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DO CONTRATO SOCIAL
*
ENSAIO SOBRE A
ORIGEM DAS LÍNGUAS
DISCURSO SOBRE AS
CIÊNCIAS E AS ARTES
*
T radução de L o u r d e s S a n t o s M a c h a d o
Introduções e notas de P a u l . A r b o u s s e - B a s t i d e e L o u r i v a l G omes M achado
D o C o n tr a to S o c ia l .............................................................................................. ................. 7
E n s a io s o b r e a O r ig e m d a s L ín g u a s . . . . ............................................................... 153
D is c u r s o s o b r e a O r ig e m e o s F u n d a m e n t o s d a D e s ig u a l d a d e
D is c u r s o s o b r e a s C iê n c ia s e a s A r t e s ................................................................... 329
R e s p o s t a s d a d a s p o r J .- J . R o u s s e a u a s O b j e ç o ~e s d i r i g i d a s a s e u
D is c u r s o .................................................................................................................................. 361
DO CONTRATO SOCIAL'
OU PRINCÍPIOS DO DIREITO POLÍTICO
A d v e r t ê n c ia
D E L O U R IV A L G O M E S M A C H A D O
1. Circunstâncias da composição
dada, que, p o is, representa o pen sam en to p o lítico de R ousseau em determ inada
altura de sua vida. P ode ser anterior à Econom ia Política e parece com eçado em
1751, m as quase certam ente se com pletou quando da viagem a G enebra em
1754. O texto, tal com o f o i descoberto, m ostra-se fragm entário, só alcançando
m ais ou m enos a m etade da versão definitiva do Contrato, p orém essa m utilação
p arece p ro vir de acidente posterior, havendo indícios de que Rousseau o redigiu
inteiramente. Tal com o hoje o conhecem os, com preende uma versão que alcança
o s dois prim eiros livros do Contrato, m ais o capítulo I do livro III. H ouve, con
tudo, algum as m odificações: o capítulo inicial do Manuscrito cedeu lugar à
introdução do livro I que, na versão definitiva, define o objeto da obra; o segun
do capítulo, bastante extenso e versando a Sociedade Geral do Gênero Humano,
f o i suprim ido; o terceiro capítulo do Manuscrito desdobrou-se nos capítulos I,
VI, VII, VIII e I X do livro I do Contrato Social, enquanto os capítulos II, III, IV,
e V correspondem ao quinto capítulo do Manuscrito. Todos esses p o n to s tive
ram o condão de desencadear uma onda de estudos eruditos e discussões entre
especialistas que, intensificando-se p o r ocasião do segundo centenário do nasci
m ento de Jean-Jacques (1912), cobriu os vinte prim eiros anos deste século, inte
ressando homens da altura de um Beaulavon, de um Espinas, de um Faguet.
D esse m ovim ento, resultou a pu blicação, em C am bridge (1915) e M anchester
(1917), dos Escritos Políticos e do Contrato Social na edição de C. E. Vaughan,
que é considerada definitiva e hoje só p o d e ser com parada com as edições de
D reyfus-B risac, Beaulavon e a m ais recente, de H albwachs.
D e tal sorte, estabeleceu-se que, variantes à parte, o Contrato Social j á
conhecia uma prim eira e bem com pleta redação p ela s alturas de 1760. Ora, o
p ró p rio Rousseau nos d iz que, em 1759, tom ou uma séria resolução: “Tinha
ainda duas obras no estaleiro. A prim eira eram m inhas Instituições Políticas.
Exam inei o estado desse livro e con clu í que exigia ainda m uitos anos de trabalho
[ , . . J resolvi dela tirar o que pu desse destacar, depois de queim ar todo o resto,
e, desenvolvendo zelosam ente esse trabalho sem interrom per o do Emílio, dei, em
m enos de dois anos, a últim a dem ão no Contrato S ocial” 3. Eis o que leva Vaug
han a crer que, pron ta a versão quase definitiva do M anuscrito de Genebra, uma
am pla revisão, com preendendo supressão e desdobram ento de capítulos, resultou
no texto enviado, em 1761, ao prelo. E ssa interpretação está, aliás, em perfeita
coerência com o que dizem a Advertência inicial e o últim o capítulo do texto
fin a l.
C om o se vê, nasceu o Contrato de uma longa e am adurecida m editação,
continuada praticam en te durante toda a vida intelectual de seu autor. M esm o a
redução do plan o inicial não lhe alterou substancialm ente a fe iç ã o , nem lhe m u ti
lou o desenvolvim ento, p o is, quanto saibam os, as Instituições, além de um a p r i
m eira p a rte acerca da natureza e fu n cionam ento do p o d er p o lítico encarado do
p o n to de vista interno, ou seja, das relações entre E stado e cidadão, deveria ter
uma segunda p a rte destinada ao exam e do p o d e r em suas relações exteriores, isto
é, das relações entre E stados. Ora, a m atéria que se preservou no Contrato é a
essencial e fundam ental, cuja com preensão não depende, efetivam ente, do aban
donado com plem ento. Justifica-se, p o is, que o atorm entado R ousseau, no
m om ento em que se sentia tocado p ela adm iração dos contem porâneos e tam bém
quando cedia à esperança de retirar-se p ara uma existência quase isolada, resig
nasse o grande p ro jeto de outrora, sobretudo se assim conseguia preservar e
im ediatam ente tornar conhecida aquela sua obra que considerava capital.
N o conjunto da produ ção de R ousseau, o Contrato não se destaca só p o r
m erecer a preferência sentim ental do próprio autor. Já em sua fo r m a revela-se o
intuito de constituir um caso singular, p o is nessa produ ção fe ita de rom ances
filo só fico s, cartas polêm icas e discursos acusatórios, todos vazados num a lingua
gem candente, im piedosa e p o r vezes até áspera, surge com o um verdadeiro trata
do redigido num estilo que é “sóbrio, amargo e fo r te ”, com o queria Jaurés, e
sem pre aspira à objetividade técnica, em que pesem os percalços passion ais ofe
recidos p e lo tem peram ento apaixonado do autor. M ais ainda, nada tem de obra
de circunstância, com o sucede com a m aioria dos textos rousseaunianos, ten
dendo a desenvolver-se, graças à longa e profunda m editação, num pian o de ver
dadeira universalidade. Nela, Beaulavon encontrou “a expressão am adurecida,
sistem ática e definitiva do pensam ento de R ousseau ”.
2. Fontes e influências
autor, a com eçar, sem dúvida, p elo s Evangelhos propiciados, logo à infância,
p e lo protestantism o de Genebra.
N essas condições, excelente parece o cam inho tom ado recentem ente p o r
D e ra th é4, aliás seguindo o exem plo de H albwachs. M ais do que a investigação
restrita ou lata das fo n tes, no sentido com um do term o, valerá investigarm os
quais fo ra m as leituras p o lítica s de R ousseau. E, segundo aquele autor, devem os
referir d ois grupos distin tos de tratadistas que Jean-Jacques estudou mais detida
e proveitosam ente, com o se p o d e supor p o r citações explícitas ou p o r inferências
bem fu ndadas.
Em prim eiro lugar, tem os os juriscon su ltos. G rotius e P ufendorf represen
tavam o melhor da cultura ju rídica do tem po e a eles atirou-se R ousseau para
adquirir conhecim entos sem os quais não chegaria a dom inar os problem as do
E stado, p orém soube colocar o espírito crítico acim a da hum ildade de estudioso.
A ssim , em Grotius repele m étodo e doutrina e, se Pufendorffornece-lhe preciosas
informações, nem p o r isso concorda com seus prin cípios e suas conclusões.
Quanto a Burlamaqui, discípulo daqueles dois grandes m estres da escola do
D ireito N atural e no qual m uito tem po se desejou encontrar a principal fo n te de
R ousseau, hoje j á f o i reduzido às suas verdadeiras proporções: tradutor e conti-
nuador quase servil dos grandes ju ristas, nele p o u co de novo se encontraria e,
p o is, certa abundância de referências a seus trabalhos nos textos rousseaunianos
dever-se-á, muito provavelm en te, à fix a çã o psicológica que fatalm en te causavam
em Jean-Jacques os trabalhos, nem p o r isso adm irados, de um genebrino e m em
bro do C o n selh o . . . Cabe, afinal, assinalar o nom e de Johannes A lthusius, o
autor da im portante Politica M ethodice D igesta (1603), que tanto tem po p erm a
neceu ignorada p elo s historiadores das idéias políticas. O tto von Gierke, que
recuperou sua m em ória e sua doutrina, f o i o prim eiro a suspeitar de uma
influência direta em Rousseau. Vaughan reforçou a indicação citando uma p a s
sagem das Cartas da M ontanha em que há referência expressa a A lthusius, autor
então praticam ente desconhecido. Uma fra se do Contrato — “Tem muita razão
aqueles que pretendem não ser um contrato, em absoluto, o ato pelo qual um
p o v o se subm ete a chefes. ” (l. III, c. I) — parece tom ada diretam ente a A lthusius
e, se assim fo r, R ousseau terá tido a fe lic id a d e de encontrar, entre os velhos trata
distas, ao m enos um, disposto, com o ele, a negar os preten sos direitos superiores
d o s reis.
Com põe-se, o segundo grupo, de escritores políticos. A qu i, m uito em bora a
am plitude das leituras de R ousseau seja bem m aior, p o d em o s fixar-n os em três
nom es: H obbes, M ontesquieu e Locke. A fo r ç a desses três pensadores fe z-se sen
tir, de fo r m a decisiva, nas preocupações de quem estava destinado a colocar-se
no m esm o nível. Em cada um deles, R ousseau distinguiu a verdade fu n dam en tal
das fra q u eza s acessórias e, tom ando-lhes o que era essencial, soube criticá-los
p ela s fra g ilid a d es de m étodo e doutrina que não po d eria aceitar, para afinal, gra
ças a esses p o n to s de apoio, p o sitiv o s e negativos, tentar sua própria construção
sistem ática. Em H obbes, sentiu a necessidade de conceber-se com o absoluto o
p o d e r do E stado, m as repeliu, com veem ência quase brutal, o sacrifício da liber
dade do hom em . Em L ocke, contrariam ente, aproveitou m uito das form u lações
4 Robert Derathé: Jean-Jacques Rousseau et la Science Politique de son Temps, Paris, 1950. (N. de
L.-G.-M.)
14 IN T R O D U Ç Ã O
3. Resenha analítica
L IV R O I
m ento de uma nova entidade, de “um corpo m oral e coletivo ”, com “sua unidade,
seu eu com um , sua vida e sua vontade", que não é o sim ples agregado de
homens, m as a “pólis ”, a “ república ”, ou, com o prefere R ousseau, o “corpo
p o lític o ”. C om o um todo orgânico, cham a-se “E s ta d o ”, quando p a ssivo ; “sobe
ra n o ”, quando ativo, e “p o tê n c ia ” no trato com seus iguais. Q uanto aos homens,
constituíram um “p o v o ”, sendo “cid a d ã o s” ou “sú d ito s” conform e os conside
rem os ativa ou passivam ente.
“D o Soberano ”, ou seja, dos hom ens considerados coletivam en te e depois
de legitim am ente investidos no p o d er que lhes conferiu o p a cto , cuida o C apítulo
VII, que analisará as relações entre o corpo p o lítico ativo e seus p ró p rio s com po
nentes, fo rm u la n d o a m ais transcendente questão do Contrato Social: a vontade
geral. Im porta saber, desde logo> onde auscultá-la e estabelecer que nos próprios
hom ens é que ela se revela, não p elo que de geral haja em suas von tades particu
lares, m as p elo que de com um as torna interligadas. P or isso m esm o, a vontade
geral é sem pre certa e, não poden do errar, ja m a is atentará contra a liberdade de
qualquer d o s m em bros do corpo social. O C apítulo VIII, estudando o “Estado
c iv il”, num balanço entre o que perde e o que ganha o hom em p e lo contrato,
traça o contraste entre, de um lado, o direito ilim itado a tom ar p a ra si tudo que
suas fo r ç a s perm itirem e, de outro, a liberdade civil e a propriedade de tudo que
p o ssu i legitim am ente, enquanto o Capítulo I X examina as relações entre a
pro p ried a d e p riva d a e o p o d er do soberano.
L IV R O U
o E stado precisar das vidas dos súditos, a elas tem direito, porém , m algrado um
contido p ro testo sentimental, apressa-se a distinguir tal situação, configurada
p ela s exigências da guerra, da pen a de m orte que se aplica aos crim inosos, p o r
quanto estes, pelo seu crim e, j á se colocaram à m argem do p a cto social.
“D a L e i ” é o título do Capítulo VI, que com eça, aliás, p o r uma clara p ro p o
sição do problem a: se “p elo p a c to social dem os existência e vida ao corpo p o líti
co, resta atribuir-lhe, pela legislação, m ovim ento e v o n ta d e ”. D e fa to , à descrição
genética, que nos deu uma visão segura, porém apenas estática, anatôm ica, do
organism o político, im põe-se acrescentar o exam e de sua fisiologia, de seu
com portam ento ativo. E o E stado vive e age p ela lei.
N ão nos percam os, a tal propósito, em idéias m etafísicas que, apelando
p a ra a lei da natureza ou afirm ando que toda a ju stiç a vem de D eus ou ainda que
há uma ju stiça universal em anando da razão, não chegam a definir, na essência,
o que é a lei do E stado. Ora, im põe-se saber, exatam ente, a relação que resulta do
d isposto p ela vontade geral “quando todo o p o v o estatu i algo para todo o p o v o ”,
p o is, sendo a matéria de deliberação “geral com o a vontade que a e sta tu i”, aí
terem os o que se p o d e e se deve cham ar de lei. Em outras palavras, a lei, que p o r
isso m esm o ja m a is p o d e discrim inar ou particularizar, é a expressão das condi
ções da associação civil, tais com o as estabelece o m esm o p o v o a quem virá a
obrigar. Conseqüentem ente, se cham arm os de república a todos os E stados regi
dos p o r leis, só os governos republicanos, sem em bargo da fo rm a particular de
sua adm inistração, serão legítim os.
A noção de lei, que com pleta e am plia as noções fu n dam entais do L ivro I,
exige, contudo, uma nova cogitação básica, p o is fa z -s e necessário supor, para o
prim eiro e im prescindível estabelecim ento legal, uma “inteligência su perior” que
se interessasse p elos interesses dos homens, sem ter ela própria nenhum interesse.
“D o L eg isla d o r” trata o C apítulo III, que m uitos com entários tem suscitado pelo
f a to de, nele, Rousseau abandonar decidida e declaradam ente qualquer rigor
analítico e racional para, depois de afirmar que “seriam precisos deuses para dar
leis aos h o m en s”, supor que só será verdadeiro legislador aquele que, “homem
extraordinário no E stado ”, não obstante perm anece praticam en te fo r a do E stado,
sem pod eres e sem autoridade. E adm ite até que em estágios sociais rudim entares
recorra a apelos às divindades, p ara ser m elhor com preendido e aceito p elo s ho
m ens que nelas creiam. C om o se vê, não basta o p a cto constitutivo do corpô
p o lítico , p o is quase tão substancial quanto ele é o estabelecim ento das conven
ções gerais que só um legislador p o d e realizar devidam ente.
Suposto tal elem ento, os capítulos VIII, I X e X , sob o título geral “D o
P o vo ”, passa m em 'exame as condições de adequação dos sistem as de legislação
a cada p o v ô , considerado segundo sua própria constituição, as condições natu
rais de sua vida e cada m om ento particu lar de sua história. O Contrato Social
com eça a tanger o cam po dos problem as, se não concretos, ao m enos práticos,
ou ainda m elhor: técnicos, da organização estatal. Essas considerações se con
cluem no C apítulo X I, onde a análise dos “diversos sistem as de legislação ” se re
sum e à fix a çã o de “dois objetos principais: a liberdade e a igualdade, sem pre os
m esm os, enquanto variam os recursos específicos em penhados em sua preserva
ção conform e as específicas condições de cada caso concreto ”. O C apítulo X I I
estabelece uma divisão das leis que distingue as p olíticas das civis e das crim i
nais, po rém não se encerra sem apaixonada referência — em que repercutem as
18 IN T R O D U Ç Ã O
L IV R O III
m esm o, não se adm item assem bléias com postas de representantes, isto é, o sim u
lacro da deputação do p o d er do p o v o , p o is, com o sabem os, as vontades e,
conseqüentem ente, a vontade geral não se transm item .
D estinam -se os três capítulos fin a is do L ivro III a cuidar da instituição do
governo que, coerentem ente com o que j á sabem os desde o prim eiro livro, ja m a is
configura um contrato nem poderia obrigar ao soberano que, p ô r sua própria
natureza, não conhece superiores e não reconhece interesses particulares. Tal
afirm ação, a esta altura do livro, pro vo ca , contudo, uma séria dificuldade siste
m ática, p o is obriga a distinguir a lei, que adota a fo r m a de governo, do ato de
escolha do chefe, o que só se resolve supondo, num recurso teorético, a assem
bléia em dupla fu n ção. E, novam ente, só as assem bléias periódicas podem con sti
tuir rem édio contra as usurpações.
L IV R O IV
sim a conclusão em que, à guisa de escusa, R ousseau enumera o que não pôde
expor, isto é, o que constituiria o plano com pleto das Instituições Políticas.
1 N a ed ição D reyfus-B risac, fam osa por ser a prim eira a tentar a rep osição do texto segundo as
fontes originais, figura um fac-sím ile da prim eira folha do M a n u scrito d e G enebra, prim itivo e s
b oço do C o n tra to S ocial. A í se encontram as m uitas variantes por que passou o título da obra.
Prim eiro, foi m esm o “ D o C on trato S o c ia l” . D ep o is, provavelm ente para fugir ao sabor ind ivi
d u alista d essa expressão, foi ela riscada e substituída por “ D a Socied ade C iv il” . A seguir, c o n s
ciente da originalidade de sua interpretação do esqu em a contratual, R ou sseau retom a o prim eiro
título. Q uan to ao subtítulo, encontram os su cessivam ente “ E nsaio sobre a C on stitu ição do E sta
d o ” , “ E nsaio sobre a F orm ação do C orpo P o lítico ” , “ E nsaio sobre a F orm ação do E stad o” e
“ E nsaio sobre a F orm a da R epú blica” . “ Princípios do D ireito P o lítico ” é novidade que só surge
na versão definitiva do C o n tra to . (N . de L. G . M .)
2 A cita çã o em epígrafe é tom ada com grande largueza interpretativa, p ois o texto latino alude
expressam en te à igualdade de leis para os m em bros de um a alian ça entre p ovos ou n ações,
enquanto o objeto do livro que agora se inicia é a igualdade dos hom ens unidos em um corpo
p olítico pelo pacto social. (N . de L. G . M .)
A d v e r t ê n c ia
E ste pequeno tratado f o i extraído dum a obra m ais extensa3, outrora ini
ciada sem que houvesse consultado minhas fo rç a s e de há muito abandonada.
D o s vários trechos que se po d ia m tom ar ao que estava fe ito , este é o m ais consi
derável e pareceu-m e o m enos indigno de ser oferecido ao público. O resto não
m ais existe 4.
3 A lu são às In stitu içõ es P o lític a s, cujo destino aqui se sela. Seriam fragm entos da “obra m ais
exten sa” o m anuscrito de N euchâtel, sobre O E sta d o d e G u erra, outros textos m enores que V aug
han a esse jun ta em sua co le çã o d os E sc rito s P o lític o s de R ou sseau , e, talvez, o s d ezesseis capítu
los sobre a federação que d ’A ntraigues diz ler recebido do próprio R ou sseau e destruído por
cau sa de seu teor revolucionário. (N . de L. G . M.)
4 A sob revivên cia o casion al d os fragm entos referidos na nota anterior não desm ente e ssa afir
m ação: R ou sseau desistira, em definitivo, das In stitu iç õ es e destruíra, delas, o que estava em suas
m ãos. “ R enunciando a essa obra, resolvi tirar dela o que se pod ia destacar, e queim ar todo o
resto.” (C o n fissõ es, II parte, livro X .) (N . de L. G . M .)
LIVRO PRIMEIRO
Quero indagar se pode existir, na nessa procura, para unir o que o direi
ordem civil 5, alguma regra de adminis to permite ao que o interesse prescreve,
tração legítima e segura, tom ando os a fim de que não fiquem separadas a
homens com o são e as leis com o justiça e a u tilid ad e7.
podem ser6. Esforçar-me-ei sempre, Entro na matéria sem demonstrar a
importância de meu assunto. Pergun
5 N ão se trata de estudar as relações de
tar-me-ão se sou príncipe ou legisla
hom em a hom em , com o faria supor a expres dor, para escrever sobre política. R es
são “ordem c ivil” , tão próxim a do que m oder pondo que não, e que por isso escrevo
nam ente é regulado pelo direito civil. O ob je sobre política. Se fosse príncipe ou
tivo em mira é a organ ização geral da
socied ade, o s seus princípios fundam entais e
legislador, não perderia meu tempo,
as regras institucionais do que hoje cham am os dizendo o que deve ser feito; haveria de
de “ordem pública” . (N . de L. G . M .) fazê-lo, ou calar-m e8.
6 A qui se encontram dois elem en tos substan Tendo nascido cidadão de um Esta
c ia is do pensam ento de R ousseau:
do livre e membro do soberano9,em bora
l . a) Separa-se, neste pon to, de M ontesquieu,
p o is, se o E spírito d a s L e is procura c o m fraca seja a influência que minha opi
preender as leis tais com o existem para exp li nião possa ter nos negócios públicos, o
cá-las segundo as situações reais que as gera direito de neles votar basta para impor
ram , o C o n tra to S o c ia l procura o que as leis o dever de instruir-me a seu respeito,
“podem ser” e devem ser para corresponder às
v icissitu d es, individuais e c o letivas, d os “ h o
sentindo-me feliz todas as vezes que
m ens com o são” . R ou sseau parte, pois, do
conh ecim en to profundo e genérico do hom em 8 Se houve quem aproxim asse de tão ácida
para estabelecer as regras da organ ização recrim inação o s p ropósitos teóricos de Frede
c on scien te da sociedade: “É preciso estudar a rico II, da Prússia, em seu A n ti-M aqu iavel,
socied ade pelos hom ens e o s h om ens pela resta lem brar que a referência pode ser e sten
socied ad e” , dirá o E m ílio (livro IV). dida a to d o s o s ch am ad os “ d ésp otas esc la r ec i
2 o) O s objetivos am b iciosos de R ou sseau não d o s” , que, sem pre d isp ostos ao con vívio inte
o levam a esquecer-se das con sid erações práti lectual com o s filó so fo s da liberdade e por
cas. D o s “ princípios de direito p o lítico ” , anun v ezes teorizan do, eles próprios, sobre o direito
c ia d o s no subtítulo e que serão abstratos e e o hom em , diversa atitude assum iam quando
genéricos, deverá decorrer “ um a regra de se tratava de exercer o poder de m ando. (N . de
adm inistração legítim a e segura” , isto é, ade L. G . M .)
quada aos h om ens e p osta ao alcan ce de sua 9 C id ad ão de G enebra, R ou sseau chegou a
ação im ediata. (N . de L. G . M .) tom ar parte num a reunião do C on selh o G eral
7 C f. n o ta anterior, 2 .a parte. N em puram ente daq uela república, quando de sua viagem de
teórico, nem exclusivam ente utilitário, R o u s 1754. Para tanto, tivera de voltar ao p rotestan
seau deseja princípio e ação atendidos a um só tism o, m as sentira-se, então, “ m em bro do
tem po. (N . de L. G . M.) sob erano” . (N . de L. G . M.)
28 R O U SSE A U
medito sobre os governos, por sempre tivos para amar o governo do meu
encontrar, em minhas cogitações, mo- país P 0
1 0 A p esar da indiferença e, d ep ois, da h ostili na E c o n o m ia P o lític a : “ . . . para expor aqui o
dade de seus co n cid a d ã o s, R ou sseau sempre sistem a econ ôm ico de um bom governo,
m anteve G en eb ra com o m odelo de república. freqüentem ente voltei o s o lh o s para o desta
Para tanto, deveu idealizar bastante a reali
república” . . . A gora, faz n o v a referência ao
dade genebrina, cuja estrutura constitucional,
caso m odelar. E só se calará d ep ois de sua
segundo certos com en taristas, não con h ecia
bem . E xalta G en eb ra na “ D ed icatória” do con d en ação pelo G overno genebrino. (N . de L.
D isc u rso so b re a D e sig u a ld a d e . N ã o a esquece G . M .)
C a p it u l o I
•O homem nasce livre11, e por toda a tal mudança? Ignoro-o12. Que poderá
parte encontra-se a ferros. O que se crê legitimá-la? Creio poder resolver esta
senhor dos demais, não deixa de ser questão13.
mais escravo do que eles. Com o adveio Se considerasse somente a força e o
efeito que dela resulta, diria: “ Quando
11 Por c a u sa d essa expressão, graves equívo um povo é obrigado a obedecer e o faz,
co s têm prejudicado a interpretação do pen sa
m ento de R ou sseau e, em particular, do C o n
age acertadamente; assim que pode
tra to S o c ia l. D e fato, aqui não se trata apenas sacudir esse jugo e o faz, age melhor
da liberdade (m elhor diríam os: da irrestrição)
ainda, porque, recuperando a liberdade
individual, da qual já se cuidou no D isc u rso
so b re a D e sig u a ld a d e , com claro e preciso sen pelo mesmo direito por que lha arreba
tido. O ob jetivo prim ordial do C o n tra to S o c ia l taram, ou tem ele o direito de retomá-
está em assentar as bases sobre as quais legiti
m am ente se p o ssa efetuar a passagem da liber la ou não o tinham de subtraí-la” . A
dade natural à liberdade con ven cion al, com o ordem social, porém, é um direito
m ais adiante se verá. N ão obstante, essa
expressão genérica, p osta à entrada do texto e sagrado1 4 que serve de base a todos os
antes de estabelecer-se o sentido dos term os outros1 5. Tal direito, no entanto, não
que a com põern, leva a pensar num a defesa do se origina da natureza1 6: funda-se,
in d ivid u alism o, quando em verdade se inicia
um a e x p o siç ã o acerca da organ ização social.
(N . de L. G . M .) 1 4 “ Sagrado”, nesse pon to, n ão constitui
12 N ã o o ignora. T am p ou co o esqueceu, palavra vã ou m ero reforço literário da frase.
co m o algun s desejam supor. A interpretação A í figura para significar algo superior ao indi
histórico-conjetural estabelecid a no segundo víduo e que, não obstante, se p rocessa no pró
D isc u r so está presente ao espírito de R ousseau prio hom em : sua transfiguração pelo social.
e o guiará através de todo o C o n tra to S ocial. N a E co n o m ia P o lític a há alu são à “m ais subJi-
A co n tece, porém , que agora deseja deixar de m e de todas as instituições hu m anas” que
lado as interpretações de fatos para lançar-se cap acita a criatura a “ im itar cá em baixo o s
ao problem a p olítico no plano da m oral racio decretos im utáveis da D ivin d ad e” e à im pres
nal. (N . de L. G . M .) são que tem os, em face de seus resultados, de
13 V. nota anterior. Se o segundo D isc u rso um a “ inspiração celeste” . E ssa im agem aqui
registrara a passagem da liberdade natural à reaparece. (N . de L. G . M .)
servidão civil, o que era um “fato” , e o m esm o 1 5 A afirm ação ressurge, m ais clara ainda, no
fato a que se refere a prim eira frase deste capí capítulo IX , prim eiro parágrafo.
tulo, agora se buscará estabelecer em que c o n 1 6 Isto é, não se origina na natureza funda
d ições a m esm a transição poderá fazer-se mental do hom em , no substrato físico e m ental
legitim am ente, isto é, em favor da liberdade. do indivíduo considerado em si m esm o. (N . de
(N . de L. G . M .) L. G . M .)
D O C O N T R A T O SO C IAL I 29
Ca p ítu lo II
D as primeiras sociedades
pai; o povo, a dos filhos, e todos, tendo nião de H obbes2 5. Vem os assim, a
nascido iguais e livres, só alienam sua espécie humana dividida com o mana
liberdade em proveito próprio. A dife das de gado, tendo cada uma seu chefe,
rença toda está em que, na família, o que a guarda para devorá-la.
amor do pai pelos filhos o paga pelos Assim com o um pastor é de natu
cuidados que lhes dispensa, enquanto reza superior à de seu rebanho, os pas
no Estado o prazer de mandar substi tores de homens, que são os chefes,
também possuem natureza superior à
tui tal amor, que o chefe não dedica a
de seus povos. D esse m odo — segundo
seus povos.
F ilo2 6 — raciocinava o imperador
G rotius22 nega que todo o poder hu Calígula, chegando, por essa analogia,
mano se estabeleça em favor daqueles à fácil conclusão de que os reis eram
que são governados: cita, com o exem deuses, ou os povos, animais.
plo, a escravidão23. Sua maneira mais O raciocínio de Calígula leva ao de
comum de raciocinar é sempre estabe Hobbes e ao de Grotius. Aristóteles,
lecer o direito pelo fato2 4. Poder-se-ia antes de todos eles, também dissera
recorrer a método mais conseqüente, que os homens em absoluto não são
não, porém, m ais favorável aos tira naturalmente iguais, mas nascem uns
nos. destinados à escravidão e outros à
dom inação2 7.
Resta, pois, em dúvida, segundo
Aristóteles tinha razão, mas tom ava
Grotius, se o gênero humano pertence
o efeito pela causa. Todo homem nas
a uma centena de homens ou se esses cido na escravidão, nasce para ela;
cem hom ens pertencem ao genêro nada mais certo. Os escravos tudo per
humano. N o decorrer de todo o seu dem sob seus grilhões, até o desejo de
livro parece inclinar-se pela primeira
suposição, sendo essa também a opi 2 5 H obbes tem im portantes p on tos de contato
com R ou sseau, podendo m esm o ser tido com o
22 O D ire ito d a P a z e d a G uerra, de G rotius, seu direto inspirador no respeitante ao c o n
m antinha inabalável seu prestígio já secular. ceito de um a natureza hu m ana prim ária e
C om b aten d o-o frontalm ente, R ou sseau aqui fundam ental, considerada à m argem das trans
contradiz o capítulo III do livro I, onde se afir form ações trazidas pela vida em sociedade.
m a que o poder pode estabelecer-se em pro N ã o obstante, com o con clu i afirm ando que o
veito de quem o exerce. (N . de L. G. M .) poder se funda no m edo e na força, R ou sseau
insiste em repudiar explicitam en te sua con cep
23 A b an d on an d o o “ m od elo” da fam ília,
ção política. (N . de L. G . M .)
R ou sseau p a ssa agora ao caso da escravidão
que o s tratad istas, com o o m esm o G rotius, pu 2 6 F ilo de A lexandria, ou F ilo , o Hebreu,
nham em paralelo com o poder político. (N . de relata, no D e L eg a tio n e, o interesse de C alí
gu la por dem onstrar possuir natureza superior
L. G . M .)
à de seus súditos, porquanto “n ascid o para um
2 4 “ A s perquirições eruditas sobre o direito
destino m ais alto e m ais d iv in o ” , para o que se
pú blico freqüentem ente não passam da história
serviu do paralelo com o s pastores. (N . d c L.
de antigos abu sos, e tem -se porfiado intem pes G .M .)
tivam ente por sua cau sa quando se dá o tra
balho de estud á-las em d em asia.” (T ra ité des 2 7 “ A natureza, para atender à con servação,
criou certos seres para com andar e outros para
In té rê ts de la F ran ce a v ec ses V oisins, pelo Sr.
obedecer. É que ela quis que o ser dotado de
M arquês d’A rgen son , im presso por R ey, em
razão e previsão ordenasse com o senhor, e que
A m sterdam .) F oi precisam ente isso que se p as o ser capaz, por suas faculdades corpóreas, de
sou com G rotius*. (N . do A .) executar ordens, ob ed ecesse com o escravo;
* O livro de d ’A rgen son , que então circu lava assim se confundem o interesse do senhor e o
m anuscrito, foi pu blicad o pelo editor R ey, de do escravo.” (A ristóteles, P o lítica, 1. I, c. I.)
A m sterdam , em 1765. (N . de L. G . M .) (N . de L. G . M.)
D O C O N T R A T O SO C IAL I 31
C a p it u l o III
C a p itu lo IV
D a escravidão
Visto que homem algum tem autori vo de um senhor, por que não o pode
dade natural sobre seus semelhantes e ria fazer todo um povo e tornar-se sú
que a força não produz qualquer direi dito de um rei?3 7 N essa frase existem
to, só restam as convenções com o base muitas palavras equívocas a exigir
de toda a autoridade legítima existente explicação, mas prendamo-nos só à
entre os hom ens3 6. palavra alienar. Alienar é dar ou ven
Se um particular, diz Grotius, pode der. Ora, um homem, que se faz escra
alienar sua liberdade e tornar-se escra- vo de um outro, não se dá; quando
muito, vende-se pela subsistência. Mas
3 6 V oltam os ao tem a central do C o n tra to , tal
um povo, por que se venderia? O rei,
co m o se propôs no capítulo inicial. M as não se longe de prover à subsistência de seus
refutaram tod as as teorias d esp óticas. Se a súditos, apenas dele tira a sua e, de
autoridade não se ju stifica nem pela força nem acordo com Rabelais, um rei não vive
pela vontad e de D eu s, provirá de um a con ven com pouco. Os súditos dão, pois, a sua
ç ã o , m as desde logo se im põe dem onstrar que
tal con ven ção não im porta na total renúncia à
liberdade. A ssim pensava G rotius e, seguindo- 3 7 R esu m o de idéias que se encontram no
o, a m aior parte d os adeptos da esc o la do D ire ito d a P a z e d a G uerra, 1. I, c. III, e 1. III,
direito natural. (N . de L. G . M .) c. VII. (N . de L. G . M.)
D O C O N T R A T O SO C IAL I 33
tanto mais legítima quanto resulta em rio aos princípios do Direito Natural e
proveito de ambas as partes42. a qualquer b o a p o litia 4 4.
É claro que esse pretenso direito de A guerra não representa, pois, de
matar os vencidos de modo algum modo algum, uma relação de homem
resulta do estado de guerra43. Apenas para homem, mas uma relação de Es
porque, vivendo em sua primitiva tado para Estado, na qual os particu
independência, não mantêm entre si lares só acidentalmente se tornam ini
uma relação suficientemente constante migos, não o sendo nem com o homens,
para constituir quer o estado de paz nem com o cid ad ãos4 5, mas com o sol
quer o de guerra, os homens em abso dados, e não com o membros da pátria,
luto não são naturalmente inimigos. É mas com o seus defensores. Enfim,
a relação entre as coisas e não a rela cada Estado só pode ter com o inimigos
ção entre os homens que gera a guerra, outros Estados e não homens, pois que
e, não podendo o estado de guerra não se pode estabelecer qualquer rela
originar-se de simples relações pes ção verdadeira entre coisas de natu
soais, mas unicamente das relações reza diversa.
reais, não pode existir a guerra particu Esse princípio está mesmo de acor
lar ou de homem para homem, nem no do com as máximas estabelecidas em
estado de natureza, no qual não há
propriedade constante, nem no estado 4 4 R ou sseau serviu-se da transcrição francesa
literal da “p oliteia” grega, grafando “ p olitie” .
social, em que tudo se encontra sob a
O -mesmo recurso, em português, daria am bi
autoridade das leis. güidade com o vocáb u lo “p o lícia ” . Em co n se
Os com bates particulares, os duelos, qüência, adotam os o latino “p o litia ” , de acep
os recontros são atos que de maneira ção m uito próxim a à desejada por
alguma constituem um estado; quanto R ousseau. N um a carta ao editor R ey, R o u s
seau recom enda que evite con fu sões de “ p oli
às guerras privadas, autorizadas pelas
tie” com “ politiq ue” . (N . da T.)
ordenações de Luís IX, rei de França, 4 5 Os rom anos que, m ais do que qualquer
e suspensas pela Paz de Deus, são outra nação do m undo, com preenderam e
abusos do governo feudal, sistema respeitaram o direito da guerra, levavam tão
absurdo, se jam ais foi sistema, contrá- longe os escrúpulos a tal respeito, que não se
perm itia a um cid adão servir com o voluntário
sem ter-se alistado expressam ente contra o ini
m igo e nom inalm ente contra certo inim igo.
42 A ssim raciocin a G rotius no D ire ito da P az T endo sido reform ada a legião em que C atão,
(1. III, c. VII), n isso seguido por Pufendorf, no o M oço, sob o com ando de P op ílio, se iniciava
D o s D e v e re s do H o m em e do C id a d ã o (1. II, c. na guerra. C atão, o V elho, escreveu a Popílio
I). L ocke vai m ais longe, acreditando en con que, se desejasse a con tin u ação de serviço de
trar fundam ento para a escravidão não só no seu filho, se tornava necessária a prestação de
direito das gentes, m as tam bém no direito novo juram ento m ilitar, visto que, estando o
natural. (N . de L. G . M.) prim eiro anulado, não pod ia m ais voltar as
43 A argum entação, que reaparece em outros arm as contra o inim igo. O m esm o C atão
textos, tem sua form a m ais explícita e con vin escreveu ao filho recom endando-lhe que se
cente no fragm ento sobre O E sta d o de G uerra, abstivesse de entrar em com bate, enquanto não
no m anuscrito de N euchâtel. A ssim pode ser tivesse prestado novo juram ento. Sei que pod e
resum ida: 1.°) a guerra, enquanto choque rão contraditar-m e com o sítio de C lusium e
entre duas fòrças, não cria direito porque não outros fatos particulares, m as o que faço é
o cria a força; 2.°) se houver um direito da citar leis e costum es. O s rom anos são aqueles
guerra, esta passará a representar um a relação que m enos freqüentem ente transgrediram suas
entre dois seres m orais que não alcan ça aos leis e foram o s únicos a tê-las tão belas*. (N .
indivíduos, sendo a disputa, adem ais, referente do A .)
a interesses reais e não pessoais. (N . de L. G. * E ssa nota só aparece nas edições do C o n
M .) tra to a partir de 1782. (N . de L. G. M.)
D O C O N T R A T O SO C IAL I 35
C a p itu lo V
A inda que houvera concordado com existe nem bem público, nem corpo
tudo que até aqui refutei, não se encon p o lítico 51. M esmo que tal homem do
trariam em melhor situação os fautores mine a metade do mundo, sempre será
do despotism o 4 9. Haverá sempre gran um particular; seu interesse, isolado do
dos outros, será sempre um interesse
de diferença entre subjugar uma multi
privado. Se esse homem vem a perecer,
dão e reger uma sociedade. Sejam ho seu império, depois dele, fica esparso e
mens isolados, quantos possam ser sem ligação, com o um carvalho, de
subm etidos sucessivamente a um só, e pois de consumido pelo fogo, se desfaz
não verei nisso senão um senhor e e se transforma num monte de cinzas.
escravos, de modo algum consideran Um povo, diz G rotiu s52, pode dar
do-os um povo e seu chefe. Trata-se, se a um rei. Portanto, segundo Grotius,
caso se queira, de uma agregação, mas um povo é povo antes de dar-se a um
não de uma a sso cia çã o 50; nela não rei. Essa doação mesma é um ato civil,
supõe uma deliberação pública. Antes,
49 “ F au tores do d esp otism o” são H obbes,
G rotiu s e o s m ais até aqui refutados. C onvém m ente. E ntão a relação puram ente física que se
esclarecer que R ou sseau a eles se opõe não pode supor num sim ples agregado cederá lugar
porque afirm em que o poder político é superior a valores e padrões de com portam ento defini
ao indivíduo, m as porque nessa superioridade dores de um verdadeiro grupo social. (N . de L.
de fato encontram razão suficiente para im G . M .)
por-se o m ando ao súdito. O C o n tra to busca 51 N o contexto social, a que alud im os na
saber c o m o tal im p osição do poder pode tor nota anterior, o bem com um é n o çã o coletiva,
nar-se legítim a e, conseqüentem ente, quando incluindo-se, por isso m esm o, na con sciên cia
há (ou n ã o ) o direito de im por-se aos hom ens o de cada um, e todas as d ecisõ es, visando a
poder do E stado. (N . de L. G . M.) atendê-lo, serão d ecisões de um “ corp o p olíti
50 N a o p o siç ã o de “ agregação” a “ a sso cia c o ” , isto é, de um a socied ade con scien te de sua
ç ã o ” , C . E. V aughan encontra, em germ e, todo unidade, necessidades e asp irações. (N . de L.
o pensam en to antiindividualista de R ousseau. G . M .)
D e sua parte, B eaulavon assin ala que aí se 52 Para bem entender a insistente refutação
assen ta, com toda a sua originalidade e pene de G rotius, convém prim eiram ente lembrar
tração, um a inédita visão do contrato social, que no capítulo III do I livro do D ire ito da P a z
p o is agora- só. as relações m orais, im plicando e d a G u erra se pergunta “ por que um povo
ações m útuas, são consideradas cap azes de livre não poderia subm eter-se a um a ou várias
formar um p ovo por interm édio de um a c o n p essoas, de tal sorte que lhe transferisse intei
ven ção fundam ental que lhe dá feição de corpo ram ente o direito de governar sem dele reser
político. N o estado atual de desenvolvim en to var-se qualquer parcela” , desde que “ é perm i
da so c io lo g ia , a c on cep ção de R ou sseau adqui tido a cad a hom em livre tornar-se escravo de
re caráter de verdadeira antecip ação do papel quem quiser” . E ssa ou sad a defesa do d esp o
essencial representado p elos liam es sociais na tism o vem precedida de verdadeiro desafio
caracterização da vida coletiva: para term os “ aos que pretendem pertencer, sempre c sem
um a socied ade, não basta que se agrupem o s ex ceçã o , o poder soberano ao povo, de sorte
hom ens, sendo necessário que o s liam es entre que este tem o direito de reprimir e punir os
eles estab elecid os se tornem deles indepen reis todas as v ezes que abusem de sua autori
dentes e a eles venham a im por-se coercitiva- dad e” . A duplicidade de G rotius, aliás seguida
D O C O N T R A T O SO C IAL I 37
pois, de examinar o ato pelo qual um fosse unânime, onde estaria a obriga
povo elege um rei, conviria examinar o ção de se submeterem os menos nume
ato pelo qual um povo é povo, pois rosos à escolha dos mais numerosos?
esse ato, sendo necessariamente ante Donde sai o direito de cem, que que
rior ao outro, constitui o verdadeiro rem um senhor, votar em nome de dez,
fundamento da socied ad e53. que não o querem de modo algum? A
Com efeito, caso não haja conven lei da pluralidade dos sufrágios é, ela
ção anterior, a menos que a eleição própria, a instituição de uma conven
por seus continuadores, era patente — a sob e ção e supõe, ao menos por uma vez, a
rania popular, adm itida em princípio, era d im i unanimidade.
nuída pelas distin ções teóricas e anulada na
prática — e R ousseau não pode calar-se: ou o cu id am os da “d o a ç ã o ” d os súditos ao pod ero
princípio é m oralm ente válid o e não pode a n e so, m as de um a organ ização política que se
nhum pretexto ser contrariado, ou sim p les enraíza direta e profundam ente na organ ização
m ente não existe e só haverá a tirania. A ssim social. C on sid eram os, p ois, a socied ade una e
responde à verdadeira p rovocação con tid a n a agindo co m o um tod o, em lugar de basear n o s
m esm a passagem do D ire ito d a G u erra e da sos raciocín ios n os indivíduos. Senão, adver
P a z, num trecho que acu sa com o o princípio te-n os R ou sseau no período seguinte, seria pre
da soberania popular “ causou tantos m ales, e c iso sem pre supor unanim idade nas
poderá ainda cau sá-los se de n ovo o s espíritos delib erações, p ois que a regra da m aioria (à
se deixarem persuadir” . (N . de L. G . M .) qual, no capítulo VIII do segundo E nsaio
53 A firm ada a con exão substancial entre o so b re o G o v ern o , L ocke atribuiu o papel de
social e o político (v. notas n .os 50 e 51), trans titular natural do poder) não p assa, tam bém
figura-se o esquem a do contrato social: já não ela, de um a con ven ção. (N . de L. G . M .)
C a p itu lo VI
D o pacto social
C a p itu lo V II
D o soberano
Vê-se, por essa fórmula, que o ato de ciai 6 7. Tal não significa não poder esse
associação compreende um com pro corpo comprometer-se com outrem, no
m isso recíproco entre o público e os que não derrogar o contrato, pois, em
particulares, e que cada indivíduo, relação ao estrangeiro, torna-se um ser
contratando, por assim dizer, consigo singelo, um indivíduo.
mesmo, se compromete numa dupla Mas o corpo político ou o soberano,
relação: com o membro do soberano não existindo senão pela integridade6 8
em relação aos particulares, e com o do contrato, não pode o brigar-se,
membro do Estado em relação ao mesmo com outrem, a nada que derro
soberano. N ão se pode, porém, aplicar gue esse ato primitivo, com o alienar
a essa situação a máxima do Direito uma parte de si mesmo ou submeter-se
Civil que afirma ninguém estar obri a um outro soberano. Violar o ato pelo
gado aos com prom issos tom ados con qual existe seria destruir-se, e o que
sigo mesm o 6 6, pois existe grande dife nada é nada produz.
rença entre obrigar-se consigo mesmo
e em relação a um todo do qual se faz
6 7 A gin d o, em sua própria esfera, com o p es
parte. soa, o corpo social perm anece livre m esm o em
Impõe-se notar ainda que a delibera relação ao pacto fundam ental. C om isso, ao
ção pública, que pode obrigar todos os contrário do que acreditaram certos individua
súditos em relação ao soberano, devi listas (aos quais faz eco Paul Janet na H istória
do às duas relações diferentes segundo da C iên cia P olítica), não se reconh ece ao E sta
as quais cada um deles é encarado, não do um poder ilim itado e superior até à m oral e
ao direito, m as, sim , que a socied ad e, matriz
pode, pela razão contrária, obrigar o d essa m oral e desse direito, pode a qualquer
soberano em relação a si mesmo, m om ento tom ar n ovas direções que seus m em
sendo conseqüentemente contra a na bros, na m edida de suas c o n sc iên cia s, b u sca
tureza do corpo político impor-se o rão estabelecer de form a concreta. (N . de L. G.
M .)
soberano uma lei que não possa infrin 68 N o original figura a expressão “ la sainteté
gir. N ão podendo considerar-se a não du contrat”, porém traduzi-la, literalm ente, por
ser numa única e mesma relação, “ a santidade de contrato” im portaria em per
encontrar-se-á então no caso de um der-se o essencial do sentido da frase que esta
particular contratando consigo belece com o só se m antém unido o corpo so
cial enquanto a integridade do contrato não
mesmo, por onde se vê que não há nem sofrer abalo. Em que pese a real dificuldade da
pode haver qualquer espécie de lei tradução, cabe registrar que a “ sainteté” do
fundamental obrigatória para o corpo original é indicativa do caráter supra-hum ano,
do povo, nem sequer o contrato so- em bora não sobrenatural, do ente coletivo (e
em m ais de um ponto R ou sseau vale-se desse
sím ile com a esfera divina) que aqui já surge
6 6 O direito civil, regulando relações entre com o a necessária relação entre o político
indivíduos, não pode alcançar um a situação (necessidade de cumprir o contrato) e o m oral
em que age um “ ser m oral” de natureza (dever de obedecer a um a entidade superior ao
supra-individual. (N . de L. G . M .) indivíduo). (N . da T.)
D O C O N T R A T O SO C IAL I 41
D esde o momento em que essa mul O mesmo não se dá, porém, com os
tidão se encontra assim reunida em um súditos em relação ao soberano, a
corpo, não se pode ofender um dos quem, apesar do interesse com um , nin
membros sem atacar o corpo, nem, guém responderia por seus com prom is
ainda menos, ofender o corpo sem que sos, se não encontrasse meios de asse
os membros se ressintam. Eis com o o gurar-se a fidelidade dos sú ditos71.
dever e o interesse obrigam igualmente Cada indivíduo, com efeito, pode,
as duas partes contratantes a se auxi com o homem, ter uma vontade parti
liarem mutuamente, e os m esm os ho cular, contrária ou diversa da vontade
mens devem procurar reunir, nessa geral que tem com o cidadão. Seu inte
dupla relação, todas as vantagens que resse particular pode ser muito dife
dela provêm 69. rente do interesse comum. Sua existên
Ora, o soberano, sendo formado cia, absoluta e naturalmente
tão-só pelos particulares que o com independente, pode levá-lo a conside
põem, não visa nem pode visar a inte
rar o que deve à causa comum com o
resse contrário ao deles, e, conseqüen
uma contribuição gratuita, cuja perda
temente, o poder soberano não
necessita de qualquer garantia em face prejudicará menos aos outros, do que
de seus súditos, por ser impossível ao será oneroso o cumprimento a si pró
corpo desejar prejudicar a todos os prio. Considerando a pessoa moral que
seus membros, e veremos, logo a constitui o Estado com o um ente de
seguir, que não pode também prejudi ra z ã o 72, porquanto não é um homem,
car a nenhum deles em particular. O ele desfrutará dos direitos do cidadão
soberano, somente por sê-lo, é sempre sem querer desempenhar os deveres de
aquilo que deve se r 70.
71 Se o s liberais do século passad o se preocu
69 Entram em conexão su bstancial o dever e param com garantir o indivíduo contra o E sta
o interesse. Em sua totalidade, o parágrafo do, fiel à sua própria conjuntura histórica
exprim e a antecip ação, por R ou sseau , da R ou sseau cuida de garantir o Estado contra o s
n oção de “ síntese so c ia l” que dá base a tod a a indivíduos, ou m elhor, certos indivíduos, p ois
so c io lo g ia m oderna para a qual o individual e o que via era a usurpação dos poderes do E sta
o c oletivo são sim ples asp ectos esp eciais de do pelo m onarca ou por um a classe privile
um a m esm a realidade. (N . de L. G . M .) giada. A solu ção do problem a, que surge nos
70 O poder soberano continua, p ois, a ser parágrafos seguintes, é incutir no com p orta
insuperável, isto é, absoluto. A soberania a b so m ento individual a co n sciên cia da vontade
luta, não obstante, longe de representar um a geral, de sorte a dom inar a vontade particular.
p otên cia adversa à liberdade individual, com o A teoria política de R ou sseau toca ao m ais
afirm ava, entre outros, H obb es, p assa a ser fundo d os princípios gerais, confundindo-se
entendida com o o resultado da a sso cia çã o de com a ética e propondo o problem a da e d u c a
to d o s o s particulares e, por isso m esm o, com o ção. (N . de L. G . M .)
um a força incapaz de afetar a seus próprios 72 Em linguagem filosófica, ente de razão é
elem en tos con stitu tivos sem a si m esm a afe “objeto de pensam ento artificialm ente criado
tar-se. Entram , p ois, em equação d ois velh os pelo espírito para atender às necessid ad es do
tem as da teoria política: só a soberania pop u discurso e sem existên cia, quer em si, quer na
lar é soberania absolu ta, perfeita e legítim a. representação con creta” (L alande, V o ca b u
C o m o , na prática, em nom e d essa soberania o s laire, verb. “ R a iso n ”). N o C o n tra to S o cia l, a
govern os exercem seu m ando, freqüentem ente expressão assum e diversa sign ificação, com o
se tem confun dido as garantias das liberdades anota B eaulavon: “ Para R ou sseau, com o para
ind ividu ais contra o s ex ce sso s da autoridade o s so c ió lo g o s con tem p orân eos, o E stad o é,
com lim itações da soberania. A ssim pensavam p ois, um en te real, e de m odo algum um a en ti
o s ind ividu alistas, co m o Benjam in C on stant, dade abstrata; d escon h ecê lo é recair no
m as ainda hoje percebem os e co s, discretos egoísm o individualista. M as esse ente, para ele,
m as p o sitiv o s, d essas restrições n os com en tá é m oral no sentido próprio da palavra: só a
rios de um V aughan, por exem p lo. (N . de L. G . vontad e racional pode criá-lo” . (N . de L. G .
M .) M .)
42 R O U SSE A U
C a p itu lo V III
D o estado civil
C a p ítu lo IX
D o domínio re a l7 7
blico, estando respeitados seus direitos Terminarei este capítulo e este livro
por todos os membros do Estado e por uma observação que deverá servir
sustentados por todas as suas forças de base a todo o sistema social: o
contra o estrangeiro, adquirem, por pacto fundamental, em lugar de des
assim dizer, tudo o que deram por uma truir a igualdade natural, pelo contrá
cessão vantajosa ao público e mais rio substitui por uma igualdade moral
ainda a eles m esm os83. O paradoxo e legítima aquilo que a natureza pode
explica-se facilmente pela distinção ria trazer de desigualdade física entre
entre os direitos de que o soberano e o os hom ens, que, podendo ser desiguais
proprietário gozam sobre os m esm os na força ou no gênio, todos se tornam
bens, com o se verá mais adiante8 4. iguais por convenção8 6 e direito8 7.
Pode também acontecer que os ho
mens com ecem a unir-sè antes de pos 8 6 Se a liberdade natural, no estado civil,
suir qualquer coisa e que, apossando- transm uta-se em liberdade con ven cion al, é
se depois de um terreno bastante a bem de ver que a desigualdade natural (física e
todos, o fruam em com um ou dividam m ental) não pod e transform ar-se em d esigu al
dade so c ia l, salvo num a perversão do contrato,
entre si, seja em partes iguais, seja de
ou m elhor, da organ ização da socied ade. V.
acordo com proporções estabelecidas n ota de R ou sseau sobre o s m aus govern os. (N .
pelo soberano. D e qualquer forma que de L. G . M .)
se realize tal aquisição, o direito que 8 7 Sob o s m aus governos*, essa igualdade é
cada particular tem sobre seus pró som ente aparente e ilusória; serve só para
manter o pobre na sua m iséria e o rico na sua
prios bens está sempre subordinado ao usurpação. N a realidade, as leis são sem pre
direito que a comunidade tem sobre úteis aos que possu em e prejudiciais aos que
todos, sem o que não teria solidez o nad a têm , donde se segue que o estado social
liame social, nem força verdadeira o só é vantajoso aos h om ens quando tod os eles
têm algum a c o is a e nenhum tem dem ais. (N .
exercício da soberania8 5.
do A .)
* N o E m ílio torna-se explícito que “ m aus
83 À sem elh ança da passagem da liberdade g ov ern o s” são to d o s o s que R ou sseau c o n h e
natural à convencion al. (N . de L. G . M .) cia: “ O espírito universal das leis de tod os o s
8 4 N o capítulo IV do II livro. (N . de L. G . p aíses é de sem pre favorecer o forte contra o
M .) fraco, e o que tem contra o que não tem ; tal
8 5 A p lic a çã o ao “dom ínio real” do princípio inconvenien te é inevitável e sem e x c e ç ã o ” . O
geral do contrato: a ninguém é lícito aceitar o so cia lism o de R ou sseau não se resum e, p o is,
p acto e buscar m anter-se, por sua p esso a ou ao plano da co n d içã o econ ôm ica, m as alca n ça
por seus bens, à m argem do com p rom isso a c o n d iç ã o social resultante daquela. (N . de L.
total. (N . de L. G . M .) G . M .)
UVRO SECUNDO
C a pit u l o I
A soberania é inalienável
de geral, jam ais pode alienar-se, e que algo contrário ao bem do ser que dese
o soberano, que nada é senão um ser ja. Se, pois, o povo promete sim ples
coletivo, só pode ser representado por mente obedecer, dissolve-se por esse
si mesmo. O poder pode transmitir-se; ato, perde sua qualidade de povo —
não, porém, a vontade. desde que há um senhor, não há mais
Se não é, com efeito, impossível que soberano e, a partir de então, destrói-se
uma vontade particular concorde com o corpo político9 4.
a vontade geral em certo ponto, é pelo Isso não quer dizer que não possam
menos im possível que tal acordo se as ordens dos chefes ser consideradas
estabeleça duradouro e constante, pois vontades gerais, desde que o soberano,
a vontade particular tende pela sua livre para tanto, não se oponha9 5. Em
natureza às predileçÕes e a vontade tal caso, pelo silêncio universal deve-se
geral, à igualdade92. Menor possibili presumir o consentimento do povo. O
dade haverá ainda de alcançar-se uma que se explicará mais am plam ente9 6.
garantia desse acordo; ainda quando
devera sempre existir, não seria um 9 4 A n oção de soberania im plica, fo rço sa
produto da arte, mas do acaso93. O m ente, poder sem contraste. D e outra parte,
soberano pode muito bem dizer: n ão se conceb e o ente m oral, n ascid o do pacto,
“Quero, neste momento, aquilo que um sem vontade própria. Eis por que um p ovo não
tal homem deseja, ou, pelo menos, pode entregar-se a um senhor sem deixar de ser
p ovo, soberano e corpo político. (N . de L. G.
aquilo que ele diz desejar”. Mas não M .)
poderá dizer: “ O que esse homem qui 9 5 A ssim ch egam os a certas regras práticas
ser amanhã, eu também o quererei” , acerca do exercício do poder: 1) pod e-se trans
por ser absurdo submeter-se a vontade mitir o poder, nunca, porém , a vontad e geral;
a grilhões futuros e por não depender 2) qualquer com prom isso de su bm issão do
p o v o , com o tal, põe fim ao estado civil; 3) pre
de nenhuma vontade o consentir em sum e-se que as ordens da autoridade estejam
de acordo com a vontade geral, desde que esta
92 O im pulso natural é egoísta, a vida em silencie. A ob servação im põe-se quando sabe
socied ad e im põe padrões iguais para todos. m os que este capítulo é tido, por m u itos, com o
(N . de L. G . M .) cogitan do só de problem as “ ab stratos” . R ou s
93 S egu im os, n esta passagem , a correção de seau, aqui, com eça a realizar sua prom essa ini
pon tu ação p rop osta por G . B eaulavon em sua cial: d os princípios fundam entais deriva “re
ed içãó do C o n tra to c que torna inteligível a gras de ad m inistração” . (N . de L. G . M .)
frase. (N . d a T.) 9 6 N o Livro III. (N . de L. G . M .)
C a p itu lo II
A soberania é indivisível
C a p ítu lo III
privado e não passa de uma som a das em relação a seus membros e particu
vontades particulares107. Quando se lar em relação ao Estado: poder-se-á
retiram, porém, dessas mesmas vonta então dizer não haver mais tantos
des, os a-mais e os a-menos que nela se votantes quantos são os homens, mas
destroem mutuamente108, resta, com o somente tantos quantas são as associa
som a das diferenças109, a vontade ções. As diferenças tornam-se menos
geral. numerosas e dão um resultado menos
Se, quando o povo suficientemente geral112. E, finalmente, quando uma
informado delibera, não tivessem os dessas associações for tão grande que
cidadãos qualquer com unicação entre se sobreponha a todas as outras, não se
si, do grande número de pequenas dife terá mais com o resultado uma som a
renças resultaria sempre a vontade das pequenas diferenças, mas uma
geral e a deliberação seria sempre diferença única — então, não há mais
b oa110. Mas quando se estabelecem vontade geral, e a opinião que dela se
facções111, associações parciais a ex assenhoreia não passa de uma opinião
pensas da grande, a vontade de cada particular113.
uma dessas associações torna-se geral Importa, pois, para alcançar o ver
dadeiro enunciado da vontade geral,
10 7 Cf. E m ílio (l. II) — “ N o s m eus P rin c íp io s que não haja no Estado sociedade par
d e D ire ito P olítico, ficou dem onstrado que cial e que cada cidadão só opine de
nenhum a vontade particular pode ser ordenada
acordo consigo m esm o11 4. Foi essa a
no sistem a so c ia l” . (N . de L. G . M .)
108 “ C ad a interesse” , diz o M arquês
d’A rgenson, “tem princípios diversos. O acor 11 2 N ovam en te, m algrado o s respeitáveis pre
do de dois interesses particulares se form a por ced en tes, im põe-se evitar um a com preensão
o p o siç ã o ao de um terceiro.” Ele poderia ter “ m atem ática” d os term os: quanto m ais d ife
acrescen tado que o acordo de tod os o s interes rem entre si as o p in iões, tanto m ais oportun i
ses se form a por o p o siç ã o ao de cad a um. Se d ad es haverá de emergir o substrato com um , o
não h ou vesse interesses diferentes, reconhe que parece sum am ente im provável quando,
cer-se-ia com dificuldade o interesse com um , pela união em facções, as opin iões encontram
que jam ais encontraria ob stácu los. T udo anda apoio m útuo nas diferenças fa ccio sa s e não no
ria por si e a política deixaria de ser um a arte*. interesse do todo. (N . de L. G . M.)
(N . do A .) 11 3 Porque a a sso cia çã o supõe o prévio acor
* Isto é: a organização social funcionaria do de seus a sso cia d o s que se unem, contra as
natural e espontaneam ente, d isp en san do a arte o p in iões divergentes dos dem ais, exatam ente a
p olítica de revelá-la às con sciên cias. (N . de L. fim de sustentar a op in ião com um a toda a
G . M.) a sso cia ç ã o que, contud o, por não ser expres
10 9 S om a das diferenças: substrato com um às são da vontade geral, “ não passa de um a o p i
op in iões variadas. T otalm ente inútil será atri n ião particular” . (N . de L. G . M.)
buir qualquer sentido “ aritm ético” a esta 1 1 4 “ Vera c o sa è” , disse M aquiavel, “ che al-
expressão e a, outras sem elhantes, pncontra- cuni division i n u ocon o alie repubViche e atetme
d iças em R ou sseau , m uito em bora o façam giovan o: quelle n u ocon o che son o dalle sette e
bon s com entaristas. (N . de L. G . M .) da partigiani accom p agnate: quelle g iovan o
11 0 N ão se supõe, pois, para que se estabeleça che senza sette, senza partigiani, se m anten-
a vontade geral, qualquer acordo conscien te e gono. N o n potendo adunque provedere um
deliberado. M esm o no concerto tácito ou não- fondatore d ’um a republica che non siano nim i-
preparado das opin iões particulares (n ecessa c izie in quella, ha de proveder alm eno che non
riam ente discordantes, posto que correspon vi siano s e t t e ” (H ist. F lorent., Liv. VII).* (N .
dendo a im pulsos individuais e a interesses do A .)
privados), ela em erge natural e espon tanea * “ Em verdade, há divisões que prejudicam as
m ente, p ois que subjaz em todas as c o n sciên repúblicas e outras que lhes aproveitam : preju
c ia s cap acitad as a exprim ir-se. (N . de L. G . d icia is são as que suscitam seitas e partidários,
M .) p roveitosas, as que se m antêm sem seitas nem
111 N a R e p ú b lic a (1. V), P latão perguntava: partidários. N ão podendo, p ois, o fundador
“ Para um E stado, o m aior m al não é que o dum a república impedir que nela existam
dividam ? que, de um só, façam m u itos?” (N . inim izades, im pedirá ao m enos que haja se i
de L. G . M .) ta s.” (N . de L. G . M .)
54 R O U SSE A U
C a p ítu lo IV
qüentemente, não passa, para a outra todos nas mesmas condições e devem
parte, de um a vontade estranha, parti todos gozar dos mesmos direitos.
cular, nessa ocasião induzida à injus Igualmente, devido à natureza do
tiça e sujeita a erro. Assim, do mesmo pacto, todo o ato de soberania, isto é,
modo que um a vontade particular não todo o ato autêntico da vontade geral,
pode representar a vontade geral, esta, obriga ou favorece igualmente todos os
por sua vez, m uda de natureza ao ter cidadãos, de modo que o soberano
objeto particular e não pode, como conhece unicamente o corpo da nação
geral, pronunciar-se nem sobre um e não distingue nenhum dos que a
homem, nem sobre um fato. Quando, compõem. Que será, pois, propria
por exemplo, o povo de A tenas128 mente, um ato de soberania? Não é
nom eava ou destituía seus chefes, con uma convenção entre o superior e o
cedia honrarias a um, impunha penas a inferior, mas um a convenção do corpo
outro e, por múltiplos decretos espe com cada um de seus mem bros: con
ciais, indistintam ente exercia todos os venção legítima por ter como base o
atos do governo, o povo não tinha contrato social131, eqüitativa por ser
mais vontade geral propriam ente dita, comum a todos, útil por não poder ter
não agia mais como soberano, mas outro objetivo que não o bem geral, e
como m agistrado. Isto parecerá con sólida por ter como garantia a força
trário às idéias comuns, mas dai-me pública e o poder supremo. Enquanto
tempo para expor as m inhas próprias os súditos só estiverem submetidos a
idéias. tais convenções, não obedecem a nin
Deve-se compreender, nesse sentido, guém, mas somente à própria vontade,
que, menos do que o número de votos, e perguntar até onde se estendem os
aquilo que generaliza a vontade é o direitos respectivos do soberano e dos
interesse comum que os une129, pois cidadãos é perguntar até que ponto
nessa instituição cada um necessaria estes podem comprometer-se consigo
mente se submete às condições que mesmos, cada um perante todos e
impõe aos outros: admirável acordo todos perante cada um.
entre o interesse e a justiça, que dá às Vê-se por aí que o poder soberano,
deliberações comuns um caráter de por mais absoluto, sagrado e inviolável
eqüidade que vimos desaparecer na que seja, não passa nem pode passar
discussão de qualquer negócio particu dos limites das convenções gerais132, e
lar, pela falta de um interesse comum que todo o homem pode dispor plena
que una e identifique a regra do juiz à mente do que lhe foi deixado, por essas
da parte.
convenções, de seus bens e de sua
Por qualquer via que se remonte ao
liberdade, de sorte que o soberano ja-
princípio, chega-se sempre à mesma
conclusão, a saber: o pacto social esta
belece entre os cidadãos um a tal igual 131 V. as “ cláusulas” com que se definiu o
dade^30, que eles se comprometem contrato no capítulo VI do Livro I. (N. de L.
G. M.)
132 O poder soberano fica, pois, adstrito às
128 O exemplo já ocorrera na Economia Polí convenções gerais. Não se trata, portanto, de
tica. (N. de L. G. M.) limitações impostas por outro poder ou outros
129 V. notas n.°s 88, 89 e 90, supra. É o interesses, mas de limites inerentes a seu pró
mesmo princípio geral a que constantemente se prio plano de existência, à sua própria esfera
recorre. (N. de L. G. M.) de ação, à sua própria natureza essencial. Só
130 Só há verdadeira liberdade convencional assim a vontade geral subsistirá como tal. Só
na perfeita igualdade de direitos e deveres. assim se resguarda a liberdade dos indivíduos
Rousseau continua referindo-se ao conceito postos a salvo de quaisquer desigualdades nos
fundamental. (N. de L. G. M.) direitos e nas obrigações. (N. de L. G. M.)
D O C O N T R A T O SO C IA L II 57
C a p ítu lo V
o grande número de crimes assegura a minosos delas não terão mais necessi
sua impunidade quando o Estado defi dade e todos podem ver aonde isso
nha. N a república rom ana, nem o se leva. Sinto, porém, que meu coração
nado nem os cônsules jam ais tentaram m urm ura e retém m inha pena: deixe
conceder graça, e mesmo o povo não o mos essas questões para serem discuti
fazia, em bora por vezes revogasse seu das pelo homem justo que nunca fa
próprio julgamento. As graças fre lhou e nunca tenha tido, ele próprio,
qüentes anunciam que em breve os cri necessidade de graça.
C a p it u l o VI
Da lei
Pelo pacto social demos existência e ções hum anas1 4 4. Toda a justiça vem
vida ao corpo político. Trata-se, agora, de Deus, que é a sua única fonte; se
de lhe dar, pela legislação, movimento soubéssemos, porém, recebê-la de tão
e vontade, porque o ato primitivo, pelo alto, não teríam os necessidade nem de
qual esse corpo se form a e se une, nada governo, nem de leis. Há, sem dúvida,
determina ainda daquilo que deverá um a justiça universal em anada somen
fazer para conservar-se1 43. te da razão; tal justiça, porém, deve ser
Aquilo que está bem e consoante à recíproca para ser admitida entre nós.
ordem, assim o é pela natureza das coi Considerando-se humanamente as coi
sas e independentemente das conven sas, as leis da justiça, dada a falta de
sanção natural, tornam -se vãs para os
homens; só fazem o bem do mau e o
143 No Emílio (ao resumir o Contrato Social
que só contava publicar mais tarde), Rousseau
afirma, ao falar da lei, que “o assunto é abso 144 O caráter vivo e dinâmico da vida em
lutamente novo; a definição de lei resta por sociedade (v. nota anterior) é aqui oposto ao
fazer” . Vê-se, pois, que considerava sua contri estatismo duma vida conformada exclusiva
buição como algo inteiramente original. E, de mente pela ordem natural. Em todo o pará
fato, o é na medida em que seus antecessores, grafo, Rousseau esforçar-se-á por deixar bem
ao tratar da questão, ou seguiam o esquema claro que, qualquer que seja a origem superior
tradicional para pôr em relação a lei natural e que se atribua (ou melhor: que seus anteces
a lei positiva, ou, como Montesquieu fizera sores e contemporâneos atribuam) à justiça
pela primeira vez, aceitavam as leis tais como (seja Deus, seja a razão), esse primeiro princí
são para investigar suas relações com certas pio não basta para escapar à necessidade de
circunstâncias geográficas, ecológicas e so firmar convenções e estatuir leis que estabe
ciais. Abandonando qualquer relação neces leçam os padrões das relações entre os
sária com a lei natural — pois, se o corpo so homens. Permanece ainda presente algo das
cial é fruto de uma convenção, suas leis não críticas a Diderot, do capítulo anterior. De
podem ter outra fonte — , Rousseau não se fato, não se pode esperar que, cada um consul
satisfaz com saber como são as leis feitas pelo tando sua consciência, sobrevenha a conver
homem, mas quer sobretudo saber como gência espontânea de todos: desprovidas de
devem ser, tendo em conta sua origem e sua sanção natural, as leis (racionais ou divinas)
essência. Mais ainda: tendo plena noção de da justiça viriam a ser um peso injustamente
que, ao desenvolver sua teoria do contrato, só imposto aos que as obedecessem, porquanto
vira a sociedade em sua organização e estrutu não seriam obedecidas por todos. Impõe-se
ra, deseja agora examinar-lhe o dinamismo: restabelecer, mais uma vez, a igualdade de
além da “ existência e vida” do corpo social, é direitos e deveres e isso só se conseguirá pela
preciso conhecer seu “ movimento e vontade” . sanção coletiva, isto é, de todos a todos. (N. de
(N. de L. G. M.) L. G. M.)
60 R O U SSE A U
mal do justo, pois esté as observa com guais. Segue-se qüe a vontade de uma
todos, sem que ninguém as observe não é mais geral em relação à
com ele, São, pois, necessárias conven outra 1 4 7.
ções e leis para unir os direitos aos M as, quando todo o povo estatui
deveres, e conduzir a justiça a seu algo para todo o povo, só considera a
objetivo. N o estado de natureza, no si mesmo e, caso se estabeleça então
qual tudo é comum, nada devo àqueles uma relação, será entre todo o objeto
a quem nada prometi; só reconheço sob um certo ponto de vista e todo o
como de outrem aquilo que me é inútil. objeto sob um outro ponto de vista 1 48,
Isso não acontece no estado divil, no sem qualquer divisão do todo. Então, a
qual todos os direitos são fixados pela matéria sobre a qual se estatui é geral
Lei. como a vontade que a estatui. A esse
M as que será, finalmente, uma lei? ato dou o nome de lei.
Enquanto se contentarem em ligar a Quando digo que o objeto das leis é
essa palavra somente idéias metafísi sempre geral, por isso entendo que a
cas 1 4 5, continuar-se-á a raciocinar Lei considera os súditos como corpo e
sem fazer-se compreender, e, quando as ações como abstratas, e jam ais um
se disser o que é uma lei da natureza, homem como um indivíduo ou uma
não se saberá melhor o que é uma lei ação particular 1 49. Desse modo, a Lei
do Estado.
J á disse não haver vontade geral 147 O símile geométrico aqui empregado por
Rousseau, aliás como todas as comparações
visando objeto particular1 4 6 . Com de ordem matemática que se encontram no
efeito, esse objeto particular encontra- Contrato Social, tem suscitado a resistência
se dentro ou fora do Estado. Se está dos comentaristas, que o qualificam de obscu
fora do Estado, uma vontade que lhe é ro. Ora, a analogia é meramente superficial,
verbal. Ademais, toma-se claro que Rousseau
estranha não é geral em relação a ele.
aqiii figura duas hipóteses nitidamente confi
Se está no Estado, faz parte dele: for guradas acerca dos efeitos das decisões do
ma-se então, entre o todo e a parte, corpo político quando delibera sobre algo de
uma relação que produz dois seres particular: a) se o objeto está fora da alçada do
separados, sendo a parte um deles, e o Estado em questão, não pode ser do interesse
de nenhum dos membros do corpo político e,
todo, menos essa parte, o outro. M as o pois, não haverá vontade geral; b) se, no inte
todo menos uma parte não é o todo e, rior do Estado, o objeto é particular, na melhor
enquanto subsistir essa relação, não hipótese interessará a alguns membros do
existe o todo, senão duas partes desi corpo e, pois, transformar-se-á no motivo de
uma relação entre os interessados e os não-in-
teressados, com o que, novamente, não haverá
1 4 5 Nessa ironia se tem enxergado uma crí vontade geral. Comprova-se o princípio: não
tica a Montesquieu que, na, parte inicial do D o há vontade geral visando objeto particular. (N.
