- os tanto quanto a necessidade. Os
pos, os povos modernos oferecem uma lapões, enterrados nos gelos, e os
observação decisiva, pois qual o clima esquimós, que são o mais selvagem de
mais triste do mundo senão o conside- todos os povos, no inverno reúnem-se
rado como a fábrica do gênero huma- nas suas cavernas e~ no verão, não se
no 49? conhecem mais. Se o seu grau de
As associações de homens são, em desenvolvimento e as suas luzes vierem
grande parte, obra dos acidentes da a aumentar um pouco só, reunir-se'."ão
natureza - os dilúvios particulares, os para sempre.
mares extravasados, as erupções dos O estômago e o intestino do homem
vulcões, os grandes terremotos, os não são feitos para 'digerir carne crua _
incêndios despertados pelo · raio e que e, em geral, não é ela do agrado do
destroem as florestas, tudo que atemo- paladar. Com a talvez única exceção
rizou e dispersou os selvagens de uma dos esquimós, de quem acabo de falar,
região, d_e.pois reuniu-os para reparar
50
A função de fatores acidentais na evolução
48 As palavras autóctones e abongines ·signi- humana - que já conhecemos, sobretudo do
ficam somente que os primeiros habitantes da segundo Discurso - aqui ressurge e sempre
região eram selvagens, sem sociedade, sem com o mesmo sentido, que não é propriamente
leis, sem tradições, e que povoaram antes· de o de um destino cego, como poderiam fazer
falar. (N. do A.) crer os termos "azar" ou ''acidente", mas o de
4 9 Como vimos em nota anterior, Rousseau estímulos eventuais da ação humana, enquanto
recusa-se aos mecanicismos climáticos ou esta, se não é irrestrita, sempre conserva uma
fisiopsicológicos - para ele, os homens trans- margem de franco arbítrio no dirigir-se. (N. de
formam-se porque são ativos. (N. de L. G. M.) L. G. M.)
ENSAIO SOBRE A ORIGEM DAS ÚNGUAS 187
grande prazer aos animais quando, habituados Existe uma tal relação entre as
à sua vista, já experimentaram o seu agradável necessidades do homem e as produções
calor. Freqüentemente mesmo, não lhes seria da terra que basta povoar-se esta para
menos útil · do que a nós, pelo menos para que tudo subsista. Antes, porém, que
aquecer os filhotes. No entanto, nunca se
ouviu dizer que qualquer animal, selvagem ou os homens reunidos estabelecessem,
doméstico, tenha adquirido suficiente indústria por meio de seus trabalhos comuns,
para fazer fogo, ainda que corri nosso exemplo. um ·equilíbrio entre as suas produções,
Aí estão, entretanto; esses seres raciocinantes
que dizem formar, em face do homem, uma
teve a natureza de se incumbir sozinha
sociedade fugitiva, e cuja inteligência, no desse equilíbrio que a mão dos homens
entanto, não pode desenvolver-se ao ponto de hoje conserva - mantinha-o ou resta-
tirar faíscas de um seixo e de recolhê-las ou, belecia-o por meio de revoluções,
pelo menos, de conservar as fogueiras abando- como os homens a mantêm ou restabe-
nadas! Os filósofos, posso jurar-, mofam aber-
tamente de nós ..Pelo que escrevem, percebe-se lecem por sua inconstância. A guerra,
perfeitamente que nos tomam por animais. (N.
do A.) • V. notas anteriores. Dois exemplos opostos
53
5 2 Vede o exemplo, tanto de um quanto de - a: água: e o fogo - produzem o mesmo efei-
outro, no capítulo XXI do Gênesis, entre to; se a natureza é estímulo, a necessidade
Abraão e Abimelec, a propósito do poço do criada pelo homem é que move e orienta a
juramento. (N. do A.) ~o humana.
188 ROUSSEAU
que ainda não reinava entre eles, pare- essa tendência e retarda esse progres-
cia reinar entre os elementos: os ho- so; sem eles, tudo aconteceria mais
mens não queimavam cidades, não rapidamente e a terra já estari;i talvez
cavavam minas, nem abatiam árvores, sob as águas. Antes do trabalho huma-
mas a natureza acendia vulcões, exci- no, as fontes, mal distribuídas, espa-
tava tremores de terra e o fogo do céu lhavam-se mais desigualmente, fertili-
consumia as florestas. Um raio, um zavam menos a terra e saciavam com
dilúvio, uma exalação conseguiam em maior dificuldade os seus habitantes.
poucas horas mais do que atualmente Os rios freqüentemente eram inacessí-
cem mil braços de homens no decorrer veis, com bordas escarpadas ou panta-
de um século. Sem isso, não vejo como nosas; como a arte humana não os
o sistema pôde subsistir e o equilíbrio retinha nos seus leitos, comumente
manter-se. Nos dois reinos organiza- abandonavam-nos, extravasavam para
dos, com o decorrer dos tempos, as a direita e para a esquerda, mudando a
grandes espécies haveriam de absorver direção e o curso, dividindo-se em inú-
as pequenas 5 4 , a terra toda em pouco meros braços. Às vezes secavam, às
tempo ficaria recoberta tão-só de árvo- vezes areias movediças impediam de
res e de animais ferozes e, afinal, tudo abordá-los e, assim, morria-se de sede
teria perecido 5 5 • no meio das águas.
As águas aos poucos perderiam a Quantas regiões áridas só são habi-
circulação que vivificava a terra. As táveis devido aos sangradouros e aos
montanhas abatem-se e diminuem, os canais que os homens tiraram dos
rios carreiam, o mar enche-se e eleva- rios ! Quase toda .a Pérsia só subsiste
se, tudo, insensivehpente, tende ao graças a esse artificio; a China formiga
nível, porém a mão do "homem retém de gente com o auxílio de numerosos
desses canais; sem os dos Países-
5 4
Pretende-se que, por uma espécie de ação e Baixos, estes seriam inundados pelos
de reação natural, as várias espécies do reino rios, como o seriam pelo mar, sem os
animal se manteriam por si mesmas numa per- diques. O Egito, a região mais fértil da
pétua oscilação que, para elas, representaria o terra, só é hal)itável devido ao trabalho
equilíbrio. Quando a espécie devoradora, se-
$Undo dizem, tiver se multiplicado demais a do homem; nas grandes planícies,
expensas da espécie devorada, não mais então desprovidas de rios e cujo solo não
encontrando meio de subsistência, será preciso possui uma inclinação suficiente, só se
que a primeira diminua e deixe à segunda o
tempo de se reproduzir até que, de novo forne- pode recorrer aos poços. Se, pois, os
cendo abundante meio de subsistência à outra, primeiros povos, a que se faz menção
esta novamente diminuirá, enquanto a espécie na História, não habitavam regiões fér-
devoradora se reproduzirá a.utra vez. Mas não
çarece nada verossímil uma tal oscilação, pois,
teis ou margens acessíveis, não é por-
nesse sistema, impõe-se que haja uma época que esses sítios acolhedores fossem
em que a espécie que serve de presa aumente, e desérticos, mas porque seus numerosos
diminua aquela que dela se nutre. O que me habitantes, podendo ignorar-se uns aos
parece contra qualquer bom senso. (N. do A.)
5 5
Embora inesperada, a incursão pelo campo outros, por mais tempo viveram no
da evolução geral dos seres vivos (v., em parti- seio de suas famílias, isolados e sem
cular, a nota de Rousseau) vem demonstrar comunicação. Mas, nas regiões áridas,
não apenas o desejo de integrar os dados mais nas quais só os poços forneciam água,
recentes no delineamento interpretativo senão
ainda o desígnio de sublinhar a função dos ele- tiveram de reunir-se para cavá-los, ou.
mentos fortuitos em qualquer progressão evo- pelo menos, combinarem o seu uso.
lutiva, ainda que não humana. (N. de L. G. M.) Terá sido essa a origem das sociedades
ENSAIO SOBRE A ORIGEM DAS LÍNGUAS 189
e das línguas nas regiões quentes 5 6 • Mas, como? Nesse tempo os ho-
Aí se formaram os primeiros laços mens nasciam da terra? Sucediam-se
de família e aí se deram os primeiros as gerações sem que os dois sexos se
encontros e~tr os dois sexos. As unissem e $em que ninguém se enten-
moças vinham procurar água para a desse? Não. Havia famílias, mas não
casa, os moços para dar de beber aos havia nações; havia línguas domésti-
rebanhos. Olhos habituados desde a cas, mas nenhuma língua popular;
infância aos mesmos objetos, começa- havia casamentos, mas não amor.
ram aí a ver outras coisas mais agradá- Cada família bastava-se a si mesma e
veis. O coração emocionou-se com perpetuava-se unicamente pelo sangue;
esses novos objetos, uma atração des- os filhos nascidos dos mesmos pais
conhecida tomou-o menos selvagem, cresciam juntos e aos poucos encon-
experimentou o prazer de não estar só. travam meios de se explicarem entre si;
A água, insensivelmente, tomou-se
mais necessária, o gado teve sede mais os sexos com a idade se distinguiam, a
vezes: chegava-se açodadamente e par- inclinação natural era suficiente para
tia-se com tristeza. Nessa época feliz, uni-los, o instinto ocupava o lugar da
na qual nada assinalava as horas, nada paixão, o hábito o da preferência, pas-
obrigava a contá-las, e o tempo não sava-se a marido e esposa sem deixar
possuía outra medida além da distra- de ser irmão e irmã 5 8 • Não havia nisso
ção e do tédio. Sob velhos carvalhos, nada de muito estimulante para desem-
vencedores dos anos, uma juventude brulhar a língua, nada que pudesse
ardente aos poucos esqueceu a feroci- com bastante freqüência arrancar os
dade. Acostumaram-se gradativamente acentos das paixões ardentes a fim de
uns aos outros e, esforçando-se por transformá-los em instituições e o
fazer entender-se, aprenderam a expli- mesmo se pode dizer das necessidades
car-se. Aí se deram as primeiras festas raras e pouco exigentes que poderiam
- os pés saltavam de alegria, o gesto levar certos homens aos trabalhos
ardoroso não bastava e a voz o acom- comuns. Um começava a bacia da
panhava com acentuações apaixona- fonte e o outro a acabava a seguir,
das; o prazer e o desejo confundidos freqüentemente sem necessidade de
faziam-se sentir ao mesmo tempo. Tal qualquer acordo e, algumas vezes, até
foi, enfim, o verdadeiro berço dos sem se terem visto. Numa palavra, nos
povos - do puro cristal das fontes saí-
ram as primeiras chamas do amor 5 7 • 5 8 Foi preciso que os primeiros home.ns
primeiras línguas, filhas do prazer e sária entre o que é social e o que é mau, como
não da necessidade, durante muito fariam supor certas interpretações esquemá-
ticas do pensamento de Rousseau. Pelo contrá-
tempo carregaram o ensinamento de rio, o elemento pernicioso só se instala entre os
seu pai: o seu acento sedutor só desa- homens vivendo em grupo quando um se apro-
pareceu com os mesmos sentimentos pria egoisticamente do que deve ser de todos.
que o tinham despertado, quando Esse tema ético geral é o mesmo que, no plano
político, dá fundamento à exposição crítica do
novas necessidades introduzidas entre Discurso sobre a Desigualdade e irá inspirar
os homens obrigaram cada um a só as normas práticas do Contrato Social. (N. de
pensar em si mesmo e a fazer com que LG.M.)
CAPITULO X
Formação das línguas do norte
Com o decorrer dos tempos, todos os povos setentrionais são tão robus-
os homens se tornam semelhantes, tos, pois o são não porque o clima os
porém é diferente a ordem de seu pro- fez asim~ mas porque só respeitou os
gresso. Nos climas meridionais, onde a que assim eram, não sendo de admirar
natureza é pródiga, as necessidades que os filhos conservassem a boa cons-
nascem das paixões; nas regiões frias, tituição dos pais.
onde ela é avara, as paixões nascem Compreende-se, desde logo, que os
das necessidades 6 0 , e as línguas, tristes homens mais robustos devem possuir
filhas da necessidade, ressentem-se de órgãos menos delicados, suas vozes
sua áspera origem. devem ser mais ásperas e mais fortes.
Ainda que o homem se habitue com Aliás, que diferença enorme existe
as intempéries, com o frio, com a penú- entre as inflexões comovedoras que
ria e até com a fome, há, contudo, um resultam dos frêmitos da alma e os gri-
ponto em que a natureza sucumbe - tos arrancados pelas necessidades físi-
nas garras dessas provações cruéis cas! Nesses tremendos climas, nos
tudo que é débil perece-e tudo mais se quais durante nove meses do ano tudo
fortalece. Não há um ponto interme- está morto, o sol só aquece o ar duran-
diário entre o vigor e a morte. Por isso te poucas semanas, parecendo que o
faz unicamente para dizer aos habitan-
"'~ Como as paixões que derivam de necessi- tes de que bens estão privados e para
dades implicam novas necessidades, impõe-se acentuar-lhes a miséria; nesses lugares
esclarecer o jogo de palavras deste trecho, que em que a terra nada dá, senão com
apenas quer indicar como, em certas condi-
ções, imperam as necessidades básicas indivi- muito trabalho, e onde a fonte da vida
duais e, em outras, as necessidades resultantes parece estar muito mais nos braços do
já dos contatos sociais. De qualquer forma, é que no coração, os homens, ocupados
sempre a necessidade, motor da vida coletiva, incessantemente em atender à subsis-
que cria e tempera as línguas, como e por que
cria as socied.ades: cada qual com sua fisiono-
tência, dificilmente pensavam em laços
mia própria, porém todas animadas por um mais doces: tudo se limitava ao impul-
mesmo impulso. (N. de L. G. M.) so físico - a ocasião determinava a
ENSAIO SOBRE A ORIGEM DAS LÍNGUAS 191
CAPITULO XI
Reflexões sobre essas diferenças
Tais são, na minha opinião, as cau- ticular dos homens que se auxiliam,
sas fisicas mais gerais da diferença que raciocinam com sangue-frio, ou de
característica das línguas primitivas. pessoas coléricas que brigam, porém
As do sul tiveram de ser vivas, sono- os ministros dos deuses anunciando os
ras, acentuadas, eloqüentes e freqüen- mistérios sagrados, os sábios dando
temente obscuras, devido à energia. As leis ao povo, os chefes arrastando a
do norte surdas, rudes, articuladas, gri- multidão, devem falar árabe ou
tantes, monótonas e claras, devido persa 6 2 • Nossas línguas valem mais
antes à força das palavras do que a escritas do que faladas; lêem-nos com
uma boa construção. As línguas mo- mais prazer do que nos escutam. Pelo
dernas, centenas de vezes misturadas e contrário, as línguas orientais perdem,
refundidas, ainda conservam alguma
coisa dessas diferenças: o francês, o 62
O turco é uma língua setentrional. (N. do
inglês e o alemão são a linguagem par- A.)
192 ROUSSEAU
CAPITULO XII
Origem e relações da música 6 J
Com as primeiras vozes formaram- volta das fontes de que falei, os primei-
se as primeiras articulações ou os pri- ros discursos constituíram as primeiras
meiros sons, segundo o gênero das pai- canções; as repetições periódicas e
xões que ditavam estes ou aquel;is. A medidas do ritmo e as inflexões melo-
cólera arranca gritos ameaçadores, que diosas dos acentos deram nascimento,
a língua e o palato articulam, porém a com a língua, à poesia e à música, ou
voz da ternura, mais doce, é a glote melhor: tudo isso não passava da pró-
que modifica, tornando-a um som. pria língua naqueles felizes climas e
Sucede, apenas, que os acentos são encantadores tempos em que as únicas
nela mais freqüentes ou mais raros, as necessidades urgentes que exigiam o
inflexões mais ou menos agudas, se- concurso de outrem eram as que o
gundo o sentimento que se acrescenta. coração despertava.
Assim, com as sílabas nascem a cadên- Foram em verso as primeiras histó-
cia e os sons: a paixão faz falarem rias, as primeiras arengas, as primeiras
todos os órgãos e dá à voz todo o seu leis. Encontrou-se a poesia antes da
brilho; desse modo, os versos, os can- prosa, e haveria de assim suceder, pois
tos e a palavra têm origem comum. À que as paixões falaram antes da razão.
A mesma coisa aconteceu com a músi-
63
Provavelmente este Ensaio inicialmente se ca. A princípio não houve outra músi-
destinava a tratar da música (v. Introdução e
nota n. 0 1), sendo pois de crer-se que aqui se
ca além da melodia, nem outra melo-
iniciaria, propriamente, a discussão central dia que não o som variado da palavra;
que, nesta edição, passa a ter interesse secun- os acentos formavam o canto, e as
dário. (N. de L. G. M.) quantidades, a medida; falava-se tanto
ENSAIO SOBRE A ORIGEM DAS LÍNGUAS 193
pelos sons e pelo ritmo quanto pelas que conseguimos de nós mesmos, ao
articulações e pelas vozes. Segundo vê-los tão bem expostos, é fingir acre-
Estrabão, outrora dizer e cantar eram ditar neles para não desgostar os nos-
o mesmo, o que mostra, acrescenta ele, sos sábios 6 6 • Burette, tendo traduzido,
que a poesia é a fonte da eloqüência 6 4 • como pôde, em notas de nossa música
Seria melhor dizer que tanto uma alguns trechos de música grega, teve a
quanto outra tiveram a mesma fonte e ingenuidade de fazer executá-los na
a princípio foram uma única coisa. Academia de Letras e os acadêmicos
Levando-se em consideração o modo tiveram a paciência de ouvi-los. Admi-
pelo qual se ligaram as primeiras ro-me dessa experiência num país cuja
sociedades, pode sentir-se surpreen-
música é indecifrável para qualquer
dido pelo fato de terem sido as primei-
outra nação. Mandai músicos estran-
ras histórias escritas em verso e que se
geiros de vossa escolha executar um
cantassem as primeiras leis? Será mo-
monólogo de ópera francesa e vos
tivo de admiração terem os primeiros
gramáticos submetido sua arte à músi- desafio a reconhecê-lo. Não obstante,
ca e serem, ao mesmo tempo, profes- são esses mesmos franceses que preten-
sores de uma e de outra? 6 5 diam julgar a melodia de uma ode de
Uma língua que não tenha, pois, Píndaro posta em música há dois mil
senão articulações e vozes possui so·- anos!
mente a metade de sua riqueza; na ver- Li que, outrora, na América, os ín-
dade, transmite idéias, mas, para trans- dios, vendo os efeitos surpreendentes
mitir sentimentos e imagens, das armas de fogo, recolheram do chão
necessitam-se ainda de ritmos e de as balas de mosquetão e depois, lan-
sons, isto é, de uma melodia: eis o que çando-as com a mão ao mesmo tempo
a língua grega possuía, e falta à nossa. que produziam forte ruído com a boca,
Sempre nos admiramos com os efei- surpreendiam-se por não matarem nin-
tos prodigiosos da eloqüência, da poe- guém.Assemelham-se a esses índios os
sia e da música entre os gregos; tais
efeitos não mais se combinam em nos- 6 6
Sem dúvida, em certa medida se deverá
sas cabeças porque não mais atingi- descontar o exagero grego, mas será também
mos coisas semelhantes, e o máximo conceder demais ao preconceito moderno levar
essas reduções a ponto de fazerem desaparecer
todas as diferenças. "Quando a música dos
6 4 Geogr., Liv. 1. (N. do A.) gregos do tempo de Anfião e de Orfeu", diz o
6 5 "Archytas atque Aristoxenes etiam subjec- Padre Terrasson, "estava no ponto em que
tam grammaticen musicae putaverunt, et eos- hoje se encontra nas cidades mais distantes da
dem utriusque rei praeceptores fuisse. . . Tum capital, é que suspendia o cursõ dos rios,
Eupolis, apud quem Prodamus et musicen et atraía os carvalhos e fazia os rochedos se
litteras docet. Et Maricas, qui est Hyperbolus, moverem. Atualmente, quando alcançou tão
nihil se ex mu$ícis scire nisi litteras confite- alto ponto de perfeição, gosta-se muito dela,
tur. "(Quintil., Lib. I, cap. X.)* (N. do A.) penetra-se mesmo em suas belezas, mas ela
• "Além disso, Arquitas e Aristóxeno julga- deixa tudo em seu lugar. A mesma coisa acon-
vam que a gramática estivesse subordinada à teceu com os versos de Homero, poeta nascido
música e que eles próprios eram preceptores de nos tempos em que ainda se ressentiam da
uma e de outra dessas artes .. . Por outro lado, infância do espírito humano, em comparação
há Êupolis, em casa de quem Prôdamus ensi- com aqueles que os seguiram. Extasiaram-se
nava não só a música mas também as primei- com seus versos; hoje contentam-se em sabo-
ras letras. E tambêm Maricas, que é Hipér- rear e apreciar os dos bons poetas." Não se
bolo, admite que o que sabe de música nada pode negar possuir o Padre Terrasson alguma
mais é que gramática." (Quintiliano, l. I, c. X.) filosofia, mas não é certamente nesse trecho
(N. de L. G. M.) que o demonstrou. (N. do A.)
194 ROUSSEAU
CAPITULO XIII
Da melodia
ainda imperfeita, tudo isso ·passaria arte. Que digo? Da arte? Não! De
por garatujas, por uma pintura capri- todas as artes, senhores, de todas as
chosa e barroca, e se apegariam, para ciências. Somente a análise das cores,
preservar o gosto, a esse belo simples o cálculo das refrações do prisma
que, na verdade, nadá exprime, mas podem dar-vos as relações exatas que
que faz esplender matizes ·bonitos, estão na natureza e a regra de todas
grandes planos bem coloridos e vastas essas relações. Ora, tudo no universo
gradações de tons sem qualquer linha. não é senão relação. Sabe-se tudo,
Finalmente, devido ao progresso, pois, quando se sabe pintar: sabe-se
chegar-se-ia talvez à experiência do tudo quando se sabe juntar as cores."
prisma. Logo algum artista célebre Que diríamos de um pintor tão des-
nela basearia um esplêndido sistema. provido de sentimentos e de gosto para
"Senhores", diria aos demais, "para assim raciocinar, limitando estupida-
filosofar impõe-se recorrer às causas mente ao aspecto físico de sua arte o
físicas. Aí estão a decomposição da prazer despertado em nós pela pintu-
luz, todas as cores primitivas, suas ra? Que diríamos do músico que, cheio
relações, proporções e os verdadeiros de preconceitos semelhantes, acredi-
tasse ver unicamente na harmonia a
princípios do prazer que a pintura des-
fonte dos grandes efeitos da música?
perta . em vós. Palavras misteriosas,
Mandaríamos o primeiro colorir pai-
como desenho, representação, figura,
néis e condenaríamos o outro a com-
. são mera charlatanice dos pintores por óperas francesas.
franceses que, por suas imitações, Como, pois, a pintura não é a arte
esperam despertar não sei que movi- de combinar algumas cores de um
mentos na alma, quando se sabe que modo agradável à vista, também a mú-
nela só existem as sensações. Já vos sica não é a arte de combinar os sons
disseram maravilhas sobre seus qua- de uma maneira que agrade ao ouvido.
dros; vede, porém, minhas cores. Se só fossem isso, tanto uma quanto
"Os pintores franceses", continua- outra figurariam entre as ciências
ria, "observaram talvez o arco-íris e naturais e não entre as belas-artes.
colheram da natureza certo gosto das Somente a imitação as eleva até esse
gradações e algum instinto do colori- grau. Ora, que faz da pintura uma arte
do. Eu, de minha parte, mostrei-vos os de imitação? - o desenho. E da músi-
grandes e verdadeiros princípios da ca? - a melodia.
CAPITULO XIV
Da harmonia
A beleza dos sons pertence à nature- mentarão prazer ouvindo belos sons,
za; seu efeito é puramente físico e mas, se inflexões melodiosas que lhes
resulta do concurso de várias partí- sejam familiares não os animarem,
culas de ar postas em movimento pelo esse prazer não será delicioso, nem se
corpo sonoro e por todas as suas alí- transformará em voluptuosidade. Os
quotas, talvez ao infinito, dando esse mais belos cantos ao nosso gosto sem-
conjunto uma sensação agradável. pre impressionarão mediocremente um
Todos os homens do universo experi- ouvido não acostumado a eles. São
196 ROUSSEAU
uma língua cujo dicionário se precisa fazer um dia dessa arte uma arte de
conhecer. imitação? Onde está o princípio dessa
A harmonia propriamente dita en- pretensa imitação? De que é sinal a
contra-se em situação ainda menos harmonia? E o que existe de comum
favorável. Possuindo apenas belezas de entre os acordes e nossas paixões?
convenção, jamais agrada a ouvidos Fazendo-se a mesma pergunta quan-
que não se instruíram a esse respeito e to à melodia, a resposta virá por si
só com reiterado hábito poder-se-á mesma: já está de antemão no espírito
senti-la e saboreá-la. Os ouvidos rústi- dos leitores. A melodia, imitando as
cos só ouvem ruídos em nossas conso- inflexões da voz, exprime as lamenta-
nâncias. Quando se alteram as propor- ções, os gritos de dor ou de alegria, as
ções naturais, não é de espantar que ameaças, os gemidos. Devem-se-lhe
não exista mais o prazer natural. todos os sinais vocais das paixões.
Um som traz consigo todos os sons Imita as inflexões das línguas e os tor-
harmônicos concomitantes, naquelas neios ligados, em cada idioma, a certos
relações de força e de intervalos que impulsos da alma. Não só imita como
devem ter entre si para causar a mais fala, e sua linguagem, inarticulada mas
perfeita harmonia desse mesmo som. viva, ardente e apaixonada, possui cem
Juntai-lhe uma terça ou uma quinta, ou vezes mais energia do que a própria
qualquer outra consonância, e não a palavra. Disso provém a força das imi-
estareis juntando, mas sim redobran- tações musicais e nisso reside o impé-
do-a, pois estareis conservando a rela-
rio do canto sobre corações sensíveis.
ção intervalar, porém alterando a de
Em certos sistemas, a harmonia pode
força. Reforçando uma consonância e
concorrer para tanto, ligando a suces-
não as outras, rompeis a proporção.
são de sons por algumas leis de modu-
Desejando fazer melhor do que a natu-
lação, tornando as entonações mais
reza, fazeis pior. Vossos ouvidos e
vosso gosto estragaram-se por uma justas e levando ao ouvido um teste-
arte mal compreendida. Naturalmente, munho fidedigno dessa justeza, aproxi-
só existe a harmonia do uníssono. mando e fixando inflexões inapre-
O Sr. Rameau pretende que os tim- ciáveis a intervalos consonantes e
bres altos de uma certa simplicidade ligados. Mas, oferecendo também em-
sugerem naturalmente seus baixos e baraços à melodia, tira-lhe a energia e
que um homem possuidor de bom a expressão, apaga a acerituação apai-
ouvido, embora não exercitado, natu- xonada para substituí-la pelo intervalo
ralmente entoará esse baixo. Eis um harmônico: submete-nos unicamente a
preconceito de músico, desmentido por dois únicos modos de cantar, quando
toda e qualquer experiência. Não so- deveria haver tantos quantos são os
mente aquele que não tiver escutado tons oratórios; apaga e destrói multi-
nem o baixo nem a harmonia não dões de sons ou de intervalos que não
poderia por si só encontrar essa har- entram no seu sistema; em uma pala-
monia ou esse baixo, como também vra, de tal modo separa o canto da
desagradá-lo-iam caso os ouvisse, pois palavra que essas duas linguagens se
. gostaria muito mais do simples unísso- combatem, se contrariam, tiram uma
no. da outra qualquer caráter de verdade e,
Mesmo que se calculasse, durante num tema patético, não podem unir-se
milhares de anos, as relações dos sons sem absurdo. Por isso, o povo sempre
e as leis da harmonia, como se poderia acha ridículo exprimir-se em canto as
ENSAIO SOBRE A ORIGEM DAS LÍNGUAS 197
pa1xoes fortes e sérias, pois sabe que imitação, que uma espécie de discurso
em nossas línguas essas paixões não substitua a voz da natureza. Engana-se
têm inflexões musicais e que os ho- o músico que quei: reproduzir o ruído
mens do norte, como os cisnes, não pelo próprio ruído. Desconhece tanto a
morrem cantando. força quanto a fraqueza de sua arte,
A harmonia sozinha é, em si mesma, formando juízos sem gosto e sem
insuficiente para as expressões que discernimento.
parecem depender unicamente dela. A Ensinai-lhe . que precisa produzir o
tempestade, o murmúrio das águas, os ruído pelo canto; que, se quisesse fazer
ventos, as borrascas, não são bem as rãs coaxarem, seria preciso fazê-las
transmitidos por simples acordes. De cantar, pois não lhe basta imitar:
qualquer modo que se faça, somente o impõe-se emocionar e agradar. Sem
ruído nada diz ao espírito, tendo os isso, sua imitação enfadonha nada ser·á
objetos de falar para se fazerem ouvir e e, não despertando interesse em nin-
sendo sempre necessário, em qualquer guém, não causa qualquer impressão.
CAPITULO XV
De como nossas mais vivas sensações
freqüentemente agem por meio de
impressões morais
Enquanto se continuar considerando outro. Se meu gato me ouve imitar um
os sons unicamente pela excitação que miado, logo o vejo atento, inquieto e
despertam em nossos nervos, de modo agitado, mas, percebendo ser eu quem
algum se terá verdadeiros princípios da estava imitando a voz de seu seme-
música, nem noção de seu poder sobre
os corações. Os sons, na melodia, não lhante, acalma-se e fica em repouso.
agem em nós apenas como sons, mas Por que essa diferença de impressão,
como sinais de nossas afeições, de nos- uma vez que tal diferença não existe na
sos sentimentos. Desse modo desper- excitação das fibras, pois o próprio
tam em nós os movimentos que expri- gato enganou-se a princípio?
mem e cuja imagem neles Se o maior dos impérios que sobre
reconhecemos. Até entre os animais se nós possuem as nossas sensações não
percebe qualquer coisa desse efeito
advém de causas morais, por que então
moral 6 8 • O latido de um cão chama
somos nós tão sensíveis a impressões
6 ª Embora não disponha das distinções mais que são nulas para os bárbaros? Por
bem marcadas de que hoje nos servimos, que as nossas músicas mais comove-
Rousseau deseja sublinhar a distância que vai doras não passam, ao ouvido de um
da pura sensação fisiopsicológica ao senti-
mento de claro conteúdo ético. Efetivamente, caraíba, de um ruído qualquer? Seus
se o sentimento, em si, pode decorrer de uma nervos são de natureza diversa da dos
sensação, não adquirirá sentido moral sem o nossos? Por que não são também eles
segundo e essencial elemento, que é a relação
com o semelhante. O exemplo oferecido, mal-
atingidos? Ou por que essas mesmas
grado o caráter bastante precário da psicologia comoções afetam tanto a uns e tão
animal, que então não passava de primário pouco a outros?
empirismo, é formulado, contudo, de maneira
cautelosa e destina-se apenas a sublinhar o Cita-se, como prova do poder físico
correspondente caso humano. (N. de L. G. M.) dos sons, a cura das picadas de tarân-
198 ROUSSEAU
CAPITULO XVI
Falsa analogia entre as cores e os sons
As cores não estão nos corpos colo- gio de uma arte, que só age pelo movi-
ridos, mas na luz; para que se veja um mento, consiste em poder formar até a
objeto é preciso que esteja iluminado. imagem do repouso. O sono, a calma
Os sons também têm necessidade de da noite, a solidão e o próprio silêncio
um motor e, para que existam, o corpo entram nos quadros da música. Sabe-
sonoro deve ser vibrado. Isso repre- se que o ruído pode produzir o efeito
senta uma outra vantagem em favor da do silêncio, e este, o efeito daquele,
vista, pois a emanação perpétua dos como quando adormecemos em meio a
astros é o instrumento natural que age uma leitura igual e monótona e acor-
sobre ela, enquanto a natureza, por si damos no momento em que cessa. A
mesma, poucos sons engendra e, a música, porém, age mais intimamente
menos que se admita a harmonia das sobre nós, excitando, por intermédio
esferas celestes, seres vivos precisam de um sentido, sensações semelhantes
produzi-la. àquela que se pode excitar por um
Por aí se vê estar a pintura mais pró- outro e, como a relação só pode tor-
xima da natureza, e a música, da arte nar-se sensível quando há impressão
humana. Percebe-se também que uma forte, a pintura, destituída dessa força,
interessa mais do que a outra, justa- não pode dar à música as imitações
mente porque aproxima mais o homem que a música dela extrai. A natureza
do homem e sempre nos dá alguma toda pode estar adormecida, mas aque-
idéia de nossos semelhantes. A pintura le que a contempla não dorme, consis-
freqüentemente é morta e inanimada; tindo a arte do músico em substituir a
pode transportar-vos ao fundo de um imagem insensível d9 objeto pela dos
deserto. Desde, porém, que os sinais movimentos que sua presença excita
vocais atinjam vosso ouvido, anun- no coração do contemplador. Não
ciam um ser semelhante a vós. São, somente agitará o mar, animará as
por assim dizer, os órgãos da alma e, chamas de um incêndio, fará os rios
embora também possam representar a correrem, cair a chuva e aumentarem
solidão, dizem que não estais só. Os as torrentes, como também pintará o
pássaros trinam, somente o homem horror de um deserto tremendo, ene-
canta. E não se pode ouvir canto ou grecerá as paredes de uma prisão
sinfonia sem se dizer imediatamente: subterrânea, acalmará a tempestade,
"Um outro ser sensível está aqui". tornará o ar tranqüilo e sereno, e, da
Uma das maiores vantagens do mú- orquestra, lançará uma nova frescura
sico consiste em poder pintar as coisas nos bosques. Não representará direta-
que não se poderiam ouvir, enquanto o mente tais coisas, mas excitará na
pintor não pode representar aquelas alma os mesmos sentimentos que se
que não se podem ver, e o maior prodí- experimenta vendo-as.
CAPITULO XVII
Erro dos músicos, prejudicial à sua arte
Vede como tudo sempre nos leva poder dos sons segundo a ação do ar e
aos efeitos morais de que vos falei e o vibrar das fibras nervosas, estão
como os músicos, que só consideram o longe de saber em que consiste a força
ENSAIO SOBRE A ORIGEM DAS LÍNGUAS 201
CAPITULO XVIII
De como o sistema musical dos gregos não
possuía relação alguma com o nosso
Como se deram tais mudanças? por porém, no falar se passa por intervalos
uma mudança natural do caráter das menores do que quando se canta, foi
línguas. Sabe-se que nossa harmonia é natural que observassem a repetição
uma invenção gótica. Zombam de nós dos tetracardes na sua melodia oral,
aqueles que pretendem encontrar o sis- como obedecemos à repetição das oita-
tema dos gregos no nosso. Aquele sis- vas na nossa melodia harmônica.
tema só era harmônico, segundo o sen- Só reconheceram como consonância
tido que damos à palavra, no aquelas que denominamos consonân-
respeitante à afinação dos instru- cias perfeitas, excluindo desse número
mentos por consonâncias perfeitas. as terças e as sextas. Por quê? Porque,
Todos os povos que possuem instru- ignorando o intervalo do tom menor
mentos de cordas são forçados a afiná- ou pelo menos proscrevendo-o da prá-
los por meio de consonâncias, mas tica e não sendo as suas consonâncias
aqueles que não os têm possuem nos temperadas, todas as suas terças maio-
seus cantos inflexões que conside- res eram uma coma mais fortes, sendo
ramos desafinadas por não entrarem em outro tanto mais fracas suas terças
no nosso sistema e por não podermos menores e, conseqüentemente, alteran-
grafá-las. Observou-se isso nos cantos do-se reciprocamente suas sextas
dos selvagens da América e isso tam- maiores e menores na mesma medida.
bém deveria ter-se observado em diver- Imagine-se, agora, que noções de har-
sos intervalos da música dos gregos, monia se pode ter e que modos harmô-
caso se tivesse estudado essa música nicos se pode estabelecer excluindo do
com menos preconceitos oriundos da número de consonâncias as terças e as
nossa. sextas. Se as próprias consonâncias,
Os gregos dividiam o seu diagrama que admitiam, resultassem de um ver-
em tetracordes, como dividimos o dadeiro sentimento de harmonia, tê-
nosso teclado em oitavas, e as mesmas las-iam pelo menos subentendidas por
divisões em cada tetracarde para eles sob seus cantos, e a consonância tácita
se repetiam exatamente como se repe- das marchas fundamentais emprestaria
tem, para nós, em cada oitava, seme- seu nome às marchas diatônicas que
lhança que não se poderia conservar lhes sugerissem. Longe de possuírem
na unidade do modo harmônico e que menos consonâncias do que nós, tê-
não se teria sequer imaginado. Como, las-iam em maior número e, por exem-
202 ROUSSEAU
CAPITULO XIX
Como degenerou a música
CAPÍTULO XX
Relação entre as línguas e o governo
Tais progressos não são nem fortui- tituía uma força pública, impunha-se a
tos nem arbitrários; prendem-se às eloqüência. De que serviria hoje, quan-
vicissitudes das coisas. As línguas se do a força pública substitui a persua-
formam naturalmente baseadas nas são? Não se tem necessidade nem de
necessidades dos homens, mudam e se arte nem de figura para dizer: assim o
alteram de acordo com as mudanças quero. Qual é o discurso, pois, que
dessas mesmas necessidades. Nos tem- ainda resta a fazer ao povo reunido?
pos antigos, quando a persuasão cons- Sermões. E qual o interesse daqueles
ENSAIO SOBRE A ORIGEM DAS LÍNGUAS 205
de Paul Arbousse-Bastide
Origens
tudo do corpo humano, das raças e dos povos. Suas principais fontes, neste
ponto, são: Buffon, na sua monumental História Natural, da qual cita sobretudo
o capítulo sobre A Natureza do Homem; P. Dutertre, autor de uma História
Geral das Antilhas Habitadas pelos Franceses; e a História das Viagens, publi-
cação periódica, editada desde 1746. Foi daí que o filósofo extraiu o retrato,
desde então legendário, do "bom selvagem': Convém lembrar Montaigne e,
especialmente, o capítulo dos Ensaios sobre Os Canibais 2 •
Dedicatória:
2
A esse respeito poder-se-á recorrer ao brilhante livro, copiosamente.documentado, de Afonso Arinos c,ie
Mello Franco: O Índio Brasileiro e a Revolução Francesa, Ed. J. Olympio, Rio de Janeiro, 1937. (N. de
P.A.-B.)
INTRODUÇÃO 211
PREFÁCIO
Conclusão:
DISCURSO
PRIMEIRA PARTE
1) O homem físico
também de retrogradar; é a causa das infelicidades dos homens, que não soube-
ram permanecer na felicidade do estado natural.
3) As/acuidades intelectuais superiores nascem das/acuidades inferiores.
a) A razão é posta em ação pelas paixões que, por sua vez, são suscitadas
pelas necessidades. As paixões e/ementares reduzem-se a três desejos e um
temor: o desejo de nutrição, o de reprodução e o de repouso; o temor da dor. O
homem, ignorante do que seria a morte, não poderia temê-la.
b) Essa opinião pode ser comprovada, de um lado, pela história do pro-
gresso intelectual, que está condicionado pelas paixões e pelas necessidades,
incessantemente aumentadas, do homem social; de outro lado, pela observação
dos selvagens, que não possuem desejos ou imaginação, e vivem inteiramente no
momento presente.
e) O progresso intelectual supõe trabalho, curiosidade, previdência - coi-
sas próprias não do homem natural mas do homem social. O progresso intelec-
tual supõe também duas condições que são as convenções sociais: a linguagem e
a divisão de terras.
4) Rousseau trata do problema da origem das línguas na intenção de pro-
var, de acordo com Condillac, que a língua supõe a sociedade e, portanto, não
pôde nascer naturalmente. Rousseau, consciente da dificuldade do problema e da
precariedade de todas as soluções, descreve os seguintes estágios naformação da
língua:
a) O grito é a primeira linguagem natural.
b) As inflexões da voz servem, pouco a pouco, para designar os objetos.
e) Surge, por fim, a instituição dos sinais, simbolizando as articulações da
voz. Limitada, a princípio, por palavras-frases, decompõe-se em infinitos e em
nomes próprios, depois estende-se aos adjetivos, que são abstrações, e às idéias
gerais. Compreende, então, as primeiras classificações lógicas e biológicas, como
as de Aristóteles.
5) Conclusão: a sociabilidade não está inscrita na natureza humana origi-
nal. O homem não tem necessidade de outrem. Não sofre nem a dor, nem a misé-
ria, que o tornariam digno de piedade. O estado de natureza caracteriza-se pela
suficiência do instinto, o estado de sociedade pela suficiência da razão.
1) Amoralismo integral: o homem não é então nem bom, nem mau, ignora
tanto as virtudes quanto os vícios. O estado de natureza é mais vantajoso para
ele e lhe proporciona mo.is felicidade do que o estado social.
2) O primeiro princípio da moral natural: o instinto de conservação de si
mesmo. O erro de Hobbes, · nesse ponto, consiste em ter acreditado que, para
conservar-se a si mesmo, impunha-se lutar com os outros e matá-los ou torná-los
escravos. Ora, a ausência da bondade não implica a maldade. O direito sobre as
coisas de que tem necessidade não leva o homem natural a um domínio univer-
sal. Pode-se muito bem zelar pela própria conservação sem prejudicar a de
outrem. O erro de Hobbes deve-se a ter levado em consideração necessidades tar-
dias para julgar o estado original do homem. Ora, o homem primitivo não pode-
ria ser mau, uma vez que não sabia o que era bom e mau.
214 INTRODUÇÃO
SEGUNDA PARTE
causa do progresso humano, tanto no que tem de bom quanto no que tem de
mau, mas engendram mais males do que bens.
3) Retrato da humanidade no seu último estágio. Rousseau, sem o dizer,
descreve o quadro do Antigo Regime: opressão, impostos, guerras, duelos,frivo-
lidade de;costumes, luxo e estetismo.
4) O despotismo fecha o círculo da evolução. Com efeito, reencontra todos
os caracteres do estado de natureza: os homens, então, são iguais por não vale-
rem nada: o direito do maisforte vence; a moralidade reduz-se a uma obediência
cega; não existe mais virtude de costumes, nem noção do bem. Um tal estado
legitima todas as revoluções.
