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JEAN-JACQUES ROUSSEAU

DO CONTRATO SOCIAL
*

ENSAIO SOBRE A
ORIGEM DAS LÍNGUAS

DISCURSO SOBRE AS
CIÊNCIAS E AS ARTES
*

DISCURSO SOBRE A ORIGEM E OS


FUNDAMENTOS DA DESIGUALDADE
ENTRE OS HOMENS

T radução de L o u r d e s S a n t o s M a c h a d o
Introduções e notas de P a u l . A r b o u s s e - B a s t i d e e L o u r i v a l G omes M achado

EDITOR: VICTOR CIVITA


T ítulos originais:
D u C ontrat Social
Essai sur l’O rigine des Langues
D isc o u r s sur les S cien ces et les A rts
D iscou rs sur POrigine et les F ondem ents de PInégalii
parmi les H om m es

l . a edição — m arço 1973

c C op yright desta edição, 1973,


Abril S.A . Cultural e Industriai, São Paulo.
T radução publicada sob licen ça de
E ditora G lo b o , Porto Alegre.
S u m a r io

D o C o n tr a to S o c ia l .............................................................................................. ................. 7
E n s a io s o b r e a O r ig e m d a s L ín g u a s . . . . ............................................................... 153

D is c u r s o s o b r e a O r ig e m e o s F u n d a m e n t o s d a D e s ig u a l d a d e

en tre os H om ens ............................................................................................................. 207

D is c u r s o s o b r e a s C iê n c ia s e a s A r t e s ................................................................... 329

R e s p o s t a s d a d a s p o r J .- J . R o u s s e a u a s O b j e ç o ~e s d i r i g i d a s a s e u
D is c u r s o .................................................................................................................................. 361
DO CONTRATO SOCIAL'
OU PRINCÍPIOS DO DIREITO POLÍTICO
A d v e r t ê n c ia

A p resen te edição traz notas do A u to r (iden tificadaspor N . do A .), notas da


Tradutora (N . da T.), de Paul A rbousse-B astide (N . de P .A .-B .) e de L ou rival
G om es M ach ado (N . de L.G .M .).
In t r o d u ç ã o

D E L O U R IV A L G O M E S M A C H A D O

1. Circunstâncias da composição

C onta R ousseau nas Confissões:


“O Contrato Social im prim ia-se com bastante rapidez. O m esm o não acon­
tecia com o Emílio, cuja pu blicação eu esperava p ara efetivar o descanso que
planejara. D e tem pos em tem pos, D uchesne enviava-m e m odelos de com posição
p a ra escolha; quando eu escolhia, em lugar de com eçar o trabalho, enviava-m e
n o vo s m odelos. Quando, enfim, chegam os a um bom entendim ento acerca do
fo rm a to e do tipo, havendo j á m uitas fo lh a s im pressas, ele, p o r causa de uma
pequena m odificação minha nas pro va s, tudo recom eçou — ao fim de seis
meses, estávam os m enos adiantados do que no prim eiro dia ” 1.
A ssim , seguramente, alterou-se um dos p lan os m ais carinhosam ente traça­
do s p o r Jean-Jacques, que desejava ter no Emílio uma espécie de term o conclu­
sivo de suas idéias sobre a educação e, ao m esm o tem po, um elemento prenun­
ciador do Contrato. P rojetara tão firm em en te tal sucessão tem poral de suas
obras, que incluiu no Emílio um resum o, assaz longo, das idéias centrais do tra­
balho a aparecer e que expressam ente anunciava. N ão se tratava de um expe­
dien te de propaganda (com o poderia apressadam ente supor o leitor m oderno),
p o rém sobretudo de firm a r bem claram ente a im portância capital do conheci­
m ento da vida p olítica no estudo do hom em . A m orosidade, talvez calculada, dos
editores do Emílio e a rapidez de R ey, a quem fo r a confiado o Contrato, fru stra ­
ram-lhe o plano.
Em abril de 1762, surge o Contrato Social, algum as sem anas antes do Emí­
lio. R ousseau, que estava então nos cinqüenta anos, era um escritor célebre.
F azia um ano, a N ova H eloísa dera-lhe as glórias do m ais intenso e com ovido
interesse pú blico. C onsolidava-se, desse m odo, o que havia de benévolo no con­
ceito de que anteriorm ente g ozava, enquanto declinava, ao m enos p o r um instan­
te, a fa m a de “singu lar” que alcançara nos prim eiros p a sso s da carreira. Os dois
D iscursos e a Carta a d’Alembert, som ados ao êxito m ais ou m enos ruidoso das
p eç a s m usicais e teatrais, representavam os alicerces dum a indiscutível celebri­
dade. C om o, depois do Contrato, só assinaria obras p olêm icas ao m odo da
Carta a Beaumont, das Cartas da Montanha, de Rousseau, Juiz de Jean-Jacques,
p o d em o s concluir, sem fo rç a r a interpretação, não lhe ter escapado encontrar-se

1 Confissões, XI. (N. de L. G. M.)


10 IN T R O D U Ç Ã O

em p o siçã o especial desde a pu blicação da H eloísa e ,p o is, ter chegado o m om en­


to de lançar o seu livro m ais querido e m ais am bicioso.
“D a s várias obras que tinha no estaleiro, aquela sobre a qual m editava
havia m uito tem po, de que m e ocupava com m ais gosto, na qual desejaria traba­
lhar durante toda a vida e que deveria, segundo acreditava, selar m inha reputa­
ção, eram m inhas Instituições Políticas. H avia treze ou catorze anos que conce­
bera a p rim eira idéia, quando, estando em Veneza, encontrara ocasião de
observar o s defeitos desse governo tão louvado. D epois disso, m uito se am plia­
ram m inhas vistas p elo estudo histórico da moral. ” Essas palavras, com que
R ousseau registra suas cogitações no período prom issoriam ente calm o da Ermi-
tage2, confirm am e esclarecem o desígnio que o animaria a pu blicar, em m om en­
to e condições bem estudadas, o Contrato Social.
N ão se julgu e, contudo, que a redação fin a l do livro ou sequer a drástica
redução do p rim itivo plan o das Instituições Políticas fo ra m , tam bém elas, fru to
de uma decisão inspirada tão-só p ela s circunstâncias m om entâneas. P elo contrá­
rio, a obra am adureceu lentamente. N o ano de 1743, em Veneza, germ ina a p ri­
meira sem ente. E aparentem ente abandonada nos anos seguintes, m as im põe-se
com preender que a concepção política de R ousseau dependia, p a ra estruturar-se
com pletam ente, dos progressos que fize s se no “estudo histórico da m o ra l”. A c re ­
dita Vaughan que, p ela altura de 1750-51, houve uma prim eira redação do plano,
enquanto H albw achs não ousa inferir o m esm o senão p a ra o ano de 1753. O
certo é que, nesta últim a data, circula o D iscúrso sobre a Desigualdade, denun­
ciando um grande progresso e m esm o uma reelaboração das idéias anteriorm ente
expostas no D iscurso sobre as Ciências e as Artes. Entrevê-se em m uitas p a ssa ­
gens e afirm a-se na últim a p a rte um esboço dos principais p roblem as do C on­
trato Social. A Dedicatória, de 1754, propõe claram ente as teses centrais do fu tu ­
ro tratado. M ais tarde, o artigo sobre Econom ia Política levanta, p e la prim eira
vez, a teoria da “vontade g e ra l”, pedra-de-chave de todo o Contrato, enquanto à
célebre carta a Voltaire, de 18 de agosto de 1766, fica ria reservada a tarefa de
rasgar p ersp ectiva s básicas acerca da relação entre a lei e a liberdade. A n tes,
porém , R ousseau j á teria chegado ao prim eiro rascunho do Contrato Social, o
tão com entado M anuscrito de Genebra.
N o século p a ssado, f o i identificado, na B iblioteca de Genebra, um m anus­
crito que continha uma versão do Contrato Social acom panhada de alguns fra g ­
m entos da Econom ia Política. Quem prim eiro noticiou sua existência f o i o P ro­
fe sso r R itter, da universidadegenebrina, em 1882. Em 1887, A le x e iff reproduziu-
o em apêndice de uma obra de dois volum es, editada em M oscou, com o título
Estudos sobre Jean-Jacques Rousseau. Essa edição, contudo, não p o deria tornar
m ais conhecido no O cidente europeu o Manuscrito de Genebra, sobre o qual
B ertrand escrevia um artigo, em 1891, que conseguiu suscitar m aior interesse.
C inco anos depois, aparecia em Paris a clássica edição do Contrato Social de
E dm ond D reyfus-B risac, que recolhera, repusera e com entara a fo rm a definitiva
do texto rousseauniano, confrontando-o com as versões p rim itiva s autografas de
Genebra e N euchâtel. Então, pôde-se estabelecer uma série de elem entos esclare­
cedores. Em prim eiro lugar, que o Manuscrito de Genebra não é um rascunho do
Contrato, m as uma verdadeira versão passada a lim po e cuidadosam ente em en­

2 Confissões, IX. (N. de L. G. M.)


IN T R O D U Ç Ã O

dada, que, p o is, representa o pen sam en to p o lítico de R ousseau em determ inada
altura de sua vida. P ode ser anterior à Econom ia Política e parece com eçado em
1751, m as quase certam ente se com pletou quando da viagem a G enebra em
1754. O texto, tal com o f o i descoberto, m ostra-se fragm entário, só alcançando
m ais ou m enos a m etade da versão definitiva do Contrato, p orém essa m utilação
p arece p ro vir de acidente posterior, havendo indícios de que Rousseau o redigiu
inteiramente. Tal com o hoje o conhecem os, com preende uma versão que alcança
o s dois prim eiros livros do Contrato, m ais o capítulo I do livro III. H ouve, con ­
tudo, algum as m odificações: o capítulo inicial do Manuscrito cedeu lugar à
introdução do livro I que, na versão definitiva, define o objeto da obra; o segun­
do capítulo, bastante extenso e versando a Sociedade Geral do Gênero Humano,
f o i suprim ido; o terceiro capítulo do Manuscrito desdobrou-se nos capítulos I,
VI, VII, VIII e I X do livro I do Contrato Social, enquanto os capítulos II, III, IV,
e V correspondem ao quinto capítulo do Manuscrito. Todos esses p o n to s tive­
ram o condão de desencadear uma onda de estudos eruditos e discussões entre
especialistas que, intensificando-se p o r ocasião do segundo centenário do nasci­
m ento de Jean-Jacques (1912), cobriu os vinte prim eiros anos deste século, inte­
ressando homens da altura de um Beaulavon, de um Espinas, de um Faguet.
D esse m ovim ento, resultou a pu blicação, em C am bridge (1915) e M anchester
(1917), dos Escritos Políticos e do Contrato Social na edição de C. E. Vaughan,
que é considerada definitiva e hoje só p o d e ser com parada com as edições de
D reyfus-B risac, Beaulavon e a m ais recente, de H albwachs.
D e tal sorte, estabeleceu-se que, variantes à parte, o Contrato Social j á
conhecia uma prim eira e bem com pleta redação p ela s alturas de 1760. Ora, o
p ró p rio Rousseau nos d iz que, em 1759, tom ou uma séria resolução: “Tinha
ainda duas obras no estaleiro. A prim eira eram m inhas Instituições Políticas.
Exam inei o estado desse livro e con clu í que exigia ainda m uitos anos de trabalho
[ , . . J resolvi dela tirar o que pu desse destacar, depois de queim ar todo o resto,
e, desenvolvendo zelosam ente esse trabalho sem interrom per o do Emílio, dei, em
m enos de dois anos, a últim a dem ão no Contrato S ocial” 3. Eis o que leva Vaug­
han a crer que, pron ta a versão quase definitiva do M anuscrito de Genebra, uma
am pla revisão, com preendendo supressão e desdobram ento de capítulos, resultou
no texto enviado, em 1761, ao prelo. E ssa interpretação está, aliás, em perfeita
coerência com o que dizem a Advertência inicial e o últim o capítulo do texto
fin a l.
C om o se vê, nasceu o Contrato de uma longa e am adurecida m editação,
continuada praticam en te durante toda a vida intelectual de seu autor. M esm o a
redução do plan o inicial não lhe alterou substancialm ente a fe iç ã o , nem lhe m u ti­
lou o desenvolvim ento, p o is, quanto saibam os, as Instituições, além de um a p r i­
m eira p a rte acerca da natureza e fu n cionam ento do p o d er p o lítico encarado do
p o n to de vista interno, ou seja, das relações entre E stado e cidadão, deveria ter
uma segunda p a rte destinada ao exam e do p o d e r em suas relações exteriores, isto
é, das relações entre E stados. Ora, a m atéria que se preservou no Contrato é a
essencial e fundam ental, cuja com preensão não depende, efetivam ente, do aban­
donado com plem ento. Justifica-se, p o is, que o atorm entado R ousseau, no
m om ento em que se sentia tocado p ela adm iração dos contem porâneos e tam bém

3 Confissões, X. (N. de L. G. M.)


12 IN T R O D U Ç Ã O

quando cedia à esperança de retirar-se p ara uma existência quase isolada, resig­
nasse o grande p ro jeto de outrora, sobretudo se assim conseguia preservar e
im ediatam ente tornar conhecida aquela sua obra que considerava capital.
N o conjunto da produ ção de R ousseau, o Contrato não se destaca só p o r
m erecer a preferência sentim ental do próprio autor. Já em sua fo r m a revela-se o
intuito de constituir um caso singular, p o is nessa produ ção fe ita de rom ances
filo só fico s, cartas polêm icas e discursos acusatórios, todos vazados num a lingua­
gem candente, im piedosa e p o r vezes até áspera, surge com o um verdadeiro trata­
do redigido num estilo que é “sóbrio, amargo e fo r te ”, com o queria Jaurés, e
sem pre aspira à objetividade técnica, em que pesem os percalços passion ais ofe­
recidos p e lo tem peram ento apaixonado do autor. M ais ainda, nada tem de obra
de circunstância, com o sucede com a m aioria dos textos rousseaunianos, ten­
dendo a desenvolver-se, graças à longa e profunda m editação, num pian o de ver­
dadeira universalidade. Nela, Beaulavon encontrou “a expressão am adurecida,
sistem ática e definitiva do pensam ento de R ousseau ”.

2. Fontes e influências

Valham as anteriores indicações sobre o lento e longo processo de elabora­


ção do Contrato Social p ara deixar claro que m uito dificilm ente se p o d erá traçar
um satisfatório quadro das suas fo n te s inspirador as. Já se tem sublinhado com o,
em determ inados autores, vai R ousseau colher subsídios diretos p a ra a com posi­
ção de seu texto e com o, quase sem pre, é ele o prim eiro a citá-los. Tal o caso, p o r
exem plo, do M arquês d ’A rgenson (registrado com o “m. d ’A ” num a nota do capí­
tulo VIII do livro IV, porém identificado depois, p elo próprio R ousseau, na carta
a U steri de 15 de ju lh o de 1763), p o r via de suas Considerações sobre o Governo
Antigo e Presente da França. Ou ainda, e em m uito m ais am pla m argem , o caso
de M aquiavel, de cujas obras todas, porém em especial do D iscurso sobre a Pri­
meira D écada de Tito Lívio, Rousseau se valeu com liberalidade. Ou, afinal, o
caso de Sigonius, de cuja Legibus Romanis terá saído, diretam ente, quanto o
Contrato d iz do sistem a político de R om a nas notas do livro III e nos sete capítu­
los iniciais do últim o livro. Basta, porém , o confronto da contribuição devida a
M aqu iavel com o que f o i tom ado a Sigonius, para tornar paten te a precariedade
de tal arrolam ento de fo n tes, porquanto, se Sigonius aífigu ra um típico fo rn ece­
dor de referências, M aquiavel, tam bém desem penhando tal fu n ção, influi decisi­
vam ente na fo rm a çã o de determ inados conceitos rousseaunianos. N o próprio
Contrato há declarações reveladoras dessa influência singular.
N ão se p o d e, realmente, reduzir as fo n te s de uma grande obra à lista de
autores e livros em que se colheram, com ou sem citação explícita, elem entos tó­
p ico s. N ão obstante, se quiserm os estabelecer um rol das principais fo n te s do
Contrato, daqueles autores em que R ousseau f o i buscar estím ulo doutrinário
p ara o desenvolvim ento de seu próprio sistem a, correrem os o oposto risco de
estender-nos sem lim ite certo. Obra fartam en te am adurecida, pacientem ente
revista e retom ada p o r m ais de uma vez, livro destinado a representar a sum a de
toda uma vida intelectual e o coroam ento de uma obra variada e com plexa, o
Contrato Social é, praticam ente, o inteiro pensam ento de R ousseau e, pois, terá
encontrado fo n te s em quanto conseguiu, a qualquer m om ento interessar seu
IN T R O D U Ç Ã O 13

autor, a com eçar, sem dúvida, p elo s Evangelhos propiciados, logo à infância,
p e lo protestantism o de Genebra.
N essas condições, excelente parece o cam inho tom ado recentem ente p o r
D e ra th é4, aliás seguindo o exem plo de H albwachs. M ais do que a investigação
restrita ou lata das fo n tes, no sentido com um do term o, valerá investigarm os
quais fo ra m as leituras p o lítica s de R ousseau. E, segundo aquele autor, devem os
referir d ois grupos distin tos de tratadistas que Jean-Jacques estudou mais detida
e proveitosam ente, com o se p o d e supor p o r citações explícitas ou p o r inferências
bem fu ndadas.
Em prim eiro lugar, tem os os juriscon su ltos. G rotius e P ufendorf represen­
tavam o melhor da cultura ju rídica do tem po e a eles atirou-se R ousseau para
adquirir conhecim entos sem os quais não chegaria a dom inar os problem as do
E stado, p orém soube colocar o espírito crítico acim a da hum ildade de estudioso.
A ssim , em Grotius repele m étodo e doutrina e, se Pufendorffornece-lhe preciosas
informações, nem p o r isso concorda com seus prin cípios e suas conclusões.
Quanto a Burlamaqui, discípulo daqueles dois grandes m estres da escola do
D ireito N atural e no qual m uito tem po se desejou encontrar a principal fo n te de
R ousseau, hoje j á f o i reduzido às suas verdadeiras proporções: tradutor e conti-
nuador quase servil dos grandes ju ristas, nele p o u co de novo se encontraria e,
p o is, certa abundância de referências a seus trabalhos nos textos rousseaunianos
dever-se-á, muito provavelm en te, à fix a çã o psicológica que fatalm en te causavam
em Jean-Jacques os trabalhos, nem p o r isso adm irados, de um genebrino e m em ­
bro do C o n selh o . . . Cabe, afinal, assinalar o nom e de Johannes A lthusius, o
autor da im portante Politica M ethodice D igesta (1603), que tanto tem po p erm a ­
neceu ignorada p elo s historiadores das idéias políticas. O tto von Gierke, que
recuperou sua m em ória e sua doutrina, f o i o prim eiro a suspeitar de uma
influência direta em Rousseau. Vaughan reforçou a indicação citando uma p a s ­
sagem das Cartas da M ontanha em que há referência expressa a A lthusius, autor
então praticam ente desconhecido. Uma fra se do Contrato — “Tem muita razão
aqueles que pretendem não ser um contrato, em absoluto, o ato pelo qual um
p o v o se subm ete a chefes. ” (l. III, c. I) — parece tom ada diretam ente a A lthusius
e, se assim fo r, R ousseau terá tido a fe lic id a d e de encontrar, entre os velhos trata­
distas, ao m enos um, disposto, com o ele, a negar os preten sos direitos superiores
d o s reis.
Com põe-se, o segundo grupo, de escritores políticos. A qu i, m uito em bora a
am plitude das leituras de R ousseau seja bem m aior, p o d em o s fixar-n os em três
nom es: H obbes, M ontesquieu e Locke. A fo r ç a desses três pensadores fe z-se sen­
tir, de fo r m a decisiva, nas preocupações de quem estava destinado a colocar-se
no m esm o nível. Em cada um deles, R ousseau distinguiu a verdade fu n dam en tal
das fra q u eza s acessórias e, tom ando-lhes o que era essencial, soube criticá-los
p ela s fra g ilid a d es de m étodo e doutrina que não po d eria aceitar, para afinal, gra­
ças a esses p o n to s de apoio, p o sitiv o s e negativos, tentar sua própria construção
sistem ática. Em H obbes, sentiu a necessidade de conceber-se com o absoluto o
p o d e r do E stado, m as repeliu, com veem ência quase brutal, o sacrifício da liber­
dade do hom em . Em L ocke, contrariam ente, aproveitou m uito das form u lações

4 Robert Derathé: Jean-Jacques Rousseau et la Science Politique de son Temps, Paris, 1950. (N. de
L.-G.-M.)
14 IN T R O D U Ç Ã O

destinadas a preservar a pessoa livre, m as soube ver o defeito, em contrapartida,


desse individualism o que preju dicava a exata definição da realidade estatal. Em
M ontesquieu, que f o i dos três o m ais adm irado, lastim ou que tanta capacidade
de análise e tanto po d er de síntese se bastassem com a verificação de com o os
p o v o s de fa to se governavam , sem im portar-se com saber se esses governos eram
ou não legítim os. A ssim , alçou-se à condição de pen sador capacitado a form u lar
um esquem a em que, interligando-se substancial e vitalm ente a liberdade e a lei,
acabasse p o r definir-se a legitim idade do p o d er político. C om o expõe o Contrato
Social.

3. Resenha analítica

D ivid in d o o Contrato Social em quatro livros, R ousseau reservou o p ri­


meiro deles p ara atacar, de fo rm a direta e sem dispensáveis considerações p reli­
minares, o pro b lem a que sem pre o preocupou e que ê o de p o sitiv a r qual o fu n d a ­
m ento legítim o da sociedade política. O segundo livro, prossegu indo nas
cogitações decorrentes dessa indagação básica, cuidará de discu tir as condições
e os lim ites em que opera o p o d er soberano. D a í p a ssam os às considerações
sobre a fo r m a e o funcionam ento do aparato governam ental, que exigiram o ter­
ceiro e o m ais longo dos quatro livros, enquanto ao últim o fica ria reservada,
afora o capítulo inicial onde se com pendia conclusivam ente a exposição anterior,
uma série de estudos sobre os sufrágios, as assem bléias e certos órgãos e fu n ções
governam entais com plem entares, que não apresentam a m esm a unidade sistem á­
tica das três prim eiras p artes do Contrato.

L IV R O I

D ep o is de breve advertência, na qual se abandona definitivam ente o plano


das Instituições Políticas, abre-se o prim eiro livro com uma introdução, onde
ainda ressoam algum as notas do estilo oratório e do pensam ento apaixonado do
jo v e m R ousseau. A í se diz que o tratado se destina a “indagar se p o d e existir, na
ordem civil, algum a regra de adm inistração legítim a e segura, tom ando os ho­
m ens com o são e as leis com o p o d em s e r ”, porém o leitor precisa evitar as mui­
tas arm adilhas interpretativas que se encontram p o r sob expressões com o “regras
de a d m in istra çã o ”, “hom ens com o s ã o ” e “leis com o p o d em s e r ”. N ão terem os
um exam e em pírico e realista da situação política dos vários p o v o s, hem um
com pêndio d e prática governam ental. O verdadeiro objeto da investigação reve­
la-se na fr a s e inicial do C apítulo I: “O hom em nasce livre, e p o r toda a parte
encontra-se a f e r r o s ”. Em outras palavras, R ousseau anota o contraste entre a
condição natural do hom em , que é a de uma total irrestrição de seus im pulsos, e
a sua condição social que com um ente lhe abafa a liberdade. Im põe-se, portanto,
investigar se a passagem da liberdade natural p ara o condicionam ento social é
necessária, ou seja, se corresponde a um im perativo de sobrevivência e, se tal fo r
o caso, em que condições a transform ação p o d e operar-se legitim am ente, isto é,
atendendo plenam ente a seu objetivo e só a ele.
N atureza e convenção constituem , pois, os grandes tem as do L ivro I, no
qual se dem onstrará não ser natural qualquer desigualdade entre os homens,
IN T R O D U Ç Ã O 15

com o supuseram os que, erroneam ente, p a ra explicar ou ju stificar o p o d er de al­


guns sobre todos, recorreram ao exem plo da autoridade paterna na sociedade
dom éstica, que, contudo, só uma convenção m antém coesa depois de crescidos
os filh o s, ou então ao sím ile do p a sto r e do rebanho, ou, ainda, à afirmação aris-
totélica de nascerem alguns hom ens p a ra serem livres e ou tros p ara serem escra­
vos, o que é “tom ar o efeito p ela ca u sa ”. A discussão, iniciada no Capítulo II,
continua no C apítulo III, onde se dem onstra que um preten so “direito do m ais
f o r t e ” não p o d e oferecer base à ordem social, p o is não se considerará com o um
direito a ju s to título, esse que desaparece quando cessa a fo rç a , não passando
p o is do reflexo de uma situação de f a to sem qualquer validade ética ou jurídica.
“A fo r ç a não f a z o direito " e, conseqüentem ente, “só se é obrigado a obedecer
aos p o d eres legítimos. ” Se o C apítulo I V volta a cuidar da escravidão, anterior­
m ente discutida, agora o f a z do p o n to de vista do direito das gentes e para a fr o n ­
tal refutação de G rotius, p o is a guerra, se chega a gerar direitos, só os gera para
as relações entre E stados, enquanto, no tocante aos indivíduos, dela só resultam
situações de fa to . D e fo rm a alguma se conceberá que um p o v o se aliena a um rei,
num a estranha convenção, que em tudo aproveitasse a uma só das partes; só isso
j á caracterizaria sua ilegitim idade.
Im põe-se, portanto, “rem ontar a uma convenção an terior”, ao fa to de m an­
darem uns e obedecerem outros, com o nos anuncia o título do C apítulo V. A in d a
quando verdadeiras, todas as explicações eju stificações anteriores não bastariam
p a ra gerar um direito. M esm o, p o is, se dispostos a aceitar, com o quer Grotius,
que “um p o v o p o d e dar-se a um r e i”, deveríam os, antes de exam inar esse ato de
insólita alienação, conhecer aquele outro e anterior “ato p elo qual um p o v o é
p o v o ”, isto é, a convenção de que se origina, não o p oder, m as a sociedade. É o
pacto social, tal com o no C apítulo VI se descreve. Os hom ens, im possibilitados
de subsistirem p o r seus p ró p rio s m eios no estado de natureza, isto é, com o sim ­
p le s indivíduos, entre si contratam um a transform ação na maneira de viver, unin­
do-se numa “fo rm a de associação que defenda e pro teja a p esso a e os bens de
cada associado com toda a fo r ç a com um , e p ela qual cada um, unindo-se a
todos, só obedece contudo a si m esm o, perm anecendo assim tão livre quanto
a n te s ”. E is com o tudo se origina de um a convenção e ,p o r seu intermédio, dando-
se cada um, total e igualmente, a todos, preserva-se a sua igualdade e a sua liber­
dade, sendo que esta últim a apenas se transform a, porqu anto, em lugar da liber­
dade natural irrestrita, instala-se agora um a liberdade convencional, uma
existência livre po rém socializada.
T al o sentido explícito do texto em que se descreve o contrato social. Se,
contudo, o colocarm os em cotejo com os anteriores escritos de R ousseau, alcan­
çarem os tam bém sua significação em profundidade, porqu an to nele se estabelece
que, no hom em , a p a rte animal, o substrato fisio p sico ló g ico de instintos e im pul­
sos, se m ostra incapaz de resistir às necessidades geradas p elo s contatos com os
sem elhantes. Só o ser social, ou melhor, a p a rte socializável do ser humano p o d e ­
rá atender a tais solicitações, à condição de realizar-se plenam ente, porém essa
p a ssa g em não se deve fa ze r, p a ra ser legítim a, em nom e de “fu n dam en tos natu­
r a is ” (desigualdade dos homens, direito da fo rç a , escravidão, autoridade patern a
e ou tros argum entos que j á se discutiam no segundo D iscurso e na Econom ia
Política), senão em fu n ção de seu objetivo realm ente natural: a preservação do
h om em p e lo grupo. P or isso, con stitu i efeito p rin cipal do contrato social o nasci­
16 IN T R O D U Ç Ã O

m ento de uma nova entidade, de “um corpo m oral e coletivo ”, com “sua unidade,
seu eu com um , sua vida e sua vontade", que não é o sim ples agregado de
homens, m as a “pólis ”, a “ república ”, ou, com o prefere R ousseau, o “corpo
p o lític o ”. C om o um todo orgânico, cham a-se “E s ta d o ”, quando p a ssivo ; “sobe­
ra n o ”, quando ativo, e “p o tê n c ia ” no trato com seus iguais. Q uanto aos homens,
constituíram um “p o v o ”, sendo “cid a d ã o s” ou “sú d ito s” conform e os conside­
rem os ativa ou passivam ente.
“D o Soberano ”, ou seja, dos hom ens considerados coletivam en te e depois
de legitim am ente investidos no p o d er que lhes conferiu o p a cto , cuida o C apítulo
VII, que analisará as relações entre o corpo p o lítico ativo e seus p ró p rio s com po­
nentes, fo rm u la n d o a m ais transcendente questão do Contrato Social: a vontade
geral. Im porta saber, desde logo> onde auscultá-la e estabelecer que nos próprios
hom ens é que ela se revela, não p elo que de geral haja em suas von tades particu ­
lares, m as p elo que de com um as torna interligadas. P or isso m esm o, a vontade
geral é sem pre certa e, não poden do errar, ja m a is atentará contra a liberdade de
qualquer d o s m em bros do corpo social. O C apítulo VIII, estudando o “Estado
c iv il”, num balanço entre o que perde e o que ganha o hom em p e lo contrato,
traça o contraste entre, de um lado, o direito ilim itado a tom ar p a ra si tudo que
suas fo r ç a s perm itirem e, de outro, a liberdade civil e a propriedade de tudo que
p o ssu i legitim am ente, enquanto o Capítulo I X examina as relações entre a
pro p ried a d e p riva d a e o p o d er do soberano.

L IV R O U

H avendo o prim eiro livro p assado em exam e todas as questões fu n dam en ­


tais da vida política, no segundo se encontrará um estudo m ais porm en orizado
da estrutura e com portam ento da soberania, com o que se prepara a definição da
lei, p a ra depois form ulá-la.
C aracteriza-se a soberania p o r ser inalienável (C apítulo I) — p o is, sendo
vontade geral, é-lhe im possível alienar-se, dado que o p o d e r se transm ite, porém
não a von tade — e, tam bém , indivisível (C apítulo II) — porqu an to, afastando-se
de seus predecessores, notadam ente de M ontesquieu, R ousseau dem onstra que
não há divisão de poderes no E stado, noção errônea que resulta de confundir-se
o que são verdadeiras “em an ações” da fo rç a de m ando do corpo p o lítico , com
preten sas “p a rtes ” con stitu tivas do Estado. Conseqüentem ente, um só dos cha­
m ados p o d eres realm ente dispõe da fo rç a soberana — o legislativo. A ntes,
p orém , de cuidar da legislação, única m anifestação com pleta e direta da vontade
geral, o Contrato Social ainda se deterá no exam e das lim itações que p o d e
conhecer, em si m esm a, essa vontade geral. P ode ela sofrer uma deterioração —
lim ite vivencial, poder-se-ia dizer — no contato com os interesses privados, cuja
p io r m anifestação se encontra na fo rm a çã o de grupos e p a rtid o s políticos, com o
se estabelece no C apítulo III, onde porém se firm a que, salvo em tal caso de
deperecim ento e perversão, a vontade geral nunca erra. N o capítulo seguinte,
apontam -se os únicos lim ites reais e, p o r assim dizer, sadios do p o d er soberano:
são os lim ites das convenções gerais, o que vale dizer que cada hom em será livre
no que escapar a elas, p o is nem tudo, efetivam ente, constitui objeto do interesse
geral. A final, o C apítulo V aborda a inquietante questão de saber-se se deve o E s­
tado deter-se em fa c e da vida dos súditos e R ousseau haverá de concluir que, se
IN T R O D U Ç Ã O 17

o E stado precisar das vidas dos súditos, a elas tem direito, porém , m algrado um
contido p ro testo sentimental, apressa-se a distinguir tal situação, configurada
p ela s exigências da guerra, da pen a de m orte que se aplica aos crim inosos, p o r ­
quanto estes, pelo seu crim e, j á se colocaram à m argem do p a cto social.
“D a L e i ” é o título do Capítulo VI, que com eça, aliás, p o r uma clara p ro p o ­
sição do problem a: se “p elo p a c to social dem os existência e vida ao corpo p o líti­
co, resta atribuir-lhe, pela legislação, m ovim ento e v o n ta d e ”. D e fa to , à descrição
genética, que nos deu uma visão segura, porém apenas estática, anatôm ica, do
organism o político, im põe-se acrescentar o exam e de sua fisiologia, de seu
com portam ento ativo. E o E stado vive e age p ela lei.
N ão nos percam os, a tal propósito, em idéias m etafísicas que, apelando
p a ra a lei da natureza ou afirm ando que toda a ju stiç a vem de D eus ou ainda que
há uma ju stiça universal em anando da razão, não chegam a definir, na essência,
o que é a lei do E stado. Ora, im põe-se saber, exatam ente, a relação que resulta do
d isposto p ela vontade geral “quando todo o p o v o estatu i algo para todo o p o v o ”,
p o is, sendo a matéria de deliberação “geral com o a vontade que a e sta tu i”, aí
terem os o que se p o d e e se deve cham ar de lei. Em outras palavras, a lei, que p o r
isso m esm o ja m a is p o d e discrim inar ou particularizar, é a expressão das condi­
ções da associação civil, tais com o as estabelece o m esm o p o v o a quem virá a
obrigar. Conseqüentem ente, se cham arm os de república a todos os E stados regi­
dos p o r leis, só os governos republicanos, sem em bargo da fo rm a particular de
sua adm inistração, serão legítim os.
A noção de lei, que com pleta e am plia as noções fu n dam entais do L ivro I,
exige, contudo, uma nova cogitação básica, p o is fa z -s e necessário supor, para o
prim eiro e im prescindível estabelecim ento legal, uma “inteligência su perior” que
se interessasse p elos interesses dos homens, sem ter ela própria nenhum interesse.
“D o L eg isla d o r” trata o C apítulo III, que m uitos com entários tem suscitado pelo
f a to de, nele, Rousseau abandonar decidida e declaradam ente qualquer rigor
analítico e racional para, depois de afirmar que “seriam precisos deuses para dar
leis aos h o m en s”, supor que só será verdadeiro legislador aquele que, “homem
extraordinário no E stado ”, não obstante perm anece praticam en te fo r a do E stado,
sem pod eres e sem autoridade. E adm ite até que em estágios sociais rudim entares
recorra a apelos às divindades, p ara ser m elhor com preendido e aceito p elo s ho­
m ens que nelas creiam. C om o se vê, não basta o p a cto constitutivo do corpô
p o lítico , p o is quase tão substancial quanto ele é o estabelecim ento das conven­
ções gerais que só um legislador p o d e realizar devidam ente.
Suposto tal elem ento, os capítulos VIII, I X e X , sob o título geral “D o
P o vo ”, passa m em 'exame as condições de adequação dos sistem as de legislação
a cada p o v ô , considerado segundo sua própria constituição, as condições natu­
rais de sua vida e cada m om ento particu lar de sua história. O Contrato Social
com eça a tanger o cam po dos problem as, se não concretos, ao m enos práticos,
ou ainda m elhor: técnicos, da organização estatal. Essas considerações se con­
cluem no C apítulo X I, onde a análise dos “diversos sistem as de legislação ” se re­
sum e à fix a çã o de “dois objetos principais: a liberdade e a igualdade, sem pre os
m esm os, enquanto variam os recursos específicos em penhados em sua preserva­
ção conform e as específicas condições de cada caso concreto ”. O C apítulo X I I
estabelece uma divisão das leis que distingue as p olíticas das civis e das crim i­
nais, po rém não se encerra sem apaixonada referência — em que repercutem as
18 IN T R O D U Ç Ã O

concepções sobre o legislador — a uma quarta espécie de lei, “a m ais im portante


de todas, que não se grava no m árm ore, nem no bronze, m as nos corações dos
cid a d ã o s”. C om o dessas leis im ateriais decorre a “verdadeira constituição do
E stado ”, p o d e m o s concluir que, no m om ento em que se vê levado a examinar
p ro b lem a s m ais técnicos, Rousseau ju lg a necessário reafirm ar a im portância
capital do conteúdo ético da vida política.

L IV R O III

C ontrastando com a apaixonada reivindicação ética que acabam os de


sumariar, este livro, além de ser o m ais longo de todo o Contrato Social, é tam ­
bém o de m aiores am bições de exatidão sistem ática. D edicado inteiram ente ao
estudo do governo, propÕe-se a desenvolver as principais idéias à custa de símiles
m atem áticos, o que, longe de transm itir à p olítica o rigor dos números, torna
bastante nebulosas certas passagens e com unica ao conjunto um a im pressão algo
desapontadora. Parece necessário, neste passo, ir buscar o pen sam en to de R ou s­
seau p a ra além das preten sas equações de que se sentia tão orgulhoso.
D ed ica d o ao estudo do governo, abre-se o livro com dois capítulos em que
se exam ina a questão em term os gerais a fim de estabelecer um critério p ara a
avaliação das várias fo rm a s de organização governam ental. C om o não pa ssa de
sim ples corpo interm édio, p o s to entre o soberano e os súditos, o governo apre­
senta-se principalm ente com o um problem a de equilíbrio, p o is, se ja m a is deve
colocar-se abaixo das fo rç a s particulares, tam bém não deve tom ar p a ra si a fo rç a
do E stado. F irm ada tal distinção entre o p o d er executivo, m era “em anação ”, e a
com pleta realidade estatal — distinção que j á ao tem po de R ousseau, com o
ainda hoje, acusa os m aiores abusos po lítico s — , torna-se im possível dizer que,
em si m esm a, é melhor tal ou qual das fo rm a s de governo, expostas e ju lgadas do
C apítulo III ao C apítulo VII. D em ocracia, aristocracia e m onarquia, todas têm
suas vantagens peculiares para certos casos específicos, com o tem qualquer
delas, em outros casos, defeitos característicos. C ada uma — salvo, talvez, a
dem ocracia absoluta, que é praticam ente irrealizável — deverá, portan to, ser
avaliada segundo as condições do p o v o que as adota (capítulos VIII e X I), e se
o Contrato Social parece fixar-se preferencialm ente no índice oferecido pela
p o pu lação, desde logo reconheçam os que não se reduz ao sim ples censo numé­
rico d o s habitantes, p o is visa ao exam e de todo o com plexo das relações
dem o-econôm icas.
Um a vez estabelecida a conexão necessária da com posição e atividade do
p o v o com a fo rm a de governo, impÕe-se com preender que não se trata de um
nexo relacional estável e definitivo, p o is há uma natural tendência dos governos
à degenerescência (capítulos X a X V ). Sem pre tenta o governo tom ar o lugar e a
fo rç a do soberano. Daí, as duas fo rm a s de declínio: a contração do governo,
numa congestão do p o d er que o torna, p o r assim dizer, esclerótico, e a dissolu­
ção do E stado, num depauperam ento que se diria anem izante do organism o p o lí­
tico. E ssas m oléstias, a rigor, são incuráveis, porém um paliativo, bastante satis­
fa tó rio p a ra retardar-lhes os efeitos, p o d e ser encontrado na interrupção do
exercício do p o d er governam ental p elas assem bléias periódicas, que transfun­
dirão a fo rç a pu ra e autêntica da vontade geral no corpo debilitado. Por isso
IN T R O D U Ç Ã O 19

m esm o, não se adm item assem bléias com postas de representantes, isto é, o sim u­
lacro da deputação do p o d er do p o v o , p o is, com o sabem os, as vontades e,
conseqüentem ente, a vontade geral não se transm item .
D estinam -se os três capítulos fin a is do L ivro III a cuidar da instituição do
governo que, coerentem ente com o que j á sabem os desde o prim eiro livro, ja m a is
configura um contrato nem poderia obrigar ao soberano que, p ô r sua própria
natureza, não conhece superiores e não reconhece interesses particulares. Tal
afirm ação, a esta altura do livro, pro vo ca , contudo, uma séria dificuldade siste­
m ática, p o is obriga a distinguir a lei, que adota a fo r m a de governo, do ato de
escolha do chefe, o que só se resolve supondo, num recurso teorético, a assem ­
bléia em dupla fu n ção. E, novam ente, só as assem bléias periódicas podem con sti­
tuir rem édio contra as usurpações.