Espírito das Leis, esmiuçava os vários sentidos de L. G. M.)
da palavra “lei” e as relações entre a lei civil e 1 4 8 Os dois pontos de vista são o ponto de
a \ei natural. Não obstante, Rousseau não só vista dos membros do soberano, ao estatuírem
reconheceu explicitamente o valor excepcional a lei, e o ponto de vista dos súditos, que a
de Montesquieu, mas ainda buscou marcar a obedecerão, tendo-se presente que membros do
diferença de suas posições. Seriam, pois, inú soberano e súditos são os mesmos indivíduos
teis quaisquer referências irônicas ao D o Espí que constituem o corpo político. (N. de L. G.
rito das Leis, sobretudo quando “metafísica” M.)
era quase a totalidade das teorias então em 1 49 Que não há direito “ad hominem”, ou
curso sobre a lei. (N. de L. G. M.) seja, disposição legislativa que vise particular
146 V. capítulo IV deste mesmo Livro. (N. de mente determinada pessoa, é princípio que se
L. G. M.) integrou no direito público moderno. Rousseau
D O C O N T R A T O SO C IA L II 61
podérá muito bem estatuir que haverá não passam de registros de nossas
privilégios, mas ela não poderá conce vontades 1 5 3 .
dê-los nominalmente a ninguém: a Lei Vê-se ainda que, reunindo a Lei a
pode estabelecer diversas classes de universalidade da vontade e a do obje
cidadãos, especificar até as qualidades to, aquilo que um homem, quem quer
que darão direito a essas classes, mas seja, ordena por sua conta, não é mais
não poderá nomear este ou aquele para uma lei: o que ordena, mesmo o sobe
serem admitidos nelas; pode estabe rano, sobre um objeto particular não é
lecer um governo real e uma sucessão uma lei, mas um decreto, não é ato de
hereditária, mas não pode eleger um soberania, mas de magistratura 1 5 4.
rei ou nomear uma família real. Em Chamo pois de república todo o E s
tado regido por leis, sob qualquer
suma, qualquer função relativa a um
forma de administração que possa
tíbjeto individual não pertence, de
conhecer, pois só nesse caso governa o
modo algum, ao poder legislativo 1 50.
interesse público e a coisa pública 1 6 5
Baseando-se nessa idéia, vê-se logo passa a ser qualquer coisa. Todo o
cfue não se deve mais perguntar a qiiem governo legítimo é republicano 1 5 6.
cabe fazer as leis, pois são atos da von Explicarei logo adiante o que é gover
tade geral, nem se o príncipe 1 51 está no.
acima das leis, visto que é membro do A s leis não são, propriamente, mais
Estado; ou se a Lei poderá ser injusta, do que as condições da associação
pois ninguém é injusto consigo civil. O povo, submetido às leis, deve
ser o seu autor. Só àqueles que se asso
mesmo 1 5 2 , ou como se pode ser livre e
ciam cabe regulamentar as condições
estar sujeito às leis, desde que estas
da sociedade. M as, como as regula-
formula com rigor teorético o que Locke entre
vira em termos prático-empíricos: “Os regula 1 53 “Ê-se livre quando submetido às leis,
mentos serão os mesmos para o rico e para o 1 porém não quando se obedece a um homem,
pobre, para o favorito e para o cortesão, para o porque nesse último caso obedeço à vontade
burguês e para o trabalhador”. (Governo Civil, de outrem, enquanto obedecendo à lei não obe
c. X.) Já Burlamaqui, na esteira de sua escola, deço senão à vontade pública que tanto é
acreditava que o legislador, se pode derrogar minha como de quem quer que seja” — dizia
toda a lei, melhor ainda poderia suspender Rousseau no manuscrito de Neuchâtel. (N. de
seus efeitos para tal ou qual pessoa. (Princí L. G. M.)
p io s de Direito Natural, 1.1, c. X.) (N. de L. G. 154 Cf. Platão (Leis l. IV): “Se aos magis
M.J trados chamei de servidores da lei, não foi por
1 5* Ao executivo, na ação governamental, desejar mudar o sentido habitual dos termos,
toca aplicar aos casos particulares e às pessoas mas por estar persuadido de que a salvação do
a regra geral da lei. Esta, por sua própria natu Estado depende prinçipalmente disso, en
reza, obriga o legislativo a manter-se em plano quanto o contrário fatalmente trará sua ruína”.
bem diverso. (N. de L. G. M.) (N. de L. G. M.)
161 O governo, nãa importando sua forma ou 155 No sentido etimológico da palavra “repú
composição. (N. de L. G. M.) blica”. (N. de L. G. M.)
1 52 Claro que esta expressão não é rigorosa i s 6 por essa palavra não entendo somente
mente baseada na realidade concreta, pois um uma aristocracia ou uma democracia, mas em
homem pode ser injusto consigo mesmo. Mas, geral todo governo dirigido pela vontade geral,
em tal ,çaso, o seria por erro ou paixão — vol que é a lei. Para ser legítimo, não é preciso que
tamos sempre à regra socrática do “ninguém é o governo se confunda com o soberano, mas
mau voluntariamente” (v. nota 105, supra), que seja seu ministro. Então, a própria monar
agora compreendida na forma reflexiva. (N. de quia é república. Isso será esclarecido no Livro
L. G. M.) iseguinte. (N. do A.)
62 R O U SSE A U
mentarão? Será por um comum acor rejeitam; o público quer o bem que não
do, por uma inspiração súbita? O discerne. Todos necessitam, igual
corpo político dispõe de um órgão mente, de guias 1 58. A uns é preciço
para enunciar suas vontades? Quem obrigar a conformar a vontade à razão,
lhe dará a previsão necessária para e ao outro, ensinar a conhecer o que
constituir e publicar antecipadamente quer. Então, das luzes públicas resulta
os atos relativos a tais vontades? Ou a união do entendimento e da vontade
como as manifestaria em caso de no corpo social, daí o perfeito con
urgência? Com o uma multidão cega, curso das partes e, enfim, a maior
que freqüentemente não sabe o que de força do todo. Eis donde nasce a neces
seja porque raramente sabe o que lhe sidade de um Legislador.
convém, cumpriria por si mesma em
presa tão grande e tão difícil quanto
um sistema de legislação? O povo, por 1 5 7 Uma das interpretações mais simplistas
si, quer sempre o bem, mas por si nem (porém não pouco encontradiça) do pensa
sempre o encontra. A vontade geral é mento de Rousseau deseja fazê-lo um defensor
da infalibilidade da vontade geral. De equiva
sempre certa, mas o julgamento que a lente simplificação decorreu uma “mística
orienta nem sempre é esclarecido 1 5 7 . democrática” que veria no povo soberano uma
É preciso fazê-la ver os objetos tais fonte de decisões perfeitas. Ora, se Rousseau
como são, algumas vezes tais como exaltou a vontade geral, foi para deixar bem
claro que na sua ausência não há lei, nem
eles devem parecer-lhe, mostrar-lhe o
governo legítimo. Não obstante, sua simples
caminho certo que procura, defendê-la presença não constitui garantia absoluta,
da sedução das vontades particulares, senão quando esclarecida. Também a vontade
aproximar a seus olhos os lugares e os geral pode errar. É o que fica claramente
tempos, por em balanço a tentação das expresso nesse trecho, base, aliás, da teoria do
“Legislador” que a seguir se exporá. (N. de L.
vantagens presentes e sensíveis com o G. M.)
perigo dos males distantes e ocultos. 1 58 Ou seja: do Legislador. (V. nota anterior.)
Os particulares discernem o bem que (N. de L. G. M.)
C a p itu lo VII
D o Legislador
C a p ítu lo VIII
D o povo
Assim como, antes de erguer um Platão recusou dar leis aos árcades e
grande edifício, o arquiteto observa e aos cirênios, pois sabia serem ricos
sonda o solo para verificar se susten esses dois povos e não poderem admi
tará o peso da construção, o instituidor tir a igualdade; por isso, também
sábio 182 não começa por redigir leis houve em Creta boas leis e homens
boas em si mesmas, mas antes examina
ruins, pois Minos havia simplesmente
se o povo a que se destinam mostra-se
disciplinado um povo cheio de vícios.
apto a recebê-las1 8 3 . Por esse motivo
Brilharam na terra inúmeras nações
que jamais poderiam viver sob leis
182 O Legislador. (N. de L. G. M.)
183 É preciso ter em conta que progressiva boas e mesmo aquelas que o poderiam
mente o Contrato Social entra em considera durante toda a sua existência não
ções cada vez mais ligadas aos casos concretos dispuseram, para tanto, senão de um
e à prática. No Manuscrito de Genebra, Rous período muito curto. A maioria dos
seau sublinhava essa transição com as seguin
povos, como dos homens1 8 4, só são
tes palavras: “Embora trate aqui do direito e
não de conveniências, não posso proibir-me de
lançar os olhos, de passagem, a algumas des 184 A primeira versão, mais cortante, dizia:
tas, que são indispensáveis a qualquer boa “os povos, como os homens. . . ” (N. de L. G.
instituição”: (N. de L. G. M.) M.)
D O C O N T R A T O SO C IA L II 67
C a p ítu lo IX
Continuação
Assim como a natureza deu limites cidade tem a sua administração, que o
à estatura de um homem bem confor povo paga; cada distrito, a sua, tam
mado, além dos quais produz gigantes bém paga pelo povo; depois, cada
ou anões, do mesmo modo existem, província; e ainda, os grandes gover
relativamente à melhor constituição de nos, as satrapias, os vice-reinos — que
um Estado, limites da possível exten é preciso pagar cada vez mais caro na
são, a fim de que não seja demasiado medida em que se sobe, e sempre à
grande para ser bem governado, nem custa do povo infeliz — ; finalmente,
muito pequeno para manter-se por si encontramos a administração suprema
mesmo. Em todo o corpo político há que tudo esmaga. Tantas sobrecargas
um máximo de força que não se deve esgotam continuamente os súditos.
ultrapassar e do qual o Estado freqüen Longe de serem melhor governados
temente se afasta por muito cres por todas essas ordens diferentes, o são
cer 1 89. Quanto mais se estende o liame muito menos do que se houvesse uma
social, tanto mais se afrouxa, e em só acima deles. No entanto, mal res
geral um Estado pequeno é proporcio tam recursos para os casos extraordi
nalmente mais forte do que um grande. nários e, quando se tem de recorrer a
Mil razões demonstram essa máxi eles, o Estado está sempre à borda da
ma. Em primeiro lugar, a adminis ruína.
tração torna-se mais difícil nas grandes Isso não é tudo: não somente o
distâncias, como um peso se torna governo tem menos força e presteza
mais pesado na ponta de uma alavanca para fazer observar as leis, impedir as
mais longa. Torna-se também mais vexações, mitigar os abusos, prevenir
onerosa na medida em que se multi as empresas sediciosas que possam
plicam seus graus, pois, primeiro, cada surgir nos lugares afastados, como
ainda o povo tem menor afeição pelos
189 Dizia Aristóteles: “Os primeiros elemen chefes que nunca vê, pela pátria que a
tos exigidos pela política são os homens, com seus olhos é como o mundo, e pelos
o número e as qualidades naturais que devem seus concidadãos cuja maioria lhe é
ter, e o território, com a extensão e as proprie
dades que deve apresentar. . . ” (Política, l. IV, estranha. A s mesmas leis não podem
c. IV.) Montesquieu seguiu a mesma orienta convir a tantas províncias diferentes,
ção. (N. de L. G. M.) que têm costumes diversos, vivem em
D O C O N T R A T O SO C IAL II 69
C a p it u l o X
Continuação
abarque mais terreno do que parece essas épocas de perturbação para con
necessário. Assim, expandir-se-á bas seguir ditar, graças ao temor público,
tante numa região montanhosa, onde leis destrutivas que o povo jamais ado
as produções naturais, como as flores taria com sangue frio 1 98. A escolha do
tas e os pastos, exigem menos traba momento da instituição representa um
lho; onde a experiência mostra que as dos caracteres mais seguros pelos
mulheres são mais fecundas do que nas quais se pode distinguir a obra do
planícies, e onde vastas terras inclina Legislador da de um tirano1 " .
das não oferecem senão uma pequena Qual o povo, pois, que está apto à
base horizontal, a única com que se legislação? Aquele que, encontrando-
conta para a vegetação. Pode-se, pelo se já ligado por qualquer laço de ori
contrário, comprimir-se à borda do gem, interesse ou convenção, ainda
mar, até em rochedos e areias quase não sofreu o verdadeiro jugo das leis;
estéreis, porque aí a pesca pode substi que não tem nem costumes nem su
tuir em grande parte os produtos da perstições muito arraigadas; que não
terra e permanecerem os homens mais teme ser arrasado por uma invasão sú
unidos para repelir os piratas, tendo- bita; que, sem imiscuir-se nas brigas
se, aliás, mais facilidades para aliviar o entre seus vizinhos, pode resistir sozi
país dos habitantes que o sobrecar nho a cada um deles, ou ligar-se a um
regam, encaminhando-os para as colô para expulsar o outro; aquele de que
nias. cada membro pode ser conhecido por
A tais condições para formar um todos e no qual não se está de modo
povo, deve-se acrescentar uma, que algum forçado a sobrecarregar um
não pode suprir a qualquer das demais, homem com um fardo mais pesado do
mas sem a qual todas são inúteis — o que possa suportar; o que pode viver
gozo da abundância e da paz, pois o sem os outros povos e que qualquer
momento em que se forma um Estado, outro povo pode dispensar200 ; o que
como aquele em que se forma um bata não é nem rico nem pobre e pode bas
lhão, é o instante em que o corpo se tar-se a si mesmo; enfim, aquele que
mostra menos capaz de resistência e une, à consistência de um povo antigo,
mais fácil de ser destruído. Resistir-se-
á melhor numa desordem absoluta do 198 Leis que, em condições normais, só se
que num momento de fermentação, no riam aceitas, na melhor das hipóteses, por uma
qual cada um se preocupa com sua pequena parcela dos cidadãos e, portanto, ja
dignidade, e ninguém com o perigo. O mais seriam verdadeiras leis, porque lhes falta
ria a sanção da vontade geral. (N. de L. G. M.)
Estado subverter-se-á inevitavelmente 199 A instituição de tempos convulsos i scra-
se sobrevier a guerra, a fome ou a pre tirânica. (N. de L. G. M.)
sedição. 200 Se, de dois povos vizinhos, um não pudes
N a verdade, há muitos governos se passar sem o outro, tal situação seria insus
, tentável para o primeiro e bastante perigosa
estabelecidos durante essas tempesta para o segundo. Em tal caso, qualquer nação
des, mas, então, são esses mesmos prudente esforçar-se-á prontam ente para livrar
governos que destroem o Estado1 9 7 . a outra dessa dependência. A República de
Os usurpadores suscitam ou escolhem Thlascala, encravada no Império do México,
preferiu ficar sem sal a comprá-lo dos mexica
nos ou mesmo aceitá-lo gratuitamente. Os pru
1 9 7 Entenda-se: o Estado legítimo, que Rous dentes thlascalianos perceberam a arm adilha
seau cham a de “ republicano” , pois o Governo oculta sob essa liberalidade. Conservaram-se
tirânico poderá considerar-se um Estado e, livres e esse pequeno Estado, encerrado no
comumente, como tal é tratado pelos demais grande império, foi por fim o instrumento da
Estados. (N. de L. G. M.) ruína deste. (N. do A.)
72 R O U SSE A U
C a p itu lo XI
Dos vários sistemas de legislação
supõe, nos grandes, moderação de bens vez em si mesmo, mas para o Estado a
e de crédito e, nos pequenos, modera que se destina20 5. Se, por exemplo, o
ção da avareza e da cupidez. solo é ingrato e estéril ou a região
Tal igualdade, dizem, é uma quime muito acanhada para os habitantes,
ra do espírito especulativo, que não voltai-vos para a indústria e as artes,
pode existir na prática. M as, se o cuja produção trocareis pelas merca
abuso é inevitável, segue-se que não dorias que vos faltam 20 6. No caso
precisemos pelo menos regulamentá- contrário — ocupais planícies ricas e
lo ? 20 4 Precisamente por sempre tender colinas férteis? numa boa terra faltam
a força das coisas a destruir a igualda homens? — , dedicai todo o vosso cui
de, a força da legislação deve sempre dado à agricultura, que multiplica os
tender a mantê-la. homens, e expulsai as artes20 7, que só
Esses objetivos gerais de todas as contribuirão para acabar de despovoar
boas instituições devem, porém, ser a região reunindo em alguns pontos do
modificados em cada país pelas rela território os poucos habitantes existen
ções oriundas tanto da situação local tes208. Ocupais praias extensas e cô
quanto do caráter dos habitantes. modas? — cobri o mar com navios,
Sobre tais relações precisa-se conceder cultivai o comércio e a navegação; te
a cada povo um sistema particular de reis uma existência brilhante e
instituição, que seja o melhor, não tal- curta209. Se o mar só banhar em vos
sas costas rochedos quase inacessíveis,
20 4 O parágrafo anterior previa que, embora permanecei bárbaros e ictiófagos: vive
distinguindo-se pelo posto e pelos bens, jamais reis mais tranqüilos, talvez melhores, e
os mais poderosos e os mais ricos o fossem em
tal grau que pudessem invadir, pela violência
ou pela corrupção, a esfera da liberdade alheia. 20 5 Há, pois, uma variedade de situações con
Beaulavon julga que tal definição se completa cretas que leva à relatividade constitucional,
no campo político, não tocando ao moral nem nunca, porém, à inércia legal ou à incúria
ao social. Se a nota de Rousseau parece refor governamental. (N. de L. G. M.)
çar tal interpretação, impõe-se observar que 20 6 É a situação, perigosa e geradora de
esta não encontra melhor base no texto agressões bélicas, que conhecemos do capítulo
propriamente dito, sendo que depois, no Proje anterior. Se, contudo, essa é a conjuntura real,
to de Constituição para a Córsega, o sentido impõe-se aceitá-la como tal, recorrendo até
social da propriedade aparece francamente àquelas “artes” tão acusadas (exatamente
sublinhado: “cada um só terá sua parte nos nesse sentido) pelo primeiro Discurso. (N. de
bens comuns na proporção de seus serviços” e L. G. M.)
a propriedade particular, se não é destruída, 20 7 Agora, é a situação pacífica e “normal”,
resume-se “aos limites os mais estreitos que sendo-lhe adequada a solução equilibrada e
seja possível”, estando “sempre subordinada sadia da economia baseada na agricultura. As
ao bem público”. Aliás, nas Cartas da M onta “artes” tornam-se inúteis e nocivas. (N. de L.
nha, Rousseau deixa perceber que a classe G. M.)
média é aquela que mais se aproxima do ideal 208 “Qualquer ramo de comércio exterior”,
republicano, pelos costumes e condição, como diz o Marquês d’Argenson, “não espalha, num
vira em Genebra. Neste ponto, Rousseau tam reino em seu todo, senão uma falsa vantagem.
bém repele a acusação de utópico que sempre Ele pode enriquecer alguns particulares e até
se atira às suas afirmações igualitárias. O certas cidades, mas a nação como um todo
Contrato Social é um livro de princípios que, nada ganha com ele, e o povo também não fica
contudo, toca à prática e, pois, no campo prá em melhor situação.” (N. do A.)
tico combate essa desigualdade que se busca 209 Como Cartago. Ou como pensava Rous
preservar com a fraca escusa de constituir um seau que viesse a suceder em breve com a
fato consumado. A legislação é, precisamente, Inglaterra. Para fugir a essa existência “curta”,
o instrumento para corrigir as coisas tais como os povos marítimos deveriam resignar-se à cul
são, aproximando-as do que devem ser. (N. de tura bárbara dos simples pescadores. (N. de
L. G. M.) L. G. M.)
74 R O U SSEA U
C a p ítu lo XII
A fim de ordenar o todo ou para dar Primeiro, a ação do corpo inteiro agin-
a melhor forma possível à coisa públi- do sobre si mesmo, isto é, a relação do
ca, há várias relações a considerar. todo com o todo, ou do soberano com
D O C O N T R A T O SO C IA L II 75
o Estado; como logo veremos, tal rela de relação entre o homem e a Lei, a
ção compõe-se da relação dos termos saber, a da desobediência à pena,
intermediários2 1 3 . dando origem ao estabelecimento das
A s leis que regulamentam essa rela leis criminais que, no fundo, instituem
ção recebem o nome de leis políticas e menos uma espécie particular de leis
chamam-se também leis fundamentais, do que a sanção de todas as outras.
não sem alguma razão no caso de A essas três espécies de leis, junta-se
serem sábias, pois, se existe em cada uma quarta, a mais importante de
Estado somente uma boa maneira de todas, que não se grava nêm no már
ordená-lo, o povo que a encontrou more, nem no bronze, mas nos cora
deve conservá-la; se a ordem estabele ções da cidadãos; que faz a verdadeira
cida é, porém, má, por que se toma
constituição do Estado; que todos os
riam por fundamentais leis que a impe
dias ganha novas forças; que, quando
dem de ser boa? 21 4 Aliás, seja qual for
as outras leis envelhecem ou se extin
a situação, o povo é sempre senhor de
guem, as reanima ou as supre, con
mudar suas leis, mesmo as melhores,
serva um povo no espírito de sua insti
pois, se for de seu agrado fazer o mal a
tuição e insensivelmente substitui a
si mesmo, quem terá o direito de
força da autoridade pela do hábito.
impedi-lo?
Refiro-me aos usos e costumes e,
A segunda relação é a dos membros
sobretudo, à opinião 21 6, essa parte
entre si ou com o corpo inteiro, e essa
desconhecida por nossos políticos, mas
relação deverá ser, no primeiro caso,
da qual depende o sucesso de todas as
tão pequena, e, no segundo, tão grande
quanto possível, de modo que cada outras; parte de que se ocupa em segre
cidadão se encontre em perfeita inde do o grande Legislador, enquanto pa
pendência de todos os outros e em uma rece limitar-se a regulamentos particu
excessiva dependência da p ó lis — o lares que não são senão o arco da
que se consegue sempre graças aos abóbada, da qual os costumes, mais
mesmos meios21 5, pois só a força do lentos para nascerem, formam por fim
Estado faz a liberdade de seus mem a chave indestrutível.
bros. É desta segunda relação que nas Entre essas várias classes, as leis
cem as leis civis. políticas, que constituem a forma do
Pode-se considerar um terceiro tipo Governo, são as únicas ligadas ao meu
assunto.
213 Os problemas do Governo são objeto do
Livro III. (N. de L. G. M.) 216 Os usos e costumes são o aspecto habi
2* 4 Uma má constituição, só por ser má, tual; a opinião, o aspecto racional da moral
deixa de constituir uma obrigação do sobera ativamente praticada pelos homens na vida
no, ou seja, do corpo político ativo. Em outras cotidiana. Ora, a moral não se formula, nem se
palavras: a má lei política não é legítima. (N. impõe pelas leis. Assim, toda a ordem da pólis
de L. G. M.) vem a repousar naquilo que só a educação
215 Ou seja: o contrato social, que torna o pode infundir na consciência dos homens,
indivíduo totalmente dependente do Estado e preparando-os para o comportamento ade
totalmente livre em relação a seus semelhantes. quado e necessário à vida em comum. (N. de
(N. de L. G. M.) L. G. M.)
LIVRO TERCEIRO
Antes de falar das várias formas de Governo, procuremos firmar o sentido preci
so dessa palavra, que ainda não foi bem explicado.
C a p ít u l o I
Do govemo em geral
Advirto ao leitor que este capítulo o ato, e a outra física, que é o poder
deve ser lido pausadamente e que nao que a executa. Quando me dirijo a um
conheço a arte de ser claro para quem objeto, é preciso, primeiro, que eu
não quer ser atento21 7. queira ir até ele e, em segundo lugar,
Toda ação livre tem duas causas que que meus pés me levem até lá. Queira
concorrem em sua produção: uma um paralítico correr e não o queira um
moral, que é a vontade que determina homem ágil, ambos ficarão no mesmo
lugar. O corpo político tem os mesmos
21 7 Este capítulo incitava em Rousseau, que móveis. Distinguem-se nele a força e a
provavelmente o conservou das primeiras vontade, esta sob o nome de p o d e r
notas para as Instituições Políticas, uma curio legislativo e aquela, de p o d er executi-
, sa contradição sentimental. Por um lado, pare vo2 1 8 . N ada nele se faz, nem se deve
ce julgá-lo excelente, sobretudo pela explana
fazer, sem o seu concurso.
ção pseudomatemática nele contida, pois não
hesita em reproduzi-la, quase integralmente, Vimos que o poder legislativo per-
ino resumo do Contrato que incluiu no Emílio,
em flagrante contraste com o restante dessa 21 8 Será útil voltar ao segundo capítulo do
resenha sintética. De outra parte, não lhe esca Livro II, onde se condena vigorosamente a
pa o caráter demasiado abstrato, e também confusão entre “partes” e “emanações” da
precário, desse processo expositivo, daí decor soberania, tendo-se em vista, explicitamente,
rendo o pedido de atenção especial feito ao lei os “atos particulares” que muitas vezes se
tor. Halbwachs não teme aproximar esse ape- tomam, por erro, como “atos de soberania”.
gamento ao texto difícil e àquele incidente Só assim se compreenderá que, empregando
amoroso, acontecido em Veneza e ao cabo do duas expressões também utilizadas por Mon
qual Rousseau ouviu a famosa frase irônica: tesquieu, como sejam poder legislativo e poder
“Lascia le donne Zanetto, ed studia la mathe- executivo (cf. D o Espírito das Leis, l. XI, c.
matica A aproximação, embora careça de VI), Rousseau considere o executivo como
base objetiva, é assaz sugestiva, sobretudo ten mera função do Estado, enquanto o legislativo
do-se em conta, segundo as Confissões, que, é sua própria essência, ao passo que Montes
ainda em Veneza, Rousseau começou a con quieu coloca a ambos em perfeito pé de igual
vencer-se da importância dos estudos políticos. dade, como “poderes” componentes do todo
(N. de L. G. M.) estatal. (N. de L. G. M.)
80 R O U SSE A U
que o povo for mais numeroso2 40. sessem que, para encontrar essa média
Por outro lado, o crescimento do E s proporcional e formar o corpo do
tado oferecendo aos depositários da Governo, bastaria, segundo o que afir
autoridade pública mais tentações e mo, extrair a raiz quadrada do número
meios de abusar de seu poder, mais de componentes do povo 2 43 — res
força deve ter o Governo para conter o ponderia, então, que não tomo aqui
povo e mais força deverá ter o sobera esse número senão como exemplo; que
no, de sua parte, para conter o Gover as relações de que falo não se medem
no. Não me refiro aqui a uma força unicamente pelo número de homens,
absoluta, mas à força relativa das vá mas em geral pela quantidade de ação
rias partes do Estado 2 4 1 . que se combina por múltiplas causas;
Segue-se, dessa dupla relação, que a que, de resto, se, para exprimir-me por
proporção contínua entre o soberano, meio de palavras, tomo de empréstimo
o príncipe e o povo não é absoluta termos à geometria, não ignoro, no
mente uma idéia arbitrária, mas uma entanto, não ter nenhum cabimento a
conseqüência necessária da natureza precisão geométrica nas quantidades
do corpo político. Segue-se, ainda, que morais 2 4 4.
um dos extremos, a saber, o povo, O Governo é em ponto pequeno o
enquanto súdito, sendo fixo e represen que o corpo político, que o encerra, é
tado pela unidade, todas as vezes que em ponto grande. É uma pessoa moral
aumentar ou diminuir a razão dupla, dotada de certas faculdades, ativa
também a razão simples aumentará ou como o soberano, passiva como o
diminuirá, modificando-se, conseqüen Estado, e que pode ser decomposta em
temente, o termo médio2 4 2. Isso mos outras relações semelhantes, donde,
tra não haver uma constituição de por conseqüência, nasce uma propor
Governo única e absoluta, mas que ção nova e desta, uma outra ainda, de
podem existir tantos Governos diferen
tes pela natureza quantos Estados dife 2 42 Nota de G. Beaulavon: “A razão ou rela
rentes pelo tamanho. ção dupla é a que resulta da multiplicação de
Se, pondo o sistema no ridículo, dis- duas relações iguais, cada uma das quais se
chama relação ou razão simples”. (Aritmética
de Bezout, citada por Brunel, na R evista de
2 40 Dir-se-ia que, segundo certos dados da História Literária da França, julho de 1904.)
sociologia moderna, o crescimento quantita Portanto, dado que-^- = sendo E = 1,
tivo duma sociedade acarreta maior generali
zação de valores, idéias e hábitos de vida. multiplicando tem os-^p Logo, a população de
Rousseau, contudo, interessa-se pela tendência um Estado basta para determinar a forma de
das grandes sociedades a consentir na forma seu governoi. (N. de L. G. M.)
ção de grupos internos, isto é, a complicar sua 2 4 3 “Efetivamente, fazendo-se S = 10 000 e
estrutura, como dizem os sociólogos. Não só o E = 1, teremos G = V 10 000.” (G. Beaula
fato é verdadeiro, como ainda interessa direta von.) Importa acrescentar que, neste passo,
mente ao problema central da política de Rousseau começa a dar-se conta do ponto a
Rousseau, que busca a melhor maneira de pre que poderia levá-lo o paralelo matemático e
venir ou, pelo menos, mitigar a desigualdade. reage a esse hipotético mas provável ridículo,
(N. de L. G. M.) opondo-se a qualquer exagero. (N. de L. G.
241 Ou melhor: à relação das forças internas, M.)
pois do jogo entre o poder do soberano, Estado 2 4 4 Todo esse parágrafo, que poderá resultar
e Governo depende o domínio do Governo duma segunda revisão da primitiva explanação
sobre os súditos, e o do soberano sobre o pseudomatemática, praticamente a anula no
Governo. Essa relação não é arbitrária, mas que tem de abstrata e de pretensamente exata.
decorre da natureza social, como se afirma no O Rousseau moralista reassume seus direitos.
parágrafo seguinte. (N. de L. G. M.) (N. de L. G. M.)
84 R O U SSE A U
ção em que é mais penosa. A s dificul rapidez, gozar, por assim dizer, de uma
dades residem na maneira de ordenar, saúde mais ou menos robusta. Final
no todo, esse todo subalterno, de modo mente, sem distanciar-se diretamente
que em nada altere a constituição do objetivo de sua instituição, poderá
geral, ao fortalecer a sua, e que dis dele afastar-se mais ou menos, de acor
tinga sempre sua força particular, des do com a maneira pela qual se consti
tinada à própria conservação, da força tuiu.
pública consagrada à conservação do De todas essas diferenças nascem as
Estado; em uma palavra: que esteja várias relações que o Governo deve ter
sempre pronto a sacrificar o Governo com o corpo do Estado, segundo as
ao povo, e não o povo ao Governo. relações acidentais e particulares pelas
Aliás, embora o corpo artificial2”49 quais esse mesmo Estado é modifi
do Governo seja a obra de um outro cado. Freqüentemente, o melhor G o
corpo artificial e, de certo modo, não verno em si mesmo pode tornar-se o
possua senão uma vida emprestada e mais vicioso, se suas relações não
subordinada, tal não impede que possa forem alteradas segundo os defeitos do
agir com maior ou menor vigor ou corpo político ao qual pertence.
C a p ít u l o II
Ora, como é do grau da vontade que isso maior força real, porque tal força
depende o uso da força e que não varie é a do Estado, cuja medida é sempre
de forma alguma a força absoluta do igual. Eis como a força relativa ou a
Governo, segue-se que o mais ativo atividade do Governo diminui, sem
dos governos é o de um só2 5 4. que possa aumentar sua força absoluta
Unamos, pelo contrário, o Governo ou real.
à autoridade legislativa; façamos um Certo, ainda, que o expediente dos
prínqipe do soberano e tantos magis negócios se torna mais lento à medida
trados de quantos são os cidadãos, e que mais pessoas são encarregadas
veremos que a vontade do corpo, con dele; que, concedendo-se muito à pru
fundida com a vontade geral, não terá
dência, não se dá o bastante à fortuna;
maior atividade do que esta e deixará à
que se deixa fugir a ocasião e que, à
vontade particular toda a sua força.
Assim o Governo, sempre com a força de deliberar-se, se perde o fruto
mesma força absoluta, permanecerá no da deliberação.
seu mínimo de força relativa ou de Acabo de provar que o Governo se
atividade. enfraquece à medida que os magis
Essas relações são incontestáveis e trados se multiplicam, e provei, mais
outras considerações ainda mais as acima, que, quanto mais numeroso for
confirmam. Verifíca-se, por exemplo, 0 povo, tanto mais a força repressora
que cada magistrado se mostra mais deverá aumentar. Segue-se que a rela
ativo no seu corpo do que cada cida ção entre magistrados e Governo deve
dão no que lhe é próprio, e, conseqüen ser o inverso da relação entre os súdi
temente, que a vontade particular tem tos e o soberano, ou seja, que quanto
muito maior influência nos atos do
mais o Estado crescer, mais o Governo
Governo do que nos do soberano, pois deve contrair-se, de modo que o núme
cada magistrado está quase sempre
ro de chefes diminua em razão do
encarregado de alguma função do
1aumento do povo.
Governo, enquanto cada cidadão, to
mado em particular, não detém qual Ademais, só me refiro aqui à força
quer função da soberania. Aliás, quan relativa do Governo e não à sua reti
to mais o Estado se estende, tanto mais dão 2 5 5, pois, contrariamente, quanto
aumenta sua força real, conquanto não mais numeroso for o magistrado, tanto
aumente em função da extensão; o E s mais a vontade do corpo se aproxi
tado permanecendo, porém, o mesmo, mará da vontade geral, enquanto sob
aos magistrados agrada o multiplica um magistrado único essa mesma von
rem-se e o Governo não adquire com tade do corpo não passa de uma vonta
de particular. Assim se perde de um
2 5 4 Com o reconhecimento da maior ativi lado o que se pode ganhar de outro, e a
dade dos governos de um só homem, neste arte do Legislador está em saber fixar
ponto se inicia uma série de considerações
sobre as várias formas governamentais. Só têm
em vista, porém, a “força relativa” do Gover 2 5 5 Como se disse na nota anterior, Rousseau
no e a extensão numérica do povo, como se considera apenas uma das faces da questão: a
verá mais adiante. Cabe pois evitar, em que força que fica ao dispor do Governo. Diferente
pese a atitude de certos bons comentaristas, e relevante questão é saber da “retidão” com
qualquer antecipação do julgamento de Rous que se utilizará essa força, ou seja, da sua apli
seau acerca das diversas formas de governo. cação segundo a vontade geral. (N. de L. G.
(N. de L. G. M.) M.)
88 R O U SSEA U
2 5 6 Mais uma vez, a análise do caso particu caso, Rousseau concede que, no lançar os
lar e o julgamento da solução específica que fundamentos de um comportamento moral,
lhe convém fica a cargo do Legislador, aquele seja individual, seja coletivo, mais vale fiar-se
instituidor primeiro e desinteressado de que se numa intuição altruísta superior do que em
cuidou no capítulo VII do Livro II. Se já se normas propostas pelo próprio interessado. Eis
aproximou a função do Legislador na vida dos por que o final do parágrafo, onde reaparecem
povos à do educador na dos indivíduos (cf. certas expressões pseudomatemáticas (“pro
François Bouchardy), o paralelo tem todo o porção recíproca”, “relação mais vantajosa”),
cabimento, não só pela semelhança da configu não deve ser tomado no rigor do termo, senão
ração e função de ambos na doutrina rous- como simples alusão aos dois últimos capítu
seauniana, mas ainda porque, num e noutro los. (N. de L. G. M.)
C a p ítu lo III
C a p ítu lo IV
D a democracia
Aquele que faz a lei2 61 sabe, melhor não o são, porque o príncipe e o sobe
do que ninguém, como deve ser ela rano, não sendo senão a mesma pes
posta em execução e interpretada2 62. soa, formam por assim dizer um
Parece, pois, que não se poderia ter Governo sem Governo.
uma constituição melhor do que aque Não será bom que aquele que faz as
la em que o poder executivo estivesse leis as execute2 6 4, nem que o corpo do
jungido ao legislativo. No entanto, jus
tamente isso torna o Governo insufi
ciente em certos aspectos, porque as 2 6 4 Também aqui não se cuida, malgrado as
aparências, da separação de poderes. Rous
coisas que devem ser distinguidas2 63
seau já a ironizava no capítulo II do Livro II e,
se agora afirma como necessária uma distin
261 A potência legislativa. (N. de L. G. M.) ção entre o legislativo e o executivo, não p o d e
2 62 Interpretar e executar são as duas faces mos esquecer que, por esta altura, já temos
da aplicação da lei, função precípua do execu estabelecido que o legislativo é, de fato, 'um
tivo. (N. de L. G. M.) poder ou, melhor, o próprio poder inalienável e
2 63 Tudo que se relacione com o público e o indivisível, enquanto o executivo não passa de
privado, por isso mesmo deve ser distinguido. uma função, de uma “emanação” da potência.
Não se trata, ainda, da separação entre os Nessa mesma diferença se funda a necessidade
poderes, mas, antes, de bem caracterizar o ob de delegar o executivo, a fim de que nele não se
jeto do exercício desses poderes. (N. de L. G. imiscua, desviando-se, o povo, cuja principal
M.) tarefa é legislar. (N. de L. G. M.)
90 R O U SSEA U
povo desvie sua atenção dos desígnios nasse bem, não teria necessidade de sér
gerais para emprestá-la aos objetivos governado 2 68.
particulares 2 6 5. N ada mais perigoso Tomando-se o termo no rigor da
que a influência dos interesses priva acepção, jamais existiu, jam ais existirá
dos nos negócios públicos; o abuso da uma democracia verdadeira 2 69. É con
lei pelo Governo é mal menor do que a tra a ordem natural governar o grande
corrupção do Legislador, conse número e ser o menor número governa
qüência infalível dos desígnios particu do. Não se pode imaginar que perma
lares2 6 6. Estando, então, o Estado neça o povo continuamente em assem
alterado em sua substância, torna-se bléia para ocupar-se dos negócios
impossível qualquer reforma 2 6 7. Um públicos e compreende-se facilmente
povo que jam ais abusasse do Governo, que não se poderia para isso estabe
também não abusaria da indepen lecer comissões sem mudar a forma de
dência; um povo, que sempre gover- administração2 70.
Creio, com efeito, poder estabelecer
2 6 5 Rousseau aprendera com Aristóteles (Po em princípio que, quando as funções
lítica, 1. VI, c. IV) que há cinco espécies de do Governo são divididas por inúme
democracia: l.a) a que se funda na igualdade ros tribunais, os menos numerosos
de direitos políticos e tem a maioria por regra adquirem, mais cedo ou mais tarde, a
de legislação; 2.a) a que distribui a magistra
tura segundo um censo econômico módico;
maior autoridade, quando mais não
3.a) a que admite à magistratura todos os cida fosse, somente pela facilidade de resol
dãos irrepreensíveis, mas deixa que “a lei reine ver as questões, que naturalmente a
soberana” ; 4.a) nesta, basta ser cidadão, mas tanto os leva 2 7 1 .
ainda impera a lei; 5.a) em que a condição é a
mesma, porém “a soberania passa à multidão
que toma lugar à lei”, substituindo-a por 2 68 Um Governo que não abusa da lei sempre
decretos populares e deixando-se levar por está conforme à vontade geral, e um povo sem
demagogos. Sem dúvida, a classificação aristo- pre submisso à lei dispensa qualquer coerção.
télica influi neste capítulo do Contrato, porém Rousseau aponta esses casos extremos como
seria difícil aceitar o estrito paralelismo indi meras hipóteses irrealizáveis, pois o faz contra
cado nos comentários de Halbwachs. De Aris a evidência da necessidade de um Governo que
tóteles, Rousseau retém, sobretudo, a caracte caracteriza a vida de todos os povos. (N. de L.
rização dos vícios da democracia. Assim, na G. M.)
frase que anotamos, o povo que “desvia sua 2 69 A democracia pura, integral, não poderá
atenção dos desígnios gerais para emprestá-la realizar-se na prática, pois as circunstâncias e
aos objetos particulares” é aquele mesmo povo as contingências acabam sempre por exigir
do texto aristotélico que se põe em lugar da lei, formas “mistas”. Tampouco o regime das
por meio de decretos. (N. de L. G. M.) cidades-estados antigas, até certo ponto inspi-
radoras da democracia rousseauniana, corres
2 6 6 Se o governo é entregue a um pequeno nú
mero, há o risco de vê-lo abusar da lei em seu pondia à forma ideal, pois a igualdade política
interesse privado; se permanece na mão da só prevalecia no seio do grupo privilegiado dos
cidadãos ativos. (N. de L. G. M.)
totalidade dos cidadãos, o mesmo perigo há,
mas o mal é muito maior, pois a própria fun 2 70 Se o povo verdadeiramente governa como
ção de fazer leis (e, conseqüentemente, de cor um todo, nada mais poderá fazer, tornando-se
rigir os abusos) se compromete. Ora, a função improdutivo. Se delega a função, já aceitou
legítima é o princípio fundamental da organi uma forma “mista”. (N. de L. G. M.)
zação política. (N. de L. G. M.) 271 É naturalmente mais fácil abusar da lei já
feita do que fazer nova lei para corrigir o
2 6 7 Se o governo abusa das leis, impõe-se abuso — eis a clássica vantagem dos governos
reformá-las, isto é, fazer novas leis. Mas o sem virtude. Beaulavon julga encontrar na
legislativo estará impossibilitado de praticar frase uma alusão a Genebra, onde o “Conselho
tal reforma sempre que, havendo sofrido Geral” dos cidadãos cedia passo, na prática, à
influência do governo, já se encontre afastado autoridade do “Pequeno Conselho”. (N. de L.
da vontade geral, corrompido. (N. de L. G. M.) G. M.)
D O C O N T R A T O SO C IAL III 91
Além disso, quantas coisas, difíceis sárias, a esse belo espírito freqüente
de reunir, supõe esse Governo! Em mente faltou justeza e algumas vezes
primeiro lugar, um Estado muito pe clareza, e não percebeu ele que, a auto
queno2 72, no qual seja fácil reunir o ridade soberana sendo a mesma em
povo e onde cada cidadão possa sem todos os lugares, deve o mesmo princí
esforço conhecer todos os demais; pio vigorar em todo o Estado bem
segundo, uma grande simplicidade de constituído, embora mais ou menos, é
costumes que evite a acumulação de verdade, segundo a forma de gover
questões e as discussões espinhosas; no 2 7 5.- .
Acrescentemos que não há forma de
depois, bastante igualdade entre as
governo tão sujeita às guerras civis e
classes e as fortunas, sem o que a
às agitações intestinas quanto a forma
igualdade não poderia subsistir por
democrática ou popular, porque não
muito tempo nos direitos e na autori
há outra que tenda tão forte e conti
dade; por fim, pouco ou nada de
nuamente a mudar de forma, nem que
luxo 2 73 — pois o luxo ou é o efeito de
exija mais vigilância e coragem para
riquezas ou as toma necessárias; cor
ser mantida na forma original2 7 6. É
rompe ao mesmo tempo o rico e o
sobretudo nessa constituição que o
pobre, um pela posse e outro pela cobi cidadão deve armar-se de força e cons
ça; entrega a pátria à frouxidão e à vai tância, e ter presente no coração, todos
dade; subtrai do Estado todos os cida os dias da vida, o que dizia um pala
dãos para subjugá-los uns aos outros, e tino virtuoso 2 7 7 na dieta da Polônia:
todos à opinião. M aio pericu losam libertatem quam
Eis por que um autor célebre2 7 4 quietum servitiu m 2 78.
estabeleceu a virtude por princípio da
república, pois todas essas condições 2 7 5 Mais uma vez se firma que o Contrato
não poderiam subsistir sem ela. Mas, Social não é o evangelho da utopia democrá
por não haver feito as distinções neces- tica, mas um tratado sobre a essência iguali
tária do Estado legítimo, seja qual for a sua
forma de governo. Essa igualdade essencial,
2 72 Uma velha tradição — de Aristóteles a encarada em seus múltiplos aspectos, admite
Montesquieu — só aconselhava a forma variações de “mais ou menos” no que respeita
dem ocrática aos pequenos povos, suscetíveis à política e à condição material, porém man
de reunir-se em assembléias gerais e com rela tém-se íntegra enquanto princípio moral. (N.
tivamente poucas questões a discutir. (N. de L. de L. G. M.)
G. M.) 2 7 6 Para além do relativismo circunstancial e
2 73 O tema do luxo, tão em voga no século da dificuldade prática da instalação da demo
X VIII, aqui volta a aparecer, mantendo-se cracia, Rousseau denuncia ainda um perigo
Rousseau fiel à posição assumida no primeiro estrutural que lhe é peculiar: a instabilidade e a
Discurso. (N. de L. G. M.) fragilidade da forma que, fundada na
2 7 4 Montesquieu, que no D o Espírito das dade política, se revela como de fácil acesso às
Leis (1. III, c. III) dizia: “ Não é preciso muita ambições privadas e, pois, às subversões. (N.
probidade para que um Governo monárquico de L. G. M.)
ou um Governo despótico se mantenha ou se 2 7 7 O palatino da Posnânia, pai do rei da
sustenha. A força da lei em um e, em outro, o Polônia, Duque da Lorena*. (N. do A.)
braço do príncipe sempre erguido tudo regu * Palatinados eram as antigas províncias da
lam e contêm. Mas num Estado popular preci Polônia, e palatinos os seus governantes.
sa-se de um recurso a mais, que é a virtude” . Vaughan anota que a mesma máxima foi repe
Montesquieu, contudo, falara dos Estados tal tida pelo próprio rei da Polônia, Estanislau
como existiam, enquanto Rousseau, no Con Leczinski: “É preciso optar, e os que não
trato, cuida de como legitimamente devem eles podem suportar o trabalho só terão de buscar
organizar-se. Conseqüentemente, a virtude é o repouso na servidão”. (N. de L. G. M.)
um princípio sempre necessário. (N. de L. G. 2 78 “Prefiro a liberdade perigosa à tranqüila
M.) servidão.” (N. de L. G. M.)
92 R O U SSE A U
C a p ítu lo V
D a aristocracia
sê-lo por eleição28 7, meio pelo qual a geiro por intermédio de senadores
probidade, as luzes e a experiência e veneráveis do que por um a m ultidão
todos os outros motivos de preferência desconhecida ou desprezada.
e de estima pública constituem outras Em um a palavra, a melhor ordem e
novas garantias de que se será gover a mais natural é que os mais doutos
nado sabiamente. governem a m ultidão, quando se tem
Além disso, as assembléias reúnem- certeza de que o fazem visando o bene
se mais comodam ente; os negócios me ficio dela e não o seu. Não se deve
lhor se discutem e se executam com m ultiplicar em vão os recursos, nem
mais ordem e presteza; o crédito do fazer com vinte mil homens o que cem
Estado mais bem se firm a no estran- homens escolhidos podem fazer ainda
melhor. É preciso notar, porém, que o
2 8 5 Assim se desfazem várias falsas interpre interesse do corpo288, neste caso, co
tações do Contrato Social. Em primeiro lugar, m eça a enfraquecer a direção da força
sobre o sentido democrático, essencial e não
formal, do pensamento de Rousseau, que, ja
pública segundo a regra da vontade
mais se apartando do princípio republicano (v. geral, e que um a outra propensão
nota 281, supra), não hesita em favorecer a inevitável rouba às leis uma parte do
forma aristocrática eletiva. Depois, sobre a poder executivo.
interpretação excessivamente estrita que Halb Tom ando-se em consideração as
wachs, contra Beaulavon, deu ao conceito de
aristocracia em Rousseau, que aquele autor conveniências particulares, não é pre
julga limitado a uma escolha no interior de ciso nem um Estado tão pequeno, nem
uma casta ou classe privilegiada, quando em um povo tão simples e tão reto para
verdade o Contrato distingue explicitamente que a execução das leis, como num a
entre a aristocracia “natural” (de idade), a
hereditária (classe ou casta) e a puramente ele
boa dem ocracia, suceda im ediata
tiva, reservando a esta última a categoria de mente à vontade pública. Não convém,
“aristocracia propriamente dita”. Conseqüen igualmente, um a nação tão grande que
temente, razão assiste a Beaulavon para consi os chefes, distribuídos para governá-la,
derar aristocrático, no sentido rousseauniano, possam , cada um em seu departa
o Governo parlamentar de gabinete praticado
em França. Afinal, podemos estender essa mento, fazer-se passar pelo soberano e
observação a todos os governos hoje por nós começar a tornar-se independentes
considerados “democráticos”, como acima para, por fim, chegar a ser os senho
notamos, pois, presidencialista, parlamenta res289.
rista ou monarquista, neles impera a regra da
escolha eleitoral de alguns para exercer o
M as, se a aristocracia exige algumas
Governo. (N. de L. G. M.) virtudes menos que o Governo popu
28 6 Isto é, potencialmente são magistrados, lar, exige ainda outras que lhe são pró
faltando apenas realizar-se tal capacidade prias, como a m oderação entre os ricos
latente, o que pode suscitar as comoções intes- e o contentam ento entre os pobres,
tinas acusadas no capítulo anterior, enquanto
na aristocracia propriamente dita consagra-se
pois parece que nela estaria deslocada
a eleição como única regra de ascensão. (N. de um a igualdade rigorosa, que nem em
L. G. M.) Esparta foi observada.
2 8 7 É muito importante regulamentar pelas De resto, se essa form a compreende
leis a forma de eleição dos magistrados, pois,
abandonando-a à vontade do príncipe, não se
pode evitar cair na aristocracia hereditária, 288 Do pequeno corpo composto pelos gover
como aconteceu às repúblicas de Veneza e de nantes. (N. de L. G. M.)
Berna. Assim, a primeira é, há muito tempo, 289 Espalhados pelo território, os gover
um Estado em dissolução, e a segunda só se nantes não se contrastam reciprocamente e,
mantém, contudo, devido à extrema sabedoria não havendo vontade geral do Governo, cada
de seu senado: é uma exceção muito honrosa, qual passa a usar do poder em interesse pró
mas muito perigosa. (N. do A.) prio. (N. de L. G. M.)
94 R O U SSE A U
C a p it u l o VI
D a m onarquia
C a p ít u l o V II
31 8 Mais adiante (1. IV, c. V), Rousseau volta 319 Entendam-se tais “tribunais” como ór
rá à questão, tratando longamente do “tribuna- gãos corregedores ou fiscalizadores da execu
to”. (N. de L. G. M.) ção das leis. (N. de L. G. M.)
C a p ítu lo VIII
fogo grão por grão. A s regiões menos à tirania: as bestas ferozes só reinam
povoadas são assim as mais propícias nos desertos330 .
C a p ít u l o IX
renda para que um século seja o melhor de dia que o povo francês vivesse feliz e numero
todos. É preciso levar em consideração menos so, numa abastança honesta e livre. Outrora, a
o repouso aparente e a tranqüilidade dos che Grécia floresceu no seio das mais cruéis guer
fes do que o bem-estar das nações tomadas ras. O sangue lá corria aos borbotões e toda a
como um todo e, sobretudo, dos Estados mais região estava cheia de homens. Parece, disse
numerosos. O granizo destrói alguns cantões, Maquiavel, que no meio dos assassínios, das
mas raramente determina a miséria. As rebe proscrições, das guerras civis, nossa república
liões, as guerras civis assustam muito os che se tornou mais poderosa; a virtude de seus
fes, mas não determinam a verdadeira infelici cidadãos, seus costumes, sua independência
dade dos povos, que podem até chegar a tiveram mais efeito para reforçá-la do que
experimentar uma folga enquanto se disputa todas essas dissensões o tiveram para enfra
sobre quem irá tiranizá-los. É do seu estado quecê-la. Um pouco de agitação dá mais vigor
permanente que nascem suas prosperidades ou às almas, e o que faz verdadeiramente a espé
as calamidades reais: quando tudo fica esma cie prosperar é menos a paz do que a liberda
gado sob o jugo, então tudo perece, e ainda os de. (N. do A.)
chefes os destroem à vontade “ubi solitudinem * “Os tolos chamavam de humanidade o que
faciunt, pacem appellant”**. Quando os tor já era uma parte da servidão.” (Tácito: Agríco
mentos dos grandes agitaram o reino de Fran la, XXXI.) (N. de L. G. M.)
ça e o coadjutor de Paris ia ao parlamento ** Onde fazem o deserto, chamam-no de paz.”
com um punhal no bolso, tal coisa não impe- (Tácito: Agrícola, XXI.) (N. de L. G. M.)
C a p itu lo X
sua inclinação natural33 5. Se retroce para poder conservar sua forma. Ora,
desse do pequeno número para o gran se ele ainda mais se afrouxasse, disten
de, poder-se-ia dizer que ele se afrouxa, dendo-se, sua força tornar-se-ia total
mas esse progresso inverso é impossí mente nula e ele haveria, ainda menos,
vel. de subsistir. É preciso, pois, reforçar e
Com efeito, um Governo não muda contrair o mecanismo à medida que for
de forma senão quando seu mecanismo cedendo; caso contrário, o Estado, que
já gasto o deixa muito enfraquecido ele sustenta, tombaria em ruínas33 6.
33 5 A formação lenta e a expansão da repú até no dos tribunos quando eles começaram a
blica de Veneza através de suas lagunas ofere usurpar um poder ativo, pois as palavras
cem um exemplo notável dessa sucessão, e é de nenhuma influência têm sobre as coisas e,
espantar que, depois de mais de mil e duzentos quando o povo tem chefes que governam em
anos, os venezianos pareçam não encontrar-se seu lugar, seja qual for o nome que levem tais
senão ainda no segundo termo, que começou chefes, será sempre uma aristocracia.
no Serrar di Consiglio* em 1198. Quanto aos Do abuso da aristocracia nasceram as guerras
antigos duques, apesar do que diz a esse res civis e o triunvirato. Sila, Júlio César, Augusto
peito o Squitinio delia Libertà Veneta**, já se tornaram-se de fato verdadeiros monarcas e
provou que eles não foram de modo algum por fim, sob o despotismo de Tibério, o Estado
seus soberanos. foi dissolvido. A História romana não desmen
Não deixarão de objetar-me com a república te, pois, meu princípio; ela o confirma***. (N.
romana que sofreu, dir-se-á, um progresso do A.)
inteiramente contrário, passando da monar * “Serrar di Consiglio” = fechamento do con
quia para a aristocracia, e desta para a demo selho. (N. de L. G. M.)
cracia. Estou bem longe de pensar assim. ** Escrutínio da Liberdade Veneziana, obra
anônima, publicada em 1612, defendendo o
O primeiro estabelecimento de Rômulo foi um
direito dos imperadores sobre a república de
Governo misto, que degenerou rapidamente
Veneza. (N. de L. G. M.)
em despotismo. Devido a causas particulares,
*** Toda essa longa nota destina-se a empres
o Estado pereceu antes do tempo, como se vê
tar certa base histórica a um capítulo que se
um recém-nascido morrer antes de tornar-se
homem. A expulsão dos Tarqüínios foi a ver desenvolve de maneira puramente teórica. Sem
dadeira época do nascimento da república. dúvida, o caso de Veneza aparece bastante
esquematizado, quer em seus aspectos oligár-
Ela, porém, não tomou a princípio uma forma quicos (duzentas famílias dominavam a “Qua-
estável, pois se deixou a obra pela metade, rantia” e esta compunha o “Consiglio”), como
quando não se aboliu o patriciado. Ficando também a forma rígida por que é exposto o
assim a aristocracia hereditária, que é a pior caso de Roma perdeu muito com a revisão crí
das administrações legítimas, em conflito com tica, iniciada já no século XVIII, que viria
a democracia, a forma de governo, sempre acusar a relativa pobreza documentária dos
incerta e flutuante, só foi fixada, como o pro estudos da fase republicana. Vaughan ainda
vou Maquiavel, depois do estabelecimento dos condena Rousseau por forçar o pensamento de
tribunos. Só então houve um verdadeiro Maquiavel a propósito dos tribunos. (Décadas,
Governo e uma verdadeira democracia. O I, IV.) De qualquer forma, o esforço compro-
povo, com efeito, não era somente soberano, batório de Rousseau fazia-se necessário — a
mas também magistrado e juiz; o senado não passagem democracia-aristocracia-monarquia
passava de um tribunal subordinado, para não era a linha evolutiva comumente admitida
moderar e concentrar o Governo, e os próprios pelos teóricos da política. (N. de L. G. M.)
cônsules, apesar de patrícios, apesar de primei 33 6 Assim como um organismo, ao envelhe
ros magistrados, e apesar de generais absolu cer, pode lançar mão de certos recursos para
tos na guerra, em Roma não eram senão os mitigar o declínio e evitar uma súbita extinção,
presidentes do povo. também o Estado, em sua tendência a degene
Viu-se, desde então, o Governo tomar sua ten rar, pode recorrer a processos reconstituintes
dência natural e orientar-se fortemente para a como esses de contrair o Governo já compro
aristocracia. O patriciado abolindo-se, como metido pelas divisões, imposições dos interes
que por si mesmo, não se encontrava mais a ses privados, etc., antes que tais males mais se
aristocracia no corpo dos patrícios, como se expandam, acompanhando qualquer expansão
dá em Veneza e em Gênova, mas no corpo do do próprio corpo governamental. (N. de L. G.
senado, composto de patrícios e de plebeus, e M.)
D O C O N T R A T O SOCIAL 107
De dois modos pode dar-se o caso pam isoladamente o poder, que não
da dissolução do E stado33 7. devem exercer senão enquanto corpo,
Prim eiro, quando o príncipe não o que não é menor infração das leis e
mais adm inistra o Estado de acordo produz desordem ainda maior. Têm-se
com as leis e usurpa o poder soberano. então, por assim dizer, tantos príncipes
Dá-se, então, um a m udança notável quantos m agistrados, e o Estado, não
que consiste em contrair-se não o menos dividido do que o Governo, pe
Governo, mas o Estado; quero com rece ou m uda de forma.
isso dizer que o grande Estado se dis Quando o Estado se dissolve, o
solve, que se form a outro dentro dele, abuso do Governo, qualquer que seja,
composto unicamente de mem bros do tom a o nome de anarquia33 9. A distin
Governo, o qual, em relação ao resto guir-se: a democracia degenera em
do povo, não passa de senhor e tirano. oclocracia3 40, a aristocracia em oli
Desse modo, no momento em que o garquia3 41; acrescentarei que a reale
Governo usurpa a soberania, rompe-se za degenera em tirania, mas esta pala
o pacto social e todos os simples cida vra é equívoca e exige explicação3 42.
dãos, repostos de direito em sua liber No sentido vulgar, um tirano é um
dade natural, estão forçados, mas não rei que governa com violência e sem
obrigados a obedecer3 3 8. levar em consideração a justiça e as
Acontece tam bém o mesmo caso leis. No sentido preciso, um tirano é
quando os membros do Governo usur- um particular que se arroga a autori
dade real, sem ter direito a isso. Assim
33 7 No fundo, só há uma causa de dissolu os gregos entendiam a palavra tirano;
ção: a usurpação do poder soberano pelo aplicavam -na indiferentemente aos
Governo, distinguindo Rousseau o caso em bons e m aus príncipes, cuja autoridade
que a usurpação se faz pelo corpo governa nao fosse legítima3 43. Desse m odo, ti-
mental, daquele em que os usurpadores são os
membros desse corpo considerados pessoal
mente. Ajuntemos que, em bora permaneçamos 33 9 No sentido estrito: a ausência de liames
no plano teórico, a passagem que aqui se inicia políticos, pois já não os há legítimos. A pala
indubitavelmente tem aplicações diretas à vida vra anarquia, no texto, não corresponde ao
política do tempo, deixando transparecer a sentido moderno de ausência de Governo, seja
aversão à monarquia tirânica ou despótica que por causa da desordem social, seja como aspi
caracterizava o sentimento cívico de Rous ração de um individualismo extremo. (N. de L.
seau. (N. de L. G. M.) G. M.)
338 Voltamos, assim, à teoria geral do con 3 40 Governo do populacho. (N. de L. G. M.)
trato social: os governos que usurpam a sobe 3 41 Governo de poucos, de um pequeno nú
rania, a um só tempo, colocam-se fora da pólis mero. (N. de L. G. M.)
como infratores da lei e decretam a morte do
Estado, que só existe enquanto impera a vonta 3 42 Há, pois, como notou Ha\bwac\vs>, Ve
de geral, isto é, enquanto todos os cidadãos nhas de aegenerescencia estatal: uma segue a
são detentores da soberania. Recai-se, pois, no evolução dem ocracia-aristocracia-m onarquia,
estado de natureza e, em sua liberdade natural, a outra faz-se pela passagem do legítimo ao
os homens só se dobrarão à força. “ Não estão ilegítimo. (N. de L. G. M.)
obrigados a obedecer” , diz Rousseau. Com 3 4 3 “Omnes enin et habentur et dicuntur
razão, Beaulavon registra que, se o Contrato tyranni, qui potestate utuntur perpetua in ea
Social deixa de recomendar a resistência à tira civitate quae libertate usa est. ” (Corn. Nep. in
nia — como todos os teóricos libertários, cujo Miltiad, cap. VIII.)* É verdade que Aristóteles,
ponto máximo são os “ monarcômacos” , defen Etic. Nicom ., Liv. VIII, c. 10, distingue o tira
sores do direito de supressão física do usurpa no do rei, salientando que o primeiro governa
dor — , essa abstenção se funda na certeza, em seu próprio proveito e o segundo somente
registrada no cap. VIII do Livro II, de ser no de seus súditos, mas, além de todos os auto
irrecuperável, para um povo, a liberdade perdi res gregos, de um modo geral, tomarem a pala
da. (N. de L. G. M.) vra tirano num outro sentido, como se vê
108 R O U SSE A U
sobretudo pelo Híeron de Xenofonte, con poder à custa da liberdade da cidade (isto é, do
cluir-se-ia da distinção de Aristóteles que, Estado), também é significativa, do ponto de
desde o começo do mundo, não existiu ainda vista etimológico, para a compreensão da frase
um único rei. (N. do A.) que se segue — tirano é quem usurpa, isto é,
* A citação de Cornélio Nepos, se importa usa, por tê-la arrebatado, a liberdade do corpo
para atestar que tirano é aquele que adquire o político. (N. de L. G. M.)
C a p itu lo XI
D a morte do corpo político
3 4 4 Resumindo o capítulo anterior, este pará 3 4 5 Arte, num sentido apenas relativo, pois
grafo reafirm a a perecibilidade do Estado e não se deve conceber o contrato social como
sua principal razão, que é ser obra humana. algo inteiramente “ artificial” , “ sobrejuntando”
Considerando o eterno como inalcançável a existência humana, como desejou Durkheim.
para o homem, Rousseau abandona uma velha Se a constituição é obra da vontade coletiva,
tenáência áos filósofos dos séculos XVII e os termos do contrato decorrem da natureza
XVIII, que sempre propendiam a tom ar como das coisas, da qual os homens se tornam cons
absolutos abstratos o Homem, o Poder, a cientes exatamente para não contrariar, o que
Autoridade. O homem, como tudo a que ele se sempre lhes será funesto. A rigor, pode-se dizer
relaciona, não escapa à transitoriedade ine que o Estado é um a obra hum ana fundada na
própria natureza humana. Essa capacidade do
rente à sua condição — de tal sorte abre-se
homem para, por assim dizer, “desdobrar-se” ,
para os modernos a perspectiva de um verda
dominando como ser consciente seus impulsos
deiro historicismo capaz de descrever os feitos de criatura natural primária, constitui, sem dú
humanos como um fluxo de entidades, em rá vida, o fulcro da filosofia de Rousseau e a base
pida sucessão. Eis o que Herder e K ant apren de seus dois principais desenvolvimentos: a
deriam com Rousseau. (N. de L. G. M.) política e a educação. (N. de L. G. M.)
D O C O N T R A T O SO C IAL 109
lisar-se e o indivídiio continuar a viver. ria conservá-las por tão longo tempo.
Um homem torna-se imbecil e vive, Se o soberano não as tivesse reconhe
m as, desde que o coração deixa de fun cido como constantem ente salutares,
cionar, o animal m orre3 4 6. ele as teria revogado mil vezes. Eis por
O Estado de form a algum a subsiste que, em todo Estado bem constituído,
pelas leis, mas sim pelo poder legislati as leis, longe de se enfraquecerem, ga
vo3 4 1. A lei de ontem não obriga hoje, nham continuam ente nova força; o
m as o consentimento tácito presume-se preconceito3 48 da antiguidade as
pelo silêncio e presume-se que o sobe torna cada dia mais veneráveis, en
rano confirma incessantemente as leis quanto, onde as leis ao envelhecer se
que, podendo, não ab-rogou. Tudo o enfraquecem, isso prova não haver
que um a vez declarou querer, quererá mais poder legislativo e não mais estar
sempre, a menos que o revogue. vivendo o Estado.
Por que, então, se confere tanto res
peito às antigas leis? Justam ente por 3 4 7 A lei, em si mesma, é mera expressão da
serem antigas. Deve-se crer que só a vontade soberana. Quando a identifica com a
excelência das vontades anugas pode- potência legislativa em ação, Rousseau grafa a
palavra com maiúscula, assim distinguindo-a
de sua acepção comum que significa algo tran
3 4 6 Os paralelos com a realidade biológica sitório e só adquirindo alguma estabilidade na
têm valor e função muito relativos no pensa medida em que continua a corresponder à von
mento de Rousseau, que deles se utiliza como tade do soberano. (N. de L. G. M.)
meros recursos expositivos. V. Robert Dera- 3 48 Preconceito, aqui, não traz o sentido
thé: Jean-Jacques Rousseau et la Science Poli pejorativo atual. É, rigorosamente, o conceito
tique de Son Temps, Paris, 1950. (N. de L. G. que se antecipa pelo simples fato de serem
M.) antigas tais leis. (N. de'L. G. M.)
C a p ítu lo X II
C a p ítu lo XIII
Continuação
Não basta que o povo reunido tenha dicas pela simples d a ta 3 52, qualquer
um a vez fixado a constituição do E sta assembléia do povo que não for convo
do sancionando um corpo de leis; não cada pelos m agistrados designados
basta, ainda, que tenha estabelecido para esse fim e segundo as formas
um G overno perpétuo ou que, de um a prescritas deverá considerar-se ilegí
vez por todas, tenha promovido a elei tim a, e tudo o que nela se fizer, nulo,
ção dos m agistrados; além das assem porquanto a própria ordem de reunir-
bléias extraordinárias que os casos se deve em anar da Lei.
imprevistos podem exigir, é preciso Quanto à repetição m ais ou menos
que haja outras, fixas e periódicas, que freqüente das assembléias legítimas,
nada. possa abolir ou adiar, de tal depende ela de tantas considerações,
m odo que, no dia previsto, o povo se que não se poderia a tal propósito esta
encontre legitimamente convocado belecer regras precisas. Pode-se unica
pela lei, sem que para tanto haja neces mente dizer, de modo geral, que, quan
sidade de qualquer outra convocação to mais força possua o Governo, com
form al3 51. tanto mais freqüência deve m ostrar-se
M as, além dessas assembléias, jurí- o soberano.
Dir-me-ão: isso pode convir a um a
3 51 Previa a constituição de Genebra a reu única cidade, m as que fazer quando o
nião anual do Conselho Geral (assembléia da
totalidade dos cidadãos) para eleger os síndi 3 52 O simples fato de a lei fixar a data atribui
cos. O “ Pequeno Conselho” suspendeu tal reu plena legitimidade à assembléia. (N. de L. G.
nião, infringindo a lei. (N. de L. G. M.) M.)
DO CONTRATO SOCIAL lll
C a p itu lo XIV
Continuação
C a p itu lo XV
Desde que o serviço público deixa fim, soldados para escravizar a pátria
de constituir a atividade principal dos e representantes para vendê-la.
cidadãos e eles preferem servir com É a confusão do comércio e das
sua bolsa a servir com sua pessoa, o artes, é o ávido interesse do ganho, é a
Estado já se encontra próximo da frouxidão e o amor à comodidade que
ruína. Se lhes for preciso combater, trocam os serviços pessoais pelo di
pagarão tropas e ficarão em casa; se nheiro. Cede-se uma parte do lucro,
necessário ir ao conselho, nomearão para aumentá-lo à vontade. Dai ouro, e
deputados e ficarão em casa. À força logo tereis ferros. A palavra finança é
de preguiça e de dinheiro, terão, por uma palavra de escravos, não é conhe-
DO CONTRATO SOCIAL 113
pode ser alienada3 6 6, consiste essen na; vem-nos do Governo feudal3 70,
cialmente na vontade geral e a vontade desse Governo iníquo e absurdo no
absolutamente não se representa. É ela qual a espécie humana só se degrada e
mesma ou é outra, não há meio-ter o nome de homem cai em desonra3 71.
mo3 6 7. Os deputados do povo não são, Nas antigas repúblicas, e até nas
nem podem ser seus representantes; monarquias, jamais teve o povo repre
não passam de comissários seus, nada sentantes, e não se conhecia essa pala-
podendo concluir definitivamente3 68. vra3 72. É bastante singular que em
É nula toda lei que o povo diretamente
3 68 V. nota anterior. A cerrada argumentação
não ratificar; em absoluto, não é lei. O de Rousseau, neste ponto, tornou-se fonte de
povo inglês pensa ser livre e muito se acesas controvérsias doutrinárias e jurídicas.
engana, pois só o é durante a eleição O Contrato Social opõe-se a Montesquieu,
dos membros do parlamento; uma vez negando que a simples existência de deputados
estes eleitos, ele é escravo, não é nada. eleitos garanta às leis o selo da vontade popu
lar. Isso só acontece quando o deputado dispõe
Durante os breves momentos de sua de um “mandato imperativo” de seus eleitores,
liberdade, o uso, que dela faz, mostra e maior concessão não faz Rousseau ao princí
que merece perdê-la3 69. pio representativo. Na Assembléia revolucio
nária, o ponto suscitaria violentos debates, não
A idéia de representantes é moder- trepidando Robespierre em afirmar que cada
lei, para exprimir a vontade soberana, devera
Gerais dividiam-se no Primeiro Estado, com ser submetida ao plebiscito (referendum popu
posto de representantes da nobreza, no Segun lar, na moderna linguagem constitucional).
do Estado, formado pelos representantes do Siéyès faria a defesa do sistema representativo,
clero, e no Terceiro Estado, que reunia os que foi o adotado, integrando-se na estrutura
representantes da burguesia, no primitivo sen constitucional da França e dos Estados Uni
tido da palavra, isto é, dos habitantes dos bur dos, imitando-a, depois, todas as constituições
gos. Como a nobreza e o clero dispunham de democráticas modernas. Sob Napoleão, o prin
privilégios, Rousseau pertinentemente acusa- cípio representativo sofreu sério abalo (então
os de defenderem interesses particulares e, Siéyès defendia diferente doutrina. . .), pois o
pois, de não se integrarem na vontade geral, imperador passara a ser o único representante
enquanto a burguesia não privilegiada, por da vontade de Deus e da nação, enquanto o
isso mesmo, pode ser identificada com o inte Corpo Legislativo baixava à categoria de mero
resse público, se não concretizando, ao menos órgão técnieo-legiferante. Terá sido este, possi
aproximando-se da vontade geral. Ademais, o velmente, o primeiro esboço do sistema de que,
Terceiro Estado é o mais numeroso (estimava- geralmente, se servem os regimes autoritários.
se, em 1789, que representava dezenove vinte (N. de L. G. M.)
avos da população de França). Essa mesma 3 69 Ataque frontal a Montesquieu que, sim
argumentação será retomada no famoso Que é plificando otimisticamente o modelo inglês,
o Terceiro E stado, de Siéyès, que a ela juntou não percebera que nos interstícios eleitorais a
uma defesa da representação parlamentar vontade popular não se exprime. (N. de L. G.