Conclusão geral:
Importância do discurso
1) Diferentemente do primeiro discurso, o Discurso sobre a Desigualdade
não foi premiado pela Academia de Dijon. Conferiu-se o prêmio a outro discur-
so, que foi impresso, de autoria do Padre Talbert, notável autor de sermões, de
inúmeros elogios, de peças e de poesias, e freqüentemente laureado pelas acade-
mias de província. O Padre Talbert e suas obras há muito tempo caíram no mais
completo esquecimento. Do mesmo modo, a Dedicatória à República de Gene-
bra não produziu, naquela cidade, o efeito esperado por Rousseau, como o prova
uma carta a Perdriau, datada de 28 de novembro de 1754. O autor, com efeito,
descrevera muito ·mais a cidade de seus sonhos do que a realidade da vida polí-
tica genebrina e até incorrera em certos erros no quadro dessa vida, que
esboçara.
2) Mas, ao contrário do primeiro discurso, o segundo encontrou, não
somente entre os literatos, mas no grande público, um êxito imediato e triunfal.
Mornet, que passou em revista quinhentas bibliotecas particulares do século
XVIII, nelas encontrou somente quinze vezes o primeiro discurso, enquanto o
segundo aparece setenta e seis vezes, e a Nova Heloísa, cento e sessenta e cinco
vezes. Em dois pontos especiais, a repercussão do discurso foi considerável: a)
Rousseau instaurou, definitivamente, na literatura, o mito do selvagem livre,
feliz, robusto e puro, a superioridade da vida simples na natureza em oposição à
vida doentia das cidades civilizadas; b) voltou a dar forma à doutrina da igualda-
de, ao ideal de vida comunitária, que foi o dos espartanos e dos primeiros
cristãos.
INTRODUÇÃO 219
1 "Não é entre os povos depravados, mas entre os que :bem se conformam à natureza, que se deve examinar
o que é natural." Aristóteles, Política, Livro 1, cap. II. (N. de P. A.-B.)
AD\'ERTÊNCIA SOBRE AS NOTAS
2
Essas no tas de Ro ussea u, seri adas po r letras, enc ntram -se nas páginas 295-320. (N. do E.)
À REPÚBLICA DE GENEBRA
atordoam os fracos e delicados, que uma república que de modo algum ten-
absolutamente não lhes são afeitos. Os tasse a ambição de seus vizinhos e que
povos, uma vez acostumados a possuí- com justiça pudesse contar, na necessi-
rem senhores, não conseguem viver dade, com socorro. Conclui-se que,
sem eles. Se tentam sacudir o jugo, numa posição tão feliz, ela nada teria a
distanciam-se a tal ponto da liberdade temer a não ser de si mesma e que, se
que, tomando por ela uma licença esses cidadãos fossem adestrados nas
desenfreada que lhe é oposta, as suas armas, antes seria para manter entre
revoluções quase sempre os entregam a eles o ardor guerreiro e a altivez da
sedutores que só fazem agravar suas coragem, que assentam tão bem à
cadeias. O próprio povo romano, esse liberdade e alimentam o seu gosto, do
modelo de todos os povos livres, não que pela necessidade de atender à pró-
foi capaz de governar-se ao sair da pria defesa.
opressão dos Tarqufnios. Aviltados Teria procurado um país no qual o
pela escravatura e pelos trabalhos direito de legislação fosse comum a
ignominiosos que eles lhes impuseram, todos os cidadãos 1 2 , pois quem me-
ª"'princípio não foi senão a uma popu- lhor do que eles pode saber quais as
laça estúpida que se precisou dirigir e condições em que lhes convém viver
governar com a maior sabedoria afim juntos numa mesma sociedade? Mas
de que, acostumando-se pouco a pouco não aprovaria plebiscitos como os dos
a respirar o ar salutar da liberdade, romanos, nos quais os chefes de Esta-
essas almas abatidas, ou antes, embru- do e os mais interessados em sua
tecidas pela tirania, adquirissem paula- conservação estavam excluídos das
tinamente a severidade de costumes e a deliberações de que freqüentemente
altivez da coragem, que por fim o tor- dependia a sua salvação, e, por incon-
nariam o mais respeitável de todos os seqüência absurda, privavam-se os ma-
povos. Eu teria, pois, procurado para gistrados dos direitos usufruídos pelos
minha pátria uma república feliz e simples cidadãos.
tranqüila, cuja ancianidade de certo Teria desejado, pelo contrário, para
modo se perdesse na noite dos tempos, sustar os projetos interessados e mal
que só tivesse experimentado os golpes
necessários para suscitar e fortalecer 12
Não é exato para a Genebra de então. A
em seus habitantes a coragem e o amor população dividia-se aí em quatro classes,
pela pátria, e na qual os cidadãos, desiguais em seus direitos, sob todos os aspec-
habituados de há muito a uma inde- tos. Somente a classe dos cidadãos ou burgue-
pendência sábia, fossem não somente ses, que correspondia a l 600 pessoas em
24 000 habitantes, tinha entrada no Conselho
livres mas dignos de sê-lo. Geral, depositário do pod~r legislativo. Mesmo
Desejaria ter escolhido para mim esse Conselho Geral, depois das reformas
uma pátria despida, por feliz impotên- introduzidas por Calvino (1541-43), perdera a
cia, do feroz amor das conquistas, e iniciativa das leis e a designação direta dos
síndicos, em favor de Conselhos restritos,
garantida, por situação ainda mais recrutados por cooptação e representação da
feliz, do temor de tornar-se suscetível Igreja. Aliás, toda a história de Genebra é
da conquista por um outro Estado; marcada pela luta entre o governo da Igreja e a
uma cidade livre, colocada entre nume- assembléia popular. Rousseau é, pois, exces-
rosos povos, nenhum dos quais com sivo em seus elogios e, por isso, eles seriam
mal ·acolhidos na própria Genebra. Rousseau
interesse de invadi-la e cada um dos mudaria de opinião sobre Genebra e denun-
quais com interesse de impedir os de- ciaria o poder arbitrário dos síndicos na Séti-
mais de invadi-la; em uma palavra, ma Carta da Montah~ (N. de P. A.-B.)
226 ROUSSEAU
mente o repouso e a paz de que me pri- sois nem suficientemente ricos para
vara uma juventude imprudente, pelo enlanguescer-vos com a preguiça e per-
menos alimentaria em minha alma der com delícias vãs o gosto da verda-
esses mesmos sentimentos que não deira felicidade e o das virtudes sóli-
poderia ter aproveitado em meu país, das, nem tão pobres para necessitardes
e, imbuído de uma terna e desinte- de socorro estrangeiro que vossa in-
ressada qfeição por meus concidadãos dústria não exige. E quase nada vos
distantes, dirigir-lhes-ia, do fundo de custa conservar essa liberdade precio-
meu coração, mais ou menos o se- sa, que só se alcança nas grandes
guinte discurso: nações com impostos exorbitantes.
"Meus caros concidadãos, ou antes, "Possa durar sempre, para a felici-
meus irmãos, uma vez que tanto os dade de seus cidadãos e exemplo dos
laços de sangue quanto as leis nos povos, república tão sábia e felizmente
unem quase que a todos, é-me agradá- constituída! Tal o único voto que vos
vel não poder pensar em vós sem ao falta fazer e o único cuidado que vos
mesmo tempo pensar em todos os bens resta a tomar. E, só a vós, de agora em
de que gozais e cujo valor talvez ne- diante, caberá, não constituir vossa
nhum de vós alcança melhor do que felicidade 1 5 , pois vossos antepassados
eu, que os perdi. Quanto mais reflito já vos pouparam esse trabalho, mas
sobre vossa situação política e civil, sim torná-la duradoura pela sabedoria
menos consigo imaginar que a natu- que tiverdes de bem utilizar-vos dela. É
reza das coisas humanas possa com- da vossa união perpétua, de vossa
portar outra melhor. Em todos os de- obediência às leis, do respeito que
mais governos, quando se trata de tiverdes pelos seus ministros, que de-
assegurar o maior bem do Estado, penderá vossa conservação. Se subsis-
iodas as coisas se limitam sempre a tir entre vós o menor germe de amar-
projetos de idéias ou, pelo menos, a gor ou de desconfiança, apressai-vos
simples possibilidades; em vosso caso, em destruí-lo como um fermento funes-
vossa felicidade é completa - basta to, do qual, cedo ou tarde, resultariam
somente usufruir dela - e, para vos vossas infelicidades e a ruína do Esta-
tornardes bastante felizes, basta so- do. Conjuro-vos a que penetreis todos
mente contentar-vos com sê-lo. Vossa o fundo de vosso coração e consulteis
soberania adquirida ou conquistada à a voz secreta de vossa consciência 1 6 •
ponta de espada e conservada, durante Alguém dentre vós conhecerá no uni-
dois séculos, graças a vosso valor e verso corpo mais íntegro, mais esclare-
sabedoria, é enfim plena e universal- cido, mais respeitável do que o de vos-
mente reconhecida. Tratados dignos sos magistrados? Todos os seus
fixam vossas fronteiras, asseguram membros não vos dão o exemplo de
vossos direitos ·e fortalecem vosso moderação, de simplicidade de costu-
repouso. Vossa constituição é excelen- mes, de respeito pelas leis e de reconci-
te, ditada pela mais sublime razão e liação a mais sincera? Rendei, pois,
garantida por potências amigas e res- sem reservas, a chefes tão sábios, esta
peitáveis; vosso Estado é tranqüilo,
não tendes nem guerras, nem conquis- 1 5
Rousseau é obsediado pela palavra "felici-
tadores a temer, não conheceis outros dade", que incessantemente aparece ness a
Dedicatória, e, neste trecho, é repetida três
senhores senão as sábias leis que fizes- vezes em doze linhas. (N. de P. A.-B.)
tes, administradas por magistrados ín- 1 6
Alusão à especificidade e à condição de
tegros que são de vossa '!scolha; não inata da consciência moral. (N. de P. A.-B.)
228 ROUSSEAU
rido recebendo, com frutos bem par- prazer, ama naturalmente respeitar-
cos, as instruções ternas do melhor dos vos, e os mais ardentes em sustentar
pais. Se os desvarios de umajuventude seus direitos são os mais inclinàdos a
louca me fizeram, durante um certo respeitar os vossos.
tempo, esquecer lições tão sábias, Não surpreende que os çhefes de
tenho afelicidade de, por fim, demons- uma sociedade civil prezem-lhe a gló-
trar que, ainda que se tenha alguma ria e afelicidade; mas chega a inquie-
tendência para o vício, dificilmente tar os homens testemunharem que os
ficará perdida para sempre uma educa- que se consideram magistrados, ou
ção na qual o coração estiver presente. antes, os senhores de uma pátria mais
Tais são, MAGNÍFICOS E HONRA- santa e mais sublime, demonstrem
DÍSSIMOS SENHORES, os cidadãos algum amor pela pátria terrestre que os
e até os simples habitantes nascidos no alimenta. Como me é agradável poder
Estado em que governais; tais são abrir em nosso favor exceção tão rara
esses homens instruídos e sensatos dos e colocar, à altura de nossos melhores
quais, sob o nome de operários e de cidadãos, esses depositários zelosos
povo, se têm nas outras nações idéias dos dogmas sagrados autorizados
tão baixas e falsas. Meu pai, confesso- pelas leis, esses veneráveis pastores de
º com alegria. não se distinguiria de almas, cuja eloqüência viva e agradá-
modo algum entre seus concidadãos, vel leva com mais facilidade ao cora-
não era mais do que todos eles eram, e, ção as máximas do Evangelho, posto
tal como era, não havia região em que que sempre começam por praticá-las
o seu convívio não fosse procurado, eles mesmos! Todo o mundo sabe com
cultivado, mesmo com proveito, pelas que sucesso a grande arte da tribuna é
pessoas mais honestas. Não me cabe, cultivada em Genebra. Mas, acostu-
e, graças ao céu, não tenho necessi- mados demais a ouvir dizer de um
dade de falar-vos da consideração que modo e ver agir de outro, poucas pes-
podem esperar de vós homens dessa soas sabem até que ponto reinam entre
têmpera - vossos iguais tanto pela nossos ministros 2 1 o espírito do cris-
educação quanto pelos direitos da tianismo, a santidade dos costumes, a
natureza e do nascimento, vossos infe- severidade para consigo mesmo e a
riores por vontade própria - , pela suavidade para com o próximo. Talvez
preferência que devem a vosso mérito, caiba somente à cidade de Genebra
.que reconheceram, e pelo qual, por mostrar o exemplo edificante de união
vossa vez, lhes deveis certo reconheci- tão peifeita numa sociedade de teólo-
mento. Sei, com viva satisfação, com gos e de letrados; é, em grande parte,
quanta doçura e condescendência tem- em sua sabedoria e sua moderação
perais, para eles, a gravidade que con- reconhecidas, em seu zelo pela prospe-
vém aos ministros das leis, como lhes ridade ·do Estado, que baseio a espe-
retribuís em estima e atenções o que rança de sua tranqiiilidade eterna, e
vos devem em obediência e respeito:
conduta cheia de justiça e de sabedo- 2 1
Aos olhos de Rousseau, Genebra reproduz
ria, propícia a distanciar cada vez mais a vida dos primeiros cristãos, que, para ele, é a
a· memória dos acontecimentos infeli- ideal e que somente o protestantismo pode per-
zes, que é preciso esquecer parajamais mitir que tornemos a encontrar. Compare-se
com a ironia de Imbert de la Tour: "A pri-
rever; conduta ainda mais criteriosa na meira criação de Calvino foi um livro, a Insti-
medida em que esse povo eqüitativo e tuição, a segunda foi uma cidade, Genebra.
generoso transforma seu dever num Livro e cidade completam-se". (N. de P. A.-B.)
230 ROUSSEAU
naturalmente tão iguais entre si quanto Que meus leitores não pensem que
o eram os animais de cada espécie ouso iludir-me julgando ter visto o que
antes que várias causas físicas tives- me parece tão difici/ de ser visto. Ini-
sem introduzido em algumas espécies ciei alguns raciocinios, arrisquei algu-
as variedades que nelas notamos. Com mas conjeturas, antes com intenção de
efeito, não é concebível que essas pri- esclarecer e de reduzir a questão ao seu
meiras mudanças, sejam quais forem verdadeiro estado do que na esperança
os meios pelos quais se deram, tenham de resolvê-la. Outros poderão, desem-
alterado, a um só tempo e da mesma baraçadamente, ir mais longe na
maneira, todos os indivíduos da espé- mesma direção, sem que para ninguém
cie; porém, tendo-se uns aperfeiçoado seja fácil chegar ao término pois não
ou qeteriorado e adquirido várias qua- constitui empreendimento trivial sepa-
lidades, boas ou más, que de modo rar o que há de original e de artificial
algum eram inerentes à sua natureza, na natureza atual do homem, e conhe-
ficaram outros por mais longo tempo cer com exatidão um estado que não
em seu estado original. Foi isso que mais existe, que talvez nunca tenha
determinou entre os homens a primeira existido, que provavelmente jamais
fonte de desigualdade, que é mais fácil existirá 2 6 , e sobre o qual se tem, con-
tudo, a necessidade de alcançar noções
demonstrar assim em geral do que
assinalar-lhe com precisão as verda-
deiras causas.
2 6
Rousseau tem como objetivo reencontrar,
por meio da hipótese, a história da evolução,
no decorrer da qual os homens se elevaram até
cie de fatalismo conformista capaz de excluir o estado social. O método empregado por ele é
qualquer distinção entre o bem e o mal e psicológico; o estado de natureza, como o defi-
desaconselhando qualquer esforço de regenera- ne aqui, é o homem, fazendo-se abstração da
ção. Rousseau, pelo contrário, defende o crité- vida social; o problema é, então, saber quais
rio ético acima de todos os valores e só o crê são, no homem, os elementos que derivam da
realizável por uma ação voluntária. Mas, para constituição do indivíduo. Esse método foi cri-
julgar e para agir, impõe-se conhecer o objeto ticado pelos sociólogos modernos que, pelo
dessas operações - daí a busca da verdadeira contrário, pensam que a sociedade possui uma
lei natural, que "não constitui empreendimento natureza específica e que não se limita a uma
fácil", pois está em "separar o que há de origi- soma de unidades individuais. (N. de P. A.-B.)
nal e de artificial na natureza atual do homem [Vale, não obstante, registrar que a noção de
e conhecer com exatidão um estado que não síntese social só foi encontrada por Durkheim
mais existe, que talvez jamais tenha existido, (que se confessava constante leitor de Rous-
que provavelmente jamais existirá". seau) no século XX. Mesmo os fundadore s da
Esse empreendimento implicará desfazer ciência social - salvo a honrosa exceção de
dois pontos obscuros. O primeiro é puramente Karl Marx - continuaram, ainda depo is de
metodológico e Rousseau acaba de enunciá-lo: conceberem uma essência social distinta da
se a ciência é um produto social, todo o esfor- individual ou da simples soma das realidades
ço que se fizer para aprimorar o método trará, individuais, a considerar a existência de duas
por igual, um afastamento do objeto. O segun- realidades, lado a lado. Tal ambigüidade de"
do diz respeito ao próprio objeto, pois, lutando pensamento é notória nos "evolucionistas" e
contra os pontos de vista firmados em seu "biologistas" que, como Rousseau, só se inte-
tempo, Rousseau procurará, como indiçamos, ressaram por traçar a evolução que nos trouxe,
refutar uma noção fatalista da ordem natural homens e sociedades, do mais simples ao mais
- na qual se confundem o originário e .o complexo. Atualmente, já bem assimilado o
adquirido - , mas também cuidará de afastar conceito de síntese, os sociólogos não temem
as noções a tal propósito postas em circulação versar problemas que se julgavam reservados à
por certos cultores do direito natural. Voltare- psicologia, ·destacando-se, entre os trabalho s
mos ao ponto em nota subseqüente, para me- sociológicos contemporâneos, os dedicados ao
lhor acompanhar o pensamento de Rousseau. estudo da influência do social na formação da
(N. de L. G. M,) personalidade. (N. de L.G.M.)]
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 235
exatas para bem julgar de nosso estado na. Essa ignorância da natureza do
presente. Àquele que pretender deter- homem é que lança tanta incerteza e
minar exatamente as precauções a obscuridade sobre a definição verda-
serem tomadas para fazer sobre esse deira do direito natural, pois, como diz
assunto observações sólidas, tornar-se- o Sr. Burlamaqui2 9 , a idéia do direito
á mesmo necessário mais filosofia do e, mais ainda, a do direito natural, são
que se pensa e não me pareceria indig- evidentemente idéias relativas à natu-
na dos Aristóteles e dos PlíniOs de reza do homem. É, pois, dessa mesma
nosso século uma boa solução do natureza - continua ele - de sua
seguinte problema: "Quais as experiên- constituição e de seu estado, que se
cias necessárias para chegar-se a co- devem deduzir os princípios dessa
nhecer o homem natural e quais os ciência.
meios para fazer tais experiências no Não é sem surpresa e sem escândalo
seio da sociedade? ·~ 2 7 Longe de tentar que se nota a pequena concordância
resolver esse problema, creio ter medi- que reina sobre esse importante assun-
tado bastante sobre o assunto para to entre os diversos autores que já tra-
ousar de antemão responder que os taram dele. Entre os escritores mais sé-
maiores filósofos não serão suficiente- rios, encontram-se com dificuldade
mente bons para dirigir essas experiên- dois que sejam da mesma opinião
cias, nem os mais poderosos soberanos sobre esse ponto. Semfalar dos antigos
para f azê-las 2 8 , não sendo razoável filósofos, que parecem ter-se esforçado
contar com tal concurso, sobretudo para se contradizer entre si sobre os
com a perseverança ou, antes, a suces- princípios mais fundamentais, os juris-
são de luzes e de boa vontade necessá- consultos romanos submetem o
rias, tanto duma quanto doutra parte, homem e todos os outros animais à
para alcançar bom êxito. mesma lei natural, por atribuírem esse
Essas pesquisas, tão dificies de nome antes à lei, que a natureza impõe
fazer-se e sobre as quais se pensou tão a si mesma, do que à que prescreve, ou
pouco até aqui, constituem todavia os melhor, por causa da acepção particu-
únicos meios que nos restam para lar que esses jurisconsultos dão à pala-
remover uma multidão de dificuldades, vra lei que, segundo parece, só empre-
que nos ocultam o conhecimento dos garam, nessa ocasião, como expressão
fundamentos reais da sociedaqe huma- das relações gerais estabelecidas pela
natureza entre todos os seres animados
2 1 Aristóteles, entre os gregos, e Plínio, entre
visando à sua conservação comum. Os
os romanos, foram os dois sábios da antigui- modernos só reconhecem como lei
dade que acumularam as observações e as uma regra prescrita a um ser moral,
experiências da história natural. O método de isto é, inteligente, livre e considerado
Rousseau é claro: para alcançar o homem nas suas relações com os demais seres,
natural, com o qual se deve reconstruir a socie-
dade, impõe-se isolar nele tudo o que existe de limitando conseqüentemente ao único
social. "Caso contrário, corre-se o risco de animal dotado de razão, isto é, ao
incorrer no erro daqueles que, raciocinando homem, a competência da lei natural;
sobre o estado de natureza, carreiam para ele definindo, porém, esta lei cada um a
as idéias tomadas da sociedade." (N. de P.
A.-B.)
2 8 Rousseau pensa, ao mesmo tempo, na 2 9 Burlamaquf (1694- 1748), professor gene-
tradição do mecenismo científico dos príncipes brino, autor dos Princípios de Direilo Natural
e no despotismo esclarecido próprios do século (1747) e dos Princípios do Direito Político
XVII, do qual oferece uma idéia a Carta ao (1751). Influiu muito diretamente em Rous-
Rei da Polônia. (N. de P.A.B.) · seau. (N. de P. A. -B.)
236 ROUSSEAU
seu modo, estabelecem tudo sobre regras sobre as quais, para proveito
princípios tão metafísicos que há, comum, conviria que os homens con-
mesmo entre nós, muito poucas pes- cordassem entre si, e depois dá-se o
soas em situação de compreender esses nome de lei natural à coleção dessas
princípios, em lugar de poderem en- regras, sem outra prova além do bem
contrá-los por si mesmos. De forma que, segundo acham, resultaria de sua
que todas as definições desses homens prática universal. Aí está certamente
sábios, aliás em perpétua contradição um meio muito cômodo de compor
entre si, concordam unicamente quan- definições e explicar a natureza das
to a ser impossível compreender a lei coisas por conveniências arbitrárias.
da natureza e, conseqiientemente, obe- Enquanto, porém, não conhecermos
decê-la, sem ser grande pensador e pro- o homem natural, em vão desejaremos
fundo metafisico. Tal coisa significa, determinar a lei que ele recebeu ou
precisamente, que os homens tiveram aquela que . melhor convém à sua
de utilizar, para o estabelecimento da constituição. Quanto podemos apreen-
sociedade, luzes que só se desenvolvem der bem claramente sobre o objeto
com muito trabalho e para poucas pes- dessa lei é que não somente é preciso,
soas, no próprio seio da sociedade. para ser lei, que a vontade daquele a
Conhecendo tão mal a natureza e que obriga possa submeter-se a ela
concordando tão pouco quanto ao sen- com conhecimento, como, também,
tido da palavra lei, seria muito dificil para ser natural, é preciso que se expri-
convir numa boa definição da lei natu- ma imediatamente pela voz da nature-
ral. Assim, todas as que encontramos za.
nos livros, além do defeito de não
serem uniformes, têm ainda o de serem Deixando de lado, pois, todos os li-
extraídas de vários conhecimentos que vros científicos, que só nos ensinam a
os homens, em absoluto, não têm natu- ver os homens como eles se fizeram, e
ralmente, e de vantagens cuja idéia só meditando sobre as primeiras e mais
podem ter depois de sair do estado de simples operaÇões da alma humana,
natureza 3 0 • Começa-se por procurar creio nela perceber dois princípios
3 0 É a aplicação do método geral, expost0 anteriores à razão.• um dos quais inte-
no início do Prefácio, à teoria do direito natu- ressa profundamente ao nosso bem-es-
ral. Para Rousseau, a sociedade só pode ter
nascido de uma convenção; é o postulado exa- tar e à nossa conservação, e o outro
tamente oposto ao da escola do direito natural. nos inspira uma repugnância natural
Rousseau manifesta seu desacordo com os por ver perecer ou sofrer qualquer ser
Enciclopedistas e com o artigo Direito Natural sensível e principalmente nossos seme-
de Diderot. Essa tomada de posição fez com
que o classificassem de artificialista. 1A con- conceito de sociabilidade por qualquer motivo
tenda entre as várias correntes de estudiosos ultrapassava a condição de mero. instinto
do direito natural nunca esclareceria suficien- humano, isto é, de elemento puramente ind ivi-
temente qual a verdadeira base natural das dual. Rousseau, aceitando prontamente a con-
relações sociais. Grócio, sem dúvida, enun- cepção individualista, dispõe-se a apurar até
ciando uma "sociabilidade" que levaria os ho- qüe ponto se pode, com propriedade, falar de
mens a viverem em sociedade, "ainda que lei natural, posto que a palavra lei já implica
Deus não existisse", avançara o mais que per- uma regra consciente e voluntária; conseqüen-
mitia a cultura iluminista. Concorreu, pois, temente, busca saber até onde ia a confusão
para a efetiva laicízação do direito natural, entre, de um lado, o liame natural, originário,
mas, nem pelos seus escritos, nem pelos de fundamental e universal, e, de outra parte, as
seus discípulos e continuadores (nenhum dos regras resultantes das convenções sociais e
quais o igualou em força de penetração e inter- que, a seu ver, são artificiais, tardias, deriva-
pretação), fica-se sabendo, ao certo, se esse das e particulares. (N. de L. G. M.)j
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 237
fl~Iica dos KOVernos representa, para o meios que pareciam dever cumular
uma /içâo sob lodos os aspec-
h(lme111, nossa miséria.
t11\' ins!mliva. Considerando aquilo em
antes do dilúvio, os homens jamais se cartes instaurara uma dúvida universal, dei-
tenham encontrado no estado puro de xando de lado as verdades ligadas à fé. Ele
natureza, a menos que não tenham tor- procurava saber tudo o que a razão humana
pode ensinar-nos por suas próprias luzes,
nado a cair nele por causa de qualquer independentemente do que a Revelação nos
acontecimento extraordinário - para- ensinou por outros meios. Descartes chegou
doxo bastante difícil de defender e até a justificar seu tratado Do Mundo de um
completament(: impossível de provar. modo exatamente idêntico ao utilizado por
Rousseau no Discurso sobre a Desigualdade.
Comecemos, pois, por afastar todos Descartes afirma, com efeito, que sua exposi-
os fatos, pois eles não se prendem à ção sobre a criação do mundo, das plantas e
questão. Não se devem considerar as dos animais é a única em acordo com a razão
pesquisas, em que se pode entrar neste e a verdade, não estando, porém, ele em
assunto, como verdades históricas, contradição com a narrativa bíblica do Gêne-
sis; com efeito, Deus, infinito e todo-poderoso,
mas somente como raciocínios hipoté- podia criar os seres como lhe aprouvesse, seja
ticos e condicionais, mais apropriados geneticamente e de acordo com o método
cartesiano, seja completamente forma.dos e de
pronto em toda a sua perfeição, como o ensina
3 7
Os selvagens, de acordo com Rousseau, a Bíblia. "Adão e Eva não foram criados
só com grande inexatidão representam o esta- crianças, mas na idade de homens perfeitos",
do de natureza. Um método falso fez com que Princípios, XII, 45; ora somente a razão não
os filósofos s2 ~ ngasem quanto às tendên- pode decidir, por si só, uma questão que inte-
cias primitiva_; do homem e lhe atribuíssem, ressa a todo o poder divino; somente Deus
por exempb. a ma crueldade inata. Rousseau, pode dizer-nos como de fato agiu. Do mesmo
todavia, utilizar-se-á do exemplo dos selvagens modo. Rousseau afirma a irrealidade do esta-
neste seu disc ~ : r so, mas somente a título de do de natureza ao mesmo tempo que a nel:cssi-
verificação de suas hipóteses; nunca a psicolo- dade de estudá-la, caso se deseje compreender
gia do prim itivo serviu-lhe de ponto de apoio somente pela razão o que se passa. (N. de P.
para uma indução científica. (N. de P. A.-B.) A.-B.)
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 243
PRIMEIRA PA~TE
Por importante que seja, para bem pio garras retorcidas, se era peludo
julgar o estado natural do homem, como um urso e se, andando com qua-
considerá-lo desde sua origem e exami- tro pés (e), seus olhares dirigidos para
ná-lo, por assim dizer, no primeiro a terra e 1imitados a um horizonte de
embrião da espécie, não seguirei sua alguns passos não assinalavam, ao
organização através de seus desenvol- mesmo tempo, o caráter e os limites de
vimentos sucessivos; não me deterei suas idéias. Não poderei formular
procurando no sistema animal o que sobre esse assunto senão conjeturas
poderia ter sido inicialmente para ter- vagas e quase imaginárias. A anatomia
se tornado o que é. Não examinarei se, comparada progrediu muito pouco até
como pensava Aristóteles 41 , suas hoje, as observações dos naturalistas
unhas compridas não foram a princí- ainda são muito incertas para que se
possa, sobre tais fundamentos, estabe-
4 1
O valor de Áristóteles como naturalista
lecer a base de um raciocínio sólido;
resulta do fato de ter ele introduzido sistemati- assim, sem ter recorrido aos conheci-
camente o método comparativo em biologia; mentos naturais que temos sobre esse
salientou a analogia em que diferentes classes ponto e sem levar em consideração as
zoológicas aparentam órgãos cuja estrutura e mudanças que se deram na conforma-
aspecto exterior são muito dessemelhantes. O
que a mão é para o homem, a.pinça o é para os ção, tanto interior quanto exterior do
crustáceos: o que a asa é para o pássaro, a bar- homem, à medida que aplicava seus
batana o é para o peixe, etc. (N. de P. A.-B.) membros a novos usos e se nutria com
244 ROUSSEAU
contando ainda com a vantagem de, risco de perecer com ela. Esse perigo,
não menos disposto do que os animais porém, é comum a muitàs outras espé-
à caminhada e encontrando nas árvo- cies, nas quais os menores, durante
res um refúgio quase seguro, dispor algum tempo, não são capazes de pro-
sempre da aceitação ou recusa do curar por si mesmos a alimentação e,
embate, e da escolha entre a fuga ou o se a infância é mais longa entre nós, a
combate. Acrescentemos que, segundo vida sendo mais longa também, neste
parece, nenhum animal guerreia natu- ponto tudo é quase igual (g), havendo
ralmente com o homem, a não ser no não obstante sobre -a duração da pri-
caso de sua própria defesa ou de uma meira idade e sobre o número das
fome extrema, nem lhe testemunha crianças (h) outras regras que não se
essas antipatias violentas, que parecem prendem ao meu assunto. Entre os
anunciar ser uma espécie destinada velhos, que agem e transpiram pouco,
pela natureza a servir de pasto a outra. a necessidade de alimentos diminui
Aí estão, sem dúvida, os motivos com a faculdade de atendê-la e, como a
pelos quais os negros e os selvagens vida selvagem distancia deles os reu-
dão tão pouca importância aos ani- matismos e a gota, e como a velhice,
mais ferozes que possam encontrar nos entre todos os males, é aquele que o
bosques. Os caraíbas da Venezuela, socorro humano menos pode aliviar,
entre outros, vivem, a esse respeito, na extinguem-se um dia, sem que nos
mais profunda segurança e sem o apercebamos que deixaram de viver e
menor inconveniente. Embora vivam quase sem que eles mesmos percebam.
quase nus, diz François Correal, não Quanto às doenças, não repetirei as
deixam de corajosamente expor-se nas declamações inúteis e falsas que faz
matas, armados unicamente de flecha e contra a medicina a maioria das pes-
arco. Jamais se ouviu falar, no entanto, soas de boa saúde, mas perguntarei se
que alguns deles tenham sido devora- há uma observação sólida da qual se
dos pelos animais. possa concluir que, no país em que
Outros inimigos, mais temíveis e em essa arte é mais descuidada, a vida do
face dos quais o homem não conta homem seja mais breve do que naque-
com os mesmos meios para defender- les em que a cultivam com o maior dos
se, são as enfermidades naturais, a cuidados. E como poderia acontecer,
infância, a velhice e as doenças de toda se nós nos causamos males mais nume-
espécie; sinais muito tristes de nossa rosos do que os remédios que a medi-
fraqueza, os dois primeiros são co- cina pode nos fornecer? A extrema
muns a todos os animais e o último desigualdade na maneira de viver; o
pertence principalmente ao homem que excesso de ociosidade de uns; o exces-
vive em sociedade. Observo até, em so de trabalho de outros; a facilidade
relação à infância, que, levando a mãe de irritar e de satisfazer nossos apetitçs
consigo o filho para todos os lugares, e nossa sensualidade; os alimentos
tem muito mais facilidade para alimen- muito rebuscados dos ricos, que os nu-
tá-lo do que as fêmeas de inúmeros trem com sucos abrasadores e que
animais que são forçadas, continua- determinam tantas indigestões; a má
mente e com muita fadiga, a ir e vir, de alimentação dos pobres, que freqüente-
um lado para outro para procurar mente lhes falta e cuja carência faz que
pasto e, de outro, para amamentar e sobrecarreguem, quando possível, avi-
nutrir seus ·filhotes. É verdade que, se a damente seu estômago; as vigílias, os
mulher more~ o filho corre grande
i -,, _'.
excessos de toda ·sorte; os transportes
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 247
homem tratados igualmente pela natu- mais exercitadas deverão ser aquelas
reza, todas as comodidades que o cujo objetivo principal seja o ataque e
homem a si mesmo oferece, mas não a defesa, quer para subjugar a presa,
aos animais, são outras tantas causas quer para defender-se de tornar-se a de
particulares que fazem com que mais um outro animal; os órgãos que só se
perceptivelmente degenere. aperfeiçoam pela lassidão e pela sen-
Não constituem, pois, para esses sualidade devem, ao contrário, perma-
primeiros homens, nem tão grande necer num estado de grosseria que
mal, nem, sobretudo, tão grande obstá- deles excluirá qualquer delicadeza;
culo à sua conservação, a nudez, a ficando seus sentidos, nessa direção,
falta de moradia e a privação de todas divididos, terá o tato e o gosto de uma
as inutilidades que consideramos tão rudez extrema, e a vista, a audi9ão e o
necessárias. Se não têm a pele peluda, olfato de uma enorme sutileza. E esse o
de modo algum disso necessitam nas estado animal em geral e também, de
regiões quentes e, nas frias, desde logo acordo com os relatos dos viajantes, o
sabem apropriar-se da dos animais que da maioria dos povos selvagens. Eis
por que não devemos espantar-nos
dominaram; se só têm dois pés para
com o fato de os hotentotes do cabo da
correr, têm dois braços para atender à
Boa Esperança descobrirem navios em
sua defesa e às suas necessidades. Seus
alto mar a olho nu tão longe quanto os
filhos talvez andem tardiamente e com
holandeses os divisam com óculos
dificuldade, mas as mães os carregam
nem, por igual, que os selvagens d~
com facilidade, o que constitui uma
América sintam os espanhóis no seu
vantagem, que falta às demais espé-.
encalço como o poderiam fazer os
cies, nas quais, ao ser a mãe perse-
melhores cães, nem, também, que ·
guida, vê-se obrigada a abandonar seus -
todas essas nações bárbaras suportem
filhotes ou a regular seus passos pelos
sem sacrifício sua nudez, agucem seu
deles. Finalmente, a menos que se
paladar com pimenta e bebam licores
suponham esses singulares e fortuitos
europeus como água.
concursos de circunstâncias dos quais
falarei em seguida e que poderiam Até aqui levei em consideração
muito bem jamais ter acontecido, é somente o homem físico; esforcemo-
claro e sem contestação possível que o nos por encará-lo, agora, em seu
primeiro a arranjar vestes e uma habi- aspecto metafísico e moral.
tação ofereceu a si mesmo, desse Em cada animal vejo somente uma
modo, coisas pouco necessárias, pois máquina 5 0 engenhosa a que a natureza
tinha passado até então sem elas e c~mferiu sentidos para recompor-se por
também por não se poder imaginar s1 mesma e para defender-se, até certo
como não poderia ele suportar, feito ponto, de tudo quanto tende a destruí-
homem, um gênero de vida em que la ou estragá-la. Percebo as mesmas
vivia desde a infância. coisas na máquina humana, com a
diferença de tudo fazer sozinha a natu-
Só, desocupado e sempre próximo reza nas operações do animal, en-
do perigo, o homem selvagem deve quanto o homem executa as suas como
gostar de dormir e ter o sono leve, agente livre. Um escolhe ou rejeita por
como os animais que, pensando pouco,
dormem, por assim dizer, todo o tempo
em que não estão pensando. Consti- dos"º Rousseau adota o mecanismo cartesiano
corpos. No parágrafo seguinte, segue a
tuindo a própria conservação quase teoria cartesiana do espírito, que o divide em
sua única preocupação, as faculdades entendimento e vontade. (N. de P. A.-B.)
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 249
instinto, e o outro, por um ato de liber- e o animal, haveria uma outra quali-
dade, razão por que o animal não pode dade muito específica que os distin-
desviar-se da regra que lhe é prescrita, guiria e a respeito da qual não pode
mesmo quando lhe fora vantajoso haver contestação - é a faculdade de
fazê-lo, e o homem, em seu prejuízo, aperfeiçoar-se, faculdade que, com o
freqüentemente se afasta dela. Assim, auxílio das circunstâncias, desenvolve
um pombo morreria de fome perto de sucessivamente todas as outras e se
um prato cheio das melhores carnes e encontra, entre nós, tanto na .espécie
um gato sobre um monte de frutas ou quanto no indivíduo; o animal, pelo
de sementes, embora tanto um quanto contrário, ao fim de alguns meses, é o
outro pudessem alimentar-se muito que será._por toda a vida, e sua espécie,
bem com o alimento que desdenham, no fim de milhares de anos, o que era
se fosse atilado para tentá-lo; assim, os no primeiro ano desses milhares. Por
homens dissolutos se entregam a ex- que só o homem é suscetível de tor-
cessos que lhes causam febre e morte, nar-se imbecil? 51 Não será porque
porque o espírito deprava os sentidos e volta, assim, ao seu estado primitivo e
a vontade ainda fala quando a natu- - enquanto a besta, que nada adqui-
reza se cala. riu e também nada tem de bom a per-
Todo animal tem idéias, posto que der, fica sempre com seu instinto - o
tem sentidos; chega mesmo a combi- homem; tornando a perder, pela velhi-
nar suas idéias até certo ponto e o ce ou por outros acidentes, tudo o que
homem, a esse respeito, só se diferen- sua perfectibilidade lhe fizera adquirir,
cia da besta pela intensidade. Alguns volta a cair, desse modo, mais baixo
filósofos chegaram mesmo a afirmar do que a própria besta? Seria triste,
que existe maior diferença entre um para nós, vermo-nos forçados a convir
homem e outro do que entre um certo que seja essa faculdade, distintiva e
homem e certa besta. Não é, pois, quase ilimitada, a fonte de todos os
tanto o entendimento quanto a quali- males do homem; que seja ela que,
dade de agente livre possuída pelo com o tempo, o tira dessa condição
homem que constitui, entre os animais, original na qual passaria dias tran-
a distinção específica daquele. A natu- qüilos e inocentes; que seja ela que ,
reza manda em todos os animais, e a fazendo com que através dos séculos
besta obedece. O homem sofre a desabrochem suas luzes e erros, seus
mesma influência, mas considera-se vícios e virtudes, o torna com o tempo
livre para concordar ou · resistir, e é o tirano de si mesmo e da natureza (i).
sobretudo na consciência dessa liber- Seria horrível ter de louvar como um
dade que se mostra a espiritualidade de ser benfeitor·'·o primeiro a sugerir aos
sua alma, pois a física de certo modo habitantes das margens do Orinoco o
explica o mecanismo dos sentidos e a uso dessas tabuazinhas que aplicam
formação das idéias, mas no poder de nas têmporas de seus filhos e que, pelo
querer, ou antes, de escolher e no senti- menos, lhes asseguram uma parte de
mento desse poder só se encontram sua imbecilidade e de sua felicidade
atos puramente espirituais que de original.
modo algum serão explicados pelas O homem selvagem, abandonado
leis da mecânica. pela natureza unicamente ao instinto,
Mas, ainda quando as dificuldades
que cercam todas essas questões dei- 5 1 Sofrendo no corpo e no espírito, Rousseau
xassem por um instante de causar dis- toma posição contra a filosofia do progresso e
cussão sobre diferença entre o homem das luzes. (N. de P. A.-B.)