L IV R O IV

Iniciando-se o últim o livro com um capítulo sob o título “D e com o a Vonta­


de G eral é In destru tível”, im põe-se esclarecer que não nos defrontam os aqui com
uma tardia seqüência da prim eira p o rção do segundo livro, onde se tratou dos
atributos essenciais da soberania, m as apenas com uma conclusão do que se tra­
tou no L ivro III sobre as relações entre o governo e o soberano. E curiosa a loca­
lização desse trecho conclusivo no quarto livro, sobretudo se tiverm os em vista
que nos dem ais capítulos, entre os quais não se reconhece a m esm a unidade siste­
m ática e a m esm a coerência expositiva até agora constantes, surge uma série de
pon derações sobre certos problem as de minúcia, certas im plicações concretas do
fu ncionam ento da m áquina p o lítica que, fartam en te entrem eadas de referências
tom adas à história rom ana p o r interm édio de Sigonius, instigam a suspeita de
tratar-se de um aproveitam ento fragm en tário de p orções das Instituições que a
R ousseau custava abandonar.
A ssim vem os sucessivam ente abordados o s problem as do sufrágio (C apítulo
II) e das eleições (C apítulo III), onde ainda ressoam considerações sobre a legí­
tim a expressão da vontade geral, p ara logo toparm os com uma verdadeira m ono­
grafia sobre os com ícios rom anos (C apítulo IV), que se relaciona com o assunto,
m as dispensava tratam ento exaustivo. O “trib u n a to ”, palavra que Rousseau
em prega com significação m uito especial, e a ditadura (capítulos V e VI), ou seja,
os rem édios excepcionais a que se p o d e recorrer quando o E stado, am eaçado em
sua integridade, chega às bordas da crise, tam bém se ligam ao exem plo de R om a,
p o rém nele não encontram m ais do que inspiração p ara uma inédita fig u ra de
ditador-repúblico ja m a is vista na p rá tica e que parece significar o tem or de ver-se
irrem issivelm ente perd id a a essência do ente político. E, com o sem pre que cuida
do E stado em perigo, não p o d e R ousseau esquecer-se de seu conteúdo ético, p elo
que norm alm ente se passa, no C apítulo VII, à questão da censura que corres­
pon de, p a ra a opinião pública, ao que, p a ra a von tade geral, é a lei. N ão se bus­
que aí, contudo, a raiz da exposição sobre a religião civil que surge no capítulo
seguinte, fr u to de diversa inspiração e de circunstâncias distintas das responsá­
veis p elo m ais que se encontra nesse livro. E m bora não constitua, propriam ente,
um corpo estranho ao conjunto do Contrato Social, esse capítulo sem pre exigirá
estudo e com entário à parte. A final, o derradeiro capítulo não pa ssa de brevís-
20 IN T R O D U Ç Ã O

sim a conclusão em que, à guisa de escusa, R ousseau enumera o que não pôde
expor, isto é, o que constituiria o plano com pleto das Instituições Políticas.

4. Observações sobre o texto

N a revisão desta edição do Contrato Social, utilizam o-nos, p ara confronto, da


edição clássica de Vaughan 5, p o r ela ajustando as eventuais variantes, inclusive
no que respeita à pon tu ação e ortografia quando possu íam significação p ara a
transposição em português, com o, p o r exem plo, o em prego intençional da m aiús­
cula ou m inúscula inicial no vocábulo lei. N ão ignoram os as contribuições valio­
sas trazidas, posteriorm ente, p o r M aurice H albwachs, porém , não chegando
algum as a m odificar substancialm ente o sentido do texto de R ousseau e sendo
num erosas aquelas que tendem à reposição de maiúsculas e outras peculiari­
dades ortográficas à maneira do século X V III segundo a edição original, pareceu
m ais seguro ater-nos à versão de M anchester, considerada exem plar, inclusive
p elo s especialistas franceses, com o R o b ert D erathé, B ertrand D e Jouvenel e Pier­
re Burgelin, p a ra citar os que assinam trabalhos m ais recentes.
D e outra p a rte, a tradução, que procurou manter-se o m ais próxim o p o ssível
do original, em bora com algum sacrifício estilístico, f o i respeitada nesse intuito,
particu larm en te conform e à intenção de rigor sistem ático e exatidão expressiva
que, em bora nem sem pre plenam ente alcançada, constituiu a constante p reocu ­
p a ção de Jean-Jacques R ousseau ao redigir o Contrato Social.

6 Jean-Jacques Rousseau: Du Contrat Social ou Principes du Droit Politique, edited by C. E. Vaughan,


Manchester, 1947. (N. de L. G. M.)
DO CONTRATO SOCIAL
OU PRINCÍPIOS DO DIREITO POLÍTICO

Dicamus leges Foederis aequas

Virg. Eneida, lib. lib. XI. v. 3 2 12

1 N a ed ição D reyfus-B risac, fam osa por ser a prim eira a tentar a rep osição do texto segundo as
fontes originais, figura um fac-sím ile da prim eira folha do M a n u scrito d e G enebra, prim itivo e s­
b oço do C o n tra to S ocial. A í se encontram as m uitas variantes por que passou o título da obra.
Prim eiro, foi m esm o “ D o C on trato S o c ia l” . D ep o is, provavelm ente para fugir ao sabor ind ivi­
d u alista d essa expressão, foi ela riscada e substituída por “ D a Socied ade C iv il” . A seguir, c o n s­
ciente da originalidade de sua interpretação do esqu em a contratual, R ou sseau retom a o prim eiro
título. Q uan to ao subtítulo, encontram os su cessivam ente “ E nsaio sobre a C on stitu ição do E sta­
d o ” , “ E nsaio sobre a F orm ação do C orpo P o lítico ” , “ E nsaio sobre a F orm ação do E stad o” e
“ E nsaio sobre a F orm a da R epú blica” . “ Princípios do D ireito P o lítico ” é novidade que só surge
na versão definitiva do C o n tra to . (N . de L. G . M .)
2 A cita çã o em epígrafe é tom ada com grande largueza interpretativa, p ois o texto latino alude
expressam en te à igualdade de leis para os m em bros de um a alian ça entre p ovos ou n ações,
enquanto o objeto do livro que agora se inicia é a igualdade dos hom ens unidos em um corpo
p olítico pelo pacto social. (N . de L. G . M .)
A d v e r t ê n c ia

E ste pequeno tratado f o i extraído dum a obra m ais extensa3, outrora ini­
ciada sem que houvesse consultado minhas fo rç a s e de há muito abandonada.
D o s vários trechos que se po d ia m tom ar ao que estava fe ito , este é o m ais consi­
derável e pareceu-m e o m enos indigno de ser oferecido ao público. O resto não
m ais existe 4.

3 A lu são às In stitu içõ es P o lític a s, cujo destino aqui se sela. Seriam fragm entos da “obra m ais
exten sa” o m anuscrito de N euchâtel, sobre O E sta d o d e G u erra, outros textos m enores que V aug­
han a esse jun ta em sua co le çã o d os E sc rito s P o lític o s de R ou sseau , e, talvez, o s d ezesseis capítu­
los sobre a federação que d ’A ntraigues diz ler recebido do próprio R ou sseau e destruído por
cau sa de seu teor revolucionário. (N . de L. G . M.)
4 A sob revivên cia o casion al d os fragm entos referidos na nota anterior não desm ente e ssa afir­
m ação: R ou sseau desistira, em definitivo, das In stitu iç õ es e destruíra, delas, o que estava em suas
m ãos. “ R enunciando a essa obra, resolvi tirar dela o que se pod ia destacar, e queim ar todo o
resto.” (C o n fissõ es, II parte, livro X .) (N . de L. G . M .)
LIVRO PRIMEIRO
Quero indagar se pode existir, na nessa procura, para unir o que o direi­
ordem civil 5, alguma regra de adminis­ to permite ao que o interesse prescreve,
tração legítima e segura, tom ando os a fim de que não fiquem separadas a
homens com o são e as leis com o justiça e a u tilid ad e7.
podem ser6. Esforçar-me-ei sempre, Entro na matéria sem demonstrar a
importância de meu assunto. Pergun­
5 N ão se trata de estudar as relações de
tar-me-ão se sou príncipe ou legisla­
hom em a hom em , com o faria supor a expres­ dor, para escrever sobre política. R es­
são “ordem c ivil” , tão próxim a do que m oder­ pondo que não, e que por isso escrevo
nam ente é regulado pelo direito civil. O ob je­ sobre política. Se fosse príncipe ou
tivo em mira é a organ ização geral da
socied ade, o s seus princípios fundam entais e
legislador, não perderia meu tempo,
as regras institucionais do que hoje cham am os dizendo o que deve ser feito; haveria de
de “ordem pública” . (N . de L. G . M .) fazê-lo, ou calar-m e8.
6 A qui se encontram dois elem en tos substan­ Tendo nascido cidadão de um Esta­
c ia is do pensam ento de R ousseau:
do livre e membro do soberano9,em bora
l . a) Separa-se, neste pon to, de M ontesquieu,
p o is, se o E spírito d a s L e is procura c o m ­ fraca seja a influência que minha opi­
preender as leis tais com o existem para exp li­ nião possa ter nos negócios públicos, o
cá-las segundo as situações reais que as gera­ direito de neles votar basta para impor
ram , o C o n tra to S o c ia l procura o que as leis o dever de instruir-me a seu respeito,
“podem ser” e devem ser para corresponder às
v icissitu d es, individuais e c o letivas, d os “ h o ­
sentindo-me feliz todas as vezes que
m ens com o são” . R ou sseau parte, pois, do
conh ecim en to profundo e genérico do hom em 8 Se houve quem aproxim asse de tão ácida
para estabelecer as regras da organ ização recrim inação o s p ropósitos teóricos de Frede­
c on scien te da sociedade: “É preciso estudar a rico II, da Prússia, em seu A n ti-M aqu iavel,
socied ade pelos hom ens e o s h om ens pela resta lem brar que a referência pode ser e sten ­
socied ad e” , dirá o E m ílio (livro IV). dida a to d o s o s ch am ad os “ d ésp otas esc la r ec i­
2 o) O s objetivos am b iciosos de R ou sseau não d o s” , que, sem pre d isp ostos ao con vívio inte­
o levam a esquecer-se das con sid erações práti­ lectual com o s filó so fo s da liberdade e por
cas. D o s “ princípios de direito p o lítico ” , anun­ v ezes teorizan do, eles próprios, sobre o direito
c ia d o s no subtítulo e que serão abstratos e e o hom em , diversa atitude assum iam quando
genéricos, deverá decorrer “ um a regra de se tratava de exercer o poder de m ando. (N . de
adm inistração legítim a e segura” , isto é, ade­ L. G . M .)
quada aos h om ens e p osta ao alcan ce de sua 9 C id ad ão de G enebra, R ou sseau chegou a
ação im ediata. (N . de L. G . M .) tom ar parte num a reunião do C on selh o G eral
7 C f. n o ta anterior, 2 .a parte. N em puram ente daq uela república, quando de sua viagem de
teórico, nem exclusivam ente utilitário, R o u s­ 1754. Para tanto, tivera de voltar ao p rotestan­
seau deseja princípio e ação atendidos a um só tism o, m as sentira-se, então, “ m em bro do
tem po. (N . de L. G . M.) sob erano” . (N . de L. G . M.)
28 R O U SSE A U

medito sobre os governos, por sempre tivos para amar o governo do meu
encontrar, em minhas cogitações, mo- país P 0
1 0 A p esar da indiferença e, d ep ois, da h ostili­ na E c o n o m ia P o lític a : “ . . . para expor aqui o
dade de seus co n cid a d ã o s, R ou sseau sempre sistem a econ ôm ico de um bom governo,
m anteve G en eb ra com o m odelo de república. freqüentem ente voltei o s o lh o s para o desta
Para tanto, deveu idealizar bastante a reali­
república” . . . A gora, faz n o v a referência ao
dade genebrina, cuja estrutura constitucional,
caso m odelar. E só se calará d ep ois de sua
segundo certos com en taristas, não con h ecia
bem . E xalta G en eb ra na “ D ed icatória” do con d en ação pelo G overno genebrino. (N . de L.
D isc u rso so b re a D e sig u a ld a d e . N ã o a esquece G . M .)

C a p it u l o I

Objeto deste primeiro livro

•O homem nasce livre11, e por toda a tal mudança? Ignoro-o12. Que poderá
parte encontra-se a ferros. O que se crê legitimá-la? Creio poder resolver esta
senhor dos demais, não deixa de ser questão13.
mais escravo do que eles. Com o adveio Se considerasse somente a força e o
efeito que dela resulta, diria: “ Quando
11 Por c a u sa d essa expressão, graves equívo­ um povo é obrigado a obedecer e o faz,
co s têm prejudicado a interpretação do pen sa­
m ento de R ou sseau e, em particular, do C o n ­
age acertadamente; assim que pode
tra to S o c ia l. D e fato, aqui não se trata apenas sacudir esse jugo e o faz, age melhor
da liberdade (m elhor diríam os: da irrestrição)
ainda, porque, recuperando a liberdade
individual, da qual já se cuidou no D isc u rso
so b re a D e sig u a ld a d e , com claro e preciso sen­ pelo mesmo direito por que lha arreba­
tido. O ob jetivo prim ordial do C o n tra to S o c ia l taram, ou tem ele o direito de retomá-
está em assentar as bases sobre as quais legiti­
m am ente se p o ssa efetuar a passagem da liber­ la ou não o tinham de subtraí-la” . A
dade natural à liberdade con ven cion al, com o ordem social, porém, é um direito
m ais adiante se verá. N ão obstante, essa
expressão genérica, p osta à entrada do texto e sagrado1 4 que serve de base a todos os
antes de estabelecer-se o sentido dos term os outros1 5. Tal direito, no entanto, não
que a com põern, leva a pensar num a defesa do se origina da natureza1 6: funda-se,
in d ivid u alism o, quando em verdade se inicia
um a e x p o siç ã o acerca da organ ização social.
(N . de L. G . M .) 1 4 “ Sagrado”, nesse pon to, n ão constitui
12 N ã o o ignora. T am p ou co o esqueceu, palavra vã ou m ero reforço literário da frase.
co m o algun s desejam supor. A interpretação A í figura para significar algo superior ao indi­
histórico-conjetural estabelecid a no segundo víduo e que, não obstante, se p rocessa no pró­
D isc u r so está presente ao espírito de R ousseau prio hom em : sua transfiguração pelo social.
e o guiará através de todo o C o n tra to S ocial. N a E co n o m ia P o lític a há alu são à “m ais subJi-
A co n tece, porém , que agora deseja deixar de m e de todas as instituições hu m anas” que
lado as interpretações de fatos para lançar-se cap acita a criatura a “ im itar cá em baixo o s
ao problem a p olítico no plano da m oral racio­ decretos im utáveis da D ivin d ad e” e à im pres­
nal. (N . de L. G . M .) são que tem os, em face de seus resultados, de
13 V. nota anterior. Se o segundo D isc u rso um a “ inspiração celeste” . E ssa im agem aqui
registrara a passagem da liberdade natural à reaparece. (N . de L. G . M .)
servidão civil, o que era um “fato” , e o m esm o 1 5 A afirm ação ressurge, m ais clara ainda, no
fato a que se refere a prim eira frase deste capí­ capítulo IX , prim eiro parágrafo.
tulo, agora se buscará estabelecer em que c o n ­ 1 6 Isto é, não se origina na natureza funda­
d ições a m esm a transição poderá fazer-se mental do hom em , no substrato físico e m ental
legitim am ente, isto é, em favor da liberdade. do indivíduo considerado em si m esm o. (N . de
(N . de L. G . M .) L. G . M .)
D O C O N T R A T O SO C IAL I 29

portanto, em convenções1 7. Trata-se, preciso deixar estabelecido o que


pois, de saber que convenções são acabo de adiantar18.
essas. Antes de alcançar esse ponto,
18 N o s quatro capítulos seguintes (II a V)
1 7 Isto é, na sociedade organizad a de form a desenvolver-se-á o que, à m aneira de p rop osi­
con scien te e aceita voluntariam ente. “ C o n v en ­ çã o , aqui se apresenta num a form a, é verdade,
p ou co precisa e d em asiado condensada. E ntão,
cio n a l” e “natural” (v. nota anterior) opõem -
far-se-á a refutação das várias doutrinas que se
se, na linguagem rousseauniana, para m arcar a propõem a justificar a servidão civil. N o
diferença entre o que é obra da vida em so c ie ­ fundo, tudo se reduz a um a alternativa: ou a
dade e da con sciên cia daí resultante para o diferença entre governantes e govern ados se
hom em , e o que se deriva dos im pulsos natu­ exp lica pela superioridade natural de alguns,
rais do indivíduo que, supostam ente, vivesse ou a autoridade é o resultado de um a c o n v en ­
em isolam ento. (N . de L. G . M .) ção. (N . de L. G . M .)

Ca p ítu lo II

D as primeiras sociedades

A mais antiga de todas as socieda­ Essa liberdade comum é uma conse­


des, e a única natural1 9, é a da família; qüência da natureza do homem20. Sua
ainda assim só se prendem os filhos ao primeira lei consiste em zelar pela pró­
pai enquanto dele necessitam para a pria conservação, seus primeiros cui­
própria conservação. Desde que tal dados são aqueles que se deve a si
necessidade cessa, desfaz-se o liame mesmo, e, assim que alcança a idade
natural. Os filhos, isentos da obe­ da razão, sendo o único juiz dos meios
diência que devem ao pai, e este, isento adequados para conservar-se, torna-se,
dos cuidados que deve aos filhos, vol­ por isso, senhor de si.
tam todos a ser igualmente indepen­ A família é, pois, se assim se qui­
dentes. Se continuam unidos, já não é ser2 1, o primeiro modelo das socieda­
natural, mas voluntariamente, e a pró­ des políticas: o chefe é a imagem do
pria família só se mantém por conven­
ção.
20 Em sua ed ição do C o n tra to , G eorges
Beaulavon anotou que, com essa referência à
1 9 Em R ou sseau, o con ceito de “ natural” in­ natureza hum ana, R ou sseau não apela para
clui o de “ necessário”, com o no caso da fam í­ qualquer n oção m etafísica, baseando-se ape­
lia que é decorrência irrem issível da n ecessi­ nas nas co n d içõ es fisio ló g ica s e p sico ló g ica s
dade instintiva. A E c o n o m ia P o lític a já da vida individual. T anto bastou para que se
cuidara da fam ília e o M a n u scrito de G en ebra interpretasse esse com entário com o sendo um a
rejeita qualquer influência d esse “ m od elo” na restrição (v. Jacques M aritain, em T rês R e fo r­
orga n iza çã o geral da sociedade: “ É, p ois, certo m a d o res, e F ran çois B ouchardy, em sua ed i­
que o liam e social da C idade não pôde, nem ção do C o n tra to ), quando B eaulavon tão-só
deveu form ar-se por extensão do da fam ília, desejou assinalar que o s dad os p sicofisio-
nem pelo m esm o m od elo” . A qui se adm ite ló g ico s bastam para caracterizar o trânsito da
um a ap roxim ação, porém m eram ente ilustra­ liberdade, originalm ente preservada p elos ins­
tiva e sublinhando que m esm o o grupo fam i­ tintos e n ecessid ad es, à liberdade ju stificad a,
lial, no concernente à sua continuid ade, d epen­ dirigida e, tam bém , lim itada pela razão. (N . de
de d a con ven ção. R epele-se, p ois, a con cep ção L. G . M .)
aristotélica — “ a a sso cia çã o natural de todos 21 R ou sseau desiste de sua o p o siç ã o ao “ m o ­
o s m om en tos é a fam ília” -— de que dessa d e lo ” da fam ília, desde que já dem onstrou ser
socied ad e prim ária se derivam tod as as de esta, em seus asp ectos estáveis, um a socied ad e
m ais. (N . de L. G . M.) con ven cion al. (N . de L. G. M.)
30 R O U SSE A U

pai; o povo, a dos filhos, e todos, tendo nião de H obbes2 5. Vem os assim, a
nascido iguais e livres, só alienam sua espécie humana dividida com o mana­
liberdade em proveito próprio. A dife­ das de gado, tendo cada uma seu chefe,
rença toda está em que, na família, o que a guarda para devorá-la.
amor do pai pelos filhos o paga pelos Assim com o um pastor é de natu­
cuidados que lhes dispensa, enquanto reza superior à de seu rebanho, os pas­
no Estado o prazer de mandar substi­ tores de homens, que são os chefes,
também possuem natureza superior à
tui tal amor, que o chefe não dedica a
de seus povos. D esse m odo — segundo
seus povos.
F ilo2 6 — raciocinava o imperador
G rotius22 nega que todo o poder hu­ Calígula, chegando, por essa analogia,
mano se estabeleça em favor daqueles à fácil conclusão de que os reis eram
que são governados: cita, com o exem­ deuses, ou os povos, animais.
plo, a escravidão23. Sua maneira mais O raciocínio de Calígula leva ao de
comum de raciocinar é sempre estabe­ Hobbes e ao de Grotius. Aristóteles,
lecer o direito pelo fato2 4. Poder-se-ia antes de todos eles, também dissera
recorrer a método mais conseqüente, que os homens em absoluto não são
não, porém, m ais favorável aos tira­ naturalmente iguais, mas nascem uns
nos. destinados à escravidão e outros à
dom inação2 7.
Resta, pois, em dúvida, segundo
Aristóteles tinha razão, mas tom ava
Grotius, se o gênero humano pertence
o efeito pela causa. Todo homem nas­
a uma centena de homens ou se esses cido na escravidão, nasce para ela;
cem hom ens pertencem ao genêro nada mais certo. Os escravos tudo per­
humano. N o decorrer de todo o seu dem sob seus grilhões, até o desejo de
livro parece inclinar-se pela primeira
suposição, sendo essa também a opi­ 2 5 H obbes tem im portantes p on tos de contato
com R ou sseau, podendo m esm o ser tido com o
22 O D ire ito d a P a z e d a G uerra, de G rotius, seu direto inspirador no respeitante ao c o n ­
m antinha inabalável seu prestígio já secular. ceito de um a natureza hu m ana prim ária e
C om b aten d o-o frontalm ente, R ou sseau aqui fundam ental, considerada à m argem das trans­
contradiz o capítulo III do livro I, onde se afir­ form ações trazidas pela vida em sociedade.
m a que o poder pode estabelecer-se em pro­ N ã o obstante, com o con clu i afirm ando que o
veito de quem o exerce. (N . de L. G. M .) poder se funda no m edo e na força, R ou sseau
insiste em repudiar explicitam en te sua con cep ­
23 A b an d on an d o o “ m od elo” da fam ília,
ção política. (N . de L. G . M .)
R ou sseau p a ssa agora ao caso da escravidão
que o s tratad istas, com o o m esm o G rotius, pu­ 2 6 F ilo de A lexandria, ou F ilo , o Hebreu,
nham em paralelo com o poder político. (N . de relata, no D e L eg a tio n e, o interesse de C alí­
gu la por dem onstrar possuir natureza superior
L. G . M .)
à de seus súditos, porquanto “n ascid o para um
2 4 “ A s perquirições eruditas sobre o direito
destino m ais alto e m ais d iv in o ” , para o que se
pú blico freqüentem ente não passam da história
serviu do paralelo com o s pastores. (N . d c L.
de antigos abu sos, e tem -se porfiado intem pes­ G .M .)
tivam ente por sua cau sa quando se dá o tra­
balho de estud á-las em d em asia.” (T ra ité des 2 7 “ A natureza, para atender à con servação,
criou certos seres para com andar e outros para
In té rê ts de la F ran ce a v ec ses V oisins, pelo Sr.
obedecer. É que ela quis que o ser dotado de
M arquês d’A rgen son , im presso por R ey, em
razão e previsão ordenasse com o senhor, e que
A m sterdam .) F oi precisam ente isso que se p as­ o ser capaz, por suas faculdades corpóreas, de
sou com G rotius*. (N . do A .) executar ordens, ob ed ecesse com o escravo;
* O livro de d ’A rgen son , que então circu lava assim se confundem o interesse do senhor e o
m anuscrito, foi pu blicad o pelo editor R ey, de do escravo.” (A ristóteles, P o lítica, 1. I, c. I.)
A m sterdam , em 1765. (N . de L. G . M .) (N . de L. G . M.)
D O C O N T R A T O SO C IAL I 31

escapar deles; amam o cativeiro com o verso, com o o fizeram os filhos de


os companheiros de U lisses amavam o Saturno, que muitos julgaram reconhe­
seu embrutecimento28. Se há, pois, cer neles. Espero que apreciem minha
escravos pela natureza, é porque houve moderação, pois, descendendo direta­
escravos contra a natureza. A força fez mente de um desses príncipes, e talvez
os primeiros escravos, sua covardia os do ramo mais velho, quem sabe se não
perpetuou29. chegaria, depois da verificação dos tí­
Nada disse do rei Adão, nem do tulos, à conclusão de ser eu o legítimo
imperador N oé, pai dos três grandes rei do gênero humano? Seja com o for,
monarcas que dividiram entre si o uni- não se pode deixar de concordar quan­
to a ter sido Adão o soberano do
2 8 Ver um pequeno tratado de P lutarco intitu­
mundo, com o o foi Robinson em sua
lado O s A n im a is U sam a R a zã o . (N . do A .) ilha30, por isso que era único habitante
29 B eaulavon anota co m o , n essa passagem , da terra, e o que havia de côm odo
R ou sseau inova a teoria política quando se re­ nesse império era o monarca, firme em
cu sa a reconhecer nas deficiên cias reais de cer­ seu trono, não temer rebeliões, guerras
tos hom ens um a justificativa para a d im inu i­
ou conspiradores.
ç ã o de seus direitos. Lem brem os, apenas, que,
n esse tem po, V oltaire, o revolucionário V oltai­
re, defendia G rotius das críticas desse capítulo, 30 Sim ples referência irônica, a alusão a
dizen d o que o direito do m ais forte é um a infe­ R ob in son contud o vale com o dem onstração
licidade ligada à m iserável natureza do h o ­ do antiindividualism o de R ousseau. (N . de L.
m em . . . (N . de L. G. M .) G . M .)

C a p it u l o III

D o direito do mais forte

O mais forte nunca é suficiente­ aparentemente tom ado com ironia e na


mente forte para ser sempre o senhor, realidade estabelecido como princípio.
senão transformando sua força em Jamais alcançaremos uma explicação
direito e a obediência em dever. D aí o dessa palavra? A força é um poder físi­
direito do mais forte31 — direito co; não imagino que moralidade possa
resultar de seus efeitos. Ceder à força
31 R esum indo em duas frases as teorias de constitui ato de necessidade, não de
H ob b es, R ou sseau aqui enfrentará um a das vontade; quando muito, ato de prudên­
m ais fortes tendências do século X V III, quan­ cia. Em que sentido poderá representar
do havia afirm ações teóricas contra o direito
da força — com o as de Burlam aqui, em seus
um dever?
P rin c íp io s d e D ire ito N atu ral, de 1747, que Suponham os, por um momento, esse
R ou sseau leu — m as, na prática, to d o s se d is­ pretenso direito. Afirmo que ele só
punham a aceitar o fato con su m ad o do poder redundará em inexplicável galima-
do m ais forte. C inicam en te, G rim m escrevia a tias32, pois, desde que a força faz o
D iderot, em dezem bro de 1765, referindo-se ao
C o n tra to : “ N ã o sejam os crianças e não tenha­
direito, o efeito tom a lugar da causa —
m os m edo das palavras. D e fato, não há outro toda a força que sobrepujar a primeira,
direito no m undo além do direito do m ais forte sucedê-la-á nesse direito. D esde que se
e, é preciso d izê-lo, esse direito é o único legíti­ pode desobedecer impunemente, tor-
m o ” . R ou sseau , a seguir, assin ala o contraste
entre as ironias dos pretensos defensores da
liberdade e sua passividade real diante d os 32 G alim atias: discurso incom preensível. (N .
p od erosos. (N . de L. G. M.) de L. G . M .)
32 R O U SSEA U

na-se legítimo fazê-lo e, visto que o bido chamar o m édico? Quando um


mais forte tem sempre razão, basta bandido me ataca num recanto da flo­
somente agir de modo a ser o mais resta, não somente sou obrigado a
forte. Ora, que direito será esse, que dar-lhe minha bolsa, mas, se pudera
perece quando cessa a força? Se se salvá-la, estaria obrigado em cons­
impõe obedecer pela força, não se tem ciência a dá-la, visto que, enfim, a pis­
necessidade de obedecer por dever, e, tola do bandido também é um poder?
se não se for m ais forçado a obedecer, Convenhamos, pois, em que a força
já não se estará mais obrigado a fazê- não faz o direito e que só se é obrigado
lo. Vê-se, pois, que a palavra direito a obedecer aos poderes legítimos.
nada acrescenta à força — nesse D esse modo, está sempre de pé minha
passo, não significa absolutamente pergunta inicial3 5.
nada33.
Obedecei aos poderes. Se isso quer 3 4 R eferência quase textual ao início do versí­
dizer — cedei à força, o preceito é culo 13 da E pístola de São P aulo aos R om a­
bom, mas supérfluo; sustento que ja­ n os, por interm édio de cuja crítica R ou sseau
deseja refutar todas as doutrinas que fundam o
mais será violado. Reconheço que todo poder na vontade de D eu s. Se o s versados no
o poder vem de D eus3 4, mas também assunto afirmam que a E pístola não tem senti­
todas as doenças. Por isso será proi- do desp ótico e, por isso, aparece m al interpre­
tada nesse trecho, com isso apenas reforçam a
33 D ireito, no vocab u lário de R ou sseau , cor­ o p o siç ã o de R ou sseau às teorias do “direito
responde exatam ente a um con ceito m oral fun­ d ivin o” postas a serviço do absolu tism o. (N .
dado na razão. U m fato não faz, nem desfaz de L. G . M .)
um direito, p ois o direito deriva da con vicção 3 5 Isto é, que fundam ento legítim o têm a obri­
de serem ou não legítim os determ inados fatos. ga ção m oral de obedecer e o direito da autori­
( N . d e L . G . M .) dade a fazer-se obedecid a? (N . de L. G . M .)

C a p itu lo IV

D a escravidão

Visto que homem algum tem autori­ vo de um senhor, por que não o pode­
dade natural sobre seus semelhantes e ria fazer todo um povo e tornar-se sú­
que a força não produz qualquer direi­ dito de um rei?3 7 N essa frase existem
to, só restam as convenções com o base muitas palavras equívocas a exigir
de toda a autoridade legítima existente explicação, mas prendamo-nos só à
entre os hom ens3 6. palavra alienar. Alienar é dar ou ven­
Se um particular, diz Grotius, pode der. Ora, um homem, que se faz escra­
alienar sua liberdade e tornar-se escra- vo de um outro, não se dá; quando
muito, vende-se pela subsistência. Mas
3 6 V oltam os ao tem a central do C o n tra to , tal
um povo, por que se venderia? O rei,
co m o se propôs no capítulo inicial. M as não se longe de prover à subsistência de seus
refutaram tod as as teorias d esp óticas. Se a súditos, apenas dele tira a sua e, de
autoridade não se ju stifica nem pela força nem acordo com Rabelais, um rei não vive
pela vontad e de D eu s, provirá de um a con ven ­ com pouco. Os súditos dão, pois, a sua
ç ã o , m as desde logo se im põe dem onstrar que
tal con ven ção não im porta na total renúncia à
liberdade. A ssim pensava G rotius e, seguindo- 3 7 R esu m o de idéias que se encontram no
o, a m aior parte d os adeptos da esc o la do D ire ito d a P a z e d a G uerra, 1. I, c. III, e 1. III,
direito natural. (N . de L. G . M .) c. VII. (N . de L. G . M.)
D O C O N T R A T O SO C IAL I 33

pessoa sob a condição de que se sua conservação e seu bem-estar, mas


tomem também seus bens? N ão vejo o não pode dá-los irrevogável e incondi­
que lhes resta. cionalmente, porque uma tal doação é
D irão que o déspota assegura aos contrária aos fins da natureza40 e
súditos a tranqüilidade civil. Seja, mas ultrapassa os direitos da paternidade.
qual a vantagem para eles, se as guer­ Seria pois necessário, para que um
ras em que são lançados pela ambição governo arbitrário fosse legítimo, que
do déspota, a sua insaciável avidez, as o povo, em cada geração, fosse senhor
vexações impostas pelo seu ministério de aceitá-lo ou rejeitá-lo, mas, então,
os arruinam mais do que as próprias esse governo não mais seria arbitrário.
dissensões? Que ganham com isso, se Renunciar à liberdade é renunciar à
mesmo essa tranqüilidade é uma de qualidade de homem 41, aos direitos da
suas misérias? Vive-se tranqüilo tam­ humanidade, e até aos próprios deve­
bém nas masmorras e tanto bastará res. Não há recompensa possível para
para que nos sintamos bem nelas? Os quem a tudo renuncia. Tal renúncia
gregos, encerrados no antro do C iclo­ não se com padece com a natureza do
pe, viviam tranqüilos, esperando a vez homem, e destituir-se voluntariamente
de ser devorados38. de toda e qualquer liberdade equivale a
Afirmar que um homem se dá excluir a moralidade de suas ações.
gratuitamente constitui uma afirmação Enfim, é uma inútil e contraditória
absurda e inconcebível; tal ato é ilegí­ convenção a que, de um lado, estipula
timo e nulo, tão-só porque aquele que uma autoridade absoluta, e, de outro,
o pratica não se encontra no com pleto uma obediência sem limites. Não está
domínio de seus sentidos. Afirmar a
claro que não se tem com prom isso
mesma coisa de todo um povo, é supor
algum com aqueles de quem se tem o
um povo de loucos: a loucura não cria
direito de tudo exigir? E essa condição
direito.
única, sem equivalente, sem com pensa­
M esmo quando cada um pudesse
ção, não levará à nulidade do ato?
alienar-se a si mesmo, não poderia
Pois que direito meu escravo terá con ­
alienar seus filhos39, pois estes nascem
tra mim, desde que tudo que possui me
homens e livres, sua liberdade perten­
pertence e desde que, sendo meu o seu
ce-lhes e ninguém, senão eles, goza do
direito, esse direito meu contra mim
direito de dispor dela. Antes que che­
mesmo passa a constituir uma palavra
guem à idade da razão, o pai, em seu
sem qualquer sentido?
nome, pode estipular condições para
Grotius e outros autores encontram
na guerra outra origem do pretenso
38 E ssa im agem de U lisse s e seus com p a­
nheiros na caverna de P olifem o é tom ada a
direito de escravidão. Tendo o vence­
L ock e, m as o ardor polêm ico de R ou sseau ju s­ dor, segundo eles, o direito de matar o
tifica lem brar o raciocín io teórico sim b oli­ vencido, este pode resgatar a vida pelo
zado: talvez a garantia de um a ordem perfeita­ preço da sua liberdade, convenção
m ente pacífica valesse o sacrifício da
liberdade, porém e ssa m esm a renúncia im pedi­
ria qualquer reclam ação contra o chefe que 40 C ab e, no c a so , referir-se à natureza antes e
prom etera a paz. (N . de L. G . M .) acim a do direito, porque, sendo natural a auto­
39 Para G rotius, a alienação voluntária da ridade do pai, só nesse plano se legitim a. (N .
liberdade obrigaria tam bém aos descendentes de L. G . M .)
do contratante. R ou sseau , provavelm ente 41 C om o já se viu no segundo D isc u r so e
ap oian d o-se em M ontesquieu (D o E sp írito d a s c o m o se verá no E m ílio, o hom em , m ais ainda
L eis, 1. X V , c. I-IV), m ais adiante protestará do que pela sensibilidade e pela razão, ca ra cte­
contra esse despautério. (N . de L. G . M .) riza-se pela vontade livre. (N . de L. G . M .)
34 R O U SSEA U