(condenada por Rousseau) para estabelecer, ao M.)
menos na estrutura formal, o princípio e 3 70 Como os Estados Gerais, compostos de
funcionamento da Assembléia Constituinte representantes dos “três Estados”, vêm do An
revolucionária, modelo seguido pelas demo tigo Regime francês, Rousseau tem razão em
cracias. (N. de L. G. M.) dar raízes feudais ao parlamentarismo. (N. de
L. G. M.)
366 Cf. 1. II, c. I. (N. de L.G.M.)
371 . . . ”o nome de homem”, em sentido
3 6 7 O fundamento psicológico é claro e estrito, pois, pela “homenagem”, estabelecia-se
consistente: não se pode querer por outrem. um nexo de vassalagem, tornando-se o vassalo,
No máximo, podemos exprimir a vontade daí por diante, “homem de alguém”. (N. de L.
alheia, à condição, porém, de ser uma vontade G. M.)
conclusa e explícita. Logo, o deputado não 3 72 Nos Estados antigos, mesmo onde um se
pode “representar” o povo, mas apenas expri nado preparava as leis (Atenas, Roma), estas
mir a sua vontade, depois de firmada e formu só adquiriam vigor depois de submetidas dire
lada. (N. de L. G. M.) tamente ao povo. (N. de L. G. M.)
DO CONTRATO SOCIAL 115
C a p ítu lo XVI
De como a instituição do governo não é
de modo algum um contrato
Uma vez bem estabelecido o poder no, considerado como tal, deter o
legislativo, resta estabelecer do mesmo poder executivo, o direito380 e o
modo o poder executivo, porquanto fato381 confundir-se-iam de tal modo
este último, que só obra por meio de
atos particulares, não sendo da essên que não se saberia mais o que é lei e o
cia do outro, dele é naturalmente sepa que não é, e o corpo político, assim
rado3 79. Se fosse possível ao sobera-
380 A lei, a expressão da vontade geral. (N.
3 79 Conclui-se, pois, a completa oposição a de L. G. M.)
Montesquieu: se este separa os poderes segun 381 O caso particular concreto a que se faz a
do a função, Rousseau os distingue segundo a aplicação da lei por uma decisão do magis
natureza. (N. de L. G. M.) trado. (N. de L. G. M.)
DO CONTRATO SOCIAL 117
C a p ít u l o X V II
Da instituição do governo
dentro da regra393. Não é possível ins maneira legítima e sem renúncia aos
tituir o Governo por qualquer outra princípios acima estabelecidos.
393 Tornou-se clássica a objeção de Beaula- que o cidadão, membro do soberano, possa
von, endossada por Vaughan, segundo a qual. aparecer como magistrado temporário, pois já
desde que se constitui em democracia, o povo o vimos em outra dupla relação, qual seja a de
já não tem o direito de designar um rei. Para membro do soberano e súdito do Estado; 3.°)
Vaughan, há contradição com o capítulo ante não é a soberania, mas o poder executivo, que
rior, pois esta escolha do rei seria um contrato passa às mãos do monarca, e, uma vez este
entre povo e Governo, um ato particular e, designado, extingue-se a assembléia sob regra
portanto, ilegítimo. Halbwachs, o terceiro dos democrática, para restar o soberano na plena
grandes comentaristas do C ontrato Social, posse da soberania e o monarca no exercício
opõe-se a tais objeções argumentando que: 1 .°) de sua função executiva. Se a fórmula de
a regra democrática que se impõe pela simples Rousseau parece desnecessariamente compli
instalação da assembléia não implica a adoção cada, cumpre notar que, graças a ela, chega
de tal ou qual forma de governo (tendo idên mos a uma instituição monárquica escolhida
tico sentido o texto inspirador de Hobbes, v. em função do interesse comum e não tendo em
nota 392, supra); 2.°) o povo, como soberano, vista determinada pessoa que se quer como rei.
decide criar um Governo monárquico, e, como Só depois de escolhida a forma de governo e
assembléia democrática, designa a pessoa que que se passa a considerar o problema da esco
o exercerá, sem que vá contradição em admitir lha dos governàntes. (N. de L. G. M.)
C a p itu lo XVIII
que não se pode dar ao caso odioso3 9 5 venir ou retardar essa infelicidade,
senão aquilo que não se lhe pode recu sobretudo quando não têm necessidade
sar em todo o rigor do direito. É ainda, de convocação formal, pois então o
graças a essa obrigação que o príncipe príncipe não poderia impedi-las sem
consegue vantagem para conservar o abertamente declarar-se infrator das
seu poder malgrado o povo, sem que se leis e inimigo do Estado.
possa dizer que o haja usurpado, pois,
A abertura dessas assembléias, que
parecendo usar somente seus direitos,
só têm por objeto a manutenção do
é-lhe muito fácil dilatá-los e, pretex
tando a tranqüilidade pública, impedir trabalho social, deve sempre se fazer
a realização de assembléias destinadas por duas proposições que jam ais se
a restabelecer a boa ordem, prevàle- podem suprimir e que são submetidas
cendo-se assim de um silêncio que im separadamente a sufrágio.
pede romper-se ou de irregularidades A primeira é: “ Se apraz ao soberano
que faz cometer, para em seu favor conservar a presente forma de gover
supor a aprovação daqueles que o no .
medo faz calar e para punir aqueles A segunda é: “ Se apraz ao povo dei
que ousam falar. Eis como os decênvi- xar a administração aos que se encon
ros, eleitos a princípio por um ano e
tram atualmente encarregados dela”.
depois conservados por mais um ano,
tentaram reter perpetuamente o poder, Suponho, neste ponto, o que creio
não mais permitindo a reunião dos ter demonstrado, isto é, que não há no
comícios. Valendo-se ainda desse meio Estado nenhuma lei fundamental que
fácil é que todos os governos do não possa ser revogada, nem mesmo o
mundo, uma vez revestidos da força pacto social39 7, pois, se todos os cida
pública, mais cedo ou mais tarde usur
dãos se reunissem para, de comum
pam a autoridade soberana.
As assembléias periódicas, das acordo, romper esse pacto, não se pode
quais falei acima39 6, servem para pre- duvidar que fosse muito legitimamente
rompido. Grotius chega até a pensar
39 5 Na tradição jurídica romana, o “caso que cada um pode renunciar ao Estado
odioso” é aquele em que o exercício do direito do qual é membro e retomar sua liber
reivindicado pode trazer perigos, donde a má dade natural e seus bens, saindo do
xima: “O dia restringenda, fa v o re s a m plian di”.
(N. de L. G. M.) país398. Ora, seria absurdo que todos
39 6 Cf. c. XIII. A insistência no recurso à os cidadãos reunidos não pudessem o
convocação das assembléias periódicas, clara que pode cada um deles em separado.
alusão ao caso de sua cidade natal, valeu a
Rousseau a queima pública, em Genebra, do
C ontrato S ocial e a ordem de prisão contra seu 39 7 Cf. 1.1, c. VII. (N. de L. G. M.)
autor. O Procurador-Geral Tronchin apontou 3 98 É claro que não se sai dele para escapar
passagens deste capítulo ao “Pequeno Conse ao dever e furtar-se a servir à pátria no
lho” e tanto bastou para desencadear a reação momento em que tem necessidade de nós. A
contra o até então venturoso- “cidadão de fuga seria, então, criminosa e punível; não
Genebra”. (N. de L. G. M.) haveria retirada, mas deserção. (N. do A.)
LIVRO QUARTO
C a p it u l o I
Enquanto muitos homens reunidos propuser não fará senão dizer o que
se consideram um único corpo, eles todos já sentiram, e não cabem nem
não têm senão uma única vontade que brigas nem eloqüência para fazer com
se liga à conservação comum e ao que se transforme em lei o que cada
bem-estar geral. Então, todos os expe um já resolveu fazer, desde que esteja
dientes do Estado são vigorosos e certo de que os demais farão como ele.
simples, suas máximas claras e lumi O que engana os discutidores é que,
nosas; absolutamente não há qualquer não vendo senão Estados mal consti
interesse confuso, contraditório; o bem tuídos desde a origem400, chocam-se
comum se patenteia em todos os luga com a impossibilidade de neles manter
res e só exige bom senso para ser per semelhante polícia, rindo-se401 só com
cebido. A paz, a união, a igualdade são imaginar todas as idiotices que um
inimigas das sutilezas políticas. Os ho impostor esperto, um discursador insi
mens corretos e simples são difíceis de nuante poderia impingir ao povo de
enganar, devido à sua simplicidade. Paris e de Londres. Não sabem que o
Não os impressionam de modo algum povo de Berna submeteria Cromwell
as astúcias e os pretextos rebuscados, aos guizos e os genebrinos passariam o
nem chegam mesmo a ser bastante Duque de Beaufort pela disciplina402.
sutis para serem tolos. Quando se
vêem, entre os povos mais felizes do hoje, resolvem os problemas comuns pelo sis
mundo, grupos de camponeses regula tema da democracia direta. A referência tam
bém aparece no Projeto para a Córsega. (N. de
mentarem os negócios do Estado sob L. G. M.)
um carvalho e se conduzirem sempre 400 Essa, a maior deficiência do método de
sabiamente, pode-se deixar de despre Montesquieu: quando se considera apenas a
zar os rebuscamentos das outras na realidade imediatamente observável, corre-se o
ções, que com tanta arte e mistério se risco de aceitar por normal a perversão genera
lizada. (N. de L. G. M.)
tornam ilustres e miseráveis?3 99 401 A tendência a ironizar a incapacidade
Um Estado assim governado tem popular é dada como mais um traço ptóptio
necessidade de bem poucas leis e, à dos “filósofos” da ilustração, de um Voltaire,
medida que se torna preciso promulgar por exemplo. (N. de L. G. M.)
402 Os guizos e a disciplina eram os castigos
outras novas, reconhece-se tal necessi
então comumente impostos aos perturbadores
dade universalmente. O primeiro que a da ordem pública. O Duque de Beaufort era
um dos líderes da “fronda”, rebeiião que se
3 99 Para Rousseau, a Suíça fornecia dois levantou em Paris, durante a regência de Ana
exemplos aos países mais populosos, ricos e d’Áustria, com o fim ostensivo de expulsar
desenvolvidos da Europa: o modelo constitu Mazarino de França. Quanto a Cromwell,
cional de Genebra e o modelo vivo da exis Rousseau diria que “só foi dado por tirano de
tência frugal e pacífica das comunidades rurais pois de ter passado, durante quinze anos, por
de certos cantões montanheses. Genebra, por ser o vingador da lei e o defensor da religião”.
esta altura, já o desiludira. Então cresce seu (Carta a Usteri, 18 de julho de 1763.) (N. de L.
apegamento pelos camponeses simples que, até G. M.)
124 ROUSSEAU
Quando, porém, o liame social co Cada um, desligando seu interesse do
meça a afrouxar e o Estado a enfraque interesse comum, bem sabe que não o
cer, quandc os interesses particulares pode isolar completamente; sua parte
passam a se fazer sentir e as pequenas do mal público, porém, não lhe parece
sociedades a influir na grande, o inte nada, em face do bem exclusivo de que
resse comum se altera e encontra pretende apropriar-se. Excetuado esse
opositores, a unanimidade não mais bem particular, ele deseja, tão forte
reina nos votos, a vontade geral não é mente quanto qualquer outro, o bem
mais a vontade de todos403, surgem geral em seu próprio interesse. Mesmo
contradições e debates, e o melhor quando vende seu voto a peso de
parecer não é aprovado sem disputas. dinheiro, não extingue em si a vontade
Enfim, quando o Estado, próxirrto geral — ilude-a. A falta que comete é
da ruína, só subsiste por uma forma mudar a natureza da questão e respon
ilusória e vã, quando se rompeu em der coisa diversa daquilo que se lhe
todos os corações o liame social, quan pergunta, de modo que, em lugar de
do o interesse mais vil se pavoneia dizer, com seu voto, “é vantajoso para
atrevidamente com o nome sagrado do o Estado” , ele diz “é vantajoso para tal
bem público, então a vontade geral homem ou tal partido que seja apro
emudece40 4 — todos, guiados por vada tal ou qual proposta” . Assim, a
motivos secretos, já não opinam como lei da ordem pública nas assembléias
cidadãos, tal como se o Estado jamais não está tanto em nelas manter a von
tivesse existido, e fazem-se passar tade geral, quanto em fazer com que
fraudulentamente, sob o nome de leis, sempre seja consultada e sempre res
decretos iníquos cujo único objetivos é ponda40 6.
o interesse particular. Teria aqui muitas reflexões a fazer
Concluir-se-á daí que a vontade sobre o mero direito de votar em todo
geral esteja aniquilada e corrompida? o ato de soberania, direito do qual de
Não; ela é sempre constante, inalte modo algum se poderá despojar os
rável e pura, mas encontra-se subordi
nada a outras que a sobrepujam40 5. cidadãos, e sobre o referente a opinar,
a propor, a dividir, a discutir 40 7, que o
403 Impõe-se bem compreender esse trecho, Governo tem sempre extremo cuidado
cuja linguagem é pouco precisa. Sabemos que
a vontade geral não precisa ser a vontade de em reservar para seus membros. Essa
todos, nem sequer da maioria — é o que há de importante matéria, no entanto, exigi
comum na vontade de todos. Aqui Rousseau ria um tratado à parte e não posso,
se refere à vontade pretensamente geral, resul
tante de uma coalização facciosa que se dispôs neste, dizer tudo.
seguir uma maioria para consagrar seu inte
resse particular. (N. de L. G. M.) 40 6 Beaulavon duvida da possibilidade de
40 4 Agora, trata-se da vontade geral. Volta conseguir-se, por meio de leis regulamentares
mos àquele trecho da “Dedicatória” do segun do funcionamento das assembléias, tal resulta
do D iscurso em que se fala dos povos, que, do. Parece, contudo, que “lei da ordem públi
uma vez habituados à servidão, já não sabem ca”, nesse passo, significa antes a regra moral
viver fora dela. (N. de L. G. M.) imposta pelo interesse público, isto é, uma
40 5 Confirma-se, pois, a interpretação que daquelas leis que não se gravam no bronze,
estas notas vêm dando à natureza essencial da mas no coração, como se diz no próprio C on
vontade geral. Substrato comum das consciên trato Social. A reação moral impedirá as coali
cias individuais, reflexo do processo de sociali zões facciosas, que desviam a consulta à von
zação de cada um e todos os indivíduos, a von tade geral e adulteram sua resposta. (N. de L.
tade geral está sempre presente neles. Mesmo o G. M.)
ato mais egoísta não a elide, senão apenas 40 7 Distinguem-se meticulosamente os mui
passa por sobre ela. Ou, então, nela mesma tos passos, complementares porém distintos,
encontra algo que é de interesse particular. (N. que caracterizam a elaboração, fixação e
de L. G. M.) expressão da vontade geral. Não obstante, no
DO CONTRATO SOCIAL 125
C a p ítu lo II
Dos sufrágios
nime — é o pacto social, por ser a livre, porquanto, alhures, a família, os bens, a
falta de asilo, a necessidade, a violência podem
associação civil o mais voluntário dos reter um habitante no país, malgrado sua von
atos, deste mundo. Todo homem, tendo tade; nesse caso, a sua permanência por si só
nascido livre e senhor de si mesmo, não supõe seu consentimento ao contrato ou à
ninguém pode, a qualquer pretexto violação do contrato*. (N. do A.)
* Não se confunda essa noção da residência
imaginável, sujeitá-lo sem o seu con com a moderna teoria do “quase-contrato”
sentimento. Afirmar que o filho de um pela qual se consideram submetidos às obriga
escravo nasce escravo, é afirmar que ções comuns os que não exprimiram sua ade
não nasce homem. são ao Estado (os incapazes jurídicos: crian
Se, quando surge o pacto social, ças, insanos e, em certos casos, as mulheres).
Para Rousseau, o consentimento deve ser
aparecem, pois, opositores, sua oposi explícito (ele cuida de indivíduos capacitados à
ção não invalida o contrato, apenas cidadania) e só se presume quando a condição
impede que se compreendam nele: são de presunção resulta de um ato voluntário,
estrangeiros entre os cidadãos411. qual seja o de ir residir naquele Estado. (N. de
L. G. M.)
Quando o Estado se instituiu, o con 41 3 Por que a maioria é sempre legítima na
sentimento encontra-se no fato de resi ascendência sobre a minoria, explicar-se-á
dir; habitar o território é submeter-se à mais abaixo, quando se tratar da relação entre
soberania 412. o voto individual e a vontade geral. Aqui ape
nas se considera que, dispostos a viver em
Fora desse contrato primitivo, e em comum, como decidiram ao aceitar o pacto
conseqüência do próprio contrato, o social, os homens não podem estar em risco
voto dos mais numerosos sempre obri permanente de dissolver o corpo social cada
ga os dem ais413. Pergunta-se, porém, vez que não se alcance unanimidade nas
como o homem pode ser livre, e força deliberações. (N. de L. G. M.)
41 4 Em Gênova, lê-se na fachada das prisões
e nos grilhões dos forçados às galés a palavra
41 0 H istor., I, 85. (N. do A.) Libertas. Essa aplicação da divisa é bela e
41 1 No Projeto p ara a Córsega, há uma apli justa. Com efeito, só os malfeitores de todos os
cação prática para o princípio: os que não Estados impedem o cidadão de ser livre. Num
aceitam o pacto devem afastar-se da assem país em que todas essas pessoas estivessem nas
bléia, assim significando seu alheamento do galeras, gozar-se-ia da mais perfeita liberdade.
corpo político nascente. (N. de L. G. M.) (N. do A.)
DO CONTRATO SOCIAL 127
Duas máximas gerais podem servir são das opiniões: nas deliberações em
para regulamentar essas relações: uma que se precisa resolver imediatamente,
diz que, quanto mais importantes e deve bastar a diferença de um único
graves as deliberações, tanto mais a voto. A primeira dessas máximas pare
opinião que as provoca deve aproxi ce mais conveniente às leis, e a segun
mar-se da unanimidade; a outra diz da, aos negócios. De qualquer modo,
que, quanto mais celeridade exigir o pela sua combinação estabelecem-se as
assunto em questão, tanto mais se deve melhores relações que se podem dar à
abreviar a diferença prescrita na divi pluralidade para pronunciar-se.
C a p ít u l o III
Das eleições
C a p ít u l o IV
mais nos falta. A experiência nos ensi ção, uma polícia conveniente à capital
na todos os dias quais as causas que do mundo.
determinam as revoluções dos impé Dessa primeira divisão logo resultou
rios; como, no entanto, não se formam um inconveniente — é que, conti
mais povos, não dispomos senão de nuando a tribo dos albanos43 7 e a dos
conjeturas para explicar como se for sabinos438 sempre no mesmo estado,
maram. enquanto a dos estrangeiros439 crescia
Os usos que encontramos estabele sem cessar, devido ao seu perpétuo
cidos atestam pelo menos que tiveram afluxo, esta última não tardou em
uma origem. Das tradições que remon ultrapassar as duas outras. O remédio
tam a essas origens, as que são apoia que Sérvio encontrou para esse abuso
das pelas maiores autoridades, e que perigoso foi mudar a divisão, abolindo
por razões mais fortes se confirmam, as raças e substituindo-as por outra
devem ser consideradas como as mais divisão baseada nos lugares da cidade
certas. São essas as máximas que me ocupados por cada tribo. Em lugar de
esforcei por seguir ao perquirir como o três tribos, organizou quatro, cada
povo mais livre e mais potente da terra uma das quais ocupava uma colina de
exerceu seu poder supremo. Roma e lhe trazia o nome. Reme
Depois da fundação de Roma, a diando desse modo a desigualdade pre
república nascente, isto é, o exército de sente, preveniu-a ainda para o futuro e,
fundadores composto por albanos, sa- a fim de que essa divisão não fosse
binos e estrangeiros43 6, foi dividida somente de lugares, mas também de
em três classes que, a partir dessa divi homens, proibiu aos habitantes passa
são, receberam o nome de tribos. Cada rem de uma para outra divisão, o que
uma dessas tribos foi subdividida em impediu as raças de se misturarem.
dez cúrias e cada cúria em decúrias, à Dobrou também as três antigas ccn-
frente das quais se colocaram chefes túrias de cavalaria e acrescentou-lhes
chamados curiões e decuriÕes. doze outras, mas sempre sob os anti
gos nojnes, meio simples e judicioso
Além disso, tirou-se de cada tribo pelo qual acabou por distinguir o
um corpo de cem cavaleiros ou cava corpo dos cavalheiros do corpo do
lheiros, chamado centúria, por onde se povo, sem suscitar murmúrios deste
vê que essas divisões, pouco necessá último.
rias num burgo, não eram a princípio A essas quatro tribos urbanas, Sér
senão militares. Parece, porém, que um vio acrescentou quinze outras, chama
instinto de grandeza levou a cidade- das tribos rústicas, por serem forma
zinha de Roma a dar-se, por antecipa- das de habitantes do campo, divididas
em outros tantos cantões. Mais tarde,
43 6 Ainda hoje, essa questão histórica resta introduziram-se outras tantas novas e
em dúvida e sujeita a hipóteses interpretativas
mais ou menos bem fundadas. Do ponto de o povo romano encontrou-se, por fim,
vista da história dos fatos, Piganiol, no Ensaio dividido em trinta e cinco tribos, nú
sobre as Origens de R o m a (1917), crê que o mero a que se cingiram até o fim da
povoamento se fez por invasores ários (alba república.
nos) e imigrantes lígures (sabinos), aos quais se D a distinção entre as tribos'cia cida-
juntaram etruscos-úmbrios (lúceres). Do ponto
de vista mítico, Dumezil (v. nota anterior)
acredita que rammenses, tícios e lúceres 43 7 Rammenses. (N. do A.)
correspondem menos a etnias do que a funções 43 8 Tatienses*. (N. do A.)
sociais (religiosa, bélica e agrícola) distintas * Ou tícios. (N. de L. G. M.)
(N ascim ento de R om a, 1944). (N. de L. G. M.) 43 9 Lúceres. (N. do A.)
132 ROUSSEAU
lia, semelhantes às paganalia que mais forma, Sérvio simulou4 42 dar-lhe fei
tarde apareceram entre as tribos rústi ção militar. Incluiu na segunda classe
cas. duas centúrias de escudeiros, e duas de
Quando da nova divisão feita por máquinas de guerra, na quarta; em
Sérvio, não podendo esse total de trin cada classe, com exceção da última,
ta ser igualmente dividido entre as qua distinguiu os jovens dos velhos, isto é,
tro tribos, não quis nele tocar. As aqueles que ficavam obrigados a trazer
cúrias, independentes das tribos, torna armas dos que, pela idade, disto esta
ram-se uma outra divisão dos habitan vam isentos pela lei, distinção que,
tes de Roma, mas de modo algum se mais do que a dos bens, determinou a
cogitou das cúrias, nem entre as tribos necessidade de freqüentemente refazer
rústicas nem entre o povo que as com o censo ou a contagem. Por fim, quis
punha, porque, tornando-se as tribos que a assembléia se reunisse no
um estabelecimento puramente civil e Campo de Marte e que todos os que
introduzindo-se uma outra polícia para estivessem em idade de prestar serviço
o recrutamento das tropas, as divisões comparecessem armados.
militares de Rômulo tornaram-se su O motivo pelo qual não adotou na
pérfluas. Assim, embora estando todo última classe essa mesma divisão entre
cidadão inscrito numa tribo, dificil jovens e velhos é que se não concedia
mente não estaria cada um inscrito ao populacho, de que se formava, a
também numa cúria. honra de carregar armas para a defesa
Sérvio estabeleceu ainda uma ter da pátria; era preciso ter lar para obter
ceira divisão, que não tinha nenhuma o direito de defendê-lo e, dessas inúme
relação com as precedentes, e, por seus ras tropas de mendigos que hoje bri
resultados, se tomou a mais impor lham nos exércitos dos reis, não have
tante de todas. Distribuiu todo o povo ria talvez um só que não fosse
romano em seis classes, que não distin rechaçado com desprezo de uma coor
guiu nem pelo lugar nem pelos ho te romana, quando os soldados eram
mens, mas sim pelos bens. Desse os defensores da liberdade.
modo, as primeiras classes eram ocu Não obstante, distinguiam-se ainda,
padas pelos ricos, as últimas pelos po na última classe, os proletários daque
bres e as médias por aqueles que goza les que chamavam capite censi. Os pri
vam de fortuna medíocre. Essas seis meiros, que não se encontravam com
classes dividiam-se em cento e noventa pletamente reduzidos a nada, davam,
e três outros corpos, chamados centú ao menos, cidadãos ao Estado e, a\gu-
rias, e esses corpos eram distribuídos mas vezes, nas necessidades urgentes,
de tal modo, que só a primeira classe soldados. Aqueles que não tinham
compreendia mais da metade deles, e a absolutamente nada e que só podiam
última formava um único. Resultou ser contados pela cabeça eram consi
que a classe menos numerosa em ho derados nulos e foi Mário o primeiro a
mens era a mais numerosa em centú se dignar arrolá-los.
rias, e que a última classe só represen Sem afirmar aqui se esse terceiro
tava uma subdivisão, ainda que
4 42 A alegada simulação atribuiria a Sérvio
compreendesse, sozinha, mais da meta
uma argúcia sobre-humana, porém as necessi
de dos habitantes de Roma. dades militares de Roma parecem suficiente
A fim de que o povo percebesse mente exigentes para explicar a utilização dire
menos as conseqüências desta última ta dessa composição política. (N. de L. G. M.)
134 ROUSSEAU
arrolamento era bom ou mau em si nos comícios, e, como não havia cida
mesmo, creio poder afirmar que ele dão que não estivesse inscrito numa
somente se tornou possível devido aos cúria, numa centúria ou numa tribo,
costumes simples dos primeiros roma conclui-se que nenhum cidadão era
nos, seu desinteresse, seu gosto pela excluído do direito do sufrágio e que o
agricultura, seu desprezo pelo comér povo romano era verdadeiramente so
cio e Dela febre do ganho. Qual seria o berano de direito e de fato.
povo moderno a que a devoradora avi Para que os comícios fossem legiti
dez, o espírito inquieto, a intriga, os
mamente convocados e para que aqui
deslocamentos contínuos, as perpétuas lo que neles se fazia tivesse força de lei,
revoluções das fortunas permitiriam impunham-se três condições: primeira,
durar vinte anos um tal arranjo sem que o corpo, ou o magistrado, que as
perturbar todo o Estado? É preciso
mesmo notar que os costumes e a cen convocasse estivesse para tanto reves
sura, mais forte que essa instituição, tido da autoridade necessária; segun
corrigiram o vício em Roma, e que um da, que a assembléia se realizasse num
certo rico se viu relegado à classe dos dos dias permitidos pela lei; terceira,
pobres por ter ostentado em demasia a que os augúrios fossem favoráveis.
sua riqueza. O motivo da primeira exigência não
Por tudo isso pode-se facilmente precisa ser explicado; a segunda é uma
compreender por que quase sempre se questão de polícia, pois assim não se
faz menção a cinco classes, apesar de permitia que se realizassem os comí
terem, realmente, existido seis. A sexta, cios nos dias nefastos e nos dias de
não fornecendo nem soldados ao exér mercado nos quais as pessoas do
cito, nem votantes ao Campo de campo, vindas a Roma para negócios,
Marte 4 43, e não sendo quase de nenhu não tinham tempo para passar o dia na
ma utilidade na república, raramente praça pública. Por meio da terceira, o
era contada para alguma coisa. senado refreava um povo orgulhoso e
Tais foram as várias divisões do reclamador, e temperava conveniente
povo romano. Vejamos, agora, o efeito mente o ardor dos tribunos sediciosos,
que produziam nas assembléias. Essas porém estes encontraram mais de um
assembléias, legitimamente convoca meio para se livrarem de tal incômodo.
das, chamavam-se comícios . Realiza As leis e as eleições dos chefes não
vam-se comumente na praça de eram os- únicos pontos submetidos ao
R om a4 4 4 ou no Campo de Marte e julgamento dos comícios; tendo o povo
distinguiam-se em comícios por cúrias, romano usurpado as funções mais
comícios por centúrias e comícios por importantes do Governo, pode-se dizer
tribos, segundo aquela dessas três for que o destino da Europa era regula
mas para a qual eram ordenadas. Os mentado nessas assembléias. Essa va
comícios por cúrias ligavam-se à insti riedade de objetivos dava lugar às vá
tuição de Rômulo; os por centúrias, à rias formas que tomavam as
de Sérvio; os por tribos, à dos tribunos assembléias, de acordo com os assun
do povo. Nenhuma lei recebia sanção, tos sobre os quais tinham de pronun
nenhum magistrado era eleito senão ciar-se.
Para julgar essas diversas formas,
4 43 Digo no C am po de M arte, porque era aí basta compará-las. Rômulo, ao insti
que se reuniam os comícios por centúrias; nas
duas outras formas, o povo se reunia no
tuir as cúrias4 4 5, tinha em vista conter
F or um ou em outro lugar, e então os capite
censi tinham tanta influência e autoridade 4 4 5 Rousseau ja ressalvou a possibilidade de
quanto os primeiros cidadãos. (N. do A.) tratar-se de uma instituição puramente legen
4 4 4 Ou seja, no Forum. (N. de L. G. M.) dária, como hoje sabemos ser. (N. de L. G. M.)
DO CONTRATO SOCIAL 135
o senado pelo povo e este pelo senado, classe suplantava em número de votos
dominando igualmente a todos. Deu, todas as outras. Quando todas essas
pois, ao povo, por esse meio, toda a centúrias estavam de acordo, nem se
autoridade do número para equilibrar continuava a recolher sufrágios; o que
a do poder e das riquezas que deixava o menor número tinha decidido passa
aos patrícios. Mas, de acordo com o va como decisão da multidão e pode-se
espírito da monarquia, deixou, no dizer que, nos comícios por centúrias,
entanto, maior vantagem aos patrícios, os assuntos se regulamentavam muito
dada a influência de seus clientes na mais pela pluralidade dos escudos do
pluralidade dos sufrágios. Essa admi que pela dos votos.
rável instituição dos patrões e dos Essa extrema autoridade, porém, era
clientes foi uma obra-prima de política contrabalançada de dois modos: pri
e de humanidade sem a qual o patri-
meiro, de ordinário, os tribuiios e, sem
ciado, tão contrário ao espírito da
pre, um grande número de plebeus,
república, não poderia ter subsistido.
Somente Roma teve a honra de dar ao pertencendo à classe dos ricos, contra
mundo esse belo exemplo, do qual ja balançavam o crédito dos patrícios
mais resultaram abusos e que não obs nessa primeira classe.
tante nunca se repetiu. O segundo meio consistia no seguin
te: em lugar de fazer-se de início vota
Tendo essa mesma forma de cúria
rem as centúrias pela sua ordem, o que
subsistido sob os reis até Sérvio, não
sendo considerado legítimo o reino do sempre teria feito começar pela primei
último Tarqüínio, tal coisa fez com ra, escolhia-se uma pela sorte e
que se distinguissem em geral as leis essa4 4 6 procedia sozinha à eleição; de
reais pelo nome de leges curiatae. pois disso, todas as centúrias, chama
das num outro dia de acordo com a
Sob a república, as cúrias, sempre
limitadas às quatro tribos urbanas e só sua classificação, repetiam a mesma
compreendendo o populacho de Roma, eleição, e comumente a confirma
não podiam convir nem ao senado, que v am 4 4 7 . Destituía-se assim a hierar
se colocava à frente dos patrícios, nem quia da autoridade do exemplo, para
aos tribunos, que, apesar de plebeus, se atribuí-la à sorte, segundo o princípio
colocavam à frente dos cidadãos abas da democracia.
tados. Caíram, pois, no descrédito e Resultava desse uso ainda outra
sua degradação foi tal, que seus trinta vantagem, qual seja a de os cidadãos
litores reunidos faziam o que os comí do campo terem tempo, entre as duas
cios por cúrias deveriam fazer. eleições, para se informar quanto ao
A divisão por centúrias era tão favo mérito do candidato provisoriamente
rável à aristocracia, que a princípio nomeado, a fim de só dar seu voto com
não se percebia como o senado não conhecimento de causa. Mas, a pre
vencia sempre nos comícios que tra texto de celeridade, chegou-se ao ponto
ziam esse nome e pelos quais eram de abolir esse uso e as duas eleições
eleitos os cônsules, os censores e os de passaram a ser feitas no mesmo dia.
mais magistrados curuis. Com efeito,
das cento e noventa e três centúrias 4 4 6 Essa centúria, tirada assim ao acaso, cha
que formavam as seis classes de todo o mava-se proerogativa, por ser ela a primeira a
quem se pedia o sufrágio, e daí veio a palavra
povo romano, a primeira compreendia prerrogativa. (N. do A.)
noventa e oito, e, só se contando os 4 4 7 Foi Caio Graco o autor dessa reforma.
votos por centúrias, só esta primeira (N. de L. G. M.)
136 ROUSSEAU
Os comícios por tribos eram pro maus desígnios, acabaram por cair no
priamente o Conselho do povo roma descrédito, abstendo-se os próprios
no. Só eram convocados pelos tribu sediciosos de um meio que lhes punha
nos; os tribunos neles eram eleitos, e os projetos demasiado à mostra. É ver
neles aprovados os plebiscitos. Não dade que toda a majestade do povo ro
somente o senado aí não fruía de mano só se encontrava nos comícios
nenhuma posição especial como tam por centúrias, os únicos completos,
bém não possuía sequer o direito de a porquanto nos comícios por cúrias fal
eles assistir 4 48 e, obrigados a obedecer tavam as tribos rústicas e, nos comí
a leis que não haviam podido votar, os cios por tribos, o senado e os patrícios.
senadores eram nesse ponto menos li Quanto à maneira de recolher os
vres do que os últimos cidadãos. Essa sufrágios, era, entre os primeiros roma
injustiça era, de todo, mal compreen nos, tão simples quanto os seus costu
dida, e bastaria só ela para invalidar os mes, embora menos simples ainda do
decretos de um corpo no qual não que em Esparta. Cada um dava seu
eram admitidos todos os seus mem sufrágio em voz alta, um escrivão os
bros4 49. Mesmo que todos os patrícios anotava à medida que iam sendo
assistissem a esses comícios de acordo dados; a pluralidade de votos em cada
com o direito que tinham como cida tribo determinava o sufrágio da tribo;
dãos, tornando-se então simples parti a pluralidade de votos entre as tribos
culares, não teriam sequer influído determinava o sufrágio do povo; assim
numa forma de sufrágios que se conta também para as cúrias e as centúrias.
vam por cabeça e na qual o mais ínfi Esse uso aproveitou enquanto domi
mo proletário podia tanto quanto o nava entre os cidadãos a honestidade e
príncipe do senado. cada um envergonhava-se de dar publi
Vê-se pois que, além da ordem resul camente seu sufrágio a um projeto
tante dessas várias distribuições para a injusto ou a um súdito indigno, mas,
contagem dos sufrágios de um povo quando o povo se corrompeu e se pas
tão numeroso, essas distribuições não sou a comprar os votos, tornou-se mais
se reduziam a formas indiferentes em conveniente que fossem dados em
si mesmas, dando cada uma efeitos segredo, a fim de conter os compra
relativos aos fins que as tornavam dores pela desconfiança e também
preferidas. para fornecer aos velhacos um meio de
Sem entrar, a esse respeito, em mais não se tornarem traidores.
numerosos pormenores, resulta dos Bem sei que Cícero censura essa
esclarecimentos precedentes que os mudança e, em parte, lhe atribui a
comícios por tribos eram mais favorá ruína da república4 50. Mas, ainda que
veis ao Governo popular, e os comí sinta o peso que deve ter aqui a autori
cios por centúrias, à aristocracia. Rela dade de Cícero, não posso concordar
tivamente aos comícios por cúrias, nos com ele; penso, ao contrário, que, por
quais somente o populacho de Roma não se ter praticado um número sufi
formava a pluralidade, como só ser ciente de mudanças semelhantes, se
viam para favorecer a tirania e os acelerou a perda do Estado. Como o
regime das pessoas sãs não é apro
4 48 Nem o senado tinha, coletivamente, um priado aos doentes, não se deve querer
posto superior nesses comícios, nem os sena governar um povo corrompido pelas
dores podiam deles participar. (N. de L. G. M.)
4 49 Pois nem todos os cidadãos participavam
desses comícios. (N. de L. G. M.) 4 50 N o D e L e g ib u s, IV. (N . de L. G . M.)
DO CONTRATO SOCIAL 137
4 5 1 As leis que adotaram essa reforma fica 4 52 C ustodes, diribitores*, rogatores sujfra-
ram conhecidas como “tabelárias” (139-107 a. giorum . (N. do A.)
C.). O voto se resumia a um “A ” (significando * Halbwachs anota que “diribitores” surge,
“antiquo”, isto é, o que já está estabelecido) ou na edição de 1782 do C ontrato , onde antes
a um “V. R.” (que significa “uti rogas”, ou (edição de 1762) se lia “distributores”. A
seja, a aprovação da mudança proposta). (N. variante escapou a Vaughan e a Dreyfus-
de L. G. M.) Brisac. (N. de L. G. M.)
C a p ítu lo V
Do tribunato
C a p itu lo VI
Da ditadura
A inflexibilidade das leis, que as im lidade ao mais digno. Essa comissão
pede de se ajustarem aos aconteci pode se dar de dois modos, segundo a
mentos, pode, em certos casos, torná- espécie do perigo.
las perniciosas e determinar, por seu Se, para remediá-lo, basta aumentar
intermédio, a perda do Estado em a atividade do Governo, há que con
crise. A ordem e a lentidão das formas centrá-lo em um ou dois de seus mem
exigem um lapso de tempo que às bros. Desse modo, não é a autoridade
vezes as circunstâncias recusam. das leis que se altera, mas somente a
Podem surgir mil casos que o Legisla forma de sua administração. Se o peri
dor de modo algum preveniu, e será go for tal que o aparelho das leis repre
previdência muito necessária saber-se sente um obstáculo a evitar, nomeia-se
que não se pode prever tudo. então um chefe supremo que faça com
Não se deve, pois, querer firmar as que todas as leis se calem e, por um
instituições políticas a ponto de afastar momento, suspenda a autoridade do
a possibilidade de suspender-lhes o soberano. Em tal caso, a vontade geral
efeito. Até Esparta deixou suas leis não é duvidosa e evidencia-se, como
cochilarem. primeira intenção do povo, que não pe
Mas só os perigos muito grandes reça o Estado. Dessa maneira, de
podem compensar o de alterar a ordem modo algum a suspensão da autori
pública, e jamais se deve sustar o dade legislativa abole a vontade geral:
poder sagrado das leis, senão quando o magistrado que a faz calar, não a
se tratà da salvação da pátria. Nesses pode fazer falar; domina-a, sem poder
casos raros e evidentes, previne-se a representá-la — pode fazer tudo,
segurança pública por um ato parti menos leis 4 61.
cular460 que confere a responsabi-
4 6 1 A vontade geral, para que pudesse indicar
4 60 Não se trata de estabelecer um novo regi um ditador, presumivelmente dispôs-se a obe
me, alterando-se a lei de reorganização do decê-lo enquanto potência executiva, que outro
Estado, mas tão-só de indicar um governante limite não conhece senão o do termo de seu
de tipo especial para enfrentar uma determi mandato. Não obstante, a vontade geral,
nada conjuntura — o ato é, em tudo e por intransferível pela própria natureza, continua
tudo, particular. (N. de L. G. M.) intata, embora silenciosa, guardando seu ex-
140 ROUSSEAU
muitas faltas, como, por exemplo, não não procurou o meio mais legítimo e
ter nomeado um ditador no caso de seguro de salvar o Estado, mas sim, o
Catilina. Tratando-se somente de um de receber toda a glória desse caso 4 6 6.
caso interno da cidade e, no máximo, Com muita justiça foi, portanto, glori
de uma certa província da Itália, com a ficado como libertador de Roma, e jus
autoridade sem limites que as leis da tamente punido como infrator das leis.
riam ao ditador, facilmente ele debela Se brilhante foi sua recondução, nem
ria a conjuração que só foi abafada de por isso deixou de, na verdade, consti
vido a um conjunto de acasos felizes tuir uma graça.
que a prudência humana jamais devera Ademais, seja qual for o modo por
esperar. que se confere essa importante comis
Em lugar disso, o senado se conten são, é preciso fixar sua duração num
tou com conferir todo o seu poder aos
prazo bastante curto, que jamais possa
cônsules. Daí resultou que Cícero,
para agir eficientemente, se viu obri ser prolongado4 6 7. Nas crises que
gado a ultrapassar esse poder num determinam o seu estabelecimento, o
momento capital e, se os primeiros Estado é logo destruído ou salvo e,
transportes de alegria aprovaram sua uma vez passada a necessidade urgen
conduta, foi com justiça que depois se te, a ditadura toma-se tirânica ou vã.
pediu conta do sangue dos cidadãos Em Roma, só havendo ditadores por
derramado contra as leis4 6 5, censura seis meses, a maioria deles abdicava
que não se poderia fazer a um ditador. antes desse termo. Se o termo fosse
A eloqüência do cônsul, porém, tudo mais longo, talvez se sentissem tenta
arrebatou e ele mesmo, apesar de dos a prolongá-lo ainda mais, como
romano, preferindo sua glória à pátria, fizeram os decênviros com os termos
de um ano. Os ditadores só tinham o
4 6 5 Entre os poderes do senado, de que então tempo de atender às necessidades que
dispunha Cícero, não se incluía o de suspender determinavam sua eleição; não o de
o direito de apelar para o povo, que cabia a
qualquer cidadão, quando condenado. Assim,
pensar em outros projetos.
a execução dos companheiros de Catilina
exorbitou da lei. Clódio propôs uma lei que 4 6 6 O que ele não poderia garantir-se se pro
punia genericamente os autores de abusos pusesse um ditador, não ousando nomear a si
dessa ordem, e Cícero exilou-se antes de vê-la mesmo e não podendo ter certeza de que seu
votada. Outra lei, visando-o pessoalmente, colega o nomearia. (N. do A.)
condenou-o depois ao exílio. (N. de L. G. M.) 4 6 7 V. nota 4 6 1, supra. (N. de L. G. M.)
C a p itu lo V II
Da censura
nos e, mais ainda, entre os lacedemô- sobre o que é e o que não é honesto, a
nios. Grécia não recorre de seu julgamento.
Tendo um homem de maus costu
mes apresentado uma boa proposta ao 4 7 5 Os exemplos aqui citados vêm de Plutar-
co, nos D ito s N otáveis dos Lacedem ônios. (N.
conselho de Esparta, os éforos, sem
de L. G. M.)
levar em consideração essa proposta, 4 7 6 Eles eram de outra ilha, que a delicadeza
fizeram com que um homem de bons de nossa língua proíbe nomear neste momen
costumes a apresentasse4 7 5. Que to*. (N. do A.)
honra para um e que infâmia para o * Na cópia do C ontrato dedicada a
d’Yvernois e que está na biblioteca de Gene
outro, sem fazer elogio ou censura a bra, há a seguinte nota manuscrita: “Eles eram
qualquer dos d o is! Alguns bêbados de de Quios [na grafia francesa: Chio ] e não de
Sam os4 7 6 macularam o tribunal dos Sam os. Mas, dado o assunto, jamais ousei
éforos; no dia seguinte, por edito públi empregar essa palavra no texto. Creio, contu
do, ser tão ousado como qualquer outro. Mas
co, permitiu-se aos sâmios serem vi a ninguém se permite ser sujo ou grosseiro,
lãos. Um verdadeiro castigo teria sido seja qual for o caso. Os franceses puseram
menos severo do que semelhante impu tanta decência em sua língua, que nela não se
nidade. Quando Esparta se pronuncia pode dizer a verdade”. (N. de L. G. M.)
C a p itu lo VIII
Da religião civil477
quais não se conhece outro exemplo tado deixasse de ser uno e determinou
antes do cristianismo48 4. as divisões intestinas que jamais deixa
Encontrando-se, pois, cada região li ram de agitar os povos cristãos. Ora,
gada unicamente às leis do Estado que não podendo essa nova idéia de um
as prescrevia, absolutamente não havia reino do outro mundo penetrar na ca
maneira de converter um povo senão beça dos pagãos, eles sempre conside
dominando-o, nem outros missionários raram os cristãos como verdadeiros
que não os conquistadores. Como a rebeldes que, por sob uma submissão
obrigação de mudar de culto era a lei hipócrita, só esperavam o momento
dos vencidos, necessário se fazia come oportuno para se tornarem indepen
çar por vencer antes de falar nisso. dentes e senhores, assim usurpando,
Longe de serem os homens a combater pela habilidade, a autoridade que fin
pelos deuses, eram, como em Homero, giam respeitar em sua fraqueza. Tal a
os deuses que combatiam por eles; causa que determinou as persegui
cada um pedia a vitória ao seu, e paga ções48 5.
va-a com novos altares. Os romanos, O que os pagãos temiam aconteceu
antes de tomarem um lugar, intimavam e, então, tudo mudou de aspecto. Os
os deuses a abandoná-lo. Quando dei humildes cristãos mudaram de lingua
xaram irritados os deuses dos tarenti- gem e logo se viu esse pretenso reino
nos, fizeram-no por considerarem esses do outro mundo tornar-se neste, sob
deuses submetidos aos seus e obriga um chefe visível, o mais violento
dos a lhes prestar homenagem. Deixa despotismo.
vam aos vencidos seus deuses, como No entanto, como sempre houve um
deixavam suas leis. Uma coroa ao Jú príncipe e leis civis, resultou dessa
piter do Capitólio era o único tributo dupla posse um conflito perpétuo de
que freqüentemente lhes impunham. jurisdição que tornou toda a boa poli-
Tendo, por fim, os romanos estendi tia impossível nos Estados cristãos e
do, com seu império, o seu culto e seus jamais se conseguiu saber se era ao se
deuses, e tendo freqüentemente eles nhor ou ao padre que se estava obri
mesmos adotado os dos vencidos, con gado a obedecer.
cedendo a uns e a outros o direito de Inúmeros povos, no entanto, mesmo
pólis, os povos desse vasto império na Europa ou nas suas vizinhanças,
passaram sem sentir a contar com uma quiseram conservar ou restabelecer o
multidão de deuses e de cultos, quase antigo sistema, sem obter sucesso. O
que os mesmos em todos os lugares, e, espírito do cristianismo tomou conta
assim, o paganismo foi finalmente de tudo. O culto sagrado sempre per
conhecido no mundo como uma únicá maneceu ou tornou-se independente do
e mesma religião. soberano e sem ligação necessária com
Foi nessas circunstâncias que Jesus o corpo do Estado. Maomé teve idéias
veio estabelecer na terra um reino espi muito boas, ligou muito bem seu siste
ritual; separando, de tal sorte, o siste ma político e, enquanto a forma de seu
ma teológico do político, fez que o Es- Governo persistiu entre os califas seus
48 4 É da melhor evidência que a guerra dos 48 5 Depois de levantar muitas hipóteses sobre
fócios, chamada guerra sagrada, não foi uma as causas das perseguições, Piganiol conclui:
guerra de religião. Seu objetivo estava em “De qualquer forma, a opinião pública odiava
punir sacrilégios e não em submeter os incréus. os cristãos, sobretudo por considerá-los
(N. do A.) ateus”. (N. de L. G. M.)
146 ROUSSEAU
sucessores, esse Governo foi exata Mas ele devera compreender que o
mente uno e, por isso, bom. Mas os espírito dominador do cristianismo era
árabes, tomando-se florescentes, letra incompatível com seu sistema e que o
dos, educados, fracos e covardes, interesse do padre sempre seria mais
foram subjugados por bárbaros e, forte do que o do Estado. Não foi tanto
então, recomeçou a divisão entre os o que há de horrível e de falso na sua
dois poderes. Ainda que ela seja menos política, senão o que nela existe de
aparente entre os maometanos do que justo e verdadeiro, que a tom ou odio
entre os cristãos, existe entre aqueles, s a 488.
sobretudo na seita de Ali, e há Esta Acho que desse ponto de vista
dos, como a Pérsia, em que não deixa desenvolvendo os fatos históricos, re
de fazer-se sentir. futar-se-ia com facilidade os sçnti-
Entre nós, os reis da Inglaterra mentos opostos de Bayle e de Warbur-
tornaram-se chefes da Igreja e a ton, um dos quais pretende não ser
mesma coisa fizeram os czares; com nenhuma religião útil ao corpo político
esse título, porém, tornaram-se menos e o outro afirma, pelo contrário, que o
seus senhores do que seus ministros, cristianismo é o seu mais forte apoio.
adquiriram menos o direito de mudá-la Ao primeiro, poder-se-ia provar que ja
do que o poder de mantê-la, não são mais se fundou qualquer Estado cuja
nela legisladores, mas somente prínci base não fosse a religião e, ao segundo,
pes. Em todo lugar em que o clero que a lei cristã, no fundo, é mais preju
forma um corpo 48 6 é, na sua alçada, dicial do que útil à firme constituição
senhor e legislador; há, pois, na Ingla do Estado. Para melhor fazer-me en
terra e na Rússia, do mesmo modo tender, basta dar um pouco de precisão
como alhures, dois poderes e dois às idéias, muito vagas, sobre religião,
soberanos48 7. relativas ao meu assunto.
De todos os autores cristãos, o filó
sofo Hobbes é o único que viu muito A religião considerada em relação à
bem o mal e o remédio, que ousou pro sociedade, que é geral ou particular,
por a reunião das duas cabeças da pode também dividir-se em duas espé
águia, e reconduzir-se tudo à unidade cies, a saber: a religião do homem e a
política, sem a qual jamais serão bem do cidadão. A primeira, sem templos,
constituídos o Estado e o Governo. altares e ritos, limitada ao culto pura
mente interior do Deus supremo e aos
48 6 Deve-se notar que não são tanto as deveres etemos da moral, é a religião
assembléias formais, como as de França, pura e simples do Evangelho, o verda
quanto a comunhão das igrejas que faz do deiro teísmo e aquilo que pode ser cha
clero um corpo. A comunhão e a excomunhão mado de direito divino natural. A
são o pacto social do clero, pacto com o qual
será sémpre o senhor dos povos e dos reis. outra, inscrita num só país, dá-lhe seus
Todos os padres, que comungam juntos, são deuses, seus padroeiros próprios e tute
concidadãos, ainda que estejam nos dois extre lares, tem seus dogmas, seus ritos, seu
mos do mundo. Essa invenção é uma obra
prima de política. Não havia nada de seme
lhante entre os padres pagãos, mas também 488 Vede, entre outras, numa carta de Grotius
eles jamais organizaram um corpo de clérigos. a seu irmão, datada de 11 de abril de 1643, o
(N. do A.) que esse sábio homem aprova e o que censura
48 7 Dois soberanos, porque só o soberano no livro D e C ive. É verdade que, levado pela
tem poder de legislar e aí a legislação da maté indulgência, parece perdoar ao autor o bem
ria religiosa vem do clero e não do monarca. tendo em consideração o mal; mas nem todo
(N. de L. G. M.) mundo é tão clemente. (N. do A.)
DO CONTRATO SOCIAL 147
culto exterior prescrito por lei. Afora a devotá-lo à cólera dos deuses: Sacer
única nação que a segue, todos os de e sto 492.
mais para ela são infiéis estrangeiros e É, porém, má, pois, fundando-se no
bárbaros; ela só leva os deveres e os erro e na mentira, engana os homens,
direitos do homem até onde vão seus torna-os crédulos, supersticiosos, e
altares. Foram assim as religiões dos submerge o verdadeiro culto da Divin
primeiros povos, às quais se pode dar o dade num cerimonial vão. Ainda é má
nome de direito divino civil ou positi quando, tomando-se exclusiva e tirâni
vo. ca, transforma um povo em sangui
Há uma terceira espécie de religião, nário e intolerante, de forma que ele só
mais estranha, que, dando ao homem respira a atmosfera do assassínio e do
duas legislações, dois chefes, duas pá massacre, e crê estar praticando uma
trias, o submete a deveres contradi ação salutar ao matar todos aqueles
tórios e o impede de poder ao mesmo que não admitem seus deuses. Isso põe
tempo ser devoto e cidadãos. Tal é a tal povo num estado natural de guerra
religião dos lam as489, a dos japoneses com todos os demais, situação essa
e a do cristianismo romano. Pode-se muito prejudicial à sua própria segu
chamar, a esta, religião do padre. Dela rança.
resulta uma espécie de direito misto e Resta, pois, a religião do homem ou
insociável490 que não tem nome. o cristianismo, não o cristianismo de
Se considerarmos politicamente hoje, mas o do Evangelho, que é
essas três espécies de religião, veremos completamente diverso. Pois nessa re
que todas elas têm seus defeitos. A ter ligião santa, sublime, verdadeira, os
ceira é tão evidentemente má, que se homens, filhos do mesmo Deus, reco
perde tempo no divertimento de de nhecem-se todos como irmãos, e a
monstrá-lo. Tudo o que rompe a unida sociedade que os une não se dissolve
de social, nada vale; todas as institui nem com a morte.
ções que põem o homem em Mas essa religião, não tendo nenhu
contradição consigo mesmo, nada ma relação particular com o corpo
valem. político493, deixa as leis unicamente
com a força que tiram de si mesmas,
A segunda é boa por unir o culto di sem acrescentar-lhes qualquer outra, e,
vino ao amor das leis e porque, fazen desse modo, fica sem efeito um dos
do da pátria objeto da adoração dos grandes elos da sociedade particu
cidadãos, lhes ensina que servir o Esta la r494. Mais ainda, longe de ligar os
do é servir o deus tutelar. É uma espé corações dos cidadãos ao Estado,
cie de teocracia, na qual não se deve de
modo algum ter outro pontífice que
não o príncipe, nem outros padres 492 Declarando-se “sagrado”, com esta fór
mula, qualquer indivíduo, ele estava excomun
além dos magistrados491. Nesse caso, gado, separado dos homens e entregue aos
morrer pela pátria é alcançar o martí deuses. (N. de L. G. M.)
rio, violar as leis é ser ímpio, e subme 493 Seu campo de ação é toda a humanidade
ter um culpado à execração pública é e, pois, permanece acima das sociedades parti
culares. (N. de L. G. M.)
49 4 Que será a profunda e constante cons
489 Sacerdotes do budismo tibetano. (N. de L. ciência, em cada cidadão, da vontade geral, do
G. M.) “eu comum” da coletividade. Aqui Rousseau
490 Ou seja: anti-social. (N. de L. G. M.) aponta uma função política que o elemento
491 Como nas cidades-estados da antigui religioso pode preencher. (V. nota 463, supra.)
dade. (N. de L. G. M.) (N. de L. G. M.)
148 ROUSSEAU
desprende-os, como de todas as coisas seria preciso que todos os cidadãos,
da terra. Não conheço nada mais con sem exceção, fossem igualmente bons
trário ao espírito social. cristãos, mas, se, por infelicidade,
Dizem que um povo de verdadeiros encontrar-se entre ele um único ambi
cristãos formaria a sociedade mais per cioso, um único hipócrita — por
feita que se poderia imaginar. Contra exemplo: um Catilina, um Cromwell
essa suposição só vejo uma grande — , certamente esse único faria tábua
dificuldade — uma sociedade de ver rasa de seus piedosos compatriotas. A
dadeiros cristãos não mais seria uma caridade cristã não permite facilmente
sociedade de hom ens49 5. que se pense mal do próximo. Desde
Afirmo até que essa suposta socie que ele, por qualquer artimanha,
dade, com toda a sua perfeição, não aprenda a arte de impor-se e de apode
seria nem a mais forte, nem a mais rar-se de uma parte da autoridade pú
duradoura, pois, à força de ser perfeita, blica, será um homem constituído em
faltar-lhe-ia coesão, estando seu vício dignidade — Deus quer que o respei
destruidor na sua própria perfeição. tem. Logo mais, ei-lo uma potência —
Cada um desempenharia seu dever, Deus quer que ele seja obedecido. O
o povo estaria submetido às leis, os depositário desse poder abusa? — é o
chefes seriam justos e ponderados, os açoite com o qual Deus pune seus
magistrados íntegros e incorruptíveis,
filhos. Toma-se como obrigação de
os soldados desprezariam a morte, não consciência expulsar o usurpador: ter-
existiria nem vaidade, nem luxo. Tudo se-á de perturbar a calma pública, usar
isso está muito bem, mas passemos
de violência, verter sangue — tudo
adiante. ^
O cristianismo é uma religião intei isso não condiz com a doçura do cris
ramente espiritual, preocupada unica tão e, depois, que importa ser livre ou
mente com as coisas do céu, não escravo neste vale de misérias? O
pertencendo a pátria do cristão a este essencial é alcançar o paraíso, e a
mundo. É verdade que ele cumpre o resignação não passa de mais um meio
seu dever, mas o faz com uma indife para isso.
rença profunda quanto ao bom ou mau Sobrevêm uma guerra estrangeira,
sucesso de seus trabalhos49 6. Con os cidadãos marcham sem dificuldade
tanto que nada tenha a censurar em si para o combate, nenhum deles pensa
mesmo, pouco lhe importa se tudo vai em fugir; cumprem seu dever, mas sem
bem ou mal cá embaixo. Se o Estado paixão pela vitória; melhor sabem
está florescente, dificilmente ousa morrer do que vencer. Que importa
gozar da felicidade pública, teme orgu sejam vencidos ou vencedores? A
lhar-se da glória de seu país; se o Esta Providência não sabe, melhor do que
do perece, bendiz a mão de Deus que eles, o que lhes convém? Pode-se ima
pesa sobre seu povo. ginar o partido que um inimigo orgü-
Para que fosse pacífica a sociedade lhoso, impetuoso e apaixonado pode
e para que se mantivesse a harmonia, tirar desse estoicismo! Colocai-lhes à
frente esses povos generosos a quem
495 p orqUe seu interesse comum se coloca no devora o amor ardente da glória e da
outro mundo e não neste, onde o Estado tem pátria, suponde vossa república cristã
seus alicerces e encontra sua finalidade. (N. de
L. G. M.) à frente de Esparta e de Roma: os cris
49 6 Porque não tem por ele um interesse real, tãos piedosos serão dominados, esma
particular ou geral. (N. de L. G. M.) gados, destruídos, antes de conse
DO CONTRATO SOCIAL 149
impossível ser bom cidadão 500 ou sú veis 502. É impossível viver em paz
dito fiel501. Sem poder obrigar nin com pessoas que se acredita réprobas;
guém a crer neles, pode banir do Esta amá-las seria odiar Deus que as puniu;
do todos os que neles não acreditarem, de qualquer modo, impõe-se sejam
pode bani-los não como ímpios, mas reconduzidas ou martirizadas. Em
como insociáveis, como incapazes de todos os lugares onde se admite a into
amar sinceramente as leis, a justiça, e lerância religiosa, é impossível que não
de imolar, sempre que necessário, sua tenha um efeito civil 503 e, assim que
vida a seu dever. Se alguém, depois de surge, o soberano não mais o é, mesmo
ter reconhecido esses dogmas, condu temporalmente 50 4. Daí por diante, os
zir-se como se não cresse neles, deve padres serão os verdadeiros senhores e
ser punido com a morte, pois cometeu os reis não passarão de funcionários
o maior de todos os crimes — mentiu seus.
às leis. Atualmente, quando não existe mais
Os dogmas da religião civil devem
ser simples, em pequeno número, enun 502 Ou seja: dos dogmas decorre a discrimi
ciados com precisão, sem explicações nação entre os concidadãos. (N. de L. G. M.)
ou comentários. A existência da Divin 503 O casamento, por exemplo, sendo um
dade poderosa, inteligente, benfazeja, contrato civil, tem efeitos civis, sem os quais é
impossível que a sociedade subsista. Suponha
previdente e provisora; a vida futura; a mos, pois, que um clero acabe por atribuir só a
felicidade dos justos; o castigo dos si o direito de efetuar esse ato — direito que
maus; a santidade do contrato social e deve necessariamente usurpar em qualquer
das leis — eis os dogmas positivos. religião intolerante — ; não ficará então claro
que, fazendo a esse propósito valer a autori
Quanto aos dogmas negativos, limito dade da Igreja, ele torna vã a do príncipe, que
os a um só: a intolerância, que per não terá outros súditos além daqueles que o
tence aos cultos que excluímos. clero quiser dar-lhe? Senhor de casar ou de
Na minha opinião, enganam-se os não casar as pessoas, segundo tenham ou não
que estabelecem uma distinção entre a uma tal doutrina, segundo admitam ou rejei
tem tal ou qual formulário, segundo sejam
intolerância civil e a teológica. Essas mais ou menos devotos, conduzindo-se pru
duas intolerâncias são insepará dentemente e mantendo-se firmes, não é claro
que só ele disporá das heranças, dos tributos,
dos cidadãos, do próprio Estado, que não
500 Beaulavon lucidamente delineia, neste poderia mais subsistir formando-se unica
ponto, a suma do pensamento de Rousseau: mente de bastardos? Mas — diriam — citá-
“O que importa ao Estado não é a parte por lo-ão aos tribunais pelo abuso, intimá-lo-ão,
assim dizer metafísica da religião, mas unica sentenciá-lo-ão, ele será seqüestrado pelo tem
mente suas conseqüências morais e sociais. O poral. Que lástima! O clero, por pouco que
Estado terá, pois, o direito de proibir ou de tenha, não digo de coragem, mas de bom
impor tal ou qual dogma metafísico — não senso, deixará fazer e continuará seu caminho;
mais, como freqüentemente sustentaram os tranqüilamente deixará citar, intimar, senten
cristãos, em nome da verdade, mas em nome ciar, prender, e acabará sendo o senhor. Par-
da utilidade. É uma espécie de intolerância ce-me não ser tão grande sacrifício o abando
utilitária que substitui a doutrinária”. (N. de L. nar-se uma parte, quando se está certo de
G. M.) apoderar-se do todo*. (N. do A.)
501 César, pleiteando por Catilina, esforçou- * Rousseau hesitou muito em incluir esta nota
se por estabelecer o dogma da mortalidade da no Contrato, tendo mandado tirá-la da pri
alma; Catão e Cícero, ao refutá-lo, não se meira edição, embora figure em alguns exem
divertiram filosofando, mas contentaram-se plares. Depois, autorizou sua publicação, tal
com mostrar que César falava como mau cida vez por ter desistido de escrever uma projetada
dão e adiantava uma doutrina perniciosa ao defesa dos protestantes franceses. (N. de L. G.
Estado. Com efeito, era essa questão que deve M.)
ria julgar o senado de Roma, e não uma ques 50 4 Porque esbarra, nas questões civis, com
tão de teologia. (N. do A.) as proibições religiosas. (N. de L. G. M.)
DO CONTRATO SOCIAL 151
e não pode mais existir qualquer reli é pernicioso. O motivo pelo qual se diz
gião nacional exclusiva, devem-se tole ter-se convertido Henrique IV à reli
rar todas aquelas que toleram as gião rom ana50 5 deveria fazer com que
demais, contanto que seus dogmas em a deixassem todos os homens honestos
e, sobretudo, todo príncipe que sou
nada contrariem os deveres do cida besse raciocinar.
dão. Mas, quem quer que diga: Fora
da Igreja não há salvação — deve ser 50 5 Diz-se que os ministros protestantes sus
excluído do Estado a menos que o Es tentaram que Henrique IV poderia salvar a
tado seja a Igreja, e o príncipe, o pontí alma em qualquer religião, enquanto os padres
católicos afirmavam que só a sua fé teria tal
fice. Tal dogma só serve para um efeito. E o rei decidiu-se segundo o que consi
Governo teocrático; em qualquer outro derou de maior prudência. . . (N. de L. G. M.)
C a p ít u l o IX
Conclusão
1. Circunstâncias da composição
trária seria igualmente possível. Adem ais, a oposição à teoria de Rameau, o alvo
preferido dos enciclopedistas, já começara, para Rousseau, no primeiro momen
to das disputas musicais, com o parecer da Academ ia sobre seu sistema de nota
ção, e o acompanharia pelo resto de sua vida.
Não obstante, pela análise do texto somos levados a propender p o r uma
data tardia que, se não fo r a de Petitain, colocar-se-á muito próxim a a ela. Há, no
Ensaio, indícios, se não concludentes, ao menos capazes de justificar tal inferên
cia. Em prim eiro lugar, a própria refutação de Rameau, que, a princípio sem
indicação clara de nome , malgrado a transparência das alusões, toma endereço
explícito e direto no capítulo X I V e na nota do capítulo X IX , funda-se basica
mente na maior ou menor musicalidade natural das línguas, ou seja, em termos
muito semelhantes aos da polêm ica de 1752-1753 entre “italianos ” e “fran ceses”.
M esmo admitindo-se que haja no Ensaio elementos comuns à colaboração musi
cal destinada à Enciclopédia, sente-se que a orientação do texto já sofreu a
influência das contendas da moda, negando-se, aliás, Rousseau a endossar os
exageros então correntes sobre a “m usicalidade ” do idioma italiano e, acen
tuando a menor aptidão da língua francesa para servir à música, volta-se para o
problem a que considera central: o prim ado da melodia. Adem ais, todo o fundo
de interpretações antropológicas e sociais mostra-se muito mais próxim o das
proposições gerais do segundo Discurso (ao qual pode mesmo servir de texto
subsidiário no trabalho dos analistas) do que da teoria, ainda algo incerta, do
Discurso inicial. Afinal o desejo de fundir numa só linha interpretativa a trans
form ação do homem pela sociedade, a form ação e a evolução das línguas, e o
desenvolvimento da expressão musical, revela-nos um Rousseau ainda moço,
porém já maduro e coerente, tal como o supomos, com ponderáveis razões
biográficas e críticas, ao redigir a primeira versão das Instituições Políticas.
D e qualquer modo, permanecerá no terreno das hipóteses mais ou menos
fundadas a data em que f o i escrito o Ensaio sobre a Origem das Línguas e, p o r
tanto, as circunstâncias de sua composição.
2. Fontes e influências
Também aqui não podem os ser muito precisos, porquanto não se p ode indi
car com segurança as fontes de um texto de história incerta e cujas referências
bibliográficas são apenas incidentais. Cabe apenas registrar certas influências
evidentes e diretas. Neste caso está, sem dúvida, Condillac, no que respeita ao
problem a das línguas ou, mais exatamente, ao problem a do desenvolvimento da
razão humana, que no Ensaio adquire importância básica. Já apontara Jean
Morei (Fontes do Discurso sobre a Desigualdade, in Annales de la Sociéíé Jean
Jacques Rousseau, 1910) a influência nítida de Condillac no segundo Discurso.
D epois Robert Derathé (O Racionalismo de J.-J. Rousseau, Paris, 1948) apon
tara no Emílio a persistência desses elementos Não surpreenderá, pois, que
reapareçam, mais uma vez, no Ensaio.
Explícitos ou implícitos, encontram-se nos capítulos iniciais do Ensaio
aqueles princípios do Emílio, segundo os quais tudo o que a razão possui passou
primeiro pelos sentidos, não sendo a razão, em sentido amplo, algo simples ou
primário, senão o fruto do entrosamento de todas as demais faculdades do
homem, que se processa numa passagem das idéias simples às idéias complexas,
INTRODUÇÃO 157
3. Resenha analítica
Distinguem-se no Ensaio três partes bem caracterizadas e correspondendo a
três interesses bem definidos: a) a origem da linguagem — estudo da necessidade
de comunicação no homem natural; b) diferenciação das línguas — estudo da
evolução dos grupos humanos e dos meios de expressão; c) estudo particular das
questões musicais relacionadas com a evolução lingüística e social. Quanto ao
último capítulo, cuja importância desejamos sublinhar expressamente, parece
constituir caso à parte, embora logicamente ligado às duas partes iniciais, como
se mostrará mais adiante.
A . ORIGEM D A L IN G U A G E M
É a diferenciação das línguas que dá interesse e conteúdo à pesquisa de sua
origem. Eis p o r que o Ensaio se inicia (cap. I) assinalando que a linguagem dife
rencia o homem entre os seres vivos, enquanto os homens entre si se distinguem
pela variedade das línguas — “não se sabe de onde é um homem antes de ter
falado ”. Por que causas semelhantes terão levado os homens a resultados tão
diferentes? Rousseau começa p o r traçar uma hipótese explicativa única para
demonstrar com o todos os homens, p o r sua condição, precisaram servir-se da
palavra.
A necessidade de comunicar-se com o semelhante p ode ser satisfeita tanto
pelo m ovim ente-(gesto) quanto pela voz (palavra), mas-a comunicação sonora
não se impõe forçosam ente. Há signos mudos (símbolos desligados de palavras)
poderosamente eloqüentes. “A ssim se fa la aos olhos muito melhor do que aos
ouvidos ”, ao menos quando se trata de exprimir sentimentos simples. Por isso,
pode-se imaginar que “se sempre conhecêssemos tão-só necessidades físicas bem
poderíam os jam ais ter falado ”.
Não falam os porque sejamos mais aptos para isso do que os outros animais,
nem tampouco apenas para exprimir as mesmas necessidades físicas que são co
muns a eles e a nós. Se, em maior ou menor proporção, todos os seres vivos se
comunicam, “a língua de convenção só pertence ao homem, e esta é a razão po r
INTRODUÇÃO 159
que o homem progride, seja para o bem ou para o mal, e p o r que os animais não
o conseguem ”.
Distingamos, pois, no homem considerado em estado natural, as necessi
dades que “ditaram os prim eiros g e sto s” das paixões que “arrancaram as prim ei
ras v o ze s” (cap. II). Não se creia que o desenvolvimento das línguas seja racio
nal, geométrico, porquanto de sua essência resulta o serem vivas e figuradas.
“Não se começou raciocinando, mas sentindo ”; enquanto as necessidades físicas
opunham os homens, as necessidades morais, as paixões, aproximavam-nos, sus
citando a linguagem que, forçosam ente, seria figurada (cap. III). Supondo-o
assim (cap. IV), a prim eira língua se comporia de combinações de sons simples
que, além do arranjo sonoro, ainda conheceriam a diversificação do tempo e da
qualidade, criando expressões capazes de proteger as paixões que se quer comu
nicar. Poucas consoantes, bastantes apenas para evitar os hiatos, imensa fartura
de sons e acentos, largo recurso à onomatopéia fariam dessa língua inicial algo
mais próximo da música do que da linguagem de que nos valemos em nossa con
dição atual. Eis p o r que o Crátilo platônico, bem compreendido, está longe de ser
ridículo.
Nessa hipótese evolutiva, pode-se avançar ainda um passo, pois parece
natural o progresso que irá multiplicando as consoantes, em prejuízo das infle
xões, numa transição da língua passional à racional (cap. V). Rousseau não se
contenta, contudo, com a explicação hipotética — em tudo conforme com seu
método genético. N o caso particular das línguas, p o d e oferecer-nos uma com pro
vação objetiva, válida ao menos para um largo período do desenvolvimento das
línguas e que encontra, na escrita, documentos de importância singular.
À escrita ficou realmente reservada a função de registrar boa parte da evo
lução da língua, sendo três as principais maneiras de escrever que se conhecem:
a) representar, não os sons, mas os próprios objetos, seja diretamente (anti
gos mexicanos), seja alegoricamente (antigos egípcios);
b) representar as palavras p o r caracteres convencionais (chineses);
c) representar as partes elementares das palavras, sejam vogais, sejam arti
culadas, para depois combiná-las em vocábulos.
“Esses três modos de escrever correspondem, exatamente, aos três diferen
tes estados em que se p o d e considerar os homens reunidos em nações”: povos
selvagens, povos bárbaros e p o vo s policiados. Não se creia, contudo, que a arte
de escrever dependa da arte de falar — sua evolução prende-se a outras necessi
dades que são, sobretudo, de precisão e clareza. Inevitavelmente, pois, a escrita
altera a língua, tirando-a do domínio da paixão desejosa de exprimir-se para
entregá-la à força e à clareza da razão. Eis p o r que só quando os gregos j á escre
viam suas poesias é que puderam sentir todo o encanto da composição pura
mente verbal dos poem as homéricos (cap. VI).
Conseqüentemente, nas línguas modernas procura-se, em pura perda, qual
quer acento real, isto é, musical, po is nelas só se encontra o acento prosódico e
o vocal, acrescentando-se, ainda, o acento gráfico que, malgrado freqüentes
confusões, nada tem de comum com aqueles (cap. VII). A acentuação surge exa
tamente quando desaparecem os acentos — as velhas línguas, faladas p o r nós,
nãó seriam entendidas pelos que delas se serviram correntemente. Por outro lado,
nenhuma música há nas línguas modernas e, quando falam os de sua musicali-
160 INTRODUÇÃO
d ade, apenas indicamos sua maior ou menor aptidão para serem aproveitadas na
composição musical. Tal é o caso até mesmo do italiano.
B. D IF E R E N C IA Ç Ã O D A S L ÍN G U A S
C. A QU ESTÃO D A M ÚSICA
D . O C A PÍTU L O F IN A L
Já as prim eiras palavras do capítulo X X denunciam que ele não se liga dire
tamente aos que o precedem. D e fa to , as palavras iniciais — tais progressos. . .