250 ROUSSEAU
mente nas filosofias de Platão, Malebranche, 6 7 O genero é uma classe muito geral de obje-
finalmente, neste último caso, como se exercerem, a fim de que não se tor-
poderiam estabelecer condições entre nassem supérfluas e onerosas antes do
si. Sei que incessantemente nos repe- tempo, nem tardias e inúteis ao apare-
tem que nada teria sido tão miserável cer a necessidade. O homem encon-
quanto o homem nesse estado 7 2 ; e, se trava unicamente no instinto todo o
é verdade, como creio tê-lo provado, necessário para viver no estado de
que só depois de muitos séculos pode- natureza; numa razão cultivada só
ria sentir ele o desejo e a oportunidade encontra aquilo de que necessita para
de sair dessa condição, tal acusação viver em sociedade.
fora de fazer-se à natureza e não àque- Parece, a princípio, que os homens
le assim constituído por ela. Mas, se nesse estado de natureza, não havendo
compreendo bem o termo miserável, é entre si qualquer espécie de relação
ele uma palavra sem sentido algum ou moral ou de deveres comuns, não
que só significa uma privação dolorosa poderiam ser nem bons nem maus ou
e sofrimento do corpo ou da alma. possuir vícios e virtudes, a menos que,
Ora, desejaria que me explicassem tomando estas palavras num sentido fí-
qual poderia ser o gênero de miséria de sico, se considerem como vícios do
um ser livre cujo coração está em paz e indivíduo as qualidades capazes de
o corpo com saúde. Pergunto qual das prejudicar sua própria conservação, e
duas - a vida civil ou a natural - é virtudes aquelas capazes de em seu
mais suseetível de tornar-se insupor- favor contribuir, caso em que se pode-
tável àqueles que a fruem. À nossa ria chamar de mais virtuosos àqueles
volta, vemos quase somente pessoas que menos resistissem aos impulsos
que se lamentam de sua existência, inú- simples da natureza 7 3 • Sem nos afas-
meras até que dela se privam assim tarmos do senso comum, é oportuno
que podem, e o conjunto das leis divi- suspender o julgamento que pode-
nas e humanas mal basta para deter ríamos fazer de uma tal situação e des-
essa desordem. Pergunto se algum dia confiar de nossos preconceitos até que,
se ouviu dizer que um selvagem em de balança na mão, se tenha exami-
liberdade pensou em lamentar-se da nado se há mais virtudes do que vícios
vida e em querer morrer. Que se julgue, entre os homens civilizados; ou se suas
pois, com menos orgulho, de que lado virtudes são mais proveitosas do que
está a verdadeira miséria. Pelo contrá- funestos seus vícios; ou se o progresso
rio, nada seria tão miserável quanto de seus conhecimentos constitui com-
um selvagem ofuscado por luzes, ator- pensação suficiente dos males que se
mentado por paixões e raciocinando causam mutuamente à medida que se
sobre um estado diferente do seu. instruem sobre o bem que deveriam
Deveu-se a uma providência bastante dispensar-se; ou se não estariam, na
sábia o fato de as faculdades, que ele melhor das hipóteses, numa situação
apenas possuía potencialmente, só po- mais feliz não tendo nem mal a temer
derem desenvolver-se nas ocasiões de nem bem a esperar de ninguém, ao
72 Alusão a Pascal, cuja Apologia da Reli- 73 Agora, é a moral que se conceituará como
gião Cristã se funda na oposição entre a gran- produto do social, pois - a exemplo da lin-
deza do homem com Deus e de sua miséria guagem - falta-lhe base e finalidade na exis-
sem Deus; isso porque, para Pascal, a natureza tência individual básica, enquanto se torna,
é originalmente corrompida; a natureza sem primeiro, possível e, depois, fatal mesmo, na
graça é o pecado. Rousseau recusa, absoluta- convivência entre semelhantes. (N. de L. G.
mente, a noção de pecado. (N. de P. A.-R) M.)
258 ROUSSEAU
atacam para defender-se. Certamente já existia 1, II) que se aplica aos Citas: "Desse modo,
a piedade, mas no iriterior de um pequeno parece admirável que a natureza lhes dê o que
grupo; "tinham a idéia de um pai, de um filho, os gregos não puderam adquirir por meio do
de um irmão, mas não de um homem"; reu- longo ensinamento dos sábios nem pelos pre-
niam "costumes tão ferozes e corações tão ter- ceitos dos filósofos que não sobrepujaram,
nos, tanto amor por sua família e aversão pela com seus costumes civilizados, a barbárie
sua espécie". Enfim, a piedade é muito anterior inculta: serviu muito mais a estes a ignorância
à reflexão, mas só se estende a toda a humani- dos vícios do que àqueles o conhecimento da
dade por meio desta. (N. de P. A.-B.) virtude". (N. de P. A.-B.)
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 259
sas para a sociedade. Berkeley refutou esse nhece que. deu ao gênero humano corações
ponto de vista no seu Alciphron. (N. de P. muito ternos." Juvenal, Sátira XV, verso 131.
A.-B.) (N. de P. A.-B.)
260 ROUSSEAU
tudes sociais· que· quer contestar nos homem prudente se distancia; a cana-
homens. Com efeito, que são a genero- lha, as mulheres do mercado, é que
sidade, a clemência, a humanidade, separam os contendores e impedem as
senão a piedade aplicada aos fracos, pessoas de bem de se degolarem
aos culpados ou à espécie humana em mutuamente 7 8 •
geral? Até a benquerença e a amizade Certo, pois a piedade representa um
são, bem entendidas, produções de sentimento natural que, moderando em
uma piedade constante fixadas num cada indjvíduo a ação do amor de si
objeto especial, pois desejar que al- mesmo, concorre para a conservação
guém não sofra não será desejar que mútua de toda a espécie. Ela nos faz,
seja feliz? A ser verdadeiro que a sem reflexão, socorrer aqueles que
comiseração não passa de um senti- vemos sofrer; ela, no estado de nature-
mento que nos coloca no lugar daquele za, ocupa o lugar das leis, dos costu-
que sofre, sentimento obscuro e vivo mes e da virtude, com a vantagem de
no homem selvagem, desenvolvido ninguém sentir-se tentado a desobe-
mas fraco no homem civil, que impor- decer à sua doce voz; ela impedirá
tará tal idéia para a verdade do que qualquer selvagem robusto de tirar a
digo, senão para dar-lhe mais força? A uma criança fraca ou a um velho enfer-
comiseração, com efeito, mostrar-se-á mo a subsistência adquirida com difi-
tanto mais enérgica quanto mais inti- culdade, desde que ele mesmo possa
mamente se identificar o animal espec- encontrar a sua em outra parte; ela, em
tador com o animal sofredor. Ora, é lugar dessa máxima sublime da justiça
evidente que essa identificação deveu raciocinada .- Faze a outrem o que
ser infinitamente mais íntima no esta- desejas que façam a ti - , inspira a
do de natureza do que no estado de todos os homens esta outra máxima de
raciocínio. É a razão que engendra o bondade natural, bem menos perfeita,
amor-próprio e a reflexão o fortifica; mas talvez mais útil do que a prece-
faz o homem voltar-se sobre si mesmo; dente - Alcança teu bem com o
separa-o de quanto o perturba e aflige. menor mal possível para outrem.
É a filosofia que o isola; por sua causa, Numa palavra, antes nesse sentimento
diz ele, em segredo; ao ver um homem natural do que nos argumentos sutis
sofrendo: "Perece, se queres; quanto a deve procurar-se a causa da repug-
mim, estou seguro". Nada, além dos nância que todo homem experimen-
pei;igos da sociedade inteira, atrapalha taria por agir mal, mesmo independen-
o sono tranqüilo do filósofo e o arran- temente das máximas da educação.
ca do leito. Podem impunemente dego- Ainda que possa ser próprio de Sócra-
lar um seu semelhante sob sua janela, tes e dos espíritos de sua têmpera
ele só terá de levar as mãos às orelhas
e ponderar um pouco consigo mesmo 7 8
Nas Confissões, Rousseau afirma que esse
para impedir a natureza, que nele se retrato do filósofo que raciocina contra a .pie-
revolta, de identificar-se com aquele dade natural tapando os ouvidos é o de Dide-
rot. Aproveita-se disso para acusar Diderot de
que se assassina. O homem selvagem ter, devido à sua influência, dado às próprias
de modo algum possui esse talento obras "o tom duro e o aspecto negro" que de-
admirável e, por falta de sabedoria e de pois não mais apresentaram. Esse retrato tam-
razão, vemo-lo cada dia entregar-se bém visa Lucrécio (com o célebre trecho
"suave mari magno" . .. "é doce ver um nau-
temerariamente ao primeiro senti- frágio quando se está ao abrigo em terra
mento de humanidade. Nos motins, firme") e o moralista inglês Shaftesbury. (N. de
nas arruaças, a populaça se reúne, o P. A.-B.)
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 261
do, no qual só sentia suas verdadeiras É fácil de ver, com efeito, que entre
necessidades, só olhava aquilo que as diferenças que distinguem os ho-
acreditava ter inter~s de ver, não mens, inúmeras, consideradas como
fazendo sua inteligência maiores pro- naturais, são unicamente obra do hábi-
gressos do que a vaidade. Se por acaso to e dos vários gêneros de vida que os
descobria qualquer coisa, era tanto homens adotam em sociedade. Assim,
mais incapaz de comunicá-la quanto um temperamento robusto ou delicado,
nem mesmo reconhecia os próprios a força ou a fraqueza, que dele deri-
filhos. A arte perecia com o inventor. vam, resultam mais fre·qüentemente da
Então não havia nem educação, nem maneira dura ou afeminada pela qual
progresso; as gerações se multipli- se foi educado do que da constituição
cavam inutilmente e, partindo cada primitiva dos corpos. A mesma coisa
uma sempre do mesmo ponto, desenro- acontece com as forças do espírito; a
lavam-se os séculos com toda a grosse- educação não só estabelece diferença
ria das primeiras épocas; a espécie já entre os espíritos cultos e os que não o
era velha e o homem continuava sem- são, como também aumenta a que exis-
pre criança 7 9 • te entre os primeiros na proporção da
Estendi-me desse modo sobre a cultura, pois, quando um gigante e um
suposiçãoª 0 dessa condição primitiva anão andam pelo mesmo caminho,
porque, devendo destruir antigos erros cada passo, que um e outro dêem, trará
e preconceitos inveterados, achei que uma vantagem a mais ao gigante. Ora,
devia pulverizá-los até a raiz e mos- se se fizer uma comparação entre a
trar, no quadro do verdadeiro estado diversidade prodigiosa de educação e
de natureza, como a desigualdade, de gêneros de vida que reina nas várias
mesmo natural, está longe de ter nesse ordens do estado civil, e a simplicidade
estado tanta realidade e influência e uniformidade da vida animal e selva-
quanto pretendem nossos escritores 81 • gem, na qual todos se alimentam com
os mesmos alimentos, vivem da mesma
,
7 9
A incapacidade, que Rousseau aponta no
homem natural, para uma acull1ulação cultural maneira e fazem exatamente as mes-
por sobre e para além das geràções em suces- mas coisas, compreender-se-á quanto
são, representa a antítese teórica e conjétliral deve a diferença de homem para
do sentido histórico da vida humana. Em ou- homem ser menor no estado de natu-
tras palavras: os feitos do homem, longe de
poderem ser atribuídos às suas capacidades de
reza do que no estado de sociedade e
animal superior, resultam substancialmente da quanto aumenta a desigualdade natu-
vida em sociedade que supera e transfigura as ral na espécie humana por causa da
existências individuais. Por isso os historia- desigualdade de instituição.
dores modernos reconhecem em Rousseau um Mas, mesmo se a natureza mos-
precioso precursor que, principalmente através
de Herder, legou-nos uma visão inteiramente trasse na distribuição desses dons
inédita da História. (N. de L. G. M.) todas as preferências que se pretende
80 O autor lembra que esse quadro do estado que tenha, qual a vantagem alcançada
de natureza não passa de uma hipótese bem pelos favorecidos em prejuízo dos
fundamentada, pois sua eloqüência fez com
que nos esquecêssemos disso. (N de P. A.-B.)
demais, num estado de coisas-que não
s 1 Hobbes via na força um método, mais admitiria quase nenhuma espécie de
curto e mais natural do que as convenções, relação entre eles? De que servirá a be-
para fundamentar uma sociedade: o mais forte leza onde não houver amor de espécie
submete seus súditos, seja como um pai sub- alguma? De que serve o espírito a pes-
mete os filhos a seu governo, seja como o ven-
cedor submete o inimigo vencido à servidão. soas que não falam e a astúcia aos que
(N. de P. A.-B.) não têm interesses? Ouço sempre dizer
264 ROUSSEAU
que os mais fortes oprimirão os fracos. Sem prolongar inutilmente esses de-
E preciso, porém, que me expliquem -0 talhes, cada qual deve ver como, por
que querem dizer com a palavra opres- serem os laços da servidão formados
são. Uns dominarão com violência, ou- unicamente pela dependência mútua
tros gemerão submetidos a todos os dos homens e pelas necessidades recí-
seus caprichos. Aí está precisamente o procas que os unem, é impossível sub-
que observo entre nós, mas não sei jugar um homem sem antes tê-1~ colo-
como se poderia dizer isso de homens cado na situação de não viver sem o
selvagens, com os quais se teria mesmo outro, situação essa que, por não exis-
grande dificuldade para fazer com- tir no estado de natureza, nele deixa
preender o que é servidão e domina- cada um livre do jugo e torna inútil a
ção. Um homem poderá muito bem lei do mais forteª 3 •
apossar-se dos frutos colhidos por um Depois de ter provado ser a desi-
outro, da caça morta por ele, do antro gualdade apenas perceptível no estado
que lhe servia de abrigo, mas como de natureza, e ser nele quase nula sua
chegaria ao ponto de fazer-se obede- influência, resta-me ainda mostrar sua
cer? .E quais poderão ser as cadeias da origem e seus progressos nos desenvol-
dependência entre homens que nada vimentos sucessivos do espírito huma-
possuem? Se me expulsam de uma ár- no. Depois de ter mostrado que a
vore, sou livre de ir a uma outra; se me perfectibilidade, as virtudes sociais e
perseguem num certo lugar, que me as outras faculdades que o homem
impedirá de ir para outro? Se encon- natural recebera potencialmente ja-
trar um homem com força bem supe- mais poderão desenvolver-se por si
rior à minha e, além disso, o bastante própriàs, pois para isso necessitam do
depravado, preguiçoso e feroz para concurso fortuito de inúmeras causas.
obrigar-me a prover a sua subsistência estranhas, que nunca poderiam surgir e
enquanto nada fizer, será preciso que sem as quais ele teria permanecido
ele se resolva a não me perder de vista eternamente em sua condição primiti-
um só instante e ter-me amarrado com va, resta-me considerar e aproximar os
muito cuidado enquanto dormir, te-
mendo que eu escape ou que o mate, vários acasos que puderam aperfeiçoar
isto é, será obrigado a expor-se volun- a razão humana, deteriorando a espé-
tariamente a um trabalho muito maior cie, tornar mau 8 4 um ser ao transfor-
do que deseja evitar e do que dá a mim má-lo em ser social e, partindo de tão
mesmo. Depois de tudo isso, sua vigi- longe, trazer enfim o homem e o
lância amaina um pouco, um ruído mundo ao ponto em que o conhece-
imprevisto faz com que volte a cabeça, mos.
ando vinte passos em direção à flores-
ta, meus grilhões se quebram e ele 83
Essa crítica da teoria do direito do mais
nunca mais me vê em toda a sua forte visa Hobbes, que baseava o direito na
relação senhor-escràvo. O vencido teme a
vida 82 • morte e prefere a sujeição à escravidão. Para
Rousseau, por um lado, esse temor e essa sujei-
82 Para que se estabeleça entre os homens, a ção só podem ser permanentes no estado de
desigualdade de poder carece de uma base real natureza; por outro lado, não é legítimo que os
que Rousseau propende a apontar na institui- compromissos assumidos devido ao temor
ção da propriedade, sem a qual o esforço des- sejam obrigatórios. Toda a argumentação será
pendido na sujeição e vigia do semelhante retomada no Contrato Social, I, III, Do direito
escravizado não seria compensador, como do maisforte e da escravidão. (N. de P. A.-B.)
seria tê-lo a trabalhar numa acumulação de 8 4 Mau: no original, "méchant ": mau, vicia ..
SEGUNDA PARTE
pendente; mas, desde o instante em que matérias metálicas em fusão, deu aos
um homem sentiu necessidade do so- observadores a idéia de imitar essa
corro de outro, desde que se percebeu operação da natureza. Precisa-se ainda
ser útil a um só contar com provisões supor, nesses observadores, muita co-
para dois, desapareceu a igualdade, ragem e previdência para empreender
introduziu-se a propriedade, o trabalho um trabalho tão penoso e imaginar,
tornou-se necessário e as vastas flores- com tal antecedência, as vantagens que
tas transformaram-se em campos apra- dele poderiam tirar, coisa que só tenta-
zíveis que se impôs regar com o suor riam espíritos já mais desenvolvidos
dos homens e nos quais logo se viu a do que esses deveriam ser.
escravidão e a miséria germinarem e Quanto à agricultura, conheceu-se o
crescerem com as colheitas. princípio muito antes de ser a prática
A metalurgia e a agricultura foram estabelecida e absolutamente não é
as duas artes cuja invenção produziu possível que os homens, ocupados
essa grande revolução. Para o poeta continuamente em obter sua subsis-
foram o ouro e a prata, mas para o tência das árvores e das plantas, não
filósofo foram o ferro e o trigo que formassem rapidamente a idéia das
civilizaram os homens e perderam o vias empregadas pela natureza para a
gênero humano. Um e outro eram tam- geração dos vegetais; sua indústria,
bém desconhecidos dos selvagens da porém, só muito tarde voltou-se para
América que, por isso, sempre perma- esse lado, seja porque as árvores, que,
neceram nesse estado; os outros povos juntamente com .a caça e a pesca, for-
parecem ter continuado ainda bárba- neciam sua alimentação, não necessi-
ros enquanto praticaram uma dessas tavam de seus cuidados, seja por falta
artes sem a outra. E talvez uma das de conhecer o uso do trigo, ou, ainda,
melhores razões por que a Europa foi, por falta de instrumentos para cultivá-
senão mais cedo, pelo menos mais lo, por não preverem uma necessidade
constantemente e melhor policiada do futura ou, afinal, por falta de meios
que as outras partes do mundo, é ser para impedir os outros de se apro-
ela, ao mesmo tempo, a mais abun- priarem do fruto de seu trabalho.
dante em ferro e a mais fértil em trigo. Tornando-se mais industriosos, pode-
É muito difícil conjeturar como os se imaginar que, com pedras agudas e
homens chegaram a conhecer e a paus pontudos, começaram a cultivar
empregar o ferro, pois não é crível que à volta de sua cabana alguns legumes
tenham imaginado por si mesmos ou raízes muito antes de saber prepa-
extrair a matéria da mina e dar-lhe o rar o trigo e de contar com instru-
preparo necessário para pô-la em mentos necessários para a cultura em
fusão, antes de saber o que resultaria grande escala, mesmo sem levar em
disso. Por outro lado, menos ainda se consideração que, para dedicar-se a
poderá atribuir essa descoberta a essa ocupação e semear as terras, é
algum incêndio acidental, posto que as preciso inicialmente resolver-se a per-
minas se formam em lugares áridos e der alguma coisa para depois ganhar
desprovidos de árvores e de plantas, mais - preocupação muito distan-
podendo-se até imaginar que a nàtu- ciada da tendência de espírito de um
reza tomara precauções para escon- homem selvagem que, · como disse,
der-nos esse segredo fatal. Não resta, sente muita dificuldade para, de
pois, senão a circunstância extraordi- manhã, pensar nas necessidades da
nária de algum vulcão que, vomitando noite.
272 ROUSSEAU
a represália dos danos que poderia dora, a fim de lembrar que ela revelara aos
causar a outrem. Essa origem mostra- humanos a arte da agricultura. As tesmoforias,
festas anuais em sua homenagem, só podiam
se ainda mais natural, por ser impos- ser celebradas pelas mulheres. (N. de P. A.-B.)
sível conceber a idéia da propriedade 93 Não se deve aferir os dados de Rousseau
nascendo de algo que não a mão-de- pela moderna antropologia cultural. Se tal
obra, pois não se compreende como, fizéssemos, o melhor que nosso autor poderia
para apropriar-se de coisas que não oferecer seriam simples pressentimentos, não
raro desmentidos pelas observações posterio-
produziu, o homem nisso conseguiu res, embora indicando distinções que mais
pôr mais do que o seu trabalho. tarde se precisariam, como essa dos bárbaros
Somente o trabalho, dando ao cultiva- compreendidos como povos em estágio de cul-
dor um direito sobre o produto da terra tura diferente dos primitivos. Mas, se tais
que ele trabalhou, dá-lhe conseqüen- pressentimentos puderem interessar ao leitor
· moderno, melhor fará ele atentando para cer-
temente direito sobre a gleba pelo tas intuições verdadeiramente geniais de Rous-
menos até a colheita, assim sendo cada seau, entre as quais avulta a desta passagem
ano; por determinar tal fato uma posse sobre a relação entre trabalho e propriedade,
contínua, transforma-se facilmente em tema fundamental da economia e sociologia do
século XIX e, também, da política moderna.
propriedade. Quando os antigos, diz Cabe sublinhar a importância da noção num
Grócio, emprestaram a Ceres o epíteto trabalho dedicado ao problema da desigual-
de legisladora e a uma festa celebrada dade. (N. de L. G. M.)
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 273
do à sua volta, somente eles não muda- tenham, afinal, refletido sobre tão
ram, viram-se obrigados a receber ou miserável situação e as calamidades
roubar sua subsistência da mão dos que os . afligiam. Os ricos, sobretudo,
ricos. Daí começaram a nascer, segun- com certeza logo perceberam quanto
do os vários caracteres de uns e de lhes era desvantajosa uma guerra per-
outros, a dominação e a servidão, ou a pétua cujos gastos só eles pagavam e
violência e os roubos. Os ricos, de sua na qual tanto o risco da sua vida como
parte, nem bem experimentaram o pra- o dos bens particulares eram comuns.
zer de dominar, logo desdenharam Aliás, qualquer que fosse a interpre-
todos os outros e, utilizando seus anti- tação que pudessem dar às suas usur-
gos escravos para submeter outros, só pações, sabiam muito bem estarem
pensaram em subjugar e dominar seus estas apoiadas unicamente num direito
vizinhos, como aqueles lobos famintos precário e abusivo e que, tendo sido
que, uma vez comendo carne humana, adquiridas apenas pela força, esta
recusam qualquer outro alimento e só mesma poder-lhes-ia arrebatá-las sem
querem devorar homens. que pudessem lamentar-se. Os enrique-
Assím, os mais poderosos ou os cidos só pela indústria não podiam ba-
mais miseráveis, fazendo de suas for- sear sua propriedade em melhores títu-
ças ou de suas necessidades uma espé- los. Por mais que dissessem: · "Fui eu
cie de direito ao bem alheio, equiva- quem construiu este muro; ganhei este
lente, segundo eles, ao de propriedade, terreno com meu trabalho", outros
seguiu-se à rompida igualdade a pior poderiam responder-lhes: "Quem vos
desordem; assim as usurpações dos deu as demarcações, por que razão
ricos, as extorções dos pobres, as pai- pretendeis ser pagos a nossas expensas,
xões desenfreadas de todos, abafando a de um trabalho que não vos impuse-
piedade natural e a voz ainda fraca da mos? Ignorais que uma multidão de
justiça, tornaram os homens avaros, vossos irmãos perece e sofre a necessi-
ambiciosos e maus. Ergueu-se entre o dade do que tendes a mais e que vos
direito do mais forte e o do primeiro seria necessário um consentimento ex-
ocupante um conflito perpétuo que ter- presso e unânime do gênero humano
minava em combates e assassinatos para que, da subsistência comum, vos
(q). A sociedade nascente foi colocada apropriásseis de quanto ultrapassasse
no mais tremendo estado de guerra; o a vossa?" Destituído de razões legíti-
gênero humano, aviltado e desolado, mas para justificar-se e de forças sufi-
não podendo mais voltar sobre seus cientes para defender-se, esmagando
passos nem renunciar às aquisições com facilidade um particular, mas
infelizes que realizara, ficou às portas sendo ele próprio esmagado por gru-
da ruína por não trabalhar senão para pos de bandidos, sozinho contra todos
sua vergonha, abusando das faculda- e não podendo, dados os ciúmes mú-
des que o dignificam. tuos, unir-se com seus iguais contra os
inimigos unidos pela esperança
Attonitus novitate mali, divesque, mi- comum da pilhagem, o rico, forçado
[serque
Effugere optai opes, et quae modo vo- 9 5 "Tomados de estupor com a novidade do
dade, fizeram de uma usurpação sagaz esses grandes corpos do que fora,
um direito irrevogável e, para lucro de antes, entre os indivíduos dos quais se
alguns ambiciosos, daí por diante compunham. Daí nasceram as guerras
sujeitaram todo o· gênero humano ao nacionais, as batalhas, os assassinatos,
trabalho, à servidão e à miséria. Vê-se,
1 as represálias que levam a natureza a
com facilidade, como o estabeleci- agitar-se e chocam a razão, e todos
mento de uma única sociedade tornou
esses preconceitos horríveis que consi-
indispensável o de todas as outras e deram como virtude a honra de derra-
como foi preciso se unirem, por sua
mar o sangue humano. As pessoas de
vez, para enfrentar forças conjuntas.
As sociedades, · multiplicando-se ou bem passaram a incluir entre seus
deveres o de degolar seus semelhantes;
estendendo-se rapidamente, logo cobri-
ram toda a· superfície da terra e não viu-se, por fim, os homens se massa-
crarem aos milhares sem saber por que
mais se pôde encontrar um único
ponto do universo em que se conse- e cometeram-se mais assassinatos mim
guisse escapar ao jugo e subtrair-se ao só dia de combate e mais horrores na
gládio, freqüentemente mal dirigido, tomada de uma única cidade do que se
que cada homem perpetuamente pas- cometera, no estado de natureza, em
sou a ver suspenso sobre a sua cabeça. toda a face da terra, durante séculos
Tornando-se, deste modo, o direito inteiros. Tais são os primeiros efeitos
civil a regra comum dos cidadãos, a lei que se discernem na divisão do gênero
natural só encontrou lugar, entre as humano em diferentes sociedades. Vol-
diversas sociedades 9 9 , onde, sob o temos à sua instituição.
nome de direito das gentes, foi mode- Sei que muitos atribuíram outras
rada por algumas convenções tácitas origens às sociedades políticas, como
para tornar o comércio possível e fazer as conquistas do mais potente ou a
as vezes da comiseração natural que, união dos fracos. A escolha entre essas
perdendo entre as sociedades quase causas é indiferente ao que desejo esta-
toda a força que tinha entre os homens, belecer; no entanto, à que acabo de
só reside ainda em algumas grandes expor me parece a mais natural pelas
almas cosmopolitas capazes de trans- seguintes razões: 1. 0 porque, no pri-
por as barreiras imaginárias que sepa- meiro caso, não sendo o direito de con-
ram os povos e, a exemplo do ser sobe- quista, de modo algum, um direito, não
rano que os criou, agasalham todo o
gênero humano na sua benevolên- 10
° Coloca-se o problema do direito natural
cia, o o. em seus verdadeiros termos, que são de duas
Os corpos políticos, deste modo ordens distintas: 1) históricos, pois o jusnatu-
ralismo destinava-se precipuamente a restabe-
permanecendo, entre si, em estado de lecer a obediência à ordem natural, que, por
natureza, logo se ressentiram dos in- sua vez, melhor se exprimiria no estado de
convenientes que haviam forçado os natureza, como é óbvio; 2) morais, que interes-
particulares a sair dele, e tal estado savam especialmente a Rousseau, para quem o
tornou-se ainda mais funesto entre direito moral constituiria uma compensação à
fria mecânica da lei civil. Cf. o desenvolvi-
mento ulterior do tema nos parágrafos seguin-
99
Rousseau esboça o projeto de procurar o tes. Até hoje, esses dois sentidos do direito .
fundamento de um contrato social entre todas natural são permanentes e, ao menos no que
as sociedades no seio da humanidade. (N. de tange ao direito internacional, operantes. (N.
P. A.-B.) de L. G. M.)
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 277
os ministros escolhidos antes de existi- pelas coisas que vêem, julgam coisas
rem as próprias leis. muito diferentes, que não viram ; atri-
Não seria mais razoftvel crer que os buem aos homens uma tendência natu-
povos se tenham inicialmente lançado ral à servidão pela paciência com a
nos braços de um senhor absoluto, sem qual aqueles, que têm sob os olhos,
condições nem compensações, e que suportam a sua, sem pensar que com a
lançar-se na escravidão fosse o pri- liberdade acontece o mesmo que com a
meiro meio que pudessem imaginar ho- inocência e a virtude, cujo valor só se
mens orgulhosos e desconfiados para percebe à medida que a própria pessoa
atender à segurança comum 1 0 2 • Com usufrui delas e cujo gosto se perde
efeito, por que se darem a superiores, assim que se as perdem. "Conheço as
senão para defender-se da opressão e delícias de tua terra", dizia Brás i-
proteger seus bens, suas liberdades e das 1 0 4 a um sátrapa que comparava a
suas vidas que, por assim dizer, repre- vida de Esparta à de Persépolis, "mas
sentam os elementos constitutivos de não podes conhecer os prazeres da
seu ser? Ora, como nas relações de minha."
homem para homem o pior que pode Assim · como um corcel indomável
acontecer a um é ver-se à discrição do eriça a crina, bate com o pé na terra e
outro, não contrariaria o bom senso se debate impetuosamente só com a
começar por despojar-se, nas mãos de aproximação do freio, enquanto que
um chefe, das únicas coisas _para cuja um cavalo domado agüenta paciente-
conservação necessitavam de seu auxí-
mente o chicote e a espora, também o
lio? Que equivalente poderia oferecer-
lhes o chefe pela concessão de tão belo homem bárbaro não dobra sua cabeça
ao jugo que o homem civilizado carre-
direito? E, se tivesse ousado exigi-lo. a
pretexto de defendê-los, não receberia ga sem murmurar e prefere a mais
logo a resposta do apólogo: "Que nos tempestuosa liberdade a uma tranqüila
fará a mais o inimigo?" Incontes- dominação. Não é, pois, pelo avilta-
tável, pois, e máxima fundamental de mento dos povos dominados que se
todo o direito político, é que os povos devem julgar das disposições naturais
se deram chefes para defender sua do homem a favor ou contra a servi-
liberdade e não para serem dominados. dão, mas sim pelo prodígio realizado
"Se temos um príncipe" dizia Plínio a por todos os povos livres para se
Trajano, "é para que nos preserve de defenderem da opressão. Sei que os
ter um senhor." 1 0 3 primeiros nada fazem senão enaltecer
Os políticos fazem sobre o amor à continuamente a paz e o sossego de
liberdade os mesmos sofismas que os que gozam sob seus grilhões e que
filósofos sobre o estado de natureza - miserrimam servitutem pacem appel-
lant1 ° 5 , mas quando vejo os outros
1 0 2
Essa era a opinião de Hobbes e de Gró- sacrificarem os prazeres e o repouso, a
cio. (N. de P. A.-B.)
103
Citação inexata. "Seis, ut sunt diversa na-
riqueza, o poder e a própria vida pela
tura dominatio et principatus, ita non aliis esse
principem gratiorem, quam qui maxime domi- 10 4
Brásidas: general espartano; durante a
num graventur" (Plínio, Panegírico, XL V). guerra do Peloponeso, ganhou a batalha de
"Sabes que, assim como a tirania e o poder Anfípolis, na qual foi ferido mortalmente (422
legítimo são de natureza contrária, do mesmo a. C.). (N. de P. A.-B.)
modo não há homens mais apegados a seu 10 5
"Chamam de paz a mais miserável das
imperador do que aqueles a quem mais pesa servidões." Tácito, Histórias IV, XVII. (N. de
um senhor." (N. de P. A.-B.) P. A.-B.)
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 279
conservação desse único bem tão des- volta. Os bens do pai, dos quais é
prezado por aqueles que o perderam, verdadeiramente senhor, são os laços
quando vejo animais, nascidos livres e . que retêm seus filhos em sua dependên-
detestando o cativeiro, esmagarem a cia, e só pode fazê-los participar de sua
cabeça contra as grades da prisão, sucessão na medida em que se torna-
quando vejo multidões de selvagens rem merecedores do pai por contínua
nus desprezarem as volúpias européias deferência a seus desejos. Ora, longe
e enfrentarem a fome, o fogo, o ferro e de poderem esperar os súditos por
a morte para conservar somente sua qualquer favor semelhante de seu dés-
independência, concluo não poderem pota, por lhe pertencerem como um
ser os escravos os mais indicados para próprio seu - .eles e tudo o que pos-
raciocinar sobre a liberdade. suem - , ou pelo menos por pretender
Quanto à autoridade paterna, da ele que assim seja, vêem-se obrigados a
qual muita gente fez derivar o governo receber como favor o que lhes deixa de
absoluto e toda a sociedade, sem exa- seus próprios bens: faz justiça quando
minar as provas em contrário de Locke os despoja, presta-lhes um favor quan-
e Sidney 1 0 6 , basta observar que nada do os deixa viver.
no mundo mais se distancia do espírito Continuando assim a examinar os
feroz do despotismo do que a doçura fatos segundo o direito, não se encon-
dessa ·autoridade, que leva em conside- trará mais solidez do que verdade no
ração antes o beneficio daquele que estabelecimento voluntário da tirania e
obedece do que a utilidade daquele que seria difícil mostrar a validade de um
comand~ Além disso, o pai, pela lei da contrato que só obrigaria uma das par-
natureza, só é senhor dcf filho enquanto tes, no qual tudo caberia a um lado e
necessário seu auxílio, tornando-se de- nada a outro, e que só resultaria em
pois disso iguais e, então, o filho, intei- prejuízo de quem nele se compromete.
ramente independente do pai, só lhe Esse sistema odioso está bem longe de
deve respeito sem nenhuma obediên- ser, mesmo hoje, o dos sábios e bons
monarcas, e sobretudo dos reis de
cia, pois o reconhecimento representa
França, como se pode verificar em vá-
um dever que se deve cumprir, mas
rias passagens de seus editos, e, em
não um direito que se possa exigir. Em
especial, no seguinte trecho de uma
lugar de dizer que a sociedade civil de- obra célebre, publicada em 1667, em
riva do poder paterno, dever-se-ia, pelo
nome e por ordem de Luís XIV: "Que
contrário, dizer que dela tira esse em absoluto se diga não estar o sobe-
poder sua principal força. Um indiví- rano sujeito às leis de seu Estado, pois
duo só foi reconhecido como pai de que a proposição contrária é uma ver-
outros quando estes se reuniram à sua
dade do direito das gentes, que a adu-
lação algumas vezes atacou, mas que
1 0 6 Al'gernon .Sidney (morto em 1683), autor
os bons príncipes sempre defenderam
dos Discursos a Propósito do Governo, refu-
tou, ponto a ponto, o Patriarca de Filmer como uma divindade tutelar de seus
(publicado, postumamente, em 1653) que Estados. Quanto mais legítimo é di-
defendia o fundamento paternal da monarquia. zer-se com o sábio Platão, que a felici-
Locke, no primeiro de seus Tratados sobre o dade perfeita de um reino consiste em
Governo, repete Sidney. Rousseau retoma o ser o príncipe obedecido pelos seus sú-
assunto e o comentário a esses autores no iní-
cio do artigo sobre a "Economia Política". (N. ditos, em o príncipe obedecer a lei e em
de L. G. M.) ser a lei justa e visar sempre ao bem do
280 ROUSSEAU
público !" 1 0 7 Não me deterei procu- Locke, não poder ninguém vender sua
rando saber se, sendo a liberdade a liberdade senão ao ser submetido a
mais nobre das faculdades do homem, · uma potência arbitrária que o trate de
não equivaleria a degradar a natureza acordo com sua fantasia. "Pois",
pôr-se ao nível das bestas escravas do acrescenta ele, "isto seria vender sua
instinto, ofender mesmo o autor de seu própria vida, da qual não se é se-
ser quando se renuncia sem reservas ao nhor ."1 °9 Perguntarei, ·somente, com
mais precioso de todos os seus dons, que direito aqueles que não temem
quando se submete a cometer os cri- aviltar-se até tal ponto, puderam sub-
mes proibidos para agradar a um se- meter sua posteridade à mesma igno-
nhor feroz e insensato, e ainda se o mínia e em seu nome renunciar a bens
operário sublime deverá ficar mais que ela não recebe de sua liberalidade
irado em ver destruir do que em ver e sem os quais a própria vida é onerosa
desonrar sua mais bela obra. Não leva- a todos dignos dela.
rei em consideração, em se querendo, a Pufendorf diz que, assim como por
autoridade de Barbeyrac 1 08 , que de- meio de convenções e de contratos se
clara precisamente, de acordo com transfere a fortuna a outrem, pode-se
abrir mão da liberdade em proveito de
1 0 7 Este trecho parece estar em contradição
alguém. Eis o que me parece um racio-
com todos os princípios que, na realidade, cínio bastante falho, pôis, em primeiro
guiaram Luís XIV em sua política de autori-
dade, de dominação e conquistas. Impõe-se
lugar, o bem que alieno torna-se-me
saber em que circunstâncias e com que desíg- coisa inteiramente estranha cujo abuso
nios foi escrito. É extraído do Traité des Droits me é indiferente, mas é de meu inte-
de la Reine Trés-Chrétienne sur Divers États resse que não abusem de minha liber-
de la Monarchie d'Espagne (1667). Quando, dade e não posso, sem tornar-me cul-
depois da morte de Filipe IV, rei da Espanha,
Luís XIV preparou-se, apesar das renúncias pado do mal que me forçarão a fazer,
formais consentidas no seu contrato d.e casa- expor-me a tornar-me instrumento do
mento, para invadir os Países-Baixos espa- crime. Além disso, o direito de proprie-
nhóis, publicou esse Traité. Fazendo-se passar dade sendo apenas de convenção e
como "submetido às leis de seu Estado", isto é,
como colocado por elas na necessidade de
instituição humana, qualquer homem
pegar em armas, Luís XIV pensava somente pode a seu arbítrio dispor daquilo que
em influenciar as potências estrangeiras e não possui; isso, porém, não acontece com
em governar seus próprios súditos: aliás, o os bens essenciais da natureza, tais
mesmo Traité apressa-se a prevenir as conse-
qüências da verdade que acaba de anunciar:
"Os reis são os autores das leis nos seus Esta- 10 9
Idéia cara a Rousseau, que a desenvol-
dos. Isso não quer dizer que se duvide de terem verá no Contrato Social, I, IV, Da escravidão.
os reis o poder de fazer e de derrogar leis; esse "Afirmar que um homem se dá gratuitamente
direito é, indiscutivelmente, um dos mais belos constitui uma afirmação absurda e inconce-
florões de sua coroa". Ao apresentar isolada- bível; t~I ato é ilegítimo e nulo, precisamente
mente um trecho, Rousseau faz com que tome porque aquele que o faz não está no completo
um caráter inteiramente diverso; sem dúvida, domínio de seus sentidos." Essa idéia repousa
desejou ele dar sutil lição ao governo então numa concepção da liberdade exposta na Pro-
existente. (N. de P. A.-B.) fissão de Fé do Vigário Saboiano, II. "Sem dú-
10
e Barbeyrac, professor de direito em Gro- vida, não sou livre de não querer meu próprio
ningue, publicou no começo do século XVII bem; não sou livre de querer meu mal ... (A
uma tradução francesa das obras de Pufendorf providência) não quer o mal que o homem faz
sobre O Direito da Natureza, Das Gentes e ao abusar da liberdade que ela lhe dá, mas ela
Dos deveres do Homem e do Cidadão. Rous- não o impede de fazer. Ela o criou livre a fim
seau o atacará no Contrato Social, II, II. (N. de que ele fizesse, não o mal, mas o bem,
de P. A.-B.) escolhendo-o." (N. de P. A.-B.)
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 281
como a vida e a liberdade, de que cada observância das leis nele estipuladas e
um pode gozar e dos quais é pelo que formam os liames de sua
menos duvidoso se tenha o direito de união 1 1 0 • Tendo o povo, quanto às
d~spojar-e. Destituindo-se de uma, relações sociais, reunido todas as suas
degrada-se o ser; destituindo-se de vontades numa só, tornam-se todos os
outra, anula-se quanto existe em si pró- assuntos, sobre os quais essa vontade
prio, e, como nenhum bem temporal se exprime, outras tantas leis funda-
pode dispensar-se de uma e de outra, mentais que obrigam todos os mem-
constituiria ofensa às leis da natureza e bros do Estado sem exceção, regula-
à razão renunciar a elas a qualquer mentando uma delas a escolha e o
preço. Mas, ainda que se pudesse alie- poder dos magistrados encarregados
nar sua liberdade como a seus bens, a de zelar pela execução das outras. Esse
diferença seria muito grande para os fi- poder se estende a quanto possa man-
lhos que só gozam dos bens do pai pela ter a constituição, sem chegar a mudá-
transmissão de seu direito, enquanto, la. Juntam-se-lhe honrarias que tornam
sendo a liberdade um dom que lhes respeitáveis as leis e seus ministros e,
advém da natureza pe] a qualidade de para estes, pessoalmente, prerrogativas
homem, seus pais não têm qualquer que os compensam dos trabalhos peno-
direito de despojá-los dele. De modo sos acarretados por uma boa adminis-
que, assim como para estabelecer a tração. O magistrado, por seu lado,
escravidão precisou-se violentar a na- obriga-se a só utilizar o poder que lhe é
tureza, foi necessário modificá-la para confiado segundo a intenção dos que
perpetuar esse direito e os juriscon- confiaram nele, a manter cada um no
sultos que pronunciaram gravemente gozo tranqüilo do que lhe pertence e,
nascer escravo o filho de um escravo em todas as ocasiões, a preferir a utili-
resolveram, em outras palavras, que dade pública a seu próprio interesse.
um homem não nasceria homem. Antes que a experiência o demons-
Parece-me, portanto, certo não so- trasse, ou o conhecimento do coração
mente que os governos não começaram humano fizesse prever os abusos inevi-
pelo poder arbitrário que não passa da táveis de uma tal constituição, ela cer-
corrupção, termo extremo e que afinal tamente pareceu a melhor, por serem
reduz os governos simplesmente à lei aqueles que estavam encarregados de
do mais forte, do qual foram inicial- sua conservação os mais interessados
mente o remédio, mas também que, nisso, pois, não se baseando a magis-
ainda quando tivessem assim começa- tratura e seus direitos senão nas leis
do, sendo esse poder por sua natureza fundamentais, assim que fossem estas
ilegítimo, não pôde servir de base aos destruídas, os magistrados deixariam
direitos da sociedade e, conseqüente- de ser legítimos e o povo não mais
mente, à desigualdade de instituição.
Sem entrar, nesse momento, nas pes- 1 10 Rousseau acabará as pesquisas, que aqui
quisas que ainda restam por fazer anuncia, no Contrato Social, onde distinguirá:
sobre a natureza fundamental de qual- 1) o contrato social, pelo qual se constitui um
quer governo, limito-me, seguindo a "corpo moral e coletivo", que é o "corpo polí-
opinião comum, a considerar aqui o tico", ou seja, o "Estado", quando passivo, ou
estabelecimento do corpo político o "Soberano", quando ativo ( 1. I, c. IV); 2) a
constituição de um governo, mero "corpo
como um verdadeiro contrato entre o intermediário entre os súditos e o soberano",
povo e os chefes que escolhe, contrato no que não vai qualquer contrato (1. III , c. I).
pelo qual as duas partes se obrigam à (N. de b. G. M.)