tanto mais legítima quanto resulta em rio aos princípios do Direito Natural e
proveito de ambas as partes42. a qualquer b o a p o litia 4 4.
É claro que esse pretenso direito de A guerra não representa, pois, de
matar os vencidos de modo algum modo algum, uma relação de homem
resulta do estado de guerra43. Apenas para homem, mas uma relação de Es­
porque, vivendo em sua primitiva tado para Estado, na qual os particu­
independência, não mantêm entre si lares só acidentalmente se tornam ini­
uma relação suficientemente constante migos, não o sendo nem com o homens,
para constituir quer o estado de paz nem com o cid ad ãos4 5, mas com o sol
quer o de guerra, os homens em abso­ dados, e não com o membros da pátria,
luto não são naturalmente inimigos. É mas com o seus defensores. Enfim,
a relação entre as coisas e não a rela­ cada Estado só pode ter com o inimigos
ção entre os homens que gera a guerra, outros Estados e não homens, pois que
e, não podendo o estado de guerra não se pode estabelecer qualquer rela­
originar-se de simples relações pes­ ção verdadeira entre coisas de natu­
soais, mas unicamente das relações reza diversa.
reais, não pode existir a guerra particu­ Esse princípio está mesmo de acor­
lar ou de homem para homem, nem no do com as máximas estabelecidas em
estado de natureza, no qual não há
propriedade constante, nem no estado 4 4 R ou sseau serviu-se da transcrição francesa
literal da “p oliteia” grega, grafando “ p olitie” .
social, em que tudo se encontra sob a
O -mesmo recurso, em português, daria am bi­
autoridade das leis. güidade com o vocáb u lo “p o lícia ” . Em co n se­
Os com bates particulares, os duelos, qüência, adotam os o latino “p o litia ” , de acep­
os recontros são atos que de maneira ção m uito próxim a à desejada por
alguma constituem um estado; quanto R ousseau. N um a carta ao editor R ey, R o u s­
seau recom enda que evite con fu sões de “ p oli­
às guerras privadas, autorizadas pelas
tie” com “ politiq ue” . (N . da T.)
ordenações de Luís IX, rei de França, 4 5 Os rom anos que, m ais do que qualquer
e suspensas pela Paz de Deus, são outra nação do m undo, com preenderam e
abusos do governo feudal, sistema respeitaram o direito da guerra, levavam tão
absurdo, se jam ais foi sistema, contrá- longe os escrúpulos a tal respeito, que não se
perm itia a um cid adão servir com o voluntário
sem ter-se alistado expressam ente contra o ini­
m igo e nom inalm ente contra certo inim igo.
42 A ssim raciocin a G rotius no D ire ito da P az T endo sido reform ada a legião em que C atão,
(1. III, c. VII), n isso seguido por Pufendorf, no o M oço, sob o com ando de P op ílio, se iniciava
D o s D e v e re s do H o m em e do C id a d ã o (1. II, c. na guerra. C atão, o V elho, escreveu a Popílio
I). L ocke vai m ais longe, acreditando en con ­ que, se desejasse a con tin u ação de serviço de
trar fundam ento para a escravidão não só no seu filho, se tornava necessária a prestação de
direito das gentes, m as tam bém no direito novo juram ento m ilitar, visto que, estando o
natural. (N . de L. G . M.) prim eiro anulado, não pod ia m ais voltar as
43 A argum entação, que reaparece em outros arm as contra o inim igo. O m esm o C atão
textos, tem sua form a m ais explícita e con vin ­ escreveu ao filho recom endando-lhe que se
cente no fragm ento sobre O E sta d o de G uerra, abstivesse de entrar em com bate, enquanto não
no m anuscrito de N euchâtel. A ssim pode ser tivesse prestado novo juram ento. Sei que pod e­
resum ida: 1.°) a guerra, enquanto choque rão contraditar-m e com o sítio de C lusium e
entre duas fòrças, não cria direito porque não outros fatos particulares, m as o que faço é
o cria a força; 2.°) se houver um direito da citar leis e costum es. O s rom anos são aqueles
guerra, esta passará a representar um a relação que m enos freqüentem ente transgrediram suas
entre dois seres m orais que não alcan ça aos leis e foram o s únicos a tê-las tão belas*. (N .
indivíduos, sendo a disputa, adem ais, referente do A .)
a interesses reais e não pessoais. (N . de L. G. * E ssa nota só aparece nas edições do C o n ­
M .) tra to a partir de 1782. (N . de L. G. M.)
D O C O N T R A T O SO C IAL I 35

todos os tempos e com a prática cons­ direito de matá-lo, constituindo, pois,


tante dos povos civilizados. A s decla­ troca iníqua o fazê-lo comprar, pelo
rações de guerra são avisos menos às preço da liberdade, sua vida, sobre a
potências do que a seus vassalos. O qual não se tem qualquer direito. Não
estrangeiro, seja rei, particular ou é claro que se cai num círculo vicioso
povo, que rouba, mata ou detém os sú­ fundando o direito de vida e de morte
ditos, sem de início declarar guerra ao no de escravidão, e o direito de escra­
príncipe, não é um inimigo, é um ban­ vidão no de vida e de morte?
dido. Um príncipe justo, mesmo em
Supondo-se mesmo a existência
plena guerra, apossa-se de tudo o que
desse terrível direito de tudo matar,
pertence ao público *em país inimigo,
afirmo que um escravo feito na guerra
mas respeita as pessoas e os bens dos
ou um povo dominado não tem qual­
particulares; ele respeita os direitos
quer obrigação para com seu senhor,
sobre os quais os seus se fundam.
senão obedecê-lo enquanto a isso é for­
Estando o fim da guerra na destruição
çado. O vencedor não lhe concedeu
do Estado inimigo, tem-se o direito de
graça ao tomar um equivalente da sua
matar, no seu curso, os defensores
vida; em lugar de matá-lo sem provei­
enquanto estiverem de armas na mão;
to, matou-o utilmente. Longe, pois,’ de
no momento, porém, em que as de­
ter adquirido sobre ele qualquer autori­
põem e se rendem, deixando de ser ini­
dade além da força, persiste entre eles,
m igos ou seus instrumentos, tornam-se
com o anteriormente, o estado de guer­
simplesmente homens, não mais se
ra, sendo a própria relação entre eles
tendo direito à sua vida. Algum as
um efeito desse estado, e o gozo do
vezes, pode-se eliminar o Estado sem
direito de guerra não supõe qualquer
matar um único de seus membros; ora,
tratado de paz. Firmaram uma conven­
a guerra não concede nenhum direito ção — seja4 7 ; mas essa convenção,
que não os necessários à sua finali­ longe de destruir o estado de guerra,
dade. Esses princípios não são os de supõe sua continuidade48.
Grotius, não se fundamentam na auto­ Assim , seja qual for o modo de
ridade dos p o eta s4 6, mas derivam da encarar as coisas, nulo é o direito de
natureza daá coisas e se fundam na escravidão não só por ser ilegítimo,
razão. mas por ser absurdo e nada significar.
Relativamente ao direito de conquis­ A s palavras escravidão e direito são
ta, não dispõe ele de outro fundamento contraditórias, excluem-se mutua­
além da lei do mais forte. Se a guerra mente. Quer de um homem a outro,
não confere jam ais .a o vencedor • o quer de um homem a um povo, será
direito de massacrar os povos venci­ sempre igualmente insensato este dis­
dos, esse direito, que ele não tem, não curso: “E stabeleço contigo um a con­
poderá servir de base ao direito de venção fica n d o tudo a teu cargo e tudo
escravizá-los. Só se tem o direito de
matar o inimigo quando não se pode 4 7 U m a con ven ção, contud o, que se fundou
torná-lo escravo; logo, o direito de na n egação do elem ento essencial das con ven ­
transformá-lo em escravo não vem do ções — a vontade livre das partes — e que
consagra essa m esm a negação. (N . de L. G .
M .)
4 6 C o m o o s eruditos de seu tem po, G rotius 48 L ocke considera a escravidão co m o “ o e s­
valia-se de citações da Bíblia, d os historia­ tado de guerra continuado entre o legítim o
d ores e poetas antigos em suas argum entações. conquistador e o prisioneiro”. (G o v e rn o C ivil,
(N . de L. G . M.) c. II.) (N . de L. G. M.)
36 R O U SSE A U

em meu p ro veito , convenção essa a e que tu observarás enquanto f o r do


que obedecerei enquanto m e aprouver meu agrado

C a p itu lo V

D e com o é sempre preciso remontar a uma


convenção anterior

A inda que houvera concordado com existe nem bem público, nem corpo
tudo que até aqui refutei, não se encon­ p o lítico 51. M esmo que tal homem do­
trariam em melhor situação os fautores mine a metade do mundo, sempre será
do despotism o 4 9. Haverá sempre gran­ um particular; seu interesse, isolado do
dos outros, será sempre um interesse
de diferença entre subjugar uma multi­
privado. Se esse homem vem a perecer,
dão e reger uma sociedade. Sejam ho­ seu império, depois dele, fica esparso e
mens isolados, quantos possam ser sem ligação, com o um carvalho, de­
subm etidos sucessivamente a um só, e pois de consumido pelo fogo, se desfaz
não verei nisso senão um senhor e e se transforma num monte de cinzas.
escravos, de modo algum consideran­ Um povo, diz G rotiu s52, pode dar­
do-os um povo e seu chefe. Trata-se, se a um rei. Portanto, segundo Grotius,
caso se queira, de uma agregação, mas um povo é povo antes de dar-se a um
não de uma a sso cia çã o 50; nela não rei. Essa doação mesma é um ato civil,
supõe uma deliberação pública. Antes,
49 “ F au tores do d esp otism o” são H obbes,
G rotiu s e o s m ais até aqui refutados. C onvém m ente. E ntão a relação puram ente física que se
esclarecer que R ou sseau a eles se opõe não pode supor num sim ples agregado cederá lugar
porque afirm em que o poder político é superior a valores e padrões de com portam ento defini­
ao indivíduo, m as porque nessa superioridade dores de um verdadeiro grupo social. (N . de L.
de fato encontram razão suficiente para im ­ G . M .)
por-se o m ando ao súdito. O C o n tra to busca 51 N o contexto social, a que alud im os na
saber c o m o tal im p osição do poder pode tor­ nota anterior, o bem com um é n o çã o coletiva,
nar-se legítim a e, conseqüentem ente, quando incluindo-se, por isso m esm o, na con sciên cia
há (ou n ã o ) o direito de im por-se aos hom ens o de cada um, e todas as d ecisõ es, visando a
poder do E stado. (N . de L. G . M.) atendê-lo, serão d ecisões de um “ corp o p olíti­
50 N a o p o siç ã o de “ agregação” a “ a sso cia ­ c o ” , isto é, de um a socied ade con scien te de sua
ç ã o ” , C . E. V aughan encontra, em germ e, todo unidade, necessidades e asp irações. (N . de L.
o pensam en to antiindividualista de R ousseau. G . M .)
D e sua parte, B eaulavon assin ala que aí se 52 Para bem entender a insistente refutação
assen ta, com toda a sua originalidade e pene­ de G rotius, convém prim eiram ente lembrar
tração, um a inédita visão do contrato social, que no capítulo III do I livro do D ire ito da P a z
p o is agora- só. as relações m orais, im plicando e d a G u erra se pergunta “ por que um povo
ações m útuas, são consideradas cap azes de livre não poderia subm eter-se a um a ou várias
formar um p ovo por interm édio de um a c o n ­ p essoas, de tal sorte que lhe transferisse intei­
ven ção fundam ental que lhe dá feição de corpo ram ente o direito de governar sem dele reser­
político. N o estado atual de desenvolvim en to var-se qualquer parcela” , desde que “ é perm i­
da so c io lo g ia , a c on cep ção de R ou sseau adqui­ tido a cad a hom em livre tornar-se escravo de
re caráter de verdadeira antecip ação do papel quem quiser” . E ssa ou sad a defesa do d esp o­
essencial representado p elos liam es sociais na tism o vem precedida de verdadeiro desafio
caracterização da vida coletiva: para term os “ aos que pretendem pertencer, sempre c sem
um a socied ade, não basta que se agrupem o s ex ceçã o , o poder soberano ao povo, de sorte
hom ens, sendo necessário que o s liam es entre que este tem o direito de reprimir e punir os
eles estab elecid os se tornem deles indepen­ reis todas as v ezes que abusem de sua autori­
dentes e a eles venham a im por-se coercitiva- dad e” . A duplicidade de G rotius, aliás seguida
D O C O N T R A T O SO C IAL I 37

pois, de examinar o ato pelo qual um fosse unânime, onde estaria a obriga­
povo elege um rei, conviria examinar o ção de se submeterem os menos nume­
ato pelo qual um povo é povo, pois rosos à escolha dos mais numerosos?
esse ato, sendo necessariamente ante­ Donde sai o direito de cem, que que­
rior ao outro, constitui o verdadeiro rem um senhor, votar em nome de dez,
fundamento da socied ad e53. que não o querem de modo algum? A
Com efeito, caso não haja conven­ lei da pluralidade dos sufrágios é, ela
ção anterior, a menos que a eleição própria, a instituição de uma conven­
por seus continuadores, era patente — a sob e­ ção e supõe, ao menos por uma vez, a
rania popular, adm itida em princípio, era d im i­ unanimidade.
nuída pelas distin ções teóricas e anulada na
prática — e R ousseau não pode calar-se: ou o cu id am os da “d o a ç ã o ” d os súditos ao pod ero­
princípio é m oralm ente válid o e não pode a n e­ so, m as de um a organ ização política que se
nhum pretexto ser contrariado, ou sim p les­ enraíza direta e profundam ente na organ ização
m ente não existe e só haverá a tirania. A ssim social. C on sid eram os, p ois, a socied ade una e
responde à verdadeira p rovocação con tid a n a agindo co m o um tod o, em lugar de basear n o s­
m esm a passagem do D ire ito d a G u erra e da sos raciocín ios n os indivíduos. Senão, adver­
P a z, num trecho que acu sa com o o princípio te-n os R ou sseau no período seguinte, seria pre­
da soberania popular “ causou tantos m ales, e c iso sem pre supor unanim idade nas
poderá ainda cau sá-los se de n ovo o s espíritos delib erações, p ois que a regra da m aioria (à
se deixarem persuadir” . (N . de L. G . M .) qual, no capítulo VIII do segundo E nsaio
53 A firm ada a con exão substancial entre o so b re o G o v ern o , L ocke atribuiu o papel de
social e o político (v. notas n .os 50 e 51), trans­ titular natural do poder) não p assa, tam bém
figura-se o esquem a do contrato social: já não ela, de um a con ven ção. (N . de L. G . M .)

C a p itu lo VI

D o pacto social

Suponhamos 5 4 os homens chegando do de natureza sobrepujam, pela sua


àquele ponto em que os obstáculos resistência, as forças de que cada indi­
prejudiciais à sua conservação no esta­ víduo dispõe para manter-se nesse
estado. Então, esse estado primitivo já
54 O capítulo, fundam ental no d esen v o lv i­
não pode subsistir5 5, e o gênero huma­
m ento do C on tra to , inicia-se, não com um a no, se não mudasse de modo de vida,
afirm ação, m as com um a su p osição. D aí p od e­ pereceria.
m os inferir, com segurança, que a figura do Ora, com o os homens não podem
contrato, para R ou sseau , não con stitu ía um
engendrar novas forças, mas somente
fato histórico, m as sim ples hipótese exp lica­
tiva, m uito consentân ea, aliás, com o m étodo unir e orientar as já existentes, não têm
evolu tivo-conjetural que con h ecem os desde o eles outro meio de conservar-se senão
segundo D isc u rso . Inicialm ente, a passagem formando, por agregação, um conjunto
do estado de natureza para o estado civil foi de forças, que possa sobrepujar a resis-
objeto de um longo d esen volvim en to, p eça
correspondente, sem dúvida, ao plano am bi­
c io s o das In stitu iç õ es P o lític a s e que ainda 5 5 V. o D isc u rso so b re a D e sig u a ld a d e : a
figura, no M a n u scrito d e G en ebra, co m o cap í­ vida em com um , não provindo das n e c essi­
tulo II. Su a supressão na versão definitiva do dad es naturais do indivíduo, exp lica-se por
C o n tr a to corresponderá à firm e resolu ção de conjunturas exteriores e até even tualid ades que
n ão fazer desse livro um a d iscu ssão de “ princí­ tangem o s hom ens ao con vívio perm anente
p io s” , de “filo so fia ” . (N . de L. G . M .) com seus sem elhantes. (N . de L. G . M .)
38 R O U SSEA U

tência, impelindo-as para um só móvel, Essas cláusulas, quando bem com ­


levando-as a operar em concerto 5 6. preendidas, reduzem-se todas a uma
Essa som a de forças só pode nascer só: a alienação to ta l59 de cada asso­
do concurso de muitos; sendo, porém, ciado, com todos os seus direitos, à
a força e a liberdade de cada indivíduo comunidade toda, porque, em primeiro
os instrumentos primordiais de sua lugar, cada um dando-se com pleta­
conservação, com o poderia ele empe­ mente, a condição é igual para todos,
nhá-los sem prejudicar e sem negligen­ e, sendo a condição igual para todos,
ciar os cuidados que a si mesmo deve? ninguém se interessa por torná-la one­
Essa dificuldade, reconduzindo ao meu rosa para os demais.
assunto, poderá ser enunciada como Ademais, fazendo-se a alienação
segue: sem reservas, a união é tão perfeita
“Encontrar uma forma de associa­ quanto possa ser e a nenhum associado
ção que defenda e proteja a pessoa e os restará algo mais a reclamar, pois, se
bens de cada associado com toda a restassem alguns direitos aos particu­
força com um , e pela qual cada um, lares, com o não haveria nesse caso um
unindo-se a todos, só obedece contudo superior comum que pudesse decidir
a si mesm o, permanecendo assim tão entre eles e o público, cada qual, sendo
livre quanto antes” 5 7 . Esse, o pro­ de certo modo seu próprio juiz, logo
blema fundamental cuja solução o con­ pretenderia sê-lo de todos; o estado de
trato social oferece. natureza subsistiria, e a associação se
As cláusulas desse contrato são de
tal modo determinadas pela natureza 59 Insistindo em com preender o contrato so ­
do ato, que a menor modificação as cial com o um a con ven ção form al e concreta-
tornaria vãs e de nenhum efeito, de mente instituída, m uitos intérpretes encontram
dificuldade em com preender este e o s dois
modo que, embora talvez jam ais enun­
seguintes capítulos. O texto torna-se, contudo,
ciadas de maneira formal, são as m es­ claro quando, ao invés de raciocinar com o se
mas em toda a parte, e tacitamente aqui se descrevesse o que sucede “ antes” e “de­
mantidas e reconhecidas em todos os p o is” do contrato, se procura ler R ou sseau
lugares58, até quando, violando-se o com o se descrevesse n ossa c on d ição “fora” e
“dentro” da sociedade. Para viver em socied a­
pacto social, cada um volta a seus pri­ de, cada um de nós “dá-se com pletam ente” ,
meiros direitos e retoma sua liberdade isto é, subm ete aos padrões c o le tiv o s tod os o s
natural, perdendo a liberdade conven­ im pulsos naturais da criatura individual,
cional pela qual renunciara àquela. porém , sendo tal su bm issão um a “ con d ição
igual para to d o s”, a ninguém interessa agra­
vá-la. Se, porventura, alguém intentar reser­
5 6 Superadas as forças individuais, só o poder var-se algo de seus “direitos natu rais” , isto é,
da coletivid ad e pode atender às so licitações da atender a seus im pulsos com o se vivera iso la ­
existên cia. (N . de L. G . M.) do, está se colocan d o à m argem da socied ade e
57 . . . “tão livre quanto antes” . . . porque assim deve ser tratado a m enos que se queira
igualm ente cap acitad o a suprir e dom inar as com prom eter a própria socied ad e, em cujo
suas n ecessid ad es e, p ois, a agir livremente. seio, portanto, sem pre se im põe um a igualdade
T rata-se, contud o, de uma liberdade diferente básica. A final, ainda quando o corpo social
da natural — é a liberdade con ven cion al, de d estaca certos elem en tos para o G overno, não
que se fala a seguir. (N . de L. G . M.) será a eles, m as ao corpo, que “nos d am os” ,
58 N ão se procure encontrar um ato real de com o que se com preenderá a vid a p olítica sem
instituição form al do contrato. Este passou a diferenças (além das fun cionais) entre gover­
ter valor sim bólico: suas “ cláu su las” são nantes e govern ados — “cada um dando-se a
“determ inadas pela natureza do ato” , disp en­ tod os, não se dá a ninguém ” . Entram em c o n e ­
sam enunciado explícito, sendo “ m antidas e xão substancial a realidade sócio-antropo-
reconh ecid as” de m aneira tácita. (N . de L. G. lógica e a reivindicação h istórico-p olítica de
M .) liberdade. (N . de L. G. M.)
DO C O N T R A T O SOCIAL I 39

tornaria necessariamente tirânica ou Essa pessoa pública, que se forma,


vã. desse m odo, pela união de todas as
Enfim, cada um dando-se a todos outras, tom ava antigamente o nome de
não se dá a ninguém 60 e, não existindo cidade 6 4 e, hoje, o de república ou de
um associado sobre o qual não se corpo político, o qual é chamado por
adquira o mesmo direito que se lhe seus membros de E stado quando passi­
cede sobre si mesmo, ganha-se o equi­ vo, soberano quando ativo, e potên cia
valente de tudo que se perde, e maior quando com parado a seus semelhan­
força para conservar o que se tem. tes. Quanto aos associados, recebem
eles, coletivam ente, o nome de p o v o e
Se separar-se, pois, do pacto social se chamam, em particular, cidadãos,
aquilo que não pertence à sua essência, enquanto partícipes da autoridade so­
ver-se-á que ele se reduz aos seguintes
termos: “Cada um de nós põe em e 4 O verdadeiro sentido dessa palavra* quase
comum sua pessoa e todo o seu poder que se perdeu inteiram ente entre os m odernos.
sob a direção suprema da vontade A m aioria considera um burgo com o sendo
um a cidade e um burguês com o um cid adão.
geral, e recebemos, enquanto corpo, N ã o sabem que as casas form am o burgo, m as
cada membro com o parte indivisível que são o s cid ad ãos que fazem a cidade. E sse
do todo 61 ”. m esm o erro custou caro, outrora, aos cartagi­
neses. N ão sei de jam ais haver-se dado o título
Imediatamente, esse ato de associa­
de e iv e s ao súdito de qualquer príncipe, nem
ção produz, em lugar da pessoa parti­ m esm o antigam ente entre o s m aced ônios, nem
cular de cada contratante, um corpo atualm ente entre o s ingleses, se bem que estes
moral e coletivo, com posto de tantos se encontrem m uito m ais próxim os da liber­
dade do que tod os o s dem ais. Som ente os fran­
membros quantos são os votos da
c eses tom am com fam iliaridade o título de
assem b léia62, e que, por esse mesmo c id a d ã o s porque, com o se pode ver nos seus
ato, ganha sua unidade, seu eu d icion ários, não dispõem da verdadeira n oção
co m u m 63, sua vida e sua vontade. do significad o do term o, sem o que pratica­
riam , por usurpá-lo, o crim e de lesa-m ajestade.
E ssa palavra, para eles, exprim e uma virtude e
60 C ontra essa afirm ação se levantou o lib e­
não um direito. Q uando Bodin quis falar de
ralism o individualista do século X I X que, não
n o sso s cid ad ãos e burgueses**, incorreu em sé­
obstante, ainda há quem julgue derivar de
rios erros, tom ando uns pelos outros. O Sr.
R ou sseau. Benjamin C on stan t, no C u rso de
d’A lem bert não se enganou nesse particular e
P o lític a C on stitu cion al, protesta que “nós
distinguiu m uito bem , em seu artigo intitulado
sem pre nos dam os aos que agem em nom e de
“ G en eb ra” , as quatro ordens de hom ens (que
to d o s” . Ora, R ousseau afirm ava que m esm o os
podem ser cin co , se nelas se incluírem os sim ­
governantes estão subm etidos à vontade g e­
ples estrangeiros) que existem no n osso burgo
r a l. . . (N . de L. G. M.)
e das quais som ente duas com põem a repú­
61 . . . “ parte indivisível do to d o ” . . . — cuja
blica. N enhum outro autor francês, que eu
existên cia independente já não se adm ite, por­
saiba, com preendeu o sentido verdadeiro da
que não pod em os com preender, na realidade,
palavra c idadão.
um indivíduo fora da socied ade. (N . de L. G.
M .) * D ificilm en te o vocáb u lo português “ cid ad e”
62 C om o o contrato, essa “ assem b léia” e recobrirá o significad o específico visado por
esses “ v o to s” não têm existên cia concreta, m as R ou sseau , que sem dúvida se apoiou na diver­
apenas sim bolizam a tom ada de co n sciên cia sificação, em francês, entre “ cité” e “ v ille” .
de sua con d ição pelos com p on en tes do corpo M ais próxim o do sentido do texto estaria o
social. (N . de L. G. M .) grego “p ó lis” , m as carregaria con sigo inevitá­
63 A o contrário do que diz G eorges Beaula- veis im p lica ç õ es h istóricas. M ais abaixo (v.
von , esse “ eu com u m ” m uito se aproxim a da nota ao pé da página) con trastam os “ cid ad e” e
“ c o n sc iên cia c o le tiv a ” d os so c ió lo g o s m oder­ “ burgo” para m elhor evidenciar as intenções
nos. B asta ler R ou sseau em seu sentido pro­ do A utor. (N . da T.)
fundo e tendo em conta suas m esm as ressalvas ** Bodin tratou da questão nos S eis L iv r o s
e advertências interpretativas. (N . de L. G . M .) d a R ep ú b lica , 1. I, c. VI. (N . de L. G . M .)
40 R O U SSE A U

berana, e súditos enquanto submetidos saber distingui-los quando são empre­


às leis do Estado. Esses termos, no gados com inteira precisão 6 5.
entanto, confundem-se freqüentemente 6 5 C om o fará, doravante, R ou sseau , que empre­
e são usados indistintamente; basta ga tais term os no sentido ex a to .(N . de L. G . M.)

C a p itu lo V II
D o soberano

Vê-se, por essa fórmula, que o ato de ciai 6 7. Tal não significa não poder esse
associação compreende um com pro­ corpo comprometer-se com outrem, no
m isso recíproco entre o público e os que não derrogar o contrato, pois, em
particulares, e que cada indivíduo, relação ao estrangeiro, torna-se um ser
contratando, por assim dizer, consigo singelo, um indivíduo.
mesmo, se compromete numa dupla Mas o corpo político ou o soberano,
relação: com o membro do soberano não existindo senão pela integridade6 8
em relação aos particulares, e com o do contrato, não pode o brigar-se,
membro do Estado em relação ao mesmo com outrem, a nada que derro­
soberano. N ão se pode, porém, aplicar gue esse ato primitivo, com o alienar
a essa situação a máxima do Direito uma parte de si mesmo ou submeter-se
Civil que afirma ninguém estar obri­ a um outro soberano. Violar o ato pelo
gado aos com prom issos tom ados con­ qual existe seria destruir-se, e o que
sigo mesm o 6 6, pois existe grande dife­ nada é nada produz.
rença entre obrigar-se consigo mesmo
e em relação a um todo do qual se faz
6 7 A gin d o, em sua própria esfera, com o p es­
parte. soa, o corpo social perm anece livre m esm o em
Impõe-se notar ainda que a delibera­ relação ao pacto fundam ental. C om isso, ao
ção pública, que pode obrigar todos os contrário do que acreditaram certos individua­
súditos em relação ao soberano, devi­ listas (aos quais faz eco Paul Janet na H istória
do às duas relações diferentes segundo da C iên cia P olítica), não se reconh ece ao E sta­
as quais cada um deles é encarado, não do um poder ilim itado e superior até à m oral e
ao direito, m as, sim , que a socied ad e, matriz
pode, pela razão contrária, obrigar o d essa m oral e desse direito, pode a qualquer
soberano em relação a si mesmo, m om ento tom ar n ovas direções que seus m em ­
sendo conseqüentemente contra a na­ bros, na m edida de suas c o n sc iên cia s, b u sca­
tureza do corpo político impor-se o rão estabelecer de form a concreta. (N . de L. G.
M .)
soberano uma lei que não possa infrin­ 68 N o original figura a expressão “ la sainteté
gir. N ão podendo considerar-se a não du contrat”, porém traduzi-la, literalm ente, por
ser numa única e mesma relação, “ a santidade de contrato” im portaria em per­
encontrar-se-á então no caso de um der-se o essencial do sentido da frase que esta­
particular contratando consigo belece com o só se m antém unido o corpo so ­
cial enquanto a integridade do contrato não
mesmo, por onde se vê que não há nem sofrer abalo. Em que pese a real dificuldade da
pode haver qualquer espécie de lei tradução, cabe registrar que a “ sainteté” do
fundamental obrigatória para o corpo original é indicativa do caráter supra-hum ano,
do povo, nem sequer o contrato so- em bora não sobrenatural, do ente coletivo (e
em m ais de um ponto R ou sseau vale-se desse
sím ile com a esfera divina) que aqui já surge
6 6 O direito civil, regulando relações entre com o a necessária relação entre o político
indivíduos, não pode alcançar um a situação (necessidade de cumprir o contrato) e o m oral
em que age um “ ser m oral” de natureza (dever de obedecer a um a entidade superior ao
supra-individual. (N . de L. G . M .) indivíduo). (N . da T.)
D O C O N T R A T O SO C IAL I 41

D esde o momento em que essa mul­ O mesmo não se dá, porém, com os
tidão se encontra assim reunida em um súditos em relação ao soberano, a
corpo, não se pode ofender um dos quem, apesar do interesse com um , nin­
membros sem atacar o corpo, nem, guém responderia por seus com prom is­
ainda menos, ofender o corpo sem que sos, se não encontrasse meios de asse­
os membros se ressintam. Eis com o o gurar-se a fidelidade dos sú ditos71.
dever e o interesse obrigam igualmente Cada indivíduo, com efeito, pode,
as duas partes contratantes a se auxi­ com o homem, ter uma vontade parti­
liarem mutuamente, e os m esm os ho­ cular, contrária ou diversa da vontade
mens devem procurar reunir, nessa geral que tem com o cidadão. Seu inte­
dupla relação, todas as vantagens que resse particular pode ser muito dife­
dela provêm 69. rente do interesse comum. Sua existên­
Ora, o soberano, sendo formado cia, absoluta e naturalmente
tão-só pelos particulares que o com ­ independente, pode levá-lo a conside­
põem, não visa nem pode visar a inte­
rar o que deve à causa comum com o
resse contrário ao deles, e, conseqüen­
uma contribuição gratuita, cuja perda
temente, o poder soberano não
necessita de qualquer garantia em face prejudicará menos aos outros, do que
de seus súditos, por ser impossível ao será oneroso o cumprimento a si pró­
corpo desejar prejudicar a todos os prio. Considerando a pessoa moral que
seus membros, e veremos, logo a constitui o Estado com o um ente de
seguir, que não pode também prejudi­ ra z ã o 72, porquanto não é um homem,
car a nenhum deles em particular. O ele desfrutará dos direitos do cidadão
soberano, somente por sê-lo, é sempre sem querer desempenhar os deveres de
aquilo que deve se r 70.
71 Se o s liberais do século passad o se preocu ­
69 Entram em conexão su bstancial o dever e param com garantir o indivíduo contra o E sta­
o interesse. Em sua totalidade, o parágrafo do, fiel à sua própria conjuntura histórica
exprim e a antecip ação, por R ou sseau , da R ou sseau cuida de garantir o Estado contra o s
n oção de “ síntese so c ia l” que dá base a tod a a indivíduos, ou m elhor, certos indivíduos, p ois
so c io lo g ia m oderna para a qual o individual e o que via era a usurpação dos poderes do E sta­
o c oletivo são sim ples asp ectos esp eciais de do pelo m onarca ou por um a classe privile­
um a m esm a realidade. (N . de L. G . M .) giada. A solu ção do problem a, que surge nos
70 O poder soberano continua, p ois, a ser parágrafos seguintes, é incutir no com p orta­
insuperável, isto é, absoluto. A soberania a b so ­ m ento individual a co n sciên cia da vontade
luta, não obstante, longe de representar um a geral, de sorte a dom inar a vontade particular.
p otên cia adversa à liberdade individual, com o A teoria política de R ou sseau toca ao m ais
afirm ava, entre outros, H obb es, p assa a ser fundo d os princípios gerais, confundindo-se
entendida com o o resultado da a sso cia çã o de com a ética e propondo o problem a da e d u c a ­
to d o s o s particulares e, por isso m esm o, com o ção. (N . de L. G . M .)
um a força incapaz de afetar a seus próprios 72 Em linguagem filosófica, ente de razão é
elem en tos con stitu tivos sem a si m esm a afe­ “objeto de pensam ento artificialm ente criado
tar-se. Entram , p ois, em equação d ois velh os pelo espírito para atender às necessid ad es do
tem as da teoria política: só a soberania pop u­ discurso e sem existên cia, quer em si, quer na
lar é soberania absolu ta, perfeita e legítim a. representação con creta” (L alande, V o ca b u ­
C o m o , na prática, em nom e d essa soberania o s laire, verb. “ R a iso n ”). N o C o n tra to S o cia l, a
govern os exercem seu m ando, freqüentem ente expressão assum e diversa sign ificação, com o
se tem confun dido as garantias das liberdades anota B eaulavon: “ Para R ou sseau, com o para
ind ividu ais contra o s ex ce sso s da autoridade o s so c ió lo g o s con tem p orân eos, o E stad o é,
com lim itações da soberania. A ssim pensavam p ois, um en te real, e de m odo algum um a en ti­
o s ind ividu alistas, co m o Benjam in C on stant, dade abstrata; d escon h ecê lo é recair no
m as ainda hoje percebem os e co s, discretos egoísm o individualista. M as esse ente, para ele,
m as p o sitiv o s, d essas restrições n os com en tá­ é m oral no sentido próprio da palavra: só a
rios de um V aughan, por exem p lo. (N . de L. G . vontad e racional pode criá-lo” . (N . de L. G .
M .) M .)
42 R O U SSE A U

súdito — injustiça cujo progresso garante contra qualquer dependência


determinaria a ruína do corpo político. pessoal. Essa condição constitui o arti­
A fim de que o pacto social não fício e o jogo de toda a máquina políti­
represente, pois, um formulário vão, ca, e é a única a legitimar os com pro­
compreende ele tacitamente este com ­ m issos civis, os quais, sem isso, se
tornariam absurdos, tirânicos e sujei­
prom isso, o único que poderá dar força
tos aos maiores abusos.
aos outros: aquele que recusar obede­
cer à vontade geral a tanto será cons­ 73 F orçá-lo-ão a conservar a liberdade c o n ­
trangido por todo um corpo, o que não ven cion al, pois a liberdade natural tornou-se
significa senão que o forçarão a ser nula e inoperante, e qualquer tentativa de fugir
ao dom ínio do corpo p olítico redundará no
liv re73, pois é essa a condição que, risco de cair na dependência de outrem . (N . de
entregando cada cidadão à pátria, o L. G . M .)

C a p itu lo V III

D o estado civil

A passagem do estado de natureza sem cessar bendizer o instante feliz que


para o estado c iv il7 4 determina no dela o arrancou para sempre e fez, de
homem uma mudança muito notável, um animal estúpido e limitado, um ser
substituindo na sua conduta o instinto inteligente e um h om em 7 5.
pela justiça e dando às suas ações a Reduzam os todo esse- balanço a ter­
moralidade que antes lhes faltava. É só mos de fácil com paração. O que o
então que, tom ando a voz do dever o homem perde pelo contrato social é a
lugar do im pulso físico, e o direito o liberdade natural e um direito ilim i­
lugar do apetite, o homem, até aí tado a tudo quanto aventura e pode
levando em consideração apenas sua alcançar. O que com ele ganha é a
pessoa, vê-se forçado a agir baseando- liberdade civil e a propriedade de tudo
se em outros princípios e a consultar a que possui. A fim de não fazer um jul­
razão antes de ouvir suas inclinações. gamento errado dessas com pensações,
Embora nesse estado se prive de mui­ impÕe-se distinguir entre a liberdade
tas vantagens que frui da natureza, natural, que só conhece limites nas for­
ganha outras de igual monta: suas ças do indivíduo, e a liberdade civil,
faculdades se exercem e se desenvol­ que se limita pela vontade geral, e,
vem, suas idéias se alargam, seus sentiJ mais, distinguir a posse, que não é
mentos se enobrecem, toda a sua alma senão o efeito da força ou o direito do
se eleva a tal ponto, que, se os abusos
dessa nova condição não o degra­ 7 5 O segundo D isc u rso estabelecera que a
dassem freqüentemente a uma condi­ m oral e, tam bém , a razão — esta, ao m enos
ção inferior àquela donde saiu, deveria em seu com p leto desenvolvim en to — repre­
sentam produtos da vid a em grupo. O s que
objetam lem brando que a m oral precede e
7 4 Este capítulo destina-se a com parar o “e s­ sobreleva ao direito, esqu ecem -se de que R o u s­
tado civ il” , ou seja, a con d ição social do seau considera sem pre a socied ade em sua pró­
hom em , com a existên cia do hom em “natural” , pria o rgan ização para só d ep ois encarar o pro­
ou m elhor, do hom em em sua essên cia m ental blem a da m aneira de estatuir-se o exercício do
e b iológica de sim ples indivíduo. (N . de L. G. poder jque dela, naturalm ente, resulta. (N . de L.
M.) G . M.)-
D O C O N T R A T O SO C IAL I 43

primeiro ocupante, da propriedade, mente senhor de si mesmo, porque o


que só pode fundar-se num título impulso do puro apetite é escravidão, e
p o sitiv o 7 6. a obediência à lei que se estatuiu a si
Poder-se-ia, a propósito do que mesma é liberdade. Mas já disse muito
ficou acima, acrescentar à aquisição acerca desse princípio e o sentido filo­
do estado civil a liberdade moral, sófico da palavra liberdade, neste
única a tornar o homem verdadeira- ponto, não pertence a meu assunto.
7 6 A o contrário do que se tem dito, R ou sseau çã o , o s hom ens se disponham a m anter-se fiéis
não ataca a sociedade. N em a defende. Q u al­ a eles — para isso é escrito o C o n tra to S o cia l.
quer socied ade, para ele, perm ite ao hom em o s T udo se reduz a um a escolh a: ser infinitam ente
a van ços m orais e racionais resp on sáveis pela livre em seus im pulsos, m as sofrer tod os o s
sua con d ição atual. A o m esm o tem po, a vid a contrastes cerceadores e, m esm o, aniquila-
social enseja o s progressos da desigualdade, dores da vida natural, ou aceitar a liberdade
descritos no segundo D isc u rso . T ais d esvios, n os lim ites e com as garantias da lei, n a har­
con tu d o, podem ser evitad os desde que, c o n s­ m on ia civil. V. parágrafo seguinte. (N . de L. G .
cientes do sentido norm al d essa transform a- M .)