— não se referem especificamente aos progressos, aliás funestos, da música, de
que se acaba de falar, senão diretamente às transformações da língua, de que se
tratou até o capítulo X I. Há base, pois, para inferir-se ou que Rousseau haja
162 INTRODUÇÃO
1 Nas primeiras edições do Emílio, Rousseau, ao referir-se a este texto em nota que figura no Livro IV, cha
mava-o de Ensaio sobre o Princípio da Melodia. O título atual surge na mesma nota, porém nas edições
subsequentes. (N. de L. G. M.) -
C a p ít u l o I
a morte de sua mulher, não escreveu às impressiona por meio de golpes redo
tribos de Israel; dividiu-lhe o corpo em brados, proporciona-vos emoção bem
doze pedaços que enviou a elas. A hor diversa da causada pela presença do
rível visão, empunharam rapidamente próprio objeto, diante do qual, com um
as armas, gritando todos a uma só voz: só golpe de vista, tudo já vistes. Supon
N ão! nunca tal coisa aconteceu em de uma situação de dor perfeitamente
Israel, desde o dia em que nossos pais conhecida — vendo a pessoa aflita,
saíram do Egito até hoje. E a tribo de dificilmente vos comovereis até o pran
Benjamim foi exterminada7. to; dai-lhe, porém, tempo para dizer-
Em nossos dias, o assunto, transfor vos tudo que sente e logo vos desman
mado em arrazoados, em discussões, chareis em lágrimas. Assim as cenas
até mesmo em brincadeiras, arrastar- de tragédia conseguem efeito9. Somen
se-ia, e permaneceria impune o mais te a pantomima, sem o discurso,
tremendo dos crimes. O rei Saul, vol deixar-vos-á quase tranqüilo e o dis
tando da lavoura, também despedaçou curso, sem -o gesto, arrancar-vos-á lá
os bois de seu arado e serviu-se de um grimas. As paixões possuem seus ges
sinal semelhante para fazer Israel tos, mas também suas inflexões, e
socorrer a cidade de Jabés. Os profetas essas inflexões que nos fazem tremer,
dos judeus, os legisladores dos gregos, essas inflexões a cuja voz não se pode
oferecendo freqüentemente ao povo fugir, penetram por seu intermédio até
objetos visíveis, falavam-lhe melhor 0 fundo do coração, imprimindo-lhe,
com esses objetos do que o teriam feito mesmo que não o queiramos, os movi
com longos discursos, e o modo pelo mentos que as despertam e fazendo-
qual Ateneu conta como o orador nos sentir o que ouvimos. Concluamos
Hipérides fez absolver a cortesã Fri- que os sinais visíveis tornam a imita
néia, sem alegar em sua defesa uma ção mais exata e que o interesse me
única palavra, constitui ainda uma lhor se excita pelos sons1°.
eloqüência muda, cujo efeito, em todos Inclino-me, por isso, a pensar que,
os tempos, não é raro8. se sempre conhecêssemos tão-só neces-
Assim se fala aos olhos muito me
lhor do que aos ouvidos. Não há uma 9 Em outro trecho, expliquei por que as infeli-
só pessoa que não reconheça a verdade cidades fingidas nos tocam bem mais do que
do juízo de Horácio a tal respeito. as verdadeiras. Uma pessoa pode soluçar
ouvindo uma tragédia e nunca, durante toda a
Compreende-se mesmo que os discur vida, sentir piedade por qualquer infeliz. O tea
sos mais eloqüentes são aqueles em tro se presta admiravelmente para enobrecer
que se introduz o maior número de nosso amor-próprio com todas as virtudes que
imagens e os sons nunca possuem não possuímos. (N. do A.)
maior energia do que quando fazem o 10 Aqui se esboça uma teoria psicológica da
comunicação e, aparentemente, uma estética
efeito das cores. baseada na imitação, cabendo, por isso
Temos coisa totalmente diversa, mesmo, lembrar que no pensamento de Rous
contudo, quando se trata de comover o seau as paixões constituem a mais direta
coração e inflamar as paixões. A expressão natural do homem e, corresponden
temente, as inflexões emocionais importam
impressão sucessiva do discurso, que mais do que a significação racional das pala
vras. Assim, o caráter imitativo da arte acaba
7 Restaram somente seiscentos homens, sem por passar para segundo plano, prevalecendo a
mulheres e filhos. (N. do A.) comunicação emotiva e, portanto, ganhando a
8 Apresentando-a nua aos juizes. (N. de L. G. palavra falada um valor que não possuem os
M.) símbolos puramente visuais. (N. de L. G. M.)
168 ROUSSEAU
sidades físicas, bem poderíamos jamais que dizem, vêem-se forçados a ensi
ter falado, e entender-nos-íamos perfei nar-lhes, antes, uma outra língua, não
tamente apenas pela linguagem dos menos complicada, por meio da qual
gestos11. Poderíamos ter estabelecido possam fazer com que entendam aque
sociedades, pouco diversas do que são la.
hoje, ou que alcançassem até melhor o Chardin1 4 conta que, nas índias, os
seu objetivo. Teríamos podido instituir mensageiros, um segurando a mão do
leis, escolher chefes, inventar artes, outro e modificando as pressões de um
estabelecer o comércio e, numa pala modo que ninguém pode perceber, tra
vra, fazer quase tantas coisas quantas tam assim, publicamente mas em se
fazemos com o auxílio da palavra. A gredo, de todos os negócios sem dizer
língua epistolar dos “salames” 12 uma só palavra. Suponde esses mensa
transmite, sem temor dos ciumentos, geiros cegos, surdos e mudos — não se
os segredos da galantaria oriental para entenderiam menos bem, mostrando
o interior dos haréns mais bem guarda tal fato que, dos dois sentidos pelos
dos. Os mudos do sultão se entendem quais somos ativos, um só bastaria
para formar-nos uma linguagem.
entre si e compreendem por sinais tudo
Parece, ainda pelas mesmas obser
o que se lhes diz, tão bem quanto se
vações, que a invenção da arte de
poderia dizer-lhes por meio do discur
comunicar nossas idéias depende
so. O Sr. Pereyra13 e todos aqueles menos dos órgãos que nos servem para
que, como ele, ensinam os mudos não tal comunicação do que de uma facul
somente a falar mas também a saber o dade própria do homem, que o faz
11 Desenvolvendo as afirmações anteriores empregar seus órgãos com esse fim e
(v. nota n.° 3, supra) chegamos agora à convic que, caso lhe faltassem, o fariam
ção de que as simples necessidades físicas, isto empregar outros órgãos com o mesmo
é, individuais, dispensariam a palavra, que, fim. Dai ao homem uma organização
pois, como se dizia no início do Ensaio, tem
sua origem nas necessidades mais complexas
tão grosseira quanto possais imaginar:
que resultam do convívio com os semelhantes indubitavelmente, adquirirá menos
— defrontamos uma convenção social. O tre idéias, mas, desde que haja entre ele e
cho é, contudo, complexo e de difícil interpre seus semelhantes qualquer meio de
tação, pois nele se admite que o homem natu comunicação pelo qual um possa agir
ral viva em grupo — são, porém,
agrupamentos “naturais”, resultantes diretos e o outro sentir, acabarão afinal por
dos impulsos biológicos, algo mais complexos, comunicar todas as idéias que pos
porém da mesma natureza dos grupos animais. suem1 5.
Não obstante, nesta passagem, Rousseau enca
rece o valor da simbólica em si, distinguindo-a 1 4 Trata-se do mesmo Chardin, autor das
do instrumento de simbò|lização. Viagens e especialmente da Viagem à Pérsia,
(N. de L. G. M.) que já conhecemos de citações em outros tex
12 Os “salames” são multidões de coisas as tos (v., por ex., nota j ao Discurso sobre a
mais comuns, como uma laranja, uma fita, um Desigualdade). Convém registrar que no D i
pedaço de carvão, etc., cujo envio possui um cionário de Música também surgem fartas
sentido conhecido de todos os amorosos nas referências a essa mesma fonte, que assim se
regiões onde se usa tal língua. (N. do A.) torna um ponto de reparo para as hipóteses
13 Em 1760, o espanhol Jacob Rodríguez sobre a data em que se escreveu este Ensaio.
Pereyra foi chamado a Paris, e aí passou a (N. de L. G. M.)
viver como pensionista real. Impressionado 1 6 Concluindo anteriores desenvolvimentos,
com sua atividade reeducativa, BufTon lou aqui se rejeita em definitivo qualquer explica
vou-o no capítulo da História Natural do ção meramente fisiológica da comunicação
Homem dedicado ao sentido da audição. (N. pela linguagem. Assim se afirma a origem so
de L. G. M.) cial da linguagem, tal como hoje a aceitam a
ENSAIO SOBRE A ORIGEM DAS LÍNGUAS 169
C a p ít u l o II
Pode-se, pois, crer que as necessi Assim devia ser. Não se começou
dades ditam os primeiros gestos e que raciocinando, mas sentindo. Pretende-
as paixões arrancaram as primeiras se que os homens inventaram a palavra
vozes. Seguindo a trajetória dos fatos para exprimir suas necessidades; tal
com base nessas distinções, seria tal opinião parece-me insustentável. O
vez preciso raciocinar sobre a origem efeito natural das primeiras necessi
das línguas de um modo totalmente dades1 7 consistiu em separar os ho
diverso do que se fez até hoje. O gênio mens e não em aproximá-los18. Era
das línguas orientais, as mais antigas preciso que assim acontecesse para
que conhecemos, desmente por com que a espécie acabasse por esparra
pleto a marcha didática que se imagina mar-se e a terra se povoasse com rapi
para a sua composição. Essas línguas dez, pois sem isso o gênero humano
nada possuem de metódico e racioci ter-se-ia amontoado num canto do
nado; são vivas e figuradas. Apresen mundo e todo o resto ficaria deserto.
tam-nos a linguagem dos primeiros ho Daí se conclui, por evidência, não se
mens como línguas de geômetras e veri dever a origem das línguas às primei-
ficamos que são línguas de poetas1 6.
1 7 Mais exatamente: das necessidades físicas
1 • Não se deve tomar esta afirmação — tão instintivas, como a seguir ficará claro. (N. de
admiravelmente formulada — como uma L. G. M.)
expressão do alegado anti-racionalismo de 18 Há, aqui, uma clara ressonância de Hob
Rousseau, senão como uma inferência baseada bes, embora logo depois adquira inesperada
em dados históricos. (N. de L. G. M.) extensão finalista. (N. de L. G. M.)
170 ROUSSEAU
ras necessidades dos homens; seria vozes. Os frutos não fogem de nossas
absurdo que da causa que os separa mãos, é possível nutrir-se com eles sem
resultasse o meio que os une. Onde, falar; acossa-se em silêncio a presa que
pois, estará essa origem? Nas necessi se quer comer; mas, para emocionar
dades morais19, nas paixões. Todas as um jovem coração, para repelir um
paixões aproximam os homens, que a agressor injusto, a natureza impõe
necessidade de procurar viver força a sinais, gritos e queixumes. Eis as mais
separarem-se. Não é a fome ou a sede, antigas palavras inventadas, eis por
mas o amor, o ódio, a piedade, a cóle que as primeiras línguas foram cantan
ra, que lhes arrancaram as primeiras tes e apaixonadas antes de serem sim
19 Tais necessidades já derivam de um conta
ples e metódicas. Tudo isso não será
to com os semelhantes, de um primeiro rudi indistintamente verdadeiro, porém den
mento de vida social. (N. de L. G. M.) tro em pouco voltarei ao assunto.
C a p ít u l o III
C a p ít u l o IV
D os caracteres distintivos da primeira língua
e das mudanças que teve de sofrer
C a p ít u l o V
Da escrita
Quem quer que estude a história e o tes, e que as inflexões que desaparecem
progresso das línguas, verificará que, e as qualidades que se igualam são
quanto mais se tornam monótonas as substituídas por combinações gramati
vozes, mais se multiplicam as consoan cais e por novas articulações. Somente,
ENSAIO SOBRE A ORIGEM DAS LÍNGUAS 173
ciência de sua análise, uns, como os uma tal escrita pode bastar a um povo
gregos, multiplicaram os caracteres de policiado prova-o o exemplo dos mexi
seu alfabeto, e outros contentaram-se canos, que possuíam uma ainda menos
em variar o sentido e o som por meio cômoda.
de posições ou combinações diferentes. Comparando-se o alfabeto copta
Desse modo parecem ser escritas as com o siríaco ou com o fenício,
inscrições das ruínas de Tchelminar, conclui-se, com facilidade, que um
das quais Chardin nos oferece écti- vem do outro. E não causaria espanto
pos2 5. Não se distinguem neles senão que fosse este último o original, nem
duas figuras ou caracteres2 6, porém de que, nesse ponto, o povo mais moder
tamanhos diferentes e colocadas em no tivesse instruído 0 mais antigo.
vários sentidos. Essa língua desconhe Também é certo que o alfabeto grego
cida e de uma antiguidade quase vem do fenício; compreende-se mesmo
espantosa, todavia, deveria ser, a seu que devesse vir. Não se sabe se Cadmo
tempo, bem formada, se a julgarmos ou qualquer outro o trouxe da Feníciá,
pela perfeição das artes patenteada mas o certo é que os gregos não o
pela beleza dos caracteres e pelos foram procurar e que os próprios fení
monumentos admiráveis em que se cios o trouxeram, pois, dos povos da
acham tais inscrições2 7. Não sei por Ásia e da África, foram os primeiros e
que se fala tão pouco dessas ruínas quase os únicos2 8 que comerciaram na
impressionantes. Quando li a sua des Europa e chegaram à Grécia m uito1
crição por Chardin, pensei estar-me
transportando para um outro mundo. 2 7 “Essa escrita parece muito bela e nada tem
Parece-me que tudo isso leva à refle de confusa ou bárbara. Dir-se-ia que as letras
xão apaixonada. foram douradas, pois há muitas, sobretudo
maiúsculas, onde ainda aparece o ouro e certa
A arte de escrever não se liga à de mente constitui fato admirável e inconcebível
falar. Prende-se a necessidades de que o ar não tenha conseguido,-durante tantos
outra natureza que, mais cedo ou mais séculos, apagar essa douração. Quanto ao
tarde, aparecem, de acordo com cir mais, não constitui prodígio que tantos sábios
do mundo nunca tenham conseguido com
cunstâncias totalmente independentes preender qualquer coisa dessa escrita, dado
da duração dos povos, e que jamais que de forma alguma se aproxima de nenhuma
poderiam ter surgido no seio de nações escrita que chegou até nosso conhecimento,
muito antigas. Não se sabe por quanto enquanto todas as escritas atualmente conheci
tempo a arte dos hieróglifos constituiu das, com exceção do chinês, possuem grande
afinidade entre si e parecem provir da mesma
talvez a única escrita dos egípcios. Que fonte. Õ que existe nesta de mais maravilhoso
é que os guebros, últimos remanescentes dos
2 5 Embora éctipo, em sentido estrito, signifi antigos persas, cuja religião conservam e per
que a reprodução em relevo do cunho de moe petuam, não só não conhecem melhor do que
das (e ectipografia, a tipografia em relevo), a nós esses caracteres como também seus carac
palavra, no caso, é usada para indicar reprodu teres não se assemelham a eles mais do que os
ção, por moldagem, de inscriçõès gravadas na nossos. Conclui-se daí que oü é um caráter de
pedra. (N. de L. G. M.) cabala, o que não é verossímil por ser comum
2 6 “Muitos se admiram”, diz Chardin, “com e natural ao edifício em todas as suas partes,
o fato de duas figuras poderem produzir tantas ou que não existe outra da mesma mão, ou que
letras, mas, quanto a mim, não vejo nisso mo é de uma tal antiguidade que quase não ousa
tivo para tão grande espanto, desde que as le ríamos dizer.” Chardin, efetivamente, com esse
tras de nosso alfabeto, em número de vinte e trecho, faria presumir que, no tempo de Ciro e
três, se compõem apenas de duas linhas — a dos jnagos, essa escrita já estava esquecida e
reta a circular, isto é, com um C e um I for tão pouco conhecida quanto hoje. (N. do A.)
mam-se todas as letras que compõem nossas 28 Considero os cartagineses fenícios, por
palavras”. (N. do A.) serem uma colônia de Tiro. ÍN. do A.)
ENSAIO SOBRE A ORIGEM DAS LÍNGUAS 175
C a p ít u l o V I
Apesar do que se diz sobre a inven mar que toda a Odisséia é um conjunto
ção do alfabeto grego, eu a considero de idiotices e de inépcias que uma ou
muito mais moderna do que se julga, e duas letras teriam reduzido a fumo,
é principalmente no caráter da língua enquanto que se pode tomar esse
que fundamento tal opinião. Muitas poema razoável e mesmo muito bem
vezes veio a meu espírito a dúvida não conduzido supondo-se que seus heróis
só de que Homero soubesse ler, mas tenham ignorado a escrita. Se a Ilíada
até de que no seu tempo se escrevesse. tivesse sido escrita seria muito menos
Sinto muito que tal dúvida tão formal cantada, os rapsodos menos procura
mente seja desmentida pela história de dos e menos multiplicados. Nenhum
Belerofonte na Ilíada e, como tenho a outro poeta foi tão cantado, salvo
infelicidade de ser, como o Padre Har- Tasso em Veneza e, assim mesmo, só
douin, um pouco obstinado em meus pelos gondoleiros, que não são grandes
paradoxos, sentir-me-ia bastante tenta leitores. Outro preconceito bastante
do, se fosse menos ignorante, a esten enraizado concerne à quantidade de
der minhas dúvidas até sobre essa his dialetos empregados por Homero. Os
tória e de acusá-la de ter sido, sem dialetos, distinguidos pela palavra,
muito exame, interpolada pelos compi aproximam-se e confundem-se na es
ladores de Homero. Não somente crita; tudo, insensivelmente, se liga a
encontram-se, no resto da Ilíada, pou um modelo comum. Quanto mais uma
cos traços dessa arte, mas ouso afir nação lê e se instrui, mais desaparecem
ENSAIO SOBRE A ORIGEM DAS LÍNGUAS 177
seus dialetos e, por fim, só permane reunidos por escrito muito mais tarde e
cem como gíria no seio do povo, que lê com grande dificuldade. Foi quando
pouco e nunca escreve. começaram a abundar na Grécia os li
Ora, sendo esses dois poemas poste vros e as poesias escritas que se sentiu,
riores ao sítio de Tróia, não é absoluta por comparação, todo o encanto da de
mente certo que os gregos, que realiza Homero. Os outros poetas escreviam,
ram o sítio, conhecessem a escrita e só Homero tinha cantado, e só se dei
que o poeta que o cantou tivesse ciên xou de ouvir com encantamento esses
cia dela. Esses poemas por muito cantos divinos quando a Europa se en
tempo permaneceram inscritos unica cheu de bárbaros que se meteram a jul
mente na memória dos homens; foram gar o que não podiam sentir.
C a p ít u l o V II
D a prosódia moderna
32 Alguns sábios pretendem, contra a opinião satietatem. Haec igitur duo voeis dico modera-
comum e contra prova baseada em todos os tionem, et verborum conclusionem, quod ora-
manuscritos antigos, terem os gregos conhe tionis severitas p a ti possit, a poética ad
cido e praticado na escrita os sinais chamados eloquentiam traducenta duxerunt ”.
acentos, e fundamentam essa opinião em dois Aqui está o segundo, extraído de Isidoro, nas
trechos que transcreverei tanto um quanto suas Origens, Livro I, capítulo XX:
outro, a fim de que o leitor possa julgar de seu “Praeterea quaedam sententiarum notae apud
verdadeiro sentido. celeberrimos auctores fuerunt, quasque antiqui
Eis o primeiro, extraído de Cícero, no seu tra ad distinctionem scripturarum carminibus et
tado D o Orador, Livro III, § 44: historiis apposuerunt. N ota est figura própria
“Hanc diligentiam subsequitur modus etiam et in litterae modum posita, ad demonstrandum
form a verborum, quod jam vereor ne h\iic Ca- unamquamque verbi sententiarumque ac ver-
tulo videatur esse puerille. Versus enim veteres suum rationem. Notae autem versibus appo-
illi in hac soluta oratione propemodum, hoc nuntur numero X X V I, quae sunt nominibus
est, números quosdam nobis esse adhibendos infra scriptis, etc.
putaverunt. Interspirationis enim non defatiga- Para mim, por aí vejo que ao tempo de Cícero
tionis nostrae, neque librariorum notis, sed os bons copistas praticavam a separação das
verborum et sententiarum modo, interpunctas palavras e empregavam certos signos equiva
clausulas in orationibus esse voluerunt: idque lentes à nossa pontuação. E, além disso, a
princeps Isocrates instituísse fertur, ut incondi- invenção do número e a declaração da prosa
tam antiquorum dicendi consuetudinem, delec- atribuída a Isócrates. Não posso reconhecer,
tationis atque aurium causa (quemadmodum contudo, os signos escritos, os acentos e, ainda
scribit discipulus ejus Naucrates), numeris que os reconhecesse, disso não se poderia con
adstringeret. cluir senão algo que não objeto e que se enqua
‘‘Namque haec duo musici, qui erant quondam dra perfeitamente em meus princípios, isto é,
iidem poetae, machinati ad voluptatem sunt, que, quando os romanos começaram a estudar
versum atque cantum, ut et verborum numero, o grego, os copistas inventaram, para indicar a
et vocum modo, delectatione vincerent aurium pronúncia, os sinais dos acentos, dos espíritos
178 ROUSSEAU
gua, do palato, que determinam a pelo mais a que se refere, vê-se que o
diversidade das vozes; nenhum pelas Sr. Duelos não reconhece qualquer
modificações da glote, que é o que acento musical em nossa língua, mas
determina a diversidade de sons. unicamente o acento prosódico e o
Assim, quando o nosso acento circun vocal. Acrescenta-se-lhe um acento
flexo não é uma voz simples, é uma ortográfico que em nada influencia a
longa, ou então nada é. Vejamos, voz, o som ou a quantidade, mas que
agora, o que acontecia entre os gregos. às vezes indica uma letra suprimida,
Dionísio de Halicarnasso diz que a como o circunflexo, e, outras vezes,
elevação do tom no acento agudo e o fixa o sentido equívoco de um monos
abaixamento no grave formavam uma sílabo, como o pretenso acento grave
quinta; assim também o acento prosó que distingue ou advérbio de lugar de
dico era mustcal, sobretudo o circun ou partícula disjuntiva e à usado como
flexo, no qual a voz, depois de ter subi artigo de a como verbo. Acento que
do uma quinta, descia, na mesma distingue esses monossílabos somente
sílaba, uma quinta33. Por esse trecho e à vista, não determinando nenhum
efeito na pronúncia3 4. Assim, a defini
è da prosódia. Em absoluto não se segue que ção de acento adotada geralmente
tais signos fossem usados entre os gregos, que pelos franceses não convém a quais
deles não tinham qualquer necessidade. (N. do
A.)
quer dos acentos da sua língua.
* “A este cuidado segue-se o do ritmo e da Estou certo de que muitos de seus
forma das palavras; o que então receio que pa gramáticos, preocupados em marca
Ireça pueril a Catulo. Entretanto, os próprios rem nos acentos uma elevação ou um
I antigos achavam que a prosa deveria ser senti
da quase como um verso, isto é, que uns certos
abaixamento de voz, acusarão, tam
ritmos devessem ser admitidos por nós. Quise bém neste ponto, um paradoxo e, por
ram, com efeito, que pausas para a respiração não recorrerem suficientemente à expe
fossem introduzidas nas orações, marcadas riência, acreditarão poder determinar
não pelos sinais da nossa fadiga, nem por si por modificações da glote esses mes
nais dos escritores, mas pelo ritmo das pala
vras é sentenças; e sabe-se que Isócrates foi o mos acentos que se emitem tão-só
primeiro a ensinar isso, e subordinava, restrin variando a abertura da boca ou as
gia a maneira de falar, desordenada, dos anti posições da língua. Eis, porém, o que
gos a números, em razão do prazer e dos ouvi tenho a dizer-lhes para comprovar a
dos (como escreve Náucrates, seu discípulo).
“Com efeito, dois músicos, eles mesmos outro- experiência e tornar irreplicável a
ra poetas, a fim de agradar, procuravam o minha prova.
verso e o canto, de modo a vencer, pelo prazer, Assumi com a voz exatamente o
a fadiga do ouvido, não só com o número das uníssono de um instrumento musical e,
palavras, mas também com o modo das vozes.
Julgaram, pois, que estas duas coisas — a sobre esse uníssono, pronunciai exata
moderação da voz e a cadência das palavras mente todas as palavras francesas mais
— deviam ser transferidas, tanto quanto a gra- diversamente acentuadas que puderdes
vváade. da oração o permitisse, da poética para reunir. Como não se trata, nesse caso,
a eloqüência.” — Cícero, D e Oratore.
“Além disso, entre os mais célebres autores
do acento oratório, mas somente do
antigos, havia certos sinais de sentenças que gramatical, não é sequer necessário
apunham aos versos e histórias a fim de sepa
rar as escrituras. Tal sinal tem figura própria,
à maneira de uma letra, para pôr em relevo a 3 4 Poder-se-ia crer que por esse mesmo acen
razão de alguma palavra, sentença ou verso. to os italianos distinguem, por exemplo, e
Os sinais, porém, usados nos versos, são vinte verbo de e conjunção; o primeiro, porém, se
e seis, cujos nomes se transcrevem abaixo. . . ” distingue ao ouvido por um som mais forte e
Isidoro, — Origines. (N. de L. G. M.) mais sustentado, o que toma vogal o acento
33 Duelos, Remarques sur la Grammaire Gé com o qual é assinalado — observação que
nérale et Raisonnée. pág. 30. (N. do A.) Buonmattei fez mal em não anotar. (N. do A.)
ENSAIO SOBRE A ORIGEM DAS LÍNGUAS 179
que as várias palavras formem um sen estivesse bem fixado, não tinham ainda
tido contínuo. Falando desse modo, valor igual ao do uso. Acrescentaria,
observai se não marcais sobre esse mais, que foram substitutivos. Os anti
som todos os acentos tão sensível e gos hebreus não possuíam quaisquer
nitidamente quanto os pronunciáveis pontos ou acentos, nem mesmo vogais.
sem dificuldade, variando vosso tom Quando as outras nações se resolve
de voz. Ora, posto esse fato, que é ram a falar hebreu e os judeus falaram
incontestável, eu asseguro que, expri outras línguas, a sua perdeu o seu
mindo-se todas as vossas inflexões no acento; tornaram-se necessários pon
mesmo tom, não assinalam sons dife tos e sinais para regulamentá-la e isso
rentes. Não imagino o que se possa antes restabeleceu o sentido das pala
responder a isso. vras. do que a pronúncia da língua. Os
Toda língua, em que se pode colocar judeus de hoje, falando hebreu, não
inúmeras árias musicais sobre as mes mais seriam compreendidos por seus
mas palavras, não possui um acento antepassados.
musical determinado. Fosse ele deter Para saber o inglês é preciso apren
minado e a ária também o seria; desde dê-lo duas vezes — uma a ler e outra a
que o canto é arbitrário, o acento nada falar. Se um inglês lê em voz alta e um
vale. estrangeiro lança os olhos sobre o
As línguas modernas da Europa livro, o estrangeiro não percebe liga
estão, todas, mais ou menos no mesmo ção alguma entre o que vê e o que
caso. Não excetuo sequer a italiana. A ouve. Por que assim acontece? Porque,
língua italiana, tanto quanto a france tendo sido a Inglaterra sucessivamente
sa, não é em si mesma musical. A dife conquistada por vários povos, as pala
rença reside unicamente em que unia vras sempre foram escritas do mesmo
se presta à música e outra nãó. modo, enquanto o modo de pronun
Tudo isso leva à confirmação do ciá-las mudou freqüentemente. Há
princípio que diz deverem todas as lín muita diferença entre os sinais que
guas escritas, por um progresso natu determinam o sentido da escrita e
ral, mudar de caráter e perder força, aqueles que regulamentam a pronún
ganhando clareza; que quanto mais se cia. Seria muito fácil criar, unicamente
procurar aperfeiçoar a gramática e a com consoantes, uma língua muito
lógica, mais se acelerará esse progres clara para ser escrita, mas que não se
so; e que, para rapidamente tomar poderia falar. A álgebra possui algo
uma língua fria e monótona, basta dessa língua. Quando uma língua é
estabelecer academias no seio do povo mais clara por sua ortografia do que
que a fala. por sua pronúncia, isso constitui sinal
Conhecem-se as línguas derivadas de ser mais escrita do que falada.
pela diferença entre a ortografia e a Assim poderia ser a língua erudita dos
pronúncia. Quanto mais antigas e ori egípcios e assim são, para nós, as lín
ginais são as línguas, menos arbitra guas mortas. Naquelas que são sobre
riedade existe no modo de pronunciá- carregadas de consoantes inúteis, pare
las e, conseqüentemente, menos ce que a escrita precedeu a palavra —
complicação de caracteres para deter quem não diria estar o polonês nesse
minar a sua pronúncia. Todos os sinais caso? Se fosse verdade, a língua polo
prosódicos dos antigos, diz o Sr. nesa deveria ser a mais fria de todas as
Duelos, supondo-se que seu emprego línguas.
180 ROUSSEAU
C a p ítu lo VIII
Diferenças geral e local na origem das línguas
Tudo o que afirmei até agora se refe mais longe; impõe-se começar obser
re em geral às línguas primitivas e ao vando as diferenças, para descobrir as
progresso que resulta de sua duração, propriedades3 5.
mas não explica nem a sua origem nem O gênero humano, nascido nas
as suas diferenças. A principal causa regiões quentes, daí passa para as
que as distingue é local, resulta dos cli frias; nestas se multiplica e, depois,
mas em que nascem e da maneira pela volta às regiões quentes. Dessa ação e
qual se formam. A tal causa deve-se reação resultam as revoluções da terra
recorrer para conceber a diferença e a agitação contínua de seus habitan
geral e característica que se nota entre tes. Esforcemo-nos, nas nossas pesqui
as línguas do sul e as do norte. O gran sas, para seguir a própria ordem da
de defeito dos europeus consiste em natureza. Inicio uma longa digressão
sempre filosofarem sobre as origens sobre um assunto tão repisado quanto
das coisas baseando-se no que se passa trivial, mas ao qual sempre se tem
à sua volta. Nunca deixam de nos necessidade de voltar, mesmo quando
apontar os primeiros homens, habi já muito se tenha dito, a fim de encon
tando uma terra ingrata e rude, mor trar a origem das instituições huma
rendo de frio e de fome, impelidos a nas.
conseguirem um abrigo e roupas; vêem
em todos os lugares somente a neve e 3 5 Com esta notável repulsa ao etnocentrismo
os gelos da Europa, sem se lembrarem europeu, afastamo-nos decididamente da
orientação unanimemente aceita pelos autores
de que a espécie humana, como todas do século XVIII, para os quais era válido um
as outras, nasceu nas regiões quentes, e conceito de homem deduzido de certos princí
que em dois terços do globo pouco se pios gerais anistóricos. Rousseau quer buscar,
conhece o inverno. Quando se quer para além da “ordem natural” e na própria
vida dos homens tal qual existem em todo o
estudar os homens, é preciso olhar em mundo, a ordem humana, isto é, o conheci
torno de si, mas, para estudar o mento do homem em sua própria realidade.
homem, importa que a vista alcance (N. de L. G. M.)
C a p ítu lo IX
Formação das línguas meridionais
uns dos outros. Essa opinião era-lhes não pode ser clemente, justo, ou piedo
comunicada por sua fraqueza e igno so, nem tampouco mau e vingativo.
rância. Nada conhecendo, tudo te Quem nada imagina não sente mais do
miam: atacavam para se defenderem. que a si mesmo: encontra-se só no
Deveria ser um animal feroz esse meio do gênero humano.
homem abandonado sozinho na super A reflexão nasce das idéias compa
fície da terra, à mercê do gênero huma radas; a pluralidade dessas idéias é que
no. Estava pronto a fazer aos outros leva à comparação. Quem vê um único
todo o mal que neles temia. As fontes objeto não pode fazer comparações.
da crueldade são o temor e a fraque Quem vê somente um pequeno número
za38. de objetos e, desde a infância, sempre
As afeições sociais só se desen os mesmos, também não os compara,
volvem em nós com nossas luzes. A porque o hábito de vê-los impede a
piedade, ainda que natural ao coração atenção necessária para examiná-los.
do homem, permaneceria eternamente À medida, porém, que nos impressiona
inativa sem a imaginação que a põe em um objeto novo, queremos conhecê-lo
ação. Como nos deixamos emocionar e procuramos relações entre ele e os
pela piedade? — Transportando-nos que já conhecemos. Assim aprendemos
para fora de nós mesmos, identifican a conhecer o que está sob nossos olhos
do-nos com o sofredor. Só sofremos e somos levados, pelo que nos é estra
enquanto pensamos que ele sofre; não nho, a examinar aquilo que nos interes
é em nós, mas nele, que sofremos. sa39.
Figuremo-nos quanto de conheci Aplicai essas idéias aos primeiros
mentos adquiridos supõe tal transposi homens e encontrareis os motivos de
ção. Como poderia eu imaginar males sua barbárie. Sempre vendo tão-só o
dos quais não formo idéia alguma? que estava à sua volta, nem mesmo
Como poderia sofrer vendo outro isso conheciam, nem sequer conheciam
sofrer, se nem soubesse que ele sofre? a si próprios. Tinham a idéia de um
Se ignoro o que existe de comum entre pai, de um filho, de um irmão, porém
ele e mim? Aquele que nunca refletiu, não a de um homem. Sua cabana con
tinha todos os seus semelhantes: para
3 7 As verdadeiras línguas absolutamente não ele, era a mesma coisa um estrangeiro,
possuem uma origem doméstica; somente uma
convenção mais geral e mais duradoura pode um animal, um monstro. Além de si
estabelecê-las. Os selvagens da América quase mesmos e de sua família, todo o uni
nunca falam, a não ser fora de casa; cada um verso nada significava para eles.
guarda silêncio em sua cabana e fala à família Resultam daí as contradições apa
por sinais, sendo tais sinais pouco freqüentes,
pois um selvagem é menos iriquieto e impa
rentes que se notam entre os pais das
ciente do que um europeu, não tendo tantas nações. Tanta naturalidade e tanta
necessidades e esforçando-se mais para supri- desumanidade; costumes tão ferozes e
las sozinho. (N. do A.) corações tão ternos; tanto amor pela
38 Nova ressonância de Hobbes faz-se sentir própria família e tanta aversão pela
aqui, de tal modo, contudo, que esclarece a
sua espécie. Todos os seus sentimen-
posição de Rousseau, desfazendo certos equí
vocos. De fato, o seu “homem natural”, como
o hobbesiano, é um feixe de reações primárias 39 Esta descrição psicológica já nos traz do
fisiopsicológicas (aqui suposto como agindo “homem natural” ao homem posto num pro
num passo real — porém, não histórico — de cesso inicial de integração social. Cabe assina
sua evolução), mas não é “naturalmente bom”. lar que a imaginação, motor da razão, só co
Sua “bondade” precisa de estímulo para entrar meça a agir e crescer nos contatos com os
em ação. (N. de L. G. M.) semelhantes. (N. de L. G. M.)
182 ROUSSEAU
pria história, pois ao tempo de Triptó- vra “junta” 42 mostra que esses bois
lemo comiam carne, tanto que ele os çram assim jungidos para o trabalho.
proibiu de comê-la. De resto, não se Fica claramente dito que esses bois
sabe que tenham levado em grande trabalhavam quando os sabeus os rou
consideração tal proibição. Nos festins baram e pode-se imaginar qual a exten
de Homero matava-se um boi para são de terra que quinhentos pares de
regalar os hóspedes, como hoje se bois deviam cultivar.
mataria um leitãozinho. Lendo-se que Tudo isso é verdadeiro, porém não
Abraão serviu um bezerro a três pes confundamos os tempos. A época
soas, que Eumeu mandou assar dois patriarcal, que conhecemos, está bem
cabritos para o jantar de Ulisses e que longe da primeira idade. A Escritura
o mesmo fez Rebeca para o de seu enumera, entre uma e outra, dez gera
marido, pode-se imaginar que tremen ções, naqueles séculos em que os ho
dos devoradores de carne eram os ho mens viviam muito. Que fizeram du
mens daqueles tempos. Para conceber rante essas dez gerações? Nada
como eram as refeições dos antigos, sabemos. Vivendo separados e quase
basta ver a dos selvagens de hoje — sem sociedade, apenas falavam —
quase disse: a dos ingleses. como poderiam escrever? E, na unifor
O primeiro bolo que se comeu foi a midade de sua vida isolada, que acon
comunhão do gênero humano. Quando tecimentos poderiam comunicar?
os homens começaram a se fixar, surri- Adão falava, Noé falava — seja.
baram um pouco de terra em torno da Adão foi instruído pelo próprio Deus.
cabana: era mais um jardim do que Ao se dividirem, os filhos de Noé
uma lavoura. O pouco de grão colhido abandonaram a agricultura e a língua
era moído entre duas pedras; dele se comum pereceu com a primeira socie
faziam alguns bolos que eram cozidos dade. Tal coisa aconteceria ainda que
sob a cinza ou sobre a brasa ou, ainda, nunca tivesse existido uma Torre de
sobre uma pedra aquecida, e só eram Babel. Sabe-se de solitários esquece
comidos durante os festins. Esse uso rem, em ilhas desertas, a sua própria
antigo, que foi consagrado pela Páscoa língua. Bem raramente os homens con
entre os judeus, conserva-se ainda hoje
servam, depois de muitas gerações fora
na Pérsia e nas índias. Aí só se come
de seu país, a sua própria língua,
pão sem fermento, e esses pães, feitos
mesmo trabalhando em comum e vi
em folhas delgadas, cozinham-se e
vendo, entre si, em sociedade.
comem-se em cada refeição. Só se lem
braram de fermentar o pão quando se Esparsos no vasto deserto do
preçisou de uma quantidade maior, mundo, os homens tornaram a cair na
pois a fermentação não se processa estupidez bárbara em que se encontra
bem numa quantidade pequena. riam se tivessem nascido da terra.
Aceitando-se essas idéias, tão naturais,
Sei que já no tempo dos patriarcas torna-se fácil conciliar a autoridade da
se pode encontrar a agricultura em
larga escala. A proximidade do Egito Escritura com a dos monumentos anti
cedo a terá levado para a Palestina. O gos, não se ficando reduzido a tratar
como fábulas tradições tão antigas
livro de Jó, talvez o mais antigo de
todos os livros existentes, fala da cultu 42 No texto francês está paire, que significa
ra dos campos; cita quinhentas juntas indiferentemente quaisquer seres postos dois a
de bois entre as riquezas de Jó. A pala dois. (N. de L. G. M.)
184 ROUSSEAU
çam sobre nossas regiões férteis uma em conjunto as perdas comuns. As tra
perpétua colônia que promete nunca se dições das desgraças da terra, tão
esgotar. freqüentes nos tempos antigos, mos
Dir-se-á natural que os habitantes tram de quais instrumentos se serviu a
de uma região hostil a deixem para Providência para forçar os seres huma
ocupar uma melhor. Muito bem; mas, nos a se unirem. Depois que se estabe
por que essas regiões melhores, em leceram as sociedades, cessaram esses
lugar de formigarem de habitantes grandes acidentes ou então se tom a
seus, se transformam em asilo dos ram raros. Parece que isso continuará
outros? Para sair de uma região hostil a acontecer — as mesmas infelicidades
é preciso estar nela e por que, então, que reuniram os homens esparsos
nascem aí preferencialmente tantos dispersaram aqueles. que se reuni
homens? Parece mais razoável que ram 50.
devessem as regiões ingratas povoar-se As mudanças das estações repre
unicamente com o excedente das fér sentam outra causa, mais geral e mais
teis e vemos acontecer justamente o permanente, que deve produzir o
contrário. A maioria dos povos latinos mesmo efeito nos climas expostos a tal
dizia-se aborígine48, enquanto a variação. Forçados a se abastecerem
magna Grécia, muito mais fértil, só era para o inverno, vêem-se os habitantes
povoada por estrangeiros; todos os na contingência de se auxiliar mutua
povos gregos originavam-se de várias mente, coagidos a estabelecer entre si
colônias, salvo aquele cujo solo era o uma espécie de convenção. Quando se
pior, o povo ático, que se dizia autóc tornam impossíveis as expedições e o
tone ou nascido de si mesmo. Final rigor do frio os faz parar, o tèdio liga-
mente, sem penetrar na noite dos tem os tanto qjianto a necessidade. Os
pos, os povos modernos oferecem uma lapões, enterrados nos gelos, e os
observação decisiva, pois qual o clima esquimós, que são o mais selvagem de
mais triste do mundo senão o conside todos os povos, no inverno reúnem-se
rado como a fábrica do gênero huma nas suas cavernas e., no verão, não se
n o 49? conhecem mais. Se o seu grau de
As associações de homens são, em desenvolvimento e as suas luzes vierem
grande parte, obra dos acidentes da a aumentar um pouco só, reunir-se-ão
natureza — os dilúvios particulares, os para sempre.
mares extravasados, as erupções dos
O estômago e o intestino do homem
vulcões, os grandes terremotos, os
não são feitos para digerir carne crua
incêndios despertados pelo raio e que
e, em geral, não é ela do agrado do
destroem as florestas, tudo que atemo
paladar. Com a talvez única exceção
rizou e dispersou os selvagens de uma
dos esquimós, de quem acabo de faiar,
região, depois reuniu-os para reparar
50 A função de fatores acidentais na evolução
48 As palavras autóctones e aborígines signi humana — que já conhecemos, sobretudo do
ficam somente que os primeiros habitantes da segundo Discurso — aqui ressurge e sempre
região eram selvagens, sem sociedade, sem com o mesmo sentido, que não é propriamente
leis, sem tradições, e que povoaram antes de o de um destino cego, como poderiam fazer
falar. (N. do A.) crer os termos “azar” ou “acidente”, mas o de
4à Como vimos em nota anterior, Rousseau estímulos eventuais da ação humana, enquanto
recusa-se aos mecanicismos climáticos ou esta, se não é irrestrita, sempre conserva uma
fisiopsicológicos — para ele, os homens trans margem de franco arbítrio no dirigir-se. (N. de
formam-se porque são ativos. (N. de L. G. M.) L. G. M.)
ENSAIO SOBRE A ORIGEM DAS LÍNGUAS 187
que ainda não reinava entre eles, pare essa tendência e retarda esse progres
cia reinar entre os elementos: os ho so; sem eles, tudo aconteceria mais
mens não queimavam cidades, não rapidamente e a terra já estari£ talvez
cavavam minas, nem abatiam árvores, sob as águas. Antes do trabalho huma
mas a natureza acendia vulcões, exci no, as fontes, mal distribuídas, espa
tava tremores de terra e o fogo do céu lhavam-se mais desigualmente, fertili
consumia as florestas. Um raio, um zavam menos a terra e saciavam com
dilúvio, uma exalação conseguiam em maior dificuldade os seus habitantes.
poucas horas mais do que atualmente Os rios freqüentemente eram inacessí
cem mil braços de homens no decorrer veis, com bordas escarpadas ou panta
de um século. Sem isso, não vejo como nosas; como a arte humana não os
o sistema pôde subsistir e o equilíbrio retinha nos seus leitos, comumente
manter-se. Nos dois reinos organiza abandonavam-nos, extravasavam para
dos, com o decorrer dos tempos, as a direita e para a esquerda, mudando a
grandes espécies haveriam de absorver direção e o curso, dividindo-se em inú
as pequenas5 4, a terra toda em pouco meros braços. Às vezes secavam, às
tempo ficaria recoberta tão-só de árvo vezes areias movediças impediam de
res e de animais ferozes e, afinal, tudo abordá-los e, assim, morria-se de sede
teria perecido 5 5. no meio das águas.
As águas aos poucos perderiam a Quantas regiões áridas só são habi
circulação que vivificava a terra. As táveis devido aos sangradouros e aos
montanhas abatem-se e diminuem, os canais que os homens tiraram dos
rios carreiam, o mar enche-se e eleva- rios! Quase toda a Pérsia só subsiste
se, tudo, insensivelmente, tende ao graças a esse artifício; a China formiga
nível, porém a mão do 'homem retém de gente com o auxílio de numerosos
desses canais; sem os dos Países-
5 4 Pretende-se que, por uma espécie de ação e Baixos, estes seriam inundados pelos
de reação natural, as várias espécies do reino rios, como o seriam pelo mar, sem os
animal se manteriam por si mesmas numa per diques. O Egito, a região mais fértil da
pétua oscilação que, para elas, representaria o
terra, só é habitável devido ao trabalho
equilíbrio. Quando a espécie devoradora, se
gundo dizem, tiver se multiplicado demais a do homem; nas grandes planícies,
expensas da espécie devorada, não mais então desprovidas de rios e cujo solo não
encontrando meio de subsistência, será preciso possui uma inclinação suficiente, só se
que a primeira diminua e deixe à segunda o
tempo de se reproduzir até que, de novo forne
pode recorrer aos poços. Se, pois, os
cendo abundante meio de subsistência à outra, primeiros povos, a que se faz menção
esta novamente diminuirá, enquanto a espécie na História, não habitavam regiões fér
devoradora se reproduzirá outra vez. Mas não
çarece nada verossímil uma tal oscilação, pois,
teis ou margens acessíveis, não é por
nesse sistema, impõe-se que haja uma época que esses sítios acolhedores fossem
em que a espécie que serve de presa aumente, e desérticos, mas porque seus numerosos
diminua aquela que dela se nutre. O que me habitantes, podendo ignorar-se uns aos
parece contra qualquer bom senso. (N. do A.)
5 5 Embora inesperada, a incursão pelo campo outros, por mais tempo viveram no
da evolução geral dos seres vivos (v., em parti seio de suas famílias, isolados e sem
cular, a nota de Rousseau) vem demonstrar comunicação. Mas, nas regiões áridas,
não apenas o desejo de integrar os dados mais nas quais só os poços torneciam água,
recentes no delineamento interpretativo senão
ainda o desígnio de sublinhar a função dos ele tiveram de reunir-se para cavá-los, ou.
mentos fortuitos em qualquer progressão evo pelo menos, combinarem o seu uso.
lutiva, ainda que não humana. (N. de L. G. M.) Terá sido essa a origem das sociedades
ENSAIO SOBRE A ORIGEM DAS LÍNGUAS 189
e das línguas nas regiões quentes 5 6. Mas, como? Nesse tempo os ho
Aí se formaram os primeiros laços mens nasciam da terra? Sucediam-se
de família e aí se deram os primeiros as gerações sem que os dois sexos se
encontros entre os dois sexos. As unissem e §em que ninguém se enten
moças vinham procurar água para a desse? Não. Havia famílias, mas não
casa, os moços para dar de beber aos havia nações; havia línguas domésti
rebanhos. Olhos habituados desde a cas, mas nenhuma língua popular;
infância aos mesmos objetos, começa havia casamentos, mas não amor.
ram aí a ver outras coisas mais agradá Cada família bastava-se a si mesma e
veis. O coração emocionou-se com perpetuava-se unicamente pelo sangue;
esses novos objetos, uma atração des
os filhos nascidos dos mesmos pais
conhecida tomou-o menos selvagem,
cresciam juntos e aos poucos encon
experimentou o prazer de não estar só.
travam meios de se explicarem entre si;
A água, insensivelmente, tomou-se
mais necessária, o gado teve sede mais os sexos com a idade se distinguiam, a
vezes: chegava-se açodadamente e par inclinação natural era suficiente para
tia-se com tristeza. Nessa época feliz, uni-los, o instinto ocupava o lugar da
na qual nada assinalava as horas, nada paixão, o hábito o da preferência, pas
obrigava a contá-las, e o tempo não sava-se a marido e esposa sem deixar
possuía outra medida além da distra de ser irmão e irm ã58. Não havia nisso
ção e do tédio. Sob velhos carvalhos, nada de muito estimulante para desem
vencedores dos anos, uma juventude brulhar a língua, nada que pudesse
ardente aos poucos esqueceu a feroci com bastante freqüência arrancar os
dade. Acostumaram-se gradativamente acentos das paixões ardentes a fim de
uns aos outros e, esforçando-se por transformá-los em instituições e o
fazer entender-se, aprenderam a expli mesmo se pode dizer das necessidades
car-se. Aí se deram as primeiras festas raras e pouco exigentes que poderiam
— os pés saltavam de alegria, o gesto levar certos homens aos trabalhos
ardoroso não bastava e a voz o acom comuns. Um começava a bacia da
panhava com acentuações apaixona fonte e o outro a acabava a seguir,
das; o prazer e o desejo confundidos freqüentemente sem necessidade de
faziam-se sentir ao mesmo tempo. Tal qualquer acordo e, algumas vezes, até
foi, enfim, o verdadeiro berço dos sem se terem visto. Numa palavra, nos
povos — do puro cristal das fontes saí
ram as primeiras chamas do amor 5 7. 58 Foi preciso que os primeiros homens
desposassem suas irmãs. Na simplicidade dos
5 6 Entrosam-se, pois, a evolução natural geral primeiros costumes, esse uso se perpetuou sem
e a evolução particular do homem, conser inconvenientes enquanto as famílias permane
vando, porém, caracteres peciiliares. A ação ceram isoladas, e mesmo depois da reunião
humana mostra-se bastante fraca em face do dos povos mais antigos. A lei que o aboliu, no
processo natural, porém seus efeitos são decisi entanto, não é menos sagrada por ser de insti
vos, se tivermos em conta menos as alterações tuição humana. Aqueles que só a consideram
que o homem impõe à natureza do que a trans pelo liame que forma entre as famílias não vêm
formação de si mesmo a que, para tanto, está seu aspecto mais importante. Na familiaridade
obrigado. Nada, pois, resta em Rousseau da que o comércio doméstico necessariamente
ordem preestabelecida e inalterável dos jusna- estabelece entre os dois sexos, a partir do
turalistas. (N. de L. G. M.) momento em que uma lei tão santa deixasse de
5 7 A hipótese explicativa deve ser aceita falar ao coração e de impor-se aos sentidos,
como tal. Seguem-se as ressalvas relativas aos não haveria mais honestidade entre os homens
grupos, por assim dizer, naturais — que, como e os mais terríveis costumes logo determina
já se tornou óbvio, representam outra hipótese riam a destruição do gênero humano. (N. do
não-histórica. (N. de L. G. M.) A.)
190 ROUSSEAU
C a pítu lo X
Com o decorrer dos tempos, todos os povos setentrionais são tão robus
os homens se tornam semelhantes, tos, pois o são não porque o clima os
porém é diferente a ordem de seu pro fez assim, mas porque só respeitou os
gresso. Nos climas meridionais, onde a que assim eram, não sendo de admirar
natureza é pródiga, as necessidades que os filhos conservassem a boa cons
nascem das paixões; nas regiões frias, tituição dos pais.
onde ela é avara, as paixões nascem Compreende-se, desde logo, que os
das necessidades 60, e as línguas, tristes homens mais robustos devem possuir
filhas da necessidade, ressentem-se de órgãos menos delicados, suas vozes
sua áspera origem. devem ser mais ásperas e mais fortes.
Ainda que o homem se habitue com Aliás, que diferença enorme existe
as intempéries, com o frio, com a penú entre as inflexões comovedoras que
ria e até com a fome, há, contudo, um resultam dos frêmitos da alma e os gri
ponto em que a natureza sucumbe — tos arrancados pelas necessidades físi
nas garras dessas provações cruéis cas! Nesses tremendos climas, nos
tudo que é débil perece e tudo mais se quais durante nove meses do ano tudo
fortalece. Não há um ponto interme está morto, o sol só aquece o ar duran
diário entre o vigor e a morte. Por isso te poucas semanas, parecendo que o
faz unicamente para dizer aos habitan
Como as paixões que derivam de necessi tes de que bens estão privados e para
dades implicam novas necessidades, impõe-se acentuar-lhes a miséria; nesses lugares
esclarecer o jogo de palavras deste trecho, que em que a terra nada dá, senão com
apenas quer indicar como, em certas condi
ções, imperam as necessidades básicas indivi muito trabalho, e onde a fonte da vida
duais e, em outras, as necessidades resultantes parece estar muito mais nos braços do
já dos contatos sociais. De qualquer forma, é que no coração, os homens, ocupados
sempre a necessidade, motor da vida coletiva, incessantemente em atender à subsis
que cria e tempera as línguas, como e por que
cria as sociedades: cada qual com sua fisiono
tência, dificilmente pensavam em laços
mia própria, porém todas animadas por um mais doces: tudo se limitava ao impul
mesmo impulso. (N. de L. G. M.) so físico — a ocasião determinava a
ENSAIO SOBRE A ORIGEM DAS LÍNGUAS 191
C apítu lo XI
Tais são, na minha opinião, as cau ticular dos homens que se auxiliam,
sas físicas mais gerais da diferença que raciocinam com sangue-frio, ou àe
característica das línguas primitivas. pessoas coléricas que brigam, porém
As do sul tiveram de ser vivas, sono os ministros dos deuses anunciando os
ras, acentuadas, eloqüentes e freqüen mistérios sagrados, os sábios dando
temente obscuras, devido à energia. As leis ao povo, os chefes arrastando a
do norte surdas, rudes, articuladas, gri multidão, devem falar árabe ou
tantes, monótonas e claras, devido persa62. Nossas línguas valem mais
antes à força das palavras do que a escritas do que faladas; lêem-nos com
uma boa construção. As línguas mo mais prazer do que nos escutam. Pelo
dernas, centenas de vezes misturadas e contrário, as línguas orientais perdem,
refundidas, ainda conservam alguma
coisa dessas diferenças: o francês, o 62 O turco é uma língua setentrional. (N. do
inglês e o alemão são a linguagem par A.)
192 ROUSSEAU
C a p í t u lo X II
Com as primeiras vozes formaram- volta das fontes de que falei, os primei
se as primeiras articulações ou os pri ros discursos constituíram as primeiras
meiros sons, segundo o gênero das pai canções; as repetições periódicas e
xões que ditavam estes ou aquel.as. A medidas do ritmo e as inflexões melo
cólera arranca gritos ameaçadores, que diosas dos acentos deram nascimento,
a língua e o palato articulam, porém a com a língua, à poesia e à música, ou
voz da ternura, mais doce, é a glote melhor: tudo isso não passava da pró
que modifica, tornando-a um som. pria língua naqueles felizes climas e
Sucede, apenas, que os acentos são encantadores tempos em que as únicas
nela mais freqüentes ou mais raros, as necessidades urgentes que exigiam o
inflexões mais ou menos agudas, se concurso de outrem eram as que o
gundo o sentimento que se acrescenta. coração despertava.
Assim, com as sílabas nascem a cadên Foram em verso as primeiras histó
cia <£ os sons: a paixão faz falarem rias, as primeiras arengas, as primeiras
todos os órgãos e dá à voz todo o seu leis. Encontrou-se a poesia antes da
brilho; desse modo, os versos, os can prosa, e haveria de assim suceder, pois
tos e a palavra têm origem comum. A que as paixões falaram antes da razão.
A mesma coisa aconteceu com a músi
63 Provavelmente este Ensaio inicialmente se ca. A princípio não houve outra músi
destinava a tratar da música (v. Introdução e
nota n.° 1), sendo pois de crer-se que aqui se
ca além da melodia, nem outra melo
iniciaria, propriamente, a discussão central dia que não o som variado da palavra;
que, nesta edição, passa a ter interesse secun os acentos formavam o canto, e as
dário. (N. de L. G. M.) quantidades, a medida; falava-se tanto
ENSAIO SOBRE A ORIGEM DAS LÍNGUAS 193
pelos sons e pelo ritmo quanto pelas que conseguimos de nós mesmos, ao
articulações e pelas vozes. Segundo vê-los tão bem expostos, é fingir acre
Estrabão, outrora dizer e cantar eram ditar neles para não desgostar os nos
o mesmo, o que mostra, acrescenta ele, sos sábios 6 6. Burette, tendo traduzido,
que a poesia é a fonte da eloqüência 6 4. como pôde, em notas de nossa música
Seria melhor dizer que tanto uma alguns trechos de música grega, teve a
quanto outra tiveram a mesma fonte e ingenuidade de fazer executá-los na
a princípio foram uma única coisa. Academia de Letras e os acadêmicos
Levando-se em consideração o modo tiveram a paciência de ouvi-los. Admi
pelo qual se ligaram as primeiras ro-me dessa experiência num país cuja
sociedades, pode sentir-se surpreen
música é indecifrável para qualquer
dido pelo fato de terem sido as primei
outra nação. Mandai músicos estran
ras histórias escritas em verso e que se
geiros de vossa escolha executar um
cantassem as primeiras leis? Será mo
monólogo de ópera francesa e vos
tivo de admiração terem os primeiros
gramáticos submetido sua arte à músi desafio a reconhecê-lo. Não obstante,
ca e serem, ao mesmo tempo, profes são esses mesmos franceses que preten
sores de uma e de outra? 6 5 diam julgar a melodia de uma ode de
Uma língua que não tenha, pois, Píndaro posta em música há dois mil
senão articulações e vozes possui so anos!
mente a metade de sua riqueza; na ver Li que, outrora, na América, os ín
dade, transmite idéias, mas, para trans dios, vendo os efeitos surpreendentes
mitir sentimentos e imagens, das armas de fogo, recolheram do chão
necessitam-se ainda de ritmos e de as balas de mosquetão e depois, lan
sons, isto é, de uma melodia: eis o que çando-as com a mão ao mesmo tempo
a língua grega possuía, e falta à nossa. que produziam forte ruído com a boca,
Sempre nos admiramos com os efei surpreendiam-se por não matarem nin
tos prodigiosos da eloqüência, da poe guém. Assemelham-se a esses índios os
sia e da música entre os gregos; tais
efeitos não mais se combinam em nos 6 6 Sem dúvida, em certa medida se deverá
sas cabeças porque não mais atingi descontar o exagero grego, mas será também
mos coisas semelhantes, e o máximo conceder demais ao preconceito moderno levar
essas reduções a ponto de fazerem desaparecer
todas as diferenças. “Quando a música dos
6 4 Geogr., Liv. I. (N. do A.) gregos do tempo de Anfião e de Orfeu”, diz o
6 5 “A rchytas atque A ristoxenes etiam subjec- Padre Terrasson, “estava no ponto em que
tam grammaticen musicae putaverunt, et eos- hoje se encontra nas cidades mais distantes da
dem utriusque rei praeceptores fu isse . . . Tum capital, é que suspendia o cursõ dos rios,
Eupolis, apud quem Prodamus et musicen et atraía os carvalhos e fazia os rochedos se
litteras docet. Et Maricas, qui est Hyperbolus, moverem. Atualmente, quando alcançou tão
nihil se ex musicis scire nisi litteras confite- alto ponto de perfeição, gosta-se muito dela,
tur. "(Quintil., Lib. I, cap. X.)* (N. do A.) penetra-se mesmo em suas belezas, mas ela
* “Além disso, Arquitas e Aristóxeno julga deixa tudo em seu lugar. A mesma coisa acon
vam que a gramática estivesse subordinada à teceu com os versos de Homero, poeta nascido
música e que eles próprios eram preceptores de nos tempos em que ainda se ressentiam da
uma e de outra dessas artes. . . Por outro lado, infância do espírito humano, em comparação
há Êupolis, em casa de quem Prodamus ensi com aqueles que os seguiram. Extasiaram-se
nava não só a música mas também as primei com seus versos; hoje contentam-se em sabo
ras letras. E também Maricas, que é Hipér- rear e apreciar os dos bons poetas.” Não se
bolo, admite que o que sabe de música nada pode negar possuir o Padre Terrasson alguma
mais é que gramática.” (Quintiliano, 1. I, c. X.) filosofia, mas não é certamente nesse trecho
(N. de L. G. M.) que o demonstrou. (N. do A.)
194 ROUSSEAU
C a p í t u l o X III
Da melodia
ainda imperfeita, tudo isso passaria arte. Que digo? Da arte? N ão! De
por garatujas, por uma pintura capri todas as artes, senhores, de todas as
chosa e barroca, e se apegariam, para ciências. Somente a análise das cores,
preservar o gosto, a esse belo simples o cálculo das refrações do prisma
que, na verdade, nadá exprime, mas podem dar-vos as relações exatas que
que faz esplender matizes bonitos, estão na natureza e a regra de todas
grandes planos bem coloridos e vastas essas relações. Ora, tudo no universo
gradações de tons sem qualquer linha. não é senão relação. Sabe-se tudo,
Finalmente, devido ao progresso, pois, quando se sabe pintar: sabe-se
chegar-se-ia talvez à experiência do tudo quando se sabe juntar as cores.”
prisma. Logo algum artista célebre Que diríamos de um pintor tão des
nela basearia um esplêndido sistema. provido de sentimentos e de gosto para
“Senhores”, diria aos demais, “para assim raciocinar, limitando estupida
filosofar impõe-se recorrer às causas mente ao aspecto físico de sua arte o
físicas. Aí estão a decomposição da prazer despertado em nós pela pintu
luz, todas as cores primitivas, suas ra? Que diríamos do músico que, cheio
relações, proporções e os verdadeiros de preconceitos semelhantes, acredi
tasse ver unicamente na harmonia a
princípios do prazer que a pintura des
fonte dos grandes efeitos da música?
perta em vós. Palavras misteriosas,
Mandaríamos o primeiro colorir pai
como desenho, representação, figura,
néis e condenaríamos o outro a com
são mera charlatanice dos pintores por óperas francesas.
franceses que, por suas imitações, Como, pois, a pintura não é a arte
esperam despertar não sei que movi de combinar algumas cores de um
mentos na alma, quando se sabe que modo agradável à vista, também a mú
nela só existem as sensações. Já vos sica não é a arte de combinar os sons
disseram maravilhas sobre seus qua de uma maneira que agrade ao ouvido.
dros; vede, porém, minhas cores. Se só fossem isso, tanto uma quanto
“Os pintores franceses”, continua outra figurariam entre as ciências
ria, “observaram talvez o arco-íris e naturais e não entre as belas-artes.
colheram da natureza certo gosto das Somente a imitação as eleva até esse
gradações e algum instinto do colori grau. Ora, que faz da pintura uma arte
do. Eu, de minha parte, mostrei-vos os de imitação? — o desenho. E da músi
grandes e verdadeiros princípios da ca? — a melodia.
C apít u l o X I V
Da harmonia
A beleza dos sons pertence à nature mentarão prazer ouvindo belos sons,
za; seu efeito é puramente físico e mas, se inflexões melodiosas que lhes
resulta do concurso de várias partí sejam familiares não os animarem,
culas de ar postas em movimento pelo esse prazer não será delicioso, nem se
corpo sonoro e por todas as suas alí transformará em voluptuosidade. Os
quotas, talvez ao infinito, dando esse mais belos cantos ao nosso gosto sem
conjunto uma sensação agradável. pre impressionarão mediocremente um
Todos os homens do universo experi ouvido não acostumado a eles. São
196 ROUSSEAU
uma língua cujo dicionário se precisa fazer um dia dessa arte uma arte de
conhecer. imitação? Onde está o princípio dessa
A harmonia propriamente dita en pretensa imitação? De que é sinal a
contra-se em situação ainda menos harmonia? E o que existe de comum
favorável. Possuindo apenas belezas de entre os acordes e nossas paixões?
convenção, jamais agrada a ouvidos Fazendo-se a mesma pergunta quan
que não se instruíram a esse respeito e to à melodia, a resposta virá por si
só com reiterado hábito poder-se-á mesma: já está de antemão no espírito
senti-la e saboreá-la. Os ouvidos rústi dos leitores. A melodia, imitando as
cos só ouvem ruídos em nossas conso inflexões da voz, exprime as lamenta
nâncias. Quando se alteram as propor ções, os gritos de dor ou de alegria, as
ções naturais, não é de espantar que ameaças, os gemidos. Devem-se-lhe
não exista mais o prazer natural. todos os sinais vocais das paixões.
Um som traz consigo todos os sons Imita as inflexões das línguas e os tor
harmônicos concomitantes, naquelas neios ligados, em cada idioma, a certos
relações de força e de intervalos que impulsos da alma. Não só imita como
devem ter entre si para causar a mais fala, e sua linguagem, inarticulada mas
perfeita harmonia desse mesmo som. viva, ardente e apaixonada, possui cem
Juntai-lhe uma terça ou uma quinta, ou vezes mais energia do que a própria
qualquer outra consonância, e não a palavra. Disso provém a força das imi
estareis juntando, mas sim redobran tações musicais e nisso reside o impé
do-a, pois estareis conservando a rela
rio do canto sobre corações sensíveis.
ção intervalar, porém alterando a de
Em certos sistemas, a harmonia pode
força. Reforçando uma consonância e
concorrer para tanto, ligando a suces
não as outras, rompeis a proporção.
são de sons por algumas leis de modu
Desejando fazer melhor do que a natu
lação, tornando as entonações mais
reza, fazeis pior. Vossos ouvidos e
vosso gosto estragaram-se por uma justas e levando ao ouvido um teste
arte mal compreendida. Naturalmente, munho fidedigno dessa justeza, aproxi
só existe a harmonia do uníssono. mando e fixando inflexões inapre
O Sr. Rameau pretende que os tim ciáveis a intervalos consonantes e
bres altos de uma certa simplicidade ligados. Mas, oferecendo também em
sugerem naturalmente seus baixos e baraços à melodia, tira-lhe a energia e
que um homem possuidor de bom a expressão, apaga a acentuação apai
ouvido, embora não exercitado, natu xonada para substituí-la pelo intervalo
ralmente entoará esse baixo. Eis um harmônico: submete-nos unicamente a
preconceito de músico, desmentido por dois únicos modos de cantar, quando
toda e qualquer experiência. Não so deveria haver tantos quantos são os
mente aquele que não tiver escutado tons oratórios; apaga e destrói multi
nem o baixo nem a harmonia não dões de sons ou de intervalos que não
poderia por si só encontrar essa har entram no seu sistema; em uma pala
monia ou esse baixo, como também vra, de tal modo separa o canto da
desagradá-lo-iam caso os ouvisse, pois palavra que essas duas linguagens se
gostaria muito mais do simples unísso combatem, se contrariam, tiram uma
no. da outra qualquer caráter de verdade e,
Mesmo que se calculasse, durante num tema patético, não podem unir-se
milhares de anos, as relações dos sons sem absurdo. Por isso, o povo sempre
e as leis da harmonia, como se poderia acha ridículo exprimir-se em canto as
ENSAIO SOBRE A ORIGEM DAS LÍNGUAS 197
paixões fortes e sérias, pois sabe que imitação, que uma espécie de discurso
em nossas línguas essas paixões não substitua a voz da natureza. Engana-se
têm inflexões musicais e que os ho o músico que quer reproduzir o ruído
mens do norte, como os cisnes, não pelo próprio ruído. Desconhece tanto a
morrem cantando. força quanto a fraqueza de sua arte,
A harmonia sozinha é, em si mesma, formando juízos sem gosto e sem
insuficiente para as expressões que discernimento.
parecem depender unicamente dela. A Ensinai-lhe que precisa produzir o
tempestade, o murmúrio das águas, os ruído pelo canto; que, se quisesse fazer
ventos, as borrascas, não são bem as rãs coaxarem, seria preciso fazê-las
transmitidos por simples acordes. De cantar, pois não lhe basta imitar:
qualquer modo que se faça, somente o impõe-se emocionar e agradar. Sem
ruído nada diz ao espírito, tendo os isso, sua imitação enfadonha nada será
objetos de falar para se fazerem ouvir e e, não despertando interesse em nin
sendo sempre necessário, em qualquer guém, não causa qualquer impressão.
C a pít u l o XV
C a p ít u l o X V I
As cores não estão nos corpos colo gio de uma arte, que só age pelo movi
ridos, mas na luz; para que se veja um mento, consiste em poder formar até a
objeto é preciso que esteja iluminado. imagem do repouso. O sono, a calma
Os sons também têm necessidade de da noite, a solidão e o próprio silêncio
um motor e, para que existam, o corpo entram nos quadros da música. Sabe-
sonoro deve ser vibrado. Isso repre se que o ruído pode produzir o efeito
senta uma outra vantagem em favor da do silêncio, e este, o efeito daquele,
vista, pois a emanação perpétua dos como quando adormecemos em meio a
astros é o instrumento natural que age uma leitura igual e monótona e acor
sobre ela, enquanto a natureza, por si damos no momento em que cessa. A
mesma, poucos sons engendra e, a música, porém, age mais intimamente
menos que se admita a harmonia das sobre nós, excitando, por intermédio
esferas celestes, seres vivos precisam de um sentido, sensações semelhantes
produzi-la. àquela que se pode excitar por um
Por aí se vê estar a pintura mais pró outro e, como a relação só pode tor
xima da natureza, e a música, da arte nar-se sensível quando há impressão
humana. Percebe-se também que uma forte, a pintura, destituída dessa força,
interessa mais do que a outra, justa não pode dar à música as imitações
mente porque aproxima mais o homem que a música dela extrai. A natureza
do homem e sempre nos dá alguma toda pode estar adormecida, mas aque
idéia de nossos semelhantes. A pintura le que a contempla não dorme, consis
freqüentemente é morta e inanimada; tindo a arte do músico em substituir a
pode transportar-vos ao fundo de um imagem insensível do objeto pela dos
deserto. Desde, porém, que os sinais movimentos que sua presença excita
vocais atinjam vosso ouvido, anun no coração do contemplador. Não
ciam um ser semelhante a vós. São, somente agitará o mar, animará as
por assim dizer, os órgãos da alma e, chamas de um incêndio, fará os rios
embora também possam representar a correrem, cair a chuva e aumentarem
solidão, dizem que não estais só. Os as torrentes, como também pintará o
pássaros trinam, somente o homem horror de um deserto tremendo, ene
canta. E não se pode ouvir canto ou grecerá as paredes de uma prisão
sinfonia sem se dizer imediatamente: subterrânea, acalmará a tempestade,
“Um outro ser sensível está aqui”. tornará o ar tranqüilo e sereno, e, da
Uma das maiores vantagens do mú orquestra, lançará uma nova frescura
sico consiste em poder pintar as coisas nos bosques. Não representará direta
que não se poderiam ouvir, enquanto o mente tais coisas, mas excitará na
pintor não pode representar aquelas alma os mesmos sentimentos que se
que não se podem ver, e o maior prodí experimenta vendo-as.