282 ROUSSEAU
fica de inúmeras maneiras segundo as dade (s), desde que, reunidos em uma
Qaixões, os talentos e as ocorrências. O mesma sociedade, são forçados a com-
magistrado não poderia usurpar um parar-se entre si e a tomar conheci-
poder ilegítimo sem engendrar criatu- mento das diferenças reveladas no uso
ras às quais é forçado a dar certa parte contínuo que têm de fazer uns dos
dele. Aliás, os cidadãos só se deixam outros. Essas diferenças são de várias
oprimir quando,levados por uma ambi- espécies. Mas a riqueza, a nobreza ou
ção cega e olhando mais abaixo do que a condição, o poder e o mérito pessoal
acima de si mesmos, a dominação sendo, em geral, as distinções princi-
torna-se-lhes mais cara do que a pais pelas quais as pessoas se medem
independência e quando consentem em na sociedade, provarei que o acordo ou
carregar grilhões para por sua vez o conflito dessas forças diversas são a
poder aplicá-los. É muito dificil redu- indicação mais certa de um Estado
zir à obediência aquele que não procu- bem ou mal constituído; mostrarei de-
ra comandar e o político mais esperto pois que, entre esses quatro tipos de
não ·conseguiria submeter homens que desigualdade, constituindo as qualida-
só desejassem ser livres. Mas a desi- des pessoais a origem de todas as
gualdade se expande, sem dificuldade, outras, a riqueza é a última a que por
entre almas ambiciosas e covardes, fim elas se reduzem, porque, sendo a
sempre prontas a correr os riscos da mais imediatamente útil ao bem-estar e
fortuna e a quase indiferentemente a mais fácil de comunicar-se, servem-
dominar ou servir, conforme lhes seja se dela com facilidade para comprar
a fortuna favorável ou contrária. Eis todo o resto. Essa observação permite
como, seguramente, veio um tempo no julgar com bastante precisão como
qual os olhos do povo foram fascina- cada povo se distanciou de sua institui-
dos a tal ponto que aos seus conduto- ção .primitiva e do caminho que per-
res bastava dizer ao menor dos ho- correu até o termo extremo da corrup-
mens: "Sê grande, tu e toda a tua ção. Salientaria como esse desejo
raça", para que logo ele parecesse universal de reputação, de honrarias e
grande aos olhos de todos e aos seus de preferências, que nos devora, a
próprios, e seus descendentes se elevas- todos adestra e põe em confronto os
sem ainda mais à medida que dele se talentos e as forças, excita e multiplica
distanciavam; quanto mais a causa as paixões e como, tornando todos os
fosse distante e incerta, mais aumen- homens concorrentes, rivais, ou me-
tava o efeito; quanto mais se pudesse lhor, inimigos, cotidianamente deter-
contar com indolentes 11 5 numa famí- mina desgraças, acontecimentos e ca-
lia, tanto mais ela se tornava ilustre. tástrofes de toda espécie, fazendo com
que tantos pretendentes entrem num
Se aqui coubesse entrar em porme- mesmo combate. Mostraria que é a tal
nores, explicaria facilmente como, sem ânsia de fazer falar de si, a esse furor
sequer imiscuir-se o Governo, torna-se de distinguir-nos, quase sempre nos
inevitável entre os particulares a desi- colocando fora de nós, que devemos o
gualdade de consideração e de autori- que há de melhor e de pior entre os
homens: nossas virtudes e nossos ví-
1 1 5
Chamam-se reis indolentes aos últimos
reis da linhagem merovíngia, que deixaram
cios, nossas ciências e nossos erros,
toda a autoridade aos prefeitos-do-poço, a nossos conquistadores e filósofos, isto
começar de Thierry III (675) até ChildericoHI é, ·uma multidão de coisas más contra
(752). (N. de P. A.-B.) um pequeno número de coisas boas.
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 285
singulares relativas aos pontos · de no seio de meu irmão, na garganta de meu pai
honra; ver-se-iam os defensores da pá- ou no ventre de minha esposa grávida, apesar
tria tornarem-se, mais tarde ou mais de a contragosto, tudo isso minha mão faria
até o fim." Lucano, Farsália, 1, verso 376. (N.
cedo, seus inimigos e manterem conti- de P. A.-B.)
nuamente um punhal alçado contra 1 1 7 Rousseau inicia aqui uma severa crítica
seus cidadãos, e chegaria o tempo em do Antigo Regime. (N. de P. A.-B.)
286 ROUSSEAU
que se encontrava deslocado no se.n sé- honra de servi ~ los; jacta-se orgulhosa-
culo e o maior dos homens mente de sua própria baixeza e da pro-
simplesmente surpreendeu o mundo teção deles, e, orgulhoso de sua escra-
que deveria ter governado quinhentos vidão, refere-se com desprezo àqueles
anos antes 1 2 2 • Em uma palavra, expli- que não gozam a honra de partilhá-la.
cará como a alma e as paixões huma- Que espetáculo não seriam para um
nas, alternando-se insensivelmente, caraíba os trabalhos penosos e inveja-
mudam, por assim dizer, de natureza; dos de um ministro europeu! Quantas
por que nossas necessidades e nossos mortes cruéis não preferiria esse selva-
prazeres mudam de o.!Jleto com o gem indolente ao horror de uma tal
decorrer dos tempos; por que, desapa- vida que freqüentemente nem sequer se
recendo gradativamente o homem na-
ameniza pelo prazer de bem proceder !
tural, a sociedade só oferece aos olhos
Mas, para aquilatar o objetivo de tan-
uo sábio uma reunião de homens artifi-
ciais e de paixões factícias que são tos cuidados, seria preciso que as pala-
obra de _tpdas essas relações novas e vras poder e reputação tivessem um
não têm nenhum fundamento na natu- sentido para seu espírito e que sou-
reza. O que a reflexão nos ensina a besse existir uma espécie de homens
esse _propósito, a observação o con- que dão valor aos olhos do resto do
firma perfeitamente 1 2 3 : o homem sel- mundo e se sentem satisfeitos consigo
vagem e o homem policiado diferem de mesmos mais pelo testemunho de ou-
tal modo, tanto no fundo do coração trem do que pelo seu próprio. Tal, com
4uanto nas suas inclinações, que aqui- efeito, a verdadeira causa de todas
lo que determinaria a felicidade de um essas diferenças: o selvagem vive em si
reduziria o outro ao desespero. O pri- mesmo; o homem sociável, sempre
meiro só almeja o repouso e a liberda- fora de si, só sabe viver baseando-se na
de, só quer viver e permanecer na ocio- opinião dos demais e chega ao senti-
sidade e mesmo a ataraxia do estóico mento de sua própria existência quase
não se aproxima de sua profunda indi- que somente pelo julgamento destes.
ferença por qualquer outro objeto. O Não cabe no meu assunto mostrar
cidadão, ao contrário, sempre ativo, como de uma tal disposição nasce
cansa-se, agita-se, atormenta-se sem tamanha indiferença pelo bem e pelo
cessar para encontrar ocupações ainda mal, com tão belos discursos sobre a
mais trabalhosas; trabalha até a morte, moral; como, tudo reduzindo-se às
corre no seu encalço para colocar-se aparências, tudo se torna artificial e
em situação de viver ou renunciar à representado, seja a honra, a amizade
vida para adquirir a imortalidade; cor- a virtude, freqüentemente mesmo o~
teja os ·grandes, que odeia, e os ricos, próprios vícios com os quais por fim se
que despreza; nada poupa para obter a encontra o segredo de se glorificar, 2 4;
como, em uma palavra, perguntando
122 Trata-se sempre de Catão que, depois do
sempre aos outros o que somos e não
primeiro Discurso, tomou a Sócrates o lugar ousando jamais interrogarmo-nos a
de "maior dos homens". (N. de P. A.-B.) nós mesmos sobre esse assunto, em
123 Rousseau relembra seu método; é aná-
meio a tanta filosofia, humanidade,
logo ao das ciências de seu tempo, principal- polidez e máximas sublimes, só temos
mente a física newtoniana - trata-se de apre-
sentar uma grande hipótese que dê conta dos
fatos mas que seja deduzida a priori. No ; 2 4 Alusão às Máximas de La Rochefou-
fundo, é o método científico de Descartes. (N. cauld, que todas elas explicavam as virtudes
de P. A.-B) aparentes por vícios ocultos. (N. de P. A.-B.)
iss ROUSSEAU
12 5 Pode-se comparar com o conjunto desse sobre consolidar e alargar a visão do homem
Discurso uma passagem de Buffon que expri- peculiar a seu tempo, Rousseau prega, já nes-
me idéia muito próxima: "O homem selvagem ses primeiros discursos, a revoluç·ão. Impõe-se,
é, de todos os animais, o mais singular, o contudo, notar que essa revolução não é ape-
menos conhecido e o mais difícil de descrever; nas em prol da igualdade política - que a
mas ou nós distinguimos o que só a natureza Revolução Francesa viria cumprir em seus
nos deu daquilo que nos comunicaram a edu- aspectos jurídicos formais - mas também em
cação, a imitação, a arte e o exemplo, ou, prol da igualdade econômica. · Se o segundo
então, confundimo-los tão bem que não seria tema revolucionário não se estabelece com a
nitidez que o primeiro encontrará no Contrato
de espantar que desconhecêssemos inteira-
mente o retrato de um selvagem caso nos fosse
Social, vale notar que, no universo de pensa-
mento rousseauniano, ambos se enunciam
apresentado com as verdadeiras cores e os úni-
essencialmente unidos e que, apelando pela
cos traços naturais que devem formar-lhe o liberdade dos homens sob o poder do sobera-
caráter ... Um selvagem absolutamente selva- no, Rousseau o termina por um grito de revol-
gem . . . seria um espetáculo curioso para um ta, não contra as cabeças coroadas, mas con-
filósofo; poderia, observando seu selvagem, tra os que "regurgitam superfluidades". Ver,
avaliar · com exatidão a força dos apetites da nesse sentido, a nota i a este discurso, na qual,
natureza; nele veria a alma a descoberto; nele contrapondo os males engendrados pelos ho-
distinguiria todos os movimentos naturais e, mens aos que se recebem da natureza, Rous-
talvez, nele reconhecesse mais doçura, tranqüi- seau entre todos dedica sua mais violenta acu-
lidade e calma do que na sua alma; talvez sação aos provenientes da desigualdade de
visse, claramente, que a virtude pertence mais riquezas - "uns morrem de suas necessidades
ao homem selvagem do que ao civilizado e que e outros de seus excessos", eis a condição do
o vício só começou a nascer na sociedade". homem na sociedade disforme que Rousseau
ButTon, História Natural, Variedades na Espé- conhecia e desejava pelo menos corrigir. (N. de
cie Humana, 1749. Acrescentemos ainda que, L. G. M.)
INTRODUÇÃO ÀS .NOTAS DE ROUSSEAU AO
"DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE"
de Paul Arbousse-Bastide
seau chega até a traçar o plano das viagens ao fim das quais o filósofo poderá ela-
borar uma filosofia do homem.
O paralelo, habitual em Rousseau, entre o estado de natureza e o estado de
sociedade, particularmente na extensa nota i, torna-se convencional e dá lugar a
uma ênfase oratória que hoje nos parece excessiva; Jean-Jacques constrói um
quadro pormenorizado dos dois estados, na intenção de resolver o problema colo-
cado, há dois séculos, pelos metafisicas: neste mundo, a soma dos males será
superior ou inferior à soma dos bens? Pontos particulares desse paralelismo são
retomados nas notas 1 (os desejos são naturalmente limitados, mas acrescidos
pelos hábitos sociais), n (a instituição das línguas apresenta mais inconvenientes
do que vantagens), q (no estado de natureza, a dispersão era um refúgio contra a
violência; sua possibilidade desaparece, aos poucos, com o estado social), o (o
amor de si mesmo ou o instinto de conservação é natural e bom, o amor-próprio
é fictício e nefasto, r (a riqueza permite que se façam impunemente as madraça-
rias que se desejarem). Todavia, surge, timidamente, um terceiro tema: o de uma
regeneração da sociedade pervertida; será o tema mais fecundo, uma vez que
anuncia o Contrato Social. Na notas, o problema é colocado segundo os mesmos
temas que no Contrato: trata-se de transpor para a sociedade civil a igualdade
rigorosa do estado de natureza e, para isso, "a condição dos cidadãos deve deter-
minar-se não pelo seu mérito pessoal, mas pelos reais serviços por eles prestados
ao Estado". Talvez não seja por acaso que Rousseau reservou para esse tema a
primeira e a última dessas notas (a e s).
O segundo interesse dessas notas está em precisar as fontes de Rousseau e
em descobrir em/unção de que nível de cultura ele emitiu sua teoria. De todos os
autores citados, o que mais aparece é Buffon. Rousseau transcreve trechos intei-
ros de sua História N aturai. O historiador grego Heródoto é também citado mui-
tas vezes, devendo-se incluir, também, Ctésias de Cnide e São Jerônimo. São
ainda consultadas por Rousseau as narrativas dofi viajantes modernos: a História
das Viagens é citada duas vezes; Carreai, Kolben, o Padre du Tertre, Gautier,
Buttel, Dapper, Mero/a, Purchas, Saint-John são citados uma vez. Finalmente,
Rousseau refere-se quer a sábios mais ou menos contemporâneos - os psicó-
logos Vossius, Condillac e Locke - , quer aos dois grandes mestres do pensa-
mento ocidental - os moralistas Platão e Montaigne.
NOTAS
ção que foi imposta a esse· privilégio, Heródoto, III, LXXXIII, e é contada por
ter-se-á necessariamente de supô-la, Montaigne, Ensaios, III, VII. Montaigne dá a
conhecer a restrição em questão. "'l Otanesl
pois, caso não existisse, Otanes, não renunciou em favor de seus companheiros a
reconhecendo nenhuma lei e não tendo seu direito de poder alcançar lo império] por
de prestar contas a ninguém, seria eleição ou por sorte, contanto que ele e os seus
todo-poderoso no Estado e até mais vivessem nesse império fora de qualquer sujei-
ção e domínio, salvo a das leis antigas, e tives-
poderoso do que o próprio rei. Mas sem aí toda a liberdade que não causasse pre-
não havia qualquer probabilidade de juízo àquelas [leis] - não desejoso tanto de
um homem, capaz de contentar-se em · mandar quanto de não ser mandado." O racio-
tal caso com esse privilégio, mostrar-se cínio de Rousseau é uma reminiscência da teo-
capaz de abusar dele. Com efeito, não o
ria de Hobbes, para quem chefe é aquele que
conservou seus direitos naturais, enquanto
se sabe que tenha esse direito determi- todos os demais cidadãos renunciaram a ele.
nado a menor perturbação no reino, (N. de P. A.-B.)
nem causada pelo sábio Otanes, nem 1 2 7 Trata-se de Buffon. (N .. de P. A.-B.)
292 ROUSSEAU
desse sentido interior que nos reduz às mais, que foi preciso atar-lhe pedaços
nossas verdadeiras dimensões e que de madeira que a obrigavam a man-
distingue de nós tudo que não nos per- ter-se ereta em equilíbrio sobre os dois
tence. No entanto, é desse sentido que pés. A mesma coisa sucedeu com a
devemos utilizar-nos se desejarmos criança que, em 1694, foi encontrada
conhecer-nos; somente por ele podere- nas florestas da Lituânia e que vivia
mos julgar-nos. Como dar, porém, a entre os ursos. Não apresentava, conta
esse sentido, toda a sua atividade e o Sr. de Condillac, qualquer sinal de
extensão? Como desembaraçar nossa razão, andava sobre os pés e as mãos,
alma, na qual reside, de todas as ilu- não possuía qualquer linguagem e emi-
sõe·s de nosso espírito? Perdemos o há- tia sons que de modo algum se asseme-
bito de invocá-la; ela ficou sem apro- lhavam aos de um homem. O pequeno
veitamento em meio do tumulto de selvagem de Hanôver, que há muitos
nossas sensações corporais, fanou-se anos foi conduzido à corte da Ingla-
ao fogo de nossas paixões; o coração, terra, sentia a maior das dificuldades
o espírito, os sentidos, tudo trabalhou para resignar-se a ándar sobre os dois
contra ela." Hist. Nat., Da Natureza pés e, em 1719, encontraram-se dois
do Homem. outros selvagens nos Pireneus que cor-
(e) As mudanças que pode produzir riam pelas montanhas como se fossem
na conformação do homem o prolon- quadrúpedes. Quanto à objeção de que
gado hábito de andar sobre dois pés, as tal coisa levaria a nos privarmos do
relações que ainda se observam entre uso das mãos, do qual nos advêm tan-
os braços e as ·pernas anteriores dos tas vantagens, além do exemplo dos
quadrúpedes e a indução feita sobre o macacos, que mostram poderem as
seu modo de andar fizeram com que mãos ser muito bem empregadas dos
nascessem dúvidas acerca da posição dois modos, isso só poderia provar que
que nos deveria ser mais natural. o homem pode dar a seus membros
Todas as crianças começam andando uma destinação mais cômoda do que a
com quatro pés e precisam de nosso da natureza e não que a natureza desti-
exemplo e de nossas lições para apren- nou o homem a andar de um modo
derem a manter-se de pé. Há mesmo diferente do que lhe ensina.
nações selvagens, como a dos hotento- Há, porém, parece-me, muito melho-
tes, que, descuidando bastante das res razões a apresentar para afirmar
crianças, deixam que andem tanto que o homem é um bípede. Primeiro,
tempo sobre as mãos, que depois têm mesmo que se fizesse ver que ele pode-
muito trabalho para endireitá-las; a ria ter anteriormente conformação di-
mesma coisa acontece com os filhos versa da que conhecemos e nesse ínte-
dos caraíbas das Antilhas. Há inúme- rim transformar-se por fim naquilo que
ros exemplos de homens quadrúpedes ·é, não seria o bastante para concluir
e, entre outros, poderia citar o exemplo que tal se teria passado dessa maneira,
daquela criança que encontraram, em porquanto, após ter mostrado a possi-
1344, perto de Hesse, onde fora criada bilidade dessas mudanças, seria preci-
por lobos e .que depois dizia, na corte so ainda, antes de admiti-las, mostrar
do Príncipe Henrique, que, se depen- pelo menos sua verossimilhança. Além
desse unicamente dela, preferiria voltar disso, se os braços do homem parecem
a viver com os lobos do que continuar ter podido, quande necessário, servir-
a viver entre os homens. De tal modo lhe de pernas, será essa a única obser-
se habituara a andar como esses ani- vação favorável a esse sistema contra
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 293
lançar uma pedra, escalar uma árvore. do seu andar ultrapassa a imagina-
Mas, se ele só s.abe essas coisas, em ção."
compensação as sabe muito melhor do Admira-se de não se utilizarem mais
que nós, que delas não temos a mesma freqüentemente para fins reprováveis
necessidade; como elas dependem uni- de sua habilidade, o que, não obstante,
camente do exercício do corpo e não acontece por vezes, como se pode ver
são suscetíveis de qualquer comunica- pelo exemplo que disso apresenta:
ção ou progresso de um indivíduo para "Um marinheiro holandês, desem-
outro, o primeiro homem pôde ser tão barcando no Cabo, encarregou", conta
hábil quanto seus últimos descenden- ele, "um hotentote de segui-lo à cidade
tes. com um rolo de tabaco aproximada-
Os relatos dos viajantes estão cheios mente de vinte libras. Quando os dois
de exemplos da força e vigor dos ho- estavam a alguma distância do grupo,
mens nas nações bárbaras e selvagens; o hotentote perguntou ao marinheiro
n'ão deixam de louvar, ainda e não se ele sabia correr. - Correr? - res-
menos, sua habilidade e ligeireza e, pondeu o holandês. - Sim, e muito
como bastam dois olhos para observar bem. - Vejamos - disse o africano e,
as coisas, .n ada impede que acredi- fugindo com o tabaco, desapareceu
temos nos testemunhos oculares a esse quase imediatamente. O marinheiro,
respeito. Extraio ao acaso alguns confundido com tal velocidade, não
exemplos dos primeiros livros que me pensou em persegui-lo e nunca mais
caem sob a mão. viu nem o seu tabaco nem o carrega-
"Os hotentotes", disse Kolben 128 , dor".
"conhecem melhor a pesca do que os "Possuem o golpe de vista tão pron-
europeus do Cabo. São igualmente há- to e a mão tão certa, que os europeus
beis na rede, no anzol e no arpão, tanto ficam em grande desvantagem. A cem
nas enseadas quanto nos rios. Não passos acertaram com uma pedra num
mostram menos habilidade para agar- alvo do tamanho de uma moeda de
rar o peixe coin a mão. São de uma meio-soldo, e o que há de mais espan-
habilidade incomparável no nadar. Seu toso é que, em lugar de fixar como nós
modo de nadar tem qualquer coisa de os olhos no alvo, fazem movimentos e
surpreendente e que lhes é inteiramente contorsões contínuas. Parece que a sua
particular. Nadam com o corpo direito pedra é levada por uma mão invisível."
e as mãos estendidas fora da. água, de O Padre du Tertre 129 escreve sobre
modo que parecem andar sobre a terra. os selvagens das Antilhas quase a
Quando o mar está mais agitado e as mesma coisa que acabamos de ler
ondas como que formam montanhas, sobre os hotentotes do cabo da Boa
parecem dançar na crista das vagas, Esperança. Enaltece sobretudo a sua
subindo e descendo como um pedaço precisão para acertar com as flechas os
de cortiça." pássaros em vôo e os peixes nadando.
"Os hotentotes", qiz· ainda o mesmo Os selvagens da América setentrional
autor, "apresentam ·· uma habilidade não são menos célebres pela sua força
surpreendente na caça e a velocidade e agilidade; segue-se um exemplo que
12s Pierre Kolben (1675-1726); viajante e 1 2 9 Jean-Baptiste du Tertre (1610-168 7); mis-
naturalista alemão, autor de uma Viagem ao sionário dominicano nas Antilhas, autor de
Cabo da Boa Esperança (1719). (N. de P. uma História Geral das Antilhas Habitadas
A.-B.) pelos Franceses(1661-1611). (N. de P. A.-B.)
296 ROUSSEAU
que custou á vida e os bens a tantos interfere no combate, este acaba com
infolizes, fez a fortuna a mais de dez alguns murros; o vencedor come, o
rrtil pessoas. Sei que Montaigne censu- vencido vai tentar a sorte e tudo fica
ra o ateniense bémades 132 por ter em paz. Mas, com o homem ·em socie-
mandado punir um artesão que, ven- dade, as coisas se passam muito
dendo esquifes caóssimos, ganhava diferentemente: trata-se, em primeiro
muito com a morte dos cidadãos. Mas, lugar, de atender ao necessário e,
alegando Montaigne razão para pu- depois, ao supérfluo; depois, vêm as
nir-se todo o mundo, é evidente que tal delícias e, depois, as imensas riquezas;
razão confirma as minhas. Penetre- depois, os súditos e os escravos. Não
mos, pois, através de nossas fóvolas há um momento de qescanso. O que há
demonstrações de benevolência, no de mais singular é que, quanto mais
que se passa _110 fundo dos corações e naturais e prementes são as necessida-
reflitamos sobre como deva ser um es- des, tanto mais aumentam as paixões
tado de coisas no qual todos os ho- e, o que é pior, o poder de satisfazê-las,
mens· são forçados a agradár-se e a de forma que, depois de longas prospe-
destruir-se mutuamente, e no qual nas- ridades, depois de terem se devorado
cem inimigos por dever e traidores por muitos tesouros e arruinado muitos
interesse. caso me respondam que a homens, meu herói acabará por tudo
sociedade é constituída de tal modo sufocar até que seja ele o único senhor
que cada homem lucra auxiliando os do universo. Esse, abreviadamente, o
outros, replicarei que isso seria muito quadro moral, senão da vida humana,
bom se ele não lucrasse mais ainda pelo menos das pretensões secretas do
prejudicando-os. Não há, absoluta- coração de todo homem civilizado.
mente, um lucro legítimo que não Comparai, sem prevenção, o estado
possa ser ultrapassado por aquele que do homem civil com o do homem sel-
se pode fazer ilegitimamente e· o dano vagem e indagai, se puderdes, como,
que se faz ao próximo é sempre mais
além de sua maldade, suas necessi-
lucrativo do que os serviços. Não se
dades e misérias, o primeiro abriu
trata, pois, senão de encontrar os
novas portas à dor e à morte. Se consi-
meios para assegurar-se a própria
derardes as penas do espírito que nos
impunidade e para isso os poderosos
consomem, as paixões violentas que
empregam todas as forças e os fracos
nos esgotam e nos arruínam, os traba-
todas as artimanhas. lhos excessivos com os quais se sobre-
O homem selvagem, depois de ter
carregam os povos, a preguiça ainda
comido, fica em paz com toda a natu-
mais perigosa à qual os ricos se aban-
reza e é amigo de todos os seus seme-
donam, e que fazem que morram uns
lhantes. Caso, por vezes, tenha de
de suas necessidades e os outros de
disputar a alimentação, jamais avança seus excessos; se pensardes nas mistu-
desferindo golpes, sem antes ter com-
ras monstruosas de alimentos, nos
parado a dificuldade de vencer com a
temperos perniciosos, nas mercadorias
de encontrar em outro lugar sua
adulteradas, nas drogas falsificadas,
subsistência, e, como o orgulho não
nas trapaças daqueles que as vendem,
nos erros daqueJes que as administram,
132
Demades (cerca de 318 a. C.), orador ate-
niense, adversário de Demóstenes. A anedota no veneno das vasilhas em que são
se encontra nos Ensaios, 1, XXI. (N. de P. preparados; se prestad~ atenção às
A.-B.) doenças epidêmicas oriundas do ar
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 299
confinado entre as multidões de ho- perdem a vida, tal fato não deixa de
mens reunidos, às que ocasionam a realmente duplicar a perda da espécie
delicadeza de nosso modo de vida, às humana. Inúmeros são os meios vergo-
passagens alternadas do interior de nhosos para impedir o nascimento dos
nossas casas para o ar livre, ao uso da homens e enganar a natureza; quer por
roupa vestida ou desvestida com pou- esses gostos brutais e depravados que
quíssima precaução e a todos os cuida- insultam sua obra mais encantadora,
dos que nossa sensualidade excessiva gostos que jamais foram conhecidos
transformou em hábitos necessários e tanto dos selvagens quanto dos ani-
cuja negligência ou privação nos custa mais e que nos países policiados nasce-
imediatamente a vida ou a saúde; se ram de uma imaginação corrompida;
levardes em consideração os incêndios seja por esses abortos secretos, dignos
e os tremores de terra que, consumindo frutos da depravação e da honra vicia-
ou revirando cidades inteiras, fazem da; seja pelo enjeitamento e assassínio
que os habitantes morram aos milha- de uma multidão de crianças, vítimas
res; em uma palavra, se reunirdes os da miséria de seus pais ou da vergonha
perigos que todas essas causas juntam desumana de suas mães; seja, enfim,
continuamente sobre nossas cabeças, pela mutilação desses infelizes, uma
vereis como a natureza faz que pague- parte de cuja existência e toda descen-
mos caro o desprezo que demos às dência são sacrificadas a canções vãs
suas lições. ou, o que é ainda pior, ao ciúme brutal
Neste ponto, não repetirei acerca da de alguns homens - mutilação que,
guerra o que já disse alhures, mas dese- neste último caso, ultraja duplamente a
jaria que as pessoas instruídas quises- natureza, tanto pelo tratamento que
sem ou ousassem, por uma vez, mos- recebem aqueles que são atingidos,
trar ao público a minúcia dos horrores quanto pelo uso a que se destinam !
que são cometidos nos exércitos pelos Mas não haverá mil casos mais
arrendatários de víveres e de hospitais; freqüentes e mais perigosos ainda, nos
ver-se-ia que suas manobras, não de- quais os direitos paternais ofendem
masiado secretas, devido às quais os abertamente a humanidade? Quantos
exércitos mais brilhantes se trans- talentos enterrados e inclinações força-
formam em menos do que nada, das pela coerção imprudente dos pais !
matam mais soldados do que ceifa o Quantos homens, que se teriam distin-
ferro do inimigo. Constitui ainda um guido numa situação apropriada, mor-
cálculo não menos impressionante o rem infelizes e desonrados numa dada
relativo aos homens que o mar traga situação para a qual não tinham o
todos os anos pela fome, pelo escorbu- menor gosto! Quantos casamentos
to, pelos piratas, pelo fogo ou, ainda, felizes, mas desiguais, foram rompidos
pelos naufrágios. E preciso ainda, está ou perturbados e quantas castas espo-
claro, lançar à conta da propriedade sas desonradas por essa ordem de con-
estabelecida e, conseqüentemente, da dições sempre em contradição com a
sociedade, os assassínios, os envenena- da natureza; quantas outras uniões
mentos, os assaltos nas estradas e as insuportáveis formadas pelo interesse e
próprias punições desses crimes. São condenadas pelo amor e pela razão !
punições necessárias para prevenir Até mesmo quantos esposos honestos e
males maiores, mas se, por causa do virtuosos se supliciam, mutuamente,
assassínio de um homem, dois ou mais por se terem unido mal! Quantas víti-
300 ROUSSEAU
fim tornar-se as mais descuidadas. Por sua caça; que nos expliquem como
aí se vê o que se deve pensar das verda- esses miseráveis tiveram simplesmente
deiras vantagens da indústria e do efei- a audácia de enfrentar pessoas tão há-
to real que resulta de seus progressos. beis como éramos, com tão bela disci-
Tais são as causas visíveis de todas plina militar, códigos tão perfeitos e
as misérias a que a opulência acaba leis sábias, enfim por que, depois de
por lançar as nações mais admiradas. aperfeiçoar-se a sociedade nas regiões
À medida que a indústria e as artes se do Norte e de ter-se tanto trabalho
estendem e florescem, o cultivador para nelas ensinar aos homens seus
desprezado, sobrecarregado de impos- deveres mútuos e a arte de conviver
tos necessários à manutenção do luxo agradável e tranqüilamente, não mais
e condenado a passar uma vida de tra- se viu aparecer algo de semelhante a
balho e fome, abandona seus campos essas multidões de homens que outrora
para ir procurar nas cidades o pão que lá se produziam? Tenho muito receio
. deveria levar para lá. Quanto mais as de que, afinal, alguém se disponha a
capitais enchem de admiração os olhos dizer-me que todas essas grandes coi-
estúpidos do povo, tanto mais se deve- sas, a saber: as artes, as ciências e as
ria sofrer vendo os campos abandona- leis, foram muito sabiamente inventa-
dos, as terras incultas e as estradas das pelos homens como uma peste
inundadas de infelizes cidadãos trans- salutar para prevenir a multiplicação
formados em mendigos ou ladrões, e excessiva da espécie, temendo que este
destinados a um dia acabarem a sua mundo que nos é destinado se tornasse
miséria no suplício ou num monturo. É por fim demasiado pequeno para seus
assim que o Estado, enriquecendo por habitantes.
um lado, se enfraquece e se despovoa Pois então será preciso destruir as
por outro, e as monarquias mais pode- sociedades, suprimir o teu e o meu, e
rosas, depois de muitos esforços para voltar a viver nas florestas com os
se tornarem opulentas e desertas, aca- ursos? É essa uma conseqüência à
bam por se tornar a presa das nações moda de meus adversários, que prefiro
pobres que sucumbem à tentação fu- antes prevenir do que possibilitar-lhes
nesta de invadi-las e que, por sua vez, a vergonha de formulá-la. Oh! vós, a
se enriquecem e se enfraquecem até quem a voz celeste não se fez ouvir e
que sejam, elas próprias, invadidas e que não reconheceis para vossa espécie
destrnídas por outras. outro destino senão o de terminar em
Que se dignem explicar-nos o que paz esta curta vida; vós, que podeis
puderam produzir essas ondas de bár- deixar no meio das cidades vossas
baros que durante tantos séculos inun- funestas aquisições, vossos espíritos
daram a Europa, a Ásia, a África. Será inquietos, vossos corações corrom-
que deviam sua prodigiosa população pidos e vossos desejos desenfreados;
à indústria de suas artes, à sabedoria retomai, posto que depende de vós,
de suas leis, à excelência de sua polí- vossa antiga e primeira inocência, ide
cia? Que tenham os nossos sábios a aos bosques esquecer o espetáculo e a
bondade de dizer-nos por que, ao invés memória dos crimes de vossos contem-
de se multiplicarem desse modo, esses porâneos e não temais aviltar vossa
homens ferozes e brutais, sem luzes, espécie renunciando às suas luzes para
sem freio, sem educação, a cada renunciar a seus vícios. Quanto aos
momento não se entredevoram mutua- homens semelhantes a mim, cujas pai-
mente para disputar suas pastagens e xões destruíram para sempre a simpli-
302 ROUSSEAU
cidade original, que não podem mais mesmo têm barba. Houve, e talvez
alimentar-se de ervas e de bolotas, nem haja ainda, nações de homens com
viver sem leis e -sem chefes; aqueles uma estatura gigantesca e, deixando de
que foram honrados, na pessoa de seu lado a fábula dos pigmeus, que pode
primeiro pai, por lições sobrenaturais; muito bem não passar de um exagero,
aqueles que verão, na intenção de dar sabe-se que os lapões e, sobretudo, os
inicialmente às ações humanas uma groenlandeses estão muito abaixo da
moralidade que não adquiriram ao fim estatura média do homem. Pretende-se
de muito tempo, a razão de um pre- ainda existirem povos inteiros que,
ceito indiferente em si mesmo e inex- como os quadrúpedes, possuem cau-
plicável por qualquer outro sistema, das. E, sem depositar fé cega nos rela-
em uma palavra, aqueles que estão tos de Heródoto e de Ctesias 1 3 4,
convencidos de ter a voz divina cha- pode-se pelo menos aproveitar deles
mado todo o gênero humano às luzes e aquela opinião, muito plausível, de
à felicidade das inteligências celestes que, se fora possível praticar boas
- todos esses, pelo exercício das vir- observações nesses tempos antigos,
tudes que se obrigam a praticar ao quando os vários povos apresentavam
aprender a conhecê-las, esforçar-se-ão modos de vida mais diferentes entre si
por merecer o prêmio eterno que do que acontece atualmente, ter-se-ia
devem esperar; respeitarão os sagrados então notado, no aspecto e na complei-
laços da sociedade de que são mem- ção do corpo, variedades bem mais
bros; amarão seus semelhantes e os notáveis. Todos esses fatos, dos quais é
servirão com todas as suas forças; fácil fornecer provas incontestáveis, só
obedecerão escrupulosamente às leis e podem surpreender os habituados a
aos homens que são seus autores e olhar unicamente os objetos que os cir-
ministros; honrarão, sobretudo, os cundam, e que ignoram os efeitos
bons e sábios príncipes que saberão poderosos da diversidade dos climas,
prevenir, sanar ou paliar essa chusma do ar, dos alimentos, do modo de
de abusos e de males sempre prontos a viver, dos hábitos em geral e, sobretu-
oprimir-nos; animarão o zelo desses do, a força surpreendente dessas mes-
dignos chefes mostrando-lhes, sem mas causas quando agem continua-
temor e sem adulação, a grandeza de mente sobre muitas gerações seguidas.
sua tarefa e a austeridade de seu dever, Atualmente, quando o comércio, as
mas nem por isso desprezarão menos viagens e as conquistas mais unem os
uma constituição que só pode manter- vários povos e suas maneiras de vida
se com o auxílio de tantas pessoas aproximam-se incessantemente pela
respeitáveis, que mais freqüentemente comunicação freqüente, percebe-se
se deseja ter do que de fato se obtém e terem diminuído certas diferenças na-
da qual, malgrado todos os seus cuida- cionais e cada um, por exemplo, pode
dos, nascem sempre mais calamidades observar que os franceses de hoje não
reais do que vantagens aparentes. possuem mais esses grandes corpos
lj) Entre os homens que conhece- brancos e louros descritos pelos histo-
mos, por nós mesmos, pelos historia- riadores latinos, se bem que o tempo,
dores ou pelos viajantes, uns são juntamente com a mistura dos francos
negros, outros brancos e outros verme-
lhos; uns têm cabelos longos, outros só 13 4
Ctésias: historiador grego, médico de
têm lã encarapinhada; uns são quase Artaxerxes Mnémon (V século a. C.). (N. de P.
todos cobertos de pêlos, outros nem A.-B.)
1 1
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 303
·e dos normandos, que também eram lhas não são cobertas de pêlo, com
brancos e louros, deverá ter restabele- exceção das sobrancelhas, que são
ddo o que o convívio com os romanos muito longas. Ainda que tenham o
pudesse excluir da influência do clima resto do corpo muito peludo, o pêlo aí
na constituição natural e na cor da tez não é muito espêsso e sua cor é escura.
dos habitantes. Todas essas varieda- Por fim, a única parte . que os dinstin-
des, que inúmeras causas podem pro- gue dos homens é a perna, que não tem
duzir e efetivamente produziram na barriga. Andam eretos, segurando com
espécie humana, fazem com que, quan- a mão o pêlo do pescoço; abrigam-se
to a vários animais semelhantes aos nos bosques e dormem em cima das ár-
homens - que os viajantes, sem um vores, onde constroem uma espécie de
exame acurado, consideraram como teto que os protege da chuva. Seus ali-
feras, por causa de algumas diferenças mentos são frutos ou nozes selvagens.
que notaram na conformação exterior, Jamais comem carne. Os negros que
ou unicamente porque tais animais não atravessam as florestas costumam
falavam - eu desconfie serem, com acender fogueiras durante a noite;
efeito, verdadeiros homens selvagens, notam eles que, pela manhã, depois de
cuja raça, dispersada antigamente nos sua partida, os pongos tomam o seu
bosques,. não encontrara ocasião de lugar à volta do fogo e só se retiram
desenvolver qualquer de suas faculda- quando ele se extingue, pois, embora
des virtuais, não adquirindo nenhum sendo muito habilidosos, não têm inte-
grau de perfeição ~ encontrando-se ligência suficiente para alimentá-lo
ainda no estado primitivo de natureza. com lenha.
Demos um exemplo do que desejo "Algumas vezes andam em grupo e
dizer. matam os negros que atravessam as
"Encontra-se", diz o tradutor da florestas. Chegam até a atacar os ele-
História das Viagens 1 3 5 , "no reino do fantes que vêm pastar nas regiões habi-
Congo, um certo número desses gran- tadas por eles e os incomodam tanto
des animais que nas Índias Orientais com socos ou pauladas que os forçam
. chamam de orangotangos e que são a fugir soltando gritos. Nunca se agar-
como o meio-termo entre a espécie hu- ra um pongo vivo, porque são tão
mana e os bugios. Battel 13 6 conta que robustos que dez homens não seriam
nas florestas de Mayomba, no reino de capazes de prendê-lo; mas os negros
Loango, se podem ver duas espécies de agarram muitos deles quando ainda
monstros: os maiores chamam-se pon- novos, matando a mãe, ao corpo da
gos e os outros enjocos. Os primeiros qual o filhote se agarra fortemente.
têm uma semelhança exata com o Quando um desses animais morre, os
homem, mas são muito mais largos e outros cobrem seu corpo com um mon-
de estatura muito alta. Possuindo um tão de ramos ou de folhas. Pur-
rosto humano, têm os olhos muito chass1 3 7 acrescenta que, nas conversa-
encovados. As mãos, as faces, as ore- ções que tivera com Battel, ouvira dele
próprio que um pongo lhe arrebatou
i 3 5A História das Viagens (L 'Histoire .des um negrinho que passou um mês intei-
Voyages): publicação periódica que existia
desde 1746. (N. de P. A.-B.) ro entre esses animais, pois eles não
13 6
André Battel (1565-1640): viajante inglês,
aprisionado pelos portugueses, explorou a 13 7
Samuel Purchass (1577-1628): colecio-
costa sudoeste da África e publicou uma nar- nador inglês e editor de narrativas de viagem.
rativa de suas viagens. (N. de P. A.-B.) O'.J. de P. A.-B.)
304 ROUSSEAU
fazem nenhum mal ao homem que os tanto jeito que poderia ser tomado
surpreende, pelo menos quando este como um homem na cama. Os negros
não os olha, como observara o negri- contam coisas estranhas sobre esses
nho. Battel não descreveu a segunda animais; asseguram que não só forçam
espécie de monstro. as mulheres e as moças, como também
"Dapper 138 confirma que o reino ousam atacar homens armados. Em
do Congo está cheio desses animais uma palavra, há forte aparência de tra-
que na Índia são chamados de orango- tar-se do sátiro dos antigos. Merol-
tangos, isto é, moradores dos bosques la 1 3 9 talvez se refira a esses animais
e que os africanos chamam de quojas quando ·conta que os negros algumas
morros. Esse animal, diz ele, é tão vezes agarram nas suas caças homens
semelhante aos-homens, que certos via- e mulheres ~elvagns."
jantes chegaram a julgá-lo fruto de Fala-se ainda dessas espécies de ani-
uma mulher e de um macaco, quimera mais antropoformes no terceiro tomo
que os próprios negros rejeitam. Um da mesma História das Viagens, sob o
desses animais foi transportado do nome de beggos e de mandrills; mas,
Co·ngo para a Holanda e apresentado para limitarmo-nos aos relatos prece-
ao Príncipe de Orange, Frederico Hen- dentes, encontra-se na descrição desses
rique. Era da altura de uma criança de pretensos monstros semelhanças cho-
três anos e de nediez medíocre, mas cantes com a espécie humana e dife-
atarracado e bem proporcionado, renças menores do que as que se pode-
muito ágil e vivo, as pernas carnudas e riam notar de homem para homem. De
robustas, toda a parte da frente nua modo algum se encontram nessas pas-
mas o traseiro coberto de pêlos negros. sagens os motivos nos quais os autores
Seu semblante, à primeira vista, pare- se fundamentam para recusar a esses
cia-se com o de um homem, mas pos- animais o nome de homens selvagens,
suía o nariz achatado e recurvado; mas é fácil imaginar dever-se isso à
suas orelhas eram também como as da sua estupidez e, também, a não fala-
espécie humana; seu seio, pois era uma rem; são razões fracas para aqueles
fêmea, era carnudo, o umbigo enterra- que sabem que, apesar de o órgão da
do, os ombros muito juntos, suas mãos palavra ser natural ao homem, a pala-
divididas em dedos e polegares, a bar- vra em si, todavia, não lhe é natural e
riga da perna e o calcanhar gordos e até que ponto sua perfectibilidade pôde
carnudos. Comumente andava ereto elevar o homem civil acima de seu es-
sobre as pernas e era capaz de levantar tado original. O pequeno número de li-
e carregar fardos bem pesados. Quan- nhas em que são feitas essas descrições
do queria beber, pegava com uma das permite-nos imaginar como esses ani-
mãos a tampa do vaso e com a outra mais foram mal observados e com que
segurava a base, enxugando em segui- preconceitos foram vistos. Por exem-
da, graciosamente, os lábios. Deitava- plo, são qualificados de monstros, mas
se para dormir pondo a cabeça sobre convêm em que eles geram. Num certo
um travesseiro e cobrindo-se com trecho, Battel diz que os pongos
matam os negros que atravessam as
1 3 8 Oliver Dapper (cerca de 1680): médico e florestas, num outro, Purchass acres-·
geógrafo holandês, autor de numerosas obras
1 3 9 Geronimo Merol/a: capuchinho e missio-
sobre os países africanos, a China, a Pérsia, as
terras do Sul da América, as ilhas do Arquipé- nário italiano, nascido em 1650, autor de uma
lago, etc. (N. de P. A.-B.) Viagem ao Congo. (N. de P. A.-R)
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 305
centa que eles não lhes causam ne- como creio, imitar a ação de um
nhum mal, mesmo quando os sur- homem. Seja como for, está bem
preendem, pelo menos quando· os demonstrado que o macaco não é uma
negros não começam a olhá-los. Os variedade do homem, não somente por
pongos se reúnem em torno das foguei- não possuir a faculdade de falar, mas,
ras acesas pelos negros, quando estes sobretudo, porque se tem a certeza de
se afastam, e por sua vez se retiram, que sua espécie não é capaz de aperfei-
quando · o fogo se extingue. Aí está o çoar-se, o que constitui o caráter espe-
fato; vejamos o comentário do obser- cífico da espécie humana; parece que
vador: "Pois, embora sendo muito essas experiências não foram feitas
habilidosos, não têm inteligência sufi- relativamente aos pongos e os orango-
ciente para alimentá-lo com lenha". tangos com cuidado suficiente para
Gostaria de descobrir como Battel ou poder tirar a mesma conclusão. Have-
Purchass, seu compilador, pôde saber ria, no entanto, um meio pelo qual, se
que a retirada dos pongos era um o orangotango ou outros seres fossem
resultado antes de sua estupidez do que da espécie humana, as observações
de sua vontade. Num clima como o de mais grosseiras poderiam disso certifi.:.