C a p ítu lo IX

D o domínio re a l7 7

Cada membro da com unidade dá-se Cidade são incomparavelmente m aio­


a ela no momento de sua form ação, tal res do que as de um particular, a posse
com o se encontra naquele instante; ele pública é também, na realidade, m ais
e todas as suas forças, das quais fazem forte e irrevogável, sem ser mais legíti­
parte os bens que possui. O que não ma, pelos menos para os estrangeiros.
significa que, por esse ato, a posse Tal coisa se dá porque o Estado,
mude de natureza ao mudar de mão e perante seus membros, é senhor de
se torne propriedade nas do sobera­
todos os seus bens pelo contrato social,
n o 7 8, mas sim que, com o as forças da contrato esse que, no Estado, serve de
base a todos os direitos, mas não é se­
7 7 “ R eal” : “das c o is a s” ou “ sobre as c o is a s” , nhor daqueles bens perante as outras
co m o diz a linguagem jurídica. É o que agora
se estudará depois de exam in adas as relações
potências senão pelo direito de pri­
p essoais. Q uanto ã expressão “ d om ín io” , insi­ meiro ocupante, que tomou dos parti­
nu a a sugestão de um direito de E stad o, com o culares.
anota Vaughan. N o C o n tra to S o c ia l com p le­ O direito do primeiro ocupante, em ­
ta-se a evolu ção do pensam en to de R ou sseau bora m ais real do que o do mais forte,
relativam ente ao direito de propriedade. Parte
de um claro ind ividu alism o que, no segundo só se torna um verdadeiro direito 7 9 de­
D isc u rso , via na preservação do patrim ônio de pois de estabelecido o de propriedade.
ca d a um o principal m otivo da fun dação do Todo o homem tem naturalmente direi­
E stad o e, na E c o n o m ia P o lític a , ia talvez m ais to a quanto lhe for necessário, mas o
longe. A gora, tod a propriedade é subm etida ao
E stad o, ainda quando apenas para atribuí-la e
ato positivo, que o torna proprietário
garanti-la aos particulares; fora do estado de qualquer bem, o afasta de tudo
civ il, não há m ais do que a sim ples p osse e, mais. Tom ada a sua parte, deve a ela
p o is, só h á propriedade na socied ade organi­ limitar-se, não gozando mais de direito
zada. E sse so cia lism o , tão nitidam ente carac­
terizad o, chegará ao seu m áxim o no P ro je to de
C o n stitu iç ã o p a r a a C órsega. (N . de L. G . M .) 79 A p osse, co m o o m ando, deve legitim ar-se
78 V. fim do capítulo precedente. (N . de L. G . para tornar-se direito. E a fonte do direito sem ­
M .) pre é a san ção coletiya. (N . de L. G . M .)
44 R O U SSE A U

algum à comunidade. Eis por que o em nome da coroa de C astela, tanto


direito de primeiro ocupante, tão frágil bastaria para desapossar todos os
no estado de natureza, se torna respei­ habitantes e daí excluir todos os prínci­
tável para todos os homens civis. Por pes do mundo? Com tal razão, tais
esse direito, respeita-se menos o que cerimônias se multiplicariam inutil­
pertence a outrem, do que aquilo que mente e o rei católico não precisaria
não pertence a si m esm o80. senão de inopino tomar, de seu gabine­
Em geral, são necessárias as seguin­ te, posse de todo o universo, apenas
tes condições para autorizar o direito posteriormente excluindo de seu impé­
de primeiro ocupante de qualquer pe­ rio o que antes possuíam os outros
daço de chão: primeiro, que esse terre­ príncipes.
no não esteja ainda habitado por nin­ Concebe-se com o as terras dos
guém; segundo, que dele só se ocupe a particulares reunidas e contíguas se
porção de que se tem necessidade para tornam território público e com o o
subsistir; terceiro, que dele se tome direito de soberania, estendendo-se dos
posse não por uma cerimônia vã, mas súditos ao terreno por eles ocupado, se
pelo trabalho e pela cultura, únicos si­ torna, ao mesmo tempo, real e pes­
nais de propriedade que devem ser soal82, colocando os possuidores
respeitados pelos outros, na ausência numa dependência ainda maior e fa­
de títulos jurídicos81. zendo de suas próprias forças as
C om efeito, concedendo-se à neces­ garantias de sua fidelidade. E ssa van­
sidade e ao trabalho o direito de pri­ tagem não parece haver sido muito
meiro ocupante, não se estará levan­ bem compreendida pelos antigos m o­
do-o o m ais longe possível? Poder-se-á narcas que, intitulando-se sim ples­
não estabelecer limites para esse direi­ mente rei dos persas, dos citas, dos
to? Bastará pôr o pé num terreno macedônios, pareciam considerar-se
comum para logo pretender ser o mais chefes dos homens do que senho­
senhor? Bastará a força, capaz de afas­ res do país. Os de hoje chamam -se,
tar dele num momento os outros mais habilmente, reis de França, da
homens, para destituí-los do direito de Espanha e da Inglaterra, etc.; dom i­
novamente voltar a ele? Com o poderá nando assim o território, sentem-se
um homem ou um povo assenhorear-se bem seguros de aí dominar os habitan­
de um território imenso e privar dele tes.
todo o gênero humano, a não ser por O singular dessa alienação é que a
usurpação punível, por isso que tira do comunidade, aceitando os bens dos
resto dos hom ens o abrigo e os alimen­ particulares, longe de despojá-los, não
tos que a natureza lhes deu em faz senão assegurar a posse legítima,
comum? Quando Nunez Balboa cambiando a usurpação por um direito
tom ou, na costa, posse de todo o mar verdadeiro, e o gozo, pela propriedade.
do Sul e de toda a Am érica meridional, Passando então os possuidores a serem
considerados depositários do bem pú-
80 C om parar com a transform ação da liber­
dad e, ou seja, d os direitos da pessoa. 82 O direito real, isto é, sobre o s bens, deve
81 C om esta últim a c on d ição, o socialism o de reduzir-se aos lim ites da liberdade p essoal —
R ou sseau chega ao quase-com u nism o (tom an­ ju stifica-se por constituir elem ento de satisfa­
d o-se a palavra em sentido lato). A proprie­ ç ã o das necessid ad es individuais e, de outra
dade dos bens, que já fora lim itada à esfera da parte, não ju stifica qualquer nexo p olítico que
su bsistên cia, ainda n esse plano restrito deve queira tom á-lo por base, com o a con tecia no re­
justificar-se pela u tilização real. V. parágrafo gim e m onárquico-feudal de fundam ento patri­
seguinte. (N . de L. G. M .) m onial. (N . de L. G . M .)
D O C O N T R A T O SO C IAL I 45

blico, estando respeitados seus direitos Terminarei este capítulo e este livro
por todos os membros do Estado e por uma observação que deverá servir
sustentados por todas as suas forças de base a todo o sistema social: o
contra o estrangeiro, adquirem, por pacto fundamental, em lugar de des­
assim dizer, tudo o que deram por uma truir a igualdade natural, pelo contrá­
cessão vantajosa ao público e mais rio substitui por uma igualdade moral
ainda a eles m esm os83. O paradoxo e legítima aquilo que a natureza pode­
explica-se facilmente pela distinção ria trazer de desigualdade física entre
entre os direitos de que o soberano e o os hom ens, que, podendo ser desiguais
proprietário gozam sobre os m esm os na força ou no gênio, todos se tornam
bens, com o se verá mais adiante8 4. iguais por convenção8 6 e direito8 7.
Pode também acontecer que os ho­
mens com ecem a unir-sè antes de pos­ 8 6 Se a liberdade natural, no estado civil,
suir qualquer coisa e que, apossando- transm uta-se em liberdade con ven cion al, é
se depois de um terreno bastante a bem de ver que a desigualdade natural (física e
todos, o fruam em com um ou dividam m ental) não pod e transform ar-se em d esigu al­
dade so c ia l, salvo num a perversão do contrato,
entre si, seja em partes iguais, seja de
ou m elhor, da organ ização da socied ade. V.
acordo com proporções estabelecidas n ota de R ou sseau sobre o s m aus govern os. (N .
pelo soberano. D e qualquer forma que de L. G . M .)
se realize tal aquisição, o direito que 8 7 Sob o s m aus governos*, essa igualdade é
cada particular tem sobre seus pró­ som ente aparente e ilusória; serve só para
manter o pobre na sua m iséria e o rico na sua
prios bens está sempre subordinado ao usurpação. N a realidade, as leis são sem pre
direito que a comunidade tem sobre úteis aos que possu em e prejudiciais aos que
todos, sem o que não teria solidez o nad a têm , donde se segue que o estado social
liame social, nem força verdadeira o só é vantajoso aos h om ens quando tod os eles
têm algum a c o is a e nenhum tem dem ais. (N .
exercício da soberania8 5.
do A .)
* N o E m ílio torna-se explícito que “ m aus
83 À sem elh ança da passagem da liberdade g ov ern o s” são to d o s o s que R ou sseau c o n h e ­
natural à convencion al. (N . de L. G . M .) cia: “ O espírito universal das leis de tod os o s
8 4 N o capítulo IV do II livro. (N . de L. G . p aíses é de sem pre favorecer o forte contra o
M .) fraco, e o que tem contra o que não tem ; tal
8 5 A p lic a çã o ao “dom ínio real” do princípio inconvenien te é inevitável e sem e x c e ç ã o ” . O
geral do contrato: a ninguém é lícito aceitar o so cia lism o de R ou sseau não se resum e, p o is,
p acto e buscar m anter-se, por sua p esso a ou ao plano da co n d içã o econ ôm ica, m as alca n ça
por seus bens, à m argem do com p rom isso a c o n d iç ã o social resultante daquela. (N . de L.
total. (N . de L. G . M .) G . M .)
UVRO SECUNDO
C a pit u l o I

A soberania é inalienável

A primeira e a mais importante nenhuma sociedade poderia existir.


conseqüência decorrente dos princí­ Ora, somente com base nesse interesse
pios até aqui estabelecidos é que só a comum é que a sociedade deve ser
vontade geral88 pode dirigir as forças governada90.
do Estado de acordo com a finalidade Afirmo, pois, que a soberania91,
de sua instituição, que é o bem comum, não sendo senão o exercício da vonta-
porque, se a oposição dos interesses
particulares tornou necessário o esta­ 89 A m aior dificuldade na exp osição do c o n ­
belecimento das sociedades, foi o acor­ ceito de vontad e geral está em dem onstrar sua
do desses mesmos interesses que o relação com as vontad es particulares: n ascid a
possibilitou89. O que existe de comum d estas, delas independe a vontade geral; prove­
niente de seu acordo b ásico, m uito raram ente,
nesses vários interesses forma o liame
quase que só casualm ente, com elas, c o in cid i­
social e, se não houvesse um ponto em rá. N ã o disp ond o do instrum ental vocabular e
que todos os interesses concordassem , exp ositivo exigido pelo n ovo elem ento que tra­
zia para a teoria p olítica, nem por isso R o u s­
seau se d esvia do sentido original que adotara
88 A origem conven cion al da ordem social e na exp licação do nexo entre a autoridade e a
p olítica, dem onstrada no Livro I, repousa vid a em com um . (N . de L. G . M.)
num a n oção básica, objeto dos seis prim eiros
90 O objeto da vontad e geral é, pois, o inte­
capítulos do Livro II, que é a vontad e geral.
resse com u m , porém basta que um interesse,
M uitas vezes considerada “m ítica” , “ m etafí­
por generalizado que seja, se m ostre .m enos
sic a ” e, m esm o, “ inextrincável” , a n o ç ã o não
p assa, contud o, da expressão teórica do esfor­ geral do que o da socied ade inteira, para d e i­
xar de ser o interesse com um (v. 1. II, c. III, e 1.
ço praticado por R ou sseau para atingir o
iV , c. I). A ssim , o interesse com um não é o
essen cial dum a realidade entrevista na análise
interesse de tod os, no sentido de um a con
da vida hum ana: a realidade coletiva. H oje,
flu ên cia d o s interesses particulares, m as o inte­
quando sobre o assunto já p ossu ím os m ais am ­
resse de tod os e de cada um enquanto c o m p o ­
plas ind icações, avaliam os o quanto R ou sseau
nentes do corp o coletivo e exclusivam ente
avançou na direção certa, na m edida em que
n esta qualidade. D aí o perigo de predom inar o
sem pre se recusou a reduzir a vontad e geral à
interesse da m aioria, p ois, se é sempre possível
sim ples con cord ân cia (num érica, ou de m a io ­
conseguir-se a con cord ân cia d o s interesses pri­
ria; coin cidente ou de op in ião) das vontad es
v a d o s de um grande núm ero, nem por isso
particulares. Para ele, vontade geral só era
assim se estará atendendo ao interesse com um .
aquela que traduzisse o que há de c o m u m em
(V. capítulo seguinte.) (N . de L. G . M .)
tod as as vontad es individuais, ou seja, o su bs­
trato co letiv o das con sciên cias. (N . de L. G. 91 A autoridade do soberano, tal co m o se
M .) definiu no Livro I. (N . de L. G . M .)
50 R O U SSE A U

de geral, jam ais pode alienar-se, e que algo contrário ao bem do ser que dese­
o soberano, que nada é senão um ser ja. Se, pois, o povo promete sim ples­
coletivo, só pode ser representado por mente obedecer, dissolve-se por esse
si mesmo. O poder pode transmitir-se; ato, perde sua qualidade de povo —
não, porém, a vontade. desde que há um senhor, não há mais
Se não é, com efeito, impossível que soberano e, a partir de então, destrói-se
uma vontade particular concorde com o corpo político9 4.
a vontade geral em certo ponto, é pelo Isso não quer dizer que não possam
menos im possível que tal acordo se as ordens dos chefes ser consideradas
estabeleça duradouro e constante, pois vontades gerais, desde que o soberano,
a vontade particular tende pela sua livre para tanto, não se oponha9 5. Em
natureza às predileçÕes e a vontade tal caso, pelo silêncio universal deve-se
geral, à igualdade92. Menor possibili­ presumir o consentimento do povo. O
dade haverá ainda de alcançar-se uma que se explicará mais am plam ente9 6.
garantia desse acordo; ainda quando
devera sempre existir, não seria um 9 4 A n oção de soberania im plica, fo rço sa ­
produto da arte, mas do acaso93. O m ente, poder sem contraste. D e outra parte,
soberano pode muito bem dizer: n ão se conceb e o ente m oral, n ascid o do pacto,
“Quero, neste momento, aquilo que um sem vontade própria. Eis por que um p ovo não
tal homem deseja, ou, pelo menos, pode entregar-se a um senhor sem deixar de ser
p ovo, soberano e corpo político. (N . de L. G.
aquilo que ele diz desejar”. Mas não M .)
poderá dizer: “ O que esse homem qui­ 9 5 A ssim ch egam os a certas regras práticas
ser amanhã, eu também o quererei” , acerca do exercício do poder: 1) pod e-se trans­
por ser absurdo submeter-se a vontade mitir o poder, nunca, porém , a vontad e geral;
a grilhões futuros e por não depender 2) qualquer com prom isso de su bm issão do
p o v o , com o tal, põe fim ao estado civil; 3) pre­
de nenhuma vontade o consentir em sum e-se que as ordens da autoridade estejam
de acordo com a vontade geral, desde que esta
92 O im pulso natural é egoísta, a vida em silencie. A ob servação im põe-se quando sabe­
socied ad e im põe padrões iguais para todos. m os que este capítulo é tido, por m u itos, com o
(N . de L. G . M .) cogitan do só de problem as “ ab stratos” . R ou s­
93 S egu im os, n esta passagem , a correção de seau, aqui, com eça a realizar sua prom essa ini­
pon tu ação p rop osta por G . B eaulavon em sua cial: d os princípios fundam entais deriva “re­
ed içãó do C o n tra to c que torna inteligível a gras de ad m inistração” . (N . de L. G . M .)
frase. (N . d a T.) 9 6 N o Livro III. (N . de L. G . M .)

C a p itu lo II

A soberania é indivisível

A soberania é indivisível pela N ossos políticos, porém, não poden­


mesma razão por que é inalienável, do dividir a soberania em seu princí­
pois a vontade ou é geral9 7, ou não o pio, fazem-no em seu objeto. D ivi­
é; ou é a do corpo do povo, ou somente dem-na em força e vontade, em poder
de uma parte. N o primeiro caso, essa legislativo e poder executivo, em direi­
vontade declarada é um ato de sobera­ tos de impostos, de justiça e de guerra,
nia e faz lei; no segundo, não passa de em administração interior e em poder
uma vontade particular ou de um ato de tratar com o estrangeiro. Algumas
de magistratura, quando muito, de um vezes, confundem todas essas partes, e,
decreto. outras vezes, separam-nas. Fazem do
DO C O N T R A T O SO C IAL II 51

soberano um ser fantástico e formado de. declarar guerra e o de fazer a paz,


de peças ajustadas, tal com o se for­ que não o são, pois cada um desses
massem um homem de inúmeros cor­ atos não é uma lei, mas unicamente
pos, dos quais um tivesse os olhos, uma aplicação da lei, um ato particu­
outro os braços, outro os pés, e nada lar que determina o caso99 da lei,
mais além disso. Contam que os char­ com o claramente se verá quando for
latães do Japão despedaçam uma definida a idéia que se prende à pala­
criança aos olhos dos espectadores e vra l e P 00. .
depois, jogando ao ar, um após outro, Examinando-se igualmente as ou ­
todos os membros, volta ao chão a tras divisões, ver-se-á que se incorre
criança viva e completamente recom ­ em erro todas as vezes que se crê estar
posta. M ais ou menos assim fazem-se a soberania dividida, pois os direitos,
os passes de mágica de n ossos políti­ tom ados por partes dessa soberania,
cos: depois de desmembrarem o corpo subordinam-se todos a ela, e supõem
social, por uma sorte digna das feiras, sempre vontades supremas, às quais
reúnem as peças, não se sabe com o98. esses direitos só dão execução.
Esse erro provém de nao disporem N ao se poderá dizer o quanto essa
de noções exatas sobre a autoridade falta de exatidão lançou de obscuri­
soberana e de terem tom ado por partes dade nas conclusões dos autores em
dessa autoridade o que não passa de matéria de Direito Político, quando
em anações suas. Assim , por exemplo, quiseram julgar os direitos correspon­
tiveram-se por atos de soberania o ato dentes aos reis e aos povos de acordo
com os princípios que tinham estabele­
9 7 Para que um a vontade seja geral, nem sem ­ cido. T odos podem ver nos capítulos
pre é necessário que seja unânim e, m as é preci­ III e IV do primeiro livro de Gro-
so que tod os o s votos sejam con tad os. Q u al­ tiu s1 01 com o esse sábio e seu tradutor
quer exclu são formal rom pe a generalidade*.
(N . do A .)
Barbeyrac102 confundem-se, embara­
* E sta nota é com um ente interpretada com o çam-se em seus sofismas por medo de
significan do a aceitação, por R ou sseau , da dizer demais sobre o assunto ou de não
regra da m aioria, com o aliás já adm itira
anteriorm ente, desde que tal regra fo sse c o n sa ­
grada unanim em ente num a prim eira con ven ­ 98 E ssas críticas, em que pese a opin ião de
ç ã o , o que se explicou no capítulo V do Livro B eaulavon, se dirigem m enos contra a “ separa­
I. O trecho pode ter, con tu d o, um a interpre­ çã o d os poderes” de M ontesquieu do que às
tação m ais larga. N ão há aqui- qualquer refe­ acom od atícias versões “ práticas” d os teóricos
rência à vontade m ajoritária, e R ou sseau não p o lítico s do tem po. R ou sseau , em princípio, dá
ignorava, por exem plo, que L ocke acreditava ao soberano um a função superior, que é a lei,
ser direito naturai da m aioria cham ar a si todo m as na prática adm ite a separação das funções
o poder d a com unidade, por “ ser necessário legislativa, executiva e jud iciária. Só lhe repug­
que o corpo vá para onde o leva a m aior na confundir essas depu tações, m eras “em an a­
força” e por supor que no “consentim ento para ç õ e s” com “partes” da soberania. (V. pará­
form ar um corpo se incluía o consentim ento grafo seguinte.) (N . de L. G . M .)
para ser condu zid o pela m aioria” . (Segundo 99 A ap licação particular; as espécies ou
E n saio so b re o G o v ern o , c. VIII.) T orna-se lí­ ocorrên cias a que um a lei pode ser aplicada.
cito conclu ir que qualquer d ecisão coletiva (N . de L. G . M .)
deve atender ao interesse com um , seja qual for 100 N o capítulo VI. (N . de L. G . M .)
o p rocesso de expressão ou de apuração nu m é­ 101 São o s capítulos relativos às várias esp é­
rica das opin iões. É o que faz supor a frase “ou cies de guerra e à “ guerra d os súditos contra as
(a vontad e geral) é a do corpo do p ovo, ou p o tên cia s” . (N . de L. G . M .)
som ente de um a parte” , com que se abre o 102 P rofessor á'c direito na U niversidade de
capítulo. A d em ais, a própria idéia de assem ­ G roningue, Barbeyrac tornou-se célebre c o m o
bléia, já vim os anteriorm ente, tem valor pura­ tradutor de G rotius e Pufendorf. (N . de L. G .
m ente sim bólico. (N . de L. G . M .) M .)
52 R O U SSEA U

dizer o bastante segundo seus pontos deiros princípios, desapareceriam


de vista, fazendo colidir os interesses todas as dificuldades, e teriam sempre
que pretendiam conciliar. Grotius, re­ sido conseqüentes; mas, então, triste­
fugiado em França, descontente com mente diriam a verdade e cortejariam
sua pátria e desejando agradar a Luís somente ao povo. Ora, a verdade não
X III, a quem seu livro é dedicado, leva à fortuna, e o povo não dá em bai­
nada poupa para despojar os povos de xadas, cátedras ou pensões.
todos o s seus direitos e para deles
revestir o s reis, com a melhor arte pos­
103 U m grupo de p olíticos da aristocracia e
sível. Também foi essa a inclinação de da classe m édia convidou G uilherm e de O ran­
Barbeyrac, que dedicou sua tradução ge e M aria, sua mulher e filha de Jaim e II, para
ao rei da Inglaterra, Jorge I. M as, infe­ governarem a Inglaterra. G uilherm e ocupou
lizmente, a expulsão de Jaime II, que Londres sem luta, enquanto Jaim e fugia para a
ele cham a de abdicação103, forçou-o a França. O parlam ento declarou o trono vago e
entregou a coroa aos n o v o s governantes.
manter-se em reserva, a esquivar-se, a
A ssim se iniciou a “ G lo r io sa R ev o lu çã o ”
tergiversar, a fim de não fazer de G ui­ (1 6 8 8 -8 9 ), que prosseguiu com um a série de
lherme um usurpador. Se esses dois reform as co n stitu cion ais de sentido d em ocrá­
escritores tivessem adotado os verda­ tico. (N . de L. G . M .)

C a p ítu lo III

Se pode errar a vontade geral10 4

C onclui-se do precedente que a von­ Jamais se corrompe o povo, mas


tade geral é sempre certa e tende sem­ freqüentemente o enganam e só então é
pre à utilidade pública; donde não se que ele parece desejar o que é m au10 5.
segue, contudo, que as deliberações do Há comumente muita diferença
povo tenham sempre a mesma exati­ entre a vontade de todos e a vontade
dão. Deseja-se sempre o próprio bem, geral106. Esta se prende somente ao
mas nem sempre se sabe onde ele está. interesse comum; a outra, ao interesse
10 4 A qui se in icia um a exp osição sobre a da “ m ente” com um , m as ainda levantava a
essê n c ia da vontad e geral, que ocupará dois questão que agora surge, no título de R ou s­
capítulos. T êm -se apontado duas fontes inspi- seau, ao perguntar se pode errar a cid ade —
radoras d e ssa teoria: D iderot e Spinoza. F oi “ An civitas peccare p ossit” . Im porta, contud o,
D reyfu s-B risac que, pela prim eira vez, aproxi­ assinalar que para D iderot o s hom ens são
m ou a n o ç ã o rousseau niana de vontade geral naturalm ente levad os à vida em com um , e que
daq uela ex p o sta no artigo atribuído a D iderot, para Sp inoza o Estado não erra porque não
da E n c iclo p é d ia , em que a vontade geral é d es­ conhece m aior poder do que o seu — assim se
crita co m o sendo “em cada indivíduo um ato tornam patentes a originalidade e as dim ensões
puro do entendim ento que raciocin a no silên­ inéditas do pensam ento de R ou sseau. (N . de L.
cio das p aixões” e à qual devera ser confiado o G . M .)
poder legislativo, por isso que jam ais erra. O
10 5 E xtensão, à vontade geral, do raciocínio
próprio R ou sseau rem ete o leitor a esse artigo
de Sócrates acerca da tendência natural dos
sobre D ire ito N atu ral, ao desenvolver o seu,
hom ens ao que consideram seu bem , só pod en­
sobre a E c o n o m ia P o lítica , na m esm a e n c ic lo ­
do errar, pois, no discernir esse bem — “ N in ­
pédia. N ão obstante, G . Beaulavon sublinhou
guém é mau voluntariam ente” . (N . de L. G.
que aqui, com o no capítulo II do M a n u scrito
M .)
d e G enebra, a teoria de D iderot não se repete,
m as é revista e criticada. D e sua parte, C . E. 10 6 N o prim eiro esb oço do C o n tra to , a
Vaughan acentua a inspiração de Sp inoza que, expressão é decidida: “ A vontade geral rara­
no T ratactu s P o litic u s (c. IV), não só cuidava mente é a vontade de to d o s” . (N . de L. G . M.)
D O C O N T R A T O SO C IAL II 53

privado e não passa de uma som a das em relação a seus membros e particu­
vontades particulares107. Quando se lar em relação ao Estado: poder-se-á
retiram, porém, dessas mesmas vonta então dizer não haver mais tantos
des, os a-mais e os a-menos que nela se votantes quantos são os homens, mas
destroem mutuamente108, resta, com o somente tantos quantas são as associa­
som a das diferenças109, a vontade ções. As diferenças tornam-se menos
geral. numerosas e dão um resultado menos
Se, quando o povo suficientemente geral112. E, finalmente, quando uma
informado delibera, não tivessem os dessas associações for tão grande que
cidadãos qualquer com unicação entre se sobreponha a todas as outras, não se
si, do grande número de pequenas dife­ terá mais com o resultado uma som a
renças resultaria sempre a vontade das pequenas diferenças, mas uma
geral e a deliberação seria sempre diferença única — então, não há mais
b oa110. Mas quando se estabelecem vontade geral, e a opinião que dela se
facções111, associações parciais a ex­ assenhoreia não passa de uma opinião
pensas da grande, a vontade de cada particular113.
uma dessas associações torna-se geral Importa, pois, para alcançar o ver­
dadeiro enunciado da vontade geral,
10 7 Cf. E m ílio (l. II) — “ N o s m eus P rin c íp io s que não haja no Estado sociedade par­
d e D ire ito P olítico, ficou dem onstrado que cial e que cada cidadão só opine de
nenhum a vontade particular pode ser ordenada
acordo consigo m esm o11 4. Foi essa a
no sistem a so c ia l” . (N . de L. G . M .)
108 “ C ad a interesse” , diz o M arquês
d’A rgenson, “tem princípios diversos. O acor­ 11 2 N ovam en te, m algrado o s respeitáveis pre­
do de dois interesses particulares se form a por ced en tes, im põe-se evitar um a com preensão
o p o siç ã o ao de um terceiro.” Ele poderia ter “ m atem ática” d os term os: quanto m ais d ife ­
acrescen tado que o acordo de tod os o s interes­ rem entre si as o p in iões, tanto m ais oportun i­
ses se form a por o p o siç ã o ao de cad a um. Se d ad es haverá de emergir o substrato com um , o
não h ou vesse interesses diferentes, reconhe­ que parece sum am ente im provável quando,
cer-se-ia com dificuldade o interesse com um , pela união em facções, as opin iões encontram
que jam ais encontraria ob stácu los. T udo anda­ apoio m útuo nas diferenças fa ccio sa s e não no
ria por si e a política deixaria de ser um a arte*. interesse do todo. (N . de L. G . M.)
(N . do A .) 11 3 Porque a a sso cia çã o supõe o prévio acor­
* Isto é: a organização social funcionaria do de seus a sso cia d o s que se unem, contra as
natural e espontaneam ente, d isp en san do a arte o p in iões divergentes dos dem ais, exatam ente a
p olítica de revelá-la às con sciên cias. (N . de L. fim de sustentar a op in ião com um a toda a
G . M.) a sso cia ç ã o que, contud o, por não ser expres­
10 9 S om a das diferenças: substrato com um às são da vontade geral, “ não passa de um a o p i­
op in iões variadas. T otalm ente inútil será atri­ n ião particular” . (N . de L. G . M.)
buir qualquer sentido “ aritm ético” a esta 1 1 4 “ Vera c o sa è” , disse M aquiavel, “ che al-
expressão e a, outras sem elhantes, pncontra- cuni division i n u ocon o alie repubViche e atetme
d iças em R ou sseau , m uito em bora o façam giovan o: quelle n u ocon o che son o dalle sette e
bon s com entaristas. (N . de L. G . M .) da partigiani accom p agnate: quelle g iovan o
11 0 N ão se supõe, pois, para que se estabeleça che senza sette, senza partigiani, se m anten-
a vontade geral, qualquer acordo conscien te e gono. N o n potendo adunque provedere um
deliberado. M esm o no concerto tácito ou não- fondatore d ’um a republica che non siano nim i-
preparado das opin iões particulares (n ecessa­ c izie in quella, ha de proveder alm eno che non
riam ente discordantes, posto que correspon­ vi siano s e t t e ” (H ist. F lorent., Liv. VII).* (N .
dendo a im pulsos individuais e a interesses do A .)
privados), ela em erge natural e espon tanea­ * “ Em verdade, há divisões que prejudicam as
m ente, p ois que subjaz em todas as c o n sciên ­ repúblicas e outras que lhes aproveitam : preju­
c ia s cap acitad as a exprim ir-se. (N . de L. G . d icia is são as que suscitam seitas e partidários,
M .) p roveitosas, as que se m antêm sem seitas nem
111 N a R e p ú b lic a (1. V), P latão perguntava: partidários. N ão podendo, p ois, o fundador
“ Para um E stado, o m aior m al não é que o dum a república impedir que nela existam
dividam ? que, de um só, façam m u itos?” (N . inim izades, im pedirá ao m enos que haja se i­
de L. G . M .) ta s.” (N . de L. G . M .)
54 R O U SSE A U

única e sublime instituição do grande geral sempre se esclareça e não se en­


Licurgo. C aso haja sociedades par­ gane o povo.
ciais, é preciso multiplicar-lhes o nú­
mero a fim de impedir-lhes a desigual­ 115 Se, de qualquer form a, surgirem partidos,
que sejam então bastante nu m erosos e sufi­
dade, com o o fizeram Sólon, Numa e cientem ente equilibrados em força, para desen ­
Sérvio11 5. Tais precauções são as úni­ volver-se o jogo das suas vontad es à sem e­
cas convenientes para que a vontade lhança dos indivíduos. (N . de L. G . M .)

C a p ítu lo IV

D os limites do poder soberano

N ão sendo o Estado ou a Cidade seus bens e da própria liberdade,


mais que uma pessoa moral, cuja vida convém -se119 em que representa tão-
consiste na união de seus membros, e só aquela parte de tudo isso cujo uso
se o mais importante de seus cuidados interessa à com unidade120. É preciso
é o de sua própria conservação, torna-
se-lhe necessária uma força universal e
com pulsiva para mover e dispor cada 118 Se R ou sseau, na nota a este parágrafo,
pedia ao leitor que não se apressasse em acu­
parte da maneira mais conveniente a sá-lo de contradição, não terá sido atendido,
todos. A ssim com o a natureza dá a pois o trecho — realm ente difícil de ser
cada homem poder' absoluto sobre com preendido — passou a atrair todas as crí­
todos os seus membros, o pacto social ticas. G eorges B eaulavon foi o prim eiro a pro­
por-se a defender as “ con trad ições” do pará­
dá ao corpo político um poder abso­
grafo e de todo o capítulo, não negando sua
luto sobre todos os seus, e é esse existên cia m as recusando-se a considerá-las
mesmo poder que, dirigido pela vonta­ prejudiciais ao fundo do pensam ento de R ou s­
de geral, ganha, com o já disse, o nome seau. D e fato, depois de assen tarm os que os
de soberania11 6. indivíduos, pelo contrato so cia l, renunciam
totalm ente à sua liberdade natural, com o
M as, além da pessoa pública, temos agora admitir que ainda lhes restem parcelas
de considerar as pessoas particulares de direitos naturais à m argem de seu com pro­
que a com põem , e cuja vida e liberdade m isso? Em verdade, R ou sseau não abandonou
naturalmente independem dela. Trata- a idéia da renúncia total do indivíduo, que é a
regra legal, m as apenas admite que o corpo so ­
se, pois, de distinguir os direitos
cial não se interesse pela totalidade do que lhe
respectivos dos cidadãos e do sobera­ é entregue e, p ois, deixe m argem para ações de
n o 11 7, e os deveres que os primeiros interesse puram ente individual. É o que se verá
devem desempenhar na qualidade de a seguir, com o adverte o “esperai” da nota de
R ou sseau. (N . de L. G. M .)
súditos, do direito natural de que
119 A palavra “ con vém -se” não deve ser to­
devem gozar na qualidade de ho­ m ada com o significando um a co n v en çã o , m as
m ens1 1 8. no sentido vulgar: há um a com um con cor­
Relativamente a quanto, pelo pacto dân cia de opin ião a tal respeito. M uito prova­
social, cada um aliena de seu poder, de velm ente, R ou sseau quererá dizer que, neste
pon to, não há discordância m aior entre o s teó­
ricos da política. (N . de L. G . M.)
11 6 V. capítulos VI e VII do Livro I. (N . de L. 120 A interpretação de Beaulavon encontra
G . M.) aqui sua m elhor confirm ação e V aughan acres­
11 7 Leitores atentos, peço que não v o s apres­ cen ta que, graças a essa ressalva, R ousseau
seis em acusar-m e, neste ponto, de contradi­ poderá sustentar m ais adiante a liberdade inte­
ção. N ão a pude evitar nos term os, devido à lectual e religiosa do indivíduo em face do
pobreza da língua, m as esperai. (N . do A .) Estado. (N . de L. G. M)
D O C O N T R A T O SO C IAL II 55

convir, também, em que só o soberano por si mesmo, e, conseqüentemente, da


pode julgar dessa importância121. natureza do hom em 1 2 4 ; a prova de
Todos os serviços que um cidadão que a vontade geral, para ser verdadei­
pode prestar ao Estado, ele os deve ramente geral, deve sê-lo tanto no obje­
desde que o soberano os peça; este, to quanto na essência; a prova de que
porém, de sua parte, não p ode1 22 one­ essa vontade deve partir de todos para
rar os súditos com qualquer pena inútil aplicar-se a todos, e de que perde sua
à comunidade, nem sequer pode dese­ explicação natural quando tende a
já-lo, pois, sob a lei da razão, não algum objetivo individual e determi­
menos do que sob a da natureza, nada nado, porque então, julgando aquilo
se faz sem causa. que nos é estranho, não temos qual­
Os com prom issos que nos ligam ao quer princípio verdadeiro de eqüidade
corpo social só são obrigatórios por para guiar-nos12 5.
serem mútuos, e tal é sua natureza, Com efeito, desde que se trata de um
que, ao cumpri-los, não se pode traba­ fato ou de um direito particular sobre
lhar por outrem sem também trabalhar algo que não esteja regulamentado por
para si mesmo. Por que é sempre certa convenção geral e anterior, a questão
a vontade geral e por que desejam se torna contenciosa1 2 6 : é um pro­
todos constantemente a felicidade de cesso em que os particulares interes­
cada um, senão por não haver ninguém sados representam uma das partes e o
que não se aproprie da expressão cada público a outra, mas no qual não vejo
um e não pense em si mesmo ao votar nem que lei observar, nem que juiz
por todos? — eis a prova de que a deva pronunciar-se. Seria ridículo que­
igualdade de direito123 e a noção de rer, nesse caso, recorrer-se a uma deci­
justiça, por aquela determinada, deri­ são expressa da vontade geral que mais
vam da preferência que cada um tem não pode representar do que a conclu­
são de uma das partes127 e, conse-
121 A gora, chegam os à ligação entre a regra
da alienação total e a “ con trad ição” estudada 12 4 Em outras palavras: no con sen so da v o n ­
nas notas 118 e 120: o soberano pode, de direi­ tade geral, cada qual deve pensar em si, pen­
to, tom ar tudo de que o indivíduo se despoja, sando nos dem ais, e pensar nos dem ais, pen ­
m as, de fato, não o faz, m esm o porque apod e­ sando em si. O egoísm o natural transform a-se
rar-se do que não lhe interessa seria ilógico e no senso de ju stiça do hom em socializad o. (N .
até imoral (cf. Beaulavon). N ã o obstante, per­ de L. G . M .)
m anece com o único juiz de seu próprio inte­ 1 2 5 N o artigo que teria suscitado este cap í­
resse e, p ois, das porções que tom ará para si tulo do C o n tra to S ocial, D íderot supusera que
ou deixará aos súditos. (N . de L. G . M.) a vontad e geral era algo inerente naturalm ente
722 Em v e rd a d e ,'p e la sua força, pode; não aos hom ens e, pois, que cada indivíduo pod ia
pod e, porém , pela ilogicid ade e, portanto, pela conhecer por seus próprios m eios, r a cio ci­
im oralidade de um ato sem cau sa e que será, nando “ no silên cio das p aixões” . R ou sseau ,
conseqüentem ente, contra “ a lei da razão” . pelo contrário, só a conceb e fundada num a
N esse raciocín io há evidente repercussão de transform ação social do hom em e exprim in­
L ocke — “É errôneo supor que o poder supre­ do-se pelo con sen so c oletivo, razão por que só
m o ou legislativo do Estado p o ssa fazer o que pode atender aos interesses com uns em q u es­
quiser e dispor dos bens dos súditos dum a tões gerais. Em tudo que for particular, perde
m aneira arbitrária.” (G o v ern o C iv il, c. IX ) — sua própria razão de ser. (N . de L. G. M.)
e de M ontesquieu — “ A lei não é puro ato de 1 2 6 N o sentido jurídico de “ con ten cioso ad­
poder. A s c o isa s por sua natureza indiferentes m inistrativo”, isto é, respeitante a qu estões
n ão são de sua alçada.” (D o E spírito das L eis, entre a adm inistração pública e o s particu la­
1. X I X , c. X IV .) (N . de L. G. M .) res. (N . de L. G. M.)
123 Isto é: tod os terem direitos iguais. (N . de 12 7 Isto é: interesse público, que será sem pre
L. G . M.) o da vontade geral. (N . de L. G . M .)
56 R O U SSEA U

qüentemente, não passa, para a outra todos nas mesmas condições e devem
parte, de um a vontade estranha, parti­ todos gozar dos mesmos direitos.
cular, nessa ocasião induzida à injus­ Igualmente, devido à natureza do
tiça e sujeita a erro. Assim, do mesmo pacto, todo o ato de soberania, isto é,
modo que um a vontade particular não todo o ato autêntico da vontade geral,
pode representar a vontade geral, esta, obriga ou favorece igualmente todos os
por sua vez, m uda de natureza ao ter cidadãos, de modo que o soberano
objeto particular e não pode, como conhece unicamente o corpo da nação
geral, pronunciar-se nem sobre um e não distingue nenhum dos que a
homem, nem sobre um fato. Quando, compõem. Que será, pois, propria­
por exemplo, o povo de A tenas128 mente, um ato de soberania? Não é
nom eava ou destituía seus chefes, con­ uma convenção entre o superior e o
cedia honrarias a um, impunha penas a inferior, mas um a convenção do corpo
outro e, por múltiplos decretos espe­ com cada um de seus mem bros: con­
ciais, indistintam ente exercia todos os venção legítima por ter como base o
atos do governo, o povo não tinha contrato social131, eqüitativa por ser
mais vontade geral propriam ente dita, comum a todos, útil por não poder ter
não agia mais como soberano, mas outro objetivo que não o bem geral, e
como m agistrado. Isto parecerá con­ sólida por ter como garantia a força
trário às idéias comuns, mas dai-me pública e o poder supremo. Enquanto
tempo para expor as m inhas próprias os súditos só estiverem submetidos a
idéias. tais convenções, não obedecem a nin­
Deve-se compreender, nesse sentido, guém, mas somente à própria vontade,
que, menos do que o número de votos, e perguntar até onde se estendem os
aquilo que generaliza a vontade é o direitos respectivos do soberano e dos
interesse comum que os une129, pois cidadãos é perguntar até que ponto
nessa instituição cada um necessaria­ estes podem comprometer-se consigo
mente se submete às condições que mesmos, cada um perante todos e
impõe aos outros: admirável acordo todos perante cada um.
entre o interesse e a justiça, que dá às Vê-se por aí que o poder soberano,
deliberações comuns um caráter de por mais absoluto, sagrado e inviolável
eqüidade que vimos desaparecer na que seja, não passa nem pode passar
discussão de qualquer negócio particu­ dos limites das convenções gerais132, e
lar, pela falta de um interesse comum que todo o homem pode dispor plena­
que una e identifique a regra do juiz à mente do que lhe foi deixado, por essas
da parte.
convenções, de seus bens e de sua
Por qualquer via que se remonte ao
liberdade, de sorte que o soberano ja-
princípio, chega-se sempre à mesma
conclusão, a saber: o pacto social esta­
belece entre os cidadãos um a tal igual­ 131 V. as “ cláusulas” com que se definiu o
dade^30, que eles se comprometem contrato no capítulo VI do Livro I. (N. de L.
G. M.)
132 O poder soberano fica, pois, adstrito às
128 O exemplo já ocorrera na Economia Polí­ convenções gerais. Não se trata, portanto, de
tica. (N. de L. G. M.) limitações impostas por outro poder ou outros
129 V. notas n.°s 88, 89 e 90, supra. É o interesses, mas de limites inerentes a seu pró­
mesmo princípio geral a que constantemente se prio plano de existência, à sua própria esfera
recorre. (N. de L. G. M.) de ação, à sua própria natureza essencial. Só
130 Só há verdadeira liberdade convencional assim a vontade geral subsistirá como tal. Só
na perfeita igualdade de direitos e deveres. assim se resguarda a liberdade dos indivíduos
Rousseau continua referindo-se ao conceito postos a salvo de quaisquer desigualdades nos
fundamental. (N. de L. G. M.) direitos e nas obrigações. (N. de L. G. M.)
D O C O N T R A T O SO C IA L II 57

mais tem o direito de onerar mais a um nuamente protegida e, quando se ex­


cidadão do que a outro, porque, então, põem para defendê-lo, que fazem,
tornando-se particular a questão, seu senão retribuir-lhe o que dele recebe­
poder não é mais competente. ram? Que fazem que não fariam, mais
U m a vez admitidas tais distinções, a freqüentemente e com maior perigo, no
tal ponto é falso que no contrato social estado de natureza, quando, dando-se
haja por parte dos particulares qual­ combates inevitáveis, defendiam, com
quer verdadeira renúncia, que sua perigo da própria vida, aquilo que lhes
situação, por efeito desse contrato, se serve para conservá-la? E verdade que
torna realmente preferível à que antes todos têm de combater, quando neces­
dele existia, e, em vez de uma aliena­ sário, pela pátria, mas também nin­
ção, .não fizeram senão uma troca van­ guém terá jam ais de combater por si
tajosa de um modo de vida incerto e mesmo 13 4. Quanto à nossa segurança,
precário por um outro melhor e mais não ganhamos ainda em correr uma
seguro, da independência natural pela parte dos riscos que teríamos de correr
liberdade, do poder de prejudicar a ou­ por nós mesmos se ela nos fosse
trem pela segurança própria, e de sua subtraída?
força, que outras podiam dominar, por
um direito que a união social torna 1 3 4 « a guerra é por vezes um dever e não foi
invencível1 3 3 . A própria vida, que feita para ser uma profissão. Todo o homem
devotaram ao Estado, é por este conti- deve ser soldado para defender sua liberdade,
nenhum o deve ser para invadir a liberdade de
133 V. a comparação entre o estado natural e outrem, e morrer servindo à pátria é tarefa bela
o estado civil, do capítulo VIII do Livro I. (N. demais para confiar-se a mercenários.” {Emí­
de L. G. M.) lio, 1. III.) (N. de L. G. M.)