C a pítu lo X V II
Vede como tudo sempre nos leva poder dos sons segundo a ação do ãr e
aos efeitos morais de que vos falei e o vibrar das fibras nervosas, estão
como os músicos, que só consideram o longe de saber em que consiste a força
ENSAIO SOBRE A ORIGEM DAS LÍNGUAS 201
C a p ít u l o XVIII
De como o sistema musical dos gregos não
possuía relação alguma com o nosso
Como se deram tais mudanças? por porém, no falar se passa por intervalos
uma mudança natural do caráter das menores do que quando se canta, foi
línguas. Sabe-se que nossa harmonia é natural que observassem a repetição
uma invenção gótica. Zombam de nós dos tetracordes na sua melodia oral,
aqueles que pretendem encontrar o sis como obedecemos à repetição das oita
tema dos gregos no nosso. Aquele sis vas na nossa melodia harmônica.
tema só era harmônico, segundo o sen Só reconheceram como consonância
tido que damos à palavra, no aquelas que denominamos consonân
respeitante à afinação dos instru cias perfeitas, excluindo desse número
mentos por consonâncias perfeitas. as terças e as sextas. Por quê? Porque,
Todos os povos que possuem instru ignorando o intervalo do tom menor
mentos de cordas são forçados a afiná- ou pelo menos proscrevendo-o da prá
los por meio de consonâncias, mas tica e não sendo as suas consonâncias
aqueles que não os têm possuem nos temperadas, todas as suas terças maio
seus cantos inflexões que conside res eram uma coma mais fortes, sendo
ramos desafinadas por não entrarem em outro tanto mais fracas suas terças
no nosso sistema e por não podermos menores e, conseqüentemente, alteran
grafá-las. Observou-se isso nos cantos do-se reciprocamente suas sextas
dos selvagens da América e isso tam maiores e menores na mesma medida.
bém deveria ter-se observado em diver Imagine-se, agora, que noções de har
sos intervalos da música dos gregos, monia se pode ter e que modos harmô
caso se tivesse estudado essa música nicos se pode estabelecer excluindo do
com menos preconceitos oriundos da número de consonâncias as terças e as
nossa. sextas. Se as próprias consonâncias,
Os gregos dividiam o seu diagrama que admitiam, resultassem de um ver
em tetracordes, como dividimos o dadeiro sentimento de harmonia, tê-
nosso teclado em oitavas, e as mesmas las-iam pelo menos subentendidas por
divisões em cada tetracorde para eles sob seus cantos, e a consonância tácita
se repetiam exatamente como se repe das marchas fundamentais emprestaria
tem, para nós, em cada oitava, seme seu nome às marchas diatónicas que
lhança que não se poderia conservar lhes sugerissem. Longe de possuírem
na unidade do modo harmônico e que menos consonâncias do que nós, tê-
não se teria sequer imaginado. Como, las-iam em maior número e, por exem-
202 ROUSSEAU
C apítu lo XIX
preconceito nos impede de perceber 73. modos, a escala, tudo, enfim, adquiriu
Esquecida a melodia e voltando-se novos aspectos e as sucessões harmô
inteiramente a atenção do músico para nicas passaram a regular o movimento
a harmonia, aos poucos tudo se dirigiu das partes. Tendo o movimento usur
para esse novo objeto. Os gêneros, os pado o nome da melodia, não se pôde
com efeito desconhecer nessa nova
73 Ligando toda harmonia a esse princípio melodia os traços da mãe e tornando-
muito simples, que é o da ressonância das cor se assim de modo gradual, puramente
das nas suas alíquotas, o Sr. Rameau funda o harmônico nosso sistema musical, não
modo menor e a dissonância em sua pretensa é de admirar que o acento oral com
experiência de uma corda sonora em movi
mento fazer vibrar outras cordas mais longas
isso tenha sofrido e a música perdido
na sua décima segunda e na sua décima sétima quase toda a sua energia.
maior, no grave. Essas cordas, de acordo com Eis como o canto aos poucos se tor
ele, vibram e estremecem em todo o seu nou uma arte inteiramente separada da
comprimento, mas não ressoam. Aí está, pare
ce-me, uma física muito estranha, pois é como palavra, da qual se origina, como as
se se dissesse que o sol alumia e que não se vê harmônicas dos sons determinaram o
nada. esquecimento das inflexões da voz e
Essas cordas mais longas, não produzindo como, por fim, limitada ao efeito pura
senão o som da mais aguda, por se dividirem,
vibrarem e ressoarem em uníssono, confundem mente físico do concurso de vibrações,
o som daquela corda com o seu e parecem não viu-se a música privada dos efeitos
produzir nenhum som. O erro reside em ter-se morais, que produzira quando era
acreditado vê-las vibrar em toda a sua exten duplamente a voz da natureza7 4.
são e em ter-se observado mal os nós. Duas
cordas sonoras, formando qualquer intervalo
harmônico, podem fazer ouvir seu som funda 7 4 Assim, o que se poderia tomar como mero
mental no grave, mesmo sem uma terceira problema musicológico particular — a impor
corda. Essa é a experiência conhecida e confir tância relativa da harmonia e da melodia —
mada do Sr. Tartini. Mas uma corda sozinha acaba por integrar-se, lógica e coerentemente,
não possui outro som fundamental a não ser o numa concepção geral da evolução moral,
seu, não faz ressoar ou vibrar seus múltiplos, qual seja. a integração social do homem sem
mas unicamente o seu uníssono e as alíquotas. destruição de sua natureza própria. A passa
Como o som não possui outra causa além das gem adquire notável significação se nos lem
vibrações do corpo sonoro e como, onde a brarmos de que, ao cabo de uma análise mera
causa age livremente, o efeito sempre a segue, mente formal, freqüentemente os críticos
diz-se um absurdo quando se fala em separar consideram assistemático o pensamento de
as vibrações da ressonância. ( N. do A.) Rousseau. (N. de L. G. M.)
C a pitu lo X X
Tais progressos não são nem fortui tituía uma força pública, impunha-se a
tos nem arbitrários; prendem-se às eloqüência. De que serviria hoje, quan
vicissitudes das coisas. As línguas se do a força pública substitui a persua
formam naturalmente baseadas nas são? Não se tem necessidade nem de
necessidades dos homens, mudam e se arte nem de figura para dizer: assim o
alteram de acordo com as mudanças quero. Qual é o discurso, pois, que
dessas mesmas necessidades. Nos tem ainda resta a fazer ao povo reunido?
pos antigos, quando a persuasão cons Sermões. E qual o interesse daqueles
ENSAIO SOBRE A ORIGEM DAS LÍNGUAS 205
de Paul Arbousse-Bastide
Origens
tudo do corpo humano, das raças e dos povos. Suas principais fontes, neste
ponto, são: Buffon, na sua monumental História Natural, da qual cita sobretudo
o capítulo sobre A Natureza do Homem; P. Dutertre, autor de uma História
Geral das Antilhas Habitadas pelos Franceses; e a História das Vingais, publi
cação periódica, editada desde 1746. Foi daí que o filósofo extraiu o retrato,
desde então legendário, do “bom selvagem Convém lembrar Montaigne e,
especialmente, o capítulo dos Ensaios sobre Os Canibais2.
Dedicatória:
2 A esse respeito poder-se-á recorrer ao brilhante livro, copiosam ente docum entado, de A fon so A rinos de
M ello Franco: O índio Brasileiro e a Revolução Francesa, Ed. J. O lym pio, R io de Janeiro, 1937. (N . de
P.A.-B.)
INTRODUÇÃO 211
Conclusão:
PREFÁCIO
Conclusão:
DISCURSO
PRIMEIRA PARTE
I) O homem físico
também de retrogradar; é a causa das infelicidades dos homens, que não soube
ram permanecer nafelicidade do estado natural.
3) A s faculdades intelectuais superiores nascem das faculdades inferiores.
a) A razão é posta em ação pelas paixões que, por sua vez, são suscitadas
pelas necessidades. A s paixões elementares reduzem-se a três desejos e um
temor: o desejo de nutrição, o de reprodução e o de repouso; o temor da dor. O
homem, ignorante do que seria a morte, não poderia temê-la.
b) Essa opinião pode ser comprovada, de um lado, pela história do pro
gresso intelectual, que está condicionado pelas paixões e pelas necessidades,
incessantemente aumentadas, do homem social; de outro lado, pela observação
dos selvagens, que não possuem desejos ou imaginação, e vivem inteiramente no
momento presente.
c) O progresso intelectual supõe trabalho, curiosidade, previdência — coi
sas próprias não do homem natural mas do homem social. O progresso intelec
tual supõe também duas condições que são as convenções sociais: a linguagem e
a divisão de terras.
4) Rousseau trata do problema da origem das línguas na intenção de pro
var, de acordo com Condillac, que a língua supõe a sociedade e, portanto, não
pôde nascer naturalmente. Rousseau, consciente da dificuldade do problema e da
precariedade de todas as soluções, descreve os seguintes estágios naformação da
língua:
a) O grito é a primeira linguagem natural.
b) A s inflexões da voz servem, pouco a pouco, para designar os objetos.
c) Surge, por fim , a instituição dos sinais, simbolizando as articulações da
voz. Limitada, a princípio, por palavras-frases, decompõe-se em infinitos e em
nomes próprios, depois estende-se aos adjetivos, que são abstrações, e às idéias
gerais. Compreende, então, as primeiras classificações lógicas e biológicas, como
as de Aristóteles.
5) Conclusão: a sociabilidade não está inscrita na natureza humana origi
nal. O homem não tem necessidade de outrem. Não sofre nem a dor, nem a misé
ria, que o tornariam digno de piedade. O estado de natureza caracteriza-se pela
suficiência do instinto, o estado de sociedade pela suficiência da razão.
1) Amoralismo integral: o homem não é então nem bom, nem mau, ignora
tanto as virtudes quanto os vícios. O estado de natureza é mais vantajoso para
ele e lhe proporciona mais felicidade do que o estado social.
2) O primeiro princípio da moral natural: o instinto de conservação de si
mesmo. O erro de Hobbes, nesse ponto, consiste em ter acreditado que, para
conservar-se a si mesmo, impunha-se lutar com os outros e matá-los ou torná-los
escravos. Ora, a ausência da bondade não implica a maldade. O direito sobre as
coisas de que tem necessidade não leva o homem natural a um domínio univer
sal. Pode-se muito bem zelar pela própria conservação sem prejudicar a de
outrem. O erro de Hobbes deve-se a ter levado em consideração necessidades tar
dias para julgar o estado original do homem. Ora, o homem primitivo não pode
ria ser mau, uma vez que não sabia o que era bom e mau.
214 INTRODUÇÃO
SEGUNDA PARTE
causa do progresso humano, tanto no que tem de bom quanto no que tem de
mau, mas engendram mais males do que bens.
3) Retrato da humanidade no seu último estágio. Rousseau, sem o dizer,
descreve o quadro do Antigo Regime: opressão, impostos, guerras, duelos, frivo
lidade de costumes, luxo e estetismo.
4) O despotismo fecha o círculo da evolução. Com efeito, reencontra todos
os caracteres do estado de natureza: os homens, então, são iguais por não vale
rem nada: o direito do mais forte vence; a moralidade reduz-se a uma obediência
cega; não existe mais virtude de costumes, nem noção do bem. Um tal estado
legitima todas as revoluções.
Conclusão geral:
Importância do discurso
1) Diferentemente do primeiro discurso, o Discurso sobre a Desigualdade
não fo i premiado pela Academia de Dijon. Conferiu-se o prêmio a outro discur
so, que fo i impresso, de autoria do Padre Talbert, notável autor de sermões, de
inúmeros elogios, de peças e de poesias, e freqüentemente laureado pelas acade
mias de província. O Padre Talbert e suas obras há muito tempo caíram no mais
completo esquecimento. Do mesmo modo, a Dedicatória à República de Gene
bra não produziu, naquela cidade, o efeito esperado por Rousseau, como o prova
uma carta a Perdriau, datada de 28 de novembro de 1754. O autor, com efeito,
descrevera muito mais a cidade de seus sonhos do que a realidade da vida polí
tica genebrina e até incorrera em certos erros no quadro dessa vida, que
esboçara.
2) Mas, ao contrário do primeiro discurso, o segundo encontrou, não
somente entre os literatos, mas no grande público, um êxito imediato e triunfal.
Mornet, que passou em revista quinhentas bibliotecas particulares do século
XVIII, nelas encontrou somente quinze vezes o primeiro discurso, enquanto o
segundo aparece setenta e seis vezes, e a Nova Heloísa, cento e sessenta e cinco
vezes. Em dois pontos especiais, a repercussão do discurso fo i considerável: a)
Rousseau instaurou, definitivamente, na literatura, o mito do selvagem livre,
feliz, robusto e puro, a superioridade da vida simples na natureza em oposição à
vida doentia das cidades civilizadas; b) voltou a dar forma à doutrina da igualda
de, ao ideal de vida comunitária, que fo i o dos espartanos e dos primeiros
cristãos.
INTRODUÇÃO 219
1 “ N ão é entre os povos depravados, m as entre os que bem se conform am à natureza, que se deve examinar
o que é natural.” Aristóteles, Política, Livro I, cap. II. (N . de P. A.-B.)
A d v e r t ê n c ia s o b r e a s N o t a s
Juntei algumas notas a este trabalho, de acordo com meu hábito preguiçoso
de trabalhar em intervalos irregulares. Essas notas2, por vezes, distanciam-se
bastante do assunto e não servem, por isso, para serem lidas com o texto. Colo
quei-as, pois, no fim do Discurso, no qual me esforcei por seguir, do melhor
modo que pude, o caminho mais reto. Os que tiverem a coragem de recomeçar
poderão distrair-se, na segunda vez, levantando a caça e tentando percorrer as
notas. Não terá importância que os outros não as leiam.
2 Essas notas de Rousseau, seriadas por letras, enccntram-se nas páginas 2 9 5 -3 2 0 . (N . do E.)
A R e p ú b l ic a de G enebra
atordoam os fracos e delicados, que uma república que de modo algum ten
absolutamente não lhes são afeitos. Os tasse a ambição de seus vizinhos e que
povos, uma vez acostumados a possuí com justiça pudesse contar, na necessi
rem senhores, não conseguem viver dade, com socorro. Conclui-se que,
sem eles. Se tentam sacudir o jugo, numa posição tão feliz, ela nada teria a
distanciam-se a tal ponto da liberdade temer a não ser de si mesma e que, se
que, tomando por ela uma licença esses cidadãos fossem adestrados nas
desenfreada que lhe é oposta, as suas armas, antes seria para manter entre
revoluções quase sempre os entregam a eles o ardor guerreiro e a altivez da
sedutores que só fazem agravar suas coragem, que assentam tão bem à
cadeias. O próprio povo romano, esse liberdade e alimentam o seu gosto, do
modelo de todos os povos livres, não que pela necessidade de atender à pró
fo i capaz de governar-se ao sair da pria defesa.
opressão dos Tarqüínios. Aviltados Teria procurado um país no qual o
pela escravatura e pelos trabalhos direito de legislação fosse comum a
ignominiosos que eles lhes impuseram, todos os cidadãos'2, pois quem me
a,princípio não fo i senão a uma popu lhor do que eles pode saber quais as
laça estúpida que se precisou dirigir e condições em que lhes convém viver
governar com a maior sabedoria a fim juntos numa mesma sociedade? Mas
de que, acostumando-se pouco a pouco não aprovaria plebiscitos como os dos
a respirar o ar salutar da libetdade, romanos, nos quais os chefes de Esta
essas almas abatidas, ou antes, embru do e os mais interessados em sua
tecidas pela tirania, adquirissem paula conservação estavam excluídos das
tinamente a severidade de costumes e a deliberações de que freqüentemente
altivez da coragem, que por fim o tor dependia a sua salvação, e, por incon-
nariam o mais respeitável de todos os seqüência absurda, privavam-se os ma
povos. Eu teria, pois, procurado para gistrados dos direitos usufruídos pelos
minha pátria uma república feliz e simples cidadãos.
tranqüila, cuja ancianidade de certo Teria desejado, pelo contrário, para
modo se perdesse na noite dos tempos, sustar os projetos interessados e mal
que só tivesse experimentado os golpes
necessários para suscitar e fortalecer 12 Não é exato para a Genebra de então. A
em seus habitantes a coragem e o amor população dividia-se aí em quatro classes,
pela pátria, e na qual os cidadãos, desiguais em seus direitos, sob todos os aspec
habituados de há muito a uma inde tos. Somente a classe dos cidadãos ou burgue
pendência sábia, fossem não somente ses, que correspondia a 1 600 pessoas em
24 000 habitantes, tinha entrada no Conselho
livres mas dignos de sê-lo. Geral, depositário do poder legislativo. M esmo
Desejaria ter escolhido para mim esse C onselho Geral, depois das reformas
uma pátria despida, por feliz impotên introduzidas por Calvino (1541-43), perdera a
cia, do feroz amor das conquistas, e iniciativa das leis e a designação direta dos
síndicos, em favor de Conselhos restritos,
garantida, por situação ainda mais recrutados por cooptação e representação da
feliz, do temor de tornar-se suscetível Igreja. A liás, toda a história de Genebra é
da conquista por um outro Estado; marcada pela luta entre o governo da Igreja e a
uma cidade livre, colocada entre nume assembléia popular. Rousseau é, pois, exces
sivo em seus elogios e, por isso, eles seriam
rosos povos, nenhum dos quais com
m al-acolhidos na própria Genebra. Rousseau
interesse de invadi-la e cada um dos mudaria de opinião sobre Genebra e denun
quais com interesse de impedir os de ciaria o poder arbitrário dos síndicos na S éti
mais de invadi-la; em uma palavra, ma C arta da M ontanha. (N. de P. A.-B.)
226 ROUSSEAU
mente o repouso e a paz de que me pri sois nem suficientemente ricos para
vara uma juventude imprudente, pelo enlanguescer-vos com a preguiça e per
menos alimentaria em minha alma der com delícias vãs o gosto da verda
esses mesmos sentimentos que não deira felicidade e o das virtudes sóli
poderia ter aproveitado em meu país, das, nem tão pobres para necessitardes
e, imbuído de uma terna e desinte de socorro estrangeiro que vossa in
ressada afeição por meus concidadãos dústria não exige. E quase nada vos
distantes, dirigir-lhes-ia, do fundo de custa conservar essa liberdade precio
meu coração, mais ou menos o se sa, que só se alcança nas grandes
guinte discurso: nações com impostos exorbitantes.
“Meus caros concidadãos, ou antes, “Possa durar sempre, para a felici
meus irmãos, uma vez que tanto os dade de seus cidadãos e exemplo dos
laços de sangue quanto as leis nos povos, república tão sábia e felizmente
unem quase que a todos, é-me agradá constituída! Tal o único voto que vos
vel não poder pensar em vós sem ao falta fazer e o único cuidado que vos
mesmo tempo pensar em todos os bens resta a tomar. E, só a vós, de agora em
de que gozais e cujo valor talvez ne diante, caberá, não constituir vossa
nhum de vós alcança melhor do que felicidade1 5, pois vossos antepassados
eu, que os perdi. Quanto mais reflito já vos pouparam esse trabalho, mas
sobre vossa situação política e civil, sim torná-la duradoura pela sabedoria
menos consigo imaginar que a natu que tiverdes de bem utilizar-vos dela. É
reza das coisas humanas possa com da vossa união perpétua, de vossa
portar outra melhor. Em todos os de obediência às leis, do respeito que
mais governos, quando se trata de tiverdes pelos seus ministros, que de
assegurar o maior bem do Estado, penderá vossa conservação. Se subsis
iodas as coisas se limitam sempre a tir entre vós o menor germe de amar
projetos de idéias ou, pelo menos, a gor ou de desconfiança, apressai-vos
simples possibilidades; em vosso caso, em destruí-lo como um fermento funes
vossa felicidade é completa — basta to, do qual, cedo ou tarde, resultariam
somente usufruir dela — e, para vos vossas infelicidades e a ruína do Esta
tornardes bastante felizes, basta so do. Conjuro-vos a que penetreis todos
mente contentar-vos com sê-lo. Vossa 0 fundo de vosso coração e consulteis
soberania adquirida ou conquistada à a voz secreta de vossa consciência1 6.
ponta de espada e conservada, durante Alguém dentre vós conhecerá no uni
dois séculos, graças a vosso valor e verso corpo mais íntegro, mais esclare
sabedoria, é enfim plena e universal cido, mais respeitável do que o de vos
mente reconhecida. Tratados dignos sos magistrados? Todos os seus
fixam vossas fronteiras, asseguram membros não vos dão o exemplo de
vossos direitos e fortalecem vosso moderação, de simplicidade de costu
repouso. Vossa constituição é excelen mes, de respeito pelas leis e de reconci
te, ditada pela mais sublime razão e liação a mais sincera? Rendei, pois,
garantida por potências amigas e res sem reservas, a chefes tão sábios, esta
peitáveis; vosso Estado é tranqüilo,
não tendes nem guerras, nem conquis 1 5 Rousseau é obsediado pela palavra “felici
tadores a temer, não conheceis outros dade”, que incessantemente aparece nessa
Dedicatória, e, neste trecho, é repetida três
senhores senão as sábias leis que fizes vezes em doze linhas. (N. de P. A.-B.)
tes, administradas por magistrados ín 1 6 Alusão à especificidade e à condição de
tegros que são de vossa escolha; não inata da consciência moral. (N. de P. A.-B.)
228 ROUSSEAU
rido recebendo, com frutos bem par prazer, ama naturalmente respeitar-
cos, as instruções ternas do melhor dos vos, e os mais ardentes em sustentar
pais. Se os desvarios de uma juventude seus direitos são os mais inclinados a
louca me fizeram, durante um certo respeitar os vossos.
tempo, esquecer lições tão sábias, Não surpreende que os chefes de
tenho afelicidade de, por fim, demons uma sociedade civil prezem-lhe a gló
trar que, ainda que se tenha alguma ria e a felicidade; mas chega a inquie
tendência para o vicio, dificilmente tar os homens testemunharem que os
ficará perdida para sempre uma educa que se consideram magistrados, ou
ção na qual o coração estiver presente. antes, os senhores de uma pátria mais
Tais são, M a g n í f i c o s e H o n r a santa e mais sublime, demonstrem
d ís s im o s S en h ores, os cidadãos algum amor pela pátria terrestre que os
e até os simples habitantes nascidos no alimenta. Como me é agradável poder
Estado em que governais; tais são abrir em nosso favor exceção tão rara
esses homens instruídos e sensatos dos e colocar, à altura de nossos melhores
quais, sob o nome de operários e de cidadãos, esses depositários zelosos
povo, se têm nas outras nações idéias dos dogmas sagrados autorizados
tão baixas e falsas. Meu pai, confesso- pelas leis, esses veneráveis pastores de
o com alegria, não se distinguiria de almas, cuja eloqüência viva e agradá
modo algum entre seus concidadãos, vel leva com mais facilidade ao cora
não era mais do que todos eles eram, e, ção as máximas do Evangelho, posto
tal como era, não havia região em que que sempre começam por praticá-las
o seu convívio não fosse procurado, eles mesmos! Todo o mundo sabe com
cultivado, mesmo com proveito, pelas que sucesso a grande arte da tribuna é
pessoas mais honestas. Não me cabe, cultivada em Genebra. Mas, acostu
e, graças ao céu, não tenho necessi mados demais a ouvir dizer de um
dade de falar-vos da consideração que modo e ver agir de outro, poucas pes
podem esperar de vós homens dessa soas sabem até que ponto reinam entre
têmpera — vossos iguais tanto pela nossos ministros21 o espírito do cris
educação quanto pelos direitos da tianismo, a santidade dos costumes, a
natureza e do nascimento, vossos infe severidade para consigo mesmo e a
riores por vontade própria — , pela suavidade para com o próximo. Talvez
preferência que devem a vosso mérito, caiba somente à cidade de Genebra
que reconheceram, e pelo qual, por mostrar o exemplo edificante de união
vossa vez, lhes deveis certo reconheci tão perfeita numa sociedade de teólo
mento. Sei, com viva satisfação, com gos e de letrados; é, em grande parte,
quanta doçura e condescendência tem em sua sabedoria e sua moderação
perais, para eles, a gravidade que con reconhecidas, em seu zelo pela prospe
vém aos ministros das leis, como lhes ridade do Estado, que baseio a espe
retribuís em estima e atenções o que rança de sua tranqüilidade eterna, e
vos devem em obediência e respeito:
conduta cheia de justiça e de sabedo 21 A os olhos de Rousseau, Genebra reproduz
ria, propícia a distanciar cada vez mais a vida dos primeiros cristãos, que, para ele, é a
a memória dos acontecimentos infeli ideal e que somente o protestantismo pode per
zes, que é preciso esquecer para jamais mitir que tornemos a encontrar. Compare-se
com a ironia de Imbert de la Tour: “A pri
rever; conduta ainda mais criteriosa na meira criação de Calvino foi um livro, a Insti
medida em que esse povo equitativo e tuição, a segunda foi uma cidade, Genebra.
generoso transforma seu dever num Livro e cidade completam-se”. (N . de P. A.-B.)
230 ROUSSEAU
naturalmente tão iguais entre si quanto Que meus leitores não pensem que
o eram os animais de cada espécie ouso iludir-me julgando ter visto o que
antes que várias causas físicas tives me parece tão difícil de ser visto. Ini
sem introduzido em algumas espécies ciei alguns raciocínios, arrisquei algu
as variedades que nelas notamos. Com mas conjeturas, antes com intenção de
efeito, não é concebível que essas pri esclarecer e de reduzir a questão ao seu
meiras mudanças, sejam quais forem verdadeiro estado do que na esperança
os meios pelos quais se deram, tenham de resolvê-la. Outros poderão, desem
alterado, a um só tempo e da mesma baraçadamente, ir mais longe na
maneira, todos os indivíduos da espé mesma direção, sem que para ninguém
cie; porém, tendo-se uns aperfeiçoado seja fácil chegar ao término pois não
ou deteriorado e adquirido várias qua constitui empreendimento trivial sepa
lidades, boas ou más, que de modo rar o que há de original e de artificial
algum eram inerentes à sua natureza, na natureza atual do homem, e conhe
ficaram outros por mais longo tempo cer com exatidão um estado que não
em seu estado original. Foi isso que mais existe, que talvez nunca tenha
determinou entre os homens a primeira existido, que provavelmente jamais
fonte de desigualdade, que é mais fácil existirá2 6, e sobre o qual se tem, con
tudo, a necessidade de alcançar noções
demonstrar assim em geral do que
assinalar-lhe com precisão as verda
deiras causas. 2 6 Rousseau tem com o objetivo reencontrar,
por meio da hipótese, a história da evolução,
no decorrer da qual os homens se elevaram até
cie de fatalismo conformista capaz de excluir o estado social. O método empregado por ele é
qualquer distinção entre o bem e o mal e psicológico; o estado de natureza, com o o defi
desaconselhando qualquer esforço de regenera ne aqui, é o homem, fazendo-se abstração da
ção. Rousseau, pelo contrário, defende o crité vida social; o problema é, então, saber quais
rio ético acim a de todos os valores e só o crê são, no homem, os elementos que derivam da
realizável por uma ação voluntária. Mas, para constituição do indivíduo. Esse método foi cri
julgar e para agir, impõe-se conhecer o objeto ticado pelos sociólogos modernos que, pelo
dessas operações — daí a busca da verdadeira contrário, pensam que a sociedade possui uma
lei natural, que “não constitui empreendimento natureza específica e que não se limita a uma
fácil”, pois está em “ separar o que há de origi soma de unidades individuais. (N . de P. A.-B.)
nal e de artificial na natureza atual do homem [Vale, não obstante, registrar que a noção de
e conhecer com exatidão um estado que não síntese social só foi encontrada por Durkheim
mais existe, que talvez jam ais tenha existido, (que se confessava constante leitor de Rous
que provavelmente jam ais existirá”. seau) no século X X . Mesmo o s fundadores da
Esse empreendimento implicará desfazer ciência social — salvo a honrosa exceção de
dois pontos obscuros. O primeiro é puramente Karl Marx — continuaram, ainda depois de
m etodológico e Rousseau acaba de enunciá-lo: conceberem uma essência social distinta da
se a ciência é um produto social, todo o esfor individual ou da simples soma das realidades
ço que se fizer para aprimorar o método trará, individuais, a considerar a existência de duas
por igual, um afastamento do objeto. O segun realidades, lado a lado. Tal ambigüidade de'
do diz respeito ao próprio objeto, pois, lutando pensamento é notória nos “evolucionistas” e
contra os pontos de vista firmados em seu “ biologistas” que, como Rousseau, só se inte
tempo, Rousseau procurará, com o indicamos, ressaram por traçar a evolução que nos trouxe,
refutar uma noção fatalista da ordem natural homens e sociedades, do mais simples ao mais
— na qual se confundem o originário e o complexo. Atualmente, já bem assimilado o
adquirido — , mas também cuidará de afastar conceito de síntese, os sociólogos não temem
as noções a tal propósito postas em circulação versar problemas que se julgavam reservados à
por certos cultores do direito natural. Voltare psicologia, destacando-se, entre os trabalhos
mos ao ponto em nota subseqüente, para me sociológicos contemporâneos, os dedicados ao
lhor acompanhar o pensamento de Rousseau. estudo da influência do social na formação da
(N. de L. G. MJ personalidade. (N . de L.G.M.)]
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 235
exatas para bem julgar de nosso estado na. Essa ignorância da natureza do
presente. Àquele que pretender deter homem é que lança tanta incerteza e
minar exatamente as precauções a obscuridade sobre a definição verda
serem tomadas para fazer sobre esse deira do direito natural, pois, como diz
assunto observações sólidas, tornar-se- o Sr. Burlamaqui2 9, a idéia do direito
á mesmo necessário mais filosofia do e, mais ainda, a do direito natural, são
que se pensa e não me pareceria indig evidentemente idéias relativas à natu
na dos Aristóteles e dos Plínios de reza do homem. É, pois, dessa mesma
nosso século uma boa solução do natureza — continua ele — de sua
seguinte problema: “Quais as experiên constituição e de seu estado, que se
cias necessárias para chegar-se a co devem deduzir os princípios dessa
nhecer o homem natural e quais os ciência.
meios para fazer tais experiências no Não é sem surpresa e sem escândalo
seio da sociedade?"2 7 Longe de tentar que se nota a pequena concordância
resolver esse problema, creio ter medi que reina sobre esse importante assun
tado bastante sobre o assunto para to entre os diversos autores que já tra
ousar de antemão responder que os taram dele. Entre os escritores mais sé
maiores füósofos não serão suficiente rios, encontram-se com dificuldade
mente bons para dirigir essas experiên dois que sejam da mesma opinião
cias, nem os mais poderosos soberanos sobre esse ponto. Sem falar dos antigos
para fazê-las2*, não sendo razoável filósofos, que parecem ter-se esforçado
contar com tal concurso, sobretudo para se contradizer entre si sobre os
com a perseverança ou, antes, a suces princípios mais fundamentais, os juris
são de luzes e de boa vontade necessá consultos romanos submetem o
rias, tanto duma quanto doutra parte, homem e todos os outros animais à
para alcançar bom êxito. mesma lei natural, por atribuírem esse
Essas pesquisas, tão difícies de nome antes à lei, que a natureza impõe
fazer-se e sobre as quais se pensou tão a si mesma, do que à que prescreve, ou
pouco até aqui, constituem todavia os melhor, por causa da acepção particu
únicos meios que nos restam para lar que esses jurisconsultos dão à pala
remover uma multidão de dificuldades, vra lei que, segundo parece, só empre
que nos ocultam o conhecimento dos garam, nessa ocasião, como expressão
fundamentos reais da sociedade huma das relações gerais estabelecidas pela
natureza entre todos os seres animados
2 7 Aristóteles, entre os gregos, e Plínio, entre
visando à sua conservação comum. Os
os romanos, foram os dois sábios da antigui modernos só reconhecem como lei
dade que acumularam as observações e as uma regra prescrita a um ser moral,
experiências da história natural. O método de isto é, inteligente, livre e considerado
Rousseau é claro: para alcançar o homem nas suas relações com os demais seres,
natural, com o qual se deve reconstruir a socie
dade, impõe-se isolar nele tudo o que existe de limitando conseqüentemente ao único
social. “C aso contrário, corre-se o risco de animal dotado de razão, isto é, ao
incorrer no erro daqueles que, raciocinando homem, a competência da lei natural;
sobre o estado de natureza, carreiam para ele definindo, porém, esta lei cada um a
as idéias tomadas da sociedade.” (N . de P.
A.-B.)
28 Rousseau pensa, ao mesmo tempo, na 29 Burlamaqui (1694-1748), professor gene-
tradição do mecenismo científico dos príncipes brino, autor dos Princípios de Direito Natural
e no despotismo esclarecido próprios do século (1747) e dos Princípios do Direito Político
XVII, do qual oferece uma idéia a Carta ao (1751). Influiu muito diretamente em Rous
R ei da Polônia. (N . de P.A.B.) seau. (N . de P. A.-B.)
236 ROUSSEAU
seu modo, estabelecem tudo sobre regras sobre as quais, para proveito
princípios tão metafísicos que há, comum, conviria que os homens con
mesmo entre nós, muito poucas pes cordassem entre si, e depois dá-se o
soas em situação de compreender esses nome de lei natural à coleção dessas
princípios, em lugar de poderem en regras, sem outra prova além do bem
contrá-los por si mesmos. De forma que, segundo acham, resultaria de sua
que todas as definições desses homens prática universal. A í está certamente
sábios, aliás em perpétua contradição um meio muito cômodo de compor
entre si, concordam unicamente quan definições e explicar a natureza das
to a ser impossível compreender a lei coisas por conveniências arbitrárias.
da natureza e, conseqüentemente, obe Enquanto, porém, não conhecermos
decê-la, sem ser grande pensador e pro o homem natural, em vão desejaremos
fundo metafísico. Tal coisa significa, determinar a lei que ele recebeu ou
precisamente, que os homens tiveram aquela que melhor convém à sua
de utilizar, para o estabelecimento da constituição. Quanto podemos apreen
sociedade, luzes que só se desenvolvem der bem claramente sobre o objeto
com muito trabalho e para poucas pes dessa lei é que não somente é preciso,
soas, no próprio seio da sociedade. para ser lei, que a vontade daquele a
Conhecendo tão mal a natureza e que obriga possa submeter-se a ela
concordando tão pouco quanto ao sen com conhecimento, como, também,
tido da palavra lei, seria muito difícil para ser natural, é preciso que se expri
convir numa boa definição da lei natu ma imediatamente pela voz da nature
ral. Assim, todas as que encontramos za.
nos livros, além do defeito de não
serem uniformes, têm ainda o de serem Deixando de lado, pois, todos os li
extraídas de vários conhecimentos que vros científicos, que só nos ensinam a
os homens, em absoluto, não têm natu ver os homens como eles se fizeram, e
ralmente, e de vantagens cuja idéia só meditando sobre as primeiras e mais
podem ter depois de sair do estado de simples operações da alma humana,
natureza30. Começa-se por procurar creio nela perceber dois princípios
30 É a aplicação do método geral, exposto anteriores à razão., um dos quais inte
no início do Prefácio, à teoria do direito natu ressa profundamente ao nosso bem-es
ral. Para Rousseau, a sociedade só pode ter
nascido de uma convenção; é o postulado exa
tar e à nossa conservação, e o outro
tamente oposto ao da escola do direito natural. nos inspira uma repugnância natural
Rousseau manifesta seu desacordo com os por ver perecer ou sofrer qualquer ser
Enciclopedistas e com o artigo D ireito N atural sensível e principalmente nossos seme-
de Diderot. Essa tomada de posição fez com
que o classificassem de artificialista. |A con conceito de sociabilidade por qualquer motivo
tenda entre as várias correntes de estudiosos ultrapassava a condição de mero instinto
do direito natural nunca esclareceria suficien humano, isto é, de elemento puramente indivi
temente qual a verdadeira base natural das dual. Rousseau, aceitando prontamente a con
relações sociais. Grócio, sem dúvida, enun cepção individualista, dispõe-se a apurar até
ciando uma “ sociabilidade” que levaria os ho que ponto se pode, com propriedade, falar de
mens a viverem em sociedade, “ ainda que lei natural, posto que a palavra lei já implica
Deus não existisse”, avançara o mais que per uma regra consciente e voluntária; conseqüen
mitia a cultura iluminista. Concorreu, pois, temente, busca saber até onde ia a confusão
para a efetiva laicização do direito natural, entre, de um lado, o liame natural, originário,
mas, nem pelos seus escritos, nem pelos de fundamental e universal, e, de outra parte, as
seus discípulos e continuadores (nenhum dos regras resultantes das convenções sociais e
quais o igualou em força de penetração e inter que, a seu ver, são artificiais, tardias, deriva
pretação), fica-se sabendo, ao certo, se esse das e particulares. (N. de L. G. M.)|
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 237
P r im eir a P arte
Por importante que seja, para bem pio garras retorcidas, se era peludo
julgar o estado natural do homem, como um urso e se, andando com qua
considerá-lo desde sua origem e exami tro pés (c), seus olhares dirigidos para
ná-lo, por assim dizer, no primeiro a terra e limitados a um horizonte de
embrião da espécie, não seguirei sua alguns passos não assinalavam, ao
organização através de seus desenvol mesmo tempo, o caráter e os limites de
vimentos sucessivos; não me deterei suas idéias. Não poderei formular
procurando no sistema animal o que sobre esse assunto senão conjeturas
poderia ter sido inicialmente para ter vagas e quase imaginárias. A anatomia
se tornado o que é. Não examinarei se, comparada progrediu muito pouco até
como pensava Aristóteles41, suas hoje, as observações dos naturalistas
unhas compridas não foram a princí ainda são muito incertas para que se
possa, sobre tais fundamentos, estabe
41 O valor de Áristóteles com o naturalista
lecer a base de um raciocínio sólido;
resulta do fato de ter ele introduzido sistemati assim, sem ter recorrido aos conheci
camente o método comparativo em biologia; mentos naturais que temos sobre esse
salientou a analogia em que diferentes classes ponto e sem levar em consideração as
zoológicas aparentam órgãos cuja estrutura e mudanças que se deram na conforma
aspecto exterior são muito dessemelhantes. O
que a mão é para o homem, a,pinça o é para os
ção, tanto interior quanto exterior do
crustáceos: o que a asa é para o pássaro, a bar homem, à medida que aplicava seus
batana o é para o peixe, etc. (N . de P. A.-B.) membros a novos usos e se nutria com
244 ROUSSEAU
contando ainda com a vantagem de, risco de perecer com ela. Esse perigo,
não menos disposto do que os animais porém, é comum a muitas outras espé
à caminhada e encontrando nas árvo cies, nas quais os menores, durante
res um refúgio quase seguro, dispor algum tempo, não são capazes de pro
sempre da aceitação ou recusa do curar por si mesmos a alimentação e,
embate, e da escolha entre a fuga ou o se a infância é mais longa entre nós, a
combate. Acrescentemos que, segundo vida sendo mais longa também, neste
parece, nenhum animal guerreia natu ponto tudo é quase igual (g), havendo
ralmente com o homem, a não ser no não obstante sobre a duração da pri
caso de sua própria defesa ou de uma meira idade e sobre o número das
fome extrema, nem lhe testemunha crianças (h) outras regras que não se
essas antipatias violentas, que parecem prendem ao meu assunto. Entre os
anunciar ser uma espécie destinada velhos, que agem e transpiram pouco,
pela natureza a servir de pasto a outra. a necessidade de alimentos diminui
Aí estão, sem dúvida, os motivos com a faculdade de atendê-la e, como a
pelos quais os negros e os selvagens vida selvagem distancia deles os reu-
dão tão pouca importância aos ani matismos e a gota, e como a velhice,
mais ferozes que possam encontrar nos entre todos os males, é aquele que o
bosques. Os caraíbas da Venezuela, socorro humano menos pode aliviar,
entre outros, vivem, a esse respeito, na extinguem-se um dia, sem que nos
mais profunda segurança e sem o apercebamos que deixaram de viver e
menor inconveniente. Embora vivam quase sem que eles mesmos percebam.
quase nus, diz François Correal, não Quanto às doenças, não repetirei as
deixam de corajosamente expor-se nas declamações inúteis e falsas que faz
matas, armados unicamente de flecha e contra a medicina a maioria das pes
arco. Jamais se ouviu falar, no entanto, soas de boa saúde, mas perguntarei se
que alguns deles tenham sido devora há uma observação sólida da qual se
dos pelos animais. possa concluir que, no país em que
Outros inimigos, mais temíveis e em essa arte é mais descuidada, a vida do
face dos quais o homem não conta homem seja mais breve do que naque
com os mesmos meios para defender- les em que a cultivam com o maior dos
se, são as enfermidades naturais, a cuidados. E como poderia acontecer,
infância, a velhice e as doenças de toda se nós nos causamos males mais nume
espécie; sinais muito tristes de nossa rosos do que os remédios que a medi
fraqueza, os dois primeiros são co cina pode nos fornecer? A extrema
muns a todos os animais e o último desigualdade na maneira de viver; o
pertence principalmente ao homem que excesso de ociosidade de uns; o exces
vive em sociedade. Observo até, em so de trabalho de outros; a facilidade
relação à infância, que, levando a mãe de irritar e de satisfazer nossos apetites
consigo o filho para todos os lugares, e nossa sensualidade; os alimentos
tem muito mais facilidade para alimen muito rebuscados dos ricos, que os nu
tá-lo do que as fêmeas de inúmeros trem com sucos abrasadores e que
animais que são forçadas, continua determinam tantas indigestões; a má
mente e com muita fadiga, a ir e vir, de alimentação dos pobres, que freqüente
um lado para outro para procurar mente lhes falta e cuja carência faz que
pasto e, de outro, para amamentar e sobrecarreguem, quando possível, avi
nutrir seus filhotes. E verdade que, se a damente seu estômago; as vigílias, os
mulher morre, o filho corre grande excessos de toda sorte; os transportes
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 247
homem tratados igualmente pela natu mais exercitadas deverão ser aquelas
reza, todas as comodidades que o cujo objetivo principal seja o ataque e
homem a si mesmo oferece, mas não a defesa, quer para subjugar a presa,
aos animais, são outras tantas causas quer para defender-se de tornar-se a de
particulares que fazem com que mais um outro animal; os órgãos que só se
perceptivelmente degenere. aperfeiçoam pela lassidão e pela sen
Não constituem, pois, para esses sualidade devem, ao contrário, perma
primeiros homens, nem tão grande necer num estado de grosseria que
mal, nem, sobretudo, tão grande obstá deles excluirá qualquer delicadeza;
culo à sua conservação, a nudez, a ficando seus sentidos, nessa direção,
falta de moradia e a privação de todas divididos, terá o tato e o gosto de uma
as inutilidades que consideramos tão rudez extrema, e a vista, a audição e o
necessárias. Se não têm a pele peluda, olfato de uma enorme sutileza. E esse o
de modo algum disso necessitam nas estado animal em geral e também, de
regiões quentes e, nas frias, desde logo acordo com os relatos dos viajantes, o
sabem apropriar-se da dos animais que da maioria dos povos selvagens. Eis
por que não devemos espantar-nos
dominaram; se só têm dois pés para
com o fato de os hotentotes do cabo da
correr, têm dois braços para atender à
Boa Esperança descobrirem navios em
sua defesa e às suas necessidades. Seus
alto mar a olho nu tão longe quanto os
filhos talvez andem tardiamente e com
holandeses os divisam com óculos,
dificuldade, mas as mães os carregam
nem, por igual, que os selvagens da
com facilidade, o que constitui uma
América sintam os espanhóis no seu
vantagem, que falta às demais espé
encalço como o poderiam fazer os
cies, nas quais, ao ser a mãe perse
melhores cães, nem, também, que
guida, vê-se obrigada a abandonar seus
todas essas nações bárbaras suportem
filhotes ou a regular seus passos pelos
sem sacrifício sua nudez, agucem seu
deles. Finalmente, a menos que se
paladar com pimenta e bebam licores
suponham esses singulares e fortuitos
europeus como água.
concursos de circunstâncias dos quais
falarei em seguida e que poderiam Até aqui levei em consideração
muito bem jam ais ter acontecido, é somente o homem físico; esforcemo-
claro e sem contestação possível que o nos por encará-lo, agora, em seu
primeiro a arranjar vestes e uma habi aspecto metafísico e moral.
tação ofereceu a si mesmo, desse Em cada animal vejo somente uma
modo, coisas pouco necessárias, pois m áquina50 engenhosa a que a natureza
tinha passado até então sem elas e conferiu sentidos para recompor-se por
também por não se poder imaginar si mesma e para defender-se, até certo
como não poderia ele suportar, feito ponto, de tudo quanto tende a destruí-
homem, um gênero de vida em que la ou estragá-la. Percebo as mesmas
vivia desde a infância. coisas na máquina humana, com a
diferença de tudo fazer sozinha a natu
Só, desocupado e sempre próximo reza nas operações do animal, en
do perigo, o homem selvagem deve quanto o homem executa as suas como
gostar de dormir e ter o sono leve, agente livre. Um escolhe ou rejeita por
como os animais que, pensando pouco,
dormem, por assim dizer, todo o tempo
em que não estão pensando. Consti 50 Rousseau adota o mecanismo cartesiano
dos corpos. No parágrafo seguinte, segue a
tuindo a própria conservação quase teoria cartesiana do espírito, que o divide em
sua única preocupação, as faculdades entendimento e vontade. (N . de P. A.-B.)
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 249
instinto, e o outro, por um ato de liber e o animal, haveria uma outra quali
dade, razão por que o animal não pode dade muito específica que os distin
desviar-se da regra que lhe é prescrita, guiria e a respeito da qual não pode
mesmo quando lhe fora vantajoso haver contestação — é a faculdade de
fazê-lo, e o homem, em seu prejuízo, aperfeiçoar-se, faculdade que, com o
freqüentemente se afasta dela. Assim, auxílio das circunstâncias, desenvolve
um pombo morreria de fome perto de sucessivamente todas as outras e se
um prato cheio das melhores carnes e encontra, entre nós, tanto na espécie
um gato sobre um monte de frutas ou quanto no indivíduo; o animal, pelo
de sementes, embora tanto um quanto contrário, ao fim de alguns meses, é o
outro pudessem alimentar-se muito que será_por toda a vida, e sua espécie,
bem com o alimento que desdenham, no fim de milhares de anos, o que era
se fosse atilado para tentá-lo; assim, os no primeiro ano desses milhares. Por
homens dissolutos se entregam a ex que só o homem é suscetível de tor
cessos que lhes causam febre e morte, nar-se im becil?51 Não será porque
porque o espírito deprava os sentidos e volta, assim, ao seu estado primitivo e
a vontade ainda fala quando a natu — enquanto a besta, que nada adqui
reza se cala. riu e também nada tem de bom a per
Todo animal tem idéias, posto que der, fica sempre com seu instinto — o
tem sentidos; chega mesmo a combi homem, tornando a perder, pela velhi
nar suas idéias até certo ponto e o ce ou por outros acidentes, tudo o que
homem, a esse respeito, só se diferen sua perfectibilidade lhe fizera adquirir,
cia da besta pela intensidade. Alguns volta a cair, desse modo, mais baixo
filósofos chegaram mesmo a afirmar do que a própria besta? Seria triste,
que existe maior diferença entre um para nós, vermo-nos forçados a convir
homem e outro do que entre um certo que seja essa faculdade, distintiva e
homem e certa besta. Não é, pois, quase ilimitada, a fonte de todos os
tanto o entendimento quanto a quali males do homem; que seja ela que,
dade de agente livre possuída pelo com o tempo, o tira dessa condição
homem que constitui, entre os animais, original na qual passaria dias tran
a distinção específica daquele. A natu qüilos e inocentes; que seja ela que,
reza manda em todos os animais, e a fazendo com que através dos séculos
besta obedece. O homem sofre a desabrochem suas luzes e erros, seus
mesma influência, mas considera-se vícios e virtudes, o torna com o tempo
livre para concordar ou resistir, e é o tirano de si mesmo e da natureza (i).
sobretudo na consciência dessa liber Seria horrível ter de louvar como um
dade que se mostra a espiritualidade de ser benfeitor o primeiro a sugerir aos
sua alma, pois a física de certo modo habitantes das margens do Orinoco o
explica o mecanismo dos sentidos e a uso dessas tabuazinhas que aplicam
formação das idéias, mas no poder de nas têmporas de seus filhos e que, pelo
querer, ou antes, de escolher e no senti menos, lhes asseguram uma parte de
mento desse poder só se encontram sua imbecilidade e de sua felicidade
atos puramente espirituais que de original.
modo algum serão explicados pelas O homem selvagem, abandonado
leis da mecânica. pela natureza unicamente ao instinto,
Mas, ainda quando as dificuldades
que cercam todas essas questões dei 51 Sofrendo no corpo e no espírito, Rousseau
xassem por um instante de causar dis tom a posição contra a filosofia do progresso e
cussão sobre diferença entre o homem das luzes. (N . de P. A.-B.)
250 ROUSSEAU
finalmente, neste último caso, como se exercerem, a fim de que não se tor
poderiam estabelecer condições entre nassem supérfluas e onerosas antes do
si. Sei que incessantemente nos repe tempo, nem tardias e inúteis ao apare
tem que nada teria sido tão miserável cer a necessidade. O homem encon
quanto o homem nesse estado 72; e, se trava unicamente no instinto todo o
é verdade, como creio tê-lo provado, necessário para viver no estado de
que só depois de muitos séculos pode natureza; numa razão cultivada só
ria sentir ele o desejo e a oportunidade encontra aquilo de que necessita para
de sair dessa condição, tal acusação viver em sociedade.
fora de fazer-se à natureza e não àque Parece, a princípio, que os homens
le assim constituído por ela. Mas, se nesse estado de natureza, não havendo
compreendo bem o termo miserável, é entre si qualquer espécie de relação
ele uma palavra sem sentido algum ou moral ou de deveres comuns, não
que só significa uma privação dolorosa poderiam ser nem bons nem maus ou
e sofrimento do corpo ou da alma. possuir vícios e virtudes, a menos que,
Ora, desejaria que me explicassem tomando estas palavras num sentido fí
qual poderia ser o gênero de miséria de sico, se considerem como vícios do
um ser livre cujo coração está em paz e indivíduo as qualidades capazes de
o corpo com saúde. Pergunto qual das prejudicar sua própria conservação, e
duas — a vida civil ou a natural — é virtudes aquelas capazes de em seu
mais suscetível de tornar-se insupor favor contribuir, caso em que se pode
tável àqueles que a fruem. À nossa ria chamar de mais virtuosos àqueles
volta, vemos quase somente pessoas que menos resistissem aos impulsos
que se lamentam de sua existência, inú simples da natureza73. Sem nos afas
meras até que dela se privam assim tarmos do senso comum, é oportuno
que podem, e o conjunto das leis divi suspender o julgamento que pode
nas e humanas mal basta para deter ríamos fazer de uma tal situação e des
essa desordem. Pergunto se algum dia confiar de nossos preconceitos até que,
se ouviu dizer que um selvagem em de balança na mão, se tenha exami
liberdade pensou em lamentar-se da nado se há mais virtudes do que vícios
vida e em querer morrer. Que se julgue, entre os homens civilizados; ou se suas
pois, com menos orgulho, de que lado virtudes são mais proveitosas do que
está a verdadeira miséria. Pelo contrá funestos seus vícios; ou se o progresso
rio, nada seria tão miserável quanto de seus conhecimentos constitui com
um selvagem ofuscado por luzes, ator pensação suficiente dos males que se
mentado por paixões e raciocinando causam mutuamente à medida que se
sobre um estado diferente do seu. instruem sobre o bem que deveriam
Deveu-se a uma providência bastante dispensar-se; ou se não estariam, na
sábia o fato de as faculdades, que ele melhor das hipóteses, numa situação
apenas possuía potencialmente, só po mais feliz não tendo nem mal a temer
derem desenvolver-se nas ocasiões de nem bem a esperar de ninguém, ao
tudes sociais que quer contestar nos homem prudente se distancia; a cana
homens. Com efeito, que são a genero lha, as mulheres do mercado, é que
sidade, a clemência, a humanidade, separam os contendores e impedem as
senão a piedade aplicada aos fracos, pessoas de bem de se degolarem
aos culpados ou à espécie humana em mutuamente78.
geral? Até a benquerença e a amizade Certo, pois a piedade representa um
são, bem entendidas, produções de sentimento natural que, moderando em
uma piedade constante fixadas num cada indivíduo a ação do amor de si
objeto especial, pois desejar que al mesmo, concorre para a conservação
guém não sofra não será desejar que mútua de toda a espécie. Ela nos faz,
seja feliz? A ser verdadeiro que a sem reflexão, socorrer aqueles que
comiseração não passa de um senti vemos sofrer; ela, no estado de nature
mento que nos coloca no lugar daquele za, ocupa o lugar das leis, dos costu
que sofre, sentimento obscuro e vivo mes e da virtude, com a vantagem de
no homem selvagem, desenvolvido ninguém sentir-se tentado a desobe
mas fraco no homem civil, que impor decer à sua doce voz; ela impedirá
tará tal idéia para a verdade do que qualquer selvagem robusto de tirar a
digo, senão para dar-lhe mais força? A uma criança fraca ou a um velho enfer
comiseração, com efeito, mostrar-se-á mo a subsistência adquirida com difi
tanto mais enérgica quanto mais inti culdade, desde que ele mesmo possa
mamente se identificar o animal espec encontrar a sua em outra parte; ela, em
tador com o animal sofredor. Ora, é lugar dessa máxima sublime da justiça
evidente que essa identificação deveu raciocinada — Faze a outrem o que
ser infinitamente mais íntima no esta desejas que façam a ti — , inspira a
do de natureza do que no estado de todos os homens esta outra máxima de
raciocínio. É a razão que engendra o bondade natural, bem menos perfeita,
amor-próprio e a reflexão o fortifica; mas talvez mais útil do que a prece
faz o homem voltar-se sobre si mesmo; dente — Alcança teu bem com o
separa-o de quanto o perturba e aflige. menor mal possível para outrem.
É a filosofia que o isola; por sua causa, Numa palavra, antes nesse sentimento
diz ele, em segredo, ao ver um homem natural do que nos argumentos sutis
sofrendo: “Perece, se queres; quanto a deve procurar-se a causa da repug
mim, estou seguro” . Nada, além dos nância que todo homem experimen
peFigos da sociedade inteira, atrapalha taria por agir mal, mesmo independen
o sono tranqüilo do filósofo e o arran temente das máximas da educação.
ca do leito. Podem impunemente dego Ainda que possa ser próprio de Sócra
lar um seu semelhante sob sua janela, tes e dos espíritos de sua têmpera
ele só terá de levar as mãos às orelhas
e ponderar um pouco consigo mesmo 78 N as C onfissões, Rousseau afirma que esse
para impedir a natureza, que nele se retrato do filósofo que raciocina contra a.pie
dade natural tapando os ouvidos é o de D ide
revolta, de identificar-se com aquele
rot. Aproveita-se disso para acusar Diderot de
que se assassina. O homem selvagem ter, devido à sua influência, dado às próprias
de modo algum possui esse talento obras “o tom duro e o aspecto negro” que de
admirável e, por falta de sabedoria e de pois não mais apresentaram. Esse retrato tam
razão, vemo-lo cada dia entregar-se bém visa Lucrécio (com o célebre trecho
“suave m ari magno ”. . . “é doce ver um nau
temerariamente ao primeiro senti frágio quando se está ao abrigo em terra
mento de humanidade. Nos motins, firme”) e o moralista inglês Shaftesbury. (N . de
nas arruaças, a populaça se reúne, o P. A.-B.)
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 261
do, no qual só sentia suas verdadeiras É fácil de ver, com efeito, que entre
necessidades, só olhava aquilo que as diferenças que distinguem os ho
acreditava ter interesse de ver, não mens, inúmeras, consideradas como
fazendo sua inteligência maiores pro naturais, são unicamente obra do hábi
gressos do que a vaidade. Se por acaso to e dos vários gêneros de vida que os
descobria qualquer coisa, era tanto homens adotam em sociedade. Assim,
mais incapaz de comunicá-la quanto um temperamento robusto ou delicado,
nem mesmo reconhecia os próprios a força ou a fraqueza, que dele deri
filhos. A arte perecia com o inventor. vam, resultam mais freqüentemente da
Então não havia nem educação, nem maneira dura ou afeminada pela qual
progresso; as gerações se multipli se foi educado do que da constituição
cavam inutilmente e, partindo cada primitiva dos corpos. A mesma coisa
uma sempre do mesmo ponto, desenro acontece com as forças do espírito; a
lavam-se os séculos com toda a grosse educação não só estabelece diferença
ria das primeiras épocas; a espécie já entre os espíritos cultos e os que não o
era velha e o homem continuava sem são, como também aumenta a que exis
pre criança79. te entre os primeiros na proporção da
Estendi-me desse modo sobre a cultura, pois, quando um gigante e um
suposição80 dessa condição primitiva anão andam pelo mesmo caminho,
porque, devendo destruir antigos erros cada passo, que um e outro dêem, trará
e preconceitos inveterados, achei que uma vantagem a mais ao gigante. Ora,
devia pulverizá-los até a raiz e mos se se fizer uma comparação entre a
trar, no quadro do verdadeiro estado diversidade prodigiosa de educação e
de natureza, como a desigualdade, de gêneros de vida que reina nas várias
mesmo natural, está longe de ter nesse ordens do estado civil, e a simplicidade
estado tanta realidade e influência e uniformidade da vida animal e selva
quanto pretendem nossos escritores81.
gem, na qual todos se alimentam com
79 A incapacidade, que Rousseau aponta no
os mesmos alimentos, vivem da mesma
homem natural, para uma acumulação cultural maneira e fazem exatamente as mes
por sobre e para além das gerações em suces mas coisas, compreender-se-á quanto
são, representa a antítese teórica e conjètural deve a diferença de homem para
do sentido histórico da vida humana. Em ou homem ser menor no estado de natu
tras palavras: os feitos do homem, longe de
poderem ser atribuídos às suas capacidades de
reza do que no estado de sociedade e
animal superior, resultam substancialmente da quanto aumenta a desigualdade natu
vida em sociedade que supera e transfigura as ral na espécie humana por causa da
existências individuais. Por isso os historia desigualdade de instituição.
dores modernos reconhecem em Rousseau um
Mas, mesmo se a natureza mos
precioso precursor que, principalmente através
de Herder, legou-nos uma visão inteiramente trasse na distribuição desses dons
inédita da História. (N . de L. G. M.) todas as preferências que se pretende
80 O autor lembra que esse quadro do estado que tenha, qual a vantagem alcançada
de natureza não passa de uma hipótese bem pelos favorecidos em prejuízo dos
fundamentada, pois sua eloqüência fez com
que nos esquecêssem os disso. (N de P. A.-B.)
demais, num estado de coisas-que não
81 Hobbes via na força um método, mais admitiria quase nenhuma espécie de
curto e mais natural do que as convenções, relação entre eles? De que servirá a be
para fundamentar uma sociedade: o mais forte leza onde não houver amor de espécie
submete seus súditos, seja com o um pai sub alguma? De que serve o espírito a pes
mete os filhos a seu governo, seja como o ven
cedor submete o inimigo vencido à servidão. soas que não falam e a astúcia aos que
(N . de P. A.-B.) não têm interesses? Ouço sempre dizer
264 ROUSSEAU
gue os mais fortes oprimirão os fracos. Sem prolongar inutilmente esses de
E preciso, porém, que me expliquem o talhes, cada qual deve ver como, por
que querem dizer com a palavra opres serem os laços da servidão formados
são. Uns dominarão com violência, ou unicamente pela dependência mútua
tros gemerão submetidos a todos os dos homens e pelas necessidades recí
seus caprichos. Aí está precisamente o procas que os unem, é impossível sub
que observo entre nós, mas não sei jugar um homem sem antes tê-lo colo
como se poderia dizer isso de homens cado na situação de não viver sem o
selvagens, com os quais se teria mesmo outro, situação essa que, por não exis
grande dificuldade para fazer com tir no estado de natureza, nele deixa
preender o que é servidão e domina cada um livre do jugo e torna inútil a
ção. Um homem poderá muito bem lei do mais forte83.
apossar-se dos frutos colhidos por um Depois de ter provado ser a desi
outro, da caça morta por ele, do antro gualdade apenas perceptível no estado
que lhe servia de abrigo, mas como de natureza, e ser nele quase nula sua
chegaria ao ponto de fazer-se obede influência, resta-me ainda mostrar sua
cer? E quais poderão ser as cadeias da origem e seus progressos nos desenvol
dependência entre homens que nada vimentos sucessivos do espírito huma
possuem? Se me expulsam de uma ár no. Depois de ter mostrado que a
vore, sou livre de ir a uma outra; se me perfectibilidade, as virtudes sociais e
perseguem num certo lugar, que me as outras faculdades que o homem
impedirá de ir para outro? Se encon natural recebera potencialmente ja
trar um homem com força bem supe mais poderão desenvolver-se por si
rior à minha e, além disso, o bastante próprias, pois para isso necessitam do
depravado, preguiçoso e feroz para concurso fortuito de inúmeras causas
obrigar-me a prover a sua subsistência estranhas, que nunca poderiam surgir e
enquanto nada fizer, será preciso que sem as quais ele teria permanecido
ele se resolva a não me perder de vista eternamente em sua condição primiti
um só instante e ter-me amarrado com va, resta-me considerar e aproximar os
muito cuidado enquanto dormir, te
mendo que eu escape ou que o mate, vários acasos que puderam aperfeiçoar
isto é, será obrigado a expor-se volun a razão humana, deteriorando a espé
tariamente a um trabalho muito maior cie, tornar m au8 4 um ser ao transfor
do que deseja evitar e do que dá a mim má-lo em ser social e, partindo de tão
mesmo. Depois de tudo isso, sua vigi longe, trazer enfim o homem e o
lância amaina um pouco, um ruído mundo ao ponto em que o conhece
imprevisto faz com que volte a cabeça, mos.
ando vinte passos em direção à flores
ta, meus grilhões se quebram e ele 83 Essa crítica da teoria do direito do mais
forte visa Hobbes, que baseava o direito na
nunca mais me vê em toda a sua relação senhor-escravo. O vencido teme a
vida82. morte e prefere a sujeição à escravidão. Para
Rousseau, por um lado, esse temor e essa sujei
82 Para que se estabeleça entre os homens, a ção só podem ser permanentes no estado de
desigualdade de poder carece de uma base real natureza; por outro lado, não é legítimo que os
que Rousseau propende a apontar na institui comprom issos assumidos devido ao temor
ção da propriedade, sem a qual o esforço des sejam obrigatórios. Toda a argumentação será
pendido na sujeição e vigia do semelhante retomada no Contrato Social, I, III, D o direito
escravizado não seria compensador, como do mais forte e da escravidão. (N . de P. A.-B.)
seria tê-lo a trabalhar numa acumulação de 84 Mau: no original, “méchant”: mau, vicia
bens em proveito do escravizador. (N .d e L. G. do, corrompido. Rousseau emprega igual
M.) mente o termo dépravé. (N . de P. A.-B.)
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 265
Se g u n d a P arte
pendente; mas, desde o instante em que matérias metálicas em fusão, deu aos
um homem sentiu necessidade do so observadores a idéia de imitar essa
corro de outro, desde que se percebeu operação da natureza. Precisa-se ainda
ser útil a um só contar com provisões supor, nesses observadores, muita co
para dois, desapareceu a igualdade, ragem e previdência para empreender
introduziu-se a propriedade, o trabalho um trabalho tão penoso e imaginar,
tornou-se necessário e as vastas flores com tal antecedência, as vantagens que
tas transformaram-se em campos apra dele poderiam tirar, coisa que só tenta
zíveis que se impôs regar com o suor riam espíritos já mais desenvolvidos
dos homens e nos quais logo se viu a do que esses deveriam ser.
escravidão e a miséria germinarem e Quanto à agricultura, conheceu-se o
crescerem com as colheitas. princípio muito antes de ser a prática
A metalurgia e a agricultura foram estabelecida e absolutamente não é
as duas artes cuja invenção produziu possível que os homens, ocupados
essa grande revolução. Para o poeta continuamente em obter sua subsis
foram o ouro e a prata, mas para o tência das árvores e das plantas, não
filósofo foram o ferro e o trigo que formassem rapidamente a idéia das
civilizaram os homens e perderam o vias empregadas pela natureza para a
gênero humano. Um e outro eram tam geração dos vegetais; sua indústria,
bém desconhecidos dos selvagens da porém, só muito tarde voltou-se para
América que, por isso, sempre perma esse lado, seja porque as árvores, que,
neceram nesse estado; os outros povos juntamente com a caça e a pesca, for
parecem ter continuado ainda bárba neciam sua alimentação, não necessi
ros enquanto praticaram uma dessas tavam de seus cuidados, seja por falta
artes sem a outra. E talvez uma das de conhecer o uso do trigo, ou, ainda,
melhores razões por que a Europa foi, por falta de instrumentos para cultivá-
senão mais cedo, pelo menos mais lo, por não preverem uma necessidade
constantemente e melhor policiada do futura ou, afinal, por falta de meios
que as outras partes do mundo, é ser para impedir os outros de se apro
ela, ao mesmo tempo, a mais abun priarem do fruto de seu trabalho.
dante em ferro e a mais fértil em trigo. Tornando-se mais industriosos, pode-
É muito difícil conjeturar como os se imaginar que, com pedras agudas e
homens chegaram a conhecer e a paus pontudos, começaram a cultivar
empregar o ferro, pois não é crível que à volta de sua cabana alguns legumes
tenham imaginado por si mesmos ou raízes muito antes de saber prepa
extrair a matéria da mina e dar-lhe o rar o trigo e de contar com instru
preparo necessário para pô-la em mentos necessários para a cultura em
fusão, antes de saber o que resultaria grande escala, mesmo sem levar em
disso. Por outro lado, menos ainda se consideração que, para dedicar-se a
poderá atribuir essa descoberta a essa ocupação e semear as terras, é
algum incêndio acidental, posto que as preciso inicialmente resolver-se a per
minas se formam em lugares áridos e der alguma coisa para depois ganhar
desprovidos de árvores e de plantas, mais — preocupação muito distan
podendo-se até imaginar que a natu ciada da tendência de espírito de um
reza tomara precauções para escon homem selvagem que, como disse,
der-nos esse segredo fatal. Não resta, sente muita dificuldade para, de
pois, senão a circunstância extraordi manhã, pensar nas necessidades da
nária de algum vulcão que, vomitando noite.
272 ROUSSEAU
do à sua volta, somente eles não muda tenham, afinal, refletido sobre tão
ram, viram-se obrigados a receber ou miserável situação e as calamidades
roubar sua subsistência da mão dos que os afligiam. Os ricos, sobretudo,
ricos. Daí começaram a nascer, segun com certeza logo perceberam quanto
do os vários caracteres de uns e de lhes era desvantajosa uma guerra per
outros, a dominação e a servidão, ou a pétua cujos gastos só eles pagavam e
violência e os roubos. Os ricos, de sua na qual tanto o risco da sua vida como
parte, nem bem experimentaram o pra o dos bens particulares eram comuns.
zer de dominar, logo desdenharam Aliás, qualquer que fosse a interpre
todos os outros e, utilizando seus anti tação que pudessem dar às suas usur
gos escravos para submeter outros, só pações, sabiam muito bem estarem
pensaram em subjugar e dominar seus estas apoiadas unicamente num direito
vizinhos, como aqueles lobos famintos precário e abusivo e que, tendo sido
que, uma vez comendo carne humana, adquiridas apenas pela força, esta
recusam qualquer outro alimento e só mesma poder-lhes-ia arrebatá-las sem
querem devorar homens. que pudessem lamentar-se. Os enrique
Assim, os mais poderosos ou os cidos só pela indústria não podiam ba
mais miseráveis, fazendo de suas for sear sua propriedade em melhores títu
ças ou de suas necessidades uma espé los. Por mais que dissessem: “ Fui eu
cie de direito ao bem alheio, equiva quem construiu este muro; ganhei este
lente, segundo eles, ao de propriedade, terreno com meu trabalho”, outros
seguiu-se à rompida igualdade a pior poderiam responder-lhes: “Quem vos
desordem; assim as usurpações dos deu as demarcações, por que razão
ricos, as extorções dos pobres, as pai pretendeis ser pagos a nossas expensas,
xões desenfreadas de todos, abafando a de um trabalho que não vos impuse
piedade natural e a voz ainda fraca da mos? Ignorais que uma multidão de
justiça, tornaram os homens avaros, vossos irmãos perece e sofre a necessi
ambiciosos e maus. Ergueu-se entre o dade do que tendes a mais e que vos
direito do mais forte e o do primeiro seria necessário um consentimento ex
ocupante um conflito perpétuo que ter presso e unânime do gênero humano
minava em combates e assassinatos para que, da subsistência comum, vos
(q). A sociedade nascente foi colocada apropriásseis de quanto ultrapassasse
no mais tremendo estado de guerra; o a vossa?” Destituído de razões legíti
gênero humano, aviltado e desolado, mas para justificar-se e de forças sufi
não podendo mais voltar sobre seus cientes para defender-se, esmagando
passos nem renunciar às aquisições com facilidade um particular, mas
infelizes que realizara, ficou às portas sendo ele próprio esmagado por gru
da ruína por não trabalhar senão para pos de bandidos, sozinho contra todos
sua vergonha, abusando das faculda e não podendo, dados os ciúmes mú
des que o dignificam. tuos, unir-se com seus iguais contra os
inimigos unidos pela esperança
Attonitus novitate mali, divesque, mi- comum da pilhagem, o rico, forçado
[serque
Effugere optat opes, et quae modo vo- 9 5 “Tom ados de estupor com a novidade do
[verat odit9 5 mal, tanto o rico quanto o pobre desejam esca
par às riquezas e maldizem aquilo que um ins
Ovídio, Metamorfoses, XI, v. 127 tante atrás invocaram com seus votos.” Oví
dio, M etam orfoses, X I, verso 127, citado por
Não é possível que os homens não Montaigne, Ensaios, II, XII. (N . de P.A. -B.)
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 275
dade, fizeram de uma usurpação sagaz esses grandes corpos do que fora,
um direito irrevogável e, para lucro de antes, entre os indivíduos dos quais se
alguns ambiciosos, daí por diante compunham. Daí nasceram as guerras
sujeitaram todo o gênero humano ao nacionais, as batalhas, os assassinatos,
trabalho, à servidão e àm iséria. Vê-se, as represálias que levam a natureza a
com facilidade, como o estabeleci agitar-se e chocam a razão, e todos
mento de uma única sociedade tornou
esses preconceitos horríveis que consi
indispensável o de todas as outras e deram como virtude a honra de derra
como foi preciso se unirem, por sua
mar o sangue humano. As pessoas de
vez, para enfrentar forças conjuntas.
As sociedades, multiplicando-se ou bem passaram a incluir entre seus
deveres o de degolar seus semelhantes;
estendendo-se rapidamente, logo cobri
ram toda a superfície da terra e não viu-se, por fim, os homens se massa
crarem aos milhares sem saber por que
mais se pôde encontrar um único
ponto do universo em que se conse e cometeram-se mais assassinatos num
guisse escapar ao jugo e subtrair-se ao só dia de combate e mais horrores na
gládio, freqüentemente mal dirigido, tomada de uma única cidade do que se
que cada homem perpetuamente pas cometera, no estado de natureza, em
sou a ver suspenso sobre a sua cabeça. toda a face da terra, durante séculos
Tornando-se, deste modo, o direito inteiros. Tais são os primeiros efeitos
civil a regra comum dos cidadãos, a lei que se discernem na divisão do gênero
natural só encontrou lugar, entre as humano em diferentes sociedades. Vol
diversas so cied ad es", onde, sob o temos à sua instituição.
nome de direito das gentes, foi mode Sei que muitos atribuíram outras
rada por algumas convenções tácitas origens às sociedades políticas, como
para tornar o comércio possível e fazer as conquistas do mais potente ou a
as vezes da comiseração natural que, união dos fracos. A escolha entre essas
perdendo entre as sociedades quase causas é indiferente ao que desejo esta
toda a força que tinha entre os homens, belecer; no entanto, à que acabo de
só reside ainda em algumas grandes expor me parece a mais natural pelas
almas cosmopolitas capazes de trans seguintes razões: 1.° porque, no pri
por as barreiras imaginárias que sepa meiro caso, não sendo o direito de con
ram os povos e, a exemplo do ser sobe quista, de modo algum, um direito, não
rano que os criou, agasalham todo o
gênero humano na sua benevolên 100 C oloca-se o problema do direito natural
cia100. em seus verdadeiros termos, que são de duas
Os corpos políticos, deste modo ordens distintas: 1) históricos, pois o jusnatu-
ralismo destinava-se precipuamente a restabe
permanecendo, entre si, em estado de lecer a obediência à ordem natural, que, por
natureza, logo se ressentiram dos in sua vez, melhor se exprimiria no estado de
convenientes que haviam forçado os natureza, com o é óbvio; 2) morais, que interes
particulares a sair dele, e tal estado savam especialmente a Rousseau, para quem o
tornou-se ainda mais funesto entre direito moral constituiria uma compensação à
fria mecânica da lei civil. Cf. o desenvolvi
mento ulterior do tema nos parágrafos seguin
99 Rousseau esboça o projeto de procurar o tes. Até hoje, esses dois sentidos do direito
fundamento de um contrato social entre todas natural são permanentes e, ao menos no que
as sociedades no seio da humanidade. (N . de tange ao direito internacional, operantes. (N.
P. A.-B.) de L. G. M.)
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 277
os ministros escolhidos antes de existi pelas coisas que vêem, julgam coisas
rem as próprias leis. muito diferentes, que não viram; atri
Não seria mais razoável crer que os buem aos homens uma tendência natu
povos se tenham inicialmente lançado ral à servidão pela paciência com a
nos braços de um senhor absoluto, sem qual aqueles, que têm sob os olhos,
condições nem compensações, e que suportam a sua, sem pensar que com a
lançar-se na escravidão fosse o pri liberdade acontece o mesmo que com a
meiro meio que pudessem imaginar ho inocência e a virtude, cujo valor só se
mens orgulhosos e desconfiados para percebe à medida que a própria pessoa
atender à segurança comum102. Com usufrui delas e cujo gosto se perde
efeito, por que se darem a superiores, assim que se as perdem. “Conheço as
senão para defender-se da opressão e delícias de tua terra”, dizia Brási-
proteger seus bens, suas liberdades e das10 4 a um sátrapa que comparava a
suas vidas que, por assim dizer, repre vida de Esparta à de Persépolis, “mas
sentam os elementos constitutivos de não podes conhecer os prazeres da
seu ser? Ora, como nas relações de minha.”
homem para homem o pior que pode Assim como um corcel indomável
acontecer a um é ver-se à discrição do eriça a crina, bate com o pé na terra e
outro, não contrariaria o bom senso se debate impetuosamente só com a
começar por despojar-se, nas mãos de aproximação do freio, enquanto que
um chefe, das únicas coisas p ara cuja um cavalo domado agüenta paciente
conservação necessitavam de seu auxí
mente o chicote e a espora, também o
lio? Que equivalente poderia oferecer-
homem bárbaro não dobra sua cabeça
lhes o chefe pela concessão de tão belo
ao jugo que o homem civilizado carre
direito? E, se tivesse ousado exigi-lo, a
pretexto de defendê-los, não receberia ga sem murmurar e prefere a mais
logo a resposta do apólogo: “Que nos tempestuosa liberdade a uma tranqüila
fará a mais o inimigo?” Incontes dominação. Não é, pois, pelo avilta
tável, pois, e máxima fundamental de mento dos povos dominados que se
todo o direito político, é que os povos devem julgar das disposições naturais
se deram chefes para defender sua do homem a favor ou contra a servi
liberdade e não para serem dominados. dão, mas sim pelo prodígio realizado
“Se temos um príncipe” dizia Plínio a por todos os povos livres para se
Trajano, “é para que nos preserve de defenderem da opressão. Sei que os
ter um senhor.” 103 primeiros nada fazem senão enaltecer
Os políticos fazem sobre o amor à continuamente a paz e o sossego de
liberdade os mesmos sofismas que os que gozam sob seus grilhões e que
filósofos sobre o estado de natureza — miserrimam servitutem pacem appel
lant 10 5, mas quando vejo os outros
102 Essa era a opinião de Hobbes e de Gró- sacrificarem os prazeres e o repouso, a
cio. (N . de P. A.-B.)