Loango, o fogo não é uma coisa muito car-se, até mesmo demonstrando; mas,
necessária para os animais e, se os ne- além de uma única geração não ser
gros o acendem, é mais para amec\ron- suficiente para essa experiência, ela pa-
tar os animais ferozes do que contra o rece impraticável, porque seria neces-
frio, sendo pois muito possível que de- sário que aquilo que não passa de uma
pois de, durante certo tempo, ter-se suposição fosse demonstrado como
deleitado com a chama ou de ter-se verdadeiro, antes que a prova desti-
aquecido bem, os pongos se aborreçam nada a verificar o fato fosse tentada
de ficar sempre no mesmo lugar e se inocentemente.
retirem para o seu pasto, que exige Os julgamentos precipitados, que
mais tempo do que se comessem carne. não são fruto de uma razão esclare-
Aliás, sabe-se que a maioria dos ani- cida, estão sujeitos a chegar ao exces-
mais, sem excetuar o home~ é natu- so. Nossos viajantes sem-cerimonio-
ralmente preguiçosa e se furta a todas samente apresentam bestas, sob os
as espécies de cuidados que não sejam nomes de pongos, mandri/ls, orango-
de absoluta necessidade. Finalmente, tangos, que são os mesmos seres que
parece muito estranho que os pongos, os antigos, sob o nome de sátiros, fau-
cuja habilidade e força se enaltecem, nos e silvanos, consideravam divinda-
que sabem enterrar os seus mortos e des. Verificar-se-á talvez, ~depois de
construir abrigos com galhos, não sai- pesquisas mais exatas, não serem nem
bam lançar lenha ao fogo. Lembro-me bestas nem deuses, mas homens. Espe-
de ter visto um macaco fazer essa rando, parece-me haver muitos moti-
mesma manobra que não querem ad- vos para, nesse assunto, basearmo-nos
mitir poderem os pongos fazer; é ver- mais em Merolla, religioso culto, teste-
dade que, não estando então minhas munha ocular e que, com toda a sua
idéias voltadas para esse lado, cometi ingenuidade, não deixava de ser
eu mesmo a falta que censuro em nos- homem de espírito, do que no comer-
sos viajantes, e descuidei de verificar ciante Battel, em Dapper, em Purchass
se a intenção do macaco era, com efei- e nos outros compiladores.
~o, manter o fogo ou simplesmente, Que julgamento cremos poderiam
306 ·ROUSSEAU
expender tais observadores sobre a Ora, não se deve esperar que as três
criança encontrada em 1694, de quem primeiras classes forneçam bons obser-
já falei atrás, que não apresentava ne- vadores e, quanto aos da quarta, pos-
nhum sinal de razão, andava sobre os suídos pela vocação sublime que os
pés e as mãos, não possuía nenhuma inspira, mesmo que não fossem como
linguagem e soltava sons que de modo todos os outros, sujeitos aos precon-
algum se pareciam com os de um ceitos próprios ao seu estado, pode-se
homem? crer que não se dedicariam de boa von-
"Passou-se muito tempo", continua tade a buscas aparentemente de pura
o mesmo filósofo que me forneceu esse curiosidade e que os desviariam dos
fato, "antes de poder ela proferir algu- trabalhos mais importantes a que se
mas palavras ainda que de modo bár- destinam. Aliás, para pregar eficiente-
baro. Assim que pôde falar, interroga- mente o Evangelho, basta o zelo, e
ram-na quanto ad seu primeiro estágio, Deus dá o rdto, mas, para estudar os
mas não se lembrava dele mais do que homens, são necessários talentos que
nós nos recordamos do que nos acon- Deus não se esforça para dar a nin-
teceu no berço." guém e que nem sempre os santos pos-
Se, infelizmente para ela, essa crian- suem. Não se abre um livro de viagens
ça tivesse caído nas mãos de nossos em que não se encontrem descrições de
viajantes, não se pode duvidar que, de- caracteres e de costumes, mas fica-se
pois de ter notado seu silêncio e sua espantado ao verificar que essas pes-
estupidez, não tivessem resolvido man- soas, que tanto descreveram coisas, só
dá-la de volta para o campo ou presa disseram o que cada um já sabia, só
para um parque de aclimação e, souberam perceber, no outro lado do
depois, falariam dela, em belos relatos, mundo, o que poderiam notar sem sair
como de uma besta singularíssima que de sua rua e que os verdadeiros traços
se parecia muito com o homem. que distinguem as nações e atingem
Depois de, por trezentos ou quatro- olhos feitos para ver quase sempre
centos anos, os habitantes da Europa escaparam aos seus. Daí veio esse belo
inundarem as outras partes do mundo provérbio de moral, tão repisado pela
e incessantemente publicarem novos turba filosofesca - que os homens,
repositórios de viagens e de relatos, em todos os lugares, são os mesmos e
estou persuadido de que, quanto aos que, possuindo em todos os lugares as
homens, só reconhecemos os europeus; mesmas paixões e os mesmos vícios, é
parece até, devido aos preconceitos bastante inútil tentar caracterizar os
ridículos que ainda não se extinguiram vários povos - , o que é aproximada-
entre os letrados, que cada um, sob o mente tão bem raciocinado quanto se
título pomposo de estudo do homem, disséssemos não se poder distinguir
ro faz o dos homens de seu país. Os Pedro de João porque ambos têm um
particulares podem satisfazer-se indo e nariz, uma boca e olhos.
vindo; parece que a filosofia não sai do Veremos, algum dia, renascer os
lugar, de modo que a de cada povo é tempos felizes em que os povos não se
pouco adaptável a um outro. A causa intrometiam querendo filosofar, mas
disso é manifesta, pelo menos para as quando os Platões, os Tales e os Pitá-
regiões distantes. Somente quatro tipos goras, tomados por um desejo ardente
de homens fazem viagens de longo de saber, empreendiam as maiores via-
curso - os marinheiros, os comer- gens unicamente para se instruir e iam
ciantes, os soldados e os missionários. longe sacudir o jugo dos preconceitos
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 307
nacionais, conhecer os homens por Parece que a China foi bem observada
suas conformidades e diferenças, e pelos jesuítas. Kempfer dá uma idéia
adquirir seus conhecimentos univer- passável do pouco que viu no Japão.
sais, que não são exclusivamente os de Salvo esses relatos, não conhecemos,
um século ou de uma região, mas, em absoluto, os povos das Índias
sendo de todos os tempos e de todos os Orientais, visitadas unicamente por
lugares, são, por assim dizer, a ciência europeus mais interessados em encher
comum dos sábios? suas bolsas do que suas cabeças.
Admira-se a magnificência de al- Ainda precisa ser observada toda a
guns curiosos que, com grandes despe- África e seus numerosos habitantes,
sas, fizeram ou custearam viagens ao tão singulares pelo seu caráter quanto
Oriente, com sábios e pintores, para lá pela cor; a terra toda está coberta de
desenhar ruínas e decifrar ou copiar nações das quais só conhecemos os
inscnçoes; custo, porém, a com- nomes, e ainda queremos julgar o gê-
preender como, num século que se van- nero humano! Suponhamos um Mon-
gloria de altos conhecimentos, não se tesquieu, um Buffon, um Diderot, um
encontrem dois homens bem ligados, Duclos 1 43 , um d'Alembert, um Con-
ricos, um em dinheiro e outro em dillac ou homens dessa têmpera, via-
gênio, ambos amando a glória e aspi- jando para instruir seus compatriotas,
rando à imortalidade, um dos quais observando e descrevendo, como o
sacrifique vinte mil escudos de sua for- sabem, a Turquia, o Egito, a Barbá-
tuna e outro dez anos de sua vida para ria 1 4 4 , o Império de Marrocos, a
uma célebre viagem em volta do Guiné, o país dos Cafres 1 4 5 , o interior
mundo, a fim de, pelo menos uma vez, da África e suas costas orientais, as
em lugar de estudar sempre pedras e Malabares 1 4 6 , o Mogol 1 4 7 , os rios do
plantas, estudarem os homens e os cos- Ganges, os reinos do Sião, de Pegu 1 4 8
tumes e, depois de tantos séculos dedi- e de Ava 1 49 , a China, a Tartária 1 50 e,
cados a medir e considerar a casa, se
resolvam por fim a conhecer-lhe os 1 4
3 Duelos (1704- 1772): moralista francês,
da, enquanto a presa de uma ursa ou saber, como ele pretende, que no esta-
de uma loba é devorada num instante e do de natureza a mulher comumente
ela, sem sofrer fome, tem mais tempo fica novamente grávida e gera um
para aleitar seus filhotes. Esse racio- novo filho muito antes que o prece-
cínio é confirmado por uma observa- dente possa por si mesmo atender às
ção sobre o número relativo de tetas e suas necessidades, seriam necessárias
de filhotes que distingue as espécies experiências que certamente o Sr.
carniceiras das frugívoras, e à qual me Locke não fez e ninguém está em situa-
referi na nota h. Caso a observação ção de fazer. A coabitação contínua do
seja justa e geral, a mulher, não tendo marido e da mulher é uma ocasião tão
senão dois seios e não gerando de cada tangível de expor-se a uma nova gravi-
vez mais do que um filho, constitui dez que é bem difícil de crer que o
isso mais um motivo para duvidar que encontro fortuito ou somente o impul-
a espécie humana seja naturalmente so do temperamento produza efeitos
carniceira, parecendo pois que, para tão freqüentes no estado puro de natu-
concluir como Locke, seria preciso reza quanto no da sociedade conjugal;
inverter inteiramente seu raciocínio. essa lentidão contribuiria talvez para
Não há maior solidez na mesma distin- tornar as crianças mais robustas, o que
ção aplicada aos pássaros, pois quem aliás poderia ser compensado pela
poderia se convencer de ser mais durá- faculdade de conceber, prolongada até
vel a união de macho e fêmea entre os uma idade mais avançada nas mulhe-
abutres e os corvos do que entre as res que abusassem menos na sua
rolas? Possuímos duas espécies de pás- juventude. Quanto aos filhos, há mui-
saros domésticos, o pato e o pombo, tos motivos para crer que suas forças e
que nos fornecem dois exemplos dire- órgãos se desenvolvam mais tardia-
tamente contrários ao sistema desse mente entre nós do que acontecia no
autor. O pombo, que só vive de grãos, estado primitivo de que falo. A fra-
fica junto de sua fêmea e ambos nu- queza original, que devem à constitui-
trem em comum os filhotes. O pato, ção dos pais, o cuidado que se tem de
cuja voracidade é bem conhecida, não envolver e embaraçar todos os seus
reconhece nem a fêmea nem os filhotes membros, a frouxidão em que são edu-
e em nada ajuda sua subsistência; cados, talvez o uso de um outro leite
entre as galinhas, espécie que de modo que não o da mãe, tudo contraria e
algum é menos carniceira, vê-se que o retarda neles os primeiros progressos
galo não tem nenhum trabalho com a da natureza. A aplicação que se lhes
ninhada. Se, em outras espécies, o obriga a dar a mil coisas nas quais
macho partilha com a fêmea o cuidado continuamente se fixa a sua atenção,
de nutrir os filhotes, tal acontece por- enquanto não se proporciona qualquer
que os pássaros, que a princípio não exercício às suas forças corporais,
podem voar e cuja mãe não pode alei- pode ainda causar um desvio conside-
tar, estão muito menos em estado de rável no seu crescimento, de forma
dispensar a assistência do pai do que que, se em lugar de primeiro sobrecar-
os quadrúpedes, a quem, pelo menos regar e fatigar seus espíritos de mil
durante algum tempo, é suficiente a modos, deixássemos seus corpos se
teta da mãe. exercitarem nos movimentos contínuos
3. Há muita incerteza quanto ao que a natureza parece pedir-lhes, po ·
fato principal que serve de base a todo de-se crer que estariam muito mais
o raciocínio do Sr. Locke, pois para cedo em estado de andar, de agir e de
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 311
melior longe quam nostra hac in parte conhecido o nome dos números, é fácil
videatur conditio, utpote quae promp- explicar o seu sentido e despertar as
tius, ·et forsan felicius, sensus et cogi- idéias que esses nomes representam,
tationes suas sine interprete significent, mas, para inventá-los, foi preciso,
quam ul/i queant mortales, praesertim antes de conceber essas mesmas idéias,
si peregrino utantur sermone. (Is Vos- estar-se, por assim dizer, familiarizado
sius. De Poemat. Cant. e Viribus com as meditações filosóficas, exerci-
Rhythmi, pág. 66. 1 5 4 ) tado na consideração dos seres unica-
(n) Platão, mostrando como as mente pela sua essência e independen-
idéias da quantidade discreta e de suas temente de qualquer outra concepção;
relações são necessárias nas menores é essa uma abstração muito penosa,
artes, zomba, com razão, dos autores muito metafísica, muito pouco natural
de seu tempo que pretendiam ter Pala- e sem a qual, no entanto, essas idéias
medes inventado os números no cerco jamais poderiam ter-se transportado de
de Tróia, como se, diz esse filósofo, uma espécie ou de um gênero para
Agamenon até então pudesse ignorar outro, nem se tornarem universais os
quantas pernas tinha 1 5 5 • Com efeito, números. Um selvagem poderia consi-
sente-se ser impossível que a sociedade derar, separadamente, sua perna direi-
e as artes tivessem alcançado o ponto ta e sua perna esquerda, ou olhá-las
em que já se encontravam no tempo do juntas sob a idéia indivisível de um
cerco de Tróia, sem que os homens par, sem jamais pensar que exitiram
possuíssem o uso dos números e do duas, pois uma coisa é a idéia repre-
cálculo. Mas a necessidade de conhe- sentativa que nos dá o objeto e, a
cer os números, antes de adquirir ou- outra, a idéia numérica que a determi-
tros conhecimentos, não facilita imagi- na. Menos ainda poderia ele calcular
nar-lhes a invenção. Uma vez até cinco e, quando aplicasse suas
mãos uma sobre a outra e notasse que
1 5 4
"Nada faltaria para a felicidade do gêne- seus dedos se correspondiam exata-
ro humano se, repelindo esse fluxo e essa con- mente, estaria bem longe de pensar na
fusão de numerosas línguas, os mortais conhe- sua igualdade numérica; não sabia me-
cessem perfeitamente um único meio de lhor o número de seus dedos do que o
expressão e se quem quer que fosse pudesse
exprimir-se por meio de sinais, movimentos e
de seus cabelos e se, depois de fazê-lo
gestos. Aliás, já se fez a seguinte comparação: compreender o que são os números,
os animais, aos quais comumente se atribui alguém lhe tivesse dito que tinha tantos
uma condição selvagem, possuem nesse parti- dedos nas mãos quantos nos pés, tal-
cular uma muito melhor e que não parece ser a vez ficasse muito surpreso ao verificar,
nossa. É com mais rapidez e talvez com mais
prazer que eles exprimem sem intermediários comparando-os, sor verdadeira tal
suas sensações e pensamentos, como nenhum coisa.
mortal o sabe fazer, sobretudo no caso de ser- (o) Não se deve confundir o amor-
vir-se de uma língua estrangeira." Vossius
(1577-1649; sábio alemão): Sur la Poésie du próprio com o amor de si mesmo ; são
Chant et la Force du Rythme. (N. de P. A.-B.) duas paixões bastante diferentes tanto
1 5 5
República, LL, VII, 522 d. C. Platão fala, pela sua natureza quanto pelos seus
neste ponto, como se estivesse cansado dessa efeitos 1 5 6 • O amor de si mesmo é um
pretensão conferida pelos autores trágicos a sentimento natural que leva todo ani-
Palamedes. Sócrates e Eurípides escreveram,
cada um deles, uma tragédia de Palamedes.
Górgias, na Defesa de Palamedes, dá-lhe tam- 1 5 6
Essa distinção . é um elemento funda-
bém a honra de ter descoberto a aritmética. (N. mental da moral de Malebranche, que muito
de P. A.-B.) influenciou Rousseau. (N. de P. A.-B.)
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 313
seria deixar aos magistrados a capaci- viços reais que prestam ao Estado e
dade de uma aplicação quase arbi- que são suscetíveis de julgamento mais
trária da Lei, mas, sim segundo os ser- exato.
INTRODUÇÃO Á CARTA
AO SENHOR PHILOPOLIS
De Paul Arbousse-Bastide
'•
CARTA DE JEAN-JACQUES ROUSSEAU
AO SR. PHILOPOLIS
Desejàis que vos reponda, senhor, razão, esse grande veículo de todas as
posto que me fazeis algumas pergun- nossas tolices, não nos faltaria para
tas. Trata-se, aliás, de uma obra dedi- esta. Os. filósofos e, sobretudo, as pes-
cada a meus concidadãos; devo, ao soas de bom senso, para sacudir o jugo
defendê-la, .justificar a honra que me das paixões e gozar do precioso repou-
deram ao aceitá-la. Deixo de lado, na so da alma, alcançariam a largos pas-
vossa carta, aquilo que me diz respeito, sos a idade de Nestor 1 e de boa vonta-
tanto de bem quanto de mal; porque . de renunciariam aos desejos que se
aproximadamente uma parte com- podem sàtisfazer, a fim de se defende-
pensa a outra, e devido ao pouco que rem daqueles que é preciso abafar;
isso me interessa e ainda menos ao pú- sobrariam só alguns imprudentes que,
blico e também porqQe tudo isso em embora se envergonhando de sua fra-
nada contribui para a busca da verda- queza, desejassem loucamente conti-
de. Começo, pois, pelo raciocínio que nuar jovens e felizes em lugar de enve-
me apresentais como essencial à ques- lhecerem para tornar-se sábios.
tão que procurei resolver. Suponhamos que um espírito singu-
O estado de sociedade, dizeis, ê lar, extravagante, . numa palavra, um
resultado imediato das faculdades do homem de paradoxos, resolvesse então
homem e, conseqüentemente, de sua censurar nos demais o absurdo de suas
natureza. Querer que o homem em . máximas, demonstrar que, procurando
absoluto não se torne sociável, seria a tranqüilidade, correm para a morte,
desejar, então, que não fosse mais que ~ desvariam à força de serem
homem, e insurgir-se contra a sacie- . razoáveis e, caso seja necessário um
dade humana é atacar a obra de Deus. dia ficarem velhos, deveriam csforçar-
Permiti-me, senhor, apresentar-vos, se ·para que tal acontecesse o . mais
por minha vez, uma objeção antes de tarde possível.
resolver a vossa. Eu vos pouparia esta Não será preciso perguntar se nos-
digressão, se conhecesse caminho mais sos sofistas, temendo o descrédito de
curto pará chegar ao fim. seu .arcano, não se apressariam em
Suponhamos que alguns sábios en- interromper esse discursador importu-
contrassem, certo dia, o segredo de no. "Sábios velhos", diriam a seus
acelerar a velhice e a arte de fazer com
que os homens usassem essa rara
1
Nestor, rei de Pilos, o mais idoso dos prínci-
pes que presenciaram a queda de Tróia, era
descoberta. Tal persuasão não seria reputado pela sua sabedoria e pelos longos dis-
talvez tão difícil de ser reàlizada como cursos que pronunciava perante os chefes reu-
pode parecer à primeira vista, pois a nidos. (N. de P. A.-B.)
322 ROUSSEAU
ção moral torna-se questão de mando do Esta- alegre e fecunda, da terra; o estado social, a
do. (N. de P. A. -B.) seu envelhecimento. (N. de P. A.-B.)
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 323
ou não, ou, pelo menos, acontecer mais De acordo com Leibniz e Pope 7 ,
cedo ou mais tarde e, conseqüente- tudo o que existe está certo. Se existem
mente, apressar ou retardar o progres- sociedades, é por desejar o bem
so. Inúmeras dessas circunstâncias comum que existem; caso não existam,
dependem mesmo da vontade do assim o deseja o bem comum. Se
homem; vi-me obrigado, para estabe- alguém persuadisse os homens a volta-
lecer uma paridade perfeita, a supor no rem a morar nas florestas, estaria bom
indivíduo o poder de acelerar sua que para lá voltassem. Não se deve
velhice como a espécie tem o de retar- aplicar à natureza das coisas uma idéia
dar a sua. Tendo, pois, o estado de do bem e do mal que não seja tirada de
sociedade um termo extremo, ao qual suas relações, pois elas podem ser boas
os homens podem querer chegar mais
em relação ao todo, apesar de más em
cedo ou mais tarde, não é inútil
si mesmas. Aquilo que concorre para o
mostrar-lhes o perigo de ir tão de-
bem geral pode ser um mal particular,
pressa e as misérias de uma condição
que tomam como a perfeição da em relação ao qual há possibilidade de
espécie. libertar-se quando possível. Porquanto
Quanto à enumeração dos males de se esse mal, enquanto suportado, é útil
que estão os homens sobrecarregados e ao todo, o bem contrário, que se quer
que afirmo serem sua obra, vós me em seu lugar, não lhe será menos útil,
assegurais - Leibniz 4 e vós - que desde que se estabeleça. Pela razão
tudo está bem, assim se justificando a mesma de tudo estar bem assim como
Providência. Estava longe de acreditar está, se alguém se esforça por mudar o
que ela tivesse necessidade, para justi- estado das coisas, está bom que se
ficar-se, do auxílio da filosofia leibni- esforce por mudá-lo; e, se é bom ou
ziana ou de qualquer outra. Julgais, mau que o consiga, isso só se pode per-
vós mesmos, seriamente, que um siste- ceber pelo acontecimento e não pela
ma de filosofia, qualquer que seja, razão. Seria bom para o todo que fôs-
possa mostrar-se mais irrepreensível semos civilizados, posto que o somos;
do que o universo e que, para descul- mas certamente teria sido melhor para
par a Providência, os argumentos de nós não o ser. Leibniz jamais teria ti-
um filósofo se apresentem como mais rado de seu sistema algo que pudesse
convincentes do que as obras de contraditar essa proposição e está
Deus? 5 Além disso, negar que o mal claro que o otimismo bem compreen-
existe é um meio muito cômodo para dido não me favorece, nem me desfa-
desculpar o autor do mal. Os estóicos vorece.
outrora caíram no ridículo por muito Além disso, não é nem a Leibniz
menos 6 • nem a Pope que devo responder, mas
somente a vós que, sem distinguir o
4
Leibniz (1646-1716): filósofo e sábio ale- mal universal, que eles negam, do mal
mão, chefe da escola otimista. (N. de P. A.-B.)
5
A Profissão de Fé do Vigário Saboiano particular, que não negam, pretendeis
desenvolverá essa tese. (N. de P. A.-B.) suficiente que uma coisa exista para
6 Os estóicos afirmavam que tudo o que acon-
não ser permitido que se desejasse sua
tecia pela razão, isto é, pela necessidade divina existência de outro modo. Mas, meu
ou pela providência, era, conseqüentemente,
bom, ainda que nossos sentidos nos dessem um
senhor, se tudo está bem cÓmo está,
testemunho contrário; ninguém é mais feliz,
7 Alexandre Pope (1688-1744): poeta e filó-
diziam, do que o sábio submetido a torturas;
pretendiam ignorar a dor física e as aflições sofo inglês, autor do Ensaio sobre o Homem.
morais. (N. de P. A.-B.) (N. de P. A.-B.)
324 ROUSSEAU
tudo estaria bem corrio esteve, antes de O homem, dizeis, é feito do modo
existirem governos e leis; pelo menos, como o exigia o lugar que deveria ocu-
teria sido supérfluo estabelecê-los. par no universo. Mas os homens dife-
Jean-Jacques então, segundo vosso sis- rem de tal modo, segundo os tempos e
tema, levaria vantagem sobre Philopo- lugares, que, com uma tal lógica, se
lis. Se tudo está bem como está, assim ficaria sujeito a estabelecer, partindo
como ~ntedis, de que servirá corrigir do particular para o universal, conse-
nossos vícios, curar nossos males, qüências muito contraditórias e muito
reparar nos~ erros? Para que servem pouco concludentes. Bastaria um erro
nossas cátedras, nossos tribunais e de geografia para abalar toda essa pre-
nossas academias? Para que chamar tensa doutrina, que deduz do que se vê
um médico quando tiverdes febre? aquilo que deve ser. O índio dirá que é
Como podereis saber ~e o bem do todo próprio aos castores fugir para dentro
maior, que não conheceis, não exige de tocas e que o homem deve dormir
que tenhais a perturbação, e se a saúde numa rede pendurada nas árvores.
dos habitantes de Saturno ou de Sírius Não, não, dirá o tártaro, o homem é
não ficaria. prejudicada com o restabe- feito para dormir numa carroça. Po-
lecimento da vossa? Deixai tudo andar bres pessoas, exclamariam os nossos
como for possível, a fim de que tudo vá Philopolis, com um ar de piedade, não
sempre . bem. Se tudo está do melhor vedes, que o homem é feito para cons-
modo possível, deveis censurar toda e truir cidades? . Quando se trata de
qualquer ação, pois toda ação produz raciocinar sobre a natureza humana, o
necessariamente alguma mudança no verdadeiro filósofo não é nem índio,
estado em que as coisas se encontram nem tártaro, nem de Genebra, nem de
no momento em que se dá; não se Paris, mas o homem.
pode, pois, tocar em coisa alguma sem Quanto a ser o macaco um animal,
fazer o mal, e a única virtude que resta eu o creio e dei a razão disso; que o
ao homem será o mais perfeito quietis- orangotango também o seja, eis o que
mo. Finalmente, se tudo está bem tivestes a bondade de ensinar-me e
como está, é bom que existam lapões 8 , confesso que, depois dos fatos que
esquimós, algonquinos, chicacas, ca- apresentei, parecia-me difícil a prova
raíbas que vivem sem a nossa polícia, disso. Filosofais muito bem para pro-
nunciar-vos a esse respeito tão leviana-
hotentotes que caçoam dela e um gene- mente quanto nossos viajantes, que às
brino que as aprova. O próprio Leib- vezes se expõem, sem grande cuidado,
niz concordaria com isso. a colocar os seus semelhantes na classe
8 Os /apões habitavam o Norte da Rússia e os
dos _animais. Cativaríeis, certamente, o
países escandinavos; os esquimós, a Groen-
público e até instruiríeis os cientistas,
lândia e a parte compreendida entre a baía de se nos expusésseis os meios que empre-
Hudson e o estreito de Bering; os algonquinos gastes para resolver essa questão.
são um povo índio da América do Norte; os Na minha epístola dedicatória, cum-
chicacas, indubitavelmente, são os chibchas,
povo civilizado da América do Sul, que os primentei minha pátria por possuir um
espanhóis encontraram estabelecidos na Nova dos melhores governos que possam
Granada, no século XVI. Os caraíbas habitam existir; provei, no discurso, que lá
as pequenas Antilhas, e os hotentotes, a África deveriam existir muito poucos bons
austral. Rousseau mistura, à vontade, todas as
regiões do globo e acumula os nomes mais
governadores. Não vejo onde reside a
heterogêneos, segundo um processo tradicional contradição que salientais em relação
dos Polemistas. (N. de P. A.-B.) a essa passagem. Mas, como sabeis,
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 325
senhor, que eu iria antes morar nos quase assegurar que o estado de refle-
bosques, caso minha saúde o permi- xão é um estado contra a natureza e
tisse, do que entre meus concidadãos, que o homem que medita é um animal
em relação aos quais conheceis minha depravado." Confesso-vos que, se eu
afeição? Longe de dizer, na minha tivesse confundido desse modo a sani-
obra, qualquer coisa semelhante, de- dade com a santidade e se a proposi-
veis nela ter encontrado razões muito ção fosse verdadeira, acreditar-me-ia
fortes para não escolher esse gênero de mui.to capaz de eu próprio tornar-me
vida. No meu íntimo, sinto muito bem um grande santo no outro mundo ou
com que dificuldade poderia abster-me pelo menos de comportar-me sempre
de viver com homens tão corrompidos bem neste.
quanto eu, e mesmo um sábio, se é que Termino, senhor, respondendo a
existe, não irá, atualmente, procurar a vossas três últimas questões. Não abu-
felicidade no fundo de um deserto. É sarei do tempo que me dais para refle-
preciso, quando se pode, fixar sua tir sobre elas; este cuidado já tomara
moradia na pátria para amá-la e servi- de antemão.
la. Felizes daqueles que, privados "Um homem ou qualquer ser sensí-
dessa vantagem, podem pelo menos vel, que jamais tivesse conhecido a
viver no seio da amizade, na pátria dor, teria piedade e ficaria emocionado
comum do gênero humano, nesse asilo se visse uma criança sendo degolada?"
imenso aberto a todos os homens, onde Respondo que não.
se comprazem igualmente a sabedoria "Por que a populaça, a quem o Sr.
austera e a juventude folgazã, onde rei- Rousseau dispensa dose tão grande de
nam a humanidade, a hospitalidade, a piedade, se compraz com tanta avidez
doçura e todos os encantos de uma à vista do espetáculo de um infeliz
sociedade fácil, onde os pobres ainda expirando no suplício da roda?" Pela
encontram amigos, a virtude, exemplos mesma razão que ides chorar no teatro
que a incentivam, e a razão, guias que e ver Séide degolar seu pai ou Tiestes
a esclarecem ! É graças a esse grande beber o sangue do filho 1 0 • A piedade é
teatro da fortuna, do vício e, algumas um sentimento tão delicioso que não
vezes, das virtudes que se pode com constitui motivo de espanto procurar
lucro observar o espetáculo da vida; senti-la. Aliás, cada qual tem curiosi-
mas é no seu país que cada um deveria dade secreta de estudar os movimentos
em paz esperar o termo da sua. da natureza nas proximidades desse
Parece-me, senhor, que me censurais momento temível que ninguém pode
seriamente a propósito de uma reflexão evitar. Acrescentai a isso o prazer de,
que a mim me parece muito justa e durante dois meses, ser o orador do
que, justa ou não, não tem no meu tra- bairro e de contar aos vizinhos, pateti-
balho o sentido que vos apraz dar-me,
com a adição de uma única letra. "Se a 10
Said, escravo de Maomé, foi o primeiro a
natureza nos destinou a sermos san- ter fé na missão do Profeta. Seu nome, afrance-
tos"9, o senhor fez-me dizer, "ouso sado por Voltaire, numa de suas tragédias,
como Séide, significa homem de devotamento
9 No volume do Mercure em que foi pela pri- cego e fanático. Tieste, da mitologia antiga, foi
meira vez impressa a carta de Bonnet-Philo- objeto de ódio de seu irmão Atreu, que se vin-
polis, e que deu lugar à resposta de Rousseau, gou dele matando-lhe dois filhos e servindo-os
estava efetivamente saints em lugar de sains; num banquete; Crébillon pusera em cena esse
era, porém, um erro de impressão, como o a- assunto. A análise da piedade na tragédia será
testam os editores de Genebra.É espantoso que retomada na Carta a d'Alembert. (N. de P.
Rousseau não o tenha percebido. (N. de P. A.-B.) A.-8.)
326 ROUSSEAU
camente, a bela sorte do último supli- tringida, pois, desde que os pintos
ciado na roda 11 • saem do ovo, verifica-se que a galinha
"A afeição que as fêmeas dos ani- não tem nenhuma necessidade deles,
mais demonstram pelos seus filhotes no entanto sua ternura maternal não os
tem por objeto esses filhotes ou a cede a nenhuma outra galinha.
mãe?" Primeiro, a mãe, para atender à Aí estão, senhor, minhas respostas.
sua necessidade, depois, por causa do Notai, afinal, que, neste caso como no
hábito, os filhotes. Já o disse no Dis- do primeiro discurso, eu sou sempre o
curso. "Se por acaso fosse esta, o monstro que sustenta ser o homem
bem-estar dos filhotes só ficaria mais naturalmente bom, enquanto meus ad-
assegurado com isso." Também sou versários são sempre as pessoas de
dessa opinião. No entanto, essa máxi- bem que, para a edificação pública,
ma antes deve ser ampliada que res- esforçam-se por provar que a natureza
só deu origem a celerados.
O suplício da roda, comum no século
11
1. Circunstâncias da Composição.
PREFÁCIO
PREÂMBULO
1
André Morize, L 'Apo/ogie du Luxe au XVIII Siec/e. (N. de P. A.= -B.)
2
Delaruelle: Les Sources Principa/es de Rousseau dans /e Premier Discours. (Revue d'Histoire Littéraire,
Abril, 1912.) (N. de P. A.-B.)
INTRODUÇÃO .333
PRIMEIRA PARTE
SEGUNDA PARTE
3 Muito embora a expressão induções históricas aqui apareça tomada ao próprio Rousseau, impõe-se desde
já registrar que, no sentido específico que tem para nosso Autor, não se confunde com o de uma perfeita
relação causal, antes significando uma relação ?e in!erdependência entre ?eter'?inad_s>s fa~o ~m sua evolu-
ção histórica. (Cf. nota 25 ao Discurso.) Também nao se podem confundir as mduçoes hzstoncas de Rous-
seau com o método histórico, tal como hoje o conceituamos. (Cf. ainda nota 49.) (N. de L. G. M.)
334 INTRODUÇÃO
a) As ciências, impuras pelas suas origens (pois são oriundas de móveis que
se prendem a nossos vícios) e por seu objeto, são perigosas por seus efeitos (por-
quanto fazem perder tempo precioso que poderia ter emprego mais útil para a
sociedade).
b) Aqueles que cultivam as ciênciasfreqiientemente não passam de ociosos
estéreis que espalham paradoxos perigosos para a moralidade e a virtude. O prin-
cipal móvel é o furor de distinguir-se.
e) As letras e as artes apresentam-se acompanhadas pelo luxo, nascido,
como elas, da vaidade e da ociosidade.
d) O luxo provoca a dissolução dos costumes e a corrupção do gosto.
e) Impõe-se opor, à corrupção dos costumes, a simplicidade dos primeiros
tempos. "E uma bela praia, ornada unicamente pelas mãos da natureza . .. "(Es-
boço de um quadro histórico da corrupção progressiva dos costumes sob a
influência do progresso das letras e das artes.)
O Nefasto às qualidades guerreiras, salvaguardas da independência e da
virtude primitivas, o progresso das artes não o é menos às qualidades morais.
Digressão sobre a educação: tem-se de ensinar às crianças o que devem fazer
quando homens, e não aquilo que esquecerão. Ora, nossas artes só descrevem os
desvarios do coração.
g) Todos esses abusos são a conseqü"ência de um erro fundamental: agarra-
mo-nos aos talentos e subestimamos as virtudes. Além disso, entre os talentos,
preferimos os agradáveis aos úteis. Acabamos por ter especialistas em tudo, mas
não possuímos mais cidadãos.
CONCLUSÃO
OBSERVAÇÃO
1
O tema proposto pela Academia de Dijon é caracteristicamente setecentista. A Europa, no século dezoito,
chegava ao auge da cultura iniciada, na Renascença, pelo humanismo: o "iluminismo" dominava a vida inte-
lectual e, por igual, a política. Estamos na época dos "filósofos" e dos "désp0stas esclarecidos", isto é, da
supervalorização do conhecimento racional como o instrumento capaz de ·restabclecer, no seio da sociedade,
a ordem natural observável no cosmos. Os acadêmicos de Dijon, conseqüentemente, propuseram um tema
que, sem dúvida, esperavam ver respondido positivamente e, mais, utilizado para o desenvolvimento dum
elogio acalorado do "restabelecimento das letras e das artes", ou melhor, da Renascença, que inaugurara
uma nova era.
Rousseau, contudo, vai responder pela negativa, o que chamará, para seu discurso, atenção maior do
que tinham merecido seus antecessores na acusação dos vícios do tempo. ~ verdade que, embora escrevendo
de maneira menos direta e ordenada, como ele próprio confessa, terá sido o primeiró a atribuir clara impor-
tância à moral, deixando a razão em segundo plano. O mundo novo, que diz ter visto na caminhada a Vin-
cennes, é o mundo de seu próprio pensamento, original e oposto às idéias dominantes em seu tempo e em seu
meio (N. L. G. M.)
ADVERTENCIA
Que será a celebridade? Eis a obra infeliz a que devo a minha. É certo que
essa peça, que me valeu um prêmio e me deu nome, será, no máximo, medíocre
e, ouso acrescentar, uma das menores deste repositório. Que abismo de misérias
não teria evitado o autor, se esta primeira obra tivesse sido recebida como o
merecia! Mas era preciso que um favor inicial injusto me trouxesse, aos poucos,
uma severidade que ainda é mais injusta.
PREFÁCIO
Eis aqui uma das maiores e mais se quer viver para além de seu século,
belas questões jamais agitadas. Não se não se deve escrever para tais leitores 4 •
trata, de modo algum, neste discurso, Mais uma palavra e concluirei. Não
dessas sutilezas metafisicas que domi- contando com a honra que recebi, con-
naram todas as partes da literatura e fesso ter, depois de enviá-lo, refundido
das quais nem sempre são isentos os e aumentado este discurso de modo a
programas de academia, mas de uma torná-lo, de certa maneira, uma outra
daquelas verdades que importam à obra. Sinto-me hoje obrigado a resta-
felicidade 2 do gênero humano. belecê-lo no estado em que foi premia-
Prevejo que dificilmente me perdoa- do. Acrescentei-lhe somente algumas
rão o partido que ousei tomar. Ferindo notas e deixei duas adições fáceis de
de frente tudo o que constitui, atual- serem reconhecidas e que a Academia
mente, a admiração dos homens, não talvez não tivesse aprovado. Penso que
posso esperar senão uma censura uni- a eqüidade, o respeito e o reconheci-
versal; não será por ter sido honrado mento exigem de mim esta advertência.
pela aprovação de alguns sábios que
deverei esperar a do público. Por isso
já tomei meu partido; não me preo-
4
Repudiando seu tempo, Rousseau repudia
os pensadores que não conseguiam esperar
cupo com agradar nem aos letrados coisa melhor no futuro. Parece-lhe que a sim-
pretensiosos, nem às pessoas em moda. ples insistência no desenvolvimento e expan-
Em todos os tempos, haverá homens são dos conhecimentos científicos e dos princí-
destinados a serem subjugados pelas pios racionais não levará a parte nenhuma.
Essa atitude nada tinha de simplesmente teóri-
opiniões de seu século, de seu país e de ca; já ao escrever este primeiro discurso, Rous-
sua sociedade. Faz-se passar hoje por seau tinha rompido com os representantes da
espírito forteª, filósofo, quem, pelo cultura consagrada, não apenas com os ex-
mesmo motivo, ao tempo da Liga não poentes conservadores da espécie dos acadêmi-
teria passado de um fanático! Quando cos, mas igualmente com aqueles que se consi-
deravam revolucionários, mas se acomodavam
na sociedade do tempo. Voltaire, principal fi-
2 Sobre a importância da idéia de felicidade gura desses libertários que conviviam com os
no século XVIII, ver P. Haszard, La Pensée déspotas, merece uma refutação explícita no
Européenne au XVIII Siecle; de Montesquieu próprio Discurso. Apenas Diderot constituía
à Lessing. Boibin, Paris, T. 1., capítulo II, pág. uma exceção respeitada por Rousseau, que
17-33. (N. de P. A.-B.) não só ia visitá-lo na prisão, mas ainda, em
3 A expressão espritfort nem sempre se enun- algumas passagens do Discurso (p. ex., na
ciou com sentido irônico ou pejorativo. Na era segunda nota de pé de página), ao falar em
da razão, a fortaleza espiritual, isto é, intelec- filósofos, sempre lhe abre lugar especial.
tual, tornara-se valor dominante. Rousseau A posição teórica e prática de Rousseau reser-
opõe-se a esse encarecimento da inteligência. vou-lhe posto à parte na história das idéias.
(N. de L. G. M.) (N. de L. G. M.)