C a p ítu lo V

D o direito de vida e de morte

Pergunta-se como 05 particulares, sua própria vida para conservá-la. J a ­


não gozando, de forma alguma, do mais se disse, daquele que se lança por
direito de dispor da própria vida, uma janela para escapar a um incên­
podem transmitir ao soberano esse dio, que seja culpado de suicídio? J a ­
mesmo direito que não têm1 3 5 . A mais se atribuiu tal crime13 6 àquele
questão só parece difícil de resolver que perece numa tempestade cujo peri­
por estar mal enunciada. Todo o go não ignorava ao embarcar?
homem dispõe do direito de arriscar O tratado social tem como fim a
conservação dos contratantes. Quem
1 3 5 Quem propõe a questão é Locke, no capí­ deseja os fins, também deseja os meios,
tulo IX do Governo Civ.il, ao afirmar que “o
poder do Estado ( . . . ) não poderia ser maior e tais meios são inseparáveis de alguns
do que aquele que todas essas diferentes pes­ riscos e, até, de algumas perdas. Quem
soas tinham no estado de natureza” e que “nin­ deseja conservar sua vida à custa dos
guém tem um poder absoluto e arbitrário sobre outros, também deve dá-la por eles
si mesmo ou sobre outrem para tirar-se a vida
ou tirá-la a quem quer que seja ( . . . ) só che­
gando seu poder até onde as leis da natureza o 136 O suicídio é um crime perante o direito
permitam para a conservação de sua pessoa e natural, como se lê na N ova Heloísa (III parte,
a do gênero humano”. (N. de L. G, M.) carta 22). (N. de L. G. M.)
58 R O U SSE A U

quando necessário13 7. Ora, o cidadão Os processos e o julgam ento são as


não é m ais juiz do perigo ao qual a lei provas e a declaração de ter ele rom pi­
quer que se exponha e, quando o prín­ do o tratado social, não sendo mais,
cipe lhe diz: “E útil ao Estado que conseqüentemente, membro do Estado.
m orras” , deve m orrer, pois foi exata­ Ora, como ele se reconhecera tal ao
mente por essa condição que até então menos por sua residência1 40, deve ser
viveu em segurança e que sua vida não isolado pelo exílio, como infrator do
é mais m era dádiva da natureza, pacto, ou pela morte, como inimigo
porém um dom condicional do Esta­ público. Porque, não sendo tal inimigo
d o 138. um a pessoa m oral141, m as um
A pena de m orte infligida aps crimi­ homem, então o direito da guerra é o
nosos pode ser considerada, aproxim a­ de m atar o vencido.
damente, do mesmo ponto de vista139 Mas, dir-se-á, a condenação de um
— é p ara não tornar-se vítima de um criminoso é um ato particular. Estou
assassino que se consente em morrer, de acordo; além disso, essa condena­
caso se venha a ser assassino. Em tal ção não pertence ao soberano — é um
tratado, longe de dispor da própria direito que ele pode conferir sem poder
vida, só se pensa em garanti-la, e não ele próprio exercer. Todas as minhas
se presum e que, por isso, qualquer dos idéias se entrelaçam, m as não posso
contratantes premedite fazer-se enfor­ expô-las ao mesmo tempo.
car. Ademais, a freqüência dos suplícios
Adem ais, qualquer malfeitor, ata­ é sempre um sinal de fraqueza ou de
cando o direito social, pelos seus cri­ preguiça do governo. Não existe ne­
mes torna-se rebelde e traidor da pá­ nhum mau que não possa tornar-se
tria, deixa de ser um seu membro ao bom para algum a coisa. Só se tem o
violar suas leis e até lhe move guerra. direito de m atar, mesmo p ara exemplo,
A conservação do Estado é então aquele que não se pode conservar sem
incompatível com a sua, sendp preciso perigo1 42.
que um dos dois pereça, e, quando se Quanto ao direito de conceder graça
faz que um culpado m orra, é menos ou de isentar um culpado da pena esta­
como cidadão do que como inimigo. belecida pela lei e pronunciada pelo
juiz, só pertence àquele que esteja
1 3 7 Pelo contrato, a vida de cada um passa a acima do juiz e da lei, isto é, ao sobera­
ser garantida pelo Estado que, pois, pode dis­ no; em bora neste particular seu direito
por, para tanto, de todas as forças, inclusive as não seja muito nítido e muito raros os
vidas que lhe foram entregues. Corresponden­ casos em que pode usá-lo. Num Estado
temente, cada qual está obrigado a sacrificar-
se, em caso de necessidade, se assim mandar o bem governado, há poucas punições,
soberano nunra decisão de ordem geral. (N. de não porque se concedam m uitas gra­
L. G. M.) ças, mas por haver poucos crim inosos;
Todos os direitos, inclusive o direito à
vida, foram alienados ao Estado e, desde 1 40 No Livro IV,capítulo II, assentar-se-á que
então, deste dependem, nos termos condicio­ a residência no território do Estado equivale à
nais do contrato. (N. de L. G. M.) tácita aceitação de suas leis. (N. de L. G. M.)
139 Isto é: baseia-se no consentimento do 1 41 Isto é: retornou à sua simples condição
indivíduo, como se deu no contrato, e na prote­ individual. (N. de L. G. M.)
ção da sociedade. Em verdade, a pena de 1 42 Embora não a exponha de forma nítida,
morte só conheceu o primeiro ataque frontal (e Rousseau aproxima-se da teoria, mais tarde
esse mesmo, sentimental e demasiado genéri­ defendida por Beccaria, segundo a qual só se
co) com Os Delitos e as Penas de Beccaria, pode m atar em legítima defesa. (N. de L. G.
publicado em 1764. (N. de L. G. M.) M.)
D O C O N T R A T O SO C IAL II 59

o grande número de crimes assegura a minosos delas não terão mais necessi­
sua impunidade quando o Estado defi­ dade e todos podem ver aonde isso
nha. N a república rom ana, nem o se­ leva. Sinto, porém, que meu coração
nado nem os cônsules jam ais tentaram m urm ura e retém m inha pena: deixe­
conceder graça, e mesmo o povo não o mos essas questões para serem discuti­
fazia, em bora por vezes revogasse seu das pelo homem justo que nunca fa­
próprio julgamento. As graças fre­ lhou e nunca tenha tido, ele próprio,
qüentes anunciam que em breve os cri­ necessidade de graça.

C a p it u l o VI

Da lei

Pelo pacto social demos existência e ções hum anas1 4 4. Toda a justiça vem
vida ao corpo político. Trata-se, agora, de Deus, que é a sua única fonte; se
de lhe dar, pela legislação, movimento soubéssemos, porém, recebê-la de tão
e vontade, porque o ato primitivo, pelo alto, não teríam os necessidade nem de
qual esse corpo se form a e se une, nada governo, nem de leis. Há, sem dúvida,
determina ainda daquilo que deverá um a justiça universal em anada somen­
fazer para conservar-se1 43. te da razão; tal justiça, porém, deve ser
Aquilo que está bem e consoante à recíproca para ser admitida entre nós.
ordem, assim o é pela natureza das coi­ Considerando-se humanamente as coi­
sas e independentemente das conven­ sas, as leis da justiça, dada a falta de
sanção natural, tornam -se vãs para os
homens; só fazem o bem do mau e o
143 No Emílio (ao resumir o Contrato Social
que só contava publicar mais tarde), Rousseau
afirma, ao falar da lei, que “o assunto é abso­ 144 O caráter vivo e dinâmico da vida em
lutamente novo; a definição de lei resta por sociedade (v. nota anterior) é aqui oposto ao
fazer” . Vê-se, pois, que considerava sua contri­ estatismo duma vida conformada exclusiva­
buição como algo inteiramente original. E, de mente pela ordem natural. Em todo o pará­
fato, o é na medida em que seus antecessores, grafo, Rousseau esforçar-se-á por deixar bem
ao tratar da questão, ou seguiam o esquema claro que, qualquer que seja a origem superior
tradicional para pôr em relação a lei natural e que se atribua (ou melhor: que seus anteces­
a lei positiva, ou, como Montesquieu fizera sores e contemporâneos atribuam) à justiça
pela primeira vez, aceitavam as leis tais como (seja Deus, seja a razão), esse primeiro princí­
são para investigar suas relações com certas pio não basta para escapar à necessidade de
circunstâncias geográficas, ecológicas e so­ firmar convenções e estatuir leis que estabe­
ciais. Abandonando qualquer relação neces­ leçam os padrões das relações entre os
sária com a lei natural — pois, se o corpo so­ homens. Permanece ainda presente algo das
cial é fruto de uma convenção, suas leis não críticas a Diderot, do capítulo anterior. De
podem ter outra fonte — , Rousseau não se fato, não se pode esperar que, cada um consul­
satisfaz com saber como são as leis feitas pelo tando sua consciência, sobrevenha a conver­
homem, mas quer sobretudo saber como gência espontânea de todos: desprovidas de
devem ser, tendo em conta sua origem e sua sanção natural, as leis (racionais ou divinas)
essência. Mais ainda: tendo plena noção de da justiça viriam a ser um peso injustamente
que, ao desenvolver sua teoria do contrato, só imposto aos que as obedecessem, porquanto
vira a sociedade em sua organização e estrutu­ não seriam obedecidas por todos. Impõe-se
ra, deseja agora examinar-lhe o dinamismo: restabelecer, mais uma vez, a igualdade de
além da “ existência e vida” do corpo social, é direitos e deveres e isso só se conseguirá pela
preciso conhecer seu “ movimento e vontade” . sanção coletiva, isto é, de todos a todos. (N. de
(N. de L. G. M.) L. G. M.)
60 R O U SSE A U

mal do justo, pois esté as observa com guais. Segue-se qüe a vontade de uma
todos, sem que ninguém as observe não é mais geral em relação à
com ele, São, pois, necessárias conven­ outra 1 4 7.
ções e leis para unir os direitos aos M as, quando todo o povo estatui
deveres, e conduzir a justiça a seu algo para todo o povo, só considera a
objetivo. N o estado de natureza, no si mesmo e, caso se estabeleça então
qual tudo é comum, nada devo àqueles uma relação, será entre todo o objeto
a quem nada prometi; só reconheço sob um certo ponto de vista e todo o
como de outrem aquilo que me é inútil. objeto sob um outro ponto de vista 1 48,
Isso não acontece no estado divil, no sem qualquer divisão do todo. Então, a
qual todos os direitos são fixados pela matéria sobre a qual se estatui é geral
Lei. como a vontade que a estatui. A esse
M as que será, finalmente, uma lei? ato dou o nome de lei.
Enquanto se contentarem em ligar a Quando digo que o objeto das leis é
essa palavra somente idéias metafísi­ sempre geral, por isso entendo que a
cas 1 4 5, continuar-se-á a raciocinar Lei considera os súditos como corpo e
sem fazer-se compreender, e, quando as ações como abstratas, e jam ais um
se disser o que é uma lei da natureza, homem como um indivíduo ou uma
não se saberá melhor o que é uma lei ação particular 1 49. Desse modo, a Lei
do Estado.
J á disse não haver vontade geral 147 O símile geométrico aqui empregado por
Rousseau, aliás como todas as comparações
visando objeto particular1 4 6 . Com de ordem matemática que se encontram no
efeito, esse objeto particular encontra- Contrato Social, tem suscitado a resistência
se dentro ou fora do Estado. Se está dos comentaristas, que o qualificam de obscu­
fora do Estado, uma vontade que lhe é ro. Ora, a analogia é meramente superficial,
verbal. Ademais, toma-se claro que Rousseau
estranha não é geral em relação a ele.
aqiii figura duas hipóteses nitidamente confi­
Se está no Estado, faz parte dele: for­ guradas acerca dos efeitos das decisões do
ma-se então, entre o todo e a parte, corpo político quando delibera sobre algo de
uma relação que produz dois seres particular: a) se o objeto está fora da alçada do
separados, sendo a parte um deles, e o Estado em questão, não pode ser do interesse
de nenhum dos membros do corpo político e,
todo, menos essa parte, o outro. M as o pois, não haverá vontade geral; b) se, no inte­
todo menos uma parte não é o todo e, rior do Estado, o objeto é particular, na melhor
enquanto subsistir essa relação, não hipótese interessará a alguns membros do
existe o todo, senão duas partes desi­ corpo e, pois, transformar-se-á no motivo de
uma relação entre os interessados e os não-in-
teressados, com o que, novamente, não haverá
1 4 5 Nessa ironia se tem enxergado uma crí­ vontade geral. Comprova-se o princípio: não
tica a Montesquieu que, na, parte inicial do D o há vontade geral visando objeto particular. (N.
Espírito das Leis, esmiuçava os vários sentidos de L. G. M.)
da palavra “lei” e as relações entre a lei civil e 1 4 8 Os dois pontos de vista são o ponto de
a \ei natural. Não obstante, Rousseau não só vista dos membros do soberano, ao estatuírem
reconheceu explicitamente o valor excepcional a lei, e o ponto de vista dos súditos, que a
de Montesquieu, mas ainda buscou marcar a obedecerão, tendo-se presente que membros do
diferença de suas posições. Seriam, pois, inú­ soberano e súditos são os mesmos indivíduos
teis quaisquer referências irônicas ao D o Espí­ que constituem o corpo político. (N. de L. G.
rito das Leis, sobretudo quando “metafísica” M.)
era quase a totalidade das teorias então em 1 49 Que não há direito “ad hominem”, ou
curso sobre a lei. (N. de L. G. M.) seja, disposição legislativa que vise particular­
146 V. capítulo IV deste mesmo Livro. (N. de mente determinada pessoa, é princípio que se
L. G. M.) integrou no direito público moderno. Rousseau
D O C O N T R A T O SO C IA L II 61

podérá muito bem estatuir que haverá não passam de registros de nossas
privilégios, mas ela não poderá conce­ vontades 1 5 3 .
dê-los nominalmente a ninguém: a Lei Vê-se ainda que, reunindo a Lei a
pode estabelecer diversas classes de universalidade da vontade e a do obje­
cidadãos, especificar até as qualidades to, aquilo que um homem, quem quer
que darão direito a essas classes, mas seja, ordena por sua conta, não é mais
não poderá nomear este ou aquele para uma lei: o que ordena, mesmo o sobe­
serem admitidos nelas; pode estabe­ rano, sobre um objeto particular não é
lecer um governo real e uma sucessão uma lei, mas um decreto, não é ato de
hereditária, mas não pode eleger um soberania, mas de magistratura 1 5 4.
rei ou nomear uma família real. Em Chamo pois de república todo o E s­
tado regido por leis, sob qualquer
suma, qualquer função relativa a um
forma de administração que possa
tíbjeto individual não pertence, de
conhecer, pois só nesse caso governa o
modo algum, ao poder legislativo 1 50.
interesse público e a coisa pública 1 6 5
Baseando-se nessa idéia, vê-se logo passa a ser qualquer coisa. Todo o
cfue não se deve mais perguntar a qiiem governo legítimo é republicano 1 5 6.
cabe fazer as leis, pois são atos da von­ Explicarei logo adiante o que é gover­
tade geral, nem se o príncipe 1 51 está no.
acima das leis, visto que é membro do A s leis não são, propriamente, mais
Estado; ou se a Lei poderá ser injusta, do que as condições da associação
pois ninguém é injusto consigo civil. O povo, submetido às leis, deve
ser o seu autor. Só àqueles que se asso­
mesmo 1 5 2 , ou como se pode ser livre e
ciam cabe regulamentar as condições
estar sujeito às leis, desde que estas
da sociedade. M as, como as regula-
formula com rigor teorético o que Locke entre­
vira em termos prático-empíricos: “Os regula­ 1 53 “Ê-se livre quando submetido às leis,
mentos serão os mesmos para o rico e para o 1 porém não quando se obedece a um homem,
pobre, para o favorito e para o cortesão, para o porque nesse último caso obedeço à vontade
burguês e para o trabalhador”. (Governo Civil, de outrem, enquanto obedecendo à lei não obe­
c. X.) Já Burlamaqui, na esteira de sua escola, deço senão à vontade pública que tanto é
acreditava que o legislador, se pode derrogar minha como de quem quer que seja” — dizia
toda a lei, melhor ainda poderia suspender Rousseau no manuscrito de Neuchâtel. (N. de
seus efeitos para tal ou qual pessoa. (Princí­ L. G. M.)
p io s de Direito Natural, 1.1, c. X.) (N. de L. G. 154 Cf. Platão (Leis l. IV): “Se aos magis­
M.J trados chamei de servidores da lei, não foi por
1 5* Ao executivo, na ação governamental, desejar mudar o sentido habitual dos termos,
toca aplicar aos casos particulares e às pessoas mas por estar persuadido de que a salvação do
a regra geral da lei. Esta, por sua própria natu­ Estado depende prinçipalmente disso, en­
reza, obriga o legislativo a manter-se em plano quanto o contrário fatalmente trará sua ruína”.
bem diverso. (N. de L. G. M.) (N. de L. G. M.)
161 O governo, nãa importando sua forma ou 155 No sentido etimológico da palavra “repú­
composição. (N. de L. G. M.) blica”. (N. de L. G. M.)
1 52 Claro que esta expressão não é rigorosa­ i s 6 por essa palavra não entendo somente
mente baseada na realidade concreta, pois um uma aristocracia ou uma democracia, mas em
homem pode ser injusto consigo mesmo. Mas, geral todo governo dirigido pela vontade geral,
em tal ,çaso, o seria por erro ou paixão — vol­ que é a lei. Para ser legítimo, não é preciso que
tamos sempre à regra socrática do “ninguém é o governo se confunda com o soberano, mas
mau voluntariamente” (v. nota 105, supra), que seja seu ministro. Então, a própria monar­
agora compreendida na forma reflexiva. (N. de quia é república. Isso será esclarecido no Livro
L. G. M.) iseguinte. (N. do A.)
62 R O U SSE A U

mentarão? Será por um comum acor­ rejeitam; o público quer o bem que não
do, por uma inspiração súbita? O discerne. Todos necessitam, igual­
corpo político dispõe de um órgão mente, de guias 1 58. A uns é preciço
para enunciar suas vontades? Quem obrigar a conformar a vontade à razão,
lhe dará a previsão necessária para e ao outro, ensinar a conhecer o que
constituir e publicar antecipadamente quer. Então, das luzes públicas resulta
os atos relativos a tais vontades? Ou a união do entendimento e da vontade
como as manifestaria em caso de no corpo social, daí o perfeito con­
urgência? Com o uma multidão cega, curso das partes e, enfim, a maior
que freqüentemente não sabe o que de­ força do todo. Eis donde nasce a neces­
seja porque raramente sabe o que lhe sidade de um Legislador.
convém, cumpriria por si mesma em­
presa tão grande e tão difícil quanto
um sistema de legislação? O povo, por 1 5 7 Uma das interpretações mais simplistas
si, quer sempre o bem, mas por si nem (porém não pouco encontradiça) do pensa­
sempre o encontra. A vontade geral é mento de Rousseau deseja fazê-lo um defensor
da infalibilidade da vontade geral. De equiva­
sempre certa, mas o julgamento que a lente simplificação decorreu uma “mística
orienta nem sempre é esclarecido 1 5 7 . democrática” que veria no povo soberano uma
É preciso fazê-la ver os objetos tais fonte de decisões perfeitas. Ora, se Rousseau
como são, algumas vezes tais como exaltou a vontade geral, foi para deixar bem
claro que na sua ausência não há lei, nem
eles devem parecer-lhe, mostrar-lhe o
governo legítimo. Não obstante, sua simples
caminho certo que procura, defendê-la presença não constitui garantia absoluta,
da sedução das vontades particulares, senão quando esclarecida. Também a vontade
aproximar a seus olhos os lugares e os geral pode errar. É o que fica claramente
tempos, por em balanço a tentação das expresso nesse trecho, base, aliás, da teoria do
“Legislador” que a seguir se exporá. (N. de L.
vantagens presentes e sensíveis com o G. M.)
perigo dos males distantes e ocultos. 1 58 Ou seja: do Legislador. (V. nota anterior.)
Os particulares discernem o bem que (N. de L. G. M.)

C a p itu lo VII

D o Legislador

Para descobrir as melhores regras dente de nós e, contudo, quisesse dedi­


de socieade que convenham às nações, car-se a nós, que, finalmente, alme­
precisar-se-ia de uma inteligência supe­ jando uma glória distante, pudesse
rior 1 59, que visse todas as paixões dos trabalhar num século e fruí-la em
homens e não participasse de nenhuma outro 1 60. Seriam precisos deuses1 61
para dar leis aos homens.
delas, que não tivesse nenhuma relação
com a nossa natureza e a conhecesse a
1 60 Um povo só se torna célebre quando sua
fundo; cuja felicidade fosse indepen­ legislação começa a declinar. Ignora-se por
quantos séculos a instituição de Licurgo deter­
minou a felicidade dos espartanos antes que se
1 59 Não se trata de alguém superdotado falasse deles no resto da Grécia. (N. do A.)
intelectualmente, como se vê pelo restante do 1 61 Temos anotado como, na linguagem de
parágrafo. As qualidades excepcionais que Rousseau, as referências à divindade sempre
Rousseau supõe no Legislador dizem mais res­ significam o caráter supra-humano do fenô­
peito ao conteúdo e intenção de suas inicia­ meno coletivo. Mais uma vez, tal é o sentido: o
tivas do que a suas capacidades naturais, em­ Legislador é aquele, entre os homens, que mais
bora essas não possam ser subestimadas. (N. clara consciência tem dos problemas comuns.
de L. G. M.) (N. de L. G. M.)
D O C O N T R A T O SO C IA L II 63

O mesmo raciocínio que Calígu- uma palavra, é preciso que destitua o


la 1 62 fazia quanto ao fato, Platão homem de suas próprias forças para
fazia quanto ao direito para definir o lhe dar outras que lhe sejam estra­
homem civil ou real que ele procura no nhas 1 6 7 e das quais não possa fazer
seu livro D e R eg n o 1 63. M as, se é ver­ uso sem socorro alheio. N a medida em
dade que um grande príncipe é um que tais forças naturais estiverem mor­
homem raro, que se diria de um grande tas e aniquiladas, mais as adquiridas
Legislador? Aquele só tem de seguir o serão grandes e duradouras, e mais só­
modelo que este deve propor.. Este é o lida e perfeita a instituição, de modo
mecânico que inventa a máquina, que, se cada cidadão nada for, nada
aquele não passa do trabalhador que poderá senão graças a todos os'outros,
a monta e a faz movimentar-se. “ No e se a força adquirida pelo todo for
nascimento das sociedades” , diz igual ou superior à soma das forças
Montesquieu, “ são os chefes das repú­ naturais de todos os indivíduos1 68,
blicas que fazem a instituição e, de­ poderemos então dizer que a legislação
pois, a instituição é que forma os che­ está no mais alto grau de perfeição que
fes das repúblicas1 6 4.” possa atingir.
Aquele que ousa empreender a insti­ O Legislador, sob todos os aspectos,
tuição de um povo deve sentir-se com é um homem extraordinário no Esta­
capacidade para, por assim dizer, do 1 69. Se o deve ser pelo gênio, não o
mudar a natureza humana 1 6 5 , trans­ será menos pelo ofício. Este não é
formar cada indivíduo, que por si magistratura, nem é soberania. Tal ofí­
mesmo é um todo perfeito e solitário, cio, que constitui a república, não
em parte de um todo maior, do qual de pertence à sua constituição 1 70, por ser
certo modo esse indivíduo recebe sua uma função particular e superior que
vida e seu ser; alterar a constituição do nada tem de comum com o império
homem para fortificá-la; substituir a
existência física e independente, que
1 6 7 Estranhas ao homem individual, isto é, ao
todos nós recebemos da natureza, por plano dos impulsos irrestritos. Se o homem
uma existência parcial 1 6 6 e moral. Em não é naturalmente social — como se quis de
Aristóteles a Diderot — , impõe-se substituir
suas ações instintivas naturais por padrões de
1 62 Ver a referência do capítulo II do Livro I. comportamento comuns a todos e capazes de
(N. de L. G. M.) habilitá-lo à sobrevivência no seio do grupo de
163 No original vem “du règne”, seguramente semelhantes. (N. de L. G. M.)
referindo-se a D e Régno, denominação impró­ 168 A hipótese contrária seria a anarquia. A
pria, p o r é m corrente, no tempo do Político de força comum nao se.imporia suficientemente
Platão, onde figura a questão citada por Rous­ para dirimir choques entre os particulares. E
seau. Mais adiante (Livro III, capítulo VI), o esses não teriam motivos para sacrificar suas
mesmo texto é citado, com mais pertinência, próprias forças naturais, sem ganhar uma
como Civilis. (N. de L. G. M.) compensação ao menos a elas equivalente. (N.
164 V. cap. I, de Grandeza e Decadência dos de L. G. M.)
Rom anos. (N. de L. G.. M.) 1 69 Assim teria se sentido Rousseau quando
1 6 5 A “socialização” do indivíduo, sua trans­ traçou os projetos constitucionais para a Cór­
formação pela vida coletiva, como se vem sega e a Polônia? (N. de L. G. M.)
comentando em sucessivas notas. O Legisla­
170 Se o Legislador não é um ser mais pode­
dor é, pois, alguém consciente desse processo
roso que os outros, por isso mesmo nem terá
necessário e fundamental, que se dispõe a esti­
poderes sobre eles, nem sua ação se compreen­
mulá-lo, facilitá-lo e até completá-lo pelas
derá na existência comum da república, sendo
instituições. (N. de L. G. M.)
anterior e superior a ela, e, sobretudo, uma
1 6 6 Entenda-se esse “parcial” (no original:, ação particular. O Legislador que passassç a
“partielle”) não como uma existência vivida governar seria o pior dos déspotas, pois os dés­
“em parte”, senão como vivida enquanto potas, afinal, não começam por arrogar-se as
“parte” do todo social. (N. de L. G. M.) atribuições de Legislador? (N. de L. G. M.)
€4 R O U SSE A U

humano, pois, se aquele que governa diziam ao povo, “ poderá transformar-


os homens não deve governar as leis, o se em lei sem o vosso consentimento.
que governa as leis não deve também Romanos, sede vós mesmos os autores
governar os homens: de outra forma, das leis que devem fazer vossa felicida­
suas leis, instrumentos de suas paixões, de.”
freqüentemente não fariam mais do Aquele, pois, que redige as leis, não
que perpetuar suas injustiças e jamais tem nem deve ter qualquer direito
ele poderia evitar que pontos de vista legislativo. O próprio povo não pode­
particulares alterassem a integrida­ ria, se o desejasse, despojar-se desse
de 1 71 de sua obra. direito incomunicável, porque, segun­
Quando Licurgo deu leis à sua pá­ do o pacto fundamental, só a vontade
tria, começou por abdicar a sua reale­ geral obriga os particulares e só pode­
za. Era costume da maioria das cida­ mos estar certos de que uma vontade
des gregas confiar o estabelecimento particular é conforme à vontade geral
de suas leis a estrangeiros. A s repú­ depois de submetê-la ao sufrágio livre
blicas modernas da Itália imitaram, do povo. J á o tinha dito, mas não é
freqüentemente, esse uso; ad e Genebra inútil repeti-lo1 7 3 *
assim o fez e deu-se bem 1 72. Roma, na Assim, na obra da legislação encon­
época mais bela, viu renascer em seu tramos, ao mesmo tempo, dois elemen­
seio todos os crimes da tirania e esteve tos que parecem incompatíveis: uma
em vias de perecer por haver reunido empresa acima das forças humanas e,
nas mesmas cabeças a autoridade para executá-la, uma autoridade que
legislativa e o poder soberano. nada é.
Os próprios decênviros, no entanto, Outra dificuldade merece atenção.
nunca se arrogaram o direito de ditar Os sábios que desejassem falai ao
uma lei fundada somente na sua auto­ vulgo na linguagem deste, em lugar da
ridade. “ N ada do que vos propomos” , sua própria linguagem, não poderiam
ser compreendidos, pois há inúmeras
espécies de idéias impossíveis de tradu­
1 71 No original: “sáinteté”. V. nota 68, supra.
(N. de L. G. M.) zir-se na língua do povo. Os pontos de
172 Os que consideram Calvino somente um vista muito gerais e os objetivos ínuito
teólogo nãG conhecem bem a extensão de seu distantes encontram-se igualmente fora
gênio. A redação de nossos sábios editos, da de seu alcance; cada indivíduo, não
qual participou ativamente, honra-o tanto
discernindo outro plano de governo
quanto sua Instituição*. Qualquer que seja a
revolução que o tempo possa trazer a nosso além daquele que se relaciona com seu
culto, enquanto o amor à pátria e à liberdade interesse particular, dificilmente perce­
não se extinguir entre nós, jamais a memória be as vantagens que pode tirar das con­
desse grande homem deixará de ser abençoa­ tínuas privações que as boas leis lhe
da**. (N. do A.)
impõem. A fim de que um povo nas­
* A Instituição da Religião Cristã de Calvino,
obra básica da Reforma genebrina, foi escrita
cente possa compreender as sãs máxi­
em latim e publicada em 1536. Teve sua pri­ mas da política, e seguir as regras
meira edição francesa em 1541. (N. de L. G. fundaiiientais da razão de Estado, seria
necessário que o efeito pudesse tomar-
** Mais tarde, Rousseau abrandaria seu entu­
siasmo: “Calvino sem dúvida era um grande
homem, mas era, enfim, um homem e, pior 1 73 Confirma-se, pois, que a ação do Legisla­
ainda, um teólogo; tinha, aliás, todo o orgulho dor é particular e em caso algum sè confundirá
do gênio que sente sua superioridade e que se com a vontade geral. Esta, com a força que lhe
indigna quando a vê disputada”. (Cartas da é inerente e instransferível, consagrará sua
M ontanha, II.) (N. de L. G. M.) obra. (N. de L. G. M.)
D O C O N T R A T O SO C IA L II 65

se causa, que o espírito social — que docilmente ao jugo da felicidade públi­


deve ser a obra da instituição — presi­ ca.
disse à própria instituição, e que os ho­ Essa razão sublime, que escapa ao
mens fossem antes das leis o que deve­ alcance dos homens vulgares, é aquela
riam tornar-se depois delas 1 7 4. Desse cuja§ decisões o Legislador põe na
modo, pois, o Legislador, não podendo boca dos imortais, para guiar pela
empregar nem a força nem o raciocí­ autoridade divina os que a prudência
nio, recorre necessariamente a uma humana não poderia abalar1 7 6. Não é
autoridade de outra ordem, que possa todo homem, porém, que pode fazer os
conduzir sem violência e persuadir sem deuses falarem, nem ser acreditado
convencer. quando se apresenta como seu intér­
Eis o que, em todos os tempos, for­ prete. A grande alma do Legislador é o
çou os pais das nações a recorrerem à verdadeiro milagre que deverá autenti­
car sua missão. Qualquer homem pode
intervenção do céu e a honrar nos deu­
gravar tábuas de pedra, comprar um
ses sua própria sabedoria1 7 5, a fim de
oráculo, fingir um comércio secreto
que os povos, submetidos às leis do E s­
com qualquer divindade, adestrar um
tado como às da natureza e reconhe­
pássaro para lhe falar na orelha, ou
cendo os mesmos poderes na formação encontrar outros meios grosseiros de
do homem e na da Cidade, obede­ impor-se ao povo 1 7 7. Aquele que só
cessem com liberdade e se curvassem souber isso, poderá até reunir casual­
mente um grupo de insensatos, mas ja ­
174 O Legislador, pela.clara visão dos fins da mais fundará um império, e sua estra­
sociedade, antecipará, pois, a tomada de cons­
nha obra logo perecerá consigo.
ciência que ejn cada indivíduo significa, real­
mente, a adesão ao pacto social. Seria, portan­ Prestígios vãos tecem um liame passa­
to, de exagerado rigorismo querer determinar geiro; só a sabedoria o toma duradou­
um momento histórico para tal instituição, ro. A lei judaica, sempre subsistente, e
sobretudo citando os exemplos, oferecidos por a do filho de Ismael1 78, lei que há dez
Rousseau, de Licurgo, Sólon, Calvino, etc. A
qualquer momento da vida social pode-se dar
a instituição legítima e ao pensamento de 176 “E veramente”, diz Maquiavel, “mai no
Rousseau não repugnaria a idéia de renova­ fü alcuno ordinatore di leggi straordinari in un
ção, de revisão das instituições, como deixa populo, che non ricoresse a Dio, perchè altri-
claro a referência ao reformador de Genebra. menti non sarebbero accetatte: perchè sono
Mesmo nos estágios iniciais, pode haver vida molti boni conosciuti da uno prudente i quali,
em grupo sem a suposição de uma legislação non hanno in se raggioni evidenti da potergli
explícita, mais-do-que-costumeira; basta ter persuadere ad altrui.” (Discorsi sopra Tito
em conta a idéia de “sociedades nascentes” Livio, Liv. I, c. XI.)* (N. do A.)
pré-políticas, tal como encontramos no segun­ * “Em verdade, jamais existiu, no seio de um
do Discurso e no Ensaio sobre a Origem das povo, instituidor de leis extraordinárias que
Línguas. (N. de L. G. M.) não recorresse a Deus, pois de outra forma
1 7 5 A aguda análise de Rousseau nos diz que, elas não seriam aceitas, p o i s qUe há muitos
mais uma vez, o contrato é mero símbolo e que bens conhecidos pelo sábio e que em si não
as instituições políticas podem e até devem têm razões tão evidentes que aos demais
fazer-se no universo de discurso da sociedade a persuadam.” (Maquiavel, Discursos sobre a
que se destinam. Mais ainda, nisso não vai ne­ Primeira Década de Tito Lívio, Liv. I, c. XI.)
nhum engodo ao discernimento e à vontade (N. de L. G. M.)
dos homens, pois seu entendimento e vontade é 177 Tais os estratagemas memoráveis dos
que criaram ou aceitaram as divindades diante antigos legisladores, como Moisés, com as tá­
das quais se inclinarão. E não encontraríamos, buas da lei, Numa, etc. (N. de L. G. M.)
nesta passagem, a fonte da aproximação que 178 O Corão, a lei de Maomé. Os árabes
Rousseau faz, freqüentemente, entre o social e consideram-se descendentes dos ismaelitas. (N.
o divino? (N. de L. G. M.) de L. G. M.)
66 R O U SSE A U

séculos rege a metade do mundo, indi­ nações, uma serve de instrumento à


cam ainda hoje os grandes homens que outra1 8 1 .
a ditaram e, enquanto a orgulhosa filo­
sofia ou o cego espírito faccioso não Aliança da Igreja com o Estado e da Missão
vêem neles mais do que impostores de Divina de Moisés. Nesta última, considerava a
sorte1 79, o verdadeiro político admira religião principalmente no que tem de crença
em penas e recompensas na outra vida, um
nas suas instituições esse grande e
sustentáculo da sociedade. Essa utilidade,
poderoso gênio que preside os estabele­ dizia Warburton, é reconhecida até pelos que
cimentos duradouros. não endossam a verdade dos dogmas de fé. (N.
Não se deve concluir, de tudo isso, de L. G. M.)
1 81 No famoso capítulo II da primeira versão
como W arburton 1 80, que a política e a do Contrato Social (Manuscrito de Genebra),
religião têm, entre nós, um objeto Rousseau opunha-se frontalmente à idéia de
comum, mas sim que, na origem das “fazer intervir a vontade de Deus para unir a
sociedade humana”, o que, afinal, não passava
de uma versão teísta da “sociabilidade natu­
1 79 Nessa crítica à arrogante e infundada ati­ ral” defendida por Diderot na Enciclopédia.
tude de superioridade do europeu da “época Agora, o seu pensamento se modifica, mas, se
das luzes” em face dos grandes líderes de ou­ é preciso “fazer os deuses falarem”, quem o
tras culturas, vai uma alusão direta a Voltaire, faz é o Legislador — trata-se, pois, de um
cujo M aom é pintava o profeta árabe como recurso político e não de um princípio religio­
mero impostor, e em cuja opinião os judeus se­ so. E o capítulo se concluiu com todas as res­
riam perigosos fautores de intolerância. Quan­ salvas: a religião não tem objeto comum com a
do leu o Contrato Social, Voltaire anotou à política, mais não sendo do que um “instru­
margem desse parágrafo: “Q ual! sempre have­ mento” desta, e, ainda assim, tal recurso fica
rás de contradizer a ti mesmo”. (N. de L. G. limitado ao momento de origem das nações.
M.) Rousseau não quer, de forma alguma, dizer
180 Bispo de Gloucester (1698-1770), autor “amém” à política teocrática do bispo War­
de obras teológicas, de um tratado sobre a burton. (N. de L. G. M.)