1 03 Citação inexata. “Seis, ut sunt diversa na
riqueza, o poder e a própria vida pela
tura dominatio et principatus, ita non aliis esse
principem gratiorem, quam qui maxime dom i 104 Brásidas: general espartano; durante a
num graventur” (Plínio, Panegírico, XLV). guerra do Peloponesò, ganhou a batalha de
“Sabes que, assim como a tirania e o poder Anfípolis, na qual foi ferido mortalmente (422
legítimo são de natureza contrária, do mesmo a. C.). (N . de P. A.-B.)
modo não há homens mais apegados a seu 105 “Chamam de paz a mais miserável das
imperador do que aqueles a quem mais pesa servidões.” Tácito, H istórias IV, XVII. (N. de
um senhor.” (N. de P. A.-B.) P. A.-B.)
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 279
conservação desse único bem tão des volta. Os bens do pai, dos quais é
prezado por aqueles que o perderam, verdadeiramente senhor, são os laços
quando vejo animais, nascidos livres e que retêm seus filhos em sua dependên
detestando o cativeiro, esmagarem a cia, e só pode fazê-los participar de sua
cabeça contra as grades da prisão, sucessão na medida em que se torna
quando vejo multidões de selvagens rem merecedores do pai por contínua
nus desprezarem as volúpias européias deferência a seus desejos. Ora, longe
e enfrentarem a fome, o fogo, o ferro e de poderem esperar os súditos por
a morte para conservar somente sua qualquer favor semelhante de seu dés
independência, concluo não poderem pota, por lhe pertencerem como um
ser os escravos os mais indicados para próprio seu — .eles e tudo o que pos
raciocinar sobre a liberdade. suem — , ou pelo menos por pretender
Quanto à autoridade paterna, da ele que assim seja, vêem-se obrigados a
qual muita gente fez derivar o governo receber como favor o que lhes deixa de
absoluto e toda a sociedade, sem exa seus próprios bens: faz justiça quando
minar as provas em contrário de Locke os despoja, presta-lhes um favor quan
e Sidney10 6, basta observar que nada do os deixa viver.
no mundo mais se distancia do espírito Continuando assim a examinar os
feroz do despotismo do que a doçura fatos segundo o direito, não se encon
dessa autoridade, que leva em conside trará mais solidez do que verdade no
ração antes o benefício daquele que estabelecimento voluntário da tirania e
obedece do que a utilidade daquele que seria difícil mostrar a validade de um
comanda. Além disso, o pai, pela lei da contrato que só obrigaria uma das par
natureza, só é senhor dó filho enquanto tes, no qual tudo caberia a um lado e
necessário seu auxílio, tornando-se de nada a outro, e que só resultaria em
pois disso iguais e, então, o filho, intei prejuízo de quem nele se compromete.
ramente independente do pai, só lhe Esse sistema odioso está bem longe de
deve respeito sem nenhuma obediên ser, mesmo hoje, o dos sábios e bons
monarcas, e sobretudo dos reis de
cia, pois o reconhecimento representa
França, como se pode verificar em vá
um dever que se deve cumprir, mas
rias passagens de seus editos, e, em
não um direito que se possa exigir. Em
especial, no seguinte trecho de uma
lugar de dizer que a sociedade civil de
obra célebre, publicada em 1667, em
riva do poder paterno, dever-se-ia, pelo
nome e por ordem de Luís XIV: “Que
contrário, dizer que dela tira esse
em absoluto se diga não estar o sobe
poder sua principal força. Um indiví rano sujeito às leis de seu Estado, pois
duo só foi reconhecido como pai de
que a proposição contrária é uma ver
outros quando estes se reuniram à sua
dade do direito das gentes, que a adu
lação algumas vezes atacou, mas que
10 6 Algernon Sidney (morto em 1683), autor
os bons príncipes sempre defenderam
dos D iscursos a P ropósito do G overno, refu
tou, ponto a ponto, o Patriarca de Filmer
como uma divindade tutelar de seus
(publicado, postumamente, em 1653) que Estados. Quanto mais legítimo é di
defendia o fundamento paternal da monarquia. zer-se com o sábio Platão, que a felici
Locke, no primeiro de seus Tratados sobre o dade perfeita de um reino consiste em
G overno, repete Sidney. Rousseau retoma o
ser o príncipe obedecido pelos seus sú
assunto e o comentário a esses autores no iní
cio do artigo sobre a “ Econom ia Política” . (N . ditos, em o príncipe obedecer a lei e em
de L. G. M.) ser a lei justa e visar sempre ao bem do
280 ROUSSEAU
público!” 107 Não me deterei procu Locke, não poder ninguém vender sua
rando saber se, sendo a liberdade a liberdade senão ao ser submetido a
mais nobre das faculdades do homem, uma potência arbitrária que o trate de
não equivaleria a degradar a natureza acordo com sua fantasia. “ Pois” ,
pôr-se ao nível das bestas escravas do acrescenta ele, “ isto séria vender sua
instinto, ofender mesmo o autor de seu própria vida, da qual não se é se
ser quando se renuncia sem reservas ao nhor.” 109 Perguntarei, somente, com
mais precioso de todos os seus dons, que direito aqueles que não temem
quando se submete a cometer os cri aviltar-se até tal ponto, puderam sub
mes proibidos para agradar a um se meter sua posteridade à mesma igno
nhor feroz e insensato, e ainda se o mínia e em seu nome renunciar a bens
operário sublime deverá ficar mais que ela não recebe de sua liberalidade
irado em ver destruir do que em ver e sem os quais a própria vida é onerosa
desonrar sua mais bela obra. Não leva a todos dignos dela.
rei em consideração, em se querendo, a Pufendorf diz que, assim como por
autoridade de Barbeyrac108, que de meio de convenções e de contratos se
clara precisamente, de acordo com transfere a fortuna a outrem, pode-se
abrir mão da liberdade em proveito de
1 0 7 Este trecho parece estar em contradição alguém. Eis o que me parece um racio
com todos os princípios que, na realidade, cínio bastante falho, póis, em primeiro
guiaram Luís X IV em sua política de autori
dade, de dom inação e conquistas. Impõe-se
lugar, o bem que alieno torna-se-me
saber em que circunstâncias e com que desíg coisa inteiramente estranha cujo abuso
nios foi escrito. É extraído do Traité des Droits me é indiferente, mas é de meu inte
de la Reine Trés-Chrétienne sur Divers États resse que não abusem de minha liber
de la Monarchie d ’E spagne (1667). Quando, dade e não posso, sem tornar-me cul
depois da morte de Filipe IV, rei da Espanha,
Luís X IV preparou-se, apesar das renúncias pado do mal que me forçarão a fazer,
formais consentidas no seu contrato d.e casa expor-me a tornar-me instrumento do
mento, para invadir os Países-Baixos espa crime. Além disso, o direito de proprie
nhóis, publicou esse Traité. Fazendo-se passar dade sendo apenas de convenção e
com o “ submetido às leis de seu Estado” , isto é,
com o colocado por elas na necessidade de
instituição humana, qualquer homem
pegar em armas, Luís XIV pensava somente pode a seu arbítrio dispor daquilo que
em influenciar as potências estrangeiras e não possui; isso, porém, não acontece com
em governar seus próprios súditos: aliás, o os bens essenciais da natureza, tais
mesmo Traité apressa-se a prevenir as conse
quências da verdade que acaba de anunciar:
“Os reis são os autores das leis nos seus Esta 109 Idéia cara a Rousseau, que a desenvol
dos. Isso não quer dizer que se duvide de terem verá no Contrato Social, I, IV, D a escravidão.
os reis o poder de fazer e de derrogar leis; esse “Afirmar que um homem se dá gratuitamente
direito é, indiscutivelmente, um dos mais belos constitui uma afirmação absurda e inconce
florões de sua coroa” . Ao apresentar isolada bível; t^l ato é ilegítimo e nulo, pre c isa m e n te
mente um trecho, Rousseau faz com que tome porque aquele que o faz não está no completo
um caráter inteiramente diverso; sem dúvida, domínio de seus sentidos.” Essa idéia repousa
desejou ele dar sutil lição ao governo então numa concepção da liberdade exposta na Pro
existente. (N . de P. A.-B.) fissão de Fé do Vigário Saboiano, II. “Sem dú
10 8 Barbeyrac, professor de direito em Gro- vida, não sou livre de não querer meu próprio
ningue, publicou no com eço do século XVII bem; não sou livre de querer meu m al. . . (A
uma tradução francesa das obras de Pufendorf providência) não quer o mal que o homem faz
sobre O Direito da Natureza, Das Gentes e ao abusar da liberdade que ela lhe dá, mas ela
D os deveres do Homem e do Cidadão. R ous não o impede de fazer. Ela o criou livre a fim
seau o atacará no Contrato Social, II, II. (N . de que ele fizesse, não o mal, mas o bem,
de P. A.-B.) escolhendo-o.” (N . de P. A.-B.)
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 281
como a vida e a liberdade, de que cada observância das leis nele estipuladas e
um pode gozar e dos quais é pelo que formam os liames de sua
menos duvidoso se tenha o direito de união110. Tendo o povo, quanto às
despojar-se. Destituindo-se de uma, relações sociais, reunido todas as suas
degrada-se o ser; destituindo-se de vontades numa só, tornam-se todos os
outra, anula-se quanto existe em si pró assuntos, sobre os quais essa vontade
prio, e, como nenhum bem temporal se exprime, outras tantas leis funda
pode dispensar-se de uma e de outra, mentais que obrigam todos os mem
constituiria ofensa às leis da natureza e bros do Estado sem exceção, regula
à razão renunciar a elas a qualquer mentando uma delas a escolha e o
preço. Mas, ainda que se pudesse alie poder dos magistrados encarregados
nar sua liberdade como a seus bens, a de zelar pela execução das outras. Esse
diferença seria muito grande para os fi poder se estende a quanto possa man
lhos que só gozam dos bens do pai pela ter a constituição, sem chegar a mudá-
transmissão de seu direito, enquanto, la. Juntam-se-lhe honrarias que tornam
sendo a liberdade um dom que lhes respeitáveis as leis e seus ministros e,
advém da natureza pela qualidade de para estes, pessoalmente, prerrogativas
homem, seus pais não têm qualquer que os compensam dos trabalhos peno
direito de despojá-los dele. De modo sos acarretados por uma boa adminis
que, assim como para estabelecer a tração. O magistrado, por seu lado,
escravidão precisou-se violentar a na obriga-se a só utilizar o poder que lhe é
tureza, foi necessário modificá-la para confiado segundo a intenção dos que
perpetuar esse direito e os juriscon confiaram nele, a manter cada um no
sultos que pronunciaram gravemente gozo tranqüilo do que lhe pertence e,
nascer escravo o filho de um escravo em todas as ocasiões, a preferir a utili
resolveram, em outras palavras, que dade pública a seu próprio interesse.
um homem não nasceria homem. Antes que a experiência o demons
Parece-me, portanto, certo não so trasse, ou o conhecimento do coração
mente que os governos não começaram humano fizesse prever os abusos inevi
pelo poder arbitrário que não passa da táveis de uma tal constituição, ela cer
corrupção, termo extremo e que afinal tamente pareceu a melhor, por serem
reduz os governos simplesmente à lei aqueles que estavam encarregados de
do mais forte, do qual foram inicial sua conservação os mais interessados
mente o remédio, mas também que, nisso, pois, não se baseando a magis
ainda quando tivessem assim começa tratura e seus direitos senão nas leis
do, sendo esse poder por sua natureza fundamentais, assim que fossem estas
ilegítimo, não pôde servir de base aos destruídas, os magistrados deixariam
direitos da sociedade e, conseqüente de ser legítimos e o povo não mais
mente, à desigualdade de instituição.
Sem entrar, nesse momento, nas pes
110 Rousseau acabará as pesquisas, que aqui
quisas que ainda restam por fazer anuncia, no C ontrato Social, onde distinguirá:
sobre a natureza fundamental de qual 1) o contrato social, pelo qual se constitui um
quer governo, limito-me, seguindo a “corpo moral e coletivo” , que é o “corpo polí
opinião comum, a considerar aqui o tico”, ou seja, o “ Estado”, quando passivo, ou
estabelecimento do corpo político o “ Soberano” , quando ativo (1. I, c. IV); 2) a
constituição de um governo, mero “corpo
como um verdadeiro contrato entre o intermediário entre os súditos e o soberano” ,
povo e os chefes que escolhe, contrato no que não vai qualquer contrato (1. III, c. I).
pelo qual as duas partes se obrigam à (N . de L. G. M.)
282 ROUSSEAU
fica de inúmeras maneiras segundo as dade (s), desde que, reunidos em uma
paixões, os talentos e as ocorrências. O mesma sociedade, são forçados a com
magistrado não poderia usurpar um parar-se entre si e a tomar conheci
poder ilegítimo sem engendrar criatu mento das diferenças reveladas no uso
ras às quais é forçado a dar certa parte contínuo que têm de fazer uns dos
dele. Aliás, os cidadãos só se deixam outros. Essas diferenças são de várias
oprimir quando,levados por uma ambi espécies. Mas a riqueza, a nobreza ou
ção cega e olhando mais abaixo do que a condição, o poder e o mérito pessoal
acima de si mesmos, a dominação sendo, em geral, as distinções princi
torna-se-lhes mais cara do que a pais pelas quais as pessoas se medem
independência e quando consentem em na sociedade, provarei que o acordo ou
carregar grilhões para por sua vez o conflito dessas forças diversas são a
poder aplicá-los. É muito difícil redu indicação mais certa de um Estado
zir à obediência aquele que não procu bem ou mal constituído; mostrarei de
ra comandar e o político mais esperto pois que, entre esses quatro tipos de
não conseguiria submeter homens que desigualdade, constituindo as qualida
só desejassem ser livres. Mas a desi des pessoais a origem de todas as
gualdade se expande, sem dificuldade, outras, a riqueza é a última a que por
entre almas ambiciosas e covardes, fim elas se reduzem, porque, sendo a
sempre prontas a correr os riscos da mais imediatamente útil ao bem-estar e
fortuna e a quase indiferentemente a mais fácil de comunicar-se, servem-
dominar ou servir, conforme lhes seja se dela com facilidade para comprar
a fortuna favorável ou contrária. Eis todo o resto. Essa observação permite
como, seguramente, veio um tempo no julgar com bastante precisão como
qual os olhos do povo foram fascina cada povo se distanciou de sua institui
dos a tal ponto que aos seus conduto ção primitiva e do caminho que per
res bastava dizer ao menor dos ho correu até o termo extremo da corrup
mens: “ Sê grande, tu e toda a tua ção. Salientaria como esse desejo
raça”, para que logo ele parecesse universal de reputação, de honrarias e
grande aos olhos de todos e aos seus de preferências, que nos devora, a
próprios, e seus descendentes se elevas todos adestra e põe em confronto os
sem ainda mais à medida que dele se talentos e as forças, excita e multiplica
distanciavam; quanto mais a causa as paixões e como, tornando todos os
fosse distante e incerta, mais aumen homens concorrentes, rivais, ou me
tava o efeito; quanto mais se pudesse lhor, inimigos, cotidianamente deter
contar com indolentes11 5 numa famí mina desgraças, acontecimentos e ca
lia, tanto mais ela se tornava ilustre. tástrofes de toda espécie, fazendo com
que tantos pretendentes entrem num
Se aqui coubesse entrar em porme mesmo combate. Mostraria que é a ta l
nores, explicaria facilmente como, sem ânsia de fazer falar de si, a esse furor
sequer imiscuir-se o Governo, torna-se de distinguir-nos, quase sempre nos
inevitável entre os particulares a desi colocando fora de nós, que devemos o
gualdade de consideração e de autori-
que há de melhor e de pior entre os
homens: nossas virtudes e nossos ví
11 5 Chamam-se reis indolentes aos últimos
reis da linhagem merovíngia, que deixaram
cios, nossas ciências e nossos erros,
toda a autoridade aos prefeitos-do-poço, a nossos conquistadores e filósofos, isto
começar de Thierry III (675) até Childerico III é, uma multidão de coisas más contra
(752). (N. de P. A.-B.) um pequeno número de coisas boas.
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 285
12 5 Pode-se comparar com o conjunto desse sobre consolidar e alargar a visão do homem
D iscurso uma passagem de Buffon que expri peculiar a seu tempo, Rousseau prega, já nes
me idéia muito próxima: “ O homem selvagem ses primeiros discursos, a revolução. Impõe-se,
é, de todos os animais, o mais singular, o contudo, notar que essa revolução não é ape
menos conhecido e o mais difícil de descrever; nas em prol da igualdade política — que a
mas ou nós distinguimos o que só a natureza Revolução Francesa viria cumprir em seus
nos deu daquilo que nos comunicaram a edu aspectos jurídicos formais — mas também em
cação, a im itação, a arte e o exemplo, ou, prol da igualdade econômica. Se o segundo
então, confundim o-los tão bem que não seria tema revolucionário não se estabelece com a
nitidez que o primeiro encontrará no C ontrato
de espantar que desconhecêssem os inteira
Social, vale notar que, no universo de pensa
mente o retrato de um selvagem caso nos fosse
mento rousseauniano, ambos se enunciam
apresentado com as verdadeiras cores e os úni
essencialmente unidos e que, apelando pela
cos traços naturais que devem formar-lhe o liberdade dos homens sob o poder do sobera
caráter. . . Um selvagem absolutamente selva
no, Rousseau o termina por um grito de revol
gem . . . seria um espetáculo curioso para um
ta, não contra as cabeças coroadas, mas con
filósofo; poderia, observando seu selvagem, tra os que “regurgitam superfluidades”. Ver,
avaliar com exatidão a força dos apetites da nesse sentido, a nota i a este discurso, na qual,
natureza; nele veria a alma a descoberto; nele contrapondo os males engendrados pelos ho
distinguiria todos os movimentos naturais e, mens aos que se recebem da natureza, R ous
talvez, nele reconhecesse mais doçura, tranqüi seau entre todos dedica sua mais violenta acu
lidade e calm a do que na sua alma; talvez sação aos provenientes da desigualdade de
visse, claramente, que a virtude pertence mais riquezas — “uns morrem de suas necessidades
ao homem selvagem do que ao civilizado e que e outros de seus excessos”, eis a condição do
o vício só com eçou a nascer na sociedade” . homem na sociedade disforme que Rousseau
Buffon, H istória Natural, Variedades na E spé conhecia e desejava pelo menos corrigir. (N . de
cie Humana, 1749. Acrescentemos ainda que, L. G. M.)
In t r o d u ç ã o à s n o t a s d e R o u s s e a u a o
“ D is c u r s o s o b r e a D e s i g u a l d a d e ”
de Paul Arbousse-Bastide
seau chega até a traçar o plano das viagens ao fim das quais o filósofo poderá ela
borar uma filosofia do homem.
O paralelo, habitual em Rousseau, entre o estado de natureza e o estado de
sociedade, particularmente na extensa nota i, torna-se convencional e dá lugar a
uma ênfase oratória que hoje nos parece excessiva; Jean-Jacques constrói um
quadro porm enorizado dos dois estados, na intenção de resolver o problem a colo
cado, há dois séculos, pelos metafísicos: neste mundo, a soma dos males será
superior ou inferior à soma dos bens? Pontos particulares desse paralelismo são
retomados nas notas 1 (os desejos são naturalmente limitados, mas acrescidos
pelos hábitos sociais), n (a instituição das línguas apresenta mais inconvenientes
do que vantagens), q (no estado de natureza, a dispersão era um refúgio contra a
violência; sua possibilidade desaparece, aos poucos, com o estado social), o (o
amor de si mesmo ou o instinto de conservação é natural e bom, o amor-próprio
é fictício e nefasto, r (a riqueza perm ite que se façam impunemente as madraça-
rias que se desejarem). Todavia, surge, timidamente, um terceiro tema: o de uma
regeneração da sociedade pervertida; será o tema mais fecundo, uma vez que
anuncia o Contrato Social. Na nota s, o problema é colocado segundo os mesmos
temas que no Contrato: trata-se de transpor para a sociedade civil a igualdade
rigorosa do estado de natureza e, para isso, “a condição dos cidadãos deve deter
minar-se não pelo seu mérito pessoal, mas pelos reais serviços p o r eles prestados
ao Estado ”. Talvez não seja p o r acaso que Rousseau reservou para esse tema a
primeira e a última dessas notas (a e s).
O segundo interesse dessas notas está em precisar as fontes de Rousseau e
em descobrir em função de que nível de cultura ele emitiu sua teoria. D e todos os
autores citados, o que mais aparece é Buffon. Rousseau transcreve trechos intei
ros de sua História Natural. O historiador grego Heródoto é também citado mui
tas vezes, devendo-se incluir, também, Ctésias de Cnide e São Jerônimo. São
ainda consultadas p o r Rousseau as narrativas dos viajantes modernos: a História
das Viagens é citada duas vezes; Correal, Kolben, o Padre du Tertre, Gautier,
Buttel, Dapper, Merola, Purchas, Saint-John são citados uma vez. Finalmente,
Rousseau refere-se quer a sábios mais ou menos contemporâneos — os psicó
logos Vossius, Condillac e Locke — , quer aos dois grandes mestres do pensa
mento ocidental — os moralistas Platão e Montaigne.
N otas
desse sentido interior que nos reduz às mais, que foi preciso atar-lhe pedaços
nossas verdadeiras dimensões e que de madeira que a obrigavam a man
distingue de nós tudo que não nos per ter-se ereta em equilíbrio sobre os dois
tence. No entanto, é desse sentido que pés. A mesma coisa sucedeu com a
devemos utilizar-nos se desejarmos criança que, em 1694, foi encontrada
conhecer-nos; somente por ele podere nas florestas da Lituânia e que vivia
mos julgar-nos. Como dar, porém, a entre os ursos. Não apresentava, conta
esse sentido, toda a sua atividade e o Sr. de Condillac, qualquer sinal de
extensão? Como desembaraçar nossa razão, andàva sobre os pés e as mãos,
alma, na qual reside, de todas as ilu não possuía qualquer linguagem e emi
sões de nosso espírito? Perdemos o há tia sons que de modo algum se asseme
bito de invocá-la; ela ficou sem apro lhavam aos de um homem. O pequeno
veitamento em meio do tumulto de selvagem de Hanôver, que há muitos
nossas sensações corporais, fanou-se anos foi conduzido à corte da Ingla
ao fogo de nossas paixões; o coração, terra, sentia a maior das dificuldades
o espírito, os sentidos, tudo trabalhou para resignar-se a andar sobre os dois
contra ela.” Hist. Nat., D a Natureza pés e, em 1719, encontraram-se dois
do Homem. outros selvagens nos Pireneus que cor
(c) As mudanças que pode produzir riam pelas montanhas como se fossem
na conformação do homem o prolon quadrúpedes. Quanto à objeção de que
gado hábito de andar sobre dois pés, as tal coisa levaria a nos privarmos do
relações que ainda se observam entre uso das mãos, do qual nos advêm tan
os braços e as pernas anteriores dos tas vantagens, além do exemplo dos
quadrúpedes e a indução feita sobre o macacos, que mostram poderem as
seu modo de andar fizeram com que mãos ser muito bem empregadas dos
nascessem dúvidas acerca da posição dois modos, isso só poderia provar que
que nos deveria ser mais natural. o homem pode dar a seus membros
Todas as crianças começam andando uma destinação mais cômoda do que a
com quatro pés e precisam de nosso da natureza e não que a natureza desti
exemplo e de nossas lições para apren nou o homem a andar de um modo
derem a manter-se de pé. Há mesmo diferente do que lhe ensina.
nações selvagens, como a dos hotento- Há, porém, parece-me, muito melho
tes, que, descuidando bastante das res razões a apresentar para afirmar
crianças, deixam que andem tanto que o homem é um bípede. Primeiro,
tempo sobre as mãos, que depois têm mesmo que se fizesse ver que ele pode
muito trabalho para endireitá-las; a ria ter anteriormente conformação di
mesma coisa acontece com os filhos versa da que conhecemos e nesse ínte
dos caraíbas das Antilhas. Há inúme rim transformar-se por fim naquilo que
ros exemplos de homens quadrúpedes é, não seria o bastante para concluir
e, entre outros, poderia citar o exemplo que tal se teria passado dessa maneira,
daquela criança que encontraram, em porquanto, após ter mostrado a possi
1344, perto de Hesse, onde fora criada bilidade dessas mudanças, seria preci
por lobos e que depois dizia, na corte so ainda, antes de admiti-las, mostrar
do Príncipe Henrique, que, se depen pelo menos sua verossimilhança. Além
desse unicamente dela, preferiria voltar disso, se os braços do homem parecem
a viver com os lobos do que continuar ter podido, quand© necessário, servir-
a viver entre os homens. De tal modo lhe de pernas, será essa a única obser
se habituara a andar como esses ani vação favorável a esse sistema contra
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 293
lançar uma pedra, escalar uma árvore. do seu andar ultrapassa a imagina-
Mas, se ele só sabe essas coisas, em çao.
compensação as sabe muito melhor do Admira-se de não se utilizarem mais
que nós, que delas não temos a mesma freqüentemente para fins reprováveis
necessidade; como elas dependem uni de sua habilidade, o que, não obstante,
camente do exercício do corpo e não acontece por vezes, como se pode ver
são suscetíveis de qualquer comunica pelo exemplo que disso apresenta:
ção ou progresso de um indivíduo para “Um marinheiro holandês, desem
outro, o primeiro homem pôde ser tão barcando no Cabo, encarregou”, conta
hábil quanto seus últimos descenden ele, “um hotentote de segui-lo à cidade
tes. com um rolo de tabaco aproximada
Os relatos dos viajantes estão cheios mente de vinte libras. Quando os dois
de exemplos da força e vigor dos ho estavam a alguma distância do grupo,
mens nas nações bárbaras e selvagens; o hotentote perguntou ao marinheiro
não deixam de louvar, ainda e não se ele sabia correr. — Correr? — res
menos, sua habilidade e ligeireza e, pondeu o holandês. — Sim, e muito
como bastam dois olhos para observar bem. — Vejamos — disse o africano e,
as coisas, nada impede que acredi fugindo com o tabaco, desapareceu
temos nos testemunhos oculares a esse quase imediatamente. O marinheiro,
respeito. Extraio ao acaso alguns confundido com tal velocidade, não
exemplos dos primeiros livros que me pensou em persegui-lo e nunca mais
caem sob a mão. viu nem o seu tabaco nem o carrega
“ Os hotentotes”, disse Kolben128, dor”.
“conhecem melhor a pesca do que os “Possuem o golpe de vista tão pron
europeus do Cabo. São igualmente há to e a mão tão certa, que os europeus
beis na rede, no anzol e no arpão, tanto ficam em grande desvantagem. A cem
nas enseadas quanto nos rios. Não passos acertaram com uma pedra num
mostram menos habilidade para agar alvo do tamanho de uma moeda de
rar o peixe com a mão. São de uma meio-soldo, e o que há de mais espan
habilidade incomparável no nadar. Seu toso é que, em lugar de fixar como nós
modo de nadar tem qualquer coisa de os olhos no alvo, fazem movimentos e
surpreendente e que lhes é inteiramente contorsões contínuas. Parece que a sua
particular. Nadam com o corpo direito pedra é levada por uma mão invisível.”
e as mãos estendidas fora da. água, de O Padre du Tertre129 escreve sobre
modo que parecem andar sobre a terra. os selvagens das Antilhas quase a
Quando o mar está mais agitado e as mesma coisa que acabamos de \er
ondas como qúe formam montanhas, sobre os hotentotes do cabo da Boa
parecem dançar na crista das vagas, Esperança. Enaltece sobretudo a sua
subindo e descendo como um pedaço precisão para acertar com as flechas os
de cortiça.” pássaros em vôo e os peixes nadando.
“ Os hotentotes”, diz ainda o mesmo Os selvagens da América setentrional
autor, “ apresentam uma habilidade não são menos célebres pela sua força
surpreendente na caça e a velocidade e agilidade; segue-se um exemplo que
128 Pierre K olben (1675-1726); viajante e 12 9 Jean-Bapíiste du Tertre (1610-168 7); m is
naturalista alemão, autor de uma Viagem ao sionário dominicano nas Antilhas, autor de
C abo da Boa Esperança (1719). (N . de P. uma H istória G eral das A n tilh as H abitadas
A.-B.) p e lo s Franceses (1667-1671). (N . de P. A.-B.)
296 ROUSSEAU
que custou â vida e os bens a tantos interfere no combate, este acaba com
infelizes, fez a fortuna a mais de dez alguns murros; o vencedor come, o
mil pessoas. Sei que Montaigne censu vencido vai tentar a sorte e tudo fica
ra o ateniense t)èm ades132 por ter em paz. Mas, com o homem em socie
mandado punir um artesão que, ven dade, as coisas se passam muito
dendo esquifes caríssimos, ganhava diferentemente: trata-se, em primeiro
muito com a morte dos cidadãos. Mas, lugar, de atender ao necessário e,
alegando Montaigne razão para pu depois, ao supérfluo; depois, vêm as
nir-se todo o mundo, é evidente que tal delícias e, depois, as imensas riquezas;
razão confirma as minhas. Penetre depois, os súditos e os escravos. Não
mos, pois, através de nossas frívolas há um momento de cjescanso. O que há
demonstrações de benevolência, no de mais singular é que, quanto mais
que se passa no fundo dos corações e naturais e prementes são as necessida
reflitamos sobre como deva ser um es des, tanto mais aumentam as paixões
tado de coisas no qual todos os ho e, o que é pior, o poder de satisfazê-las,
mens são forçados a agradár-se e a de forma que, depois de longas prospe-
destruir-se mutuamente, e no qual nas ridades, depois de terem se devorado
cem inimigos por dever e traidores por muitos tesouros e arruinado muitos
interesse. Caso me respondam que a homens, meu herói acabará por tudo
sociedade é constituída de tal modo sufocar até que seja ele o único senhor
que cada homem lucra auxiliando os do universo. Esse, abreviadamente, o
outros, replicarei que isso seria muito quadro moral, senão da vida humana,
bom se ele não lucrasse mais ainda pelo menos das pretensões secretas do
prejudicando-os. Não há, absoluta coração de todo homem civilizado.
mente, um lucro legítimo que não Comparai, sem prevenção, o estado
possa ser ultrapassado por aquele que do homem civil com o do homem sel
se pode fazer ilegitimamente e o dano vagem e indagai, se puderdes, como,
que se faz ao próximo é sempre mais
além de sua maldade, suas necessi
lucrativo do que os serviços. Não se
dades e misérias, o primeiro abriu
trata, pois, senão de encontrar os
novas portas à dor e à morte. Se consi
meios para assegurar-se a própria
derardes as penas do espírito que nos
impunidade e para isso os poderosos
consomem, as paixões violentas que
empregam todas as forças e os fracos
nos esgotam e nos arruinam, os traba
todas as artimanhas.
lhos excessivos com os quais se sobre
O homem selvagem, depois de ter
carregam os povos, a preguiça ainda
comidò, fica em paz com toda a natu
mais perigosa à qual os ricos se aban
reza e é amigo de todos os seus seme
donam, e que fazem que morram uns
lhantes. Caso, por vezes, tenha de
de suas necessidades e os outros de
disputar a alimentação, jamais avança seus excessos; se pensardes nas mistu
desferindo golpes, sem antes ter com
ras monstruosas de alimentos, nos
parado a dificuldade de vencer com a
temperos perniciosos, nas mercadorias
de encontrar em outro lugar sua
adulteradas, nas drogas falsificadas,
subsistência, e, como o orgulho não
nas trapaças daqueles que as vendem,
nos erros daqueles que as administram,
13 2 D em ades (cerca de 318 a. C.), orador ate
niense, adversário de Demóstenes. A anedota no veneno das vasilhas em que são
se encontra nos Ensaios, I, X X I. (N. de P. preparados; se prestardes atenção às
A.-B.) doenças epidêmicas oriundas do ar
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 299
confinado entre as multidões de ho perdem a vida, tal fato não deixa de
mens reunidos, às que ocasionam a realmente duplicar a perda da espécie
delicadeza de nosso modo de vida, às humana. Inúmeros são os meios vergo
passagens alternadas do interior de nhosos para impedir o nascimento dos
nossas casas para o ar livre, ao uso da homens e enganar a natureza; quer por
roupa vestida ou desvestida com pou esses gostos brutais e depravados que
quíssima precaução e a todos os cuida insultam sua obra mais encantadora,
dos que nossa sensualidade excessiva gostos qüe jamais foram conhecidos
transformou em hábitos necessários e tanto dos selvagens quanto dos ani
cuja negligência ou privação nos custa mais e que nos países policiados nasce
imediatamente a vida ou a saúde; se ram de uma imaginação corrompida;
levardes em consideração os incêndios seja por esses abortos secretos, dignos
e os tremores de terra que, consumindo frutos da depravação e da honra vicia
ou revirando cidades inteiras, fazem da; seja pelo enjeitamento e assassínio
que os habitantes morram aos milha de uma multidão de crianças, vítimas
res; em uma palavra, se reunirdes os da miséria de seus pais ou da vergonha
perigos que todas essas causas juntam desumana de suas mães; seja, enfim,
continuamente sobre nossas cabeças, pela mutilação desses infelizes, uma
vereis como a natureza faz que pague parte de cuja existência e toda descen
mos caro o desprezo que demos às dência são sacrificadas a canções vãs
suas lições. ou, o que é ainda pior, ao ciúme brutal
Neste ponto, não repetirei acerca da de alguns homens — mutilação que,
guerra o que já disse alhures, mas dese neste último caso, ultraja duplamente a
jaria que as pessoas instruídas quises natureza, tanto pelo tratamento que
sem ou ousassem, por uma vez, mos recebem aqueles que são atingidos,
trar ao público a minúcia dos horrores quanto pelo uso a que se destinam !
que são cometidos nos exércitos pelos Mas não haverá mil casos mais
arrendatários de víveres e de hospitais; freqüentes e mais perigosos ainda, nos
ver-se-ia que suas manobras, não de quais os direitos paternais ofendem
masiado secretas, devido às quais os abertamente a humanidade? Quantos
exércitos mais brilhantes se trans talentos enterrados e inclinações força
formam em menos do que nada, das pela coerção imprudente dos pais !
matam mais soldados do que ceifa o Quantos homens, que se teriam distin
ferro do inimigo. Constitui ainda um guido numa situação apropriada, mor
cálculo não menos impressionante o rem infelizes e desonrados numa dada
relativo aos homens que o mar traga situação para a qual não tinham o
todos os anos pela fome, pelo escorbu menor go sto ! Quantos casamentos
to, pelos piratas, pelo fogo ou, ainda, felizes, mas desiguais, foram rompidos
pelos naufrágios. E preciso ainda, está ou perturbados e quantas castas espo
claro, lançar à conta da propriedade sas desonradas por essa ordem de con
estabelecida e, conseqüentemente, da dições sempre em contradição com a
sociedade, os assassínios, os envenena da natureza; quantas outras uniões
mentos, os assaltos nas estradas e as insuportáveis formadas pelo interesse e
próprias punições desses crimes. São condenadas pelo amor e pela ra z ã o !
punições necessárias para prevenir Até mesmo quantos esposos honestos e
males maiores, mas se, por causa do virtuosos se supliciam, mutuamente,
assassínio de um homem, dois ou mais por se terem unido m a l! Quantas víti
300 ROUSSEAU
fim tornar-se as mais descuidadas. Por sua caça; que nos expliquem como
aí se vê o que se deve pensar das verda esses miseráveis tiveram simplesmente
deiras vantagens da indústria e do efei a audácia de enfrentar pessoas tão há
to real que resulta de seus progressos. beis como éramos, com tão bela disci
Tais são as causas visíveis de todas plina militar, códigos tão perfeitos e
as misérias a que a opulência acaba leis sábias, enfim por que, depois de
por lançar as nações mais admiradas. aperfeiçoar-se a sociedade nas regiões
À medida que a indústria e as artes se do Norte e de ter-se tanto trabalho
estendem e florescem, o cultivador para nelas ensinar aos homens seus
desprezado, sobrecarregado de impos deveres mútuos e a arte de conviver
tos necessários à manutenção do luxo agradável e tranqüilamente, não mais
e condenado a passar uma vida de tra se viu aparecer algo de semelhante a
balho e fome, abandona seus campos essas multidões de homens que outrora
para ir procurar nas cidades o pão que lá se produziam? Tenho muito receio
deveria levar para lá. Quanto mais as de que, afinal, alguém se disponha a
capitais enchem de admiração os olhos dizer-me que todas essas grandes coi
estúpidos do povo, tanto mais se deve sas, a saber: as artes, as ciências e as
ria sofrer vendo os campos abandona leis, foram muito sabiamente inventa
dos, as terras incultas e as estradas das pelos homens como uma peste
inundadas de infelizes cidadãos trans salutar para prevenir a multiplicação
formados em mendigos ou ladrões, e excessiva da espécie, temendo que este
destinados a um dia acabarem a sua mundo que nos é destinado se tornasse
miséria no suplício ou num monturo. E por fim demasiado pequeno para seus
assim que o Estado, enriquecendo por habitantes.
um lado, se enfraquece e se despovoa Pois então será preciso destruir as
por outro, e as monarquias mais pode sociedades, suprimir o teu e o meu, e
rosas, depois de muitos esforços para voltar a viver nas florestas com os
se tornarem opulentas e desertas, aca ursos? E essa uma conseqüência à
bam por se tornar a presa das nações moda de meus adversários, que prefiro
pobres que sucumbem à tentação fu antes prevenir do que possibilitar-lhes
nesta de invadi-las e que, por sua vez, a vergonha de formulá-la. O h ! vós, a
se enriquecem e se enfraquecem até quem a voz celeste não se fez ouvir e
que sejam, elas próprias, invadidas e que não reconheceis para vossa espécie
destruídas por outras. outro destino senão o de terminar em
Que se dignem explicar-nos o que paz esta curta vida; vós, que podeis
puderam produzir essas ondas de bár deixar no meio das cidades vossas
baros que durante tantos séculos inun funestas aquisições, vossos espíritos
daram a Europa, a Ásia, a África. Será inquietos, vossos corações corrom
que deviam sua prodigiosa população pidos e vossos desejos desenfreados;
à indústria de suas artes, à sabedoria retomai, posto que depende de vós,
de suas leis, à excelência de sua polí vossa antiga e primeira inocência, ide
cia? Que tenham os nossos sábios a aos bosques esquecer o espetáculo e a
bondade de dizer-nos por que, ao invés memória dos crimes de vossos contem
de se multiplicarem desse modo, esses porâneos e não temais aviltar vossa
homens ferozes e brutais, sem luzes, espécie renunciando às suas luzes para
sem freio, sem educação, a cada renunciar a seus vícios. Quanto aos
momento não se entredevoram mutua homens semelhantes a mim, cujas pai
mente para disputar suas pastagens e xões destruíram para sempre a simpli-
302 ROUSSEAU
cidade original, que não podem mais mesmo têm barba. Houve, e talvez
alimentar-se de ervas e de bolotas, nem haja ainda, nações de homens com
viver sem leis e sem chefes; aqueles uma estatura gigantesca e, deixando de
que foram honrados, na pessoa de seu lado a fábula dos pigmeus, que pode
primeiro pai, por lições sobrenaturais; muito bem não passar de um exagero,
aqueles que verão, na intenção de dar sabe-se que os lapÕes e, sobretudo, os
inicialmente às ações humanas uma groenlandeses estão muito abaixo da
moralidade que não adquiriram ao fim estatura média do homem. Pretende-se
de muito tempo, a razão de um pre ainda existirem povos inteiros que,
ceito indiferente em si mesmo e inex como os quadrúpedes, possuem cau
plicável por qualquer outro sistema, das. E, sem depositar fé cega nos rela
em uma palavra, aqueles que estão tos de Heródoto e de Ctesias134,
convencidos de ter a voz divina cha pode-se pelo menos aproveitar deles
mado todo o gênero humano às luzes e aquela opinião, muito plausível, de
à felicidade das inteligências celestes que, se fora possível praticar boas
— todos esses, pelo exercício das vir observações nesses tempos antigos,
tudes que se obrigam a praticar ao quando os vários povos apresentavam
aprender a conhecê-las, esforçar-se-ão modos de vida mais diferentes entre si
por merecer o prêmio eterno que do que acontece atualmente, ter-se-ia
devem esperar; respeitarão os sagrados então notado, no aspecto e na complei
laços da sociedade de que são mem ção do corpo, variedades bem mais
bros; amarão seus semelhantes e os notáveis. Todos esses fatos, dos quais é
servirão com todas as suas forças; fácil fornecer provas incontestáveis, só
obedecerão escrupulosamente às leis e podem surpreender os habituados a
aos homens que são seus autores e olhar unicamente os objetos que os cir
ministros; honrarão, sobretudo, os cundam, e que ignoram os efeitos
bons e sábios príncipes que saberão poderosos da diversidade dos climas,
prevenir, sanar ou paliar essa chusma do ar, dos alimentos, do modo de
de abusos e de males sempre prontos a viver, dos hábitos em geral e, sobretu
oprimir-nos; animarão o zelo desses do, a força surpreendente dessas mes
dignos chefes mostrando-lhes, sem mas causas quando agem continua
temor e sem adulação, a grandeza de mente sobre muitas gerações seguidas.
sua tarefa e a austeridade de seu dever, Atualmente, quando o comércio, as
mas nem por isso desprezarão menos viagens e as conquistas mais unem os
uma constituição que só pode manter- vários povos e suas maneiras de vida
se com o auxílio de tantas pessoas aproximam-se incessantemente pela
respeitáveis, que mais freqüentemente comunicação freqüente, percebe-se
se deseja ter do que de fato se obtém e terem diminuído certas diferenças na
da qual, malgrado todos os seus cuida cionais e cada um, por exemplo, pode
dos, nascem sempre mais calamidades observar que os franceses de hoje não
reais do que vantagens aparentes. possuem mais esses grandes corpos
(j) Entre os homens que conhece brancos e louros descritos pelos histo
mos, por nós mesmos, pelos historia riadores latinos, se bem que o tempo,
dores ou pelos viajantes, uns são juntamente com a mistura dos francos
negros, outros brancos e outros verme
lhos; uns têm cabelos longos, outros só 13 4 C tésias: historiador grego, médico de
têm lã encarapinhada; uns são quase Artaxerxes Mnémon (V século a. C.)- (N . de P.
todos cobertos de pêlos, outros nem A.-B.)
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 303
e dos normandos, què também eram lhas não são cobertas de pêlo, com
brancos e louros, deverá ter restabele exceção das sobrancelhas, que são
cido o que o convívio com os romanos muito longas. Ainda que tenham o
pudesse excluir da influência do clima resto do corpo muito peludo, o pêlo aí
na constituição natural e na cor da tez não é muito espêsso e sua cor é escura.
dos habitantes. Todas essas varieda Por fim, a única parte que os dinstin-
des, que inúmeras causas podem pro gue dos homens é a perna, que não tem
duzir e efetivamente produziram na barriga. Andam eretos, segurando com
espécie humana, fazem com que, quan a mão o pêlo do pescoço; abrigam-se
to a vários animais semelhantes aos nos bosques e dormem em cima das ár
homens — que os viajantes, sem um vores, onde constroem uma espécie de
exame acurado, consideraram como teto que os protege da chuva. Seus ali
feras, por causa de algumas diferenças mentos são frutos ou nozes selvagens.
que notaram na conformação exterior, Jamais comem carne. Os negros que
ou unicamente porque tais animais não atravessam as florestas costumam
falavam — eu desconfie serem, com acender fogueiras durante a noite;
efeito, verdadeiros homens selvagens, notam eles que, pela manhã, depois de
cuja raça, dispersada antigamente nos sua partida, os pongos tomam o seu
bosques, não encontrara ocasião de lugar à volta do fogo e só se retiram
desenvolver qualquer de suas faculda quando ele se extingue, pois, embora
des virtuais, não adquirindo nenhum sendo muito habilidosos, não têm inte
grau de perfeição e encontrando-se ligência suficiente para alimentá-lo
ainda no estado primitivo de natureza. com lenha.
Demos um exemplo do que desejo “ Algumas vezes andam em grupo e
dizer. matam os negros que atravessam as
“ Encontra-se”, diz o tradutor da florestas. Chegam até a atacar os ele
História das Viagens 13 5, “no reino do fantes que vêm pastar nas regiões habi
Congo, um certo número desses gran tadas por eles e os incomodam tanto
des animais que nas índias Orientais com socos ou pauladas que os forçam
chamam de orangotangos e que são a fugir soltando gritos. Nunca se agar
como o meio-termo entre a espécie hu ra um pongo vivo, porque são tão
mana e os bugios. Battel13 6 conta que robustos que dez homens não seriam
nas florestas de Mayomba, no reino de capazes de prendê-lo; mas os negros
Loango, se podem ver duas espécies de agarram muitos deles quando ainda
monstros: os maiores chamam-se pon- novos, matando a mãe, ao corpo da
gos e os outros enjocos. Os primeiros qual o filhote se agarra fortemente.
têm uma semelhança exata com o Quando um desses animais morre, os
homem, mas são muito mais largos e outros cobrem seu corpo com um mon
de estatura muito alta. Possuindo um tão de ramos ou de folhas. Pur-
rosto humano, têm os olhos muito chass13 7 acrescenta que, nas conversa
encovados. As mãos, as faces, as ore ções que tivera com Battel, ouvira dele
próprio que um pongo lhe arrebatou
135 A H istória das Viagens ( L ’H istoire des um negrinho que passou um mês intei
Voyages): publicação periódica que existia
desde 1746. (N . de P. A.-B.)
ro entre esses animais, pois eles não
13 6 A n d ré B attel (1565-1640): viajante inglês,
aprisionado pelos portugueses, explorou a 137 Sam uel Purchass (1577-1628): colecio
costa sudoeste da África e publicou uma nar nador inglês e editor de narrativas de viagem.
rativa de suas viagens. (N . de P. A.-B.) (N . de P. A.-B.)
304 ROUSSEAU
fazem nenhum mal ao homem que os tanto jeito que poderia ser tomado
surpreende, pelo menos quando este como um homem na cama. Os negros
não os olha, como observara o negri- contam coisas estranhas sobre esses
nho. Battel não descreveu a segunda animais; asseguram que não só forçam
espécie de monstro. as mulheres e as moças, como também
“D apper138 confirma que o reino ousam atacar homens armados. Em
do Congo está cheio desses animais uma palavra, há forte aparência de tra
que na índia são chamados de orango tar-se do sátiro dos antigos. Merol-
tangos, isto é, moradores dos bosques la139 talvez se refira a esses animais
e que os africanos chamam de quojas quando conta que os negros algumas
morros. Esse animal, diz ele, é tão vezes agarram nas suas caças homens
semelhante aos homens, que certos via e mulheres selvagens.”
jantes chegaram a julgá-lo fruto de Fala-se ainda dessas espécies de ani
uma mulher e de um macaco, quimera mais antropoformes no terceiro tomo
que os próprios negros rejeitam. Um da mesma História das Viagens, sob o
desses animais foi transportado do nome de beggos e de mandrills; mas,
Congo para a Holanda e apresentado para limitarmo-nos aos relatos prece
ao Príncipe de Orange, Frederico Hen dentes, encontra-se na descrição desses
rique. Era da altura de uma criança de pretensos monstros semelhanças cho
três anos e de nediez medíocre, mas cantes com a espécie humana e dife
atarracado e bem proporcionado, renças menores do que as que se pode
muito ágil e vivo, as pernas carnudas e riam notar de homem para homem. De
robustas, toda a parte da frente nua modo algum se encontram nessas pas
mas o traseiro coberto de pêlos negros. sagens os motivos nos quais os autores
Seu semblante, à primeira vista, pare se fundamentam para recusar a esses
cia-se com o de um homem, mas pos animais o nome de homens selvagens,
suía o nariz achatado e recurvado; mas é fácil imaginar dever-se isso à
suas orelhas eram também como as da sua estupidez e, também, a não fala
espécie humana; seu seio, pois era uma rem; são razões fracas para aqueles
fêmea, era carnudo, o umbigo enterra que sabem que, apesar de o órgão da
do, os ombros muito juntos, suas mãos palavra ser natural ao homem, a pala
divididas em dedos e polegares, a bar vra em si, todavia, não lhe é natural e
riga da perna e o calcanhar gordos e até que ponto sua perfectibilidade pôde
carnudos. Comumente andava ereto elevar o homem civil acima de seu es
sobre as pernas e era capaz de levantar tado originai. O pequeno número de li
e carregar fardos bem pesados. Quan nhas em que são feitas essas descrições
do queria beber, pegava com uma das permite-nos imaginar como esses ani
mãos a tam pa do vaso e com a outra mais foram mal observados e com que
segurava a base, enxugando em segui preconceitos foram vistos. Por exem
da, graciosamente, os lábios. Deitava- plo, são qualificados de monstros, mas
se para dormir pondo a cabeça sobre convêm em que eles geram. Num certo
um travesseiro e cobrindo-se com trecho, Battel diz que os pongos
matam os negros que atravessam as
13 8 O liver D apper (cerca de 1680): médico e
florestas, num outro, Purchass acres-
geógrafo holandês, autor de numerosas obras
sobre os países africanos, a China, a Pérsia, as 139 Geronim o M erolla: capuchinho e m issio
terras do Sul da América, as ilhas do Arquipé nário italiano, nascido em 1650, autor de uma
lago, etc. (N . de P. A.-B.) Viagem ao Congo. (N. de P. A.-B.)
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 305
centa que eles não lhes causam ne como creio, imitar a ação de um
nhum mal, mesmo quando os sur homem. Seja como for, está bem
preendem, pelo menos quando os demonstrado que o macaco não é uma
negros não começam a olhá-los. Os variedade do homem, não somente por
pongos se reúnem em torno das foguei não possuir a faculdade de falar, mas,
ras acesas pelos negros, quando estes sobretudo, porque se tem a certeza de
se afastam, e por sua vez se retiram, que sua espécie não é capaz de aperfei
quando o fogo se extingue. Aí está o çoar-se, o que constitui o caráter espe
fato; vejamos o comentário do obser cífico da espécie humana; parece que
vador: “ Pois, embora sendo muito essas experiências não foram feitas
habilidosos, não têm inteligência sufi relativamente aos pongos e os orango
ciente para alimentá-lo com lenha” . tangos com cuidado suficiente para
Gostaria de descobrir como Battel ou poder tirar a mesma conclusão. Have
Purchass, seu compilador, pôde saber ria, no entanto, um meio pelo qual, se
que a retirada dos pongos era um o orangotango ou outros seres fossem
resultado antes de sua estupidez do que da espécie humana, as observações
de sua vontade. Num clima como o de mais grosseiras poderiam disso certifi
Loango, o fogo não é uma coisa muito car-se, até mesmo demonstrando; mas,
necessária para os animais e, se os ne além de uma única geração não ser
gros o acendem, é mais para amedron suficiente para essa experiência, ela pa
tar os animais ferozes do que contra o rece impraticável, porque seria neces
frio, sendo pois muito possível que de sário que aquilo que não passa de uma
pois de, durante certo tempo, ter-se suposição fosse demonstrado como
deleitado com a chama ou de ter-se verdadeiro, antes que a prova desti
aquecido bem, os pongos se aborreçam nada a verificar o fato fosse tentada
de ficar sempre no mesmo lugar e se inocentemente.
retirem para o seu pasto, que exige Os julgamentos precipitados, que
mais tempo do que se comessem carne. não são fruto de uma razão esclare
Aliás, sabe-se que a maioria dos ani cida, estão sujeitos a chegar ao exces
mais, sem excetuar o homem, é natu so. Nossos viajantes sem-cerimonio-
ralmente preguiçosa e se furta a todas samente apresentam bestas, sob os
as espécies de cuidados que não sejam nomes de pongos, mandrills, orango
de absoluta necessidade. Finalmente, tangos, que são os mesmos seres que
parece muito estranho que os pongos, os antigos, sob o nome de sátiros, fa u
cuja habilidade e força se enaltecem, nos e silvanos, consideravam divinda
que sabem enterrar os seüs mortos e des. Verificar-se-á talvez, -depois de
construir abrigos com galhos, não sai pesquisas mais exatas, não serem nem
bam lançar lenha ao fogo. Lembro-me bestas nem deuses, mas homens. Espe
de ter visto um macaco fazer essa rando, parece-me haver muitos moti
mesma manobra que não querem ad vos para, nesse assunto, basearmo-nos
mitir poderem os pongos fazer; é ver mais em Merolla, religioso culto, teste
dade que, não estando então minhas munha ocular e que, com toda a sua
idéias voltadas para esse lado, cometi ingenuidade, não deixava de ser
eu mesmo a falta que censuro em nos homem de espírito, do que no comer
sos viajantes, e descuidei de verificar ciante Battel, em Dapper, em Purchass
se a intenção do macaco era, com efei e nos outros compiladores.
to, manter o fogo ou simplesmente, Que julgamento cremos poderiam
306 ROUSSEAU
expender tais observadores sobre a Ora, não se deve esperar que as três
criança encontrada em 1694, de quem primeiras classes forneçam bons obser
já falei atrás, que não apresentava ne vadores e, quanto aos da quarta, pos
nhum sinal de razão, andava sobre os suídos pela vocação sublime que os
pés e as mãos, não possuía nenhuma inspira, mesmo que não fossem como
linguagem e soltava sons que de modo todos os outros, sujeitos aos precon
algum se pareciam com os de um ceitos próprios ao seu estado, pode-se
homem? crer que não se dedicariam de boa von
“Passou-se muito tempo”, continua tade a buscas aparentemente de pura
o mesmo filósofo que me forneceu esse curiosidade e que os desviariam dos
fato, “ antes de poder ela proferir algu trabalhos mais importantes a que se
mas palavras ainda que de modo bár destinam. Aliás, para pregar eficiente
baro. Assim que pôde falar, interroga mente o Evangelho, basta o zelo, e
ram-na quanto ao seu primeiro estágio, Deus dá o reàto, mas, para estudar os
mas não se lembrava dele mais do que homens, são necessários talentos que
nós nos recordamos do que nos acon Deus não se esforça para dar a nin
teceu no berço.” guém e que nem sempre os santos pos
Se, infelizmente para ela, essa crian suem. Não se abre um livro de viagens
ça tivesse caído nas mãos de nossos em que não se encontrem descrições de
viajantes, não se pode duvidar que, de caracteres e de costumes, mas fica-se
pois de ter notado seu silêncio e sua espantado ao verificar que essas pes
estupidez, não tivessem resolvido man soas, que tanto descreveram coisas, só
dá-la de volta para o campo ou presa disseram o que cada um já sabia, só
para um parque de aclimação e, souberam perceber, no outro lado do
depois, falariam dela, em belos relatos, mundo, o que poderiam notar sem sair
como de uma besta singularíssima que de sua rua e que os verdadeiros traços
se parecia muito com o homem. que distinguem as nações e atingem
Depois de, por trezentos ou quatro olhos feitos para ver quase sempre
centos anos, os habitantes da Europa escaparam aos seus. Daí veio esse belo
inundarem as outras partes do mundo provérbio de moral, tão repisado pela
e incessantemente publicarem novos turba filosofesca — que os homens,
repositórios de viagens e de relatos, em todos os lugares, são os mesmos e
estou persuadido de que, quanto aos que, possuindo em todos os lugares as
homens, só reconhecemos os europeus; mesmas paixões e os mesmos vícios, é
parece até, devido aos preconceitos bastante inútil tentar caracterizar os
ridículos que ainda não se extinguiram vários povos — , o que é aproximada
entre os letrados, que cada um, sob o mente tão bem raciocinado quanto se
título pomposo de estudo do homem, disséssemos não se poder distinguir
só faz o dos homens de seu país. Os Pedro de João porque ambos têm um
particulares podem satisfazer-se indo e nariz, uma boca e olhos.
vindo; parece que a filosofia não sai do Veremos, algum dia, renascer os
lugar, de modo que a de cada povo é tempos felizes em que os povos não se
pouco adaptável a um outro. A causa intrometiam querendo filosofar, mas
disso é manifesta, pelo menos para as quando os Platões, os Tales e os Pitá-
regiões distantes. Somente quatro tipos goras, tomados por um desejo ardente
de homens fazem viagens de longo de saber, empreendiam as maiores via
curso — os marinheiros, os comer gens unicamente para se instruir e iam
ciantes, os soldados e os missionários. longe sacudir o jugo dos preconceitos
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 307
nacionais, conhecer os homens por Parece que a China foi bem observada
suas conformidades e diferenças, e pelos jesuítas. Kempfer dá uma idéia
adquirir seus conhecimentos univer passável do pouco que viu no Japão.
sais, que não são exclusivamente os de Salvo esses relatos, não conhecemos,
um século ou de uma região, mas, em absoluto, os povos das índias
sendo de todos os tempos e de todos os Orientais, visitadas unicamente por
lugares, são, por assim dizer, a ciência europeus mais interessados em encher
comum dos sábios? suas bolsas do que suas cabeças.
Admira-se a magnificência de al Ainda precisa ser observada toda a
guns curiosos que, com grandes despe África e seus numerosos habitantes,
sas, fizeram ou custearam viagens ao tão singulares pelo seu caráter quanto
Oriente, com sábios e pintores, para lá pela cor; a terra toda está coberta de
desenhar ruínas e decifrar ou copiar nações das quais só conhecemos os
inscrições; custo, porém, a com nomes, e ainda queremos julgar o gê
preender como, num século que se van nero hum ano! Suponhamos um Mon
gloria de altos conhecimentos, não se tesquieu, um Buffon, um Diderot, um
encontrem dois homens bem ligados, D uelos1 43, um d’Alembert, um Con
ricos, um em dinheiro e outro em dillac ou homens dessa têmpera, via
gênio, ambos amando a glória e aspi jando para instruir seus compatriotas,
rando à imortalidade, um dos quais observando e descrevendo, como o
sacrifique vínte mil escudos de sua for sabem, a Turquia, o Egito, a Barbá-
tuna e outro dez anos de sua vida para ria 144, o Império de Marrocos, a
uma célebre viagem em volta do Guiné, o país dos Cafres1 4 5, o interior
mundo, a fim de, pelo menos uma vez, da África e suas costas orientais, as
em lugar de estudar sempre pedras e M alabares1 4 6, o Mogol1 4 7, os rios do
plantas, estudarem os homens e os cos Ganges, os reinos do Sião, de Pegu1 48
tumes e, depois de tantos séculos dedi e de A va1 49, a China, a Tartária1 50 e,
cados a medir e considerar a casa, se
resolvam por fim a conhecer-lhe os 1 43 D u elos (1704-1772): moralista francês,
habitantes. autor de Considerações sobre os Costum es.
Os acadêmicos que percorreram as (N. de P. A.-B.)
partes setentrionais da Europa e meri 1 4 4 Barbária era, então, o nome de certas
regiões da África do Norte: a Argélia, a Tuní
dionais da América tinham mais por sia e a regência de Tripoli; seus habitantes
objeto visitá-las como geômetras do eram piratas de renome. (N. de P. A.-B.)
que como filósofos. No entanto, como 1 4 5 Cafrária designa a região sudoeste da
eram simultaneamente tanto uma coisa África habitada pelos bantos e centralizada em
torno do Cabo. (N . de P . A.-B.)
como outra, não se pode considerar 146 Os malabares habitam a costa oeste do
como totalmente desconhecidas as re D ecã, no Indostão. (N . de P. A.-B.)
giões vistas e descritas pelos La Con- 147 O termo M o g o l designa o império dos
damine1 40 e M aupertuis1 41. O jo a M ongóis ou do Grã-M ogol, fundado por Gên-
lheiro C hardin1 42, que viajou como gis Cã, reconstruído por Tamerlão; atingiu seu
apogeu sob Aureng-Zeyg (1659-1707); com
Platão, nada pôde dizer sobre a Pérsia. preendia uma grande parte da China e da
índia. (N. de P. A.-B.)
1 40 L a Condam ine (1701-1774): sábio fran 1 4 8 p eg U: nome de um reino da Birmânia e de
cês. (N . de P. A.-B.) sua capital. (N. de P. A.-B.)
1 41 P. L. M oreau de M aupertuis (1698-175 1); 1 49 A v a : nome de outro reino da Birmânia e
geômetra e naturalista francês. (N . de P. A.-B.) de sua capital. (N . de P. A.-B.)
142 Chardin (1643-1713): viajante francês, 1 50 A Tartária representava o Turquestão,
autor de uma Viagem à Pérsia e às ín dias fazendo desem bocá-lo na Sibéria e no A fega
Orientais. (N . de P. A.-B.) nistão. (N . de P. A.-B.)
308 ROUSSEAU
da, enquanto a presa de uma ursa ou saber, como ele pretende, que no esta
de uma loba é devorada num instante e do de natureza a mulher comumente
ela, sem sofrer fome, tem mais tempo fica novamente grávida e gera um
para aleitar seus filhotes. Esse racio novo filho muito antes que o prece
cínio é confirmado por uma observa dente possa por si mesmo atender às
ção sobre o número relativo de tetas e suas necessidades, seriam necessárias
de filhotes que distingue as espécies experiências que certamente o Sr.
carniceiras das frugívoras, e à qual me Locke não fez e ninguém está em situa
referi na nota h. Caso a observação ção de fazer. A coabitação contínua do
seja justa e geral, a mulher, não tendo marido e da mulher é uma ocasião tão
senão dois seios e não gerando de cada tangível de expor-se a uma nova gravi
vez mais do que um filho, constitui dez que é bem difícil de crer que o
isso mais um motivo para duvidar que encontro fortuito ou somente o impul
a espécie humana seja naturalmente so do temperamento produza efeitos
carniceira, parecendo pois que, para tão freqüentes no estado puro dè natu
concluir como Locke, seria preciso reza quanto no da sociedade conjugal;
inverter inteiramente seu raciocínio. essa lentidão contribuiria talvez para
Não há maior solidez na mesma distin tornar as crianças mais robustas, o que
ção aplicada aos pássaros, pois quem aliás poderia ser compensado pela
poderia se convencer de ser mais durá faculdade de conceber, prolongada até
vel a união de macho e femea entre os uma idade mais avançada nas mulhe
abutres e os corvos do que entre as res que abusassem menos na sua
rolas? Possuímos duas espécies de pás juventude. Quanto aos filhos, há mui
saros domésticos, o pato e o pombo, tos motivos para crer que suas forças e
que nos fornecem dois exemplos dire órgãos se desenvolvam mais tardia
tamente contrários ao sistema desse mente entre nós do que acontecia no
autor. O pombo, que só vive de grãos, estado primitivo de que falo. A fra
fica junto de sua femea e ambos nu queza original, que devem à constitui
trem em comum os filhotes. O pato, ção dos pais, o cuidado que se tem de
cuja voracidade é bem conhecida, não envolver e embaraçar todos os seus
reconhece nem a femea nem os filhotes membros, a frouxidão em que são edu
e em nada ajuda sua subsistência; cados, talvez o uso de um outro leite
entre as galinhas, espécie que de modo que não o da mãe, tudo contraria e
algum é menos carniceira, vê-se que o retarda neles os primeiros progressos
galo não tem nenhum trabalho com a da natureza. A aplicação que se lhes
ninhada. Se, em outras espécies, o obriga a dar a mil coisas nas quais
macho partilha com a femea o cuidado continuamente se fixa a sua atenção,
de nutrir os filhotes, tal acontece por enquanto não se proporciona qualquer
que os pássaros, que a princípio não exercício às suas forças corporais,
podem voar e cuja mãe não pode alei pode ainda causar um desvio conside
tar, estão muito menos em estado de rável no seu crescimento, de forma
dispensar a assistência do pai do que que, se em lugar de primeiro sobrecar
os quadrúpedes, a quem, pelo menos regar e fatigar seus espíritos de mil
durante algum tempo, é suficiente a modos, deixássemos seus corpos se
teta da mãe. exercitarem nos movimentos contínuos
3. Há muita incerteza quanto ao que a natureza parece pedir-lhes, po
fato principal que serve de base a todo de-se crer que estariam muito mais
o raciocínio do Sr. Locke, pois para cedo em estado de andar, de agir e de
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 311
melior longe quam nostra hac in parte conhecido o nome dos números, é fácil
videatur conditio, utpote quae promp- explicar o seu sentido e despertar as
tius, et forsan felicius, sensus et cogi- idéias que esses nomes representam,
tationes suas sine interprete signifícent, mas, para inventá-los, foi preciso,
quam ulli queant mortales, praesertim antes de conceber essas mesmas idéias,
si peregrino utantur sermone. (Is Vos- estar-se, por assim dizer, familiarizado
sius. D e Poemat. Cant. e Viribus com as meditações filosóficas, exerci
Rhythm i, pág. 66.1 5 4) tado na consideração dos seres unica
(n) Platão, mostrando como as mente pela sua essência e independen
idéias da quantidade discreta e de suas temente de qualquer outra concepção;
relações são necessárias nas menores é essa uma abstração muito penosa,
artes, zomba, com razão, dos autores muito metafísica, muito pouco natural
de seu tempo que pretendiam ter Pala- e sem a qual, no entanto, essas idéias
medes inventado os números no cerco jamais poderiam ter-se transportado de
de Tróia, como se, diz esse filósofo, uma espécie ou de um gênero para
Agamenon até então pudesse ignorar outro, nem se tornarem universais os
quantas pernas tinha1 5 5. Com efeito, números. Um selvagem poderia consi
sente-se ser impossível que a sociedade derar, separadamente, sua perna direi
e as artes tivessem alcançado o ponto ta e sua perna esquerda, ou olhá-las
em que já se encontravam no tempo do juntas sob a idéia indivisível de um
cerco de Tróia, sem que os homens par, sem jamais pensar que exitiram
possuíssem o uso dos números e do duas, pois uma coisa é a idéia repre
cálculo. Mas a necessidade de conhe sentativa que nos dá o objeto e, a
cer os números, antes de adquirir ou outra, a idéia numérica que a determi
tros conhecimentos, não facilita imagi na. Menos ainda poderia ele calcular
nar-lhes a invenção. Uma vez até cinco e, quando aplicasse suas
mãos uma sobre a outra e notasse que
1 5 4 “ Nada faltaria para a felicidade do gêne seus dedos se correspondiam exata
ro humano se, repelindo esse fluxo e essa con mente, estaria bem longe de pensar na
fusão de numerosas línguas, os mortais conhe sua igualdade numérica; não sabia me
cessem perfeitamente um único meio de lhor o número de seus dedos do que o
expressão e se quem quer que fosse pudesse
exprimir-se por meio de sinais, movimentos e
de seus cabelos e se, depois de fazê-lo
gestos. A liás, já se fez a seguinte comparação: compreender o que são os números,
os animais, aos quais comumente se atribui alguém lhe tivesse dito que tinha tantos
uma condição selvagem, possuem nesse parti dedos nas mãos quantos nos pés, tal
cular uma muito melhor e que não parece ser a vez ficasse muito surpreso ao verificar,
nossa. É com mais rapidez e talvez com mais
prazer que eles exprimem sem intermediários comparando-os, sor verdadeira tal
suas sensações e pensamentos, como nenhum coisa.
mortal o sabe fazer, sobretudo no caso de ser (o) Não se deve confundir o amor-
vir-se de uma língua estrangeira.” Vossius
(1577-1649; sábio alemão): Sur la Poésie du próprio com o amor de si mesmo; são
Chant et la F orce du R yth m e. (N . de P. A.-B.) duas paixões bastante diferentes tanto
1 5 5 R epública, LL, VII, 522 d. C. Platão fala, pela sua natureza quanto pelos seus
neste ponto, com o se estivesse cansado dessa efeitos1 5 6. O amor de si mesmo é um
pretensão conferida pelos autores trágicos a
Palamedes. Sócrates e Eurípides escreveram,
sentimento natural que leva todo ani-
cada um deles, uma tragédia de Palamedes.
Górgias, na D efesa de Palam edes, dá-lhe tam 1 5 6 Essa distinção é um elemento funda
bém a honra de ter descoberto a aritmética. (N. mental da moral de Malebranche, que muito
de P. A.-B.) influenciou Rousseau. (N . de P. A.-B.)
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 313
seria deixar aos magistrados a capaci- viços reais que prestam ao Estado e
dade de uma aplicação quase arbi- que são suscetíveis de julgamento mais
trária da Lei, mas, sim segundo os ser- exato.
In t r o d u ç ã o á C a r t a
a o S e n h o r P h il o p o l is
De Paul Arbousse-Bastide
bem geral que Rousseau afirme o que cfvrma. Desse modo, a argumentação de
Philopolis éparadoxal e destrói-sepor si mesma.
III. Rousseau, finalmente, responde a uma série de objeções independentes,
na sua maioria de ordem científica.
A . A prim eira dessas réplicas é capital,pois implica a distinção de dois mé
todos. Philopolis procede po r construção racional — deduz da natureza da razão
que “o homem é tal como o exigia o lugar que devera ocupar no universo ”. Rous
seau raciocina partindo da experiência; reconhece que a natureza humana não é
idêntica através dos tempos e das regiões, depreende o universal da confrontação
entre numerosos casos particulares. O erro de Philopolis fo ra denunciado de
antemão, na passagem do Discurso sobre a Desigualdade na qual Rousseau criti
ca os filósofos que fazem unicamente uma filosofia do homem adulto, branco e
civilizado.
B. Em conseqüência, origina-se das ciências naturais, e não da filosofia, o
problem a de saber-se se o orangotango é uma besta ou um homem.
C. N ão existe contradição em qfírmar que as sociedades e seus governantes
são, na sua maior parte, maus e que o governo de Genebra é um dos melhores
que possam existir. Uma vez que os homens são corrompidos, não se p ode voltar
atrás; não se trata de voltar a viver na solidão; trata-se de organizar do melhor
modo possível a sociedade. A associação dos amigos é, então, um passo para a
associação dos cidadãos.
D . Rousseau escreveu: “a natureza nos destinou a sermos sãos ” e não “a
sermos san tos’’(“ sains”, não “ saints”).
E. É preciso ter-se experimentado a dor para sentir piedade p o r alguém que
sofre.
F. O populacho vai ao mais cruel dos espetáculos para ter o prazer de sen
tir piedade.
G. A afeição que as fêm eas dos animais têm pelos seus filhotes prim eiro
tem p o r objeto a mãe e, depois e p o r hábito, os filhotes.
C a r t a d e J e a n -J a cq u e s R o u sse a u
a o Sr . P h i l o p o l i s
Desejais que vos reponda, senhor, razão, esse grande veículo de todas as
posto que me fazeis algumas pergun nossas tolicçs, não nos faltaria para
tas. Trata-se, aliás, de uma obra dedi esta. Os filósofos e, sobretudo, as pes
cada a meus concidadãos; devo, ao soas de bom senso, para sacudir o jugo
defendê-la, justificar a honra que me das paixões e gozar do precioso repou
deram ao aceitá-la. Deixo de lado, na so da alma, alcançariam a largos pas
vossa carta, aquilo que me diz respeito, sos a idade de Nestor1 e de boa vonta
tanto de bem quanto de mal, porque de renunciariam aos desejos que se
aproximadamente uma parte com podem satisfazer, a fim de se defende
pensa a outra, e devido ao pouco que rem daqueles que é preciso abafar;
isso me interessa e ainda menos ao pú sobrariam só alguns imprudentes que,
blico e também porque tudo isso em embora se envergonhando de sua fra
nada contribui para a busca da verda queza, desejassem loucamente conti
de. Começo, pois, pelo raciocínio que nuar jovens e felizes em lugar de enve
me apresentais como essencial à ques lhecerem para tornar-se sábios.
tão que procurei resolver. Suponhamos que um espírito singu
O estado de sociedade, dizeis, è lar, extravagante, numa palavra, um
resultado imediato das faculdades do homem de paradoxos, resolvesse então
homem e, conseqüentemente, de sua censurar nos demais o absurdo de suas
natureza. Querer que o homem em máximas, demonstrar que, procurando
absoluto não se tome sociável, seria a tranqüilidade, correm para a morte,
desejar, então, que não fosse mais que só desvariam à força de serem
homem, e insurgir-se contra a socie razoáveis e, caso seja necessário um
dade humana é atacar a obra de Deus. dia ficarem velhos, deveriam esforçar-
Permiti-me, senhor, apresentar-vos, se para que tal acontecesse o mais
por minha vez, uma objeção antes de tarde possível.
resolver a vossa. Eu vos pouparia esta Não será preciso perguntar se nos
digressão, se conhecesse caminho mais sos sofistas, temendo o descrédito de
curto pará chegar ao fim. seu arcano, não se apressariam em
Suponhamos que alguns sábios en interromper esse discursador importu
contrassem, certo dia, o segredo de no. “Sábios velhos”, diriam a seus
acelerar a velhice e a arte de fazer com
que os homens usassem essa rara 1 Nestor, rei de Pilos, o mais idoso dos prínci
pes que presenciaram a queda de Tróia, era
descoberta. Tal persuasão não seria reputado pela sua sabedoria e pelos longos dis
talvez tão difícil de ser realizada como cursos que pronunciava perante os chefes reu
pode parecer à primeira vista, pois a nidos. (N . de P. A.-B.)