DISCURSO
PRIMEIRA PARTE
se, pelo espírito, às reg1oes celestes; ainda mais desprezível que a ignorân-
percorrer com passos de gigante, como cia, usurpara o nome do saber e opu-
o sol, a vasta extensão do universo; e, nha um obstáculo quase invencível à
o que é ainda maior e mais difícil, sua volta. Precisou-se de uma revolu-
penetrar em si mesmo para estudar o ção para devolver os homens ao senso
homem e conhecer sua natureza, seus comum e ela veio donde menos se
deveres e seu fim. Todas essas maravi- esperava. Foi o estúpido muçulma-
lhas se renovaram, há poucas gera- no 1 2 , foi o eterno flagelo das letras que
ções9. as fez renascer entre nós. A queda do
A Europa tinha tornado a cair na trono de Constantino trouxe à Itália os
barbárie dos primeiros tempos 1 0 • Os destroços da Grécia antiga 1 3 • A Fran-
povos dessa parte do mundo, hoje tão ça, por sua vez, enriqueceu-se com
esclarecida, viviam há alguns séculos esses destroços preciosos. Rapida-
em estado pior do que a ignorância. mente, as ciências seguiram as artes, à
Não sei que algaravia 1 1 científica, arte de escrever juntou-se a arte de
9 Certos valores consagrados parecem mere-
pensar - gradação que pode parecer
cer tolerância de Rousseau: no discurso há um estranha e talvez não seja senão dema-
elogio da Renascença, uma explicação sobre a siado natural - e se começou então a
necessidade das academias e amáveis referên- sentir a principal vantagem do comér-
cias ao progresso da razão, no campo das ciên- cio das musas, que é o de tornar os ho-
cias. São, contudo, concessões aparentes. Por
meio delas, Rousseau acaba por atacar erros e mens mais sociáveis, inspirando-lhes o
vícios. Assim, neste parágrafq; ao lado dos desejo de se deleitarem uns aos ou-
aplausos a "todas essas maravilhas" do conhe- tros 1 4 por meio de obras dignas de sua
cimento e de seu "restabelecimento", a simples aprovação recíproca.
indicação de que mais dificil do que conhecer Como o corpo, o espírito tem suas
o universo é "penetrar em si mesmo para estu-
dar o homem e conhecer sua natureza, seus necessidades. Estas são o fundamento
deveres e seu fim" assentará as bases da crítica da sociedade, aquelas constituem seu
que, em nome da moral, Rousseau desenvol- deleite. Enquanto o Governo e as leis
verá contra as ciências e as artes. Apesar de atendem à segurança e ao bem-estar
toda a complicada evolução do pensamento de
Rousseau neste discurso, há uma ligação dire- dos homens reunidos, as ciências, as
ta entre a insinuação contida nessas primeiras letras e as artes, menos despóticas e
palavras do desenvolvimento e o enunciado da
conclusão final, onde se lê que "a verdadeira
filosofia" é "voltar-se sobre si mesmo e ouvir a
12
O estúpido muçulmano. Alusão à tomada
voz da consciência no silêncio das paixões". de Constantinopla pelos turcos em 1453. A
(N. de L. G. M.) estupidez não é a simplicidade. "É-se estúpido
1
° Como todos os de seu século, Rousseau à revelia do sentimento." Abbé Girard: Traité
des Synonymes, 1742. (N. de P. A.-B.)
julga severamente a Idade Média, aliás, sem
conhecê-la. Neste ponto, compartilha dos 13
O preconceito antimedieval completava-se
preconceitos dos "filósofos". O desprezo pela pelo preconceito favorável à retomada da cul-
Idade Média atinge sua expressão culminante tura clássica - só assim se explicam, a rigor,
cQm Condorcet no seu Tableau des Progres de os termos "renascença", "renascimento", "res-
l'Esprit Humain (1794). Ter-se-á de esperar tabelecimento", que não encontram qualquer
petds pré-românticos do começo do século base histórica. Mas, repitamos, quem fala aqui
XIX, pelos doutrinadores da contra-revolução é a cultura consagrada do tempo e não Rous-
e, sobretudo, por A. Comte, para notar indí- seau, que logo invectivará a estatuária clássica
cios de uma reabilitação da Idade Média. Será dos jardins setecêhtistas com exemplos de
ainda mais tardio o seu conhecimento real, imoralidade ... (N; de P. A.-B.)
sobretudo no domínio das idéias filosóficas. 1 4
O desenvolvimento das artes teria por pri-
(N. de P. A.-B.) meiro móvel, segundo Rousseau, a vaidade.
11 No texto francês: "que/jargon" - a esco- Essa idéia será retomada inúmeras vezes,
lástica da Idade Média. (N. de P. A.-B.) sobretudo no segundo discurso. (N. de P. A.-B)
DISCURSO SOBRE AS CIÊNCIAS E AS ARTES 343
dos usos opõe-se à liberdade dos caracteres. conferidas pela tradição aos filósofos estóicos.
(N. de P. A.-B.) (N. de P. A.-B.)
DISCURSO SOBRE AS CJÍNCIAS E AS ARTES 345
aos grandes e causar inveja com as demonstra- problema do "restabelecimento" das artes com
ções de seu espírito e de· sua loquacidade." o do nascimento da inteligência e do pensa-
(Livro III, capítulo 8.) Este o oficio de todos os mento. O único berteficio recebido da natureza
nossos letrados, menos um.* (N. do A.) é o da ignorância. Todos os males vieram da
• No consenso geral dos críticos, esse menos ''vã curiosidade". Há uma evidente transposi-
um refere-se a Diderot. (N. de L. G. M.) ção da tradição cristã. O orgulho do conhf!ci-
2 5 Nova ironia. Rousseau, muito habilmente, mento é o pecado original. (N. do A. P.-B.)
não afirma existir um laço de causa e efeito 2 7
Duas vezes: quando da guerra de Tróia e
entre os progressos da depravação e o das por ocasião das guerras dos medos. (N. de P.
artes e das ciências. Registra unicamente a A.-B.)
existência de uma interdependência entre esses 2 8
No texto original énervé - tomado no
dois fenômenos e que, por essa interdepen- sentido etimológico. A enervação era um suplí-
dência,· se pode medir a decadência dos costu- cio pelo qual queimavam os tendões. (N. de P.
mes. (N. de P. A.-B.) A.-B.)
346 ROUSSEAU
Foi no tempo dos Ênios e dos Terên- nem a pretensa sabedoria de suas leis,
cios que Roma, fundada por um pastor nem a multidão de habitantes desse
e ilustrada por trabalhadores, começou vasto império puderam resguardá-lo
a degenerar. Mas, depois dos Ovídios, do jugo do- tártaro ignorante e grossei-
dos Catulos, dos Marciais e dessa mul- ro, de que lhe terão servido os sábios?
tidão de autores obscenos cujos sim- Que fruto alcançou com as honrarias
ples nomes alarmam o pudor, Roma, de que foram estes cumulados? Por-
que outrora fora o templo da virtude, ventura, o de ser povoado por escravos
tornou-se o teatro do crime, o opróbrio e pérfidos?
das nações e o joguete dos bárbaros. Oponhamos a esse quadro o dos
Essa capital do mundo cai, finalmente, costumes de pequeno número de povos
sob o jugo que impusera a tantos que, preservados desse contágio de
povos e o dia de sua queda foi aquele conhecimentos maus, por suas virtudes
em que se deu a um de seus cidadãos o construíram a própria felicidade e
título de árbitro do bom gosto 2 9 • constituem exemplo para as demais
Que direi dessa metrópole do Impé- nações. Tais foram os antigos per-
rio do Oriente que parecia, por sua sas3 °, nação singular no seio da qual
posição, dever ser a do mundo inteiro, se aprendia a virtude como entre nós se
desse asilo das ciências e das artes aprende a ciência, que com tanta facili-
proscritas do resto da Europa, talvez dade subjugou a Ásia, sendo a única a
mais por sabedoria do que por barbá- possuir tal glória, e cuja história das
rie? Tudo que a depravação e a cor- instituições pode ser considerada um
rupção têm de mais vergonhoso; tudo romance de filosofia. Tais os citas 31 ,
que as traições, os assassínios e os dos quais nos restam elogios tão
venenos têm de mais negro; tudo que o magnificos. Tais os germanos 32 , a
concurso de todos os crimes tem de cujo respeito uma pena, cansada de
mais atroz - eis o que forma a trama descrever os crimes e as maldades de
da história de Constantinopla. Aí está um povo instruído, opulento e volup-
a fonte pura da qual foram trazidas até tuoso, aliviou-se com descrever-lhes a
nós as luzes com as quais nosso século simplicidade, a inocência e as virtudes.
se glorifica. Tal foi, também, a própria Roma 33,
Mas, por que procurar em tempos nos tempos de pobreza e de ignorân-
distantes as provas de uma verdade da cia; tal se mostrou até nossos dias esta
qual temos, sob nossos olhos, testemu- nação rústica 3 4 , tão enaltecida pela
nhos subsistentes? Há na Ásia uma
região imensa na qual as letras reve- 3 0 Rousseau, sem dúvida, lembrava-se de
renciadas levam às primeiras dignida- uma passagem de Montaigne (Livro, ens. 24)
des do Estado. Se as ciências purifi- que descrevia a educação dos jovens persas
segundo Platão e Xenofonte. (N. de P. A.-B.)
cassem os costumes, se ensinassem os 3 1 A retidão dos citas foi enaltecida por Justi-
sua coragem, que a adversidade não nidade? Oh! Esparta, eterno opróbrio
pôde abater, e pela sua fidela~, que de uma doutrina vã! Enquanto os ví-
o exemplo não pôde corromper 3 5 • cios levados pelas belas-artes se intro-
Não seria absolutamente por estupi- duziam conjugacjos em Atenas, en-
dez que esses povos preferiram outras quanto um tirano 3 7 lá reunia, com
atividades às do espírito. Não ignora- tanto cuidao~ as obras do príncipe
vam que, em outras regiões, homens dos poetas, tu escorraçavas para fora
ociosos passavam sua vida disputando de teus muros as artes e os artistas, as
sobre o bem soberano, sobre o vício e a ciências e os sábios!
virtude, e que pensadores orgulhosos, O acontecimento marcou essa dife-
creditando-se a si mesmos os maiores rença. Atenas tornou-se a moradia <ia
elogios, confundiam os outros povos polidez e do bom gosto, o país dos ora-
sob o nome desprezivo de bárbaros; dores e dos filósofos; lá a elegância pas
refletiram sobre seus costumes e apren- edificações correspondia à da língutl;
deram a desprezar sua doutrina 3 6 • viam-se, em todas as partes, o már-
Esquecer-me-ia de que foi no pró- more e a tela animados pelas mãos dos
prio seio da Grécia que se viu surgir mestres mais hábeis. De Atenas saíram
essa cidade tão célebre pela sua feliz essas obras surpreendentes que servi-
ignorância quanto pela sabedoria das ram de modelo a todas as épocas
leis, essa república antes de quase- corrompidas 3 8 • O quadro da Lacede-
deuses do que de homens, tanto suas mônia é menos brilhante. "Lá", diziam
virtudes pareciam superiores à huma- os outros povos, "os homens nascem
virtuosos e o próprio ar do país parece
3 5 Não ouso falar dessas nações felizes que inspirar a virtude." De seus habitantes
nem sequer conhecem o nome dos vícios que só nos resta a memória de seus atos
nos dão tanto trabalho para reprimir, daqueles heróicos. Tais monumentos valerão
selvagens da América cuja polícia simples e menos, para nós, do que os mármores
natural Montaigne não trepida em preferir, não
somente às leis de Platão, porém mesmo a interessantes que Atenas nos deixou?
tudo que a filosofia possa jamais imaginar de É verdade que alguns sábios resisti-
mais perfeito para o governo dos povos. Cita ram à torrente geral e resguardaram-se
ele uma quantidade de exemplos significativos do vício no trato das musas. Ouçamos,
para quem soubesse admirá-los. "Mas qual !", porém, o julgamento que o primeiro e
acrescenta, "eles não usam calções!" (Livro I,
capítulo 30.) (N. do A.)
3 7 Pisístrato, tirano de Atenas, no século VI
3 6 Que me digam, de boa fé, qual a opinião
que os próprios atenienses tinham de sua a. C., mandou recopiar os manuscritos de
eloqüência, se com tanto cuidado a afastaram Homero. (N. de P. A.-B.)
desse tribunal íntegro do qual nem os próprios 3 8 Evidentemente, entre "as épocas corrompi-
deuses apelavam. Que pensavam os romanos das" está aquela em que vive Rousseau que,
da medicina, se a baniram de sua república? E, desta forma, acaba por inverter a posição que
se um resto d~ humanidade levou os espanhóis aparentemente consentira em assumir. Conde-
a interditarem os jurisconsultos de entrarem na nando Atenas em nome da pureza espartana,
América, que idéia teriam da jurisprudência? condena exatamente o que se considerava
Não se poderia dizer que, graças a esse único
ato, ~creditavm reparar todos os males que ti- como melhor fruto da cultura clássica. Conde-
nham feito àqueles infelizes índios?* (N. do nando a cultura clássica, condena, obvia-
A.) mente, seu renascimento. Ora, condenando a
* Montaigne (Liv. Ili, cap. XIII) registrava Renascença, já não restava defesa para os
que o Rei Fernando evitara enviar para as continuadores do "restabelecimento das artes e
colônias os sabedores da jurisprudência, por das ciências". Rousseau transforma o que se
julgar, como Platão, que tais elementos são julgava índice de progresso supremo em sím-
perturbadores. (N. de L. G. M.) bolo de decadência. (N. de L. G. M.)
348 ROUSSEAU
o mais infeliz 3 9 dentre eles tinha dos mens no julgamento dos deuses e o
sábios e dos artistas de seu tempo: mais sábio dos atenienses na opinião
"Examinei", disse, "os poetas e os de toda a Grécia, Sócrates, fazendo o
vejo como pessoas cujo talento se elogio da ignorância! 4 1 Seria de crer .
impõe a si mesmos e aos outros, que se que, se ressuscitasse entre nós, nossos
fazem passar por sábios, que se tomam sábios e nossos artistas fariam com
como tais e que nada menos são 4 0 • que mudasse de opinião? Não, meus
"Dos poetas", continua Sócrates, senhores, esse homem justo confr-
"passei aos artistas. Ninguém ignorava nuaria a desprezar nossas ciências vãs,
mais as artes do que eu, ninguém esta- em absoluto ajudaria a aumentar essa
va mais convencido de possuírem os multidão de livros com que nos inum-
artistas belíssimos segredos. Verifi- dam de todos os lados, e, como o fez,
quei, no entanto, não ser sua situação só deixaria, como único preceito a seus
discípulos e a nossos descendentes, o
melhor do que a dos poetas e que
estão, tanto uns quanto outros, no exemplo e a memória de sua virtude.
Eis como é belo instruir os homens.
mesmo caso. Porque os mais hábeis Sócrates começou em Atenas, o
dentre eles avultam em sua companhia, velho Catão 4 2 continuou em Roma a
consideram-se como os mais sábios deblaterar contra esses gregos artifi-
dentre os homens. Essa presunção des- ciosos e sutis que seduziam a virtude e
lustrou completamente seu saber a afrouxavam a coragem de seus conci-
meus olhos. Foi assim que, colocan- dadãos. Mas continuaram a prevalecer
do-me no lugar do oráculo e pergun- as ciências, as artes e a dialética 4 3 ; ·
tando a mim mesmo o que eu mais Roma encheu-se de filósofos e de ora-
gostaria de ser, se o que sou ou o que dores, descuidou-se da disciplina mili-
eles são, se saber o que eles aprende- tar, desprezou-se a agricultura, adota-
ram ou saber que nada sei, respondi a ram-se certas seitas e esqueceu-se a
mim mesmo e ao deus: quero ficar pátria. Às sagradas palavras liberdade,
como sou. desinteresse, obediência às leis, sucede-
"Não sabemos, nem os sofistas, nem ram os nomes de Epicuro, Zenão e
os poetas, nem os oradores ou os artis- Arcesilas. "Depois que os sábios co-
tas, nem eu mesmo, o que é o verda- meçaram a surgir entre nós", diziam os
deiro, o bom e o belo. Há, porém, entre próprios filósofos, "eclipsaram-se ·as
nós uma diferença, qual seja, a de que, pessoas de bem". 4 4 Até então os
ainda que essas pessoas nada saibam, 4 1
O pensamento de Sócrates, na medida em
crêem todas saber alguma coisa, en- que podemos conhecê-lo, é interpretado estra-
quanto que eu, se nada sei, pelo menos nhamente por Rousseau. Parece que jamais
não duvido disso, de modo que toda Sócrates fez o elogio da ignorância; pretendeu
somente confundir a presunção dos sofistas,
essa superioridade de sabedoria, que salientando que o verdadeiro ponto de partida
me foi concedida pelo oráculo, reduz- de nossos conhecimentos era a confissão de
se unicamente a estar bem convencido suas limitações. (N. de P. A.-B.)
de que ignoro aquilo que não sei". 4 2
É inteiramente arbitrário o paralelismo
Aí está, pois, o mais sábio dos ho- estabelecido entre a ação de Sócrates e a de
Catão. (N. de P. A.-B.)
4 3
A dialética: arte de raciocinar' e de discutir
3 9 Porque deveria morrer envenenado por usando o diálogo, que facilita a oposição dos
seus contemporâneos. (N. de P. A.-B.) conceitos e a descoberta de sua síntese. (N. àe
4 0
É óbvio que Rousseau empresta a Sócrates P. A.-B.) ,
palavras inteiramente imaginárias,, nas quais 4 4
Citação de Sêneca: Postquam docti prodie-
parafraseia certas passagens de Platão. (N. de runt, boni desunt - Cartas a Lucílio, 95. (N.
P. A.-B.) de P. A.-B.)
DISCURSO SOBRE AS CIÊNCIAS E AS ARTES 349
4 8 Os homens são perversos. Quer dizer: tor- fazem sobretudo graças a uma interpretação
nam-se perversos. Rousseau ainda não diz bem evolutiva ou dialética, cuja rigidez se sabe
como. (N. de P. A.-B.) maior do que a dos próprios fatos acumulados.
4 9 Essas induções nada têm de rigorosas ou Essa segunda linhagem faz-se notar sobretudo
de históricas. Rousseau quis somente tentar no século XIX, a partir de Saint-Simon, bifur-
mostrar que o desenvolvimento das ciências e cando-se nos dois ramos pujantes iniciados
das artes sempre se acompanhou de Úma cres- por Auguste Comte e por Proudhon, e encon-
cente depravação dos homens. Cabe acres- trando sua mais robusta expressão no sistema
centar que, na história das idéias políticas, o de Marx, cujo rigor interpretativo lhe reservou
chamado "método histórico" só na idade posto singular na história da fundação da ciên-
contemporânea veio a assumir maior rigor e, cia social. A primeira corrente pode ser tida
ainda assim, graças à influência direta da como constante na história do pensamento
comparação histórica praticada na sociologia, político ocidental, pois, se parece enunciar-se
sobretudo por Durkheim e sua escola. A rigor, mais claramente com Maquiavel, muito antes
não encontramos nunca, entre os teóricos polí- já era patente, por exemplo, nos advogados da
ticos, cultores da indução histórica. Há aque- teoria do direito divino dos reis. Na fase ilumi-
les que se servem, desde o início da idade nista, chega a um auge e Rousseau dá-lhe
moderna, duma abundante exemplificação his- desenvolvimento inteiramente original usando
tórica para dar maior força a suas afirmações o mesmo caminho de raciocínio e exposição
de caráter empírico ou, mais raramente, que os filósofos e juristas, de cujas opiniões
dogmático. Há, de outra parte, aqueles que se iria tão nitidamente afastar-se. (N. de L. G.
apóiam mais diretamente na história, mas o M.)
SEGUNDA PARTE
to, vós de quem recebemos tantos mal. Outros males, piores ainda, acom-
conhecimentos sublimes, se não nos panham as letras e as artes. Tal é o
tivésseis nunca ensinado tais coisas, luxo 62 , como elas nascido da ociosi-
seríamos com isso menos numerosos, dade e da vaidade dos homens. O luxo,
menos bem governados, menos temí- raramente, apresenta-se sem as ciên-
veis, menos florescentes ou mais per- cias e as artes. e estas jamais andam
versos? Reconhecei, pois, a pouca sem ele. Eu sei que nossa filosofia,
importância de vossas produções e, se sempre fecunda em máximas singula-
o trabalho dos mais esclarecidos de res, pretende, contra a experiência de
nossos sábios e de nossos melhores todos os séculos, que o luxo seja o
cidadãos nos proporciona tão parca esplendor dos Estados; depois, porém,
utilidade 5 9 , dizei-nos o que devemos de ter esquecido a necessidade das leis
pensar dessa chusma de escritores obs- suntuárias, ousaria ela também negar
curos e de letrados ociosos que, em que sejam os bons costumes essenciais
pura perda, devoram a substância do à duração dos impérios e o luxo diame-
Estado. tralmente oposto aos bons costumes?
Que digo? Ociosos? Quisera Deus Que seja o luxo um indício certo de
que o fossem efetivamente! Os costu- riquezas; que sirva até, caso se queira,
mes, com isso, seriam mais sãos e a para multiplicá-las; que se deveria con-
sociedade mais sossegada. Esses vãos cluir desse paradoxo tão digno de ter
e fúteis declamadores andam, porém, nascido em nossos dias? E que se tor-
por todas as partes, armados com seus nará a virtude, desde que seja preciso
funestos paradoxos; minando os funda- enriquecer a qualquer preço? Os anti-
mentos da fé e enfraquecendo a virtu- gos políticos falavam constantemente
de. Sorriem desdenhosamente das ve- de costumes e de virtudes, os nossos só
lhas palavras pátria e religião 60 , e falam de comércio e de dinheiro. Um
dedicam seus talentos e sua filosofia a vos dirá que um homem numa determi-
destruir e aviltar quanto existe de nada região vale a soma pela qual o
sagrado entre os homens. Não que no venderiam na Argélia; outro, seguindo
fundo odeiem a virtude ou nossos dog- esse cálculo, encontrará regiões nas
mas; é da opinião pública que são ini- quais um homem nada vale, e outras
migos e, para tornar a trazê-los ao pé em que ele vale menos do que nada.
do altar, bastaria relegá-los ao meio Avaliam os homens como gado. Se-
dos ateus 6 1 • ô fúria de ser diferente, gundo eles, um homem só vale para o
que poder o vosso ! Estado pelo seu consumo; assim, um
O abuso do tempo constitui grande sibarita valeria bem trinta lacedemô-
nios. Adivinhe-se, pois, qual das duas
59
Seria conveniente definir a utilidade que se repúblicas - a de Esparta ou a de Sí-
deve esperar das ciências. Conferindo-lhes baris - foi subjugada por um punha-
anteriormente uma origem nos nossos vícios, do de camponeses e qual das duas fez a
Rousseau reconhece-lhes alguma utilidade. (N. Ásia tremer.
de P. A.-B.)
60
Neste ponto, Rousseau já estava separado
A monarquia de Ciro foi conquis-
dos "filósofos". tada, com trinta mil homens, por um
61
Rousseau quer dizer que os letrados que-
rem, antes de tudo, se fazer notados, tomando 62
Aqui começa a crítica da teoria que Vol-
o ponto de vista contrário ao da opinião públi- taire apresentara no seu poema O Mundano,
ca. Entre ateus, seriam os defensores dos alta- escrito em Cirey, em 1736, onde justificava o
res. As atitudes que assumem não são sinceras, luxo pelos benefícios materiais que traz ao
mas inteiramente relativas. país.
DISCURSO SOBRE AS CIÊNCIAS E AS ARTES 353
extraordinários por seus talentos, en- dos deuses não · se distinguiram mais
contra-se um que possua firmeza de das casas dos cidadãos. Chegou-se
alma e se recuse a ceder ao espírito de então ao cúmulo da depravação e os
seu século e aviltar-se com produções vícios nunca foram levados mais longe
pueris, desgraçado dele ! Morrerá na do que quando foram vistos, por assim
indigência e no esquecimento. Não é dizer, apoiados, na entrada do palácio
prognóstico que faço, mas experiência dos grandes, sobre colunas de már-
que relato! Carle ! Pierre! 6 5 Chegou o more e gravados sobre capitéis corín:
momento em que o pincel, destinado a tios.
aumentar a majestade de nossos tem- Enquanto se multiplicam as comodi-
plos por meio de imagens sublimes e dades da vida, as artes se aperfeiçoam
santas, cairá de vossas mãos ou será e o luxo se espalha, a verdadeira cora-
prostituído por ter de ornar com pintu - gem se debilita e as virtudes militares
ras lascivas os painéis de uma carrua- desfalecem: é ainda a obra das ciências
gem. E tu, rival dos Praxíteles e dos Fí- e de todas as artes que atuam nas som-
dias, tu, cujos ancestrais usaram o bras dos gabinetes. Quando os godos
cisel para fazer deuses capazes de des- arrasaram a Grécia, todas as biblio-
culpar a nossos olhos sua idolatria - tecas só se salvaram do fogo devido a
inimitável Pigal 6 6 , tua mão se conten- uma opinião espalhada entre eles e
tará em rebocar o ventre de um boneco segundo a qual se deveria deixar aos
ou então terá de ficar inativa. inimigos móveis tão próprios a des-
Não se pode refletir sobre os costu- viá-los do exercício militar e a distraí-
mes sem se comprazer com a lem- los com ocupações ociosas e sedentá-
brança da imagem da simplicidade dos rias. Carlos VIII viu-se senhor da
primeiros tempos. É uma bela praia 6 7 , Toscana e do reino de Nápoles quase
ornada unicamente pelas mãos da sem ter desembainhado a espada e
natureza, para a qual incessantemente toda a sua corte atribuiu essa facili-
se voltam os olhos e da qual com tris- dade inesperada a mais se divertirem o
teza se sente afastar-se. Quando os ho- príncipe e a nobreza da Itália com
mens inocentes e virtuosos amavam ter tornarem-se engenhosos e sábios do
os deuses como testemunhas de suas que se adestrando para se tornarem
ações, moravam juntos na mesma vigorosos e aguerridos. Com efeito.
cabana, mas, assim que se tornaram disse o homem de juízo que relat·
maus, cansaram-se com esses especta- esses dois traços, todos os exemplos
dores incômodos e os isolaram em nos ensinam que, nessa política mar-
templos magníficos. Escorraçaram-nos cial e em todas as que lhe são seme-
por fim para aí se estabelecerem eles lhantes, o estudo da ciência é muito
próprios, ou, pelo menos, os templos mais adequado a afrouxar e afeminar a
coragem do que a fortalecê-la e a
º.,, Trata-se de Carie van Loo (1705-1765) e animá-la.
de Pierre (morto em 1789), pintores célebres Os romanos confessaram que a vir-
nessa época, que trabalharam principalmente
na decoração de igrejas. (N. de P. A.-B.) tude militar se extinguira entre eles à
6 6
Trata-se de Pigalle ( 1714-1785), que nessa medida que começàram a se conhecer
época tinha produzido sobretudo obras de em quadros, em relevos, em vasos de
decoração religiosa. (N. de P. A.-B.) ourivesaria e a cultivar as belas-artes,
6 7
Uma das primeiras evocações do estado de
natureza. Vê-se que Rousseau não precisa
e, como se fosse e~sa região famosa
como os homens se tornaram maus. (N. de P. destinada a servir ':continuamente de
A.-B.) exemplo aos outros 'povos, a elevação
DISCURSO SOBRE AS CIÊNCIAS E AS ARTES 355
Histórico
para vir a público respondendo por Observações. Por outro lado, nesse mesmo
ano de 1753, Rousseau, ao publicar a comédia Narciso, escrita em 1733, mas
representada pela primeira vez em 18 de dezembro de 1752, acrescentou-lhe um
Prefácio, no qual, pela segunda vez, passava em revista todas as objeções de seus
adversários.
As personagens:
A. Argumentação Geral
a) "A ciência é boa em si." A prova pode ser encontrada no fato de que,
366 INTRODUÇÃO
B. Desculpa Pessoal
a) A cultura das ciências corrompe os costumes de uma nação; porém, num
verdadeiro sábio, a virtude não é de modo algum incompatível com a ciência.
b) Rousseau não se contradiz ao exaltar a virtude e praticar a ciência,
posto que não é nem virtuoso nem sábio; ama, porém a virtude, ainda não sendo
virtuoso, e esforçou-se por tomar-se um sábio, sem tê-lo conseguido.
c) Aliás, o exemplo e a autoridade dos Padres da Igreja o justificam, uma
vez que acreditaram combater os filósofos pagãos com suas próprias armas, isto
é, com as ciências mundanas, embora desprezando-as.
O rei da Polônia objetou que o luxo não nasceu das ciências, mas das
riquezas.
INTRODUÇÃO 367
CONCLUSÃO
As ciências e a filosofia causam mais mal do que bem; seria, porém, inútil
suprimi-las - os homens tornar-se-iam pobres e ignorantes, mas continuariam
igualmente corruptos: seria a barbárie. Pelo contrário, impõe-se uma legislação
apropriada à cultura.
"A Carta a Bordes" consegue esclarecer uma idéia que aparecera na Carta
ao Rei da Polônia: a ciência não é realmente má para o indivíduo enquanto
implicado em relações sociais. Essa distinção desempenhará um papel importan-
tíssimo no pensamento de Rousseau. Desde então, apresentar-se-ão duas solu-
ções igualmente possíveis ao problema moral: uma se fundamenta na regenera-
ção do indivíduo pela volta à natureza sadia e pela eliminação da má influência;
a outra, considerando a impossibilidade de tal retrocesso, visa a uma reforma da
sociedade, de modo a restaurar a moralidade no indivíduo. O segundo interesse
da Carta a Bordes reside em estabelecer uma transição entre o primeiro discurso
e o segundo; ela desenvolve o tema da desigualdade que a carta a Estanislau assi-
nalara de passagem e que, mais tarde, desempenhará grande papel; daí sai toda
uma série de oposições, que serão as oposições rousseaunianas típicas.
O Prefácio de Narciso retoma, num tom mais regular, de modo mais conciso
e classificando-as, as várias objeções que se dirigiram a Rousseau. Ele nada apre-
senta de novo, mas constitui um repertório prático e um resumo de toda a dou-
trina de Rousseau sobre as ciências e as artes. A exposição é agora mais sóbria
e mais precisa do que no primeiro discurso. O autor afirma nas Confissões que
esse prefácio é uma de suas boas obras.
A. As Objeções
Rousseau condensa em dois pontos as objeções que lhe.fizeram:
1) "eles pretendem que não acredito uma palavra das verdades que
sustentei':·
2) " ... que minha conduta está em contradição com meus princípios".
De início, responde por uma breve desculpa pessoal: se sua conduta está em
contradição com sua doutrina, é porque se conduziu mal, como acontece a qual-
quer homem. ''A razão nos mostra o objetivo, e as paixões nos afastam dele. "
Além disso, foi obedecendo a um preconceito de seu tempo que passou a juven-
tude estudando. Depois eleva o debate para um plano impessoal e sucessivamente
examina as verdades que estabeleceu e as conclusões que delas deco"em.
B. As Verdades Estabelecidas
Pode-se cultivar as letras e ao mesmo tempo desprezá-las e, desse modo,
Rousseau justifica a publicação da comédia Narciso. Com efeito, a ciência é boa
em si para o indivíduo em qualquer condição, mas num povo o gosto pelas letras
anuncia o começo da corrupção; tal predileção nasce do desejo de distinguir-se,
recompensa o que não depende de nós, isto é, os talentos, em detrimento das vir-
tudes, que dependem de nós; essa mesma predileção enfraquece o corpo e a alma,
relaxa os liames familiais e sociais, baseados na estima e na boa vontade mútuas,
e em seu lugar coloca laços de dependência fundamentados no interesse pessoal:
"os vícios pertencem menos ao homem do que ao homem governado ·:· o selva-
gem é superior, em virtude, ao europeu.
INTRODUÇÃO 369
C. As Conseqüências
a) O homem, com exceção de gênios sublimes, como Sócrates, não é/eito
para as ciências.
b) Um povo que possui bons costumes deve defender-se cuidadosamente
das ciências.
c) Quando um povo se corrompe, nunca mais pode voltar à virtude: deve,
então, conservar todo o aparelho da cultura, pois "as mesmas causas que corrom-
peram servem para prevenir uma corrupção maior: as ciências Jazem os vícios
eclodirem, mas os impedem de transformarem-se em crime':
Devo, senhor, agradecer àqueles que resto, como nesse ponto estamos no
vos transmitiram as observações que fundo da questão, confesso que foi bas-
tendes a bondade de comunicar-me e tante inábil de minha parte ter deixado
esforça-me-ei para delas tirar o melhor apenas parecer que tomava um parti-
proveito. Confesso, não obstante, que do.
considero os meus censores um pouco Acrescenta que o autor prefere a
severos quanto à minha lógica 2 e supo- rusticidade à polidez.
nho que se mostrariam menos escrupu- É verdade que o autor prefere a
losos se tivesse a opinião deles. Pare- rusticidade à polidez orgulhosa e falsa
ce-me, pelo menos, qu~, se tivessem um de nosso século, e diz por quê. É que
pouco dessa exatidão rigorosa que exi- ele liquida de vez com todos os sábios
gem de mim, absolutamente não neces- e artistas. Seja, posto que assim se quer
sitaria dos esclarecimentos que vou - consinto em suprimir todas as
pedir-lhes. distinções que nesse sentido levantei.
Parece que o autor, dizem eles, pre- Ele deveria ainda, continuam, assi-
fere a situação em que estava a Europa nalar seu ponto de partida para desig-
antes do renascimento das ciências; es- nar a época da decadência. Fiz mais
tado pior do que a ignorância, devido do que isso; tornei minha proposição
ao falso saber ou à algaravia 3 que geral. Assinalei esse primeiro passo da
então dominava. decadência dos costumes justamente
Parece querer o autor dessa observa- no primeiro momento da cultura das
ção fazer-me dizer que o falso saber ou letras em todos os países do mundo e
o jargão escolástico seja preferível à verifiquei como é sempre proporcional
ciência e, contudo, fui eu mesmo quem o progresso desses dois fatos. E, vol-
disse ser pior do que a ignorância. Mas tando a essa primeira época, comparar
que entende ele pela palavra situação? os costumes desse tempo com os nos-
Aplica-a às luzes ou aos costumes, ou sos. É o que faria mais longamente
confunde essas coisas que tive tanto num volume in-4. 0 • Sem isso não vería-
trabalho para distinguir? Quanto ao mos até onde se de\teria voltar, a
menos que não seja ao tempo dos
1
Extraído do número de junho de 1751, de apóstolos. Não vejo o inconveniente
Mercure, vol. II. (N. de P. A.-B.) que haveria nisso, se o fato fosse
2
Segundo Rousseau, as primeiras objeções verdadeiro. Peço, porém, justiça ao
que lhe são feitas atingem, não o cerne de suas censor: quereria ele que dissesse ser a
idéias, mas o rigor de seus raciocínios; só enta-
bula, pois, discussão sobre o método e a forma época da mais profunda ignorância a
de sua argumentação. (N. de P. A.-B.) dos apóstolos?
3 Alusão à Idade Média. (N. de P. A.-B.) Dizem mais, .em relação ao luxo,
372 ROUSSEAU
que se sabe dever ser ele, em boa políti- um homem está morto, não se deve
ca, interditado aos pequenos Estados, chamar o médico.
mas ser totalmente diferente o caso de Nunca se faria ressaltar bastante
um reino como o de França, sendo verdades que chocam tão frontalmente
conhecidas as razões. o gosto geral e impõe-se afastar qual-
Não terei, também aqui, motivos quer possibilidade de chicana. Não sou
para me lamentar? Tais razões são dessa opinião e acho ser preciso deixar
aquelas que me esforcei para respon- os brinquedos às crianças.
der. Bem ou mal, respondi. Ora, em Há muitos leitores que gostariam
absoluto, não se poderia dar a um mais delas num estilo mais simples do
autor maior sinal de desprezo do que que sob essa veste de cerimônia exigi-
lhe respondendo com os mesmos argu- da pelos discursos acadêmicos. Tenho
mentos que refutou. Mas será neces- exatamente o gosto desses leitores. Eis
sário indicar-lhes a dificuldade que um ponto em que posso concordar
deverão resolver? É a seguinte: que com o sentimento de meus censores,
como o faço desde já.
acontecerá à virtude quando for preci- . Ignoro qual seja o adversário com o
so enriquecer-se a qualquer preço? É qual me ameaçam no pós-escrito; seja
isso que lhes perguntei e que lhes per- quem for, não poderia resolver-me a
gunto ainda. responder uma obra antes de tê-la lido,
Quanto às duas observações seguin- nem a me considerar vencido antes de
tes, a primeira das quais começa por ter sido atacado.
estas palavras - Por fim, eis o que eu· Quanto ao mais, quer responda aos
objeto, etc., e a outra por estas - Mas críticos que me são anunciados, quer
o que impressiona mais de perto, etc. me contente com publicar a obra
- , suplico ao leitor que me poupe o aumentada que me pedem, advirto os
meus censores de que, possivelmente,
trabalho de transcrevê-Ias. A Acade-
nela não encontrarão as modificações
mia me perguntara se o restabeleci-
que esperam. Prevejo que, quando for
mento das ciências e das artes contri- o momento de defender-me, confor-
buíra para aprimorar os costumes. mar-me-ei, sem escrúpulos, com todas
Essa a questão que tinha para resolver; as conseqüências de meus princípios 4 •
no entanto, imputam-me o crime de Sei, de antemão, quais as palavras
não ter resolvido outra. Certamente · grandiosas com que serei atacado:
essa crítica é pelo menos bastante sin- luzes, conhecimentos, leis, moral,
gular. Não obstante, tenho quase de razão, decoro, consideração, doçura,
pedir perdão ao leitor por tê-la previs- polidez, educação, etc. A tudo isso só
to, pois é o que poderá crer lendo as responderei com duas outras palavras
cinco ou seis últimas páginas de meu que soam ainda mais fortes ao meu
discurso. ouvido: Virtude! Verdade! Gritarei
Ademais, se meus censores se obsti- sem cessar: Verdade! Virtude! Se
nam ainda em querer conclusões práti- alguém nelas só perceber palavras,
cas, prometo-as, bem claramente enun- nada mais tenho a dizer-lhe.
ciadas, na minha primeira resposta.
Sobre a inutilidade das leis suntuá- 4
Conforme o prefácio do Narciso, no qual
rias para extirpar o luxo depois de ins- Rousseau distinguirá as verdades que estabe-
leceu no Discurso, das conseqüências que
talado, diz-se que o autor não ignora o delas decorrem, mas a cuja consciência só che-
que há para ser dito a esse respeito. gou depois da discussão que se seguiu. (N. de
Realmente, não ignoro que, quando P. A.-B.)
CARTA DE J.-J. ROUSSEAU
Ao SR. GRIMM
Devolvo, senhor, o Mercure de outu- de bem, é bom começar por ser hipó-
bro que teve a bondade de emprestar- crita, e que a falsidade é um caminho
me. Li, com muito prazer, a refutação certo para chegar à virtude. Diz, ainda,
que o Sr. Gautier teve o trabalho de que os vícios enfeitados com a polidez
fazer a meu Discurso. Não me creio, não são contagiosos como o seriam
porém, como o senhor pretende, na apresentando-se de frente, com rustici-
obrigação de respondê-la, e aqui estão dade; que a arte de penetrar os homens
minhas objeções: fez progresso idêntico à de disfarçar-
1. 0 Não posso convencer-me de se; que nos convencemos de não se
que, para ter-se razão, se deva obriga- dever contar com os homens, a menos
toriamente falar por último. que lhes agrademos ou que lhes seja-
2. 0 Quanto mais releio a refutação, mos úteis; que se sabe avaliar as ofer-
mais me convenço de que não tenho tas sedutoras da polidez, o que, sem
necessidade de dar ao Sr. Gautier dúvida, quer dizer que, quando dois
outra resposta além do próprio dis- homens se cumprimentam, do fundo
curso a que respondeu. Leia, peço-lhe, do coração um diz ao outro "eu vos
num e noutro trabalho, os artigos refe- trato como um idiota e rio-me de vós",
rentes ao luxo, à guerra, às academias, e o outro responde-lhe do fundo do seu
à educação; leia a prosopopéia de coração "sei que mentis despudorada-
Luís, o Grande, e a de Fabrício; leia, mente, mas vos retribuo com a maior
por fim, a conclusão do Sr. Gautier e a boa vontade". Se eu tivesse querido
minha, e compreenderá o que quero empregar a mais amarga ironia, teria
dizer. podido dizer quase a mesma coisa.
3. 0 Penso, em tudo, tão diferente- 4. 0 Em cada página da refutação,
mente do Sr. Gautier que, se tivesse de vê-se que o autor não entende absolu-
reforçar todos os pontos em que não tamente, ou não quer entender, a obra
estamos de acordo, seria obrigado a que refuta, o que certamente lhe é mais
combatê-lo mesmo naqueles pontos cômodo, porque, respondendo sempre
que trataria como ele, e isso me daria ao seu pensamento e nunca ao meu,
uma feição obstinada que bem gostaria tem a melhor das ocasiões para dizer
de poder evitar. Por exemplo, falando quanto lhe apraz. Por outro lado, se
da polidez, ele dá a entender' muito minha réplica se torna com isso mais
claramente, que, para tornar-se homem difícil, torna-se também menos neces-
374 ROUSSEAU
1
Oposição entre a falsa ignorância, represen- 2
Liga-se à distinção entre as duas ignorân-
tada pelos soldados, e a ciência, representada cias exposta no fim da Carta ao Rei dfl Polô-
por Réaumur e Fontenelle; somente a verda- nia: a falsa ignorância é brutal, é a do bárbaro;
deira ignorância é virtuosa. Réaumur a ciência corrompe os costumes, ela faz crimi-
(1683-1757), médico e naturalista francês, nosos; a verdadeira ignorância, pelo contrário,
inventor do termômetro que traz seu nome. juntamente com a virtude, é própria do bom
Fontenelle (I 657-1757), escritor francês, sobri- selvagem. A barbárie e o crime são, pois, os
nho de Corneille, autor de numerosos opúscu- dois modos de não ser virtuoso. (N. de P.
los de vulgarização científica. Ambos eram A.-B.)
bastante célebres no momento em que Rous- 3
Enumeração dos principais historiadores
seau escrevia. (N. de P. A.-B.) gregos é·latinos. (N. de P. A.-B.)