C a p ítu lo VIII

D o povo

Assim como, antes de erguer um Platão recusou dar leis aos árcades e
grande edifício, o arquiteto observa e aos cirênios, pois sabia serem ricos
sonda o solo para verificar se susten­ esses dois povos e não poderem admi­
tará o peso da construção, o instituidor tir a igualdade; por isso, também
sábio 182 não começa por redigir leis houve em Creta boas leis e homens
boas em si mesmas, mas antes examina
ruins, pois Minos havia simplesmente
se o povo a que se destinam mostra-se
disciplinado um povo cheio de vícios.
apto a recebê-las1 8 3 . Por esse motivo
Brilharam na terra inúmeras nações
que jamais poderiam viver sob leis
182 O Legislador. (N. de L. G. M.)
183 É preciso ter em conta que progressiva­ boas e mesmo aquelas que o poderiam
mente o Contrato Social entra em considera­ durante toda a sua existência não
ções cada vez mais ligadas aos casos concretos dispuseram, para tanto, senão de um
e à prática. No Manuscrito de Genebra, Rous­ período muito curto. A maioria dos
seau sublinhava essa transição com as seguin­
povos, como dos homens1 8 4, só são
tes palavras: “Embora trate aqui do direito e
não de conveniências, não posso proibir-me de
lançar os olhos, de passagem, a algumas des­ 184 A primeira versão, mais cortante, dizia:
tas, que são indispensáveis a qualquer boa “os povos, como os homens. . . ” (N. de L. G.
instituição”: (N. de L. G. M.) M.)
D O C O N T R A T O SO C IA L II 67

dóceis na juventude; envelhecendo, liberdade, mas nunca recuperá-la ” 1 8 6.


tornam-se incorrigíveis. Desde que se A juventude não é a infância. Há
estabelecem os costumes e se enraízam para as nações, como para os homens,
os preconceitos, constitui empresa pe­ uma época de juventude ou, se quise­
rigosa e vã querer reformá-los. O povo rem, de maturidade, pela qual é preciso
nem sequer admite que se toque em aguardar antes de submetê-los —
seus males para destruí-los, como nações e homens — a leis; a maturi­
aqueles doentes, tolos e sem coragem, dade de um povo nem sempre, porém,
que tremem em presença do médico. é facilmente reconhecível e, caso seja
Isso não significa que, a exemplo de antecipada, põe-se a obra a perder.
algumas doenças que transtornam a Certo povo já ao nascer é discipli-
cabeça dos homens e lhes arrancam a nável, um outro não o é senão ao fim
recordação do passado, não haja cer­
de dez séculos. Os russos jamais serão
tas vezes, no decurso da vida dos Esta­
verdadeiramente policiados1 8 7 , por­
dos, épocas violentas nas quais as
revoluções ocasionam nos povos o que que o foram cedo demais. Pedro tinha
algumas crises determinam nos indiví­ o gênio imitativo; não possuía o verda­
duos, fazendo com que o horror do deiro gênio, aquele que cria, que do
passado substitua o esquecimento — o nada tira tudo 1 88. Algumas das coisas
Estado, abrasado por guerras civis, por que empreendeu eram boas, a maioria
assim dizer renasce das cinzas e reto­ delas, inconvenientes. Reconheceu que
ma o vigor da juventude, escapando seu povo era bárbaro, mas não que
aos braços da morte. Assim aconteceu
em Esparta ao tempo de Licurgo, em 18 6 Rousseau admite, pois, como muito pon­
Rom a depois dos Tarqüínios e, entre derável a limitação que as circunstâncias
nós, na Holanda e na Suíça após a impõem à aplicação dos princípios. Estes tor­
expulsão dos tiranos 1 8 5. nam-se mesmo inaplicáveis depois de certas
evoluções funestas que, portanto, representam
Tais acontecimentos, no entanto, perdas irrecuperáveis. (N. de L. G. M.)
são raros; formam exceções cuja razão 18 7 Em Rousseau, a palavra police e seus
se encontra sempre na constituição derivados conservam o significado clássico de
polícia em português: “ordem de segurança
especial do Estado excetuado. Não pública; conjunto das leis e disposições que lhe
poderiam sequer acontecer por duas servem de garantia; a parte da força pública
vezes no seio do mesmo povo, por­ encarregada de manter essas leis e disposi­
quanto ele pode tornar-se livre quando ção . . . ” (Aulete) (N. da T.)
188 A crítica, pertinente e objetiva, à obra de
apenas é bárbaro, mas já não o poderá Pedro,o Grande,haveria de enfurecer Voltaire.
quando se esgotou o expediente civil. À margem de seu exemplar do Contrato
Neste caso, as perturbações podem Social, invectivou Rousseau, chamando-o de
“polisson”, num sentido bem próximo do
destruí-lo sem que as revoluções alcan­ brasileirismo “moleque”. No mesmo tom,
cem restabelecê-lo; desde que seus gri­ imprecaria na História da Rússia. O corres­
lhões se quebrem, ele tomba desfeito e pondente de Catarina II ainda se mostra indig­
não existe mais. Daí por diante, neces­ nado nas Idéias Republicanas, onde afirma
que “a corte de São Petersburgo nos olhará
sita de um senhor, não de um liberta­ como a grandes astrólogos, se souber que um
dor. Povos livres, lembrai-vos sempre de nossos meninos relojoeiros acertou a hora
desta máxima: “ Pode-se adquirir a em que o império russo será destruído”. Em
verdade, Rousseau gostava das profecias (sem
grande fundamento, como a seguir se verá),
1 8 5 Esse parágrafo passa por ser inspirador mas isso não diminui a pertinácia de sua apre­
direto da Revolução Francesa. (N. de L. G. ciação sobre a ocidentalização dos russos por
M.) uma legislação ambiciosa. (N. de L. G. M.)
68 R O U SSE A U

ainda não amadurecera para a disci­ momento na infância e, depois, nunca


plina. Quis civilizá-lo, quando se im­ mais ser nada. O império da Rússia
punha somente aguerri-lo. Desejou, quererá subjugar a Europa e acabará
sobretudo, fazer alemães e ingleses, ele mesmo subjugado. Os tártaros,
quando devia começar por formar rus­ seus súditos ou vizinhos, tomar-se-ão
sos; impediu seus súditos de jamais se
tornarem o que poderiam ser ao seus e nossos senhores: tal revolução
persuadi-los de que eram o que não parece-me infalível. Todos os reis da
são. Desse modo, um preceptor francês Europa trabalham concertadamente
forma seu aluno para brilhar por um para acelerá-la.

C a p ítu lo IX

Continuação

Assim como a natureza deu limites cidade tem a sua administração, que o
à estatura de um homem bem confor­ povo paga; cada distrito, a sua, tam­
mado, além dos quais produz gigantes bém paga pelo povo; depois, cada
ou anões, do mesmo modo existem, província; e ainda, os grandes gover­
relativamente à melhor constituição de nos, as satrapias, os vice-reinos — que
um Estado, limites da possível exten­ é preciso pagar cada vez mais caro na
são, a fim de que não seja demasiado medida em que se sobe, e sempre à
grande para ser bem governado, nem custa do povo infeliz — ; finalmente,
muito pequeno para manter-se por si encontramos a administração suprema
mesmo. Em todo o corpo político há que tudo esmaga. Tantas sobrecargas
um máximo de força que não se deve esgotam continuamente os súditos.
ultrapassar e do qual o Estado freqüen­ Longe de serem melhor governados
temente se afasta por muito cres­ por todas essas ordens diferentes, o são
cer 1 89. Quanto mais se estende o liame muito menos do que se houvesse uma
social, tanto mais se afrouxa, e em só acima deles. No entanto, mal res­
geral um Estado pequeno é proporcio­ tam recursos para os casos extraordi­
nalmente mais forte do que um grande. nários e, quando se tem de recorrer a
Mil razões demonstram essa máxi­ eles, o Estado está sempre à borda da
ma. Em primeiro lugar, a adminis­ ruína.
tração torna-se mais difícil nas grandes Isso não é tudo: não somente o
distâncias, como um peso se torna governo tem menos força e presteza
mais pesado na ponta de uma alavanca para fazer observar as leis, impedir as
mais longa. Torna-se também mais vexações, mitigar os abusos, prevenir
onerosa na medida em que se multi­ as empresas sediciosas que possam
plicam seus graus, pois, primeiro, cada surgir nos lugares afastados, como
ainda o povo tem menor afeição pelos
189 Dizia Aristóteles: “Os primeiros elemen­ chefes que nunca vê, pela pátria que a
tos exigidos pela política são os homens, com seus olhos é como o mundo, e pelos
o número e as qualidades naturais que devem seus concidadãos cuja maioria lhe é
ter, e o território, com a extensão e as proprie­
dades que deve apresentar. . . ” (Política, l. IV, estranha. A s mesmas leis não podem
c. IV.) Montesquieu seguiu a mesma orienta­ convir a tantas províncias diferentes,
ção. (N. de L. G. M.) que têm costumes diversos, vivem em
D O C O N T R A T O SO C IAL II 69

climas opostos e não podem subme­ vizinhos, como os turbilhões de Des­


ter-se à mesma forma de governo. Leis cartes. Eis como os fracos arriscam a
diferentes só suscitam perturbações e ser em breve devorados e nenhum
confusão entre povos que, vivendo sob poderá de forma alguma conservar-se
os mesmos chefes e em contínua comu­ senão se colocando, juntamente com
nicação, freqüentando-se ou casando- todos, numa espécie de equilíbrio que
se uns com os outros, nunca sabem se torna mais ou menos igual a com­
seu patrimônio verdadeiramente lhes preensão em todos os pontos.
pertence1 90. Os talentos ficam ofusca­ Vê-se, por aí, que há razões para
dos, as virtudes ignoradas, os vícios expandir-se e razões para contrair-se.
impunes, nessa multidão de homens Não é dos menores talentos do político
desconhecidos uns dos outros, que a encontrar, entre umas e outras, a pro­
sede da administração suprema reúne porção mais vantajosa para a conser­
num mesmo lugar. Os chefes, perdidos vação do Estado. Pode-se, em geral,
no trabalho, nada vêem com seus pró­ dizer que as primeiras, sendo somente
prios olhos e os delegados 191 gover­ exteriores e relativas, devem ser subor­
nam o Estado. Enfim, as medidas que dinadas às outras, que são internas e
se precisam tomar para manter a auto­ absolutas19 2 . Um a constituição sábia
ridade geral, à qual tantos funcionários e forte é a primeira coisa que se precisa
distantes querem se subtrair ou enga­ alcançar e deve-se antes contar com o
nar, absorvem todos os cuidados públi­ vigor que nasce de um bom governo,
cos. Nada mais deles resta para a feli­ do que com os recursos que um grande
território prodigaliza.
cidade do povo, senão apenas um
Além disso, já se viram Estados
pouco para sua defesa em caso de
constituídos de tal forma que a necessi­
necessidade. Desse modo, um corpo
dade das conquistas fazia parte de sua
demasiadamente grande por sua cons­
própria constituição e que, para se
tituição se enfraquece e perece esma­
manterem, se encontraram forçados a
gado sob seu próprio peso.
crescer incessantemente19 3 . Talvez
Por outro lado, o Estado deve dar a
muito se felicitassem por tão feliz
si mesmo uma certa base para ter soli­
necessidade, que lhes mostraria, contu­
dez, para resistir aos reveses, que não do, com o término de sua grandeza, o
deixará de experimentar, e aos esforços momento inevitável da ruína.
a que estará obrigado para sustentar-
se, pois todos os povos têm uma espé­
1 92 Rousseau era franco adepto do Estado de
cie de força centrífuga pela qual agem reduzidas proporções, como se verá no Livro
continuamente uns contra os outros e III. Nas Considerações sobre o Governo da
tendem a crescer a expensas de seus Polônia, dirá: . . . “grandeza das nações, ex­
tensão dos Estados: primeira e principal fonte
das desgraças do gênero humano” . . . Neste
190 A crítica é contra os povos heterogêneos, trecho do Contrato Social encontramos o fun­
ou melhor, contra a submissão de povos vários damento teórico da preferência. Se os motivos
a uma mesma legislação. Quanto à federação, da expansão são externos e condicionados
Rousseau aceita-a, como se verá no Livro III. pelas relações com outros Estados, as razões
(N. de L. G. M.) de retração são interiores e decorrentes da
191 Esses delegados, que correspondem, afi­ natureza do Estado, merecendo, pois, atenção
nal, aos nossos atuais funcionários, pareciam a especial. (N. de L. G. M.)
Rousseau um sinal de desgraça política — 1 93 “Roma era feita para crescer, e suas leis,
além de não cumprirem exatamente as delega­ admiráveis nesse sentido” — dissera Montes­
ções, torcendo-as em seu proveito, ainda ates­ quieu, que dessa idéia fez uma das diretrizes da
tam que os governantes não mais governam. análise da Grandeza e Decadência dos R o m a ­
(N. de L. G. M.) nos. (N. de L. G. M.)
70 R O U SSE A U

C a p it u l o X

Continuação

Pode-se medir um corpo político de dos vizinhos e depende dos aconteci­


dois modos, a saber: pela extensão do mentos, só terá existência incerta e
território e pelo número de habitantes. curta Subjuga e mudará a situação, ou
Há, entre uma e outra medidas, uma é subjugado e nada será. Só pode
relação conveniente para dar ao Esta­ conservar-se livre à força de pequenez
do sua verdadeira grandeza. São os ho­ ou de grandeza.
mens que fazem o Estado e é a terra Não é possível apresentar em côm­
que alimenta os homens1 9 4 : a relação puto uma relação fixa entre a extensão
estará, pois, em bastar a terra para a da terra e o número de habitantes que
manutenção dos habitantes e em haver se bastem reciprocamente, por causa
tantos habitantes quantos possa a terra tanto das diferenças que se encontram
alimentar. Nessa proporção se encon­ na qualidade do solo, no seu grau de
tra o máximo de força de uma dada fertilidade, na natureza de suas produ­
porção de povo, pois que, se há terra ções, na influência dos climas, quanto
em demasia, a guarda é onerosa, a cul­ pelas que se observam no . tempera­
tura insuficiente, o produto supérfluo mento dos homens que as habitam, al­
— eis a causa próxima de guerras guns dos quais consomem pouco num
defensivas; se não é suficiente, o Esta­ país fértil, e outros, muito num solo
do vê-se à mercê dos vizinhos para sua ingrato. Precisa-se levar em considera­
manutenção — eis a causa próxima ção, ainda, a menor ou maior fecundi­
das guerras ofensivas1 9 5 . Todo povo dade das mulheres, o que possa ter o
que não tem, por sua posição, outra país de mais ou menos favorável à
alternativa senão o comércio ou a população, a porção com que pode o
guerra, é fraco por natureza; depende Legislador esperar concorrer com seus
estabelecimentos, de modo que não
1 9 4 No fundo do pensamento de Rousseau, só deve basear seu julgamento naquilo
a agricultura é verdadeiramente produtiva e, que vê, mas no que prevê, sem deter-se
pois, básica nos raciocínios de política econô­ tanto no estado atual da população
mica (v. Livro III). A idéia — sobretudo se quanto naquele a que deve chegar
tivermos em conta que é ao comércio (mais do
que à manufatura para consumo interno) que naturalmente1 9 6. Por fim, há inúmeras
atinge a presunção de parasitismo — dispõe ocasiões em que os acidentes especiais
de fundas raízes históricas e continuou, depois do lugar exigem ou permitem que se
de Rousseau, em vigorosos prolongamentos
lecmcos. Tenha-se ainda presente que, ao
tempo de Rousseau, a Holanda já possuía em 1 9 6 Todo esse parágrafo se destina a firmar
território metropolitano mais habitantes do um dos aspectos fundamentais da legislação: a
que podia alimentar — como logo depois política demográfica que deve fornecer base à
acontecia com a Inglaterra — e constituía um política econômica. Rousseau admite franca­
modelo do que fosse o expansionismo coloni­ mente que as peculiaridades dos casos concre­
zador de então, baseado no comércio e na tos é que determinarão as diretrizes legislati­
indústria manufatureira. (N. de L. G. M.) vas; apenas adverte que não se trata de
195 O expansionismo agressivo e colonizador socorrer com paliativos imediatos as situações
tem, pois, sua causa na estrutura econômica atuais, senão de traçar um plano a longo prazo
do país conquistador. (V. nota anterior.) (N. de que, pois, atenda ao desenvolvimento natural
L. G. M.) da situação complexa. (N. de L. G. M.)
D O C O N T R A T O SO C IA L II 71

abarque mais terreno do que parece essas épocas de perturbação para con­
necessário. Assim, expandir-se-á bas­ seguir ditar, graças ao temor público,
tante numa região montanhosa, onde leis destrutivas que o povo jamais ado­
as produções naturais, como as flores­ taria com sangue frio 1 98. A escolha do
tas e os pastos, exigem menos traba­ momento da instituição representa um
lho; onde a experiência mostra que as dos caracteres mais seguros pelos
mulheres são mais fecundas do que nas quais se pode distinguir a obra do
planícies, e onde vastas terras inclina­ Legislador da de um tirano1 " .
das não oferecem senão uma pequena Qual o povo, pois, que está apto à
base horizontal, a única com que se legislação? Aquele que, encontrando-
conta para a vegetação. Pode-se, pelo se já ligado por qualquer laço de ori­
contrário, comprimir-se à borda do gem, interesse ou convenção, ainda
mar, até em rochedos e areias quase não sofreu o verdadeiro jugo das leis;
estéreis, porque aí a pesca pode substi­ que não tem nem costumes nem su­
tuir em grande parte os produtos da perstições muito arraigadas; que não
terra e permanecerem os homens mais teme ser arrasado por uma invasão sú­
unidos para repelir os piratas, tendo- bita; que, sem imiscuir-se nas brigas
se, aliás, mais facilidades para aliviar o entre seus vizinhos, pode resistir sozi­
país dos habitantes que o sobrecar­ nho a cada um deles, ou ligar-se a um
regam, encaminhando-os para as colô­ para expulsar o outro; aquele de que
nias. cada membro pode ser conhecido por
A tais condições para formar um todos e no qual não se está de modo
povo, deve-se acrescentar uma, que algum forçado a sobrecarregar um
não pode suprir a qualquer das demais, homem com um fardo mais pesado do
mas sem a qual todas são inúteis — o que possa suportar; o que pode viver
gozo da abundância e da paz, pois o sem os outros povos e que qualquer
momento em que se forma um Estado, outro povo pode dispensar200 ; o que
como aquele em que se forma um bata­ não é nem rico nem pobre e pode bas­
lhão, é o instante em que o corpo se tar-se a si mesmo; enfim, aquele que
mostra menos capaz de resistência e une, à consistência de um povo antigo,
mais fácil de ser destruído. Resistir-se-
á melhor numa desordem absoluta do 198 Leis que, em condições normais, só se­
que num momento de fermentação, no riam aceitas, na melhor das hipóteses, por uma
qual cada um se preocupa com sua pequena parcela dos cidadãos e, portanto, ja ­
dignidade, e ninguém com o perigo. O mais seriam verdadeiras leis, porque lhes falta­
ria a sanção da vontade geral. (N. de L. G. M.)
Estado subverter-se-á inevitavelmente 199 A instituição de tempos convulsos i scra-
se sobrevier a guerra, a fome ou a pre tirânica. (N. de L. G. M.)
sedição. 200 Se, de dois povos vizinhos, um não pudes­
N a verdade, há muitos governos se passar sem o outro, tal situação seria insus­
, tentável para o primeiro e bastante perigosa
estabelecidos durante essas tempesta­ para o segundo. Em tal caso, qualquer nação
des, mas, então, são esses mesmos prudente esforçar-se-á prontam ente para livrar
governos que destroem o Estado1 9 7 . a outra dessa dependência. A República de
Os usurpadores suscitam ou escolhem Thlascala, encravada no Império do México,
preferiu ficar sem sal a comprá-lo dos mexica­
nos ou mesmo aceitá-lo gratuitamente. Os pru­
1 9 7 Entenda-se: o Estado legítimo, que Rous­ dentes thlascalianos perceberam a arm adilha
seau cham a de “ republicano” , pois o Governo oculta sob essa liberalidade. Conservaram-se
tirânico poderá considerar-se um Estado e, livres e esse pequeno Estado, encerrado no
comumente, como tal é tratado pelos demais grande império, foi por fim o instrumento da
Estados. (N. de L. G. M.) ruína deste. (N. do A.)
72 R O U SSE A U

a docilidade de um povo novo. A obra Ainda existe na Europa uma região


da legislação torna-se difícil menos apta à legislação: a ilha da Córsega. O
pelo que é preciso estabelecer do que valor e a constância com que esse
pelo que é preciso destruir, e o sucesso bravo povo reconquistou e defende a
mostra-se tão raro dada a impossibi­ liberdade bem mereceriam que algum
lidade de encontrar a simplicidade da homem sábio lhe ensinasse a conser­
natureza associada às necessidades da vá-la. Tenho o pressentimento de que,
sociedade. É verdade que todas essas um dia, essa ilhazinha espantará a
condições dificilmente se encontram Europa 2 0 1 .
reunidas. Eis por que também vemos
poucos Estados bem constituídos. descabida e inadmissível. Rousseau, aliás, refe­
ria-se explicitamente à organização interna do
povo da Córsega e, se dizia que “essa ilhazi­
201 A famosa referência à Córsega exige vá­ nha espantará a Europa”, era pelo que espe­
rios esclarecimentos: rava de sua legislação legítima (como supõe o
a) O entusiasmo pelos corsos era comum no desenvolvimento de todo o capítulo) e não por
século XVIII, cujos escritores políticos (entre qualquer feito espetaculoso no exterior,
os quais, além de Voltaire, cabe citar o próprio c) Seguramente foi esta passagem que levou
Frederico II) se deixaram envolver pelo entu­ Buttafuoco, com a aprovação de Paoli, a en­
siasmo da opinião popular européia, então trar em relações epistolares com Rousseau,
muito impressionada pela bravura da Córsega para convidá-lo (citando vários trechos deste
na defesa de sua independência e pela energia capítulo) a escrever o curioso Projeto de Cons­
de Paoli. Daí decorria a impressão de que a tituição para a Córsega, espécie de aplicação
Córsega viria a ter um grande papel no con­ prática do Contrato Social que deu a seu
certo europeu. autor, por um instante, a ilusão de preencher o
b) A gratuita interpretação que deseja ligar a que lhe parecia constituir a mais alta função
alusão de Rousseau ao nascimento, sete anos reservada ao homem: a função do Legislador.
mais tarde, do corso Napoleão Bonaparte é (N. de L. G. M.)

C a p itu lo XI
Dos vários sistemas de legislação

Se quisermos saber no que consiste, absolutamente os mesmos os graus de


precisamente, o maior de todos os poder e de riqueza, mas, quanto. ao
bens, qual deva ser a finalidade de poder, que esteja distanciado de qual­
todos os sistemas de legislação, verifi- quer violência e nunca se exerça senão
car-se-á que se resume nestes dois
em virtude do posto e das leis e,
objetivos principais: a liberdade e a
quanto à riqueza, que nenhum cidadão
igualdade. A liberdade, porque qual­
seja suficientemente opulento para
quer dependência particular corres­
poder comprar um outro e não
ponde a outro tanto de força tomada
ao corpo do Estado, e a igualdade, por­ haja nenhum tão pobre que se veja
que a liberdade não pode subsistir sem constrangido a vender-se2 0 3 ; o que
ela202. >
Já expliquei o que é a liberdade 203 Quereis dar consistência ao Estado? —
civil: quanto à igualdade, não se deve aproximai tanto quanto possível os graus
entender por essa palavra que sejam extremos, não suportai nem os opulentos nem
os mendigos. Esses dois estados, naturalmente
inseparáveis, são igualmente funestos ao bem
202 Em suma, se o homeni só estiver subme­ comum — de um saem os fautores da tirania e
tido à natureza, como indivíduo, e à lei, como de outro os tiranos. É sempre entre eles que se
membro do Estado, será sempre igual aos de­ faz o tráfico da liberdade pública; um a com­
mais e sempre livre. (N. de L. G. M.) pra e o outro a vende. (N. do A.)
D O C O N T R A T O SO C IA L II 73

supõe, nos grandes, moderação de bens vez em si mesmo, mas para o Estado a
e de crédito e, nos pequenos, modera­ que se destina20 5. Se, por exemplo, o
ção da avareza e da cupidez. solo é ingrato e estéril ou a região
Tal igualdade, dizem, é uma quime­ muito acanhada para os habitantes,
ra do espírito especulativo, que não voltai-vos para a indústria e as artes,
pode existir na prática. M as, se o cuja produção trocareis pelas merca­
abuso é inevitável, segue-se que não dorias que vos faltam 20 6. No caso
precisemos pelo menos regulamentá- contrário — ocupais planícies ricas e
lo ? 20 4 Precisamente por sempre tender colinas férteis? numa boa terra faltam
a força das coisas a destruir a igualda­ homens? — , dedicai todo o vosso cui­
de, a força da legislação deve sempre dado à agricultura, que multiplica os
tender a mantê-la. homens, e expulsai as artes20 7, que só
Esses objetivos gerais de todas as contribuirão para acabar de despovoar
boas instituições devem, porém, ser a região reunindo em alguns pontos do
modificados em cada país pelas rela­ território os poucos habitantes existen­
ções oriundas tanto da situação local tes208. Ocupais praias extensas e cô­
quanto do caráter dos habitantes. modas? — cobri o mar com navios,
Sobre tais relações precisa-se conceder cultivai o comércio e a navegação; te­
a cada povo um sistema particular de reis uma existência brilhante e
instituição, que seja o melhor, não tal- curta209. Se o mar só banhar em vos­
sas costas rochedos quase inacessíveis,
20 4 O parágrafo anterior previa que, embora permanecei bárbaros e ictiófagos: vive­
distinguindo-se pelo posto e pelos bens, jamais reis mais tranqüilos, talvez melhores, e
os mais poderosos e os mais ricos o fossem em
tal grau que pudessem invadir, pela violência
ou pela corrupção, a esfera da liberdade alheia. 20 5 Há, pois, uma variedade de situações con­
Beaulavon julga que tal definição se completa cretas que leva à relatividade constitucional,
no campo político, não tocando ao moral nem nunca, porém, à inércia legal ou à incúria
ao social. Se a nota de Rousseau parece refor­ governamental. (N. de L. G. M.)
çar tal interpretação, impõe-se observar que 20 6 É a situação, perigosa e geradora de
esta não encontra melhor base no texto agressões bélicas, que conhecemos do capítulo
propriamente dito, sendo que depois, no Proje­ anterior. Se, contudo, essa é a conjuntura real,
to de Constituição para a Córsega, o sentido impõe-se aceitá-la como tal, recorrendo até
social da propriedade aparece francamente àquelas “artes” tão acusadas (exatamente
sublinhado: “cada um só terá sua parte nos nesse sentido) pelo primeiro Discurso. (N. de
bens comuns na proporção de seus serviços” e L. G. M.)
a propriedade particular, se não é destruída, 20 7 Agora, é a situação pacífica e “normal”,
resume-se “aos limites os mais estreitos que sendo-lhe adequada a solução equilibrada e
seja possível”, estando “sempre subordinada sadia da economia baseada na agricultura. As
ao bem público”. Aliás, nas Cartas da M onta­ “artes” tornam-se inúteis e nocivas. (N. de L.
nha, Rousseau deixa perceber que a classe G. M.)
média é aquela que mais se aproxima do ideal 208 “Qualquer ramo de comércio exterior”,
republicano, pelos costumes e condição, como diz o Marquês d’Argenson, “não espalha, num
vira em Genebra. Neste ponto, Rousseau tam­ reino em seu todo, senão uma falsa vantagem.
bém repele a acusação de utópico que sempre Ele pode enriquecer alguns particulares e até
se atira às suas afirmações igualitárias. O certas cidades, mas a nação como um todo
Contrato Social é um livro de princípios que, nada ganha com ele, e o povo também não fica
contudo, toca à prática e, pois, no campo prá­ em melhor situação.” (N. do A.)
tico combate essa desigualdade que se busca 209 Como Cartago. Ou como pensava Rous­
preservar com a fraca escusa de constituir um seau que viesse a suceder em breve com a
fato consumado. A legislação é, precisamente, Inglaterra. Para fugir a essa existência “curta”,
o instrumento para corrigir as coisas tais como os povos marítimos deveriam resignar-se à cul­
são, aproximando-as do que devem ser. (N. de tura bárbara dos simples pescadores. (N. de
L. G. M.) L. G. M.)
74 R O U SSEA U

seguramente mais felizes. Em uma pa­ gurar, acompanhar e retificar aquelas.


lavra, além das máximas comuns a M as, se o Legislador, enganando-se em
todos, cada povo reúne em si alguma seu objetivo2 1 1 , toma um princípio
coisa que o dirige de modo todo espe­ diverso daquele que nasce da natureza
cial e torna sua legislação adequada das coisas; quando um tende à servi­
somente a si mesmo 21 °. Assim, outro- dão e a outra à liberdade, um às rique­
ra os hebreus e, mais recentemente, os zas e a outra à população, um à paz e
árabes tiveram a religião como obje­ a outra às conquistas — ver-se-ão as
tivo principal; os atenienses, as letras; leis enfraquecerem insensivelmente, a
Cartago e Tiro, o comércio; Rodes, a constituição alterar-se. E o Estado não
marinha; Esparta, a guerra; e Roma, a cessará de agitar-se até ser destruído
virtude. O autor de D o E spírito das ou modificado, e a natureza invencível
L eis em inúmeros exemplos mostrou retomar seu império2 1 2 .
por que meio o Legislador orienta a
instituição para cada um desses objeti­ 211 Eis a chave do problema: só a clara e pre­
vos. cisa noção do princípio básico (a condição
O que torna a constituição de um sócio-política do homem como fundamento, e
Estado verdadeiramente sólida e dura­ a vontade geral como nexo regulador) unida ao
conhecimento da “natureza das coisas” (ex­
doura é que sejam as conveniências de pressão de Montesquieu que aqui é rigorosa­
tal modo observadas, que as relações mente reduzida ao complexo de peculiaridades
naturais e as leis permaneçam sempre de cada caso concreto) podem conduzir o
de acordo nos mesmos pontos, e que Legislador à instituição necessária e bastante.
(N. de L. G. M.)
estas só façam, por assim dizer, asse­
21 2 Porque, em situação conflituosa, sempre
vence a natureza, isto é, os impulsos instinti­
210 Todo o fim desse parágrafo representa a vos, as tendências anti-sociais do indivíduo.
proposição do tema final do capítulo e, Rousseau abandona em definitivo a visão oti­
mesmo, deste Livro II. Montesquieu, citado mista de seus companheiros da Enciclopédia,
explicitamente, cuidara das leis, tais como são, para quem a moral e a sociabilidade, sendo
colocando-as em relação exata com as necessi­ naturalmente inerentes ao homem, sempre aca­
dades reais de cada povo em particular. Rous­ bariam por revelar-se e impor-se. E rompe com
seau propusera-se à diversa tarefa de investigar o cerne das concepções da “ordem natural” ,
os princípios (como em toda a sua obra polí­ pois concluiu que esta não abrange a “ordem
tica anterior) e, depois (no Contrato Social), social”, senão representa mesmo um a força
deles derivara certas regras gerais de governo. adversa à vida em grupo, salvo quando
ImpÕe-se, agora, dem onstrar o entrosamento completamente conhecida e habilmente utiliza­
desses dois planos para patentear a realidade da. Que só se conduz a natureza obedecendo a
das máximas genéricas e a exeqüibilidade das ela, dissera-o Bacon. Rousseau aqui afirma
soluções particulares. O plano do direito toca que o Legislador deve conhecer a natureza
ao plano dos fatos, e com ele tem conexão humana, não tanto para dominá-la, mas para
substancial. (N. de L. G. M.) transformá-la. (N. de L. G. M.)

C a p ítu lo XII

Divisão das leis

A fim de ordenar o todo ou para dar Primeiro, a ação do corpo inteiro agin-
a melhor forma possível à coisa públi- do sobre si mesmo, isto é, a relação do
ca, há várias relações a considerar. todo com o todo, ou do soberano com
D O C O N T R A T O SO C IA L II 75

o Estado; como logo veremos, tal rela­ de relação entre o homem e a Lei, a
ção compõe-se da relação dos termos saber, a da desobediência à pena,
intermediários2 1 3 . dando origem ao estabelecimento das
A s leis que regulamentam essa rela­ leis criminais que, no fundo, instituem
ção recebem o nome de leis políticas e menos uma espécie particular de leis
chamam-se também leis fundamentais, do que a sanção de todas as outras.
não sem alguma razão no caso de A essas três espécies de leis, junta-se
serem sábias, pois, se existe em cada uma quarta, a mais importante de
Estado somente uma boa maneira de todas, que não se grava nêm no már­
ordená-lo, o povo que a encontrou more, nem no bronze, mas nos cora­
deve conservá-la; se a ordem estabele­ ções da cidadãos; que faz a verdadeira
cida é, porém, má, por que se toma­
constituição do Estado; que todos os
riam por fundamentais leis que a impe­
dias ganha novas forças; que, quando
dem de ser boa? 21 4 Aliás, seja qual for
as outras leis envelhecem ou se extin­
a situação, o povo é sempre senhor de
guem, as reanima ou as supre, con­
mudar suas leis, mesmo as melhores,
serva um povo no espírito de sua insti­
pois, se for de seu agrado fazer o mal a
tuição e insensivelmente substitui a
si mesmo, quem terá o direito de
força da autoridade pela do hábito.
impedi-lo?
Refiro-me aos usos e costumes e,
A segunda relação é a dos membros
sobretudo, à opinião 21 6, essa parte
entre si ou com o corpo inteiro, e essa
desconhecida por nossos políticos, mas
relação deverá ser, no primeiro caso,
da qual depende o sucesso de todas as
tão pequena, e, no segundo, tão grande
quanto possível, de modo que cada outras; parte de que se ocupa em segre­
cidadão se encontre em perfeita inde­ do o grande Legislador, enquanto pa­
pendência de todos os outros e em uma rece limitar-se a regulamentos particu­
excessiva dependência da p ó lis — o lares que não são senão o arco da
que se consegue sempre graças aos abóbada, da qual os costumes, mais
mesmos meios21 5, pois só a força do lentos para nascerem, formam por fim
Estado faz a liberdade de seus mem­ a chave indestrutível.
bros. É desta segunda relação que nas­ Entre essas várias classes, as leis
cem as leis civis. políticas, que constituem a forma do
Pode-se considerar um terceiro tipo Governo, são as únicas ligadas ao meu
assunto.
213 Os problemas do Governo são objeto do
Livro III. (N. de L. G. M.) 216 Os usos e costumes são o aspecto habi­
2* 4 Uma má constituição, só por ser má, tual; a opinião, o aspecto racional da moral
deixa de constituir uma obrigação do sobera­ ativamente praticada pelos homens na vida
no, ou seja, do corpo político ativo. Em outras cotidiana. Ora, a moral não se formula, nem se
palavras: a má lei política não é legítima. (N. impõe pelas leis. Assim, toda a ordem da pólis
de L. G. M.) vem a repousar naquilo que só a educação
215 Ou seja: o contrato social, que torna o pode infundir na consciência dos homens,
indivíduo totalmente dependente do Estado e preparando-os para o comportamento ade­
totalmente livre em relação a seus semelhantes. quado e necessário à vida em comum. (N. de
(N. de L. G. M.) L. G. M.)
LIVRO TERCEIRO
Antes de falar das várias formas de Governo, procuremos firmar o sentido preci­
so dessa palavra, que ainda não foi bem explicado.