322 ROUSSEAU
ou não, ou, pelo menos, acontecer mais De acordo com Leibniz e P ope7,
cedo ou mais tarde e, conseqüente tudo o que existe está certo. Se existem
mente, apressar ou retardar o progres sociedades, é por desejar o bem
so. Inúmeras dessas circunstâncias comum que existem; caso não existam,
dependem mesmo da vontade do assim o deseja o bem comum. Se
homem; vi-me obrigado, para estabe alguém persuadisse os homens a volta
lecer uma paridade perfeita, a supor no rem a morar nas florestas, estaria bom
indivíduo o poder de acelerar sua que para lá voltassem. Não se deve
velhice como a espécie tem o de retar aplicar à natureza das coisas uma idéia
dar a sua. Tendo, pois, o estado de do bem e do mal que não seja tirada de
sociedade um termo extremo, ao qual suas relações, pois elas podem ser boas
os homens podem querer chegar mais
em relação ao todo, apesar de más em
cedo ou mais tarde, não é inútil
si mesmas. Aquilo que concorre para o
mostrar-lhes o perigo de ir tão de
bem geral pode ser um mal particular,
pressa e as misérias de uma condição
que tomam como a perfeição da em relação ao qual há possibilidade de
espécie. libertar-se quando possível. Porquanto
Quanto à enumeração dos males de se esse mal, enquanto suportado, é útil
que estão os homens sobrecarregados e ao todo, o bem contrário, que se quer
que afirmo serem sua obra, vós me em seu lugar, não lhe será menos útil,
assegurais — Leibniz4 e vós — que desde que se estabeleça. Pela razão
tudo está bem, assim se justificando a mesma de tudo estar bem assim como
Providência. Estava longe de acreditar está, se alguém se esforça por mudar o
que ela tivesse necessidade, para justi estado das coisas, está bom que se
ficar-se, do auxílio da filosofia leibni- esforce por mudá-lo; e, se é bom ou
ziana ou de qualquer outra. Julgais, mau que o consiga, isso só se pode per
vós mesmos, seriamente, que um siste ceber pelo acontecimento e não pela
ma de filosofia, qualquer que seja, razão. Seria bom para o todo que fôs
possa mostrar-se mais irrepreensível semos civilizados, posto que o somos;
ao que o universo e que, para descul mas certamente teria sido melhor para
par a Providência, os argumentos de nós não o ser. Leibniz jamais teria ti
um filósofo se apresentem como mais rado de seu sistema algo que pudesse
convincentes do que as obras de contraditar essa proposição e está
D eus?5 Além disso, negar que o mal claro que o otimismo bem compreen
existe é um meio muito cômodo para dido não me favorece, nem me desfa
desculpar o autor do mal. Os estóicos vorece.
outrora caíram no ridículo por muito Além disso, não é nem a Leibniz
menos 6. nem a Pope que devo responder, mas
somente a vós que, sem distinguir o
4 Leibniz (1646-1716): filósofo e sábio ale mal universal, que eles negam, do mal
mão, chefe da escola otimista. (N . de P. A.-B.)
5 A Profissão de Fé do Vigário Saboicmo particular, que não negam, pretendeis
desenvolverá essa tese. (N . de P. A.-B.) suficiente que uma coisa exista para
6 Os estóicos afirmavam que tudo o que acon não ser permitido que se desejasse sua
tecia pela razão, isto é, pela necessidade divina existência de outro modo. Mas, meu
ou pela providência, era, conseqüentemente,
bom, ainda que nossos sentidos nos dessem um
senhor, se tudo está bem como está,
testemunho contrário; ninguém é mais feliz,
diziam, do que o sábio submetido a torturas; 7 Alexandre Pope (1688-1744): poeta e filó
pretendiam ignorar a dor física e as aflições sofo inglês, autor do Ensaio sobre o Homem.
morais. (N . de P. A.-B.) (N . de P. A.-B.)
324 ROUSSEAU
tudo estaria bem como esteve, antes de O homem, dizeis, é feito do modo
existirem governos e leis; pelo menos, como o exigia o lugar que deveria ocu
teria sido supérfluo estabelecê-los. par no universo. Mas os homens dife
Jeajn-Jacques então, segundo vosso sis rem de tal modo, segundo os tempos e
tema, levaria vantagem sobre Philopo lugares, que, com uma tal lógica, se
lis. Se tudo está bem como está, assim ficaria sujeito a estabelecer, partindo
como entendeis, de que servirá corrigir do particular para o universal, conse
nossos vícios, curar nossos males, qüências muito contraditórias e muito
reparar nossos erros? Para que servem pouco concludentes. Bastaria um erro
nossas cátedras, nossos tribunais e de geografia para abalar toda essa pre
nossas academias? Para que chamar tensa doutrina, que deduz do que se vê
um médico quando tiverdes febre? aquilo que deve ser. O índio dirá que é
Como podereis saber se o bem do todo próprio aos castores fugir para dentro
maior, que não conheceis, não exige de tocas e que o homem deve dormir
que tenhais a perturbação, e se a saúde numa rede pendurada nas árvores.
dos habitantes de Saturno ou de Sírius Não, não, dirá o tártaro, o homem é
não ficaria prejudicada com o restabe feito para dormir numa carroça. Po
lecimento da vossa? Deixai tudo andar bres pessoas, exclamariam os nossos
como for possível, a fim de que tudo vá Philopolis, com um ar de piedade, não
sempre bem. Se tudo está do melhor vedes, que o homem é feito para cons
modo possível, deveis censurar toda e truir cidades? Quando se trata de
qualquer ação, pois toda ação produz raciocinar sobre a natureza humana, o
necessariamente alguma mudança no verdadeiro filósofo não é nem índio,
estado em que as coisas se encontram nem tártaro, nem de Genebra, nem de
Paris, mas o homem.
no momento em que se dá; não se
Quanto a ser o macaco um animal,
pode, pois, tocar em coisa alguma sem
eu o creio e dei a razão disso; que o
fazer o mal, e a única virtude que resta
ao homem será o mais perfeito quietis- orangotango também o seja, eis o que
tivestes a bondade de ensinar-me e
mo. Finalmente, se tudo está bem
confesso que, depois dos fatos que
como está, é bom que existam lapões8,
esquimós, algonquinos, chicacas, Ca apresentei, parecia-me difícil a prova
raíbas que vivem sem a nossa polícia, disso. Filosofais muito bem para pro
nunciar-vos a esse respeito tão leviana
hotentotes que caçoam dela e um gene- mente quanto nossos viajantes, que às
brino que as aprova. O próprio Leib vezes se expõem, sem grande cuidado,
niz concordaria com isso. a colocar os seus semelhantes na classe
dos animais. Cativaríeis, certamente, o
8 Os lapões habitavam o Norte da Rússia e os
países escandinavos; os esquimós, a Groen
público e até instruiríeis os cientistas,
lândia e a parte compreendida entre a baía de se nos expusésseis os meios que empre
Hudson e o estreito de Bering; os algonquinos gastes para resolver essa questão.
são um povo índio da América do Norte; os Na minha epístola dedicatória, cum
chicacas, indubitavelmente, são os chibchas,
povo civilizado da América do Sul, que os primentei minha pátria por possuir um
espanhóis encontraram estabelecidos na N ova dos melhores governos que possam
Granada, no século X VI. Os caraíbas habitam existir; provei, no discurso, que lá
as pequenas Antilhas, e os hotentotes, a África deveriam existir muito poucos bons
austral. Rousseau mistura, à vontade, todas as
regiões do globo e acumula os nomes mais
governadores. Não vejo onde reside a
heterogêneos, segundo um processo tradicional contradição que salientais em relação
dos Polemistas. (N . de P. A.-B.) a essa passagem. Mas, como sabeis,
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 325
senhor, que eu iria antes morar nos quase assegurar que o estado de refle
bosques, caso minha saúde o permi xão é um estado contra a natureza e
tisse, do que entre meus concidadãos, que o homem que medita é um animal
em relação aos quais conheceis minha depravado.” Confesso-vos que, se eu
afeição? Longe de dizer, na minha tivesse confundido desse modo a sani
obra, qualquer coisa semelhante, de dade com a santidade e se a proposi
veis nela ter encontrado razões muito ção fosse verdadeira, acreditar-me-ia
fortes para não escolher esse gênero de muito capaz de eu próprio tornar-me
vida. No meu íntimo, sinto muito bem um grande santo no outro mundo ou
com que dificuldade poderia abster-me pelo menos de comportar-me sempre
de viver com homens tão corrompidos bem neste.
quanto eu, e mesmo um sábio, se é que Termino, senhor, respondendo a
existe, não irá, atualmente, procurar a vossas três últimas questões. Não abu
felicidade no fundo de um deserto. É sarei do tempo que me dais para refle
preciso, quando se pode, fixar sua tir sobre elas; este cuidado já tomara
moradia na pátria para amá-la e servi- de antemão.
la. Felizes daqueles que, privados “Um homem ou qualquer ser sensí
dessa vantagem, podem pelo menos vel, que jamais tivesse conhecido a
viver no seio da amizade, na pátria dor, teria piedade e ficaria emocionado
comum do gênero humano, nesse asilo se visse uma criança sendo degolada?”
imenso aberto a todos os homens, onde Respondo que não.
se comprazem igualmente a sabedoria “ Por que a populaça, a quem o Sr.
austera e a juventude folgazã, onde rei Rousseau dispensa dose tão grande de
nam a humanidade, a hospitalidade, a piedade, se compraz com tanta avidez
doçura e todos os encantos de uma à vista do espetáculo de um infeliz
sociedade fácil, onde os pobres ainda expirando no suplício da roda?” Pela
encontram amigos, a virtude, exemplos mesma razão que ides chorar no teatro
que a incentivam, e a razão, guias que e ver Séide degolar seu pai ou Tiestes
a esclarecem! É graças a esse grande beber o sangue do filho1°. A piedade é
teatro da fortuna, do vício e, algumas um sentimento tão delicioso que não
vezes, das virtudes que se pode com constitui motivo de espanto procurar
lucro observar o espetáculo da vida; senti-la. Aliás, cada qual tem curiosi
mas é no seu país que cada um deveria dade secreta de estudar os movimentos
em paz esperar o termo da sua. da natureza nas proximidades desse
Parece-me, senhor, que me censurais momento temível que ninguém pode
seriamente a propósito de uma reflexão evitar. Acrescentai a isso o prazer de,
que a mim me parece muito justa e durante dois meses, ser o orador do
que, justa ou não, não tem no meu tra bairro e de contar aos vizinhos, pateti-
balho o sentido que vos apraz dar-me,
com a adição de uma única letra. “ Se a
10 Said, escravo de M aomé, foi o primeiro a
natureza nos destinou a sermos san ter fé na missão do Profeta. Seu nome, afrance-
tos” 9, o senhor fez-me dizer, “ouso sado por Voltaire, numa de suas tragédias,
com o Séide, significa homem de devotamento
9 N o volume do M ercure em que foi pela pri cego e fanático. Tieste, da mitologia antiga, foi
meira vez impressa a carta de Bonnet-Philo objeto de ódio de seu irmão Atreu, que se vin
polis, e que deu lugar à resposta de Rousseau, gou dele matando-lhe dois filhos e servindo-os
estava efetivamente saints em lugar de sains; num banquete; Grébillon pusera em cena esse
era, porém, um erro de impressão, com o o a assunto. A análise da piedade na tragédia será
testam os editores de Genebra.É espantoso que retomada na C arta a d ’A lem bert. (N . de P.
Rousseau não o tenha percebido. (N . de P. A.-B.) A.-B.)
326 ROUSSEAU
camente, a bela sorte do último supli tringida, pois, desde que os pintos
ciado na roda11. saem do ovo, verifica-se que a galinha
“A afeição que as fêmeas dos ani não tem nenhuma necessidade deles,
mais demonstram pelos seus filhotes no entanto sua ternura maternal não os
tem por objeto esses filhotes ou a cede a nenhuma outra galinha.
mãe?” Primeiro, a mãe, para atender à Aí estão, senhor, minhas respostas.
sua necessidade, depois, por causa do Notai, afinal, que, neste caso como no
hábito, os filhotes. Já o disse no D is do primeiro discurso, eu sou sempre o
curso. “ Se por acaso fosse esta, o monstro que sustenta ser o homem
bem-estar dos filhotes só ficaria mais naturalmente bom, enquanto meus ad
assegurado com isso.” Também sou versários são sempre as pessoas de
dessa opinião. No entanto, essa máxi bem que, para a edificação pública,
ma antes deve ser ampliada que res esforçam-se por provar que a natureza
só deu origem a celerados.
11 O suplício da roda, comum no século
XVIII, consistia em amarrar o condenado
Sou, o quanto se possa ser de
numa roda, romper seus membros e deixá-lo alguém que não se conhece, senhor,
morrer. (N . de P. A.-B.) etc.
DISCURSO SOBRE AS
CIÊNCIAS E AS ARTES
In t r o d u ç ã o
de Paul Arbousse-Bastide
1. Circunstâncias da Composição.
Rousseau julgou o Discurso, de 1750, com certo descaso. “Essa obra cheia
de calor e de força ressente-se de uma falta absoluta de lógica e de ordem; entre
todas as obras saídas de minha pena, é a mais fraca de raciocínio e a mais pobre
em número e hprmonia ” (Confissões, VIII). Quanto à ordem, à lógica e ao racio
cínio, Rousseau tem inteira razão. Não é também fácil encontrar-se um plano
por sob a cadeia de apóstrofes, de imperativos e de exemplos esquematizados.
Tentaremos, no entanto, seguir os principais encadeamentos.
PREFÁCIO
PREÂMBULO
SEGUNDA PARTE
3 Muito embora a expressão induções históricas aqui apareça tomada ao próprio Rousseau, impõe-se desde
já registrar que, no sentido específico que tem para nosso Autor, não se confunde com o de uma perfeita
relação causal, antes significando uma relação de interdependência entre determinados fatos em sua evolu
ção histórica. (Cf. nota 25 ao Discurso.) Também não se podem confundir as induções históricas de Rous
seau com o método histórico, tal como hoje o conceituamos. (Cf. ainda nota 49.) (N. de L. G. M.)
334 INTRODUÇÃO
a) A s ciências, impuras pelas suas origens (pois são oriundas de móveis que
se prendem a nossos vícios) e por seu objeto, são perigosas por seus efeitos (por
quanto fazem perder tempo precioso que poderia ter emprego mais útil para a
sociedade).
b) Aqueles que cultivam as ciências freqüentemente não passam de ociosos
estéreis que espalham paradoxos perigosos para a moralidade e a virtude. O prin
cipal móvel é o furor de distinguir-se.
c) A s letras e as artes apresentam-se acompanhadas pelo luxo, nascido,
como elas, da vaidade e da ociosidade.
d) O luxo provoca a dissolução dos costumes e a corrupção do gosto.
e) Impõe-se opor, à corrupção dos costumes, a simplicidade dos primeiros
tempos. “E uma bela praia, ornada unicamente pelas mãos da natureza. . . ”(Es
boço de um quadro histórico da corrupção progressiva dos costumes sob a
influência do progresso das letras e das artes.)
f) Nefasto às qualidades guerreiras, salvaguardas da independência e da
virtude primitivas, o progresso das artes não o é menos às qualidades morais.
Digressão sobre a educação: tem-se de ensinar às crianças o que devem fazer
quando homens, e não aquilo que esquecerão. Ora, nossas artes só descrevem os
desvarios do coração.
g) Todos esses abusos são a conseqüência de um erro fundamental: agarra
mo-nos aos talentos e subestimamos as virtudes. Além disso, entre os talentos,
preferimos os agradáveis aos úteis. Acabamos por ter especialistas em tudo, mas
não possuímos mais cidadãos.
CONCLUSÃO
O B SER VA ÇÃO
1 O tema proposto pela Academia de Dijon é caracteristicamente setecentista. A Europa, no século dezoito,
chegava ao auge da cultura iniciada, na Renascença, pelo humanismo: o “iluminismo” dominava a vida inte
lectual e, por igual, a política. Estamos na época dos “filósofos” e dos “déspostas esclarecidos”, isto é, da
supervalorização do conhecimento racional como o instrumento capaz de restabelecer, no seio da sociedade,
a ordem natural observável no cosmos. Os acadêmicos de Dijon, conseqüentemente, propuseram um tema
que, sem dúvida, esperavam ver respondido positivamente e, mais, utilizado para o desenvolvimento dum
elogio acalorado do “restabelecimento das letras e das artes”, ou melhor, da Renascença, que inaugurara
uma nova era.
Rousseau, contudo, vai responder pela negativa, o que chamará, para seu discurso, atenção maior do
que tinham merecido seus antecessores na acusação dos vícios do tempo. É verdade que, embora escrevendo
de maneira menos direta e ordenada, como ele próprio confessa, terá sido o primeirô a atribuir clara impor
tância à moral, deixando a razão em segundo plano. O mundo novo, que diz ter visto na caminhada a Vin
cennes, é o mundo de seu próprio pensamento, original e oposto às idéias dominantes em seu tempo e em seu
meio (N. L. G. M.)
A d v e r t e n c ia
Que será a celebridade? Eis a obra infeliz a que devo a minha. É certo que
essa peça, que me valeu um prêmio e me deu nome, será, no máximo, medíocre
e, ouso acrescentar, uma das menores deste repositório. Que abismo de misérias
não teria evitado o autor, se esta primeira obra tivesse sido recebida como o
merecia! Mas era preciso que um favor inicial injusto me trouxesse, aos poucos,
uma severidade que ainda é mais injusta.
P r e fá c io
Eis aqui uma das maiores e mais se quer viver para além de seu século,
belas questões jamais agitadas. Não se não se deve escrever para tais leitores 4.
trata, de modo algum, neste discurso, Mais uma palavra e concluirei. Não
dessas sutilezas metafísicas que domi contando com a honra que recebi, con
naram todas as partes da literatura e fesso ter, depois de enviá-lo, refundido
das quais nem sempre são isentos os e aumentado este discurso de modo a
programas de academia, mas de uma torná-lo, de certa maneira, uma outra
daquelas verdades que importam à obra. Sinto-me hoje obrigado a resta
felicidade2 do gênero humano. belecê-lo no estado em que foi premia
Prevejo que dificilmente me perdoa do. Acrescentei-lhe somente algumas
rão o partido que ousei tomar. Ferindo notas e deixei duas adições fáceis de
de frente tudo o que constitui, atual serem reconhecidas e que a Academia
mente, a admiração dos homens, não talvez não tivesse aprovado. Penso que
posso esperar senão uma censura uni a eqüidade, o respeito e o reconheci
versal; não será por ter sido honrado mento exigem de mim esta advertência.
pela aprovação de alguns sábios que
deverei esperar a do público. Por isso
já tomei meu partido; não me preo 4 Repudiando seu tempo, Rousseau repudia
os pensadores que não conseguiam esperar
cupo com agradar nem aos letrados coisa melhor no futuro. Parece-lhe que a sim
pretensiosos, nem às pessoas em moda. ples insistência no desenvolvimento e expan
Em todos os tempos, haverá homens são dos conhecim entos científicos e dos princí
destinados a serem subjugados pelas pios racionais não levará a parte nenhuma.
Essa atitude nada tinha de simplesmente teóri
opiniões de seu século, de seu país e de ca; já ao escrever este primeiro discurso, R ous
sua sociedade. Faz-se passar hoje por seau tinha rompido com os representantes da
espírito forte3, filósofo, quem, pelo cultura consagrada, não apenas com os ex
mesmo motivo, ao tempo da Liga não poentes conservadores da espécie dos acadêmi
cos, mas igualmente com aqueles que se consi
teria passado de um fanático! Quando deravam revolucionários, mas se acomodavam
na sociedade do tempo. Voltaire, principal fi
2 Sobre a importância da idéia de felicidade gura desses libertários que conviviam com os
no século X VIII, ver P. Haszard, L a Pensée déspotas, merece uma refutação explícita no
Européenne au X V III Siècle; de M ontesquieu próprio Discurso. Apenas Diderot constituía
à Lessing. Boibin, Paris, T. I., capítulo II, pág. uma exceção respeitada por Rousseau, que
17-33. (N . de P. A.-B.) não só ia visitá-lo na prisão, mas ainda, em
3 A expressão esprit f o r t nem sempre se enun algumas passagens do Discurso (p. ex., na
ciou com sentido irônico ou pejorativo. N a era segunda nota de pé de página), ao falar em
da razão, a fortaleza espiritual, isto é, intelec filósofos, sempre lhe abre lugar especial.
tual, tornara-se valor dominante. Rousseau A posição teórica e prática de Rousseau reser
opõe-se a esse encarecimento da inteligência. vou-lhe posto à parte na história das idéias.
(N . de L. G. M.) (N . de L. G. M.)
D is c u r s o
P r im e ir a P a r t e
se, pelo espírito, às regiões celestes; ainda mais desprezível que a ignorân
percorrer com passos de gigante, como cia, usurpara o nome do saber e opu
o sol, a vasta extensão do universo; e, nha um obstáculo quase invencível à
o que é ainda maior e mais difícil, sua volta. Precisou-se de uma revolu
penetrar em si mesmo para estudar o ção para devolver os homens ao senso
homem e conhecer sua natureza, seus comum e ela veio donde menos se
deveres e seu fim. Todas essas maravi esperava. Foi o estúpido muçulma
lhas se renovaram, há poucas gera n o 12, foi o eterno flagelo das letras que
ções9. as fez renascer entre nós. A queda do
A Europa tinha tornado a cair na trono de Constantino trouxe à Itália os
barbárie dos primeiros tempos10. Os destroços da Grécia antiga13. A Fran
povos dessa parte do mundo, hoje tão ça, por sua vez, enriqueceu-se com
esclarecida, viviam há alguns séculos esses destroços preciosos. Rapida
em estado pior do que a ignorância. mente, as ciências seguiram as artes, à
Não sei que algaravia11 científica, arte de escrever juntou-se a arte de
9 Certos valores consagrados parecem mere
pensar — gradação que pode parecer
cer tolerância de Rousseau: no discurso há um estranha e talvez não seja senão dema
elogio da R enascença, uma explicação sobre a siado natural — e se começou então a
necessidade das academias e amáveis referên sentir a principal vantagem do comér
cias ao progresso da razão, no campo das ciên cio das musas, que é o de tornar os ho
cias. São, contudo, concessões aparentes. Por
meio delas, Rousseau acaba por atacar erros e
mens mais sociáveis, inspirando-lhes o
vícios. A ssim , neste parágrafo, ao lado dos desejo de se deleitarem uns aos ou
aplausos a “todas essas maravilhas” do conhe tros1 4 por meio de obras dignas de sua
cimento e de seu “restabelecimento”, a simples aprovação recíproca.
indicação de que mais difícil do que conhecer
o universo é “penetrar em si mesmo para estu
Como o corpo, o espírito tem suas
dar o homem e conhecer sua natureza, seus necessidades. Estas são o fundamento
deveres e seu fim ” assentará as bases da crítica da sociedade, aquelas constituem seu
que, em nome da moral, Rousseau desenvol deleite. Enquanto o Governo e as leis
verá contra as ciências e as artes. Apesar de atendem à segurança e ao bem-estar
toda a com plicada evolução do pensamento de
Rousseau neste discurso, há uma ligação dire
dos homens reunidos, as ciências, as
ta entre a insinuação contida nessas primeiras letras e as artes, menos despóticas e
palavras do desenvolvimento e o enunciado da
conclusão final, onde se lê que “ a verdadeira
filosofia” é “voltar-se sobre si mesmo e ouvir a 12 O estúpido muçulmano. A lusão à tomada
voz da consciência no silêncio das paixões” . de Constantinopla pelos turcos em 1453. A
(N . de L. G. M.) estupidez não é a simplicidade. “É-se estúpido
10 Com o todos os de seu século, Rousseau à revelia do sentimento.” Abbé Girard: Traité
julga severamente a Idade Média, aliás, sem des Synonymes, 1742. (N . de P. A.-B.)
conhecê-la. N este ponto, compartilha dos 13 O preconceito antimedieval completava-se
preconceitos dos “filósofos”. O desprezo pela pelo preconceito favorável à retomada da cul
Idade M édia atinge sua expressão culminante tura clássica — só assim se explicam, a rigor,
cQm Condorcet no seu Tableau des Progrès de os termos “renascença”, “renascimento”, “res
1’E sprit Humain (1794). Ter-se-á de esperar tabelecimento”, que não encontram qualquer
pelòs pré-românticos do com eço do século base histórica. M as, repitamos, quem fala aqui
X IX , pelos doutrinadores da contra-revolução é a cultura consagrada do tempo e não R ous
e, sobretudo, por A. Comte, para notar indí seau, que logo invectivará a estatuária clássica
cios de uma reabilitação da Idade Média. Será dos jardins setecéhtistas com exemplos de
ainda mais tardio o seu conhecimento real, imoralidade. . . (N . de P. A.-B.)
sobretudo no domínio das idéias filosóficas. 1 4 O desenvolvimento das artes teria por pri
(N . de P. A.-B.) meiro móvel, segundo Rousseau, a vaidade.
11 N o texto francês: “quel jargon ” — a esco Essa idéia será retomada inúmeras vezes,
lástica da Idade Média. (N . de P. A.-B.) sobretudo no segundo discurso. (N . de P. A.-B)
DISCURSO SOBRE AS CIÊNCIAS E AS ARTES 343
Foi no tempo dos Ênios e dos Terên- nem a pretensa sabedoria de suas leis,
cios que Roma, fundada por um pastor nem a multidão de habitantes desse
e ilustrada por trabalhadores, começou vasto império puderam resguardá-lo
a degenerar. Mas, depois dos Ovídios, do jugo do- tártaro ignorante e grossei
dos Catulos, dos Marciais e dessa mul ro, de que lhe terão servido os sábios?
tidão de autores obscenos cujos sim Que fruto alcançou com as honrarias
ples nomes alarmam o pudor, Roma, de que foram estes cumulados? Por
que outrora fora o templo da virtude, ventura, o de ser povoado por escravos
tornou-se o teatro do crime, o opróbrio e pérfidos?
das nações e o joguete dos bárbaros. Oponhamos a esse quadro o dos
Essa capital do mundo cai, finalmente, costumes de pequeno número de povos
sob o jugo que impusera a tantos que, preservados desse contágio de
povos e o dia de sua queda foi aquele conhecimentos maus, por suas virtudes
em que se deu a um de seus cidadãos o construíram a própria felicidade e
título de árbitro do bom gosto29. constituem exemplo para as demais
Que direi dessa metrópole do Impé nações. Tais foram os antigos per
rio do Oriente que parecia, por sua sas30, nação singular no seio da qual
posição, dever ser a do mundo inteiro, se aprendia a virtude como entre nós se
desse asilo das ciências e das artes aprende a ciência, que com tanta facili
proscritas do resto da Europa, talvez dade subjugou a Ásia, sendo a única a
mais por sabedoria do que por barbá possuir tal glória, e cuja história das
rie? Tudo que a depravação e a cor instituições pode ser considerada um
rupção têm de mais vergonhoso; tudo romance de filosofia. Tais os citas31,
que as traições, os assassínios e os dos quais nos restam elogios tão
venenos têm de mais negro; tudo que o magnifícos. Tais os germanos32, a
concurso de todos os crimes tem de cujo respeito uma pena, cansada de
mais atroz — eis o que forma a trama descrever os crimes e as maldades de
da história de Constantinopla. Aí está um povo instruído, opulento e volup
a fonte pura da qual foram trazidas até tuoso, aliviou-se com descrever-lhes a
nós as luzes com as quais nosso século simplicidade, a inocência e as virtudes.
se glorifica. Tal foi, também, a própria Roma33,
Mas, por que procurar em tempos nos tempos de pobreza e de ignorân
distantes as provas de uma verdade da cia; tal se mostrou até nossos dias esta
qual temos, sob nossos olhos, testemu nação rústica3 4, tão enaltecida pela
nhos subsistentes? Há na Ásia uma
região imensa na qual as letras reve 30 Rousseau, sem dúvida, lembrava-se de
renciadas levam às primeiras dignida- uma passagem de M ontaigne (Livro, ens. 24)
que descrevia a educação dos jovens persas
des do Estado. Se as ciências purifi
segundo Platão e Xenofonte. (N . de P. A.-B.)
cassem os costumes, se ensinassem os 31 A retidão dos citas foi enaltecida por Justí-
homens a derramar seu sangue pela no. (N . de P. A.-B.)
pátria, se incitassem à coragem, os 32 Tácito, na sua Germânia, opôs a pureza
povos da China deveriam ser sábios, li dos costumes germânicos à corrupção de seu
tempo. (N . de P. A.-B.)
vres e invencíveis. No entanto, se não
33 Era tradição, no tempo do império, cele
há um vício sequer que não os domine, brar a virtude dos velhos trabalhadores e sol
um crime sequer que não lhes seja dados de Roma. (N . de P. A.-B.)
familiar, se nem a luz dos ministros, 3 4 Essa nação rústica: Suíça. O elogio da
Suíça é um tema caro a Rousseau e freqüente
29 Petrônio, arbiter elegantiarum. (N . de L. no século XVIII (Montesquieu, Voltaire). (N.
G. M.) de P. A.-B.)
DISCURSO SOBRE AS CIÊNCIAS E AS ARTES 347
o mais infeliz39 dentre eles tinha dos mens no julgamento dos deuses e o
sábios e dos artistas de seu tempo: mais sábio dos atenienses na opinião
“ Examinei” , disse, “os poetas e os de toda a Grécia, Sócrates, fazendo o
vejo como pessoas cujo talento se elogio da ignorância! 41 Seria de crer
impõe a si mesmos e aos outros, que se que, se ressuscitasse entre nós, nossos
fazem passar por sábios, que se tomam sábios e nossos artistas fariam com
como tais e que nada menos são40. que mudasse de opinião? Não, meus
“Dos poetas” , continua Sócrates, senhores, esse homem justo conti
“passei aos artistas. Ninguém ignorava nuaria a desprezar nossas ciências vãs,
mais as artes do que eu, ninguém esta em absoluto ajudaria a aumentar essa
va mais convencido de possuírem os multidão de livros com que nos inum-
artistas belíssimos segredos. Verifi dam de todos os lados, e, como o fez,
quei, no entanto, não ser sua situação só deixaria, como único preceito a seus
discípulos e a nossos descendentes, o
melhor do que a dos poetas e que
estão, tanto uns quanto outros, no exemplo e a memória de sua virtude.
mesmo caso. Porque os mais hábeis Eis como é belo instruir os homens.
Sócrates começou em Atenas, o
dentre eles avultam em sua companhia, velho C atão 42 continuou em Roma a
consideram-se como os mais sábios deblaterar contra esses gregos artifi
dentre os homens. Essa presunção des ciosos e sutis que seduziam a virtude e
lustrou completamente seu saber a afrouxavam a coragem de seus conci
meus ólhos. Foi assim que, colocan dadãos. Mas continuaram a prevalecer
do-me no lugar do oráculo e pergun as ciências, as artes e a dialética43;
tando a mim mesmo o que eu mais Roma encheu-se de filósofos e de ora
gostaria de ser, se o que sou ou o que dores, descuidou-se da disciplina mili
eles são, se saber o que eles aprende tar, desprezou-se a agricultura, adota
ram ou saber que nada sei, respondi a ram-se certas seitas e esqueceu-se a
mim mesmo e ao deus: quero ficar pátria. As sagradas palavras liberdade,
como sou. desinteresse, obediência às leis, sucede
“ Não sabemos, nem os sofistas, nem ram os nomes de Epicuro, Zenão e
os poetas, nem os oradores ou os artis Arcesilas. “Depois que os sábios co
tas, nem eu mesmo, o que é o verda meçaram a surgir entre nós”, diziam os
deiro, o bom e o belo. Há, porém, entre próprios filósofos, “eclipsaram-se 'as
nós uma diferença, qual seja, a de que, pessoas de bem” . 44 Até então os
ainda que essas pessoas nada saibam, 41 O pensamento de Sócrates, na medida em
crêem todas saber alguma coisa, en que podemos conhecê-lo, é interpretado estra
quanto que eu, se nada sei, pelo menos nhamente por Rousseau. Parece que jamais
não duvido disso, de modo que toda Sócrates fez o elogio da ignorância; pretendeu
somente confundir a presunção dos sofistas,
essa superioridade de sabedoria, que salientando que o verdadeiro ponto de partida
me foi concedida pelo oráculo, reduz- de nossos conhecimentos era a confissão de
se unicamente a estar bem convencido suas limitações. (N. de P. A.-B.)
de que ignoro aquilo que não sei”. 42 É inteiramente arbitrário o paralelismo
Aí está, pois, o mais sábio dos ho estabelecido entre a ação de Sócrates e a de
Catão. (N. de P. A.-B.)
43 A dialética: arte de raciocinar e de discutir
39 Porque deveria morrer envenenado por usando o diálogo, que facilita a oposição dos
seus contemporâneos. (N . de P. A.-B.) conceitos e a descoberta de sua síntese. (N . de
40 É óbvio que Rousseau empresta a Sócrates P. A.-B.)
palavras inteiramente imaginárias, nas quais 4 4 Citação de Sêneca: P ostquam do.ctiprodie-
parafraseia certas passagens de Platão. (N. de runt, borti desunt — C artas a Lucílio, 95. (N.
P. A.-B.) de P. A.-B.)
DISCURSO SOBRE AS CIÊNCIAS E AS ARTES 349
48 O s hom ens são perversos. Quer dizer: tor fazem sobretudo graças a uma interpretação
nam-se perversos. Rousseau ainda não diz bem evolutiva ou dialética, cuja rigidez se sabe
com o. (N . de P. A.-B.) maior do que a dos próprios fatos acumulados.
49 Essas induções nada têm de rigorosas ou Essa segunda linhagem faz-se notar sobretudo
de históricas. Rousseau quis somente tentar no século X IX , a partir de Saint-Simon, bifur
mostrar que o desenvolvimento das ciências e cando-se nos dois ramos pujantes iniciados
das artes sempre se acompanhou de uma cres por Auguste Comte e por Proudhon, e encon
cente depravação dos homens. Cabe acres trando sua mais robusta expressão no sistema
centar que, na história das idéias políticas, o de Marx, cujo rigor interpretativo lhe reservou
chamado “método histórico” só na idade posto singular na história da fundação da ciên
contem porânea veio a assumir maior rigor e, cia social. A primeira corrente pode ser tida
ainda assim, graças à influência direta da com o constante na história do pensamento
com paração histórica praticada na sociologia, político ocidental, pois, se parece enunciar-se
sobretudo por Durkheim e sua escola. A rigor, mais claramente com Maquiavel, muito antes
não encontram os nunca, entre os teóricos polí já era patente, por exemplo, nos advogados da
ticos, cultores da indução histórica. Há aque teoria do direito divino dos reis. N a fase ilumi-
les que se servem, desde o início da idade nista, chega a um auge e Rousseau dá-lhe
moderna, duma abundante exemplificação his desenvolvimento inteiramente original usando
tórica para dar maior força a suas afirmações o mesmo caminho de raciocínio e exposição
de caráter empírico ou, mais raramente, que os filósofos e juristas, de cujas opiniões
dogm ático. Há, de outra parte, aqueles que se iria tão nitidamente afastar-se. (N . de L. G.
apóiam mais diretamente na história, mas o M.)
Seg u n d a P arte
to, vós de quem recebemos tantos mal. Outros males, piores ainda, acom
conhecimentos sublimes, se não nos panham as letras e as artes. Tal é o
tivésseis nunca ensinado tais coisas, luxo62, como elas nascido da ociosi
seríamos com isso menos numerosos, dade e da vaidade dos homens. O luxo,
menos bem governados, menos temí raramente, apresenta-se sem as ciên
veis, menos florescentes ou mais per cias e as artes, e estas jamais andam
versos? Reconhecei, pois, a pouca sem ele. Eu sei que nossa filosofia,
importância de vossas produções e, se sempre fecunda em máximas singula
o trabalho dos mais esclarecidos de res, pretende, contra a experiência de
nossos sábios e de nossos melhores todos os séculos, que o luxo seja o
cidadãos nos proporciona tão parca esplendor dos Estados; depois, porém,
utilidade59, dizei-nos o que devemos de ter esquecido a necessidade das leis
pensar dessa chusma de escritores obs suntuárias, ousaria ela também negar
curos e de letrados ociosos que, em que sejam os bons costumes essenciais
pura perda, devoram a substância do à duração dos impérios e o luxo diame
Estado. tralmente oposto aos bons costumes?
Que digo? Ociosos? Quisera Deus Que seja o luxo um indício certo de
que o fossem efetivamente! Os costu riquezas; que sirva até, caso se queira,
mes, com isso, seriam mais sãos e a para multiplicá-las; que se deveria con
sociedade mais sossegada. Esses vãos cluir desse paradoxo tão digno de ter
e fúteis declamadores andam, porém, nascido em nossos dias? E que se tor
por todas as partes, armados com seus nará a virtude, desde que seja preciso
funestos paradoxos, minando os funda enriquecer a qualquer preço? Os anti
mentos da fé e enfraquecendo a virtu gos políticos falavam constantemente
de. Sorriem desdenhosamente das ve de costumes e de virtudes, os nossos só
lhas palavras pátria e religião60, e falam de comércio e de dinheiro. Um
dedicam seus talentos e sua filosofia a vos dirá que um homem numa determi
destruir e aviltar quanto existe de nada região vale a soma pela qual o
sagrado entre os homens. Não que no venderiam na Argélia; outro, seguindo
fundo odeiem a virtude ou nossos dog esse cálculo, encontrará regiões nas
mas; é da opinião pública que são ini quais um homem nada vale, e outras
migos e, para tornar a trazê-los ao pé em que ele vale menos do que nada.
do altar, bastaria relegá-los ao meio Avaliam os homens como gado. Se
dos ateus 61. ó fúria de ser diferente, gundo eles, um homem só vale para o
que poder o vosso! Estado pelo seu consumo; assim, um
O abuso do tempo constitui grande sibarita valeria bem trinta lacedemô-
nios. Adivinhe-se, pois, qual das duas
59 Seria conveniente definir a utilidade que se repúblicas — a de Esparta ou a de Sí-
deve esperar das ciências. Conferindo-lhes baris — foi subjugada por um punha
anteriormente uma origem nos nossos vícios, do de camponeses e qual das duas fez a
Rousseau reconhece-lhes alguma utilidade. (N. Ásia tremer.
de P. A.-B.)
60 Neste ponto, Rousseau já estava separado
A monarquia de Ciro foi conquis
dos “filósofos”. tada, com trinta mil homens, por um
61 Rousseau quer dizer que os letrados que
rem, antes de tudo, se fazer notados, tomando 62 Aqui com eça a crítica da teoria que Vol
o ponto de vista contrário ao da opinião públi taire apresentara no seu poema O M undano,
ca. Entre ateus, seriam os defensores dos alta escrito em Cirey, em 1736, onde justificava o
res. A s atitudes que assumem não são sinceras, luxo pelos benefícios materiais que traz ao
mas inteiramente relativas. país.
DISCURSO SOBRE AS CIÊNCIAS E AS ARTES 353
extraordinários por seus talentos, en dos deuses não se distinguiram mais
contra-se um que possua firmeza de das casas dos cidadãos. Chegou-se
alma e se recuse a ceder ao espírito de então ao cúmulo da depravação e os
seu século e aviltar-se com produções vícios nunca foram levados mais longe
pueris, desgraçado dele! Morrerá na do que quando foram vistos, por assim
indigência e no esquecimento. Não é dizer, apoiados, na entrada do palácio
prognóstico que faço, mas experiência dos grandes, sobre colunas de már
que relato ! C arie! P ierre! 6 5 Chegou o more e gravados sobre capitéis corínT
momento em que o pincel, destinado a tios.
aumentar a majestade de nossos tem Enquanto se multiplicam as comodi
plos por meio de imagens sublimes e dades da vida, as artes se aperfeiçoam
santas, cairá de vossas mãos ou será e o luxo se espalha, a verdadeira cora
prostituído por ter de ornar com pintu gem se debilita e as virtudes militares
ras lascivas os painéis de uma carrua desfalecem: é ainda a obra das ciências
gem. E tu, rival dos Praxíteles e dos Fí- e de todas as artes que atuam nas som
dias, tu, cujos ancestrais usaram o bras dos gabinetes. Quando os godos
cisei para fazer deuses capazes de des arrasaram a Grécia, todas as biblio
culpar a nossos olhos sua idolatria — tecas só se salvaram do fogo devido a
inimitável P igal6 6, tua mão se conten uma opinião espalhada entre eles e
tará em rebocar o ventre de um boneco segundo a qual se deveria deixar aos
ou então terá de ficar inativa. inimigos móveis tão próprios a des
Não se pode refletir sobre os costu viá-los do exercício militar e a distraí-
mes sem se comprazer com a lem los com ocupações ociosas e sedentá
brança da imagem da simplicidade dos rias. Carlos VIII viu-se senhor da
primeiros tempos. E uma bela p raia6 7, Toscana e do reino de Nápoles quase
ornada unicamente pelas mãos da sem ter desembainhado a espada e
natureza, para a qual incessantemente toda a sua corte atribuiu essa facili
se voltam os olhos e da qual com tris dade inesperada a mais se divertirem o
teza se sente afastar-se. Quando os ho príncipe e a nobreza da Itália com
mens inocentes e virtuosos amavam ter tornarem-se engenhosos e sábios do
os deuses como testemunhas de suas que se adestrando para se tornarem
ações, moravam juntos na mesma vigorosos e aguerridos. Com efeito,
cabana, mas, assim que se tornaram disse o homem de juízo que relat'
maus, cansaram-se com esses especta esses dois traços, todos os exemplos
dores incômodos e os isolaram em nos ensinam que, nessa política mar
templos magníficos. Escorraçaram-nos cial e em todas as que lhe são seme
por fim para aí se estabelecerem eles lhantes, o estudo da ciência é muito
próprios, ou, pelo menos, os templos mais adequado a afrouxar e afeminar a
coragem do que a fortalecê-la e a
Trata-se de Carie van Loo (1705-1765) e animá-la.
de Pierre (morto em 1789), pintores célebres Os romanos confessaram que a vir
nessa época, que trabalharam principalmente
na decoração de igrejas. (N. de P. A.-B.) tude militar se extinguira entre eles à
6 6 Trata-se de Pigalle (1714-1785), que nessa medida que começaram a se conhecer
época tinha produzido sobretudo obras de em quadros, em relevos, em vasos de
decoração religiosa. (N. de P. A.-B.) ourivesaria e a cultivar as belas-artes,
6 7 Uma das primeiras evocações do estado de
natureza. Vê-se que Rousseau não precisa
e, como se fosse eissa região famosa
com o os homens se tornaram maus. (N . de P. destinada a servir continuamente de
A.-B.) exemplo aos outros povos, a elevação
DISCURSO SOBRE AS CIÊNCIAS E AS ARTES 355
Histórico
para vir a público respondendo por Observações. Por outro lado, nesse mesmo
ano de 1753, Rousseau, ao publicar a comédia Narciso, escrita em 1733, mas
representada pela primeira vez em 18 de dezembro de 1752, acrescentou-lhe um
Prefácio, no qual, pela segunda vez, passava em revista todas as objeções de seus
adversários.
As personagens:
A. Argumentação Geral
a) “A ciência é boa em si. ” A prova pode ser encontrada no fato de que,
366 INTRODUÇÃO
B. Desculpa Pessoal
a) A cultura das ciências corrompe os costumes de uma nação; porém, num
verdadeiro sábio, a virtude não é de modo algum incompatível com a ciência.
b) Rousseau não se contradiz ao exaltar a virtude e praticar a ciência,
posto que não é nem virtuoso nem sábio; ama, porém a virtude, ainda não sendo
virtuoso, e esforçou-se por tomar-se um sábio, sem tê-lo conseguido.
c) Aliás, o exemplo e a autoridade dos Padres da Igreja o justificam, uma
vez que acreditaram combater os filósofos pagãos com suas próprias armas, isto
é, com as ciências mundanas, embora desprezando-as.
O rei da Polônia objetou que o luxo não nasceu das ciências, mas das
riquezas.
INTRODUÇÃO 367
CONCLUSÃO
A s ciências e a filosofia causam mais mal do que bem; seria, porém, inútil
suprimi-las — os homens tomar-se-iam pobres e ignorantes, mas continuariam
igualmente corruptos: seria a barbárie. Pelo contrário, impõe-se uma legislação
apropriada à cultura.
O Prefácio de Narciso retoma, num tom mais regular, de modo mais conciso
e classificando-as, as várias objeções que se dirigiram a Rousseau. Ele nada apre
senta de novo, mas constitui um repertório prático e um resumo de toda a dou
trina de Rousseau sobre as ciências e as artes. A exposição é agora mais sóbria
e mais precisa do que no primeiro discurso. O autor afirma nas Confissões que
esse prefácio é uma de suas boas obras.
A. A s Objeções
Rousseau condensa em dois pontos as objeções que lhefizeram:
1 ) “eles pretendem que não acredito uma palavra das verdades que
sustentei”;
2 ) “ . . . que minha conduta está em contradição com meus princípios ”.
De início, responde por uma breve desculpa pessoal: se sua conduta está em
contradição com sua doutrina, é porque se conduziu mal, como acontece a qual
quer homem. “A razão nos mostra o objetivo, e as paixões nos afastam dele. ”
Além disso, fo i obedecendo a um preconceito de seu tempo que passou a juven
tude estudando. Depois eleva o debate para um plano impessoal e sucessivamente
examina as verdades que estabeleceu e as conclusões que delas decorrem.
B. As Verdades Estabelecidas
Pode-se cultivar as letras e ao mesmo tempo desprezá-las e, desse modo,
Rousseau justifica a publicação da comédia Narciso. Com efeito, a ciência é boa
em si para o indivíduo em qualquer condição, mas num povo o gosto pelas letras
anuncia o começo da corrupção; tal predileção nasce do desejo de distinguir-se,
recompensa o que não depende de nós, isto é, os talentos, em detrimento das vir
tudes, que dependem de nós; essa mesma predileção enfraquece o corpo e a alma,
relaxa os liames familiais e sociais, baseados na estima e na boa vontade mútuas,
e em seu lugar coloca laços de dependência fundamentados no interesse pessoal:
“os vícios pertencem menos ao homem do que ao homem governado ”; o selva
gem é superior, em virtude, ao europeu.
INTRODUÇÃO 369
C. A s Conseqüências
a) O homem, com exceção de gênios sublimes, como Sócrates, não é feito
para as ciências.
b) Um povo que possui bons costumes deve defender-se cuidadosamente
das ciências.
c) Quando um povo se corrompe, nunca mais pode voltar à virtude: deve,
então, conservar todo o aparelho da cultura, pois “as mesmas causas que corrom
peram servem para prevenir uma corrupção maior: as ciências fazem os vícios
eclodirem, mas os impedem de transformarem-se em crime ”.
Devo, senhor, agradecer àqueles que resto, como nesse ponto estamos no
vos transmitiram as observações que fundo da questão, confesso que foi bas
tendes a bondade de comunicar-me e tante inábil de minha parte ter deixado
esforça-me-ei para delas tirar o melhor apenas parecer que tomava um parti
proveito. Confesso, não obstante, que do.
considero os meus censores um pouco Acrescenta que o autor prefere a
severos quanto à minha lógica2 e supo rusticidade à polidez.
nho que se mostrariam menos escrupu É verdade que o autor prefere a
losos se tivesse a opinião deles. Pare rusticidade à polidez orgulhosa e falsa
ce-me, pelo menos, que, se tivessem um de nosso século, e diz por quê. É que
pouco dessa exatidão rigorosa que exi ele liquida de vez com todos os sábios
gem de mim, absolutamente não neces e artistas. Seja, posto que assim se quer
sitaria dos esclarecimentos que vou — consinto em suprimir todas as
pedir-lhes. distinções que nesse sentido levantei.
Parece que o autor, dizem eles, p re Ele deveria ainda, continuam, assi
fere a situação em que estava a Europa nalar seu ponto de partida para desig
antes do renascimento das ciências; es nar a época da decadência. Fiz mais
tado pior do que a ignorância, devido do que isso; tornei minha proposição
ao falso saber ou à algaravia 3 que geral. Assinalei esse primeiro passo da
então dominava. decadência dos costumes justamente
Parece querer o autor dessa observa no primeiro momento da cultura das
ção fazer-me dizer que o falso saber ou letras em todos os países do mundo e
0 jargão escolástico seja preferível à verifiquei como é sempre proporcional
ciência e, contudo, fui eu mesmo quem o progresso desses dois fatos. E, vol
disse ser pior do que a ignorância. Mas tando a essa prim eira época, comparar
que entende ele pela palavra situação? os costumes desse tempo com os nos
Aplica-a às luzes ou aos costumes, ou sos. É o que faria mais longamente
confunde essas coisas que tive tanto num volume in-4.°. Sem isso não vería
trabalho para distinguir? Quanto ao mos até onde se deveria voltar, a
menos que não seja ao tempo dos
1 Extraído do número de junho de 1751, de apóstolos. Não vejo o inconveniente
M ercure, vol. II. (N . de P. A.-B.) que haveria nisso, se o fato fosse
2 Segundo Rousseau, as primeiras objeções verdadeiro. Peço, porém, justiça ao
que lhe são feitas atingem, não o cerne de suas censor: quereria ele que dissesse ser a
idéias, mas o rigor de seus raciocínios; só enta
bula, pois, discussão sobre o método e a forma
época da mais profunda ignorância a
de sua argumentação. (N . de P. A.-B.) dos apóstolos?
3 A lusão à Idade Média. (N . de P. A.-B.) Dizem mais, em relação ao luxo,
372 ROUSSEAU
que se sabe dever ser ele, em boa políti um homem está morto, não se deve
ca, interditado aos pequenos Estados, chamar o médico.
mas ser totalmente diferente o caso de Nunca se faria ressaltar bastante
um reino como o de França, sendo verdades que chocam tão frontalmente
conhecidas as razões. o gosto geral e impÕe-se afastar qual
Não terei, também aqui, motivos quer possibilidade de chicana. Não sou
para me lamentar? Tais razões são dessa opinião e acho ser preciso deixar
aquelas que me esforcei para respon os brinquedos às crianças.
der. Bem ou mal, respondi. Ora, em Há muitos leitores que gostariam
absoluto, não se poderia dar a um mais delas num estilo mais simples do
autor maior sinal de desprezo do que que sob essa veste de cerimônia exigi
lhe respondendo com os mesmos argu da pelos discursos acadêmicos. Tenho
mentos que refutou. Mas será neces exatamente o gosto desses leitores. Eis
sário indicar-lhes a dificuldade que um ponto em que posso concordar
deverão resolver? É a seguinte: que com o sentimento de meus censores,
como o faço desde já.
acontecerá à virtude quando for preci Ignoro qual seja o adversário com o
so enriquecer-se a qualquer preço? E qual me ameaçam no pós-escrito; seja
isso que lhes perguntei e que lhes per quem for, não poderia resolver-me a
gunto ainda. responder uma obra antes de tê-la lido,
Quanto às duas observações seguin nem a me considerar vencido antes de
tes, a primeira das quais começa por ter sido atacado.
estas palavras — Por fim , eis o que eu Quanto ao mais, quer responda aos
objeto , etc., e a outra por estas — M as críticos que me são anunciados, quer
o que impressiona mais de perto, etc. me contente com publicar a obra
— , suplico ao leitor que me poupe o aumentada que me pedem, advirto os
meus censores de que, possivelmente,
trabalho de transcrevê-las. A Acade nela não encontrarão as modificações
mia me perguntara se o restabeleci que esperam. Prevejo que, quando for
mento das ciências e das artes contri o momento de defender-me, confor
buíra para aprimorar os costumes. mar-me-ei, sem escrúpulos, com todas
Essa a questão que tinha para resolver; as conseqüências de meus princípios4.
no entanto, imputam-me o crime de Sei, de antemão, quais as palavras
não ter resolvido outra. Certamente grandiosas com que serei atacado:
essa crítica é pelo menos bastante sin luzes, conhecimentos, leis, moral,
gular. Não obstante, tenho quase de razão, decoro, consideração, doçura,
pedir perdão ao leitor por tê-la previs polidez, educação, etc. A tudo isso só
to, pois é o que poderá crer lendo as responderei com duas outras palavras
cinco ou seis últimas páginas de meu que soam ainda mais fortes ao meu
d\scuTso. ouvido: Virtude! Verdade / Gritarei
Ademais, se meus censores se obsti sem cessar: Verdade! Virtude! Se
nam ainda em querer conclusões práti alguém nelas só perceber palavras,
cas, prometo-as, bem claramente enun nada mais tenho a dizer-lhe.
ciadas, na minha primeira resposta.
Sobre a inutilidade das leis suntuá- 4 Conforme o prefácio do N arciso, no qual
rias para extirpar o luxo depois de ins Rousseau distinguirá as verdades que estabe
leceu no D iscurso, das conseqüências que
talado, diz-se que o autor não ignora o delas decorrem, mas a cuja consciência só che
que há para ser dito a esse respeito. gou depois da discussão que se seguiu. (N. de
Realmente, não ignoro que, quando P. A.-B.)
C a r t a D e J.-J. R o u s s e a u
A o S r . G rimm
Devolvo, senhor, o Mercure de outu de bem, é bom começar por ser hipó
bro que teve a bondade de emprestar- crita, e que a falsidade é um caminho
me. Li, com muito prazer, a refutação certo para chegar à virtude. Diz, ainda,
que o Sr. Gautier teve o trabalho de que os vícios enfeitados com a polidez
fazer a meu Discurso. Não me creio, não são contagiosos como o seriam
porém, como o senhor pretende, na apresentando-se de frente, com rustici-
obrigação de respondê-la, e aqui estão dade; que a arte de penetrar os homens
minhas objeções: fez progresso idêntico à de disfarçar-
1.° Não posso convencer-me de se; que nos convencemos de não se
que, para ter-se razão, se deva obriga dever contar com os homens, a menos
toriamente falar por último. que lhes agrademos ou que lhes seja
2.° Quanto mais releio a refutação, mos úteis; que se sabe avaliar as ofer
mais me convenço de que não tenho tas sedutoras da polidez, o que, sem
necessidade de dar ao Sr. Gautier dúvida, quer dizer que, quando dois
outra resposta além do próprio dis homens se cumprimentam, do fundo
curso a que respondeu. Leia, peço-lhe, do coração um diz ao outro “eu vos
num e noutro trabalho, os artigos refe trato como um idiota e rio-me de vós” ,
rentes ao luxo, à guerra, às academias, e o outro responde-lhe do fundo do seu
à educação; leia a prosopopéia de coração “ sei que mentis despudorada
Luís, o Grande, e a de Fabrício; leia, mente, mas vos retribuo com a maior
por fim, a conclusão do Sr. Gautier e a boa vontade” . Se eu tivesse querido
minha, e compreenderá o que quero empregar a mais amarga ironia, teria
dizer. podido dizer quase a mesma coisa.
3.° Penso, em tudo, tão diferente 4.° Em cada página da refutação,
mente do Sr. Gautier que, se tivesse de vê-se que o autor não entende absolu
reforçar todos os pontos em que não tamente, ou não quer entender, a obra
estamos de acordo, seria obrigado a que refuta, o que certamente lhe é mais
combatê-lo mesmo naqueles pontos cômodo, porque, respondendo sempre
que trataria como ele, e isso me daria ao seu pensamento e nunca ao meu,
uma feição obstinada que bem gostaria tem a melhor das ocasiões para dizer
de poder evitar. Por exemplo, falando quanto lhe apraz. Por outro lado, se
da polidez, ele dá a entender, muito minha réplica se torna com isso mais
claramente, que, para tornar-se homem difícil, torna-se também menos neces
374 ROUSSEAU
sária, pois jamais se ouviu dizer que 5.° Se quisesse responder à primeira
um pintor que expõe um quadro ao pú parte da refutação, seria um nunca
blico seja obrigado a examinar os acabar. O Sr. Gautier julga oportuno
olhos dos espectadores e fornecer ócu indicar os autores que devo citar e
los a quantos deles necessitem. aqueles que devo rejeitar. Sua escolha
Além disso, não estou muito seguro é inteiramente natural: recusa a autori
de que me faria entender, mesmo repli dade daqueles que depõem em meu
cando. Sei, por exemplo — diria ao Sr. favor e quer que eu recorra aos que ele
Gautier — , que nossos soldados não crê contrários a mim. Em vão procura
são Réaumurs e Fontenelles1 e isso é ria fazê-lo compreender que é decisiva
péssimo para eles, para nós e, sobretu uma única testemunha em meu favor,
do, para os inimigos. Sei que nada enquanto cem depoimentos nada pro
sabem, que são brutais e grosseiros e, vam contra meu sentimento, porque os
contudo, disse e repito que eles são testemunhos são partes no processo;
entorpecidos pelas ciências que despre em vão lhe pediria para distinguir entre
zam e pelas belas-artes que ignoram. os exemplos que alega; em vão lhe
Um dos grandes inconvenientes da cul exporia que são duas coisas totalmente
tura das letras consiste em que, ilumi diferentes ser bárbaro e ser criminoso2
nando apenas alguns homens, corrom e que os povos verdadeiramente cor
pem, em pura perda, toda uma nação. rompidos são menos os que têm leis
Ora, como bem pode ver, senhor, isso más do que aqueles que desprezam as
seria somente outro paradoxo enexpli- leis. É fácil prever a réplica. Como dar
cável para o Sr. Gautier, para esse Sr. fé a escritores escandalosos, que
Gautier que me pergunta orgulhosa ousam enaltecer bárbaros que não
mente o que as tropas possuem de sabem nem ler nem escrever? Como
comum com as academias, se os solda sequer supor-se pudor em gente que
dos mostrariam mais bravura estando anda completamente nua, e virtude
mal vestidos e mal nutridos; o que naqueles que comem carne crua?
quero dizer ao adiantar que, à força de Então será preciso discutir. Eis Heró-
enaltecer os talentos, se negligenciam doto, Estrabão, Pompônio Mela às tur
as virtudes; e ainda levanta outras ras com Xenofonte, Justino, Quinto
questões semelhantes, todas demons Cúrcio, Tácito3; eis-nos nas buscas em
trando a impossibilidade de respondê- críticos, nas antiguidades, na erudição.
las inteligentemente dentro do critério As brochuras transformam-se em volu
de quem as enunciou. Creio que mes, os livros se multiplicam e a ques
concordará não valer a pena explicar- tão é esquecida. É o destino das dispu
me uma segunda vez para não ser me tas de literatura, que, depois de in-
lhor entendido do que na primeira. fólios de esclarecimentos, terminam
1 Oposição entre a falsa ignorância, represen 2 Liga-se à distinção entre as duas ignorân-
tada pelos soldados, e a ciência, representada cias exposta no fim da C arta ao R ei da P olô
por Réaumur e Fontenelle; somente a verda nia: a falsa ignorância é brutal, é a do bárbaro;
deira ignorância é virtuosa. Réaumur a ciência corrompe os costumes, ela faz crimi
(1683-1757), médico e naturalista francês, nosos; a verdadeira ignorância, pelo contrário,
inventor do termômetro que traz seu nome. juntamente com a virtude, é própria do bom
Fontenelle (1657-1757), escritor francês, sobri selvagem. A barbárie e o crime são, pois, os
nho de Corneille, autor de numerosos opúscu dois modos de não ser virtuoso. (N . de P.
los de vulgarização científica. Am bos eram A .- B .)
bastante célebres no momento em que R ous 3 Enumeração dos principais historiadores
seau escrevia. (N . de P. A.-B.) gregos e latinos. (N . de P. A.-B.)
DISCURSO SOBRE AS CIÊNCIAS E AS ARTES 375
sempre por não mais saber onde se clui, daí, que não se encontra base para
está. Não vale a pena recomeçar. glorificar as ciências. Mas a que nos
Se eu quisesse replicar à segunda permitiria ele glorificar? Desde que os
parte, isso logo se faria, mas nada ensi homens vivem em sociedade, houve
naria a ninguém. O Sr. Gautier se con povos polidos e outros não. O Sr. Gau
tenta, ao refutar-me nesse ponto, em tier esqueceu-se de dar-nos o motivo
dizer sim em todos os lugares em que desta diferença.
digo não, e não em todos aqueles em O Sr. Gautier admira sempre a pure
que digo sim; não preciso, pois, mais za de nossos costumes atuais. Essa sua
que dizer novamente não sempre que boa opinião certamente muito honra
disse não, sim em todos os lugares em aos seus costumes, mas não demonstra
que disse sim, e suprimir as provas: uma grande experiência. Dir-se-ia,
com isso responderia com toda a exati dado o tom em que fala, que estudou
dão. Seguindo o método do Sr. Gau os homens como os peripatéticos5
tier, não posso, pois, responder às duas estudavam a física, sem sair de seu
partes da refutação sem dizer demais e gabinete. Quanto a mim, fechei meus
de menos; ora, eu muito desejaria não livros e, depois de ter ouvido falar os
fazer nem uma coisa nem outra. homens, observei-os a ag ir6. Não re
6.° Eu poderia seguir um outro mé presenta maravilha que, tendo seguido
todo e examinar separadamente os métodos tão diversos, concordemos
raciocínios do Sr. Gautier e o estilo da tão pouco em nosso juízos. Reconheço
refutação. que não se poderia empregar lingua
Se examinasse os raciocínios, ser- gem mais honesta do que a de nosso
me-ia fácil mostrar que todos levam ao século, e é isso que impressiona o Sr.
erro, que o autor não compreendeu a Gautier. Mas vejo também que não se
natureza da questão e que de modo poderia ter costumes mais corrompi
algum me entendeu. dos, e aí está o que me escandaliza.
Por exemplo, o Sr. Gautier tem o Será que pensamos termo-nos tornado
trabalho de me ensinar que há povos pessoas de bem porque, à força de dar
corruptos que não são cultos. Eu, de
minha parte, já duvidara que os calmu- 5 Os peripatéticos eram os colaboradores e
sucessores de Aristóteles na sua escola do
ques, os beduínos e os cafres4 não Liceu. Deve-se tomar a expressão física em seu
eram prodígios nem de virtude, nem de sentido etim ológico de “teoria da natureza” ;
erudição. Se o Sr. Gautier tivesse posto ela dava, então, oportunidade mais a especula
o mesmo cuidado em apontar-me ções metafísicas do que a pesquisas científicas.
(N. de P. A.-B.)
algum povo culto que não fosse cor
6 Importante informação sobre o método de
rupto, ter-me-ia surpreendido mais. Rousseau: ele é empírico e não apriorístico.
Faz-me sempre raciocinar como se eu [Pode-se acrescentar que a própria natureza da
tivesse dito ser a ciência a única fonte com provação histórica, de que tão abundante
de corrupção entre os homens; se ele, mente se serviu Rousseau, encaminhou-o for
çosamente à observação direta dos fatos vivos,
de boa fé, acreditou nisso, admiro a a fim de evitar o caminho seguido pelos teóri
bondade que teve em responder-me. cos dogm áticos que, partindo de princípios ge
Diz ele que o convívio com o mundo rais aceitos a priori, bastavam-se com exem
basta para adquirir-se aquela polidez plos históricos que parecessem dar-lhes algum
de que se preza um cavalheiro. Con apoio na realidade. Ora, para Rousseau, o
interesse principal estava nessa mesma realida
de, que buscava examinar tanto em seus aspec
4 São exemplos daqueles bárbaros de que tos já passados quanto em seu fluxo presente.
Rousseau acaba de falar. (N. de P. A.-B.) (N. de L. G. M.)|
376 ROUSSEAU
nomes decentes a nossos vícios, apren preferido que dissesse: Povos! sabei,
demos a não corar mais com eles? pois, de uma vez por todas, que a natu
Diz ele, ainda, que, embora se reza não quer que vos nutrais com as
pudesse provar com fatos ter sempre produções da terra; o trabalho que exi
reinado com as ciências a dissolução giu para a sua cultura é um aviso para
dos costumes, não se concluirá que a que a deixeis inculta. O Sr. Gautier
sorte da probidade depende do pro não imaginou que se tem, com um
gresso delas. Depois de haver dedicado pouco de trabalho, a certeza de fazer
a primeira parte de meu discurso a pão, mas que com muito estudo é bas
provar terem essas coisas sempre an tante duvidoso que se consiga fazer um
dado juntas, destinei a segunda a mos homem razoável. Não pensou, ainda,
trar que, com efeito, uma se prende à que essa não passa de mais uma obser
outra. A quem, pois, poderia imaginar vação em meu favor, pois, por que terá
que, nesse ponto, responde o Sr. a natureza nos imposto trabalhos ne
Gautier? cessários, senão para desviar-nos das
Ele me parece sobretudo muito ocupações ociosas? Mas, dado o des
escandalizado com a maneira por que prezo que demonstra pela agricultura,
falei da educação dos colégios. Comu vê-se facilmente que, se dependesse
nica-me que aí se ensina aos moços dele, todos os trabalhadores deserta
não sei quantas coisas belas, que pode riam dos campos para ir argumentar
rão ser de muito auxílio para a sua dis nas escolas, ocupação essa, segundo o
tração quando crescerem, mas con Sr. Gautier e de acordo, creio, com
fesso não perceber quais as suas muitos professores, bastante impor
relações com os deveres dos cidadãos, tante para a felicidade do Estado.
aos quais se deve começar por instruir. Raciocinando sobre um trecho de
“Perguntamo-nos geralmente: Sabe Platão, presumi que talvez os antigos
rá grego ou latim? Escreve em verso egípcios não concedessem às ciências a
ou em prosa? Mas o que importa é importância que se poderia crer. O
saber se tornou-se melhor ou mais pru autor da refutação me pergunta como
dente, eis o que fica em dúvida. Alu se pode fazer essa opinião concordar
dindo a alguém que passa, gritai a com a inscrição que Osimândias8 pu
nosso povo: Oh ! que homem sábio!; e sera na sua biblioteca. Essa objeção
a respeito de outro: Oh! que bom teria cabimento quando esse príncipe
hom em ! — não deixará de dirigir os era vivo. Agora que está morto, per
olhos e o respeito para o primeiro. gunto, por minha vez, onde está a
Deveria aparecer um terceiro gritador necessidade de fazer concordar o senti
dizendo: O h ! cabeças-duras!” 7 mento do Rei Osimândias com o dos
Disse eu que a natureza quis nos sábios do Egito. Se ele tivesse contado
preservar da ciência, como uma mãe e, sobretudo, pesado os votos, quem
arranca uma arma perigosa das mãos me diria que a palavra “venenos” não
de seu filho, e que o trabalho que nos teria substituído a palavra “remédios”.
dá para nos instruirmos não é o menor
de seus benefícios. O Sr. Gautier teria 8 Osimândias: rei lendário do Egito antigo.
D e acordo com a tradição clássica, mandou
construir a primeira biblioteca anotada pela
7 Montaigne, Ensaios, Livro I, X X IV . Todo história e na porta colocou a seguinte inscri
esse trecho anuncia a reforma pedagógica do ção: “Tesouro dos remédios da alma” . (N . de
Emílio. (N . de P. A.-B.) P. A.-B.)
DISCURSO SOBRE AS CIÊNCIAS E AS ARTES 377
elogios do Sr. Rousseau. Por que não? São essas, pois, de acordo convosco,
Haverá algum desses nomes que ex especulações estéreis? Estéreis segun
clua a virtude? Não se cansará de do a opinião comum, mas, a meu pare
invectivar os homens? Não se cansa cer, muito férteis de coisas más. A s
rão eles de serem maus? Crer-se-á, universidades vos devem um grande
sempre, torná-los mais virtuosos dizen favor, por terdes lhes ensinado que a
do-lhes que não têm virtude? Crer-se-á verdade dessas ciências se retirou para
torná-los melhores persuadindo-os de o fundo de um poço. Não creio ter
que são suficientemente bons? Sob o ensinado isso a ninguém; essa afirma
pretexto de aprimorar os costumes, ção não é de minha invenção, ela é tão
será permitido destruir-lhes as bases? antiga quanto a filosofia. Ademais, sei
Sob o pretexto de esclarecer os espíri que as universidades não me devem ne
tos, dever-se-á perverter as almas? Oh! nhum reconhecimento e eu não ignora
doces laços da sociedade, encanto dos va, ao tomar da pena, que não podia,
verdadeiros filósofos, amáveis virtu ao mesmo tempo, fazer a corte aos ho
des, é por vossos próprios atrativos mens e prestar homenagem à virtude.
que reinais nos corações; não deveis Os grandes filósofos, que as possuem
vosso império nem à severidade estói num grau altíssimo, sem dúvida sen
ca, nem aos clamores bárbaros, nem tem-se bastante surpresos por saberem
aos conselhos de uma rusticidade que nada sabem. Creio, com efeito, que
orgulhosa. esses grandes filósofos que possuem
De início, salientarei uma coisa todas as ciências em altíssimo grau
ficariam muito surpresos por saberem
muito divertida: de todas as seitas dos
que nada sabem, mas eu ficaria ainda
filósofos antigos atacadas por mim
mais surpreso se esses homens, que
como inúteis à virtude, os estóicos são
sabem tantas coisas, porventura sou
os únicos que o Sr. Gautier me deixa e
que parece até querer pôr de meu lado. bessem isso12.
Ele tem razão; não ficarei por isso
11 É a divisão tradicional da filosofia, dom i
muito mais orgulhoso. nante até o século XVIII e derivada de Aristó
Mas, vejamos, por um instante, se teles. É tão evidente o ridículo da exclam ação
poderei apresentar exatamente em ou que Rousseau não a sublinha. Faz-se, desse
tros termos o sentido desta exclama modo, patente o contraste — já assinalado em
ção: O h! doces virtudes, épelos vossos notas ao texto do próprio Discurso — entre a
cultura da época, representada perfeitamente
próprios atrativos que reinais nas por Gautier e seu enfatuamento com as possi
almas. Não tendes necessidade de toda bilidades dos conhecimentos de seu tempo, e a
essa grande pompa de ignorância e de posição singular de Rousseau que, no trans
rusticidade; sabeis chegar ao coração curso de todo esse trecho, lança mão do recur
so tradicional dos moralistas: o ridículo. Com
por vias mais simples e mais naturais. o recuo histórico de que hoje dispomos,
Basta saber a retórica, a lógica, a físi evidencia-se a vantagem da posição de Rous
ca, a metafísica e a matemática11 para seau: enquanto seus opositores se apegavam a
adquirir o direito de possuir-vos. valores transitórios, ele insistia em permanecer
Outro exemplo do estilo do Sr. no âmbito dum problema universal e perma
nente. (N. de L. G. M.)
Gautier: 12 Existe uma diferença de natureza entre o
Sabeis que as ciências das quais se saber que se relaciona com conhecimentos
ocupam os jovens filósofos nas univer científicos e o saber socrático, que é uma to
sidades são a lógica, a metafísica, a mada de consciência da própria ignorância
fundamental. Descartes e Hegel distinguiram
moral, a física e a matemática elemen nitidamente esses dois saberes — o saber de
tar. Se já o soube, já o esqueci, como um objeto, ou verdade, e o saber de si, ou cer
fazemos ao nos tornarmos razoáveis. teza. (N . de P. A.-B.)
DISCURSO SOBRE AS CIÊNCIAS E AS ARTES 379
Noto que o Sr. Gautier, que sempre ção à sua solidez. Sustento que todo
me trata com a maior polidez, não homem que fala desse modo deseja
poupa nenhuma ocasião de aliciar-me antes tapar a boca das pessoas do que
inimigos; a esse respeito, estende seu convencê-las.
devotamento desde os professores de Se o senhor ler atentamen te a refuta
colégio até o poder soberano. O Sr. ção, não encontrará quase uma linha
Gautier faz muito bem em justificar os que não pareça lá estar esperando e
usos da sociedade; vê-se que não lhe indicando sua resposta. Um único
são estranhos. Mas voltemos à refuta exemplo bastará para me razer com
ção. preender.