DISCURSO SOBRE AS CIÊNCIAS E AS ARTES 375
sempre por não mais saber onde se clui, daí, que não se encontra base para
está. Não vale a pena recomeçar. glorificar as ciências. Mas a que nos
Se eu quisesse replicar à segunda permitiria ele glorificar? Desde que os
parte, isso logo se faria, mas nada ensi- homens vivem em sociedade, houve
naria a ninguém. O Sr. Gautier se con- povos polidos e outros não. O Sr. Gau-
tenta, ao refutar-me nesse ponto, em tier esqueceu-se de dar-nos o motivo
dizer sim em todos os lugares em que desta diferença.
digo não, e não em todos aqueles em O Sr. Gautier admira sempre apure-
que digo sim; não preciso, pois, mais za de nossos costumes atuais. Essa sua
que dizer novamente não sempre que boa opinião certamente muito honra
disse não, sim em todos os lugares em aos seus costumes, mas não demon stra
que disse sim, e suprimir as provas: uma grande experiência. Dir-se-ia,
com isso responderia com toda a exati- dado o tom em que fala, que estudou
dão. Seguindo o método do Sr. Gau- os homens como os peripatéticos 5
tier, não posso, pois, responder às duas estudavam a física, sem sair de seu
partes da refutação sem dizer demais e gabinete. Quanto a mim, fechei meus
de menos; ora, eu muito desejaria não livros e, depois de ter ouvido falar os
fazer nem uma coisa nem outra. homens, observei-os a agir 6 • Não re-
6. 0 Eu poderia seguir um outro mé- presenta maravilha que, tendo seguido
todo e examinar separadamente os métodos tão diversos, concordemos
raciocínios do Sr. Gautier e o estilo da tão pouco em nosso j uízos. Reconheço
refutação. que não se poderia empregar lingua-
Se examinasse os raciocínios, ser- gem mais honesta do que a de nosso
me-ia fácil mostrar que todos levam ao século, e é isso que impressiona o Sr.
erro, que o autor não compreendeu a Gautier. Mas vejo também que não se
natureza da questão e que de modo poderia ter costumes mais corrompi-
algum me entendeu. dos, e aí está o que me escandaliza.
Por exemplo, o Sr. Gautier tem o Será que pensamos termo-nos tornado
trabalho de me ensinar que há povos pessoas de bem porque, à força de dar
corruptos que não são cultos. Eu, de
minha parte, já duvidara que os calmu-
5
Os peripatéticos eram os colaboradores e
sucessores de Aristóteles na sua escola do
ques, os beduínos e os caíres 4 não Liceu. Deve-se tomar a expressãofisica em seu
eram prodígios nem de virtude, nem de sentido etimológico de " teoria da natureza";
erudição. Se o Sr. Gautier tivesse posto ela dava, então, oportunidade mais a especula-
o mesmo cuidado em apontar-me ções metafisicas do que a pesquisas científicas.
algum povo culto que não fosse cor- (N. de P. A.-B.)
6
Importante informação sobre o método de
rupto, ter-me-ia surpreendido mais. Rousseau: ell! é empírico e não apriorístico.
Faz-me sempre raciocinar como se eu l Pode-se acrescentar que a própria natureza da
tivesse dito ser a ciência a única fonte comprovação histórica, de que tão abundante-
de corrupção entre os homens; se ele, mente se serviu Rousseau, encaminhou-o for-
çosamente à observação direta dos fatos vivo s,
de boa fé, acreditou nisso, admiro a a fim de evitar o c;.:.minho seguido pelo s teóri-
bondade que teve em responder-me. cos dogmáticos que, partindo de princípios ge-
Diz ele que o convívio com o mundo rais aceitos a priori, bastavam-se com exem-
basta para adquirir-se aquela polidez plos históricos que parecessem dar-lhes algum
de que se preza um cavalheiro. Con- apoio na realidade. Ora, para Rousseau , o
interesse principal estava nessa mesma realida-
de, que buscava examinar tanto em seus aspec-
4
São exemplos daqueles bárbaros de que tos já passados quanto em seu fluxo presente.
Rousseau acaba de falar. (N. de P. A.-B.) (N . de L. G. M.)J
376 ROUSSEAU
nomes decentes a nossos vícios, apren- preferido que dissesse: Povos! sabei,
demos a não corar mais com eles? pois, de uma vez por todas, que a natu-
Diz ele, ainda, que, embora se reza não quer que vos nutrais com as
pudesse provar com fatos ter sempre produções da terra; o trabalho que exi-
reinado com as ciências a dissolução giu para a sua cultura é um aviso para
dos costumes, não se concluirá que a que a deixeis inculta. O Sr. Gautier
sorte da probidade depende do pro- não imaginou que se tem, com um
gresso delas. Depois de haver dedicado pouco de trabalho, a certeza de fazer
a primeira parte de meu discurso a pão, mas que com muito estudo é bas-
provar terem essas coisas sempre an- tante duvidoso que se consiga fazer um
dado juntas, destinei a segunda a mos- homem razoável. Não pensou, ainda,
trar que, com efeito, uma se prende à que essa não passa de mais uma obser-
outra. A quem, pois, poderia imaginar vação em meu favor, pois, por que terá
que, nesse ponto, responde o Sr. a natureza nos imposto trabalhos ne-
Gautier? cessários, senão para desviar-nos das
Ele me parece sobretudo muito ocupações ociosas? Mas, dado o des-
escandalizado com a maneira por que prezo que demonstra pela agricultura,
falei da educação dos colégios. Comu- vê-se facilmente que, se dependesse
nica-me que aí se ensina aos moços dele, todos os trabalhadores deserta-
não sei quantas coisas belas, que pode- riam dos campos para ir argumentar
rão ser de muito auxílio para a sua dis- nas escolas, ocupação essa, segundo o
tração quando crescerem, mas con- Sr. Gautier e de acordo, creio, com
fesso não perceber quais as suas muitos professores, bastante impor-
relações com os deveres dos cidadãos, tante para a felicidade do Estado.
aos quais se deve começar por instruir. Raciocinando sobre um trecho de
"Perguntamo-nos geralmente: Sabe- Platão, presumi que talvez os antigos
rá grego ou latim? Escreve em verso egípcios não concedessem às ciências a
ou em prosa? Mas o que importa é importância que se poderia crer. O
saber se tornou-se melhor ou mais pru- autor da refutação me pergunta como
dente, eis o que fica em dúvida. Alu- se pode fazer essa opinião concordar
dindo a alguém que passa, gritai a com a inscrição que Osimândias 8 pu-
nosso povo: Oh ! que homem sábio ! ; e sera na sua biblioteca. Essa objeção
a respeito de outro: Oh ! que bom teria cabimento quando esse príncipe
homem! - não deixará de dirigir os era vivo. Agora que está morto, per-
olhos e o respeito para o primeiro. gunto, por minha vez, onde está a
Deveria aparecer um terceiro gritador necessidade de fazer concordar o senti-
dizendo: Oh ! cabeças-duras!" 7 mento do Rei Osimândias com o dos
Disse eu que a natureza quis nos sábios do Egito. Se ele tivesse contado
preservar da ciência, como uma mãe e, sobretudo, pesado os votos, quem
arranca uma arma perigosa das mãos me diria que a palavra "venenos" não
de seu filho, e que o trabalho que nos teria substituído a palavra "remédios".
dá para nos instruirmos não é o menor
8 Osimândias: rei lendário do Egito antigo.
de seus benefícios. O Sr. Gautier teria
De· acordo com a tradição clássica, mandou
construir a primeira biblioteca anotada pela
7 Montaigne, Ensaios, Livro 1, XXIV. Todo
história e na porta colocou a seguinte inscri-
esse trecho anuncia a reforma pedagógica do ção: "Tesouro dos remédios da alma". (N. de
Emílio. (N. de P. A.-B.) P. A.-B.)
DISCURSO SOBRE AS CIÊNCIAS E AS ARTES 377
elogios do Sr. Rousseau. Por que não? São essas, pois, de acordo convosco,
Haverá algum desses nomes que ex- especulações estéreis? Estéreis segun-
clua a virtude? Não se cansará de do a opinião comum, mas, a meu pare-
invectivar os homens? Não se cansa- cer, muito férteis de coisas más. As
rão eles de serem maus? Crer-se-á, universidades vos devem um grande
sempre, torná-los mais virtuosos dizen- favor, por terdes lhes ensinado que a
do-lhes que não têm virtude? Crer-se-á verdade dessas ciências se retirou para
torná-los melhores persuadindo-os de o fundo de um poço. Não creio ter
que são suficientemente bons? Sob o ensinado isso a ninguém; essa afirma-
pretexto de aprimorar os costumes, ção não é de minha invenção, ela é tão
será permitido destruir-lhes as bases? antiga quanto a filosofia. Ademais, sei
Sob o pretexto de esclarecer os espíri- que as universidades não me devem ne-
tos, dever-se-á perverter as almas? Oh! nhum reconhecimento e eu não ignora-
doces laços da sociedade, encanto dos va, ao tomar da pena, que não podia,
verdadeiros filósofos, amáveis virtu- ao mesmo tempo, fazer a corte aos ho-
des, é por vossos próprios atrativos mens e prestar homenagem à virtude.
que reinais nos corações; não deveis Os grandes filósofos, que as possuem
vosso império nem à severidade estói- num grau altíssimo, sem dúvida sen-
ca, nem aos clamores bárbaros, nem tem-se bastante surpresos por saberem
aos conselhos de uma rusticidade que nada sabem. Creio, com efeito, que
orgulhosa. esses grandes filósofos que possuem
De início, salientarei uma coisa todas as ciências em altíssimo grau
ficariam muito surpresos por saberem
muito divertida: de todas as seitas dos
que nada sabem, mas eu ficaria ainda
filósofos antigos atacadas por mim
mais surpreso se es~ homens, que
como inúteis à virtude, os estóicos são
os únicos que o Sr. Gautier me deixa e sabem tantas coisas, porventura sou-
que parece até querer pôr de meu lado. bessem isso 1 2 •
Ele tem razão; não ficarei por isso 1 1
É a divisão tradicional da filosofia, domi-
muito mais orgulhoso. nante até o século XVIII e derivada de Aristó-
Mas, vejamos, por um instante, se teles. É tão evidente o ridículo da exclamação
poderei apresentar exatamente em ou- que Rousseau não a sublinha. Faz-se, desse
tros termos o sentido desta exclama- modo, patente o contraste - já assinalado em
ção: Oh! doces virtudes, é pelos vossos notas ao texto do próprio Discurso - entre a
cultura da época, representada perfeitamente
próprios atrativos que reinais nas por Gautier e seu enfatuamento com as possi-
almas. Não tendes necessidade de toda bilidades dos conhecimentos de seu tempo, e a
essa grande pompa de ignorância e de posição singular de Rousseau que, no trans-
rusticidade; sabeis chegar ao coração curso de todo esse trecho, lança mão do recur-
por vias mais simples e mais naturais. so tradicional dos moralistas: o ridículo. Com
o recuo histórico de que hoje dispomos,
Basta saber a retórica, a lógica, afisi- evidencia-se a vantagem da posição de Rous-
ca, a metafisica e a matemática 11 para seau: enquanto seus opositores se apegavam a
adquirir o direito de possuir-vos. valores transitórios, ele insistia em permanecer
Outro exemplo do estilo do Sr. no âmbito dum problema universal e perma-
nente. (N. de L. G. M.)
-Gautier: 12
Existe uma diferença de natureza entre o
Sabeis que as ciências das quais se saber que se relaciona com conhecimentos
ocupam os jovens filósofos nas univer- científicos e o saber socrático, que é uma to-
sidades são a lógica, a metafisica, a mada de consciência da própria ignorância
moral, a fisica e a matemática e/emen- fundamental. Descartes e Hegel distinguiram
nitidamente esses dois saberes - o saber de
tar. Se já o soube, já o esqueci, como um objeto, ou verdade, e o saber. de si, ou cer-
fazemos ao nos tornarmos razoáveis. teza. (N. de P. A.-B.)
DISCURSO SOBRE AS CIÊNCIAS E AS ARTES 379
Noto que o Sr. Gautier, que sempre ção à sua solidez. Sustento que todo
me trata com a maior polidez, não homem que fala desse modo deseja
poupa nenhuma ocasião de aliciar-me antes tapar a boca das pessoas do que
inimigos; a esse respeito, estende seu convencê-las.
devotamento desde os professores de Se o senhor ler atentamente a refuta-
colégio até o poder soberano. O Sr. ção, não encontrará quase uma linha
Gautier faz muito bem em justificar os que não pareça lá estar e:iperando e
usos da sociedade; vê-se que não lhe indicando sua resposta. Um único
são estranhos. Mas voltemos à refuta- exemplo bastará para me Cazer com-
ção. preender.
Todos esses modos de escrever e de As vitórias que os atenienses conse-
raciocinar, que não vão bem a um guiram sobre os persas e sohre os lace-
homem de tanto espírito quanto me pa- demônios mostram que as a i ~tes podem
rece ser o Sr. Gautier, sugeriram-me associar-se à virtude militar. Pergunto
uma conjetura, que achará ousada e se não vai nisso um estratagema para
que acredito razoável. Ele me acusa, lembrar o que disse sobre a derrota de
certamente sem nisso acreditar, de não Xerxes e para me fazer pensar no
estar completamente persuadido da desenlace da guerra do Peloponeso.
opinião que defendo. Eu suponho, com Seu governo, tornando-se venal sob
mais fundamento, estar ele secreta- Péricles, adquiriu novo aspecto: o
mente de acordo comigo: os lugares amor pelo prazer asfixia-lhes a bravu-
que ocupa, as circunstâncias em que se ra, as mais honrosas funções são avil-
encontra colocaram-no numa espécie tadas, a impunidade multiplica os
de necessidade de tomar partido contra maus cidadãos, os fundos destinados à
mim. As conveniências de nosso sécu- guerra são utilizados para alimentar a
lo servem para muitas coisas; ele terá, incúria e a ociosidade; que relação têm
pois, me refutado pelas conveniên- com as ciências essas causas de cor-
cias 1 3 , mas tomou todas as precauções rupção?
e empregou toda a arte possível para Que faz, nesse ponto, o Sr. Gautier,
fazê-lo de modo a não persuadir senão lembrar a segunda parte de meu
ninguém. Discurso, onde patenteei essa relação?
Nesse sentido, começa por declarar, Observe a arte com que apresenta,
muito fora de propósito, que a causa como causa, os efeitos da co : ~rupção, a
defendida por ele interessa à felicidade fim de levar todo homem de bom senso
da assembléia a que fala e à glória do a subir por si mesmo à prim~a causa
dessas pretensas causas. Observe,
príncipe sob cujas leis tem o prazer de ainda, como, deixando que o leitor
viver. É precisamente como se disses- reflita, finge ignorar o que nüo se pode
se: Não podeis, senhores, sem ingrati- supor seja de fato por ele ignorado e o
dão para com vosso protetor, deixar de que todos os historiadores dizem una-
me dar razão e, mais, é vossa própria nimemente - que a depravação dos
causa que pleiteio hoje perante vós. costumes e do Governo dos atenienses
Desse modo, de qualquer lado que foi obra dos oradores. É certo, pois,
encareis minhas provas, tenho o direito que me atacar desse modo é iadicar-me
de esperar que não apresentareis obje- muito claramente as respostas que
devo dar.
13 Essa passagem anuncia a crítica da polidez
que se encontra no fim da Carta ao.. Rei da Todavia, isso não passa de conjetu-
Polônia. (N. de P. A.-B.) ra, que não pretendo afirmar. O Sr.
380 ROUSSEAU
Gautier talvez não me aprovasse, se nos empregadas por mim para servir
quisesse justificar seu saber a expensas de transição, não há uma única sobre a
de sua boa fé; mas, se com efeito qual um leitor judicioso possa ser da
expressou-se sinceramente ao refutar o opinião do Sr. Gautier.
meu Discurso, como o Sr. Gautier, que Segundo ele. não é verdade que a
é professor de história, professor de história extraia dos vícios do homem
matemática, membro da Academia de seu interesse principal.
Nancy, não desconfiou um pouco de Poderia apresentar as provas do
todos esses títulos que possui? raciocínio e, para colocar o Sr. Gautier
Não replicarei, pois, ao Sr. Gautier: no seu campo, citar-lhe-ia algumas
é questão resolvida. Jamais poderia autoridades.
responder com seriedade e seguir
Felizes os povos cujos reis fizeram
ponto por ponto a refutação - o se-
pouco ruído na história!
nhor compreende por quê; e seria não
Se os homens algum dia se tornas-
reconhecer devidamente os elogios
sem sábios, sua história de modo
com os quais o Sr. Gautier me honra,
algum seria divertida.
empregar o ridiculum acri 1 4 , a ironia e
a brincadeira de mau gosto. Sinto já O Sr. Gautier diz, com razão, que
meus receios de que tenha bastante · uma sociedade, mesmo que fosse com-
para lamentar-se no tom desta carta. posta unicamente de homens justos,
Pelo menos não ignorava ele, ao escre- não poderia subsistir sem leis, e daí
ver sua refutação, que atacava um conclui não ser verdade que a jurispru-
homem que não dá à polidez a impor- dência seria inútil sem as injustiças dos
tância bastante para aprender a disfar- homens. Um autor tão erudito confun-
çar com ela seus sentimentos. diria a jurisprudência com as leis? 1 5
Quanto ao mais, estou pronto a Poderia ainda abandonar as provas
prestar ao Sr. Gautier toda a justiça do raciocínio e, para pôr o Sr. Gautier
que , lhe é devida. Seu trabalho parece- no seu terreno, citar-lhe-ia fatos.
me o de um homem de espírito que Os lacedemônios não tinham nem
possui seus conhecimentos. Outros, jurisconsultos nem advogados, suas
talvez, neie encontrarão filosofia; leis nem sequer eram escritas e, não
quanto a mim, nele percebi muita obstante, possuíam leis. Recorro à eru-
erudição. dição do Sr. Gautier para saber se as
Sou, de todo o coração, senhor, etc. leis eram menos bem observadas na
· P. S. Acabo de ler, na Gazette de Lacedemônia do que nos países em
Utrecht de 22 de outubro, uma exposi- que formigam os jurisconsultos.
ção pomposa sobre a obra do Sr. Gau- Absolutamente não me deterei em
tier e essa exposição parece feita de todas as minúcias que servem .de texto
propósito para confirmar minhas supo-
sições. Um autor, que tem alguma con- 1 5 As leis são estabelecidas de modo muito
fiança em sua obra, deixa aos outros o geral pelo legislador. A parte correspondente à
cuidado de fazer-lhe o elogio e limita- sua aplicação e ao respeito devido a elas é
se a dela fazer um bom resumo; o da assegurada pela justiça e constitui a jurispru-
refutação é·feito com tanta habilidàde dência. Toda sociedade tem necessidade de
que, embora recaia em coisas de some- possuir leis formuladas; pode-se, porém, ima-
ginar uma sociedade tão boa que não tivesse
necessidade de um aparelho judiciário para
1 4 Ridiculum acri. Palavra que, pela sua viru- fazer aplicar, precisar e respeitar suas leis. (N.
lência, provoca o riso. (N. de P. A.-B.) de P. A.-B.)
DISCURSO SOBRE AS CIÊNCIAS E AS ARTES 381
admirei nas outras e, por isso, pude- Diz ainda estar surpreendido por vê-lo
ram contribuir para o erro da conclu- premiado; entretanto, não é um prodí-
são que o autor delas tira. gio ver premiadas obras medíocres.
A obra começa com algumas mor- Em qualquer outro sentido, tal sur-
dacidades que só salientarei na medida presa seria tão honrosa à Academia de
em que tocam à questão. O autor me Dijon quanto injuriosa à integridade
honra com inúmeros elogios, e, certa- dos acadêmicos em geral; é fácil de ver
mente, isso vale por abrir-me uma bela como disso tiraria vantagem para
carreira. Mas há bem pouca proporção minha tese.
entre essas coisas; um silêncio respei- Acusam-me, com frases muito agra-
toso sobre os objetivos de nossa admi- davelmente compostas, de contradi-
ração freqüentemente convém mais do ções entre minha conduta e minha dou-
que louvores indiscretos 5 • trina. Censuram-me por ter eu mesmo
Diz o autor que meu discurso tem cultivado os estudos que condeno 7 •
muita coisa que surpreende 6 • Parece- Como a ciência e a virtude são incom-
me que se impõe um esclarecimento. patíveis, coisa que me esfon~ por pro-
var, segundo pretendem, perguntam-
5 Todos os príncipes, bons e maus, serão me em tom instante como ouso servir-
sempre baixa e indiferentemente louvados me de uma, declarando-me cm favor de
enquanto houver cortesãos e letrados. Quanto outra.
aos príncipes que são grandes homens, exigem Há muita habilidade em fazer com
elogios mais moderados e melhor escolhidos.
A adulação ofende-lhes a virtude e o próprio que eu mesmo me comprometa na
elogio pode prejudicar-lhes a glória. Tenho questão; essa mordacidade não deixará
certeza, pelo menos, de que Trajano seria a de causar embaraços à minha resposta,
meus olhos muito maior, se Plínio não tivesse ou, antes, às minhas respostas, pois
escrito sobre ele. Se Alexandre tivesse sido
efetivamente aquilo que afetava, não teria pen- infelizmente tenho de dar mais de uma.
sado em seu retrato e em sua estátua, mas, Esforcemo-nos, pelo menos, para que
quanto a seu panegírico, só permitiu a um nelas a exatidão substitua o agrado.
lacedemônio que o fizesse, ainda que fosse 1. 0 Que a cultura das c[ências cor-
para não o ter. O único elogio digno de 1tni rei
é aquele que se faz ouvir não da boca merce-
rompe os costumes de uma nação, eis
nária de um orador, mas da voz de um povo o que ousei sustentar e ouso crer ter
livre. "Para que experimentasse prazer com provado. Como poderia, porém, ter
vossos elogios", dizia o Imperador Juliano a dito que em cada homem em particular
seus cortesãos que lhe enalteciam a justiça, são incompatíveis a ciência e a virtude,
"seria preciso que ousásseis dizer o contrário,
se fosse verdade."* (N. do A.) eu que exortei os príncipes a chama-
- • Tomado a Montaigne, Ensaios, 1, XLII. rem para a sua corte os verdadeiros sá-
(N. de P. A.-B.) bios e emprestar-lhes sua confiança a
6 É com a própria questão que se poderia
fim de que, pelo menos por uma vez, se
ficar surpreso; grande e bela questão, se é que
algum dia houve outra assim, e que possivel-
mente poderá não ser tão logo renovada. A 7 Não poderia justificar-me, como muitos
Academia Francesa acaba de propor, para o outros, dizendo que nossa educação não
prêmio de eloqüência de 1752, um assunto depende de nós e que não somos consultados
muito semelhante a esse. Trata-se de sustentar para sermos envenenados. Foi de muito bom
que "o amor às letras inspira o amor· à virtu- grado que me lancei ao estudo e ainda de me-
de". A Academia não julgou oportuno deixar lhor vontade que o abandonei, ao perceber a
um tal assunto como problema em abCrto e, perturbação que lançava em minha alma sem
nesta oportunidade, a douta companhia dupli- qualquer ·proveito para minha razão. Não mais
cou o tempo que até então concedia aos auto- quero uma ocupação enganosa na qual se crê
res, mesmo para assuntos mais difíceis. (N. do trabalhar para a sabedoria, mas tudo se faz
A.) pela vaidade. (N. do A.)
386 ROUSSEAU
veja o que podem, a ciência e a virtude Quem sabe se não chegariam até a reu-
reunidas, dar à felicidade do gênero ni-las, se me apressasse a condenar
humano? Esses verdadeiros sábios for- uma delas, por pouco justa que fosse?
mam um pequeno número, confesso, 3. 0 Poderia citar, a esse respeito, o
pois para fazer bom uso da ciência é que dizem os padres da Igreja sobre as
preciso reunir grandes talentos e gran- ciências mundanas que desprezam e às
des virtudes. Isso só se pode esperar de quais, todavia, recorrem para comba-
algumas almas privilegiadas, e não se ter os filósofos pagãos. Poderia citar a
pode esperar de um povo em seu comparação que fazem delas com os
todo 8 • Não se poderia, pois, concluir, vasos roubados, aos egípcios, pelos
de meus princípios, que um homem israelitas 1 0 • Contentar-me-ei, porém,
não consiga ser, ao mesmo tempo, como última resposta, em levantar esta
sábio e virtuoso. questão: se alguém viesse para matar-
2.º Mesmo que essa pretensa con- me e eu tivesse a felicidade de tomar-
tradição realmente existisse, menos lhe a arma, ser-me-ia proibido, antes
legítimo seria constranger-me pessoal- de jogá-la fora, aproveitá-la para ex-
mente por sua causa. Adoro a virtude; pulsá-lo de minha casa?
meu coração é testemunha disso e diz- Se a contradição de que me acusam
me também, claramente, como é dis- não existe, desnecessário será supor
tante esse amor da prática que torna o que tenha querido somente distrair-me
homem virtuoso 9 • Aliás, estou bem com um paradoxo frívolo e isso pare-
longe de possuir a ciência e, mais ce-me tanto menos cabível quanto o
ainda, de afetar possuí-la. Acreditei tom que usei, por inepto que seja, ao
defender-me dessa imputação com a menos não é aquele que se emprega
confissão ingênua que fiz no começo nos jogos de espírito.
de meu discurso. Temia, antes, que me É tempo de deixar de falar sobre o
acusassem de julgar coisas desconhe- que me toca; nunca se ganha nada
cidas por mim. Facilmente se com- falando de si mesmo, indiscrição que o
preende ser-me impossível evitar, ao público dificilmente perdoa, mesmo
mesmo tempo, essas duas reprimendas. quando se é forçado a fazê-lo. A verda-
de é tão independente daqueles que a
a Essa distinção, que Rousseau aqui faz pela atacam e a defendem que os autores
primeira vez, será capital para a evolução de que discutem a seu respeito deveriam
seu pensamento; com efeito renunciará, pouco
a pouco, às soluções, queridas dos enciclope- ignorar-se reciprocamente. Isso poupa-
distas, de regeneração individual, pois elas só ria muito papel e tinta. Mas essa regra
se mostram válidas para indivíduos isolados e tão fácil, para mim, de ser praticada,
excepcionalmente dotados; Rousseau prefirirá absolutamente não o é para meu adver-
soluções coletivas que transformam uma socie- sário, e tal diferença não facilita a
dade inteira. Vista de outro ângulo, a questão
demonstra que Rousseau não mais crê exeqüí- minha réplica.
vel, na sociedade moderna, a perfeita coesão O autor, observando que ataco as
entre sabedoria e virtude da tradição socrática, ciências e as artes pelos efeitos que
que nem em todos os antigos (homens ou
povos) ele próprio reconhece. Povos bárbaros, determinam nos costumes, lança mão,
sem filósofos, são mais sábios, coletivamente., para me responder, da enumeração das
do que povos que contam com grande número
de eruditos e pensadores. Impõe-se salvar, 10 Antes de abandonar o Egito arrasado pelas
pois, a sabedoria coletiva. (N. de L. G. M.) pragas, Moisés e os israelitas "pediram aos
9 Essa frase é um primeiro prenúncio das egípcios objetos de prata, objetos de ouro e
Confissões. (N. de P. A.-B.) roupas". (Êxodo, XII.) (N. de P. A.-B.)
DISCURSO SOBRE AS CIÊNCIAS E AS ARTES 387
2 3 São Justino: autor de uma Apologia da seus discípulos depois de longas provas e com
Religião Cristã, mártir aproximadamente em o maior mistério. Dava-lhes si!cretamente
165. (N. de P. A.-B.) lições de ateísmo e oferecia solenemente heca-
2 4
Esses primeiros escritores que selavam tombes a Júpiter. Os filósofos acomodaram-se
com o sangue o testemunho de sua pena se- tão bem a esse método, que ele rapidamente se
riam hoje autores muito escandalosos, pois espalhou na Grécia e em Roma, ccimo se pode
sustentariam precisamente o mesmo senti- ver pelas obras de Cícero que, com seus ami-
mento que eu. São Justino, nas suas conversas gos, :ombava dos deuses imortais e, na tribuna
com Trifão, passa em revista as várias seitas e nas pregações, os sustentava com tanta
que outrora tentara e as torna tão ridículas que ênfase.
se creria ler um diálogo de Luciano; vê-se, A doutrina interior não foi levad:1 da Europa
também, na apologia de Tertuliano, como os para a China, mas surgiu também lá com a
primeiros cristãos se sentiam ofendidos ao filosofia. A ela os chineses devem essa multi-
serem tomados por filósofos. dão de ateus ou de filósofos que :JOssuem. A
Sena, com efeito, um detalhe muito humi- história dessa doutrina fatal, feita por um
lhante para a filosofia a exposição das máxi- homem instruído e sincero, seria um golpe ter-
mas perniciosas e dos dogmas ímpios das vá- rível dado à filosofia antiga e moderna. A filo-
rias seitas. Os epicuristas negavam qualquer sofia, porém, sempre desafiará a razão, a ver-
providência, os acadêmicos duvidavam da dade e o próprio tempo, porque tem sua fonte
existência da divindade e os estóicos da imor- no orgulho humano, mais forte d que todas
1)
talidade da alma. As seitas menos célebres não essas coisas. (N. do A.)
tinham melhores sentimentos. Eis um dos frag- * "Ele admitiu a amizade, porque ela não está
mentos de Teodoro, chefe de um dos ramos presente nem entre os insensatos, nem entre os
dos cirenaicos, relatado por Diógenes Laércio: prudentes. . . Afirmava haver grande probabi-
"Sustulit amicitiam, quod ea neque insipien- lidade de que um homem prudente não se
tibus neque sapientibus adsit. . . Probabile arriscasse, por si mesmo, em favor de seu país.
dicebat prudentem virum non seipsum pro pa- Com efeito, a prudência não devia ser abando-
tria periculis exponere, neque enim pro insi- nada em proveito dos insensatos. O sábio,
pientium commodis amittendam esse pruden- dizia também, podia abandonar-se ao roubo,
tiam. Furto quoque et adulterio et sacrilegio, ao adultério e ao sacrilégio desde o momento
cum tempestivum erit, daturum operam sa- oportuno, porquanto nenhuma d1!ssas coisas
pientem. Nihil quippe horum turpe natura esse. era, pela sua natureza, imoral. De: tais fatos é
Sed miferatur de hisce vulgaris opinio, quae que se deve deduzir a opinião corrente, que foi
stultorum imperitorumque plebecula conjlata suscitada pela populaça de loucos e de igno-
est. . . sapientem publice absque uflo pudere rantes, e segundo a qual o prudente vai, sem
ac suspicione scortis congressurum "*. qualquer pudor ou discrição, encontrar-se com
Essas opiniões são particulares,eu sei; mas as cortesãs." Diógenes Laércio viveu, aproxi-
haveria uma só de todas as seitas que não madamente, em 270 d.C. Escrevia em grego e,
tenha caído em algum erro perigoso? E que por comodidade, Rousseau, não ousando tra-
diremos da distinção entre duas doutrinas, tão duzi-lo para o francês, o cita em latim. Era um
avidamente recebidas por todos os filósofos, e doxógrafo. Redigiu a vida de todo:; os filósofos
pela qual eles em segredo professavam senti- célebres. Essa passagem é extraída da Vida de
mentos contrários àqueles que publicamente A ristipo de Cirene, filósofo do pn:LZer dos sen-
ensinavam? Pitágoras foi o primeiro a fazer tidos e fundador da escola cirenai<:a, no século
uso da doutrina interior; só a comunicava a IV a. C. (N. de P. A.-B.)
392 ROUSSEAU
o trabalho, que todo homem deve a larápio que veste a libré de uma casa
objetivos mais nobres, para pôr-se em para poder agir melhor estar prestando
situação de adquirir outros semelhan- homenagem ao senhor da. casa que
tes. Não tenho necessidade de saber rouba? Não; cobrir sua maldade com
qual o ofício daquele que se ocupa com o manto perigoso da hipocrisia não é
tais idéias para saber o julgamento que honrar a virtude, é ultrajá-la profa-
devo fazer dele. nando seus ensinamentos, é acres-
Mostrei o belo retrato que se faz dos centar a covardia e o embuste a todos
sábios a tal propósito, e creio poder os outros vícios e impossibilitar a si
transformar em merecimento meu tal próprio toda e qualquer volta à probi-
complacência. Meu adversário é dade .. Há caracteres superiores que até
menos indulgente: não somente não me no cnme apresentam um :1ão-sei-quê
concede nada do que possa me recusar de altivo e de generoso que ainda per-
e, em lugar de condenar o mal que mite ver, no íntimo, uma centelha
acuso em nossa vã e falsa polidez, pre- desse fogo celeste feito parn animar as
fere desculpar a hipocrisia. Pergunta- almas belas. Mas a alma vi1 e rasteira
me se eu desejaria que o vício se mos- da hipocrisia assemelha-se a um cadá-
trasse abertamente. Certamente eu o ver, no qual não se encontra mais nem
desejaria, pois a confiança e a estima ímpeto, nem calor, nem esperança de
renasceriam entre os bons, aprender- vida. Recorro à experiência. Viram-se
se-ia a desconfiar dos maus e a socie- grandes celerados recolherem-se em si
dade com isso se sentiria mais segura. mesmos, acabar santamente sua car-
Prefiro que meu inimigo me ataque reira e morrer como predestinados,
frente a frente, do que me venha ferir mas ninguém até hoje viu um hipócrita
traiçoeiramente pelas costas. Como ! tornar-se homem de bem. Poder-se-ia,
Seria preciso juntar o escândalo ao racionalmente, tentar a conversão de
crime? Não sei; mas bem desejaria que Cartouche, mas nunca um homem pru-
não lhe juntasse a mentira. São muito dente tentaria a de Cromwell32.
boas para os corruptos todas essas má- Atribuí ao restabelecimento das le-
ximas que, há tanto tempo, nos prezam tras e das artes a elegância ' ~ a polidez
sobre o escândalo. Querendo-se segui- que dominam nossas mrneiras. O
autor da resposta divergt: de mim
las rigorosamente, seria preciso dei-
quanto a essa afirmação, o que me
xar-se pilhar, trair, matar impune-
admira, porquanto, se ele dá tanta
mente e jamais punir alguém, pois
constitui assunto bastante escandaloso importância à polidez e faz tanto caso
um celerado na prisão. A hipocrisia é das ciências, não percebo qual a vanta-
gem de privar uma dessas coisas da
uma homenagem que o vício rende à honra de produzir a outra . Examine-
virtude, homenagem da espécie daque- mos, porém, as provas que apresenta;
la dos assassinos de César que se pros- reduzem-se elas à que se segue : Em
traram a seus pés para degolá-lo com absoluto se verifica que os sábios
mais precisão. Por mais brilhante que sejam mais polidos do que os outros
seja esse pensamento, por mais autori-
dade que lhe dê o nome célebre de seu 32
C artouche, cujo verdade irei nome era
autor 31 , nem por isso é mais justo. Bourguignon, foi o célebre chefe de um bando
Poder-se-á porventura dizer de um de ladrões. Morreu na roda. Cromwell, Prote-
tor da República da Inglaterra, a partir de
1653, foi o chefe da revolução qu1! fez com que
31
O Duque de La Rochefoucauld. (Máximas, o Rei Carlos 1 perecesse no cadafalso. (N. de
223.) (N. do A.) P. A.-B.)
396 ROUSSEAU
que nasce de um coração mau e de um tempo for, como poderá a guerra ser
espírito falso; uma ignorância crimi- mais justa para um dos partidos sem o
nosa que alcança até os deveres da ser mais injusta para o outro? Não
humanidade, que multiplica os vícios, poderia concebê-lo. Ações menos ad-
que degrada a razão, avilta a alma e miráveis, porém mais heróicas. Certa-
torna os homens semelhantes aos ani- mente ninguém negará a meu adver-
mais - essa a ignorância que o autor sário o direito de julgar o heroísmo,
ataca e da qual apresenta um retrato mas não pensará ele que aquilo que
bastante odioso e bastante parecido. não lhe parece admirável poderá sê-lo
Há uma outra espécie de ignorância para nós? Vitórias menos sangrentas,
razoável que consiste em limitar sua porém gloriosas; conquistas menos rá-
curiosidade à extensão das faculdades pidas, porém mais firmes; guerreiros
que se recebeu ao nascer 3 5 ; uma igno- menos violentos, porém mais temíveis,
rância modesta que nasce de um vivo sabendo vencer com moderação, tra-
amor pela virtude e só inspira indife- tando os vencidos com humanidade; a
rença por todas as coisas que não honra é seu guia, a glória sua recom'-
sejam dignas de encher o coração do pensa. Não nego ao autor haver gran-
homem e que não contribuam para tor- des homens entre nós - ser-lhe-ia bem
ná-lo melhor; uma doce e preciosa fácil fornecer a prova; isso não impe-
ignorância, tesouro de uma alma pura de, porém, que os povos sejam assaz
e satisfeita consigo mesma, que põe corrompidos. Além do mais, tais coi-
toda a sua felicidade em voltar-se sas são tão imprecisas que se poderiam
sobre si mesma, tornar-se testemunha quase dizer de todas as épocas; a res-
de sua inocência e que não sente neces- posta é impossível porque se tornaria
sidade de procurar uma falsa e vã feli- necessário folhear bibliotecas e fazer
cidade na opinião que possam fazer de in-fólios a fim de estabelecer provas
suas luzes - essa a ignorância que pró ou contra.
louvei e que peço ao céu como punição Quando Sócrates maltnJ.tou as ciên-
do escândalo que causei aos doutos cias, não poderia, parece-me, ter em
pelo desprezo que declarei dedicar às vista nem o orgulho dos e:;tóicos, nem
ciências humanas. o ócio dos epicuristas; m:m o jargão
Que se comparem, diz o autor, a tais absurdo dos pirrônicos, porque nenhu-
tempos de ignorância e de barbárie ma dessas pessoas exisüa em seu
esses séculos felizes nos quais as ciên- tempo. Mas esse leve anacronismo não
cias difundiram por todas as partes a constitui desonestidade de meu adver-
ordem e a justiça. Será dificil encon- sário; ele empregou melhor sua vida do
trar esses séculos felizes; encontra- que verificando datas e niio está mais
remos, com mais facilidade, outros, obrigado a saber de cor seu Diógenes
nos quais, porém, graças às ciências, a Laércio do que eu a saber o que acon-
ordem e a justiça não passaram de tece nos combates.
palavras vãs, feitas para serem impos- Concordo, pois, que Sócrates só
tas ao povo, e nos quais a sua aparên- pensou em salientar os vícios dos filó-
cia terá sido conservada com tanto sofos de seu tempo; mas não vejo
mais cuidado, para que tanto mais se como concluir senão dizendo que nesse
pudesse impunemente destruí-las. tempo os vícios pululavam com os füó-
Vemos, atualmente, guerras menos sofos. Respondem-me que isso se deve
freqiientes, porém mais justas. Em que ao abuso da filosofia e penso não ter
afirmado o contrário. Como! Será,
3 5 É já um prenúncio do relativismo kantia- pois, preciso suprimir todas as coisas
no. (N . .de P. A.-B.) de que se abusa? Sim, sem dúvida -
398 ROUSSEAU
aqueles que deles se ocupam imaginem coisas sempre representam., umas para
meios de agradar e tais cálculos paula- as outras, mui fiel companhia, porque
tinamente formam o estilo, aprimoram são obra dos mesmos vícim:.
o gosto e difundem por todas as partes Se a experiência não concordasse
a delicadeza e a urbanidade. Todas com as proposições demonstradas, de-
essas coisas valerão, se quiserem, ver-se-iam procurar as causas particu-
como suplemento da virtude, porém ja- lares dessa contradição. A primeira
mais se poderá dizer que constituam a idéia dessas contradições, porém, nas-
virtude e raramente a ela se associam. ceu, ela própria, de uma loílga medita-
Haverá sempre esta diferença: aquele ção sobre a experiênciaª e, para ver-se
que se torna útil, trabalha para os até que ponto as confirma, basta abrir
outros, e aquele que só pensa em tor- os anais do mundo.
nar-se agradável, só trabalha para si. Os primeiros homens foram muito
O adulador, por exemplo, não se pre- ignorantes. Como se ousaria dizê-los
corrompidos em épocas em que ainda
serva de nenhum trabalho para agra-
não se tinham aberto as fontes da
dar e, no entanto. só faz mal.
corrupção?