C a p ít u l o I

Do govemo em geral

Advirto ao leitor que este capítulo o ato, e a outra física, que é o poder
deve ser lido pausadamente e que nao que a executa. Quando me dirijo a um
conheço a arte de ser claro para quem objeto, é preciso, primeiro, que eu
não quer ser atento21 7. queira ir até ele e, em segundo lugar,
Toda ação livre tem duas causas que que meus pés me levem até lá. Queira
concorrem em sua produção: uma um paralítico correr e não o queira um
moral, que é a vontade que determina homem ágil, ambos ficarão no mesmo
lugar. O corpo político tem os mesmos
21 7 Este capítulo incitava em Rousseau, que móveis. Distinguem-se nele a força e a
provavelmente o conservou das primeiras vontade, esta sob o nome de p o d e r
notas para as Instituições Políticas, uma curio­ legislativo e aquela, de p o d er executi-
, sa contradição sentimental. Por um lado, pare­ vo2 1 8 . N ada nele se faz, nem se deve
ce julgá-lo excelente, sobretudo pela explana­
fazer, sem o seu concurso.
ção pseudomatemática nele contida, pois não
hesita em reproduzi-la, quase integralmente, Vimos que o poder legislativo per-
ino resumo do Contrato que incluiu no Emílio,
em flagrante contraste com o restante dessa 21 8 Será útil voltar ao segundo capítulo do
resenha sintética. De outra parte, não lhe esca­ Livro II, onde se condena vigorosamente a
pa o caráter demasiado abstrato, e também confusão entre “partes” e “emanações” da
precário, desse processo expositivo, daí decor­ soberania, tendo-se em vista, explicitamente,
rendo o pedido de atenção especial feito ao lei­ os “atos particulares” que muitas vezes se
tor. Halbwachs não teme aproximar esse ape- tomam, por erro, como “atos de soberania”.
gamento ao texto difícil e àquele incidente Só assim se compreenderá que, empregando
amoroso, acontecido em Veneza e ao cabo do duas expressões também utilizadas por Mon­
qual Rousseau ouviu a famosa frase irônica: tesquieu, como sejam poder legislativo e poder
“Lascia le donne Zanetto, ed studia la mathe- executivo (cf. D o Espírito das Leis, l. XI, c.
matica A aproximação, embora careça de VI), Rousseau considere o executivo como
base objetiva, é assaz sugestiva, sobretudo ten­ mera função do Estado, enquanto o legislativo
do-se em conta, segundo as Confissões, que, é sua própria essência, ao passo que Montes­
ainda em Veneza, Rousseau começou a con­ quieu coloca a ambos em perfeito pé de igual­
vencer-se da importância dos estudos políticos. dade, como “poderes” componentes do todo
(N. de L. G. M.) estatal. (N. de L. G. M.)
80 R O U SSE A U

tence ao povo e não pode pertencer os súditos e o soberano para sua


senão a ele. Fácil é ver, pelo contrário, mútua correspondência, encarregado
baseando-se nos princípios acima esta­ da execução das leis e da manutenção
belecidos2 1 9, que o poder executivo da liberdade, tanto civil como política.
não pode pertencer à generalidade Os membros desse corpo chamam-se
como legisladora ou soberana, porque magistrados222 ou reis2 2 3 , isto é,
esse poder só consiste em atos particu­ governantes, e o corpo em seu todo re­
lares que não são absolutamente da al­ cebe o nome de prín cip e22 4. Têm
çada da Lei, nem conseqüentemente da muita razão aqueles que pretendem
do soberano, cujos atos todos só não ser um contrato, em absoluto, o
podem ser leis220. ato pelo qual um povo se submete a
Necessita, pois, a força pública de chefes22 5. Isto não passa, de modo
um agente próprio que a reúna e ponha algum, de uma comissão, de um
em ação segundo as diretrizes da von­
tade geral, que sirva à comunicação 222 Maquiavel já aludira a “um magistrado
entre o Estado e o soberano, que de composto de dez cidadãos” nas Décadas, mas
qualquer modo determine na pessoa não se pode atribuir à passagem q sentido plu­
ral que Rousseau agora estabelece. (N. de L.
pública o que no homem faz a união
G. M.)
entre a alma e o corpo 2 2 1 . Eis qual é. 223 Sem dúvida o termo francês roi, como o
no Estado, a razão do Governo, con­ português rei, deriva do rex latino, que, por seu
turno, sai de regere, que é governar, dirigir. A
fundida erroneamente com o soberano,
formação da palavra justifica, pois, o sentido
do qual não é senão o ministro. que lhe dá Rousseau, porém empregá-la no
Que será, pois, o Governo? É um plural, ao tempo em que escrevia, representava
corpo intermediário estabelecido entre uma impertinência e um reforço da quase-pro-
vocação iniciada com o termo magistrados.
Rei, na linguagem e no pensamento de então,
21 9 Estabelecidos no Livro II, principalmente era sempre um e único. Rousseau, contudo,
no capítulo IV, onde se cuida da Lei. (N. de L. percebe que admitir, sequer em teoria, a plura­
G. M.) lidade da função e da pessoa real era a melhor
220 Torna-se aqui explícita a oposição ao forma de, em definitivo, distingui-la do sobera­
conceito de Montesquieu sobre o executivo. no. Com isso, oferecia à Revolução um dos
(V. nota 218, supra.) (N. de L. G. M.) seus mais vigorosos temas, como se verá a se­
guir (nota 226). (N. de L. G. M.)
221 O paralelo com a ontologia, que vem dos 22 4 É assim que em Veneza se dá ao colégio o
parágrafos anteriores, encontra fundamento nome de sereníssimo príncipe, mesmo quando
em Descartes, para quem há no homem três o doge não assiste a ele*. (N. do A.)
princípios: a alma, o corpo e a “união” dos * Maquiavel, no Príncipe, cuidava de um
dois primeiros, que, embora mais pressentida chefe de Estado e não de governos coletivos,
do que compreendida, é a única maneira de por isso mesmo dando muito do livro ao estu­
explicar-sé por que a alma — que é pensa­ do da psicologia individual do governante. A
mento — e o corpo — que é extensão — en­ Rousseau toca a primazia de empregar o
tram em interação. Ao Governo, na política, termo em acepção de corpo compósito. (N. de
reserva-se papel equivalente ao da “união”, L. G. M.)
para traçar um nexo entre soberano e Estado. 22 5 Reabre-se aqui a polêmica com os jusna-
Como nessas palavras estão implícitas as turalistas. Destes, o que fora mais longe,
expressões “vontade geral” e “vontades parti­ Pufendorf, precisara subdividir a figura con­
culares”, que, embora se refiram à mesma enti­ tratual em três atos sucessivos para distinguir
dade humana, são, em concreto, freqüente­ o contrato que constitui o corpo social do con­
mente opostas, percebe-se mais uma vez o trato de governo, pois, embora percebendo a
poder de antecipação de Rousseau, que indica, grosseira confusão de seus antecessores, não
embora sem extremo rigor objetivo, dois desejava deles apartar-se totalmente. Para
aspectos — o social e o individual — do Rousseau só o primeiro contrato, o social,
mesmo homem. (N. de L. G. M.) existe. (V. nota seguinte.) (N. de L. G. M.)
D O C O N T R A T O SO C IAL III 81

emprego 22 6, no qual, como simples todo, ou do soberano com o Esta­


funcionários do soberano, exercem em do229. Pode-se representar esta última
seu nome o poder de que ele os fez relação por aquela entre os extremos
depositários, e que pode limitar, modi­ de uma proporção contínua230 , cuja
ficar e retomar quando lhe aprou­ média proporcional é o Governo. O
ver 22 7. Sendo incompatível com a Governo recebe do soberano as ordens
natureza do corpo social, a alienação que dá ao povo e, para que o Estado
de um tal direito é contrária ao obje­ permaneça em bom equilíbrio, é preci­
tivo da associação. so que, tudo compensado, haja igual­
Chamo, pois, de G overno ou admi­ dade entre o produto ou o poder do
nistração suprema o exercício legítimo Governo, tomado em si mesmo, e o
do poder executivo, e de príncipe ou produto ou a potência dos cidadãos,
m agistrado o homem ou o corpo que de um lado são soberanos e de
encarregado dessa administração228. outro; súditos2 3 1 .
É no Governo que se encontram as Alem disso, jamais se poderia alte­
forças intermediárias, cujas relações rar qualquer dos três termos sem rom­
compõem a relação do todo com o per, de pronto, a proporção. Se o sobe­
rano quer governar ou se o magistrado
quer fazer leis ou, ainda, se os súditos
2 2 6 É o tema prediíeto da Revolução no recusam-se a obedecer, a desordem
momento inicial, quando, admitindo ainda a
toma o lugar da regra, a força e a von­
permanência do monarca, põe nas mãos do
povo toda a soberania: o rei será um funcio­ tade não agem mais de acordo e o
nário do Estado, como propõem os projetos Estado, em dissolução, cai assim no
constitucionais. Perante a Assembléia, em despotismo ou na anarquia. Enfim,
1790, Robespierre dizia do monarca: “É ine­ como não há senão uma média propor­
xato dizer-se o representante da nação. O rei é
o empregado (em francês: commis), o delegado cional para cada relação, não há mais
da nação para executar as vontades nacio­ que um bom governo possível para
nais”. E, diante da agitação do plenário, conti­ cada Estado2 3 2 . Como porém, inúme-
nuou: “Se a alguém afligiram minhas expres*
sões, retrato-me. Por empregado só quis 230 “Uma proporção contínua, expressão
significar o emprêgo supremo, a tarefa sublime hoje em desuso, é uma proporção na qual um
de executar a vontade geral”. Com tais pala­ mesmo termo é o numerador da segunda fra­
vras, Robespierre simplesmente repetia este ção e o denominador da primeira, como -^ = |r
trecho de Rousseau. (N. de L. G. M.)
22 7 Porque os governantes são meros funcio­ Se chamamos de 5 o soberano, isto é, o
nários, enquanto quem os contrata é o sobera­ povo enquanto exerce o poder legislativo, E o
no. (N. de L. G. M.) Estado, isto é, o povo enquanto obedece à lei, e
228 A fórmula surge mais clara e precisa no G o Governo, isto é, o corpo de magistrados
Em ílio: “O corpo inteiro (de governantes), encarregados do poder executivo, pode-se esta­
considerado nos homens que o compõem, cha­ belecer a seguinte proporção contínua:
ma-se príncipe, e, considerado em sua ação, . Essa, aliás, não passa de uma
chama-se governo”. (N. de L. G. M.) maneira aproximativa de exprimir a seguinte
229 A partir desta frase, inicia-se a já referida proporção, bem diferente de uma proporção
exposição pseudomatemática, ou melhor, o matemática: a potência que o soberano confere
paralelo com expressões aritméticas que, tão ao Governo deve ser igual à potência que o
caras a Rousseau, em nada ajudam a esclare­ Governo aplica na administração do Estado.”
cer suas idéias, por vezes alcançando o resul­ (G. Beaulavon.) (N. de L. G. M.)
tado oposto. O mais paciente e cuidadoso 231 “Com efeito, da proporção supra pode-se
comentarista desta passagem espinhosa é deduzir: G 2 = S X E. Potência é tomada no
Georges Beaulavon, cujas notas passamos a sentido matemático.” (G. Beaulavon) (N. de L.
reproduzir, a exemplo, aliás, do que fizeram, G. M.)
com meras variações vocabulares, Maurice 232 “Na proporção supra, o valor de G é
Halbwachs e François Bouchardy, entre os efetivamente determinado pelos valores de S e
melhores glosadores do Contrato. (N. de L. G. de E, e deve variar proporcionalmente a estes.”
M.) (G. Beaulavon.) (N. de L. G. M.)
82 R O U SSE A U

ros acontecimentos podem mudar as mais o Estado aumenta, mais diminui


relações de um povo, não só diversos a liberdade23 6.
governos podem ser bons para diferen­ Quando digo que a relação aumen­
tes povos, mas também para o mesmo ta, quero afirmar que se distancia da
povo em épocas diferentes. igualdade. Eis como, quanto maior for
Pretendendo dar uma idéia das vá­ a relação na acepção dos geômetras,
rias relações que podem reinar entre tanto menor o será na acepção comum.
esses dois extremos, tomarei como N a primeira, a relação, considerada
exemplo o número do povo2 3 3 , por ser segundo a quantidade, mede-se pelo
uma relação mais fácil de exprimir23 4. quociente23 7 e, na outra acepção,
Suponhamos que o Estado se com­ considerada segundo a identidade, é
ponha de dez mil cidadãos. O sobe­ estimada pela semelhança2 38 .
rano não pode ser considerado senão Ora, quanto menos se relacio­
coletivamente e como um corpo; cada nem239 as vontades particulares com a
particular, porém, na qualidade de sú­ vontade geral, isto é, os costumes com
dito, é considerado como indivíduo; as leis, tanto mais deverá a força
assim, o soberano está para o súdito repressora aumentar. Conclui-se, pois,
como dez mil estão para um, isto é, que o Governo, para ser bom, deve ser
cada membro do Estado tem por sua a relativamente mais forte na medida em
décima milésima parte da autoridade
soberana, conquanto esteja inteira­ 23 6 “Quando a população aumenta, o valor
mente submetido a ele23 5. Seja o povo próprio de cada súdito não muda (E = 1), mas
composto de cem mil homens, e não a potência total do soberano aumenta na pro­
porção do número de seus membros (S =
muda a situação dos súditos, supor­
10 000; S 100 000, etc.). Logo, a importância
tando cada um igualmente todo o relativa do súdito em relação ao soberano
império das leis, enquanto seu sufrá­ diminui'em proporção inversa. Ele está subme­
gio, reduzido a um centésimo de milé­ tido a uma autoridade tanto mais forte quanto
simo, tem dez vezes menos influência o Estado for mais numeroso e, conseqüente­
mente, é tanto menos livre.” (G. Beaulavon.)
na redação delas. O súdito permane­ (N. de L. G. M.)
cendo sempre um, a relação com o 23 7 No original: exposant, termo que no sécu­
soberano aumenta em razão do núme­ lo XVIII servia aos matemáticos de língua
ro de cidadãos. Conclui-se que, quanto francesa para significar o quociente da divisão
do numerador pelo denominador. (N. de L. G.
233 Em francês: Le nombre du peuple, isto é, M.)
o número de componentes da pólis, dos mem­ 238 “Rousseau aqui distingue duas acepções,
bros do soberano. (N. de L. G. M.) efetivamente contrárias, da palavra relação: 1)
23 4 “Note-se que a palavra relação, que nesta no sentido preciso dos geômetras, significa a
passagem surge quase em todas as linhas, cada relação de duas quantidades das quais uma é
vez é tomada em acepção diferente e, com 19
dividida pela outra (exemplo:—^ —), sendo a
freqüência, vaga. Assim, o número de um povo
relação expressa, em valor absoluto, peio quo­
não é uma relação. Rousseau quer dizer que
ciente; 2) no sentido vulgar e corrente, diz-se
estudará as relações dos três termos, S, F, e G,
que duas coisas têm relação, quando se asse­
só tendo em conta o número dos cidadãos.”
melham. Ora, quanto mais diferentes forem os
(G. Beaulavon.) (N. de L. G. M.)
dois termos duma relação, tanto maior será o
23 5 “Com efeito, é por um ato coletivo que os
quociente que mede tal relação. Há, pois, desa­
cidadãos, enquanto membros do soberano,
cordo entre a linguagem comum e a linguagem
fazem as leis, porém essas leis aplicam-se a
matemática.” (G. Beaulavon.) (N. de L. G. M.)
cada um deles tomado individualmente en­
quanto membro do Estado. Pode-se, pois, 239 Agora, a relação é tomada no sentido vul­
P 1 gar, para significar a maior ou menor seme­
e s c r e v e r = YÕT5CR5’ Por exemPl°-” (G- Beaula­ lhança entre a vontade geral e as particulares.
von) (N. de L. G. M.) (N. de L. G. M.)
D O C O N T R A T O SO C IA L III 83

que o povo for mais numeroso2 40. sessem que, para encontrar essa média
Por outro lado, o crescimento do E s­ proporcional e formar o corpo do
tado oferecendo aos depositários da Governo, bastaria, segundo o que afir­
autoridade pública mais tentações e mo, extrair a raiz quadrada do número
meios de abusar de seu poder, mais de componentes do povo 2 43 — res­
força deve ter o Governo para conter o ponderia, então, que não tomo aqui
povo e mais força deverá ter o sobera­ esse número senão como exemplo; que
no, de sua parte, para conter o Gover­ as relações de que falo não se medem
no. Não me refiro aqui a uma força unicamente pelo número de homens,
absoluta, mas à força relativa das vá­ mas em geral pela quantidade de ação
rias partes do Estado 2 4 1 . que se combina por múltiplas causas;
Segue-se, dessa dupla relação, que a que, de resto, se, para exprimir-me por
proporção contínua entre o soberano, meio de palavras, tomo de empréstimo
o príncipe e o povo não é absoluta­ termos à geometria, não ignoro, no
mente uma idéia arbitrária, mas uma entanto, não ter nenhum cabimento a
conseqüência necessária da natureza precisão geométrica nas quantidades
do corpo político. Segue-se, ainda, que morais 2 4 4.
um dos extremos, a saber, o povo, O Governo é em ponto pequeno o
enquanto súdito, sendo fixo e represen­ que o corpo político, que o encerra, é
tado pela unidade, todas as vezes que em ponto grande. É uma pessoa moral
aumentar ou diminuir a razão dupla, dotada de certas faculdades, ativa
também a razão simples aumentará ou como o soberano, passiva como o
diminuirá, modificando-se, conseqüen­ Estado, e que pode ser decomposta em
temente, o termo médio2 4 2. Isso mos­ outras relações semelhantes, donde,
tra não haver uma constituição de por conseqüência, nasce uma propor­
Governo única e absoluta, mas que ção nova e desta, uma outra ainda, de
podem existir tantos Governos diferen­
tes pela natureza quantos Estados dife­ 2 42 Nota de G. Beaulavon: “A razão ou rela­
rentes pelo tamanho. ção dupla é a que resulta da multiplicação de
Se, pondo o sistema no ridículo, dis- duas relações iguais, cada uma das quais se
chama relação ou razão simples”. (Aritmética
de Bezout, citada por Brunel, na R evista de
2 40 Dir-se-ia que, segundo certos dados da História Literária da França, julho de 1904.)
sociologia moderna, o crescimento quantita­ Portanto, dado que-^- = sendo E = 1,
tivo duma sociedade acarreta maior generali­
zação de valores, idéias e hábitos de vida. multiplicando tem os-^p Logo, a população de
Rousseau, contudo, interessa-se pela tendência um Estado basta para determinar a forma de
das grandes sociedades a consentir na forma­ seu governoi. (N. de L. G. M.)
ção de grupos internos, isto é, a complicar sua 2 4 3 “Efetivamente, fazendo-se S = 10 000 e
estrutura, como dizem os sociólogos. Não só o E = 1, teremos G = V 10 000.” (G. Beaula­
fato é verdadeiro, como ainda interessa direta­ von.) Importa acrescentar que, neste passo,
mente ao problema central da política de Rousseau começa a dar-se conta do ponto a
Rousseau, que busca a melhor maneira de pre­ que poderia levá-lo o paralelo matemático e
venir ou, pelo menos, mitigar a desigualdade. reage a esse hipotético mas provável ridículo,
(N. de L. G. M.) opondo-se a qualquer exagero. (N. de L. G.
241 Ou melhor: à relação das forças internas, M.)
pois do jogo entre o poder do soberano, Estado 2 4 4 Todo esse parágrafo, que poderá resultar
e Governo depende o domínio do Governo duma segunda revisão da primitiva explanação
sobre os súditos, e o do soberano sobre o pseudomatemática, praticamente a anula no
Governo. Essa relação não é arbitrária, mas que tem de abstrata e de pretensamente exata.
decorre da natureza social, como se afirma no O Rousseau moralista reassume seus direitos.
parágrafo seguinte. (N. de L. G. M.) (N. de L. G. M.)
84 R O U SSE A U

acordo com a ordem dos tribunais2 4 5, dominante do príncipe só é, ou deveria


até que se alcance um termo médio ser, a vontade geral ou a Lei, e sua
indivisível, isto é, um único chefe ou força não é senão a força pública nele
magistrado supremo, que pode ser concentrada: desde que deseje derivar
representado, no centro dessa progres­ de si mesmo qualquer ato absoluto e
são, como a unidade entre a série das independente, começa a afrouxar-se a
frações e a dos números2 4 6. ligação do todo. Enfim, se porventura
Sem nos embaraçarmos nessa multi­ tivesse o príncipe uma vontade particu­
plicação de termos2 4 7 , contentemo- lar mais ativa do que a do soberano e,
nos em considerar o Governo como para obedecer a essa vontade particu­
um novo corpo no Estado, distinto do lar, se utilizasse da força pública de
povo e do soberano, e intermediário que dispõe, de modo que se teriam, por
entre um e outro. assim dizer, dois soberanos, um de
H á uma diferença essencial entre direito e outro de fato, imediatamente
esses dois corpos: o Estado existe por a união social desapareceria e dissol­
si mesmo e o Governo só existe pelo ver-se-ia o corpo político 2 48.
soberano. Desse modo, a vontade No entanto, para que o corpo do
Governo tenha uma existência, uma
245 “O corpo de magistrados decompõe-se,
com efeito, em um grande número de grupos vida real que o distinga do corpo do
ou de tribunais subordinados uns aos outros, Estado; para que todos os seus mem­
cada um deles recebendo do alto uma determi­ bros possam agir concertadamente e
nada porção de poder que aplica abaixo. O possa ele atender ao fim para o qual é
mesmo simbolismo matemático poderia, pois, instituído, é-lhe necessário um eu parti­
aplicar-se a essas relações múl tipias
' ’ e compie-
'
cular, uma sensibilidade comum a seus
#•
xas, podendo-se escrever :-0- =
etc.” (G. Beaulavon.) (N. de L. G. M.)
membros, uma força, uma vontade
2 4 6 “Se considerarmos o poder executivo própria que busque a sua conservação.
como concentrado num único magistrado Essa existência particular supõe as­
supremo, G = 1, teremos, em lugar das rela­ sembléias, conselhos, um poder de
C f1 , O f
ções— e-^ -, as relações-y—e-g-. Essas rela­ deliberar e de resolver, direitos, títulos,
ções seriam iguais se o povo não tivesse senão privilégios pertencendo exclusivamente
um cidadão, pois então seria S = 1 e, ao príncipe e que tornam a condição
conseqüentemente, E = 1. Mas, à medida que
do magistrado mais digna na propor-
aumenta o número de cidadãos e, por isso,
cresce a potência do príncipe, cada súdito
toma à potência do príncipe uma fração tanto 2 48 Como já sabíamos do artigo sobre a Eco­
nomia Política, embora o governo venha a for­
menor. Num Estado de dois cidadãos,—^— mar um corpo distinto e, pois, dotado de von­
exprimiria a relação numérica entre soberano e tade (particular) própria, nele deve dominar
príncipe, e-~ —a relação entre príncipe e súdi­ sempre a vontade geral, sob pena de, não
sabendo os súditos quando é legítimo (vontade
tos. Se S assume sucessivamente os valores 3,
geral) e ilegítimo (vontade particular) o mando
10 000, etc., teremos—^—e—í —, ^ 00^ e ^ governamental, anular-se, por impraticável, o
, etc. As duas relações de nossa primitiva pro­ próprio contrato social. (Esse raciocínio conti­
porção afastam-se, pois, mais e mais uma da nua no parágrafo seguinte.) Além do sentido
outra, como a série dos números inteiros e a genérico, a afirmação tem ainda implicações
série dos números fracionários, enqanto o prín­ imediatas e concretas, pois o governo dos
cipe permanece igual à unidade.” (G. Beaula­ monarcas do século XVIII caracterizava-se
von.) (N. de L. G. M.) exatamente por uma total confusão da vontade
2 4 7 Pela segunda vez, Rousseau abandona o e interesses particulares da pessoa real com os
paralelo aritmético, voltando a uma linguagem objetivos e o exercício do poder do Estado. A
simples e direta para exprimir suas afirmações Revolução, enquanto fiel às suas fontes doutri­
sobre o mecanismo do Governo no complexo nárias, lutou p o r estabelecer um Estado total­
social. (N. de L. G. M.) mente impessoal. (N. de L. G. M.)
D O C O N T R A T O SO C IA L III 85

ção em que é mais penosa. A s dificul­ rapidez, gozar, por assim dizer, de uma
dades residem na maneira de ordenar, saúde mais ou menos robusta. Final­
no todo, esse todo subalterno, de modo mente, sem distanciar-se diretamente
que em nada altere a constituição do objetivo de sua instituição, poderá
geral, ao fortalecer a sua, e que dis­ dele afastar-se mais ou menos, de acor­
tinga sempre sua força particular, des­ do com a maneira pela qual se consti­
tinada à própria conservação, da força tuiu.
pública consagrada à conservação do De todas essas diferenças nascem as
Estado; em uma palavra: que esteja várias relações que o Governo deve ter
sempre pronto a sacrificar o Governo com o corpo do Estado, segundo as
ao povo, e não o povo ao Governo. relações acidentais e particulares pelas
Aliás, embora o corpo artificial2”49 quais esse mesmo Estado é modifi­
do Governo seja a obra de um outro cado. Freqüentemente, o melhor G o ­
corpo artificial e, de certo modo, não verno em si mesmo pode tornar-se o
possua senão uma vida emprestada e mais vicioso, se suas relações não
subordinada, tal não impede que possa forem alteradas segundo os defeitos do
agir com maior ou menor vigor ou corpo político ao qual pertence.

2 49 . . . “artificial” ” — a palavra surge para é, meios bastantes para comunicar-se e convi­


qualificar tanto o corpo do Governo quanto o ver com seus semelhantes. Entre tais meios,
próprio corpo social. Impõe-se, contudo, lem­ inclui-se o contrato social, que é a tomada de
brar que com esse adjetivo Rousseau não quer consciência de sua condição social e política,
significar simplesmente o que é fruto do artifí­ e, também, a consciência da necessidade e
cio, da atividade gratuita do homem. Em seu limites do corpo governamental, elemento fun­
vocabulário, “natural” identifica-se com a cional que servirá de intermediário prático
natureza primária, psicofisiológica fundamen­ entre as vontades particulares e a vontade
tal, do indivíduo humano guiado pelos seus geral. Não se trata, pois, de entidades opostas
impulsos instintivos e suas necessidades bási­ à natureza a elas “sobrejuntadas” (como
cas. Em conseqüência, o “artificial”, como o equivocadamente julgou Durkheim), mas de
“civil” e o “policiado”, são termos ligados à decorrências naturais (na acepção moderna do
esfera de desenvolvimento social do homem, vocábulo) da evolução sofrida pelo homem a
que assim adquire uma linguagem, o pleno partir de sua condição primeira e primária. (N.
desenvolvimento da razão e uma moral — isto de L. G. M.)

C a p ít u l o II

Do princípio que constitui as várias


formas de governo

A fim de expor a causa geral dessas de membros2 50. J á dissemos que a


diferenças, impõe-se distinguir, neste
2 50 No último parágrafo do capítulo seguinte,
ponto, entre o príncipe e o Governo, fica esclarecido que, ao falar dos membros do
como acima o fiz com o Estado e o Governo, não se alude aqui a todos os funcio­
nários dos quadros governamentais, mas só
soberano. aos “magistrados supremos”, isto é, àqueles
O corpo do magistrado pode com­ que podem influir nas decisões do Governo,
dispondo, pois, de uma parcela do poder exe­
por-se de um maior ou menor número cutivo. (N. de L. G. M.)
86 R O U SSE A U

relação entre o soberano e os súditos vontade do povo ou a vontade sobera­


seria tanto maior quanto mais nume­ na, que é geral tanto em relação ao E s­
roso fosse o povo e, por analogia evi­ tado considerado como um todo quan­
dente, podemos dizer a mesma coisa to em relação ao Governo considerado
do Governo em relação aos magistra­ como parte desse todo.
dos. Numa legislação perfeita, nula deve
Ora, a força total do Governo, ser a vontade particular ou individual;
sendo sempre a do Estado, de modo muito subordinada, a vontade do
algum varia. Donde se segue que, corpo 2 52 própria do Governo, e, con­
quanto mais usar dessa força sobre os seqüentemente, sempre dominante a
seus próprios membros, menos lhe res­ vontade geral ou soberana, única regra
tará dela para agir sobre todo o povo. de todas as outras.
Portanto, quanto mais numerosos De acordo com a ordem natural,
forem os magistrados, tanto mais fraco pelo contrário, essas várias vontades
será o Governo. Como essa máxima é tornam-se mais ativas à medida que se
fundamental, esforcemo-nos por escla­ concentram. Assim, a vontade geral é
recê-la melhor. sempre a mais fraca, tendo segundo
Podemos distinguir na pessoa do lugar a vontade do corpo, e a vontade
magistrado três vontades essencial­ particular o primeiro, de modo que no
mente diversas 2 5 1 : primeiro, a vontade Governo cada membro é primeira­
própria do indivíduo, que não pro­ mente ele próprio, depois magistrado e
pende senão ao seu proveito particular; depois cidadão. Tal gradação opõe-se
segundo, a vontade comum dos magis­ inteiramente à exigida pela ordem
trados, que se prende unicamente ao social2 5 3 .
benefício do príncipe e pode ser cha­
Isto posto, deposite-se todo o G o ­
mada de vontade do corpo, a qual é
verno nas mãos de um só homem —
geral em relação ao Governo e particu­
temos a vontade particular e a vontade
lar em relação ao Estado de que é
do corpo perfeitamente reunidas e esta,
parte o Governo; em terceiro lugar, a
conseqüentemente, no mais alto grau
de intensidade que possa conhecer.
2 51 Mais uma vez se torna patente que, ao
cuidar de entes morais que superam as pessoas
de seus componentes — é o próprio texto que 2 52 A expressão francesa “volonté de corps”,
faz um paralelo entre o corpo político e o como a correlata “esprit de corps”, não encon­
corpo governamental — , Rousseau jamais cai tra correspondente exato em português, pare­
no gênero de abstração dos “entes de razão” cendo conveniente tolerar-se a tradução literal,
consagrados pela escolástica, das “entidades sobretudo tendo em vista que, no trecho, se
metafísicas” acusadas por Comte. Uma vez distinguem duas vontades coletivas: a do
definida a- pessoa coletiva, somos colocados Governo e a vontade geral ou soberana. (N. da
em face de sua realidade concreta e viva. T.)
Assim, após a definição do Governo, devemos 2 53 Esses dois parágrafos marcam, clara­
examinar seu comportamento real nos três pla­ mente, a distância entre o ideal abstrato e
nos em que se concretiza como reflexo, respec­ absoluto da “legislação perfeita”, que recusa
tivamente, da vontade coletiva do todo social, qualquer força à vontade particular, e as inves­
da vontade coletiva do corpo do Governo e da tidas dessa mesma vontade particular em
vontade individual de seus componentes. E, da nome da “ordem natural”, ou seja, dos impul­
relação entre esses três aspectos duma mesma sos egoístas da personalidade humana. Nova­
realidade, resulta o campo de análise que mente, aqui temos uma afirmação teórica e
Rousseau chamou de “artifício e jogo da má­ genérica envolvendo críticas à realidade ime­
quina política”, considerada em sua ação efeti­ diata, que continuam as comentadas na nota
va de cada dia. (N. de L. G. M.) 248, supra. (N. de L. G. M.)
D O C O N T R A T O SO C IAL III 87

Ora, como é do grau da vontade que isso maior força real, porque tal força
depende o uso da força e que não varie é a do Estado, cuja medida é sempre
de forma alguma a força absoluta do igual. Eis como a força relativa ou a
Governo, segue-se que o mais ativo atividade do Governo diminui, sem
dos governos é o de um só2 5 4. que possa aumentar sua força absoluta
Unamos, pelo contrário, o Governo ou real.
à autoridade legislativa; façamos um Certo, ainda, que o expediente dos
prínqipe do soberano e tantos magis­ negócios se torna mais lento à medida
trados de quantos são os cidadãos, e que mais pessoas são encarregadas
veremos que a vontade do corpo, con­ dele; que, concedendo-se muito à pru­
fundida com a vontade geral, não terá
dência, não se dá o bastante à fortuna;
maior atividade do que esta e deixará à
que se deixa fugir a ocasião e que, à
vontade particular toda a sua força.
Assim o Governo, sempre com a força de deliberar-se, se perde o fruto
mesma força absoluta, permanecerá no da deliberação.
seu mínimo de força relativa ou de Acabo de provar que o Governo se
atividade. enfraquece à medida que os magis­
Essas relações são incontestáveis e trados se multiplicam, e provei, mais
outras considerações ainda mais as acima, que, quanto mais numeroso for
confirmam. Verifíca-se, por exemplo, 0 povo, tanto mais a força repressora
que cada magistrado se mostra mais deverá aumentar. Segue-se que a rela­
ativo no seu corpo do que cada cida­ ção entre magistrados e Governo deve
dão no que lhe é próprio, e, conseqüen­ ser o inverso da relação entre os súdi­
temente, que a vontade particular tem tos e o soberano, ou seja, que quanto
muito maior influência nos atos do
mais o Estado crescer, mais o Governo
Governo do que nos do soberano, pois deve contrair-se, de modo que o núme­
cada magistrado está quase sempre
ro de chefes diminua em razão do
encarregado de alguma função do
1aumento do povo.
Governo, enquanto cada cidadão, to­
mado em particular, não detém qual­ Ademais, só me refiro aqui à força
quer função da soberania. Aliás, quan­ relativa do Governo e não à sua reti­
to mais o Estado se estende, tanto mais dão 2 5 5, pois, contrariamente, quanto
aumenta sua força real, conquanto não mais numeroso for o magistrado, tanto
aumente em função da extensão; o E s­ mais a vontade do corpo se aproxi­
tado permanecendo, porém, o mesmo, mará da vontade geral, enquanto sob
aos magistrados agrada o multiplica­ um magistrado único essa mesma von­
rem-se e o Governo não adquire com tade do corpo não passa de uma vonta­
de particular. Assim se perde de um
2 5 4 Com o reconhecimento da maior ativi­ lado o que se pode ganhar de outro, e a
dade dos governos de um só homem, neste arte do Legislador está em saber fixar
ponto se inicia uma série de considerações
sobre as várias formas governamentais. Só têm
em vista, porém, a “força relativa” do Gover­ 2 5 5 Como se disse na nota anterior, Rousseau
no e a extensão numérica do povo, como se considera apenas uma das faces da questão: a
verá mais adiante. Cabe pois evitar, em que força que fica ao dispor do Governo. Diferente
pese a atitude de certos bons comentaristas, e relevante questão é saber da “retidão” com
qualquer antecipação do julgamento de Rous­ que se utilizará essa força, ou seja, da sua apli­
seau acerca das diversas formas de governo. cação segundo a vontade geral. (N. de L. G.
(N. de L. G. M.) M.)
88 R O U SSEA U

o ponto em que a força e a vontade do proca, se combinem na relação mais


Governo, sempre em proporção recí- vantajosa para o Estado 2 5 6.

2 5 6 Mais uma vez, a análise do caso particu­ caso, Rousseau concede que, no lançar os
lar e o julgamento da solução específica que fundamentos de um comportamento moral,
lhe convém fica a cargo do Legislador, aquele seja individual, seja coletivo, mais vale fiar-se
instituidor primeiro e desinteressado de que se numa intuição altruísta superior do que em
cuidou no capítulo VII do Livro II. Se já se normas propostas pelo próprio interessado. Eis
aproximou a função do Legislador na vida dos por que o final do parágrafo, onde reaparecem
povos à do educador na dos indivíduos (cf. certas expressões pseudomatemáticas (“pro­
François Bouchardy), o paralelo tem todo o porção recíproca”, “relação mais vantajosa”),
cabimento, não só pela semelhança da configu­ não deve ser tomado no rigor do termo, senão
ração e função de ambos na doutrina rous- como simples alusão aos dois últimos capítu­
seauniana, mas ainda porque, num e noutro los. (N. de L. G. M.)

C a p ítu lo III

Divisão dos governos

Viu-se, no capítulo precedente, por Finalmente, pode concentrar todo o


que se distinguem as várias espécies ou Governo nas mãos de um único magis­
formas de governo segundo o número trado do qual todos os outros recebem
de membros que as compõem. Resta seu poder. Essa terceira forma é a mais
ver, neste capítulo, como se faz tal comum e se chama m onarquia ou
divisão. Governo real.
O soberano, em primeiro lugar, Deve-se notar que todas essas for­
pode confiar o Governo a todo o povo mas, ou pelo menos as duas primeiras,
ou à maior parte do povo, de modo que são suscetíveis de restrições e de
haja mais cidadãos magistrados do ampliações, e têm até uma latitude
que cidadãos simples particulares. bastante grande, porquanto a democra­
Dá-se a essa forma de governo o nome cia pode compreender todo o povo ou
de d em ocracia2 5 7. cidadãos do que magistrados, e esta
O soberano pode também confinar o forma recebe o nome de aristocra­
Governo às mãos de um pequeno nú­ cia2 58.
mero, de modo que haja mais simples limitar-se à metade. A aristocracia, por

2 5 7 Dificilmente nos dias atuais, quando desejo de qualificar como democrático o


tanto se recorre a essa palavra, reconhecer-se-á Governo de Genebra, mas é de ver que, quan­
a democracia na fórmula de Rousseau. Antes, do aplica o termo à república genebrina, nosso
contudo, de prosseguirmos no comentário, autor o emprega com diferente sentido, pois de
lembremo-nos de que para Rousseau “todo forma alguma os “magistrados” eram ali mais
Governo, para ser legítimo, precisa fundar-se numerosos do que os simples cidadãos. Ade­
na soberania do povo” — com o que se refaz a mais, no Livro II teremos acusada a usurpação
consonância entre os princípios do Contrato e praticada pelo “Pequeno Conselho”. (N. de L.
os conceitos modernos. No interior dessa esfe­ G. M.)
ra de legitimidade, que só a soberania popular 2 58 Nesse tipo, preferivelmente, deveríamos
estabelece, examinam-se agora as formas de classificar as democracias modernas, por­
governo (que não se confunde com o soberano) quanto Rousseau não atribui necessariamente
para classificá-las segundo o número de mem­ ao “pequeno número” qualquer virtude de san­
bros. Em conseqüência, para Rousseau, dem o­ gue (v. cap. V), nem exclui essa forma do prin­
cracia reassume o sentido que possuía na Anti­ cípio de que o soberano continua sendo o
guidade, quando as assembléias de cidadãos povo. Ora, na democracia moderna o povo
eram convocadas para adotar medidas de níti­ soberano escolhe um pequeno número de
do caráter governamental. Vaughan tenta governantes aos quais confia a função dos
encontrar as razões dessa acepção especial no magistrados. (N. de L. G. M.)
D O C O N T R A T O SO C IA L III 89

sua vez, da metade do corpo pode Em todos os tempos, discutiu-se


contrair-se indeterminadamente até o muito sobre a melhor forma de gover­
menor número. A própria realeza é no, sem considerar-se que cada uma
suscetível de certa partilha. Esparta, delas-é a melhor em certos casos e a
por sua constituição, teve constante­ pior em outros.
mente dois reis e viram-se no império Se, nos vários Estados, o número de
romano até oito imperadores reinando magistrados superiores2 59 deve estar
ao mesmo tempo, sem que se pudesse em razão inversa à do número de cida­
dizer que o império estivesse dividido. dãos, conclui-se daí que em geral o
Assim , há um ponto em que cada Governo democrático convém aos E s­
forma de governo se confunde com a tados pequenos, o aristocrático aos
seguinte e vê-se que, sob três denomi­
médios e o monárquico aos grandes.
nações, o Governo é, na realidade,
Essa regra provém diretamente do
suscetível de tantas formas diferentes
quantos cidadãos possua o Estado. princípio2 60. Com o, porém, ponderar
M ais ainda: esse mesmo Governo, a multidão de circunstâncias que
podendo em certos aspectos subdivi­ podem engendrar exceções?
dir-se em outras partes, uma adminis­
trada de uma maneira e outra por 2 59 Cf. nota 250. (N. de L. G. M.)
outro modo, dessas três formas combi­ 2 60 Isto é: do princípio da legitimidade do
nadas pode resultar uma multidão de poder (soberano popular) e de suas principais
implicações no que respeita à eficácia (“força
formas mistas, cada uma das quais é
relativa”) da ação governamental, como já se
multiplicável por todas as formas estabeleceu. O mais, são decorrências de cada
simples. situação particular. (N. de L. G. M.)