Todos esses modos de escrever e de A s vitórias que os atenienses conse
raciocinar, que não vão bem a um guiram sobre os persas e sobre os lace-
homem de tanto espírito quanto me pa demônios mostram que as artes podem
rece ser o Sr. Gautier, sugeriram-me associar-se à virtude militar. Pergunto
uma conjetura, que achará ousada e se não vai nisso um estratagema para
que acredito razoável. Ele me acusa, lembrar o que disse sobre a derrota de
certamente sem nisso acreditar, de não Xerxes e para me fazer pensar no
estar completamente persuadido da desenlace da guerra do Peloponeso.
opinião que defendo. Eu suponho, com Seu governo, tornando-se venal sob
mais fundamento, estar ele secreta Péricles, adquiriu novo aspecto: o
mente de acordo comigo: os lugares amor pelo prazer asfixia-lhes a bravu
que ocupa, as circunstâncias em que se ra, as mais honrosas funções são avil
encontra colocaram-no numa espécie tadas, a impunidade multiplica os
de necessidade de tomar partido contra maus cidadãos, os fundos destinados à
mim. As conveniências de nosso sécu guerra são utilizados para alimentar a
lo servem para muitas coisas; ele terá, incúria e a ociosidade; que relação têm
pois, me refutado pelas conveniên com as ciências essas causas de cor
cias13, mas tomou todas as precauções rupção?
e empregou toda a arte possível para Que faz, nesse ponto, o Sr. Gautier,
fazê-lo de modo a não persuadir senão lembrar a segunda parte de meu
ninguém. Discurso, onde patenteei ess;i relação?
Nesse sentido, começa por declarar, Observe a arte com que apresenta,
como causa, os efeitos da co *rupção, a
muito fora de propósito, que a causa
defendida por ele interessa à felicidade fim de levar todo homem de lx)m senso
da assembléia a que fala e à glória do a subir por si mesmo à primeira causa
dessas pretensas causas. Observe,
príncipe sob cujas leis tem o prazer de ainda, como, deixando que o leitor
viver. É precisamente como se disses reflita, finge ignorar o que niio se pode
se: Não podeis, senhores, sem ingrati supor seja de fato por ele igr orado e o
dão para com vosso protetor, deixar de que todos os historiadores dizem una
me dar razão e, mais, é vossa própria nimemente — que a depravação dos
causa que pleiteio hoje perante vós. costumes e do Governo dos atenienses
Desse modo, de qualquer lado que foi obra dos oradores. É certo, pois,
encareis minhas provas, tenho o direito que me atacar desse modo é indicar-me
de esperar que não apresentareis obje-
muito claramente as respostas que
devo dar.
13 Essa passagem anuncia a crítica da polidez
que se encontra no fim da C arta ao- R e i da Todavia, isso não passa de conjetu
Polônia. (N . de P. A.-B.) ra, que não pretendo afirmar. O Sr.
380 ROUSSEAU
Gautier talvez não me aprovasse, se nos empregadas por mim para servir
quisesse justificar seu saber a expensas de transição, não há uma única sobre a
de sua boa fé; mas, se com efeito qual um leitor judicioso possa ser da
expressou-se sinceramente ao refutar o opinião do Sr. Gautier.
meu D iscurso, como o Sr. Gautier, que Segundo ele, não é verdade que a
é professor de história, professor de história extraia dos vícios do homem
matemática, membro da Academia de seu interesse principal.
Nancy, não desconfiou um pouco de Poderia apresentar as provas do
todos esses títulos que possui? raciocínio e, para colocar o Sr. Gautier
Não replicarei, pois, ao Sr. Gautier: no seu campo, citar-lhe-ia algumas
é questão resolvida. Jamais poderia autoridades.
responder com seriedade e seguir
Felizes os povos cujos reis fizeram
ponto por ponto a refutação — o se
pouco ruído na história!
nhor compreende por quê; e seria não
Se os homens algum dia se tornas
reconhecer devidamente os elogios
sem sábios, sua história de modo
com os quais o Sr. Gautier me honra,
algum seria divertida.
empregar o ridiculum acrV 4, a ironia e
a brincadeira de mau gosto. Sinto já O Sr. Gautier diz, com razão, que
meus receios de que tenha bastante uma sociedade, mesmo que fosse com
para lamentar-se no tom desta carta. posta unicamente de homens justos,
Pelo menos não ignorava ele, ao escre não poderia subsistir sem leis, e daí
ver sua refutação, que atacava um conclui não ser verdade que a jurispru
homem que não dá à polidez a impor dência seria inútil sem as injustiças dos
tância bastante para aprender a disfar homens. Um autor tão erudito confun
çar com ela seus sentimentos. diria a jurisprudência com as leis?1 5
Quanto ao mais, estou pronto a Poderia ainda abandonar as provas
prestar ao Sr. Gautier toda a justiça do raciocínio e, para pôr o Sr. Gautier
que lhe é devida. Seu trabalho parece- no seu terreno, citar-lhe-ia fatos.
me o de um homem de espírito que Os lacedemônios não tinham nem
possui seus conhecimentos. Outros, jurisconsultos nem advogados, suas
talvez, nele encontrarão filosofia; leis nem sequer eram escritas e, não
quanto a mim, nele percebi muita obstante, possuíam leis. Recorro à eru
erudição. dição do Sr. Gautier para saber se as
Sou, de todo o coração, senhor, etc. leis eram menos bem observadas na
P. S. Acabo de ler, na Gazette de Lacedemônia do que nos países em
Utrecht de 22 de outubro, uma exposi que formigam os jurisconsultos.
ção pomposa sobre a obra do Sr. Gau Absolutamente não me deterei em
tier e essa exposição parece feita de todas as minúcias que servem de texto
propósito para confirmar minhas supo
sições. Um autor, que tem alguma con
1 5 A s leis são estabelecidas de modo muito
fiança em sua obra, deixa aos outros o geral pelo legislador. A parte correspondente à
cuidado de fazer-lhe o elogio e limita- sua aplicação e ao respeito devido a elas é
se a dela fazer um bom resumo; o da assegurada pela justiça e constitui a jurispru
refutação é feito com tanta habilidade dência. Toda sociedade tem necessidade de
que, embora recaia em coisas de some possuir leis formuladas; pode-se, porém, ima
ginar uma sociedade tão boa que não tivesse
necessidade de um aparelho judiciário para
1 4 R idiculum acri. Palavra que, pela sua viru fazer aplicar, precisar e respeitar suas leis. (N .
lência, provoca o riso. (N . de P. A.-B.) de P. A.-B.)
DISCURSO SOBRE AS CIÊNCIAS E AS ARTES 381
admirei nas outras e, por isso, pude Diz ainda estar surpreendido por vê-lo
ram contribuir para o erro da conclu premiado; entretanto, não é um prodí
são que o autor delas tira. gio ver premiadas obras medíocres.
A obra começa com algumas mor- Em qualquer outro sentido, tal sur
dacidades que só salientarei na medida presa seria tão honrosa à Academia de
em que tocam à questão. O autor me Dijon quanto injuriosa à integridade
honra com inúmeros elogios, e, certa dos acadêmicos em geral; é fácil de ver
mente, isso vale por abrir-me uma bela como disso tiraria vantagem para
carreira. Mas há bem pouca proporção minha tese.
entre essas coisas; um silêncio respei Acusam-me, com frases rnuito agra
toso sobre os objetivos de nossa admi davelmente compostas, de contradi
ração freqüentemente convém mais do ções entre minha conduta e minha dou
que louvores indiscretos 5. trina. Censuram-me por ter eu mesmo
Diz o autor que meu discurso tem cultivado os estudos que condeno7.
muita coisa que surpreende6. Parece- Como a ciência e a virtude são incom
me que se impõe um esclarecimento. patíveis, coisa que me esforço por pro
var, segundo pretendem, perguntam-
5 Todos os príncipes, bons e maus, serão me em tom instante como ouso servir-
sempre baixa e indiferentemente louvados me de uma, declarando-me cm favor de
enquanto houver cortesãos e letrados. Quanto outra.
aos príncipes que são grandes homens, exigem
Há muita habilidade em fazer com
elogios mais moderados e melhor escolhidos.
A adulação ofende-lhes a virtude e o próprio que eu mesmo me comprometa na
elogio pode prejudicar-lhes a glória. Tenho questão; essa mordacidade rião deixará
certeza, pelo menos, de que Trajano seria a de causar embaraços à minha resposta,
meus olhos muito maior, se Plínio não tivesse ou, antes, às minhas respostas, pois
escrito sobre ele. Se Alexandre tivesse sido
efetivamente aquilo que afetava, não teria pen infelizmente tenho de dar mais de uma.
sado em seu retrato e em sua estátua, mas, Esforcemo-nos, pelo menos, para que
quanto a seu panegírico, só permitiu a um nelas a exatidão substitua o agrado.
lacedemônio que o fizesse, ainda que fosse 1.° Que a cultura das ciências cor
para não o ter. O único elogio digno deífrri rei
é aquele que se faz ouvir não da boca merce
rompe os costumes de uma nação, eis
nária de um orador, mas da voz de um povo o que ousei sustentar e ouso crer ter
livre. “Para que experimentasse prazer com provado. Como poderia, porém, ter
vossos elogios”, dizia o Imperador Juliano a dito que em cada homem ern particular
seus cortesãos que lhe enalteciam a justiça, são incompatíveis a ciência e a virtude,
“ seria preciso que ousásseis dizer o contrário,
se fosse verdade.”* (N . do A.) eu que exortei os príncipes a chama
* Tom ado a Montaigne, Ensaios, I, XLII. rem para a sua corte os verdadeiros sá
(N . de P. A.-B.) bios e emprestar-lhes sua confiança a
6 É com a própria questão que se poderia fim de que, pelo menos por uma vez, se
ficar surpreso; grande e bela questão, se é que
algum dia houve outra assim, e que possivel
mente poderá não ser tão logo renovada. A 7 N ão poderia justificar-me, com o muitos
Academ ia Francesa acaba de propor, para o outros, dizendo que nossa educação não
prêmio de eloqüência de 1752, um assunto depende de nós e que não som es consultados
muito semelhante a esse. Trata-se de sustentar para sermos envenenados. F oi de muito bom
que “o amor às letras inspira o am or à virtu grado que me lancei ao estudo e ainda de me
de”. A Academ ia não julgou oportuno deixar lhor vontade que o abandonei, ao perceber a
um tal assunto com o problema em aberto e, perturbação que lançava em minha a Ima sem
nesta oportunidade, a douta companhia dupli qualquer proveito para minha ra;:ão. N ão mais
cou o tempo que até então concedia aos auto quero uma ocupação enganosa na qual se crê
res, mesmo para assuntos mais difíceis. (N . do trabalhar para a sabedoria, mas tudo se faz
A.) pela vaidade. (N . do A.)
386 ROUSSEAU
veja o que podem, a ciência e a virtude Quem sabe se não chegariam até a reu
reunidas, dar à felicidade do gênero ni-las, se me apressasse a condenar
humano? Esses verdadeiros sábios for uma delas, por pouco justa que fosse?
mam um pequeno número, confesso, 3.° Poderia citar, a esse respeito, o
pois para fazer bom uso da ciência é que dizem os padres da Igreja sobre as
preciso reunir grandes talentos e gran ciências mundanas que desprezam e às
des virtudes. Isso só se pode esperar de quais, todavia, recorrem para comba
algumas almas privilegiadas, e não se ter os filósofos pagãos. Poderia citar a
pode esperar de um povo em seu comparação que fazem delas com os
todo8. Não se poderia, pois, concluir, vasos roubados, aos egípcios, pelos
de meus princípios, que um homem israelitas10. Contentar-me-ei, porém,
não consiga ser, ao mesmo tempo, como última resposta, em levantar esta
sábio e virtuoso. questão: se alguém viesse para matar
2.° Mesmo que essa pretensa con me e eu tivesse a felicidade de tomar-
tradição realmente existisse, menos lhe a arma, ser-me-ia proibido, antes
legítimo seria constranger-me pessoal de jogá-la fora, aproveitá-la para ex
mente por sua causa. Adoro a virtude; pulsá-lo de minha casa?
meu coração é testemunha disso e diz- Se a contradição de que me acusam
me também, claramente, como é dis não existe, desnecessário será supor
tante esse amor da prática que torna o que tenha querido somente distrair-me
homem virtuoso9. Aliás, estou bem com um paradoxo frívolo e isso pare
longe de possuir a ciência e, mais ce-me tanto menos cabível quanto o
ainda, de afetar possuí-la. Acreditei tom que usei, por inepto que seja, ao
defender-me dessa imputação com a menos não é aquele que se emprega
confissão ingênua que fiz no começo nos jogos de espírito.
de meu discurso. Temia, antes, que me É tempo de deixar de falar sobre o
acusassem de julgar coisas desconhe que me toca; nunca se ganha nada
cidas por mim. Facilmente se com falando de si mesmo, indiscrição que o
preende ser-me impossível evitar, ao público dificilmente perdoa, mesmo
mesmo tempo, essas duas reprimendas. quando se é forçado a fazê-lo. A verda
de é tão independente daqueles que a
8 Essa distinção, que Rousseau aqui faz pela atacam e a defendem que os autores
primeira vez, será capital para a evolução de que discutem a seu respeito deveriam
seu pensamento; com efeito renunciará, pouco
a pouco, às soluções, queridas dos enciclope ignorar-se reciprocamente. Isso poupa
distas, de regeneração individual, pois elas só ria muito papel e tinta. Mas essa regra
se mostram válidas para indivíduos isolados e tão fácil, para mim, de ser praticada,
excepcionalm ente dotados; Rousseau prefirirá absolutamente não o é para meu adver
soluções coletivas que transformam uma socie
dade inteira. Vista de outro ângulo, a questão
sário, e tal diferença não facilita a
demonstra que Rousseau não mais crê exeqüí minha réplica.
vel, na sociedade moderna, a perfeita coesão O autor, observando que ataco as
entre sabedoria e virtude da tradição socrática, ciências e as artes pelos efeitos que
que nem em todos os antigos (homens ou
povos) ele próprio reconhece. Povos bárbaros, determinam nos costumes, lança mão,
sem filósofos, são mais sábios, coletivamente, para me responder, da enumeração das
do que povos que contam com grande número
de eruditos e pensadores. Impõe-se salvar, ' 0 Antes de abandonar o Egito arrasado pelas
pois, a sabedoria coletiva. (N . de L. G. M.) pragas, M oisés e os israelitas “pediram aos
9 Essa frase é um primeiro prenúncio das egípcios objetos de prata, objetos de ouro e
Confissões. (N. de P. A.-B.) roupas”. (Êxodo, X II.) (N. de P. A.-B.)
DISCURSO SOBRE AS CIÊNCIAS E AS ARTES 387
23 São Justino: autor de uma Apologia da seus discípulos depois de longas provas e com
Religião Cristã, mártir aproximadamente em o maior mistério. Dava-lhes secretamente
165. (N . de P. A.-B.) lições de ateísmo e oferecia solenemente heca
2 4 Esses primeiros escritores que selavam tombes a Júpiter. Os filósofos acoinodaram-se
com o sangue o testemunho de sua pena se tão bem a esse método, que ele rapidamente se
riam hoje autores muito escandalosos, pois espalhou na Grécia e em Roma, como se pode
sustentariam precisamente o mesmo senti ver pelas obras de Cícero que, coin seus ami
mento que eu. São Justino, nas suas conversas gos, :ombava dos deuses imortais f, na tribuna
com Trifão, passa em revista as várias seitas e nas pregações, os sustentava com tanta
que outrora tentara e as torna tão ridículas que ênfase.
se creria ler um diálogo de Luciano; vê-se, A doutrina interior não foi levad i da Europa
também, na apologia de Tertuliano, com o os para a China, mas surgiu também lá com a
primeiros cristãos se sentiam ofendidos ao filosofia. A ela os chineses devem essa multi
serem tom ados por filósofos. dão de ateus ou de filósofos que x>ssuem. A
Seria, com efeito, um detalhe muito humi história dessa doutrina fatal, feita por um
lhante para a filosofia a exposição das máxi homem instruído e sincero, seria um golpe ter
mas perniciosas e dos dogm as ímpios das vá rível dado à filosofia antiga e moderna. A filo
rias seitas. Os epicuristas negavam qualquer sofia, porém, sempre desafiará a razão, a ver
providência, os acadêmicos duvidavam da dade e o próprio tempo, porque tem sua fonte
existência da divindade e os estóicos da imor no orgulho humano, mais forte do que todas
talidade da alma. A s seitas m enos célebres não essas coisas. (N . do A.)
tinham melhores sentimentos. Eis um dos frag * “ Ele admitiu a amizade, porque ela não está
m entos de Teodoro, chefe de um dos ramos presente nem entre os insensatos, riem entre os
dos cirenaicos, relatado por D iógenes Laércio: prudentes. . . Afirmava haver graride probabi
“Sustulit amicitiam, quod ea neque insipien- lidade de que um homem prudente não se
tibus neque sapientibus adsit. . . Probabile arriscasse, por si mesmo, em favor de seu país.
dicebat prudentem virum non seipsum pro pa- Com efeito, a prudência não devia ser abando
tria periculis exponere, neque enim pro insi- nada em proveito dos insensatos. O sábio,
pientium commodis amittendam esse pruden- dizia também, podia abandonar-se ao roubo,
tiam. Furto quoque et adultério et sacrilégio, ao adultério e ao sacrilégio desde o momento
cum tempestivum erit, daturum operam sa- oportuno, porquanto nenhuma dessas coisas
pientem. Nihil quippe horum turpe natura esse. era, pela sua natureza, imoral. D í tais fatos é
Sed auferatur de hisce vulgaris opinio, quae que se deve deduzir a opinião corrente, que foi
stultorum imperitorumque plebecula conflata suscitada pela populaça de loucos e de igno
e s t. . . sapientem publice absque uílo pudere rantes, e segundo a qual o prudeite vai, sem
ac suspicione scortis congressurum qualquer pudor ou discrição, encontrar-se com
Essas opiniões são particulares,eu sei; mas as cortesãs.” D iógenes Laércio viveu, aproxi
haveria uma só de todas as seitas que não madamente, em 270 d.C. Escrevia em grego e,
tenha caído em algum erro perigoso? E que por com odidade, Rousseau, não ousando tra
diremos da distinção entre duas doutrinas, tão duzi-lo para o francês, o cita em latim. Era um
avidamente recebidas por todos os filósofos, e doxógrafo. Redigiu a vida de todos os filósofos
pela qual eles em segredo professavam senti célebres. Essa passagem é extraída da Vida de
mentos contrários àqueles que publicamente Aristipo de Cirene, filósofo do prt zer dos sen
ensinavam? Pitágoras foi o primeiro a fazer tidos e fundador da escola cirenaica, no século
uso da doutrina interior; só a com unicava a IV a. C. (N . de P. A.-B.)
392 ROUSSEAU
o trabalho, que todo homem deve a larápio que veste a libré de; uma casa
objetivos mais nobres, para pôr-se em para poder agir melhor estar prestando
situação de adquirir outros semelhan homenagem ao senhor da casa que
tes. Não tenho necessidade de saber rouba? Não; cobrir sua maldade com
qual o ofício daquele que se ocupa com o manto perigoso da hipocrisia não é
tais idéias para saber o julgamento que honrar a virtude, é ultrajá-la profa
devo fazer dele. nando seus ensinamentos, é acres
Mostrei o belo retrato que se faz dos centar a covardia e o embu ste a todos
sábios a tal propósito, e creio poder os outros vícios e impossibilitar a si
transformar em merecimento meu tal próprio toda e qualquer volta à probi
complacência. Meu adversário é dade. Há caracteres superiores que até
menos indulgente: não somente não me no crime apresentam um ião-sei-quê
concede nada do que possa me recusar de altivo e de generoso que ainda per
e, em lugar de condenar o mal que mite ver, no íntimo, uma centelha
acuso em nossa vã e falsa polidez, pre desse fogo celeste feito para animar as
fere desculpar a hipocrisia. Pergunta- almas belas. Mas a alma vil e rasteira
me se eu desejaria que o vício se mos da hipocrisia assemelha-se a um cadá
trasse abertamente. Certamente eu o ver, no qual não se encontra mais nem
desejaria, pois a confiança e a estima ímpeto, nem calor, nem esperança de
renasceriam entre os bons, aprender- vida. Recorro à experiência. Viram-se
se-ia a desconfiar dos maus e a socie grandes celerados recolherem-se em si
dade com isso se sentiria mais segura. mesmos, acabar santamente sua car
Prefiro que meu inimigo me ataque reira e morrer como predestinados,
frente a frente, do que me venha ferir mas ninguém até hoje viu um hipócrita
traiçoeiramente pelas costas. C o m o ! tornar-se homem de bem. Poder-se-ia,
Seria preciso juntar o escândalo ao racionalmente, tentar a conversão de
crime? Não sei; mas bem desejaria que Cartouche, mas nunca um homem pru
não lhe juntasse a mentira. São muito dente tentaria a de Cromwel i 3 2 .
boas para os corruptos todas essas má Atribuí ao restabelecimento das le
ximas que, há tanto tempo, nos prezam tras e das artes a elegância s a polidez
sobre o escândalo. Querendo-se segui- que dominam nossas mineiras. O
las rigorosamente, seria preciso dei autor da resposta diverge: de mim
quanto a essa afirmação, o que me
xar-se pilhar, trair, matar impune
admira, porquanto, se ele dá tanta
mente e jamais punir alguém, pois
importância à polidez e faz tanto caso
constitui assunto bastante escandaloso
um ceierado na prisão. A hipocrisia é das ciências, não percebo qual a vanta
gem de privar uma dessas coisas da
uma homenagem que o vício rende à honra de produzir a outra Examine
virtude, homenagem da espécie daque mos, porém, as provas que apresenta;
la dos assassinos de César que se pros reduzem-se elas à que se segue: Em
traram a seus pés para degolá-lo com absoluto se verifica que os sábios
mais precisão. Por mais brilhante que sejam mais polidos do que os outros
seja esse pensamento, por mais autori
dade que lhe dê o nome célebre de seu 32 Cartouche, cujo verdadeiro nome era
autor31, nem por isso é mais justo. Bourguignon, foi o célebre chefe de um bando
Poder-se-á porventura dizer de um de ladrões. Morreu na roda. C ron w ell, Prote
tor da República da Inglaterra, a partir de
1653, foi o chefe da revolução que fez com que
31 O Duque de La Rochefoucauld. (Máximas, o Rei Carlos I perecesse no cadjifalso. (N . de
223.) (N . do A.) P. A.-B.)
396 ROUSSEAU
que nasce de um coração mau e de um tempo for, como poderá a guerra ser
espírito falso; uma ignorância crimi mais justa para um dos partidos sem o
nosa que alcança até os deveres da ser mais injusta para o outro? Não
humanidade, que multiplica os vícios, poderia concebê-lo. Ações menos ad
que degrada a razão, avilta a alma e miráveis, porém mais heróicas. Certa
torna os homens semelhantes aos ani mente ninguém negará a meu adver
mais — essa a ignorância que o autor sário o direito de julgar o heroísmo,
ataca e da qual apresenta um retrato mas não pensará ele que aquilo que
bastante odioso e bastante parecido. não lhe parece admirável poderá sê-lo
Há uma outra espécie de ignorância para nós? Vitórias menos sangrentas,
razoável que consiste em limitar sua porém gloriosas; conquistas menos rá
curiosidade à extensão das faculdades pidas, porém mais firm es; guerreiros
que se recebeu ao nascer3 5; uma igno menos violentos, porém mais temíveis,
rância modesta que nasce de um vivo sabendo vencer com moderação, tra
amor pela virtude e só inspira indife tando os vencidos com humanidade; a
rença por todas as coisas que não honra é seu guia, a glória sua recom
sejam dignas de encher o coração do pensa. Não nego ao autor haver gran
homem e que não contribuam para tor des homens entre nós — ser-lhe-ia bem
ná-lo melhor; uma doce e preciosa fácil fornecer a prova; isso não impe
ignorância, tesouro de uma alma pura de, porém, que os povos sejam assaz
e satisfeita consigo mesma, que põe corrompidos. Além do mais, tais coi
toda a sua felicidade em voltar-se sas são tão imprecisas que se poderiam
sobre si mesma, tornar-se testemunha quase dizer de todas as épocas; a res
de sua inocência e que não sente neces posta é impossível porque se tornaria
sidade de procurar uma falsa e vã feli necessário folhear bibliotecas e fazer
cidade na opinião que possam fazer de in-fólios a fim de estabelecer provas
suas luzes — essa a ignorância que pró ou contra.
louvei e que peço ao céu como punição Quando Sócrates maltratou as ciên
do escândalo que causei aos doutos cias, não poderia, parece me, ter em
pelo desprezo que declarei dedicar às vista nem o orgulho dos estóicos, nem
ciências humanas. o ócio dos epicuristas,- nem o jargão
Que se comparem, diz o autor, a tais absurdo dos pirrônicos, porque nenhu
tempos de ignorância e de barbárie ma dessas pessoas exisda em seu
esses séculos felizes nos quais as ciên tempo. Mas esse leve anacronismo não
cias difundiram p o r todas as partes a constitui desonestidade de meu adver
ordem e a justiça. Será difícil encon sário ; ele empregou melhor sua vida do
trar esses séculos felizes; encontra que verificando datas e níío está mais
remos, com mais facilidade, outros, obrigado a saber de cor seu Diógenes
nos quais, porém, graças às ciências, a Laércio do que eu a saber o que acon
ordem e a justiça não passaram de tece nos combates.
palavras vãs, feitas para serem impos Concordo, pois, que Sócrates só
tas ao povo, e nos quais a sua aparên pensou em salientar os vícios dos filó
cia terá sido conservada com tanto sofos de seu tempo; mas não vejo
mais cuidado, para que tanto mais se como concluir senão dizendo que nesse
pudesse impunemente destruí-las. tempo os vícios pululavam com os filó
Vemos, atualmente, guerras menos sofos. Respondem-me que isso se deve
freqüentes, porém mais justas. Em que ao abuso da filosofia e penso não ter
afirmado o contrário. Como! Será,
35 É já um prenúncio do relativismo kantia pois, preciso suprimir todas as coisas
no. (N ..de P. A.-B.) de que se abusa? Sim, sem dúvida —
398 ROUSSEAU
aqueles que deles se ocupam imaginem coisas sempre representam, umas para
meios de agradar e tais cálculos paula as outras, mui fiel companhia, porque
tinamente formam o estilo, aprimoram são obra dos mesmos vícios.
o gosto e difundem por todas as partes Se a experiência não concordasse
a delicadeza e a urbanidade. Todas com as proposições demonstradas, de
essas coisas valerão, se quiserem, ver-se-iam procurar as causas particu
como suplemento da virtude, porém ja lares dessa contradição. A primeira
mais se poderá dizer que constituam a idéia dessas contradições, porém, nas
virtude e raramente a ela se associam. ceu, ela própria, de uma loiga medita
Haverá sempre esta diferença: aquele ção sobre a experiência8 e, para ver-se
que se torna útil, trabalha para os até que ponto as confirma, basta abrir
outros, e aquele que só pensa em tor os anais do mundo.
nar-se agradável, só trabalha para si. Os primeiros homens foram muito
O adulador, por exemplo, não se pre ignorantes. Como se ousaria dizê-los
corrompidos em épocas em que ainda
serva de nenhum trabalho para agra
não se tinham aberto as fontes da
dar e, no entanto, só faz mal.
corrupção?
A vaidade e a ociosidade, que Na obscuridade dos antigos tempos
engendram nossas ciências, também e na rusticidade dos antigos povos,
engendraram o luxo. O gosto pelo luxo percebem-se, em inúmeros deles, virtu
sempre acompanha o das letras e este des assaz grandes, sobretudo uma
freqüentemente àquele7. Todas essas severidade de costumes que é marca
infalível de sua pureza, a boa-fé, a
6 Jamais assisto à representação de uma
com édia de Molière sem admirar a delicadeza
hospitalidade, a justiça e, o que é
dos espectadores*. Um a palavra algo livre, muito importante, um marcado horror
uma expressão antes grosseira do que obscena, pela depravação9, mãe fecunda de
tudo fere seus castos ouvidos e não duvido de
modo algum que os mais corrompidos sejam
os mais escandalizados. N o entanto, se com pa 8 Importância do método empírico em RoTis-
rarmos os costumes do século de Molière com seau. Num momento em que, tocando-se a
os nossos, poder-se-ia crer que levaríamos van excogitação filosófica e a investigação cientí
tagem? Quando a imaginação se macula uma fica, apenas se esboça o problema, Rousseau
vez, tudo se torna para ela objeto de escândalo. já busca uma distinção entre a experimentação
Quando não se tem nada mais de bom a não objetiva e a experiência vivida. (Cf. nota11).
ser o exterior, redobram-se os cuidados para Daí o interesse renovado que pelo nosso autor
conservá-lo. (N. do A.) vêm demonstrando alguns críticos que valori
•Prenúncio da Carta a D ’A lem bert sobre os zam o pensamento existencialista, com o, por
Espetáculos. (N. de P. A.-B.) exemplo, Pierre Burgelin em “ La Philosophie
7 Num certo trecho, argumentaram contra de 1’Existence de J.- J. Rousse.iu”, Paris, P.
mim com o luxo dos asiáticos, graças a esse. U. F., 1952. (N . de L. G. M.)
mesmo modo de raciocinar que usam para 9 Não tenho nenhuma intenção de fazer corte
opor-me o vício dos povos ignorantes. M as, às mulheres; consinto que elas me honrem com
devido a uma infelicidade que persegue meus o epíteto de pedante, tão temidc por todos os
adversários, enganam-se até nos fatos, que nossos galantes filósofos. Sou grosseiro, abor
nada provam contra mim. Sei, e muito bem, recido, incivil, de modo algum desejo bajula
que os povos do Oriente não são mais igno dores e por isso direi a verdade bem à vontade.
rantes do que nós, mas isso não impede que O homem e a mulher são feitos, para se ama
sejam também ocos e que escrevam quase tan rem e se unirem mas, a não ser essa união legí
tos livros quanto nós. Os turcos, que entre tima, qualquer comércio de amor entre eles é
todos são os que menos cultivam as letras, uma tremenda fonte de desordens na sociedade
contavam entre eles, por volta do meio do sé e nos costumes. É certo que só as mulheres
culo passado, quinhentos e oitenta poetas clás poderiam tornar a trazer para o nosso meio a
sicos. (N . do A.) honra e a probidade. M as rejeitam das m ãos
404 ROUSSEAU
pode compensar a ruína dos costumes, as leis da Esparta por terem tido mui
estou pronto a convir em que as ciên tos defeitos, de modo que, para retor
cias determinam mais bem do que mal. quir às-censuras que faço aos povos sá
Voltemos agora ao que falta. bios por sempre terem sido
Eu poderia, sem grande risco, supor corrompidos, censuram-se os povos
provado quanto disse, pois, entre tan ignorantes por não terem atingido a
tas asserções tão afoitamente levanta perfeição.
das, muito poucas há que atinjam a 6.° — O progresso das letras está
questão em seu âmago e, menos ainda, sempre em proporção com a grandeza
outras de que se pudesse tirar alguma dos impérios. Seja. Constato que sem
conclusão valiosa contra a minha opi pre me falam de fortuna e de grandeza.
nião, sendo que algumas dentre elas, se Eu, por mim, aludi a costumes e
porventura minha causa disso necessi virtudes.
tasse, até forneceriam novos argumen 7.° — Nossos costumes são os me
tos em meu favor. lhores que homens maus, como nós,
Com efeito: 1.° — Se os homens são podem ter. Talvez. Proscrevemos inú
naturalmente maus, pode suceder, caso meros vícios, não contesto. Não acuso
se queira, que as ciências produzam os homens deste século de terem todos
algum bem quando em suas mãos, mas os vícios; eles só têm aqueles próprios
é bem certo que elas então determinem às almas covardes, são apenas velha
mais mal do que bem, pois não se deve cos e negligentes. Quanto aos vícios
fornecer armas a loucos furiosos. que exigem coragem e firmeza, consi
2.° — Se as ciências raramente dero-os incapazes de tê-los.
atingem seu objetivo, sempre haverá 8.° — O luxo pode ser necessário
mais tempo perdido do que bem para dar pão aos pobres13, mas, se não
empregado. E, mesmo se fosse verda houvesse luxo, não haveria pobres1 4.
deiro que tivéssemos encontrado os Ele ocupa os cidadãos ociosos. Mas,
melhores métodos, a maioria de nossos por que existem cidadãos ociosos?
trabalhos seria ainda tão ridícula Quando a agricultura era considerada
quanto aqueles de um homem que, uma honra, não havia nem miséria
certo de seguir exatamente a linha de nem ociosidade e havia muito menos
prumo, quisesse levar um poço até o vícios.
centro da terra. 9.° — Vejo que se toma a peito
3.° — Não devemos absoluta essa questão de luxo e, não obstante,
mente ter tanto medo da vida pura finge-se querer separá-la da questão
mente animal, nem considerá-la o pior das ciências e das artes. Concordarei,
dos estados em que possamos cair,
pois ainda valeria muito mais parecer 12 Cf. Contrato Social, II, VII ; D o legislador:
com uma ovelha do que com um anjo O legislador deve ser “ uma inteligência supe
mau. rior”, um “deus” ; não deve possuir qualquer
4.° — A Grécia deveu seus costu poder legislativo ou executivo; é ele que faz
nascer no povo “o espírito social” . I, II, VI:
mes e suas leis a filósofos e legislado “ Os particulares vêem o bem que rejeitam; o
res. Concordo. Já repeti centenas de público quer o bem que não vê. Todos pos
vezes que é bom existirem filósofos, suem igualmente necessidade de g u ia s. . . Daí
contanto que o povo não se proponha vem a necessidade de um legislador” . (N . de P.
A.-B.)
a sê-lo12. 13 Cf. a tese de M orize, L ’A pologie du Luxe
5.° — Não ousando afirmar que au X V Ile Siècle, Paris, Didier, 1909. (N . de
Esparta não tinha boas leis, censuram P.A.-B
DISCURSO SOBRE AS CIÊNCIAS E AS ARTES 407
pois, uma vez que se deseja tão insis contestá-la. Os anais de todos os
tentemente, que o luxo contribui para a povos, que se ousa citar como prova,
manutenção dos estados, como as são muito mais favoráveis a uma supo
cariátides servem para sustentar os sição contrária e seriam precisos mui
palácios que decoram ou, então, como tos testemunhos para obrigar-me a crer
essas vigas com as quais se esteiam num absurdo. Antes que essas tremen
construções abaladas e que, freqüente das palavras teu e meu tivessem sido
mente, acabam por derrubá-las. Ho inventadas1 7, antes que existisse essa
mens sábios e prudentes, saí das casas espécie de homens cruéis e brutais cha
que se esteiam1 5. mados senhores, e essa oui:ra espécie
Isso pode mostrar como seria fácil de homens madraços e mem irosos que
desviar em meu favor a maioria das se chamam escravos, antes que hou
coisas que pretendem opor-me; falan vesse homens suficientemente abomi
do francamente, não as considero, náveis para ousar ter o supérfluo
porém, suficientemente contestadas enquanto outros morrem de fome,
para sentir a coragem de prevalecer-me antes que uma dependência mútua
disso. tivesse forçado todos a se tornarem
mentirosos, ciumentos e traidores —
Afirma-se que os primeiros homens gostaria bastante que me explicassem
foram maus, donde se segue que o no que poderiam consistir o:> vícios, os
homem é naturalmente m au1 6. Eis o crimes que, com tanta ênfase, lhes são
que não constitui afirmação de peque
na monta; parece que valeria a pena 1 6 Esta nota é especial para ds filósofos;
aconselho aos demais que não a leiam. Se o
1 4 O luxo nutre cem pobres nas cidades e faz homem é naturalmente mau, por certo as ciên
com que pereçam nos campos cem mil deles. O cias só o tornarão pior; assim, só por essa
dinheiro, que circula entre as mãos dos ricos e suposição, sua causa estará perdida. M as é
dos artistas para atender às suas superflui- preciso prestar muita atenção, pois, ainda que
dades, está perdido para a subsistência do 0 homem seja naturalmente bom, com o eu o
trabalhador; este não tem nenhuma roupa, creio e com o tenho a felicidade de pensar, não
precisamente porque os senhores precisam de se conclui daí que as ciências lhe :jejam saluta
galões. Só o desperdício dos elementos que en res, pois qualquer conjuntura qus coloca um
tram na nutrição dos homens já é suficiente povo em situação de cultivá-las denuncia
para tornar o luxo odioso à humanidade. Meus necessariamente um com eço dt corrupção,
adversários devem considerar-se muito felizes rapidamente acelerado por elas. É então que o
por impedir-me, a culpável delicadeza de nossa vício da corrupção determina todo o mal que
língua, de entrar, a tal propósito, em particula poderia determinar o da natureza, e os maus
ridades que fariam com que ficassem envergo preconceitos ocupam o lugar das más tendên
nhados com a causa que ousam defender. Pre cias.* (N . do A.)
cisa-se de suco na nossa cozinha e, por isso, * N ova ruptura: não se trata de alinhar argu
falta caldo para tantos doentes. Precisa-se de mentos para refutar a afirmação de Hobbes
licores nas nossas mesas e, por isso, o cam po sobre a maldade natural do homem, nem tam
nês só bebe água. Precisa-se de pó para nossas pouco para sustentar que o homem é natural
cabeleiras e, por isso, tantos pobres não têm mente bom, mas, sim, de desenvolver o tema
pão. (N . do A.) da corrupção do homem natural pela vida em
1 5 Nítida ruptura com o pensamento corrente sociedade. Novamente, ao segundo Discurso
das elites intelectuais do tempo: não se discute, incumbirá desenvolver tal idéia. (N . de L. G.
com o o desejariam os filósofos, se o luxo é M.)
bom ou mau, mas se formula a franca e direta 1 7 Cf. Discurso sobre a Desigualdade. “O pri
acusação do luxo com o causa de desigualdade. meiro que, tendo cercado um terreno, pensou
E, acrescentemos, desigualdade material, ex em dizer — isto me pertence, e encontrou pes
plicada em termos de apropriação, com o de soas bastante simples para acre<litá-lo, foi o
pois se descreverá no segundo Discurso. (N . de verdadeiro fundador da sociedade civil.” (N .
L. G. M.) de P. A.-B.)
408 ROUSSEAU
vossa cegueira. Vejo, com tristeza, que que, se não se celebrassem os grandes
só trabalhais para adquirir a virtude, homens, inútil, seria sê-lo.”
para exercitar vossa coragem e manter Aí está, creio, aproximadamente o
vossa liberdade e, no entanto, esque que teria podido dizer esse homem, se
ceis o dever, mais importante, de dis os éforos23 o tivessem deixz.do acabar.
trair os ociosos das raças futuras. Não é somente nessa pa:;sagem que
Dizei-me: para que serve a virtude, nos advertem quanto a só s:ervir a vir
senão para causar sensação no tude para fazer com que falem daque
mundo? Que vos terá valido ser pes les que a possuem. Em outro ponto,
soas de bem, quando ninguém falar de enaltecem-nos ainda os pensamentos
vós? Que importará aos séculos futu do filósofo, por imortais e csnsagrados
ros que vos désseis à morte nas à admiração de todos os séculos,
Termópilas21 para a salvação dos enquanto os outros vêem dusiparem-se
atenienses, se não deixais, como eles, suas idéias junto com o dia, a circuns
nem sistema de filosofia, nem versos, tância ou o momento que as viu nas
comédias ou estátuas?22 Apressai-vos, cer. Para três quartos dos homens, o
pois, em abandonar leis que só servem novo dia apaga a véspera sem que dela
para tornar-vos felizes; pensai somente reste o menor traço. Ah! resta dela
em fazer muito falar de vós quando pelo menos alguma coisa no testemu
não mais existirdes e nunca esqueçais nho de uma boa consciência, nos infe
lizes que se aliviou, nas boas ações que
21 Termópilas: célebre desfiladeiro da T essá
lia, cujo nome significa “portas quentes”. Leô-
se praticou e na memória desse Deus
nidas, com trezentos espartanos, sacrificando- benfazejo que se serviu em silêncio.
se, conseguiu retardar a invansão de dois “M orto ou vivo ”, dizia o l>om Sócra
milhões de persas de Xerxes e permitiu que tes, “o homem de bem jam ais esqueceu
Atenas reorganizasse sua defesa. (N . de P.
os deuses2 4.” Responder-me-ao talvez,
A.-B.)
22 Péricles possuía grandes talentos, muita
que não se quis falar dessa espécie de
eloqüencia, magnificência e gosto; embelezou pensamentos, e eu respondo que não
Atenas com excelentes trabalhos de escultura, vale a pena falar de todos os demais.
com edifícios suntuosos e obras-primas em É fácil compreender que, fazendo
todas as artes. Também, sabe D eus com o foi
elogiado pela turba de escritores. Resta, no
tão pouco caso de Esparta, não se
entanto, ainda por saber, se Péricles foi um chega talvez a mostrar maior estima
bom magistrado, pois na direção dos Estados pelos antigos romanos. Concorda-se
não se trata de erigir estátuas, mas de governar em tê-los como grandes hcmens, ape
bem os homens. Não me divertirei expondo os sar de não fazerem senão pequenas
m otivos secretos da guerra do Peloponeso, que
determinou a ruína da república. Não verifi coisas. Nesse sentido, confesso que há
carei se o conselho de Alcibíades era mal ou muito tempo não se fazem senão gran
bem fundado, se Péricles foi justa ou injusta des coisas. Censura-se não terem sido
mente acusado de m alversação; perguntarei verdadeiras virtudes, mas qualidades
unicamente se os atenienses se tornaram
melhores ou piores sob o seu governo; pedirei
que nomeiem alguém, entre os cidadãos, entre 23 Éforos: nome dado em Esparta a cinco
os escravos ou até entre as crianças, que, gra magistrados eleitos pelos cidadãos, e que
ças a seus cuidâdos, se tenha tornado um contrabalançavam a autoridade dos reis e do
homem de bem. Aí está, parece-me, a primeira senado. (N . de P. A.-B.)
função do magistrado e do soberano, uma vez
2 4 Citação da Apologia de Sócrates, de Pla
que o meio mais rápido e certo de tornar os ho
mens felizes não é ornamentar suas cidades tão, de acordo com a paráfrase que M ontaigne
nem mesmo enriquecè-las, mas sim torná-los dela oferece. (Ensaios, III, XII.) (N . de P.
bons. (N . do A.) A.-B.)
412 ROUSSEAU
ríamos mais corajoso: o odioso Cortez cidades39. Em verdade, tais como peço
subjugando o México à força de pólvo que sejam, assemelhar-se-ão bastante
ra, perfídia e traições, ou o infortunado aos animais e, tais como são, asseme
Guatemozin38, estendido sobre car lham-se bastante aos homens.
vões ardentes por honestos europeus O estado de ignorância é um estado
desejosos de obter seus tesouros, ex de medo e de necessidade; tudo é,
probrando um de seus funcionários de então, perigo para nossa fragilidade. A
quem o mesmo tratamento arrancava morte ronda sobre nossas cabeças,
alguns queixumes e dizendo-lhe orgu esconde-se na erva que calcamos com
lhosamente: “ E eu, estou sobre rosas?” os pés. Quando tudo se teme e se tem
D izer que as ciências nasceram da necessidade de tudo, qual a disposição
ociosidade é, visivelmente, abusar dos mais razoável do que querer tudo
termos; elas nascem do lazer, mas pre conhecer? Basta considerar as inquie
servam da ociosidade. Assim um tações contínuas dos médicos e dos
homem que, à borda de uma grande anatomistas sobre a sua vida e sua
estrada, se distraísse atirando em ca saúde para verificar se os conheci
minhantes, poderia dizer que ele em mentos servem para tranqüilizar-nos
pregava o seu lazer garantindo-se con quanto a nossos perigos. Como os
tra a ociosidade. Não compreendo essa conhecimentos descobrem sempre
distinção entre o lazer e a ociosidade, muito mais perigos do que meios para
mas estou bem certo de que nenhum nos garantirem contra eles, não é de
homem honesto jamais poderá gabar- espantar que só contribuam para au
se de ter lazer enquanto tiver alguma mentar nossos alarmas e tornar-nos
coisa de bem para fazer, uma pátria pusilânimes. Os animais, a esse respei
para servir e infelizes para socorrer; to, vivem em profunda segurança e não
desafio, ainda, que me mostrem, em se sentem pior por isso. Uma vitela
meus princípios, qualquer sentido ho não tem necessidade de estudar botâ
nesto a que possa ser aplicada a pala nica para aprender a escolher o seu
vra lazer. O cidadão cujas necessi feno e o lobo devora a presa sem pen
dades o prendem à charrua não está sar em indigestão40. Para responder a
mais ocupado do que o geômetra ou o isso, ousar-se-á tomar o partido do ins
anatomista. Não mais do que a,criança tinto contra a razão? É precisamente o
que constrói um castelo de cartas, que eu desejo.
porém, mais utilmente. A pretexto de Parece, dizem-nos, que há um núme
ser o pão necessário, impor-se-á que ro excessivo de trabalhadores e que se
todo o mundo passe a trabalhar a teme que faltem filósofos. Perguntarei,
terra? Por que não? Que passem
mesmo, caso necessário; gostaria mais 39 Rousseau ultrapassa seu pensamento,
de ver os homens comerem ervas nos com o, aliás, sói freqüentemente acontecer num
tal assunto. A expressão empregada por ele,
campos do que se entredevorarem nas neste ponto, espalhoq-se rapidamente e foi
vivamente criticada. Rousseau mudará de opi
38 Cortez (1485-1547), capitão espanhol, nião na Carta a Philopolis.
conquistou o M éxico. Guatemozin, último 40 Esse argumento, que tende a opor o auto
imperador indígena do M éxico, enforcado em matismo, a inconsciência e o finalismo do ins
1522 por ordem de Cortez; antes da execução, tinto à liberdade e à inteligência da consciên
infligiram-lhe o suplício reiatado por Rous1 cia, tornara-se tradicional desde a Procura da
seau. Verdade de Malebranche (1674).
DISCURSO SOBRE AS CIÊNCIAS E AS ARTES 417
segunda diz que somos nós que nos ciências não têm, pois, suas fon tes nos
contentamos com demonstrar a teoria, nossos vícios. Nossas ciências têm,
mas que os persas ensinam a prática. pois, fontes em nossos vícios. Não são,
Vede meu Discurso, página 15, nota 2. pois, todas elas nascidas do orgulho
Todas as censuras que fazem à filo humano. Já dei, atrás, minha opinião a
sofia atingem o espírito hum ano. . . esse respeito. Declamação vã que não
Concordo. Ou, antes, ao autor da natu pode iludir senão espíritos prevenidos.
reza, que nos f e z tal como somos. Se Não sei responder a isso.
ele nos fez filósofos, para que tanto Falando-se dos limites do luxo, pre
trabalho a fim de nos transformarmos tendem que, nesse assunto, não se deve
em filósofos? Os filósofos eram ho raciocinar partindo-se do passado para
mens e se enganaram; dever-se-á sur chegar ao presente. Quando os homens
preender-se com isso? Deveremos sur andavam completamente nus, aquele
preender-nos quando eles não se que primeiro resolveu calçar uns ta
enganarem mais. Lastimemo-los, apro mancos passou por voluptuoso; de sé
veitemo-nos de seus erros e corrijamo- culo a século não se deixou de gritar
nos. Sim, corrijamo-nos e não filoso contra a corrupção, sem compreender
femos mais. M il caminhos conduzem o que se desejava dizer.
ao erro, um único à verdade. . . Aí É verdade que, até nosso tempo, o
está precisamente o que eu dizia. Será luxo, ainda que reinando sempre, fora
preciso fic a r surpreso, p o r tantas vezes pelo menos considerado, em todas as
ter-se escarnecido dela e que ela tenha épocas, como a fonte funesta de uma
sido descoberta tão tarde? A h ! final infinidade de males. Ficava reservado
mente a encontramos. ao Sr. M elon44 o ser o primeiro a
Citam-nos um julgamento de Sócra publicar essa doutrina envenenada,
tes que trata não dos sábios mas dos cuja novidade granjeou-lhe mais sectá
sofistas, não das ciências, mas do rios do que a solidez de suas razões.
abuso que se pode fa zer delas. Que Não temo ser o único a combater,
mais pedir àquele que sustenta que neste meu século, essas odiosas máxi
todas as ciências não passam de abu mas que só tendem a destruir e aviltar
sos e que todos os nossos sábios são a virtude e a fazer ricos e miseráveis,
verdadeiros sofistas? Sócrates era isto é, a sempre fazer maus.
chefe de uma seita que ensinava a Crêem embaraçar-me terrivelmente
duvidar. Eu diminuiria de muito minha perguntando-me até onde se deve limi
admiração por Sócrates se acreditasse tar o luxo. Minha opinião é que abso
ter ele tido a tola vaidade de ser chefe lutamente não se precisa dele. Para
de seita. E ele, com justiça, censurava além da necessidade física, tudo é fonte
o orgulho daqueles que pretendem do mal. A natureza já nos dá muitas
tudo saber. Isto é, o orgulho de todos necessidades e, no mínimo, represen
os sábios. A verdadeira ciência está tará enorme imprudência multiplicá-
bem longe de ser afetação. É verdade, las sem necessidade e colocar, dessa
mas é da nossa que falo. Sócrates é maneira, a alma em dependência ainda
nesse ponto, testemunho contra si maior. Não é sem razão que Sócrates,
mesmo. Isso me parece difícil de enten olhando a exposição de uma loja, feli
der. O mais sábio dos gregos não cora citava-se de nada ter a ver com tudo
ria po r sua ignorância. O mais sábio
dos gregos nada sabia de sua própria 44 Ensaio político sobre o com ércio, 1736.
opinião; concluí quanto aos outros. A s (N . do P. A. - B.)
DISCURSO SOBRE AS CIÊNCIAS E AS ARTES 419
Acabo de ver, senhor, uma brochura eqüidade de meus juizes, confesso que
intitulada Discurso que recebeu o prê não o estou menos com a indiscrição
mio da Academ ia de Dijon em 1750, de meus adversários: como ousam
etc., acompanhado po r uma refutação demonstrar tão de público o mau
a esse discurso, feita po r um A cadê humor causado pela honra que recebi?
mico de Dijon que lhe recusou o seu Como não percebem o dano irrepa
su frágio\ e pensava, percorrendo esse rável que, com isso, fazem à sua pró
trabalho, que, em lugar de baixar ao pria causa? Que não se iluc.am pen
ponto de fazer-se editor de meu D is sando que alguém se vai enganar
curso, o acadêmico, que lhe recusou o quanto ao motivo de sua mágoa; se
seu sufrágio, deveria antes ter publi estão aborrecidos por ter sido meu
cado a obra a que teria concedido o Discurso laureado, não é por ser mal
prêmio — tal seria uma excelente feito, pois todos os dias são premiados
maneira de refutar o meu. outros tão maus quanto esse e eles
Aí está, pois, um de meus juizes que nada dizem, mas sim por outro motivo,
não se recusa a tornar-se meu adver que atinge mais de perto a sua profis
sário e que acha bastante mau terem- são e não é difícil de perceber. Bem
me honrado seus colegas com o prê sabia que as ciências corrompiam os
mio. Confesso que eu mesmo me costumes, tornavam os homens injus
surpreendi com o prêmio; esforcei-me tos e ciumentos, e levavam-ncs a sacri
por merecê-lo, mas nada fiz para obtê- ficar tudo ao seu interesse e à sua gló
lo. Aliás, embora eu soubesse não ado ria vã; acreditei, porém, que tal coisa
tarem os acadêmicos as opiniões dos se fazia com um pouco mais de decên
autores que premiam, e que o prêmio cia e de habilidade. Via que os letrados
não é conferido àquele que se crê ter aludiam incessantemente à eqüidade, à
sustentado a melhor causa, mas àquele moderação, à virtude e, sob a salva
que falou melhor, mesmo supondo-me guarda sagrada dessas belas palavras,
nesse caso, estava bem longe de espe se entregavam impunemente às suas
rar de uma academia essa imparcia paixões e vícios; jamais acreditei,
lidade da qual nem sempre os sábios porém, que tivessem a audácia de cen
fazem uso nas ocasiões em que se trata surar publicamente a imparcialidade
de seus interesses. de seus confrades. Em todos os luga
Mas, se fiquei surpreendido com a res, a glória dos julgadores consiste em
se pronunciarem de acordo com a
1 Esse acadêmico era Le Cat, secretário per
pétuo da Academia de Rudo. Rousseau sabia-
eqüidade e contra seu próprio interes
o, com o se verifica pela nota em que satirizou se; só as ciências podem transformar,
o grego dos médicos. (N. de L. G. M.) naqueles que as cultivam, a integridade
422 ROUSSEAU
nho do meu lado, enquanto que, sendo esse belo raciocínio. Pergunto-lhes,
deles o da multidão, pareceriam os agora, o que preferem que eu acuse: o
recém-vindos dispensados de enfileira seu espírito, por não terem podido
rem-se ou obrigados a fazer melhor do penetrar no sentido claríssimo desse
que os outros. trecho, ou a sua má fé, por fingirem
Temendo que tal conselho pareça não entendê-lo? São letrados e, por
temerário ou presunçoso, junto aqui isso, a escolha não será duvidosa. Mas
uma amostra dos raciocínios de meus o que diremos das interpretações diver
adversários pela qual se poderá aquila tidas que esse último adversário tem o
tar a exatidão e o valor de suas críti prazer de emprestar ao desenho do
cas. Os p o vo s da Europa, dissera eu, frontispício de meu livro? Acreditaria
viviam há alguns séculos num estado ter magoado meus leitores, tratando-os
pior do que a ignorância. Não sei que como crianças, ao interpretar-lhes uma
algaravia científica, ainda mais despre alegoria tão clara, ao dizer-lhes que o
zível do que a ignorância, usurpara o facho de Prometeu é o das ciências,
nome do saber e opunha um obstáculo feito para incentivar os grandes gênios,
quase invencível à sua volta. Precisou- que o sátiro que, vendo o fogo pela pri
se de uma revolução para devolver os meira vez, corre a ele e quer agarrá-lo,
homens ao senso comum. Os povos ti representa os homens vulgares que,
nham perdido o bom senso não porque seduzidos pelo brilho das letras, se
fossem ignorantes, mas por possuírem entregam temerariamente ao estudo, e
a tolice de crer saber alguma coisa que o Prometeu, que grita e o adverte
com os grandes ditos de Aristóteles e a do perigo, é o cidadão de Genebra.
doutrina impertinente de Raymond Essa alegoria é justa e bela, ouso
L ulle6; seria necessária uma revolução considerá-la sublime. Que se deve pen
para ensinar-lhes que eles nada sabem sar de um escritor que meditou sobre
e nós teríamos muita necessidade de ela e não conseguiu entendê-la? Pode-
uma outra para ensinar-nos a mesma se pensar que um tal homem não teria
verdade. Segue-se o argumento de sido um grande doutor entre os egíp
mèus adversários: Deve-se essa revolu cios, seus amigos.
ção às letras, elas devolveram o bom Tomo, pois, a liberdade de oferecer
senso, de acordo com a opinião do a meus adversários e, sobretudo, ao úl
autor, mas, também segundo ele, cor timo, esta sábia lição de um filósofo
romperam os costumes; será preciso, sobre um outro assunto: Sabei que não
pois, que um p ovo renuncie ao bom há nenhuma objeção que possa fazer
senso para ter bons costumes. Três maior mal a vosso partido do que as
escritores subseqüentemente repetiram más respostas. Sabei que se não tiver
des dito nada de valia, aviltarão vossa
causa ao dar-vos a honra de crer que
6 Raymond Lulle (1235-1315): filósofo e
alquimista catalão, denominado “o Ilumina nada nela se continha de melhor para
do”, autor da A rs Magna, um dos livros mais ser dito.
curiosos da escolástica. (N . de P. A. -B.) Sou, etc.
P r e f á c io d e
N a r c is o ou O A m a n t e d e s i m e s m o
1 Asseguram-me que a muitos desgosto, cha humildade, nossas limões logo perderia conos
mando de adversários a meus adversários, e co essa ignorância da qual tão justamente se
isso me parece bem possível num século em lamentava” . Li tudo isso e não dsi mais que
que não se ousa mais nada chamar pelo nome. umas poucas respostas; talvez ainda assim fiz
Sei, também, que cada um de meus adversários demais, mas creio firmemente que ísses senho
se lamenta, quando respondo a outras objeçoes res as tenham considerado bastante agradáveis
que não as suas, por perder meu tempo lutando para se enciumarem com a preferência. Quan
contra quimeras. Isso prova uma coisa, da to às pessoas que se chocam c o n a palavra
qual já sentia minhas suspeitas: eles não per adversários, de boa vontade concordo em
dem seu tempo lendo-se ou ouvindo-se uns aos abandoná-la, conquanto queiram indicar-me
outros. Quanto a mim, este foi um trabalho uma outra pela qual possa designar, não
que acreditei de meu dever; li os numerosos somente todos aqueles que combateram m i
escritos que contra mim publicaram, desde a nhas convicções, seja por escrito, seja, mais
primeira resposta com que me honraram até os prudente e mais à vontade, nas rodas de senho
quatro sermões alemães, um dos quais com eça ras e talentos, onde tinham certeza de que não
mais ou menos assim: “ Meus irmãos, se Sócra iria defender-me, mas ainda aqueles que, fin
tes voltasse para o nosso convívio e se visse o gindo crer não possuir eu atualmente adversá
estado florescente em que estão as ciências na rios, acharam a princípio irrespondíveis as res
Europa — que digo? na Europa, não; na A le postas de meus adversários e, depois, quando
manha — que digo? na Alemanha, não; em repliquei, censuraram-me, pois, sejundo eles,
Saxe — que digo? Em Saxe. não; em Leipzig não me tinham atacado. Esperando, permitir-
— que digo? em Leipzig, não; nesta universi me-ão que continue a chamar de ac versários a
dade — tomado então de surpresa e penetrado meus adversários, pois, apesar da polidez de
de respeito, Sócrates sentar-se-ia respeitosa meu século, sou grosseiro como os macedônios
mente entre nossos escolares e recebendo, com de Filipe. (N . do A.)
426 ROUSSEAU
Ora, com justiça, nada é mais suspeito igual prejuízo para a v rtude. Todo
do que a honra de um poltrão. homem que se preocupa com os talen
Tantas reflexões sobre a fraqueza de tos deleitáveis quer agradar, ser admi
nossa natureza só servem freqüente rado e quer ser admirado mais do que
mente para desviar-nos dos empreendi um outro; os aplausos públicos perten
mentos generosos. De tanto meditar cem somente a ele — diria que tudo
sobre as misérias da humanidade, faz para obtê-los, caso não fizesse mais
nossa imaginação sobrecarrega-nos ainda para deles privar seus concorren
com o seu peso e a previdência dema tes. Daí nascem, de um lado, os rebus-
siada tira-nos a coragem ao tirar-nos a camentos do gosto e da polidez, a adu
segurança. Inutilmente pretendemos lação vil e baixa, cs cuidados
munir-nos contra os acidentes impre sedutores, insidiosos, pueris, que, com
vistos, “ se a ciência, buscando armar o decorrer do tempo, aviltam a alma e
nos com novas defesas contra os corrompem o coração, por outro
inconvenientes naturais, ainda mais lado, os ciúmes, as rivalidades, os
impressionou-nos a fantasia com a ódios entre artistas tão renomados, a
grandeza e o peso desses inconve calúnia pérfida, a fraude, a traição e
nientes de modo a ultrapassar todas as tudo o que o vício possui de mais frou
razões e sutilezas vãs que possuía para xo e de mais odioso. Se o filósofo des
defender-nos deles” 1°. preza os homens, o artista logo se
O gosto pela filosofia afrouxa todos torna desprezível para eles, e ambos
os laços de estima e de afeto que ligam concorrem, afinal, para torná-los des
os homens à sociedade e talvez seja prezíveis.
esse o mais perigoso dos males por ela Ainda há mais e esta é a mais
concebidos; O encanto do estudo logo impressionante e cruel de todas as ver
torna insípido qualquer outro pendor. dades que propus à consideração dos
Além disso, de tanto refletir sobre a sábios. Nossos escritores consideram
humanidade, de tanto observar os tudo como se fosse uma obra-prima da
homens, o filósofo aprende a apreciá- política de nosso século — as ciências,
los de acordo com seu valor e é bem as artes, o luxo, o comércio, as leis e os
difícil consagrar afeição a quem se des outros laços que, estreitando entre os
preza. Em breve, resume em sua pes homens os liames da sociedade11 pelo
soa todo o interesse que os homens vir
interesse pessoal, colocam todos numa
tuosos compartilham com seus
dependência mútua, dão-lhes necessi
semelhantes. Seu desprezo pelos outros
dades recíprocas e interesses comuns, e
passa a favorecer seu orgulho, e seu
obrigam cada qual a concorrer para a
amor-próprio aumenta na mesma pro
felicidade dos outros a fim de poder
porção que sua indiferença pelo resto
alcançar a sua. Certamente essas
do universo. Tornam-se para ele pala
idéias são belas e apresentadas com
vras desprovidas de sentido, a família e
uma feição favorável, mas, ao exami-
a pátria; não é pai, cidadão ou homem
— é filósofo.
11 Lastimo que a filosofia enfraqueça os laços
Ao mesmo tempo que a cultura das da sociedade, que são formados pela estima e
ciências, de certo modo, desafoga o pela boa vontade mútuas. Lastimo que as ciên
coração do filósofo, sujeita num outro cias, as artes e todos os ouiros objetos de
comércio fortaleçam pelo interesse pessoal os
sentido o do letrado, e sempre còm laços da sociedade. Isso resulte do fato de não
se poder, com efeito, fortalecer um desses laços
10 Montaigne, Ensaios, III, X II. (N . de P. sem que o outro com isso se enfraqueça. Não
A.-B.) há, pois, contradição. (N . do A.)
432 ROUSSEAU
ná-las com atenção e sem parcialidade, eu descubro as suas causas e saliento
nas vantagens que elas a princípio sobretudo uma coisa muito consola-
parecem apresentar, encontra-se muito dora e útil ao mostrar que todos esses
a ser refutado. víciõs não pertencem tanto ao homem,
É, pois, coisa maravilhosa terem-se quanto ao homem mal governado12.
colocado os homens na impossibi Essas são as verdades que desen
lidade de viver entre si sem se suspeita volvi e que me esforcei por comprovar
rem, suplantarem, enganarem, traírem nos vários trabalhos que publiquei
e destruírem mutuamente. Importa, sobre o assunto. Seguem-se as conclu
daqui por diante, abster-nos de um dia sões que delas tirei.
deixar de nos vermos como somos,
pois, para dois homens cujos interesses
concordam, talvez cem mil possuem- 12 Noto que, atualmente, reina no miindo
nos opostos, e não existe outro meio uma multidão de pequenas máximas que sedu
para vencer senão enganar ou perder zem os simples por apresentarem um falso ar
de filosofia e que, além disso, são muito côm o
toda essa gente. Eis a fonte funesta das das para terminar as disputas com um tom
violências, das traições, das perfídias e importante e decisivo, sem se ter necessidade
de todos os horrores que necessaria de examinar a questão. Um exemplo. “Os
mente exigem um estado de coisas no homens, em todos os lugares, possuem as mes
mas paixões, em todos os lugares são guiados
qual cada um, fingindo trabalhar para pelo amor-próprio e pelo interesse, concluin
a fortuna ou a reputação dos demais, do-se, pois, que são sempre os m esm os.”
só procura elevar a sua acima e às Quando o s geômetras fazem uma suposição
expensas deles. que, de raciocínio em raciocínio, os conduz a
um absurdo, voltam sobre seus passos e, desse
Que ganhamos com isso? Muito modo, demonstram com o a suposição é falsa.
palavrório, os ricos e os arrazoadores, A aplicar-se o mesmo método à máxima em
isto é, inimigos da virtude e do bom questão, facilmente mostrar-se-á o absurdo.
senso. Em compensação, perdemos a Raciocinem os, porém, de outro modo. Um sel
inocência e os costumes. A multidão vagem é um homem e um europeu é um
homem. O m eio-filósofo conclui logo que um
rasteja na miséria, todos são escravos não vale mais do que o outro. M as o filósofo
do vício. Os crimes não cometidos já diz: na Europa, o governo, as leis, o s costu
estão no fundo dos corações e, para mes, o interesse, tudo coloca os particulares na
serem executados, só lhes falta a segu necessidade de se enganarem mútua e inces
santemente, tudo faz com que o vício seja um
rança da impunidade. dever; impõe-se que sejam maus para seram
Estranha e funesta constituição, na sábios, pois não há maior loucura do que fazer
qual as riquezas acumuladas sempre a felicidade dos marotos às expensas da sua.
facilitam os meios para acumular ou Entre os selvagens, o interesse pessoal faia tão
tras maiores ainda; na qual é impossí fortemente quanto entre nós, mas não diz as
vel, para aquele que nada possui, mesmas coisas; os únicos laços que os unem
são o amor pela sociedade e o cuidado com a
adquirir qualquer coisa; na qual o defesa comum; a palavra propriedade, que aos
homem de bem não conta com qual nossos homens de bem custa tantos crimes,
quer meio de sair da miséria; na qual quase não tem sentido entre eles; não têm entre
os mais desavergonhados são mais si nenhuma discussão de interesse que ós divi
da; nada os leva a se enganarem mutuamente;
dignificados e na qual se tem necessa o único bem a que cada um aspira é a estima
riamente de renunciar à virtude para pública, e todos a merecem. E bem possível
tornar-se um homem honesto! Sei que que um selvagem faça uma má ação, mas não
os declamadores já repetiram cem é possível que adquira o hábito de agir mal,
pois isso não lhe serviria para nada. Creio
vezes tudo isso, mas o diziam decla poder-se fazer uma avaliação bastante exata
mando e eu o digo baseando-me em dos costumes dos homens baseando-se no
razões; eles se aperceberam do mal, e grande número de negócios que têm entre si —
DISCURSO SOBRE AS CIÊNCIAS E AS ARTES 433
A ciência de modo algum é feita refletir. A reflexão só serve para tor
para o homem em geral. Incessante ná-lo infeliz, sem fazê-lo melhor ou
mente, ele, ao procurá-la, se perde e, mais sábio; faz com que lamente os
caso por vezes a alcance, quase sempre bens passados e o impede de gozar do
é em prejuízo próprio. O homem nas presente; apresenta-lhe o 1'uturo feliz a
ceu para agir e pensar, e não para fim de, pela imaginação, seduzi-lo e
atormentá-lo pelos desejos, e apresen
ta-lhe também o futuro infeliz a fim de,
quanto mais comerciam juntos, tanto mais antecipadamente, fazê-lo sentir. O es
admiram seus talentos e indústrias, mais se
enganam decente e habilidosamente e mais tudo corrompe seus costumes, altera
dignos são de desprezo. Lastimo dizer: o sua saúde, destrói o temperamento e
homem de bem é aquele que não tem necessi freqüentemente destrói sua razão;
dade de enganar a ninguém, e o selvagem é mesmo que lhe ensinasse alguma coisa,
esse homem.
eu o consideraria muito mal recompen
lllum non populi fasces, non pur- sado.
[pura regum Concedo que existem alguns gênios
Flexit, et infidos agitans discor- sublimes que sabem penetrar através
[diafratres;
Non res Romanae, perituraque . dos véus com os quais se cobre a ver
[ regna: neque ille dade, algumas almas privilegiadas ca
A ut doluit miserans inopem, aut pazes de resistir à idiotice da vaidade,
[ invidit habenti. ao ciúme baixo e às outras paixões
Virgílio, Geórgicas, II, 495.* (N . do A.) geradas no gosto pelas letras. Constitui
a luz e a honra do gênero humano o
* “ Um tal homem, nem os feixes lictórios do
povo o dobraram, nem a púrpura dos reis, nem
pequeno número daqueles que têm a
a discórdia que antagoniza os irmãos desleais, felicidade de reunir essa:; qualidades.
nem a república romana, nem os reinos que Somente a eles convém, para o bem de
vão perecer; jam ais um tal homem teve pieda todos, trabalhar no estudo e essa
de de um povo e o lamentou, nunca teve inveja mesma exceção confirma a regra, pois,
de um rico.” Essa nota, na sua totalidade, é um
anúncio do Discurso sobre a Desigualdade.
se todos os homens fossem Sócrates, a
(N . de P. A. B.) [À medida que se firma no ciência não lhes seria então danosa,
espírito de Rousseau a noção das causas mas também não teriam nenhuma
sociais da decadência, melhor se precisa seu necessidade dela.
objeto de pesquisa: sempre afirmando a corre
lação forçosa entre as ciências e a decadência,
Todo povo que possui costumes e
vai-se mais e mais interessando pelo conjunto que, conseqüentemente, respeita suas
dos valores e liames sociais, até que um deles, leis e não quer requintar-í;e em relação
agora apenas enunciado, assumirá impor aos seus antigos usos deve cuidadosa
tância principal: a ligação entre a liberdade e a mente defender-se das ciências e, so
igualdade, problema que logo a seguir será ata
cado. Rousseau já se compenetrou de que “vir
bretudo, dos sábios, cujas máximas
tude e vício são noções coletivas que só nas sentenciosas e dogmáticas logo ensina
cem do convívio humano” e, dessa forma, a rão a desprezar seus usos e leis, o que
penetrante visão ética, que sempre caracte uma nação nunca poderá fazer sem
rizou^ suas afirmações, conduz a uma com corromper-se. A menor mudança nos
preensão nitidamente social dos problemas de
que cuida. Também o método aprimorou-se, costumes, mesmo que em certos aspec
pois de geniais interpretações intuitivas, socor tos seja vantajosa, sempre resulta em
ridas por verificações empíricas mais ou prejuízo dos costumes. Porque os cos
m enos concatenadas, com eça a alçar-se à tumes são a moral do povo e, desde
indução, ao menos formalmente completa, fun
dada na observação dos fatos — nesse
que este cesse de respeitá-los, só res
momento, Rousseau não hesita em apelar para tam, como regra, suas paixões e, como
o exemplo do geôm etra. . . (N . de L. G. M.)] freio, as leis que algumas vezes podem
434 ROUSSEAU
e daqueles que as cultivam1 6, tendo cias e das artes, todayia, fez e publicou
certeza de não valer menos por isso. É peças de teatro” , e tal discurso consti
verdade que um dia poderão dizer: tuirá, confesso, uma sátira muito
“Esse inimigo tão declarado das ciên- amarga;, não a mim, mas a meu século.
1 6 Admiro-me com o a maioria dos literatos possa sustentar pela sua conduta o exame do
mudou de partido nesta questão. Quando artigo precedente, não possa dizer, em seu
viram as ciências e as artes atacadas, acredita favor, o que digo de mim, e esse modo de
ram-se atingidos pessoalmente, quando, sem se
raciocinar parece-me convir-lhe tanto mais
contradizer, poderiam todos eles, com o eu.
pensar que, embora essas coisas tenham feito quanto, entre nós, eles se preocupam muito
muito mal à sociedade, é essencial hoje servir- pouco com as ciências, conquanto continuem
se delas, com o de um remédio para o mal que elas a conferir dignidade aos sábios. Lem
causaram ou com o um desses animais maléfi bram-nos os padres do paganismo, que só esti
cos que é preciso esmagar sobre a mordida. mavam a religião na medida em que ela os tor
Numa palavra, não existe um literato que, caso nava respeitados. (N . do A.)
Ín d ic e
Livro Primeiro
Livro Segundo
Livro Terceiro
Livro Quarto
D is c u r s o so b re a O r ig e m e os F u n d a m e n to s d a D e s ig u a ld a d e
e n tr e os H om ens .......................................................................................................................... 207
440 ÍNDICE
Introdução ..........................................................................................................209
Advertência ........................................................................................................222
À República de Genebra ................................... *..............................................223
Prefácio ...............................................................................................................233
Discurso ...............................................................................................................239
Introdução às Notas de Rousseau ...................................................................289
Notas de Rousseau ................ .......................................................................... 291
Introdução à Carta ao Sr. Philopolis ............................................................. 317
C arta ao Sr. Philopolis ....................... ............................................................ 321
D is c u r s o s o b r e a s C iê n c ia s e a s A r t e s .......................................................329
Introdução de Paul Arbousse-Bastide .............................................................. 331
Advertência ........................................................................................................ ... 338
Prefácio ................................................................................................................... 339
Discurso ................................................................................................................... 341