A vaidade e a ociosidade, que Na obscuridade dos antigos tempos
engendram nossas ciências, também e na rusticidade dos antigos povos,
engendraram o luxo. O gosto pelo luxo percebem-se, em inúmeros deles, virtu-
sempre acompanha o das letras e este des assaz grandes, sobn~tud uma
freqüentemente àquele 7 • Todas essas severidade de costumes que é marca
6 Jamais assisto à representação de uma
infalível de sua pureza, a boa-fé, a
comédia de Moliere sem admirar a delicadeza
hospitalidade, a justiça e, o que é
dos espectadores*. Uma palavra algo livre, muito importante, um marcado horror
uma expressão antes grosseira do que obscena, pela depravação 9 , mãe fecunda de
tudo fere seus castos ouvidos e não duvido de
modo algum que os mais corrompidos sejam
os mais escandalizados. No entanto, se compa- 8 Importância do método empírico em Rotis-
rarmos os costumes do século de Moliere com seau. Num momento em que, tocando-se a
os nossos, poder-se-ia crer que levaríamos van- excogitação filosófica e a investigação cientí-
tagem? Quando a imaginação se macula uma fica, apenas se esboça o problema, Rousseau
vez, tudo se torna para ela objeto de escândalo. já busca uma distinção entre a e:xperimentação
Quando não se tem nada mais de bom a não objetiva e a experiência vivida. (Cf. nota 11 ).
ser o exterior, redobram-se os cuidados para Daí o interesse renovado que pelo nosso autor
conservá-lo. (N. do A.) vêm demonstrando alguns crític1)S que valori-
*Prenúncio da Carta a D 'Alembert sobre os zam o pensamento existencialis1:a, como, por
Espetáculos. (N. de P. A.-B.) exemplo, Pierre Burgelin em "La Philosophie
1 Num certo trecho, argumentaram contra de l'Existence de J.- J. Rousseau", Paris, P.
mim com o luxo dos asiáticos, graças a esse. U. F., 1952. (N. de L. G. M.)
mesmo modo de raciocinar que usam para 9 Não tenho nenhuma intenção de fazer corte
opor-me o vício dos povos ignorantes. Mas, às mulheres; consinto que elas me honrem com
devido a uma infelicidade que persegue meus o epíteto de pedante, tão temidc· por todos os
adversários, enganam-se até nos fatos, que nossos galantes filósofos. Sou grosseiro, abor-
nada provam contra mim. Sei, e muito bem, recido, incivil, de modo algum desejo bajula-
que os povos do Oriente não são mais igno- dores e por isso direi a verdade bi!m à vontade.
rantes do que nós, mas isso não impede que O homem e a mulher são feito~ : para se ama-
sejam também ocos e que escrevam quase tan- rem e se unirem mas, a não ser e:;sa união legí-
tos livros quanto nós. Os turcos, que entre tima, qualquer comércio de amor entre eles é
todos são os que menos cultivam as letras, uma tremenda fonte de desordem; na sociedade
contavam entre eles, por volta do meio do sé- e nos costumes. É certo que só as mulheres
culo passado, quinhentos e oitenta poetas clás- poderiam tornar a trazer para o nosso meio a
sicos. (N. do A.) honra e a probidade. Mas rejeitam das mãos
404 ROUSSEAU
pode compensar a ruína dos costumes, as leis da Esparta por terem tido mui-
estou pronto a convjr em que as ciên- tos defeitos, de modo que, para retor-
. cias determinam mais bem do que mal. quir às-censuras que faço aos povos sá-
Voltemos agora ao que falta. bios por sempre terem sido
Eu poderia, sem grande risco, supor corrompidos, censuram-se os povos
provado quanto disse, pois, entre tan- ignorantes por não terem atingido a
tas asserções tão afoitamente levanta- perfeição.
das, muito poucas há que atinjam a 6. 0 - O progresso das letras está
questão em seu âmago e, menos ainda, sempre em proporção com a grandeza
outras de que se pudesse tirar alguma dos impérios. Seja. Constato que sem-
conclusão valiosa contra a minha opi- pre me falam de fortuna e de grandeza.
nião, sendo que algumas dentre elas, se Eu, por mim, aludi a costumes e
porventura minha causa disso necessi- virtudes.
tasse, até forneceriam novos argumen- 7. 0 - Nossos costumes são os me-
tos em meu favor. lhores que homens maus, como nós,
Com efeito: 1. 0 - Se os homens são podem ter. Talvez. Proscrevemos inú-
naturalmente maus, ·p ode suceder, caso meros vícios, não contesto. Não acuso
se queira, que as ciências produzam os homens deste século de terem todos
algum bem quando em suas mãos, mas os vícios; eles só têm aqueles próprios
é bem certo que elas então determinem às almas covardes, são apenas velha-
mais mal do que bem, pois não se deve cos e negligentes. Quanto aos vícios
fornecer armas a loucos furiosos. que exigem coragem e firmeza, consi-
2. 0 - Se as ciências raramente dero-os incapazes de tê-los.
atingem seu objetivo, sempre haverá 8. 0 - O luxo pode ser necessário
mais tempo perdido do que bem para dar pão aos pobres 1 3 , mas, se não
empregado. E, mesmo se fosse verda- houvesse luxo, não haveria pobres 1 4 •
deiro que tivéssemos encontrado os Ele ocupa os cidadãos ociosos. Mas,
melhores métodos, a maioria de nossos por que existem cidadãos ociosos?
trabalhos seria ainda tão ridícula Quando a agricultura era considerada
quanto aqueles de um homem que, uma honra, não havia nem m1sena
certo de seguir exatamente a linha de nem ociosidade e havia muito menos
prumo, quisesse levar um poço até o vícios.
centro da terra. 9. 0 - Vejo que se toma a peito
3. 0 - Não devemos absoluta- essa questão de luxo e, não obstante,
mente ter tanto medo da vida pura- finge-se querer separá-la da questão
mente animal, nem considerá-la o pior das ciências e das artes. Concordarei,
dos estados em que possamos cair,
pois ainda valeria muito mais parecer 1 2 Cf. Contrato Social, II, VII; Do legislador:
com uma ovelha do que com um anjo O legislado_r deve ser "uma inteligêncja supe-
mau. rior'', um "deus"; não deve possuir qualquer
4.. 0 - A Grécia deveu seus costu- poder legislativo ou executivo; é ele que faz
nascer no povo "o espírito social". I, II, VI:
mes e suas leis a filósofos e legislado- "Os particulares vêem o bem que rejeitam; o
res. Concordo. Já repeti centenas de público quer o bem que não vê. Todos pos-
vezes que é bom existirem filósofos, suem igualmente necessidade de guias ... Daí
contanto que o povo não se proponha vem a necessidade de um legislador". (N. de P.
A.-B.)
asê-10 12 • 1 3 Cf. a tese de Morize, L 'Apologie du Luxe
5. 0 - Não ousando afirmar que au XV!le Siecle, Paris, Didier, 1909. (N. de
Esparta não tinha boas leis, censuram P.A.-B
DISCURSO SOBRE AS CIÊNCIAS E AS ARTES 407
pois, uma vez que se deseja tão insis- contestá-la. Os anais de todos os
tentemente, que o luxo contribui para a povos, que se ousa citar como prova,
manutenção dos estados, como as são muito mais favoráveis a uma supo-
cariátides servem para sustentar os sição contrária e seriam pn::cisos mui-
palácios que decoram ou, então, como tos testemunhos para obrigar-me a crer
essas vigas com as quais se esteiam num absurdo. Antes que essas tremen-
construções abaladas e que, freqüente- das palavras teu e meu tivessem sido
mente, acabam por derrubá-las. Ho- inventadas 1 7 , antes que existisse essa
mens sábios e prudentes, saí das casas espécie de homens cruéis e brutais cha-
que se esteiam 1 5 • mados senhores. e essa ow:ra espécie
Isso pode mostrar como seria fácil de homens madraços e mentirosos que
desviar em meu favor a maioria das se chamam escravos, antes que hou-
coisas que pretendem opor-me; falan- vesse homens suficientemente abomi-
do francamente, não as considero, náveis para ousar ter o supérfluo
porém, suficientemente contestadas enquanto outros morrem de fome,
para sentir a coragem de prevalecer-me antes que uma dependência mútua
disso. tivesse forçado todos a se tornarem
mentirosos, ciumentos e traidores -
Afirma-se que os primeiros homens gostaria bastante que me explicassem
foram maus, donde se segue que o no que poderiam consistir o:; vícios, os
homem é naturalmente mau 1 6 • Eis o crimes que, com tanta ênfase, lhes são
que não constitui afirmação de peque-
na monta; parece que valeria a pena 1 6
Esta nota é especial para :>s filósofos;
aconselho aos demais que não a leiam. Se o
1 4
O luxo nutre cem pobres nas cidades e faz homem é naturalmente mau, por certo as ciên-
com que pereçam nos campos cem mil deles. O cias só o tornarão pior; assim, só por essa
dinheiro, que circula entre as mãos dos ricos e suposição, sua causa estará pedida. Mas é
dos artistas para atender às suas superflui- preciso prestar muita atenção, po [s, ainda que
dades, está perdido para a subsistência do o homem seja naturalmente bom, como eu o
trabalhador; este não tem nenhuma roupa, creio e como tenho a fel icidade dt: pensar, não
precisamente porque os senhores precisam de se conclui daí que as ciências lhe :;ejam saluta-
galões. Só o desperdício dos elementos que en- res, pois qualquer conjuntura qu ~ coloca um
tram na nutrição dos homens já é suficiente povo em situação de cultivá-1 as denuncia
para tornar o luxo odioso à humanidade. Meus necessariamente um começo d{: corrupção,
adversários devem considerar-se muito felizes rapidamente acelerado por elas. É então que o
por impedir-me, a culpável delicadeza de nossa vício da corrupção determina todo o mal que
língua, de entrar, a tal propósito, em particula- poderia determinar o da natureza, e os maus
ridades que fariam com que ficassem envergo- preconceitos ocupam o lugar das más tendên-
nhados com a causa que ousam defender. Pre- cias.* (N. do A.)
cisa-se de suco na nossa cozinha e, por isso, * Nova ruptura: não se trata de ;llinhar argu-
falta caldo para tantos doentes. Precisa-se de mentos para refutar a afirmação de Hobbes
licores nas nossas mesas e, por isso, o campo- sobre a maldade natural do homem, nem tam-
nês só bebe água. Precisa-se de pó para nossas pouco para sustentar que o homc:m é natural-
cabeleiras e, por isso, tantos pobres não têm mente bom, mas, sim, de desenv1Jlver o tema
pão. (N. do A.) da corrupção do homem natural pela vida em
1 5
Nítida ruptura com o pensamento corrente sociedade. Novamente, ao segundo Discurso
das elites intelectuais do tempo: não se discute, incumbirá desenvolver tal idéia. (N. de L. G.
como o desejariam os filósofos, se o luxo é M.)
bom ou mau, mas se formula a franca e direta 1 7
Cf. Discurso sobre a Desigualdade. "O pri-
acusação do luxo como causa de desigualdade. meiro que, tendo cercado um terreno, pensou
E, acrescentemos, desigualdade material, ex- em dizer - isto me pertence, e encontrou pes-
plicada em termos de apropriação, como de- soas bastante simples para acreditá-lo, foi o
pois se descreverá no segundo Discurso. (N. de verdadeiro fundador da sociedade . civil." (N.
L. G. M.) de P. A.-B.)
408 ROUSSEAU
vossa cegueira. Vejo, com tristeza, que que, se não se celebrassem os grandes
só trabalhais para adquirir a virtude, homens, inútil, seria sê-lo."
para exercitar vossa coragem e manter Aí está, creio, aproximadamente o
vossa liberdade e, no entanto, esque- que teria podido dizer esse homem, se
ceis o dever, mais importante, de dis- os éforos 2 3 o tivessem deix2.do acabar.
trair os ociosos das raças futuras. Não é somente nessa pa:;sagem que
Dizei-me: para que serve a virtude, nos advertem quanto a só ~ : ervi a vir-
senão para causar sensação no tude para fazer com que falem daque-
mundo? Que vos terá valido ser pes- les que a possuem. Em outro ponto,
soas de bem, quando ninguém falar de enaltecem-nos ainda os p1!nsamentos
vós? Que importará aos séculos futu- do filósofo, por imortais e ccmsagrados
ros que vos désseis à morte nas à admiração de todos os séculos,
Termópilas 2 1 para a salvação dos enquanto os outros vêem di:1siparem-se
atenienses, se não deixais, como eles, suas idéias junto com o dia, a circuns-
nem sistema de filosofia, nem versos, tância ou o momento que as viu nas-
comédias ou estátuas? 2 2 Apressai-vos, cer. Para três quartos dos homens, o
pois, em abandonar leis que só servem novo dia apaga a véspera SE'm que dela
para tornar-vos felizes; pensai somente reste o menor traço. Ah! resta dela
em fazer muito falar de vós quando pelo menos alguma coisa no testemu-
não mais existirdes e nunca esqueçais nho de uma boa consciência, nos infe-
lizes que se aliviou, nas boas ações que
2 1 Term6pilas: célebre desfiladeiro da Tessá-
lia, cujo nome significa "portas quent~"· Leô-
se praticou e na memória desse Deus
nidas com trezentos espartanos, sacnf1cando- benfazejo que se serviu em silêncio.
se, c~nsegui retardar a invansão ?~ dois "Morto ou vivo", dizia o hom Sócra-
milhões de persas de Xerxes e perm1trn que tes, "o homem de bemjamais esqueceu
Atenas reorganizasse sua defesa. (N. de P. os deuses 2 4 ." Responder-me-ão talvez,
A.-B.)
2 2 Péricles possuía grandes talentos, muita que não se quis falar dessa espécie de
eloqüencia, magnificência e gosto; embelezou pensamentos, e eu respondo que não
Atenas com excelentes trabalhos de escultura, vale a pena falar de todos m demais.
com edifícios suntuosos e obras-primas em É fácil compreender qu.e, fazendo
todas as artes. Também, sabe Deus como foi
elogiado pela turba de escritores. Resta, no
tão pouco caso de Esparta, não se
entanto, ainda por saber, se Péricles foi um chega talvez a mostrar maior estima
bom magistrado, pois na direção dos Estados pelos antigos romanos. Concorda-se
não se trata de erigir estátuas, mas de governar em tê-los como grandes homens, ape-
bem os homens. Não me divertirei expondo os sar de não fazerem senão pequenas
motivos secretos da guerra do Peloponeso, que
determinou a ruína da república. Não verifi- coisas. Nesse sentido, confosso que há
carei se o conselho de Alcibíades era mal ou muito tempo não se fazem ~;enão gran-
bem fundado, se Péricles foi justa ou injusta- des coisas. Censura-se não terem sido
mente acusado de malversação; perguntarei verdadeiras virtudes, mas qualidades
unicamente se os atenienses se tornaram
melhores ou piores sob o seu governo; pedirei
que nomeiem alguém, entre os cidadãos, entre 2 J Éforos: nome dado em Esparta a cinco
os escravos ou até entre as crianças, que, gra- magistrados eleitos pelos cidadãos, e que
ças a seus cuidádos, se tenha tornado um contrabalançavam a autoridade dos reis e do
homem de bem. Aí está, parece-me, a primeira senado. (N. de P. A.-B.)
função do magistrado e do soberano, uma vez
2 4 Citação da Apologia de Sócrates, de Pla-
que o meio mais rápido e certo de tornar os ho-
mens felizes não é ornamentar suas cidades tão, de acordo com a paráfrase que Montaigne
nem mesmo enriquec6-las, mas sim torná-los dela oferece. (Ensaios, Ili, XIL) (N. de P.
bons. (N. do A.) A.-B.)
412 ROUSSEAU
ríamos mais corajoso: o odioso Cortez cidades 3 9 • Em verdade, tais como peço
subjugando o México à força de pólvo- que sejam, assemelhar-se-ão bastante
ra, perfídia e traições, ou o infortunado aos animais e, tais como são, asseme-
Guatemozin 3 8 , estendido sobre car- lham-se bastante aos homens.
vões ardentes por honestos europeus O estado de ignorância é um estado
desejosos de obter seus tesouros, ex- de medo e de necessidade; tudo é,
probrando um de seus funcionários de então, perigo para nossafragilidade. A
quem o mesmo tratamento arrancava morte ronda sobre nossas cabeças,
alguns queixumes e dizendo-lhe orgu- esconde-se na erva que calcamos com
lhosamente: "E eu, estqu sobre rosas?" os pés. Quando tudo se teme e se tem
Dizer que as ciências nasceram da necessidade de tudo, qual a disposição
ociosidade é, visivelmente, abusar dos mais razoável do que querer tudo
termos; elas nascem do lazer, mas pre- conhecer? Basta considerar as inquie-
servam da ociosidade. Assim um tações contínuas dos médicos e dos
homem que, à borda de uma grande anatomistas sobre a sua vida e sua
estrada, se distraísse atirando em ca- saúde para verificar se os conheci-
minhantes, poderia dizer que ele em- mentos servem para tranqüilizar-nos
pregava o seu lazer garantindo-se con- quanto a nossos perigos. Como os
tra a ociosidade. Não compreendo essa conhecimentos descobrem sempre
distinção entre o lazer e a ociosidade, muito mais perigos do que meios para
mas estou bem certo de que nenhum nos garantirem contra eles, não é de
homem honesto jamais poderá gabar- espantar que só contribuam para au-
se de ter lazer enquanto tiver alguma . mentar nossos alarmas e tornar-nos
coisa de bem para fazer, uma pátria pusilânimes. Os animais, a esse respei-
para servir e infelizes para socorrer; to, vivem em profunda segurança e não
desafio, ainda, que me mostrem, em se sentem pior por isso. Uma vitela
meus princípios, qualquer sentido ho- não tem necessidade de estudar botâ-
nesto a que possa ser aplicada a pala- nica para aprender a escolher o seu
vra lazer. O cidadâo cujas necessi- feno e o lobo devora a presa sem pen-
dades o prendem à charrua não está sar em indigestão • Para responder a
40
segunda diz que ·somos nós que nos ciências não têm, pois, suas fontes nos
contentamos com demonstrar a teoria, nossos vícios. Nossas ciências têm,
mas que os persas ensinam a prática. pois, fontes em nossos vícios. Não são,
Vede meu Discurso, página 15, nota 2. pois, todas elas nascidas do orgulho
Todas as censuras que fazem à filo- humano. Já dei, atrás, minha opinião a
sofia atingem o espírito humano ... esse respeito. Declamação vã que não
Concordo. Ou, antes, ao autor da natu- pode iludir senão espíritos prevenidos.
reza, que nos fez tal como somos. Se Não sei responder a isso.
ele nos fez filósofos, para que tanto Falando-se dos limites do luxo, pre-
trabalho a fim de nos transformarmos tendem que, nesse assunto, não se deve
em filósofos? Os filósofos eram ho- raciocinar partindo-se do passado para
mens e se enganaram; dever-se-á sur- chegar ao presente. Quando os homens
preender-se com isso? Deveremos sur- andavam completamente nus, aquele
preender-nos quando eles não se que primeiro resolveu calçar uns ta-
enganarem mais. Lastimemo-los, apro- mancos passou por voluptuoso; de sé-
veitemo-nos de seus erros e corrijamo- culo a século não se deixou de gritar
nos. Sim, corrijamo-nos e não filoso- contra a corrupção, sem compreender
femos mais. Mil caminhos conduzem o que se desejava dizer.
ao erro, um único à verdade. . . Aí É verdade que, até nosso tempo, o
está precisamente o que eu dizia. Será luxo, ainda que reinando sempre, fora
preciso ficar surpreso, por tantas vezes pelo menos considerado, em todas as
ter~s escarnecido dela e que ela tenha épocas, como a fonte funesta de uma
sido descoberta tão tarde? Ah! final- infinidade de males. Ficava reservado
mente a encontramos. ao Sr. Melon 4 4 o ser o primeiro a
Citam-nos um julgamento de Sócra- publicar essa doutrina envenenada,
tes que trata não dos sábios mas dos cuja novidade granjeou-lhe mais sectá-
sofistas, não das ciências, mas do rios do que a solidez de suas razões.
abuso que se pode fazer delas. Que Não temo ser o único a combater,
mais pedir àquele que sustenta que neste meu século, essas odiosas máxi-
todas as ciências não passam de abu- mas que só tendem a destruir e aviltar
sos e que todos os nossos sábios são a virtude e a fazer ricos e miseráveis,
verdadeiros sofistas? Sócrates era isto é, a sempre fazer maus.
chefe de uma seita que ensinava a Crêem embaraçar-me terrivelmente
duvidar. Eu diminuiria de muito minha perguntando-me até onde se deve limi-
admiração por Sócrates se acreditasse tar o luxo. Minha opinião é que abso-
ter ele tido a tola vaidade de ser chefe lutamente não se precisa dele. Para
de seita. E ele, com justiça, censurava além da necessidade física, tudo é fonte
o orgulho daqueles que pretendem do mal. A natureza já nos dá muitas
tudo saber. Isto é, o orgulho de todos necessidades e, no mínimo, represen-
os sábios. A verdadeira ciência está tará enorme imprudência multiplicá-
bem longe de ser afetação. É verdade, las sem necessidade e colocar, dessa
mas é da nossa que falo. Sócrates é maneira, a alma em dependência ainda
nesse ponto, testemunho contra si maior. Não é sem razão que Sócrates,
mesmo. Isso me parece difícil de enten- olhando a exposição de uma loja, feli-
der. O mais sábio dos gregos não cora- citava-se de nada ter a ver com tudo
ria por sua ignorância. O mais sábio
dos gregos nada sabia de sua própria 4 4
Ensaio político sobre o comércio, 1736.
opinião; concluí quanto aos outros. As (N. do P. A. - B.)
DISCURSO SOBRE AS CIÊNCIAS E AS ARTES 419
Acabo de ver, senhor, uma brochura eqüidade de meus juízes, confesso que
intitulada Discurso que recebeu o prê- não o estou menos com a indiscrição
mio da Academia de Dijon em 1750, de meus adversários: como ousam
etc., acompanhado por uma refutação demonstrar tão de público o mau
a esse discurso, feita por um Acadê- humor causado pela honra que recebi?
mico de Dijon que lhe recusou o seu Como não percebem o dano irrepa-
sufrágio 1 , e pensava, percorrendo esse rável que, com isso, fazem à sua pró-
trabalho, que, em lugar de baixar ao pria causa? Que não se ilud am pen-
ponto de fazer-se editor de meu Dis- sando que alguém se vai enganar
curso, o acadêmico, que lhe recusou o quanto ao motivo de sua mágoa; se
seu sufrágio, deveria antes ter publi- estão aborrecidos por ter sido meu
cado a obra a que teria concedido o Discurso laureado, não é por ser mal -
prêmio - tal seria uma excelente feito, pois todos os dias são premiados
maneira de refutar o meu. outros tão maus quanto es~; e eles
Aí está, pois, um de meus juízes que nada dizem, mas sim por outro motivo ,
não se recusa a tornar-se meu adver- que atinge mais de perto a sua profis-
sário e que acha bastante mau terem- são e não é dificil de perceber. Bem
me honrado seus colegas com o prê- sabia que as ciências corrompiam os
mio. Confesso que eu mesmo me costumes, tornavam os homens injus-
surpreendi com o prêmio; esforcei-me tos e ciumentos, e levavam-nos a sacri-
por merecê-lo, mas nada fiz para obtê- ficar tudo ao seu interesse e à sua gló-
lo. Aliás, embora eu soubesse não ado- ria vã; acreditei, porém, que tal coisa
tarem os acadêmicos as opiniões dos se fazia com um pouco mais de decên-
autores que premiam, e que o prêmio cia e de habilidade. Via quem; letrados
não é conferido àquele que se crê ter aludiam incessantemente à eqüidade, à
sustentado a melhor causa, mas àquele moderação, à virtude e, sob a salva-
que falou melhor, mesmo supondo-me guarda sagrada dessas belas palavras,
nesse caso, estava bem longe de espe- se entregavam impunemente às suas
rar de uma academia essa imparcia- paixões e vícios; jamais acreditei,
lidade da qual nem sempre os sábios porém, que tivessem a audácia de cen-
fazem uso nas ocasiões em que se trata surar publicamente a imparcialidade
de seus interesses. de seus confrades. Em todos os iuga-
Mas, se fiquei surpreendido com a res, a glória dos julgadores consiste em
se pronunciarem de acordo com a
1 Esse acadêmico era Le Cat, secretário per-
pétuo da Academia de Rudo. Rousseau sabia-
eqüidade e contra seu própri J interes-
1
o, como se verifica pela nota em que satirizou se; só as ciências podem transformar,
o grego dos médicos. (N. de LG. M.) naqueles que as cultivam, a integridade
422 ROUSSEAU
pena dos divertimentos de minha ju- não tem nenhum sinônimo em francês. Tais
ventude. Mas, finalmente, que importa são, segundo creio, todas as condi ;ões neces-
tudo isso, tanto para o público quanto sárias que se exigem para autorizar essa liber-
dade salutar.
para a causa das ciências? Rousseau
pode falar francês com dificuldade e a Ego cur, adquierere pauca
Si possum, invideor, com lingua Catonis et
gramática não será com isso mais útil Enni
à virtude. Jean-Jacques pode ter uma Sermonem patrium ditaveri/?*
má conduta e a dos sábios não será
melhor. Aí estão todas as respo stas Desejei, sobretudo, transmitir exatamente
meu pensamento. Sei, é verdade, que a pri-
que darei e, creio, todas as que devo meira regra de nossos escritores é a de escrever
dar a essa nova refutação. corretamente e, como dizem eles, f.1lar francês:
Terminarei esta carta e o que tenho isso resulta de terem pretensões e ele desejarem
a dizer sobre um assunto debatido por parecer que possuem correção e elegância. A
primeira regra para mim, que n~ . o me preo-
tão longo tempo, dando a meus adver- cupo de modo algum com o que possam pen-
sários um conselho que certamente sar de meu estilo, consiste e:n fazer-me
desprezarão e, todavia, seria preferível compreender. Não hesitarei, sempre que, com
que pensassem no partido que dele o auxílio de dez solecismos, puder explicar-me
poderiam tirar: é o de não consultar com maior vigor e clareza. Contanto que eu
seja mais compreendido pelos filósofos, de boa
vontade deixo os puristas correrem atrás <las
3 Pode-se ver, no Discurso de Lião, um mode- palavras. (N. do A.)
lo belíssimo da maneira como convém aos filó- * "Se eu pudesse acrescentar alguma coisa, por
sofos atacarem e combaterem sem mordaci- que haveria de ser invejado, uma vez que a lín-
dade e invectivas. Orgulho-me também de gua de Catão e de Ênio enriquec1!u o idioma
poderem encontrar em minha resposta, que se pátrio?"
está imprimindo, um exemplo de como se pode (Horácio, Arte Poética, v. 55-57.) ( N~ de P. A.
defender aquilo que se crê verdadeiro, com - B.)
toda a força de que se é capaz, sem aspereza 5
"O que os ombros agüentam." (Ibidem, v.
contra aqueles que o atacam. (N. do A.) 40.) (N. de P. A . • B.)
424 ROUSSEAU
nho do meu lado, enquanto que, sendo esse belo raciocínio. Pergunto-lhes,
deles o da multidão, pareceriam os agora, o que preferem que eu acuse: o
recém-vindos dispensados de enfileira- seu espírito, por não terem podido
rem-se ou obrigados a fazer melhor do penetrar no sentido claríssimo desse
que os outros. trecho, ou a sua má fé, por fingirem
Temendo que tal conselho pareça não entendê-lo? São letrados e, por
temerário ou presunçoso, junto aqui isso, a escolha não será duvidosa. Mas
uma amostra dos raciocínios de meus o que diremos das interpretações diver-
adversários pela qual se poderá aquila- tidas que esse último adversário tem o
tar a exatidão e o valor de suas críti- prazer de emprestar ao desenho do
cas. Os povos da Europa, dissera eu, frontispício de meu livro? Acreditaria
viviam há alguns séculos num estado ter magoado meus leitores, tratando-os
pior do que a ignorância. Não sei que como crianças, ao interpretar-lhes uma
algaravia científica, ainda mais despre- alegoria tão clara, ao dizer-lhes que o
zível do que a ignorância, usurpara o facho de Prometeu é o das ciências,
nome do saber e opunha um obstáculo feito para incentivar os grandes gênios,
quase invencfvel à sua volta. Precisou- que o sátiro que, vendo o fogo pela pri-
se de uma revolução para devolver os meira vez, corre a ele e quer agarrá-lo,
homens ao_senso comum. Os povos ti- representa os homens vulgares que,
nham perdido o bom senso não porque seduzidos pelo brilho das letras, se
fossem ignorantes, mas por possuírem entregam temerariamente ao estudo, e
a tolice de crer saber alguma coisa que o Prometeu, que grita e o adverte
com os grandes ditos de Aristóteles e a do perigo, é o cidadão de Genebra.
doutrina impertinente de Raymond Essa alegoria é justa e bela, ouso
Lulle 6 ; seria necessária uma revolução considerá-la sublime. Que se deve pen-
para ensinar-lhes que eles nada sabem sar de um escritor que meditou sobre
e nós teríamos muita necessidade de ela e não conseguiu entendê-la? Pode-
uma outra para ensinar-nos a mesma se pensar que um tal homem não teria
verdade. Segue-se o argumento de sido um grande doutor entre os egíp-
meus adversários: Deve-se essa revolu- cios, seus amigos.
ção às letras, elas devolveram o bom Tomo, pois, a liberdade de oferecer
senso, de acordo com a opinião do a meus adversários e, sobretudo, ao úl-
autor, mas, também segundo ele, cor- timo, esta sábia lição de um filósofo
romperam os costumes; será preciso, sobre um outro assunto: Sabei que não
pois, que um povo renuncie ao bom há nenhuma objeção que possa fazer
senso para ter bons costumes. Três maior mal a vosso partido do que as
escritores subseqüentemente repetiram más respostas. Sabei que se não tiver-
des dito nada de valia, aviltarão vossa
causa ao dar-vos a honra de crer que
6
Raymond Lulle (1235-1315): filósofo e
alquimista catalão, denominado "o Ilumina- nada nela se continha de melhor para
do", autor da Ars Magna, um dos livros mais ser dito.
curiosos da escolástica. (N. de P. A. -B.) Sou, etc.
PREFÁCIO DE
NARCISO OU Ü AMANTE DE SI MESMO
1 Asseguram-me que a muitos desgosto, cha- humildade, nossas lições logo perderia conos-
mando de adversários a meus adversário s, e co essa ignorância da qual tão justamente se
isso me parece bem possível num século em lamentava". Li tudo isso e não dei mais que
que não se ousa mais nada chamar pelo nome. umas poucas respostas; talvez ainda assim fiz
Sei, também, que cada um de meus adversários demais, mas creio firmemente que ·!sses senho-
se lamenta, quando respondo a outras objeções res as tenham considerado bastante agradávei s
que não as suas, por perder meu tempo lutando para se enciumarem com a preferência. Quan-
contra quimeras. Iss.o prova uma coisa, · da to às pessoas que se chocam con a palavra
qual já sentia minhas suspeitas: eles nã9 per- adversários, de boa vontade concordo em
dem seu tempo lendo-se ou ouvindo-se un s aos abandoná-la, conquanto queiram indicar-me
outros. Quanto a mim, este foi um trabalho uma outra pela qual possa de:;ignar, não
que acreditei de meu dever; li os numerosos somente todos aqueles que combateram mi-
escritos que contra mim publicaram, desde a nhas convicções, seja por escrito, seja, mais
primeira resposta com que me honraram até os prudente e mais à vontade, nas rodas de senho-
quatro sermões alemães, um dos quais começa ras e talentos, onde tinham certeza de que não
mais ou menos assim: "Meus irmãos, se Sócra- iria defender-me, mas ainda aqueles que, fin-
tes voltasse para o nosso convívio e se visse o gindo crer não possuir eu atualmente adversá-
estado florescente em que estão as ciências na rios, acharam a princípio irrespond iveis as res-
Europa - que digo? na Europa, não; na Ale- postas de meus adversários e, depois, quando
manha - que digo? na Alemanha, não ; em repliquei, censuraram-me, pois, se . ~undo eles,
Saxe - que digo? Em Saxe, não; em Leipzig não me tinham atacado. Esperand), permitir-
- que digo? em Leipzig, não; nesta universi- me-ão que continue a chamar de acversários a
dade - tomado então de surpresa e penetrado meus adversários, pois, apesar da polidez de
de respeito, SÓcrates sentar-se-ia respeitosa- meu século, sou grosseiro como os macedõnios
mente entre nossos escolares e recebendo, com de Filipe. (N. do A.)
426 ROUSSEAU
tes sempre foram virtuosos; numa sos costumes, não pretendi com isso dizer que
palavra, só existem vícios entre os sá- os costumes de nossos ancestrais eram bons,
bios, e homens virtuosos, entre aqueles mas apenas que os nossos eram ainda piores.
Entre os homens, existem inúmeras fontes de
que nada sabem. Existe, pois, para nós, corrupção e. ainda que as ciências sejam talvez
um meio de nos tornarmos pessoas de a mais abundante e rápida, isso não quer dizer
bem - será apressarmo-nos a proscre-- que sejam a única. A ruína do império roma-
ver a ciência e os sábios, queimar nos- no, as invasões de uma multidão de bárbaros
determinaram uma mistura de todos os povos
sas bibliotecas, fechar nossas acade- que destruiu, necessariamente, os costumes e
mias, colégios e universidades, e os usos de cada um. As cruzadas. o comércio.
tornarmos a mergulhar em plena bar- a descoberta das Índias, a navegação, as via-
bárie dos primeiros séculos." gens longas e outras coisas mais, que não
quero citar, alimentaram e aumentaram a
Eis o que meus adversários refuta- desordem. Tudo o que facilita a comunicação
ram tão bem; ademais, nunca disse ou entre as várias nações leva a uma delas, não as
pensei uma única palavra de tudo isso, virtudes das outras, mas seus crimes e, em
iodas, altera os costumes próprios de seu
e não se poderia imaginar nada de ambiente e da constituição de seu governo. As
mais oposto ao meu sistema do que ciências não fizeram, pois, todo o mal; toca-
essa absurda doutrina que tiveram a lhes, nisso, somente a maior parte. O que
gentileza de atribuir-me. Aqui está, sobretudo verdadeiramente lhes pertence é
terem dado a nossos vícios um aspecto agradá-
porém, o que eu disse e que, de modo vei, um certo ar de honestidade que nos impede
algum, refutaram. de distinguir-lhes o horror. Quando, pela pri-
Tratava-se de saber se o restabeleci- meira vez, foi levada à cena a comédia Le Mé-
mento das ciências e das artes contri- chant*, lembro-me que não acharam corres-
ponder o papel principal ao título. Cléon
buíra para aprimorar os costumes. pareceu um mero homem cotnum; eJe era,
Mostrando, como o fiz, que nossos diziam, como todo o mundo. Esse abominável
costumes não se aprimoraram 5 de celerado, cujo caráter, tão bem exposto, deve-
modo algum, a questão estava q~ase ria ter feito fremir contra si mesmo todos aque-
les que tivessem a desdita de parecer-se com
resolvida. ele, pareceu um caráter inteiramente mal com-
Ela compreendia implicitamente, posto, e suas torpezas passaram por gentilezas,
porém~ uma outra, mais geral e mais porque alguém, que se considerava um corre-
importante, que diz · respeito à in- tíssimo homem de bem, se reconheceu nele,
traço por traço. (N. do A.)
fluência que a cultura das ciências * Le Méchant, comédia de Gresset
deve exercer, em qualquer época, sobre (1709-1777). (N. de P.A. - B.)
DISCURSO SOBRE AS CIÊNCIAS E AS ARTES _429
Ora, com justiça, nada é mais suspeito igual prejuízo para a v:.rtude. Todo
do que a honra de um poltrão. homem que se preocupa c:om os talen-
Tantas reflexões sobre a fraqueza de tos deleitáveis quer agradar, ser admi-
nossa natureza só servem freqüente- rado e quer ser admirado mais do que
mente para desviar~no dos empreGndi- um outro; os aplausos públicos perten-
mentos generosos. De tanto meditar cem somente a ele - diria que tudo
sobre as misérias da humanidade, faz para obtê-los, caso não fizesse mais
nossa imaginação sobrecarrega-nos ainda para deles privar seus concorren-
com o seu peso e a previdência dema- tes. Daí nascem, de um lado, os rebus-
siada tira-nos a coragem ao tirar-nos a camentos do gosto e da polidez, a adu-
segurança. Inutilmente pretendemos lação vil e baixa, os cuidados
munir-nos contra os acidentes impre- sedutores, insidiosos, pueris, que, com
vistos, "se a ciência, buscando armar- o decorrer do tempo, aviltam a alma e
nos · com novas defesas contra os corrompem o coração, e, por outro
inconvenientes naturais, ainda màis lado, os ciúmes, as rivalidades, os
impressionou-nos a fantasia com a ódios entre artistas tão r,:!nomados, a
grandeza e o peso desses inconve- calúnia pérfida, a fraude . a traição e
nientes de modo a ultrapassar todas as tudo o que o vício possui de mais frou-
razões e sutilezas vãs que possuía para xo e de mais odioso. Se o filósofo des-
defender-nos deles" 1 0 • preza os homens, o artista logo se
O gosto pela filosofia afrouxa todos torna desprezível para eles, e ambos
os laços de estima e de afeto que ligam concorrem, afinal, para torná-los des-
os homens à sociedade e talvez seja prezíveis.
esse o mais perigoso dos males por ela Ainda há mais e est :i é a mais
concebidos: O encanto do estudo logo impressionante e cruel de todas as ver-
torna insípido qualquer outro pendor. dades que propus à consideração dos
Além disso, de tanto refletir sobre a sábios. Nossos escritores consideram
humanidade, de tanto observar os tudo como se fosse uma obra-prima da
homens, o filósofo aprende a apreciá.: política de nosso século -- as ciências,
los de acordo com seu valor e é bem as artes, o luxo, o comércio, as leis e os
difícil consagrar afeição a quem sedes- outros laços que, estreitando entre os
preza. Em breve, resume em sua pes- homens os liames da soci1!dade 11 ·pelo
soa todo o interesse que os homens vir- interesse pessoal, colocam todos numa
tuosos compartilham com seus dependência mútua, dão-lhes necessi-
semelhantes. Seu desprezo pelos outros dades recíprocas e interesses comuns, e
passa a favorecer seu orgulho, e seu obrigam cada qual a concorrer para a
amor-próprio aumenta na mesma pro- felicidade dos · outros a fim de poder
porção que sua indiferença pelo resto
alcançar a sua. Certamente essas
do universo. Tornam~se para ele pala-
idéias são belas e apres1!ntadas com
vras desprovidas de sentido,.a família e
uma feição favorável, mas, ao exami-
a pátria; não é pai, cidadão ou homem
- éfilósofo. 1 1
Lastimo que a filosofia enfraqueça os laços
Ao mesmo tempo que a cultura das da sociedade, que são formadc1s pela estima e
ciências, de certo modo, desafoga o pela boa vontade mútuas. Lastimo que as ciên-
coração do filósofo, sujeita num outro cias, as artes e todos os outros objetos de
comércio fortaleçam pelo interesse pessoal os
sentido o do letrado,· e sempre com laços da sociedade. Isso result::. do fato de não
se poder, com efeito, fortalecer um desses laços
i 0 Montaigne, Ensaios, III, XII. (N. de P. sem que o outro com isso se enfraqueça. Não
A.-B.) há. pois, contradição. (N. do A.)
432 ROUSSEAU
ná-las com atenção e sem parcialidade, eu descubro as suas causas e saliento
nas vantagens que elas a princípio sobretudo uma coisa muito consola-
parecem apresentar, encontra-se muito dora e útil ao mostrar que todos esses
a ser refutado. vícios não pertencem tanto ao homem,
É, pois, coisa maravilhosa terem-se quanto ao homem mal governado 1 2 •
colocado os homens na impossibi- Essas são as verdades que desen-
lidade de viver entre si sem se suspeita- volvi e que me esforcei por comprovar
rem, suplantarem, enganarem, traírem nos vários trabalhos que publiquei
e destruírem mutuamente. Importa, sobre o assunto. Seguem-se as conclu-
daqui por diante, abster-nos de um dia sões que delas tirei.
deixar de nos vermos como somos,
pois, para dois homens cujos interesses
concordam, talvez cem mil possuem- 1 2 Noto que, atualmente, reina no mundo
nos opostos, e não existe outro meio uma multidão de pequenas máximas que sedu-
para vencer senão enganar ou perder zem os simples por apresentarem um falso ar
de filosofia e que, além disso, são muito cômo-
toda essa gente. Eis a fonte funesta das das para terminar as disputas com um tom
violências, das traições, das perfídias e importante e decisivo, sem se ter necessidade
de todos os horrores que necessaria- de examinar a questão. Um exemplo. "Os
mente exigem um estado de coisas no homens, em todos os lugares, possuem as mes-
mas paixões, em todos os lugares ·são guiados
qual cada um, fingindo trabalhar para pelo amor-próprio e pelo interesse, concluin-
a fortuna ou a reputação dos demais, do-se, pois, que são sempre os mesmos."
só procura elevar a sua acima e às Quando os geômetras fazem uma suposição
expensas deles. que, de raciocínio em raciocínio, os conduz a
Que ganhamos com isso? Muito um absurdo, voltam sobre seus passos e, desse
modo, demonstram como a suposição é falsa.
palavrório, os ricos e os arrazoadores, A aplicar-se o mesmo método à máxima em
isto é, inimigos da virtude e do bom questão, facilmente mostrar-se-á o absurdo.
senso. Em compensação, perdemos a Raciocinemos, porém, de outro modo. Um sel-
inocência e os costumes. A multidão vagem é um homem e um europeu é um
homem. O meio-filósofo conclui logo que um
rasteja na miséria, todos são escravos não vale mais do que o outro. Mas o filósofo
do vício. Os crimes não cometidos já diz: na Europa, o governo, as leis, os costu-
estão no fundo dos corações e, para mes, o interesse, tudo coloca os particulares na
serem executados, só lhes falta a segu- necessidade de se enganarem mútua e inces-
rança da impunidade. santemente, tudo faz com que o vício seja um
dever; impõe-se que sejam maus para ser~m
Estranha e funesta constituição, na sábios, pois não há maior loucura do que fazer
·qual as riquezas acumuladas sempre a felicidade dos marotos às expensas da sua.
facilitam os meios para acumular ou- Entre os selvagens, o interesse pessoal fala tão
tras maiores ainda; na qual é impossí- fortemente quanto entre nós, mas não diz as
mesmas coisas; os únicos laços que os unem
vel, para aquele que nada possui, são o amor pela sociedade e o cuidado com a
adquirir qualquer coisa; na qual o defesa comum; a palavra propriedade, que aos
homem de bem não conta com qual- nossos homens de bem custa tantos crimes,
quer meio .de sair da miséria; na qual quase não tem sentido entre eles; não têm entre
os mais desavergonhados são mais si nenhuma discussão de interesse que os div~
da; nada os leva a se enganarem mutuamente;
dignificados e na qual se tem necessa- o único bem a que cada um aspira é a estima
riamente de renunciar à virtude para pública, e todos a merecem. E bem possível
tornar-se um homem honesto ! Sei que que um selvagem faça uma má ação, mas não
os declamadores já repetiram cem é possível que adquira o hábito de agir mal,
vezes tudo isso, mas o diziam decla- pois isso não lhe serviria para nada. Creio
poder-se fazer uma avaliação bastante exata
mando e eu o digo baseando-me em dos costumes dos homens baseando·-se no
razões; eles se aperceberam do mal, e grande número de negócios que têm entre si -
DISCURSO SOBRE AS CIÊNCIAS E AS ARTES 433
e daqueles que as cultivam 1 6 , tendo cias e das artes, toda.via, fez e publicou
certeza de não valer menos por isso. É peças de teatro", e tal discurso consti-
verdade que um dia poderão dizer: tuirá, confesso, uma sátira muito
"Esse inimigo tão declarado das ciên- amarga; não a mim, mas a meu século.
1 6
Admiro-me como a maioria dos literatos possa sustentar pela sua conduta o exame do
mudou de partido nesta questão. Quando artigo precedente, não possa dizer, em seu
viram as ciências e as artes atacadas, acredita- favor, o que digo de mim, e esse modo de
~am-se atingidos pessoalmente, quando, sem se
contradizer, poderiam todos eles, como eu, raciocinar parece-me convir-lhe tanto mais
pensar que, embora essas coisas tenham feito quanto, entre nós, eles se preocupam muito
muito mal à sociedade, é essencial hoje servir- pouco com as ciências, conquanto continuem
se delas, como de um remédio para o mal que elas a conferir dignidade aos sábios. Lem-
causaram ou como um desses animais maléfi- bram-nos os padres do paganismo, que só esti-
cos que é preciso esmagar sobre a mordida. mavam a religião na medida em que ela os tor-
Numa palavra, não existe um literato que, caso nava respeitados. (N. do A.)
ÍNDICE
Livro Primeiro
Livro Segundo
Livro Terceiro
Livro Quarto