C a p ítu lo IV

D a democracia

Aquele que faz a lei2 61 sabe, melhor não o são, porque o príncipe e o sobe­
do que ninguém, como deve ser ela rano, não sendo senão a mesma pes­
posta em execução e interpretada2 62. soa, formam por assim dizer um
Parece, pois, que não se poderia ter Governo sem Governo.
uma constituição melhor do que aque­ Não será bom que aquele que faz as
la em que o poder executivo estivesse leis as execute2 6 4, nem que o corpo do
jungido ao legislativo. No entanto, jus­
tamente isso torna o Governo insufi­
ciente em certos aspectos, porque as 2 6 4 Também aqui não se cuida, malgrado as
aparências, da separação de poderes. Rous­
coisas que devem ser distinguidas2 63
seau já a ironizava no capítulo II do Livro II e,
se agora afirma como necessária uma distin­
261 A potência legislativa. (N. de L. G. M.) ção entre o legislativo e o executivo, não p o d e ­
2 62 Interpretar e executar são as duas faces mos esquecer que, por esta altura, já temos
da aplicação da lei, função precípua do execu­ estabelecido que o legislativo é, de fato, 'um
tivo. (N. de L. G. M.) poder ou, melhor, o próprio poder inalienável e
2 63 Tudo que se relacione com o público e o indivisível, enquanto o executivo não passa de
privado, por isso mesmo deve ser distinguido. uma função, de uma “emanação” da potência.
Não se trata, ainda, da separação entre os Nessa mesma diferença se funda a necessidade
poderes, mas, antes, de bem caracterizar o ob­ de delegar o executivo, a fim de que nele não se
jeto do exercício desses poderes. (N. de L. G. imiscua, desviando-se, o povo, cuja principal
M.) tarefa é legislar. (N. de L. G. M.)
90 R O U SSEA U

povo desvie sua atenção dos desígnios nasse bem, não teria necessidade de sér
gerais para emprestá-la aos objetivos governado 2 68.
particulares 2 6 5. N ada mais perigoso Tomando-se o termo no rigor da
que a influência dos interesses priva­ acepção, jamais existiu, jam ais existirá
dos nos negócios públicos; o abuso da uma democracia verdadeira 2 69. É con­
lei pelo Governo é mal menor do que a tra a ordem natural governar o grande
corrupção do Legislador, conse­ número e ser o menor número governa­
qüência infalível dos desígnios particu­ do. Não se pode imaginar que perma­
lares2 6 6. Estando, então, o Estado neça o povo continuamente em assem­
alterado em sua substância, torna-se bléia para ocupar-se dos negócios
impossível qualquer reforma 2 6 7. Um públicos e compreende-se facilmente
povo que jam ais abusasse do Governo, que não se poderia para isso estabe­
também não abusaria da indepen­ lecer comissões sem mudar a forma de
dência; um povo, que sempre gover- administração2 70.
Creio, com efeito, poder estabelecer
2 6 5 Rousseau aprendera com Aristóteles (Po­ em princípio que, quando as funções
lítica, 1. VI, c. IV) que há cinco espécies de do Governo são divididas por inúme­
democracia: l.a) a que se funda na igualdade ros tribunais, os menos numerosos
de direitos políticos e tem a maioria por regra adquirem, mais cedo ou mais tarde, a
de legislação; 2.a) a que distribui a magistra­
tura segundo um censo econômico módico;
maior autoridade, quando mais não
3.a) a que admite à magistratura todos os cida­ fosse, somente pela facilidade de resol­
dãos irrepreensíveis, mas deixa que “a lei reine ver as questões, que naturalmente a
soberana” ; 4.a) nesta, basta ser cidadão, mas tanto os leva 2 7 1 .
ainda impera a lei; 5.a) em que a condição é a
mesma, porém “a soberania passa à multidão
que toma lugar à lei”, substituindo-a por 2 68 Um Governo que não abusa da lei sempre
decretos populares e deixando-se levar por está conforme à vontade geral, e um povo sem­
demagogos. Sem dúvida, a classificação aristo- pre submisso à lei dispensa qualquer coerção.
télica influi neste capítulo do Contrato, porém Rousseau aponta esses casos extremos como
seria difícil aceitar o estrito paralelismo indi­ meras hipóteses irrealizáveis, pois o faz contra
cado nos comentários de Halbwachs. De Aris­ a evidência da necessidade de um Governo que
tóteles, Rousseau retém, sobretudo, a caracte­ caracteriza a vida de todos os povos. (N. de L.
rização dos vícios da democracia. Assim, na G. M.)
frase que anotamos, o povo que “desvia sua 2 69 A democracia pura, integral, não poderá
atenção dos desígnios gerais para emprestá-la realizar-se na prática, pois as circunstâncias e
aos objetos particulares” é aquele mesmo povo as contingências acabam sempre por exigir
do texto aristotélico que se põe em lugar da lei, formas “mistas”. Tampouco o regime das
por meio de decretos. (N. de L. G. M.) cidades-estados antigas, até certo ponto inspi-
radoras da democracia rousseauniana, corres­
2 6 6 Se o governo é entregue a um pequeno nú­
mero, há o risco de vê-lo abusar da lei em seu pondia à forma ideal, pois a igualdade política
interesse privado; se permanece na mão da só prevalecia no seio do grupo privilegiado dos
cidadãos ativos. (N. de L. G. M.)
totalidade dos cidadãos, o mesmo perigo há,
mas o mal é muito maior, pois a própria fun­ 2 70 Se o povo verdadeiramente governa como
ção de fazer leis (e, conseqüentemente, de cor­ um todo, nada mais poderá fazer, tornando-se
rigir os abusos) se compromete. Ora, a função improdutivo. Se delega a função, já aceitou
legítima é o princípio fundamental da organi­ uma forma “mista”. (N. de L. G. M.)
zação política. (N. de L. G. M.) 271 É naturalmente mais fácil abusar da lei já
feita do que fazer nova lei para corrigir o
2 6 7 Se o governo abusa das leis, impõe-se abuso — eis a clássica vantagem dos governos
reformá-las, isto é, fazer novas leis. Mas o sem virtude. Beaulavon julga encontrar na
legislativo estará impossibilitado de praticar frase uma alusão a Genebra, onde o “Conselho
tal reforma sempre que, havendo sofrido Geral” dos cidadãos cedia passo, na prática, à
influência do governo, já se encontre afastado autoridade do “Pequeno Conselho”. (N. de L.
da vontade geral, corrompido. (N. de L. G. M.) G. M.)
D O C O N T R A T O SO C IAL III 91

Além disso, quantas coisas, difíceis sárias, a esse belo espírito freqüente­
de reunir, supõe esse Governo! Em mente faltou justeza e algumas vezes
primeiro lugar, um Estado muito pe­ clareza, e não percebeu ele que, a auto­
queno2 72, no qual seja fácil reunir o ridade soberana sendo a mesma em
povo e onde cada cidadão possa sem todos os lugares, deve o mesmo princí­
esforço conhecer todos os demais; pio vigorar em todo o Estado bem
segundo, uma grande simplicidade de constituído, embora mais ou menos, é
costumes que evite a acumulação de verdade, segundo a forma de gover­
questões e as discussões espinhosas; no 2 7 5.- .
Acrescentemos que não há forma de
depois, bastante igualdade entre as
governo tão sujeita às guerras civis e
classes e as fortunas, sem o que a
às agitações intestinas quanto a forma
igualdade não poderia subsistir por
democrática ou popular, porque não
muito tempo nos direitos e na autori­
há outra que tenda tão forte e conti­
dade; por fim, pouco ou nada de
nuamente a mudar de forma, nem que
luxo 2 73 — pois o luxo ou é o efeito de
exija mais vigilância e coragem para
riquezas ou as toma necessárias; cor­
ser mantida na forma original2 7 6. É
rompe ao mesmo tempo o rico e o
sobretudo nessa constituição que o
pobre, um pela posse e outro pela cobi­ cidadão deve armar-se de força e cons­
ça; entrega a pátria à frouxidão e à vai­ tância, e ter presente no coração, todos
dade; subtrai do Estado todos os cida­ os dias da vida, o que dizia um pala­
dãos para subjugá-los uns aos outros, e tino virtuoso 2 7 7 na dieta da Polônia:
todos à opinião. M aio pericu losam libertatem quam
Eis por que um autor célebre2 7 4 quietum servitiu m 2 78.
estabeleceu a virtude por princípio da
república, pois todas essas condições 2 7 5 Mais uma vez se firma que o Contrato
não poderiam subsistir sem ela. Mas, Social não é o evangelho da utopia democrá­
por não haver feito as distinções neces- tica, mas um tratado sobre a essência iguali­
tária do Estado legítimo, seja qual for a sua
forma de governo. Essa igualdade essencial,
2 72 Uma velha tradição — de Aristóteles a encarada em seus múltiplos aspectos, admite
Montesquieu — só aconselhava a forma variações de “mais ou menos” no que respeita
dem ocrática aos pequenos povos, suscetíveis à política e à condição material, porém man­
de reunir-se em assembléias gerais e com rela­ tém-se íntegra enquanto princípio moral. (N.
tivamente poucas questões a discutir. (N. de L. de L. G. M.)
G. M.) 2 7 6 Para além do relativismo circunstancial e
2 73 O tema do luxo, tão em voga no século da dificuldade prática da instalação da demo­
X VIII, aqui volta a aparecer, mantendo-se cracia, Rousseau denuncia ainda um perigo
Rousseau fiel à posição assumida no primeiro estrutural que lhe é peculiar: a instabilidade e a
Discurso. (N. de L. G. M.) fragilidade da forma que, fundada na
2 7 4 Montesquieu, que no D o Espírito das dade política, se revela como de fácil acesso às
Leis (1. III, c. III) dizia: “ Não é preciso muita ambições privadas e, pois, às subversões. (N.
probidade para que um Governo monárquico de L. G. M.)
ou um Governo despótico se mantenha ou se 2 7 7 O palatino da Posnânia, pai do rei da
sustenha. A força da lei em um e, em outro, o Polônia, Duque da Lorena*. (N. do A.)
braço do príncipe sempre erguido tudo regu­ * Palatinados eram as antigas províncias da
lam e contêm. Mas num Estado popular preci­ Polônia, e palatinos os seus governantes.
sa-se de um recurso a mais, que é a virtude” . Vaughan anota que a mesma máxima foi repe­
Montesquieu, contudo, falara dos Estados tal tida pelo próprio rei da Polônia, Estanislau
como existiam, enquanto Rousseau, no Con­ Leczinski: “É preciso optar, e os que não
trato, cuida de como legitimamente devem eles podem suportar o trabalho só terão de buscar
organizar-se. Conseqüentemente, a virtude é o repouso na servidão”. (N. de L. G. M.)
um princípio sempre necessário. (N. de L. G. 2 78 “Prefiro a liberdade perigosa à tranqüila
M.) servidão.” (N. de L. G. M.)
92 R O U SSE A U

Se existisse um povo de deuses, govemar-se-ia democraticamente. Go-


Novamente Rousseau alude à democracia v e ra 0 tâo n ão con vém aos
integral, pura. (N. de L. G. M.) homens2 7 9.

C a p ítu lo V

D a aristocracia

Temos aqui duas pessoas morais vagens da Am érica setentrional ainda


bem distintas, a saber: o Governo e o hoje se governam assim e são muito
soberano, e, conseqüentemente, duas bem governados2 83 .
vontades gerais280, uma relativa a À medida, porém, que a desigual­
todos os cidadãos e a outra unica­ dade da instituição prevaleceu sobre a
mente aos membros da administração. desigualdade natural, a riqueza ou o
Eis por que o Governo, ainda que poder2 8 4 foram preferidos à idade, e a
possa regulamentar sua polícia interior
aristocracia tornou-se eletiva. Por fim,
como mais lhe agradar, jamais poderá
sendo o poder transmitido com os bens
falar ao povo a não ser em nome do
soberano, isto é, em nome do próprio dos pais aos filhos, tornando patrícias
povo, o que nunca deve ser esqueci­ as famílias, tornou hereditário o G o ­
do2 8 1 . verno e houve senadores com vinte
A s primeiras sociedades se governa­ anos.
ram aristocraticamente. Os chefes de Há, pois, três espécies de aristocra­
família deliberavam entre si sobre os cia: natural, eletiva e hereditária. A
assuntos públicos. Os moços cediam primeira só convém a povos simples; a
sem relutancia à autoridade da expe­ terceira é o pior de todos os governos.
riência. Daí os nomes de padres, A segunda, o melhor Governo, é a aris­
anciães, senado e geron tes282. Os sel- tocracia propriamente dita 2 8 5.

2 8 ° a. vontade geral propriamente dita, global


e interessando a toda a coletividade, e a vonta­ í83 Já sabemos que as informações sobre os
de geral interior ao grupo governamental que, povos primitivos americanos, que corriam no
geral em face da vontade particular de cada século XVIII, não eram, nem podiam ser exa­
magistrado, será particular em face da vontade tas. Não se tomará, portanto, ao pé da letra
geral propriamente dita. (N. de L. G. M.) essa afirmação de Rousseau sobre as aristo­
2 81 Impõe-se, neste trecho, manter bem explí­ cracias selvagens, mas cabe registrar que, de
cita a relatividade de certos termos que figu­ fato, as classes de idade mais avançada pos­
ram no Contrato e que ainda hoje estão em uso suíam, nessas sociedades primitivas, funções
corrente, porém com diversa acepção. Assim, de predomínio. Também a afirmação, pouco
ao longo dos últimos capítulos, tomou-se mais acima, acerca das sociedades arcaicas
patente que o conceito de Governo “legítimo” pode, em sentido muito geral, ser tida como
(“republicano”) de Rousseau se aproxima aceitável. (N. de L. G. M.)
muito do que atualmente chamamos de Gover­ 28 4 É claro que entre os antigos a palavra
no “democrático”, isto é, fundado na vontade optimates não queria d izeres melhores, porém
popular. Assim, a aristocracia será agora jul­ os mais potentes. (N. do A.)
gada em razão desse princípio fundamental, 28 5 Assim se desfazem várias falsas Interpre­
que jamais confunde a soberania com esta ou tações do Contrato Social. Em primeiro lugar,
aquela composição do corpo governamental. sobre o sentido democrático, essencial e não
(N. de L. G. M.) formal, do pensamento de Rousseau, que, ja­
2,82 Todos esses termos, etimologicamente, mais se apartando do princípio republicano (v.
ligam-se à idéia de “mais velhos”. (N. de L. G. nota 281, supra), não hesita em favorecer a
M.) forma aristocrática eletiva. Depois, sobre a
D O C O N T R A T O SO C IAL 93

sê-lo por eleição28 7, meio pelo qual a geiro por intermédio de senadores
probidade, as luzes e a experiência e veneráveis do que por um a m ultidão
todos os outros motivos de preferência desconhecida ou desprezada.
e de estima pública constituem outras Em um a palavra, a melhor ordem e
novas garantias de que se será gover­ a mais natural é que os mais doutos
nado sabiamente. governem a m ultidão, quando se tem
Além disso, as assembléias reúnem- certeza de que o fazem visando o bene­
se mais comodam ente; os negócios me­ ficio dela e não o seu. Não se deve
lhor se discutem e se executam com m ultiplicar em vão os recursos, nem
mais ordem e presteza; o crédito do fazer com vinte mil homens o que cem
Estado mais bem se firm a no estran- homens escolhidos podem fazer ainda
melhor. É preciso notar, porém, que o
2 8 5 Assim se desfazem várias falsas interpre­ interesse do corpo288, neste caso, co­
tações do Contrato Social. Em primeiro lugar, m eça a enfraquecer a direção da força
sobre o sentido democrático, essencial e não
formal, do pensamento de Rousseau, que, ja­
pública segundo a regra da vontade
mais se apartando do princípio republicano (v. geral, e que um a outra propensão
nota 281, supra), não hesita em favorecer a inevitável rouba às leis uma parte do
forma aristocrática eletiva. Depois, sobre a poder executivo.
interpretação excessivamente estrita que Halb­ Tom ando-se em consideração as
wachs, contra Beaulavon, deu ao conceito de
aristocracia em Rousseau, que aquele autor conveniências particulares, não é pre­
julga limitado a uma escolha no interior de ciso nem um Estado tão pequeno, nem
uma casta ou classe privilegiada, quando em um povo tão simples e tão reto para
verdade o Contrato distingue explicitamente que a execução das leis, como num a
entre a aristocracia “natural” (de idade), a
hereditária (classe ou casta) e a puramente ele­
boa dem ocracia, suceda im ediata­
tiva, reservando a esta última a categoria de mente à vontade pública. Não convém,
“aristocracia propriamente dita”. Conseqüen­ igualmente, um a nação tão grande que
temente, razão assiste a Beaulavon para consi­ os chefes, distribuídos para governá-la,
derar aristocrático, no sentido rousseauniano, possam , cada um em seu departa­
o Governo parlamentar de gabinete praticado
em França. Afinal, podemos estender essa mento, fazer-se passar pelo soberano e
observação a todos os governos hoje por nós começar a tornar-se independentes
considerados “democráticos”, como acima para, por fim, chegar a ser os senho­
notamos, pois, presidencialista, parlamenta­ res289.
rista ou monarquista, neles impera a regra da
escolha eleitoral de alguns para exercer o
M as, se a aristocracia exige algumas
Governo. (N. de L. G. M.) virtudes menos que o Governo popu­
28 6 Isto é, potencialmente são magistrados, lar, exige ainda outras que lhe são pró­
faltando apenas realizar-se tal capacidade prias, como a m oderação entre os ricos
latente, o que pode suscitar as comoções intes- e o contentam ento entre os pobres,
tinas acusadas no capítulo anterior, enquanto
na aristocracia propriamente dita consagra-se
pois parece que nela estaria deslocada
a eleição como única regra de ascensão. (N. de um a igualdade rigorosa, que nem em
L. G. M.) Esparta foi observada.
2 8 7 É muito importante regulamentar pelas De resto, se essa form a compreende
leis a forma de eleição dos magistrados, pois,
abandonando-a à vontade do príncipe, não se
pode evitar cair na aristocracia hereditária, 288 Do pequeno corpo composto pelos gover­
como aconteceu às repúblicas de Veneza e de nantes. (N. de L. G. M.)
Berna. Assim, a primeira é, há muito tempo, 289 Espalhados pelo território, os gover­
um Estado em dissolução, e a segunda só se nantes não se contrastam reciprocamente e,
mantém, contudo, devido à extrema sabedoria não havendo vontade geral do Governo, cada
de seu senado: é uma exceção muito honrosa, qual passa a usar do poder em interesse pró­
mas muito perigosa. (N. do A.) prio. (N. de L. G. M.)
94 R O U SSE A U

certa desigualdade de fortuna é porque, motivos de preferência mais im por­


em geral, a adm inistração dos negó­ tantes do que a riqueza.
cios públicos se encontra confiada
àqueles que podem consagrar-lhes 290 As definições da Política (1. VI, c. V e VI)
não autorizam a confusão de Rousseau, pois
todo o seu tem po, mas não, como pre­ Aristóteles distinguia a aristocracia pela virtu­
tendia Aristóteles, para que os ricos de, a oligarquia pela riqueza e a democracia
acabem sempre preferidos290. É con­ pela liberdade. Mesmo cuidando de formas
intermediárias de governo, qualifica como
veniente, pelo contrário, que um a esco­
aristocráticos “os sistemas em que os magis­
lha oposta ensine algumas vezes ao trados são escolhidos segundo o mérito ou
povo que há, no mérito dos homens, segundo a riqueza” . (N. de L. G. M.)

C a p it u l o VI

D a m onarquia

Consideram os, até aqui, o príncipe mesmo tempo um a unidade física, na


como um a pessoa m oral e coletiva, qual todas as faculdades, que a lei com
unida pela força das leis e depositária, tam anho esforço reúne no outro, se
no Estado, do poder executivo. Temos encontram naturalm ente reunidas.
agora de considerar esse poder reunido Assim, a vontade do povo, a vonta­
nas m ãos de um a pessoa natural, de de do príncipe, a força pública do Es­
um homem real, o único que tem o tado e a força particular do Governo,
direito de dispor dele segundo as leis. É correspondem todas ao mesmo móvel;
o que se cham a um m onarca ou um todos os recursos da m áquina estão na
rei291. mesma mão, tudo se dirige para o
Exatam ente ao contrário das outras mesmo objetivo; não há movimentos
administrações, nas quais um ser co­ opostos que se anulem reciprocam ente
letivo292 representa um indivíduo, e não se pode imaginar qualquer espé­
nesta um indivíduo representa293 um cie de constituição na qual um menor
ser coletivo, de modo que a unidade esforço produza ação mais conside­
m oral, que constitui o príncipe, é ao rável. Arquimedes, sentado tranqüila­
mente à beira da água e fazendo, sem
trabalho, um grande navio navegar,
291 Este capítulo atesta a admirável retidão dá-me a impressão de um m onarca
intelectual de Rousseau, que, pessoalmente
adverso ao regime monárquico, aceita-o, teori­ hábil governando, de seu gabinete, vas­
camente ao menos, como uma das formas pos­ tos Estados e fazendo tudo mover-se,
síveis de governo legítimo. H á uma “ monar­ embora parecendo imóvel.
quia republicana” . De outra parte, embora Se não existe, porém, um Governo
pelas contingências políticas de sua
posição de estrangeiro tolerado pelo rei de
que possua mais vigor, não há absolu­
França, e isso numa época em que guardar as tamente outro em que a vontade parti­
conveniências não era questão apenas de cor­ cular disponha de mais império e mais
tesia e conforto mas principalmente de segu­
rança e sobrevivência, Rousseau acusa todos
os vícios da monarquia desligada da vontade 293 “ Representa” , nesta frase, equivale a
popular, ou seja, das monarquias de então e, “ agir como”, pois para Rousseau a soberania é
também, daquela sob cujo poder vivia. (N. de instransferível e não admite representantes. O
L. G. M.) rei, como os corpos de magistrados, apenas
292 Mais exatamente: uma pessoa moral, um exerce a potência executiva que lhe confia o
ente coletivo. (N. de L. G. M.) soberano. (N. de L. G. M.)
D O C O N T R A T O SO C IAL 95

facilmente domine as outras; é verdade imediatamente útil2 9 6. É o que Samuel


que tudo se movimenta para o mesmo expôs vigorosamente aos hebreus2 9 7 ; é
fim, m as esse objetivo não é o da felici­ o que M aquiavel fez ver com evidên­
dade pública, e a própria força da cia. Fingindo dar lições aos reis, deu-
adm inistração volta-se continuamente as, grandes, aos povos. O Príncipe de
contra o E stado2 9 4. M aquiavel é o livro dos republica­
Os reis querem ser absolutos e, a nos298.
distância, gritam-lhes que o melhor Pelas relações gerais, acham os que a
meio de sê-lo é fazer-se am ar por seus
povos2 9 5. Essa m áxima é muito bonita 29 6 Um povo submisso não pode ser podero­
e mesmo, em certos aspectos, muito so, eis onde se chocam as “ suposições incom­
verdadeira: infelizmente, porém, sem­ patíveis” e onde começa a “natural” prefe­
rência dos reis pela submissão. (N. de L. G.
pre m ofarão dela nas cortes. Sem dúvi­ M.)
da, o poder que se origina do amor dos 29 7 A Bíblia conta (Samuel, VIII, 10-18)
povos é o maior dos poderes, m as é como, sentindo-se velho e ouvindo o povo
precário e condicional; os príncipes ja ­ reclamar um rei, Samuel anunciou-lhe que esse
m ais se contentarão com ele. Os governante dom inaria os Filhos, escravizaria os
pais, tom aria as filhas, apropriar-se-ia dos
melhores reis querem ser m aus, caso campos e das vinhas, mas que contra ele
lhes agrade, sem deixar de ser os nenhuma grita seria ouvida pelo Senhor, “ por­
senhores. Será grato a um pregador que vós mesmos pedistes um rei” . Rousseau
político dizer-lhes que, sendo sua força provavelmente conhecia a passagem por inter­
médio de Algernon Sidney, que a comenta no
a do povo, seu m aior interesse estará Discurso sobre o Governo (c. III, 3). (N. de L.
em ser o povo florescente, num eroso, G. M.)
temível; eles sabem muito bem que isso 2 98 Maquiavel era um homem honesto e um
não é verdade. O seu interesse pessoal bom cidadão; ligado, porém, à Casa dos Médi-
estará principalmente em ser o povo cis, foi forçado, durante a opressão de sua pá­
tria, a disfarçar seu amor à liberdade. A esco­
fraco, miserável, e nunca possa ofere­ lha de seu execrável herói por si só manifesta
cer-lhes resistência. Creio que, supon­ suficientemente sua intenção secreta; a oposi­
do-se os súditos sempre perfeitamente ção entre as máximas de seu livro sobre O
submissos, o interesse do príncipe seria Príncipe e a dos Discursos sobre Tito Lívio e
de sua História de Florença demonstra ainda
então que o povo se tornasse potente a que esse profundo político só teve até hoje lei­
fim de que essa força, sendo a sua^ o tores superficiais ou corrompidos. A corte de
tornasse temível aos vizinhos, mas Rom a proibiu severamente seu livro; ela é,
como tal interesse só é secundário e creio firmemente, a mais bem pintada por ele*.
(N. do A.)
subordinado, e como as duas suposi­
* Esse juízo sobre Maquiavel desencadeou
ções se mostram incompatíveis, parece uma controvérsia entre os comentadores do
natural que os príncipes sempre prefi­ Contrato. Enquanto alguns, como Beaulavon,
ram a m áxim a que lhes seja mais acreditam que assim Rousseau apenas aderiu a
um ponto de vista então generalizado e adota­
do também por Diderot na Enciclopédia,
29 4 Ou seja: contra todos os componentes do porém hoje inteiramente ultrapassado, outros
corpo político. (N. de L. G. M.) sustentam que os contrastes entre o Príncipe e
2 9 5 Disposto a admitir a possibilidade de eri­ as Décadas autorizam um exame mais pro­
gir-se um Governo monárquico sobre a vonta­ fundo da matéria, como desejam Halbwachs e
de populaf, Rousseau não ignora a realidade: Vaughan. Certo é que Rousseau desejou ver no
os reis que conhece não só querem, mas já realismo brutal do Príncipe uma advertência
conseguiram tornar-se absolutos, enquanto os aos homens livres, como diz em sua nota, que,
teóricos da política, ao invés de condenar essa por sinal, só apareceu na edição de 1782,
aberração, procuram disfarçá-la com argu­ tomando-a o editor ao manuscrito de N euchâ­
mentos e conselhos tão descabidos quanto inó­ tel, como se quisesse desfazer interpretações
cuos. (N. de L. G. M.) capciosas. (N. de L. G. M.)
96 R O U SSE A U

monarquia só convém aos grandes para mostrar ao público, assim que


Estados e, ao examiná-la em si mesma, ascendem, sua inépcia. O povo se en­
chegamos à mesma conclusão. Mais gana muito menos nessa escolha do
numerosa é a administração pública, e que o príncipe, e um homem de verda­
mais diminui e se aproxima da igual­ deiro mérito é tão raro no ministério,
dade a relação entre o príncipe e os sú­ quanto um idiota à testa de um gover­
ditos, de modo que essa relação é um, no republicano. Por isso, quando por
ou a própria igualdade, na democra­ qualquer acaso feliz um desses homens
cia299. Essa mesma relação aumenta à nascidos para o Governo toma o timão
medida que o Governo se contrai e dos negócios numa monarquia quase
chega ao máximo quando o Governo arruinada por esses grupos de soberbos
está nas mãos de um só. Há, então, administradores, fica-se espantado
uma grande distância entre o príncipe com os recursos que encontra e isso
e o povo, e falta coesão ao Estado. marca época no país 3 0 2 .
Para constituí-la, necessitam-se, pois, Para que pudesse um Estado monár­
ordens intermediárias; precisa-se dos quico ser bem governado, seria preciso
príncipes, dos grandes, da nobreza que seu tamanho ou sua extensão 303
para desempenhá-las300. Ora, nada se medisse pelas faculdades de quem
disso convém a um Estado pequeno, governa 30 4. É mais fácil conquistar do
que todos esses graus arrumam. que reger. Usando-se uma alavanca
É difícil, porém, que um grande E s­ adequada, com um dedo pode-se aba­
tado seja bem governado e, mais ainda, lar o mundo, mas par a. sustentá-lo são
que o seja por um único homem. necessários os ombros de Hércules.
Todos sabemos, ainda, o que acontece Por pouco vasto que seja um Estado, o
quando os reis designam substitutos príncipe é sempre muito pequeno.
seus. Quando acontece, pelo contrário, que
o Estado é muito pequeno para seu
Um defeito essencial e inevitável,
chefe30 5, o que é bastante raro, ainda
que sempre colocará o Governo mo­
nárquico abaixo do republicano3 0 1 , é
que neste o voto núblico quase sempre 302 Todo esse parágrafo, que foi acrescentado
ao texto quando já se achava no prelo do edi­
eleva aos primenos postos homens
tor Rey (carta de 6 de junho de H62), tinha
esclarecidos e capazes, que os preen­ por objetivo render homenagem a Choiseul. O
chem com honra, enquanto os que sur­ efeito foi, contudo, deplorável, pois Choiseul
gem nas monarquias não passam, reconheceu-se na acusação generalizada dos
comumente, de pequenos trapalhões, ministros ineptos e não na exceção para ele
aberta, como contam as Confissões (II parte,
pequenos intrigantes, cujos pequenos Livro IX). Mais tarde, Rousseau suspeitaria de
talentos, que nas cortes facilitam o encontrar-se Choiseul entre os que o perse­
acesso aos grandes postos, só servem guiam. De sua parte, .Voltaire não perdeu a
ocasião de condenar (Idéias Republicanas, §
XXXIV) o “amontoado indecente de pequenas
299 Tardia repercussão das comparações antíteses cínicas” que julgou encontrar nesta
pseudomatemáticas do capítulo inicial deste passagem do Contrato, assim cuidando de seu
livro, “relação” aqui significa a diferença, a bom conceito junto aos poderosos. (N. de L.
distância entre os dois termos da relação. (N. G. M.)
de L. G. M.) 303 Ou seja: de sua população ou território.
300 A crítica é frontal: Rousseau acusa o (N. de L. G. M.)
parasitismo cortesão. (N. de L. G. M.) 30 4 Há, nas seguintes considerações, clara
301 Ou melhor: o Governo monárquico de repercussão da Polissinodia de Saint-Pierre.
fato se coloca abaixo de qualquer Governo (N. de L. G. M.)
legítimo, inclusive a “monarquia republicana”. 30 5 Vaughan aqui pressente uma alusão a
(N. de L. G. M.) Frederico da Prússia. (N. de L. G. M.)
D O C O N T R A T O SO C IAL 97

assim será mal governado porque o que, substituindo o inconveniente das


chefe, atendendo sempre à amplidão de eleições pelo das regências, se preferiu
suas vistas, esquece o interesse dos uma tranqüilidade aparente a uma
povos e não os torna menos infelizes, administração sábia e mais se desejou
por abusar dos talentos que possui em o risco de aceitar como chefes crian­
demasia, do que um chefe limitado, ças, monstros e imbecis, a ter de discu­
pela ausência dos que lhe faltam. Seria tir sobre a escolha de bons reis. Não se
preciso, por assim dizer, que um reino considerou que, expondo-se assim aos
se expandisse ou se comprimisse em riscos da alternativa, tornam-se todas
cada reinado, de acordo com a capaci­ as oportunidades adversas. Palavras
dade do príncipe, enquanto, tendo os muito sensatas foram as do jovem Dio-
talentos do senado medidas mais fixas, nísio, a quem o pai, ao reprovár-lhe
pode o Estado guardar limites constan­ uma ação vergonhosa, dizia: “ Dei-te o
tes e a administração não ir menos exemplo disso?” “ A h !” , respondeu o
bem. filho, “ vosso pai não era rei.”
O inconveniente mais notável do Tudo concorre para privar de justiça
Governo de um só é o defeito determi­ e de razão um homem elevado à posi­
nado pela freqüente sucessão que, nos ção de comandar os demais. Diz-se
dois outros, forma uma ligação ininter­ que é muito trabalhoso ensinar aos jo ­
rupta30 6 . Morto um rei, torna-se ne­ vens príncipes a arte de reinar; não pa­
cessário outro. A s eleições deixam rece trazer-lhes proveito tal educação.
intervalos perigosos, são tumultuosas Seria melhor começar por ensinar-lhes
e, a menos que os cidadãos disponham a arte de obedecer. Os maiores reis que
de um desinteresse e de uma integri­ a História celebra não foram educados
dade que esse Governo em absoluto para reinar; é uma ciência que nunca
não comporta, metem-se nisso o fac- se possui menos do que depois de tê-la
ciosismo e a corrupção. É difícil que aprendido demais, e que melhor se
aquele a quem o Estado se vendeu por adquire obedecendo do que coman­
sua vez não o venda e não se indenize, dando. “N am utilissim us idem ac
à custa dos fracos, do dinheiro que lhe brevissim us bonarum m alarunque
extorquiram os poderosos. Numa tal rerum delectus, cogitare quid aut no-
administração, cedo ou tarde tudo se lueris sub alio príncipe, aut volue-
torna venal e a paz, de que então se ris30 7. ”
goza sob os reis, é pior do que a desor­ Um a conseqüência dessa falta de
dem dos interregnos. coerência é a inconstância do Governo
Que se fez para prevenir esses real que, dirigindo-se às vezes num
males? Em certas famílias, tornaram- sentido, e logo depois em outro, segun­
se hereditárias as coroas e estabele­ do o caráter do príncipe que reina ou
ceu-se uma ordem de sucessão que pre­ das pessoas que reinam por ele, não
vine qualquer disputa capaz de surgir pode manter por muito tempo um obje­
com a morte dos reis. Isso quer dizer tivo fixo nem uma conduta conse­
qüente. Essa variação leva o Estado a

30 6 Depois de examinar os defeitos da monar­


quia em razão do espaço, Rousseau os consi­ 30 7 Nessa sentença, Tácito reproduz o conse­
dera np tempo. Desde logo, deixa patente uma lho de Galba a Pisão, quando o adotou: “O
graye restrição: se a aristocracia, com ser eleti­ melhor e mais rápido meio de distinguir o bem
va, tomava-se o melhor dos governos, à do mal está em perguntares a ti mesmo o que
monarquia nada aproveita o sufrágio de esco­ quererias ou não quererias sob outro rei que
lha. (N. de L. G. M.) não tu”. (N. de L. G. M.)
98 R O U SSE A U

saltar sempre de um a m áxim a para riamente aqueles que a recebem, que se


outra, de um para outro projeto, o que deve esperar de um séqiiito de homens
não acontece nos outros governos em educados para reinar? É, pois, querer
que o príncipe é sempre o mesmo. Vê- iludir-se, confundir o Governo real
se, tam bém , que se, em geral, há mais com o de um bom rei. P ara ver o que é
astúcia num a corte, há mais sabedoria esse Governo em si mesmo, impõe-se
num senado, e que as repúblicas alcan­ observá-lo quando os príncipes são
çam seus fins por vias mais constantes tacanhos ou maus, pois chegarão
e mais freqüentadas, enquanto cada assim ao trono ou o trono assim os
revolução no ministério produz outra tornará.
no Estado — a m áxima comum a Essas dificuldades não escaparam á
todos os m inistros e a quase todos os nossos autores, mas eles em absoluto
reis é de tom ar em todos os assuntos não se em baraçaram com elas. O
posição contrária à de seu predecessor. remédio, dizem eles, é obedecer sem
D essa mesma incoerência se extrai murm urar. Deus dá os m aus reis em
ainda a solução de um sofisma muito sua cólera e devemos suportá-los como
fam iliar aos políticos reais308 — não castigos do céu311. Sem dúvida, tal
somente com parar o governo civil ao discurso é edificante, mas não sei se
governo dom éstico e o príncipe ao pai não conviria mais num púlpito do que
da família, erro já refutado309, mas num livro de política. Que dizer de um'
ainda conferir a esse m agistrado todas médico que promete milagres, mas
as virtudes de que terá necessidade e cuja arte se lim ita a exortar seu doente
sempre supor que o príncipe é tal qual à paciência? Sabemos muito bem que
devera ser. Baseando-se nessa suposi­ devemos agüentar um m au Governo
ção, o G overno real é evidentemente quando o temos; a questão está em
preferível a qualquer outro porque é encontrar um bom.
incontestavelmente o mais forte e, para
ser tam bém o melhor, não lhe falta 311 Alusão direta a Bossuet, cuja Política
senão um a vontade de corpo mais de Extraída das Santas Escrituras não só defendia
acordo com a vontade geral. o poder absoluto dos reis (“ contra sua autori­
dade só pode haver remédio em sua autorida­
M as, se o rei, como diz Platão31°, é de”) que derivaria da natureza mesma de sua
por natureza um a pessoa muito rara, função (“o príncipe é, por seu cargo, o par do
quantas vezes a natureza e a sorte povo”) e que estaria submetido ao poder direti­
concorrerão para coroá-lo? E, ainda, vo, mas não ao poder coativo das leis (lei IV,
art. I, proposições II, III e IV), como ainda se
se a educação real corrom pe necessa- valia do “Dai a César o que é de C ésar” para
justificar a completa obediência dos súditos (l.
308 A incoerência é a falta de continuidade VI, art. II, proposição inicial). Rousseau,
entre os reis hereditários que se sucedem; o porém, tinha um objetivo mais próximo e ime­
sofisma, que virá a seguir, está em tomar-se diato na condenação, por autoridades católi­
como virtudes do Governo monárquico as cas, de seus livros. Christophe de Beaumont,
qualidades de um rei perfeito. (N. de L. G. M.) arcebispo de Paris, condenando o Emílio,
escreve um M andamento no qual assegura que
309 V. parte inicial do Contrato, principal­ até os piores tiranos, como Nero e Domiciano,
mente 1.1, c. II. (N. de L. G. M.) “ que preferiram ser a maldição da terra ao
310 In Civili*. (N. do A.) invés de ser os páis de seus povos, não respon­
* Trata-se novamente do Político, aqui cham a­ diam senão perante Deus pelo abuso de seu
do de “Civilis” . (N. de L. G. M.) poder” . (N. de L. G. M.)
D O C O N T R A T O SO C IAL 99

C a p ít u l o V II

Dos governos mistos

Falando-se com propriedade, não há políticos e à qual é oreciso dar-se a


Governo simples. É preciso que um mesma resposta que já dei, mais atrás,
chefe único tenha magistrados subal­ acerca de todas as formas de gover­
ternos; é necessário que um Governo no 31 6. ^
popular tenha um chefe. Assim, na O Governo simples é o melhor em si
divisão do poder executivo, há sempre mesmo, pela única razão de ser sim­
uma gradação do maior número ao ples. M as, quando o poder executivo
menor, com a diferença de que às vezes não depende suficientemente do legis­
o grande número depende do pequeno lativo, isto é, quando há mais relação
e outras vezes o pequeno dQ gran­ entre o príncipe e o soberano do que
de3 1 2 . entre o povo e o príncipe31 7, precisa-
se remediar essa falta de proporção
Em certos casos há divisão igual,
dividindo o Governo, pois, então,
seja quando as partes constitutivas se
todas as suas partes não têm menos
encontram em dependência mútua,
autoridade sobre os súditos e sua divi­
como no Governo da Inglaterra3 1 3 ,
são as torna, quando juntas, menos
seja quando a autoridade de cada parte
fortes contra o soberano.
é independente, mas imperfeita, como Previne-se ainda o mesmo inconve­
na Polônia3 1 4 . Es*.a última forma é niente estabelecendo magistrados in­
má, por não existir nenhuma unidade termediários que, deixando íntegro o
no Governo e por faltar coesão ao Governo, servem unicamente para
Estado. equilibrar os dois poderes e para man-
Qual será melhor — um Governo
simples ou um Governo misto 31 5? É 315 Se até então os pensadores e teóricos da
uma questão muito debatida entre os política chamavam de governos mistos aqueles
em que se cruzavam caracteres monárquicos,
aristocráticos e republicanos, Rousseau trata
312 N a prática teríamos, por exemplo, um do problema tendo em vista as relações entre o
ministério subordinado ao chefe do executivo Governo e o povo soberano. Não se deixará de
(grande número submetido ao pequeno) ou um assinalar que assim se procede a um avanço
chefe de governo indicado e subordinado a um substancial no conhecimento da realidade polí­
conselho supremo (pequeno número submetido tica, pois substitui-se um a classificação formal
ao grande). (N. de L. G. M.) e exterior por um a análise funcional e interna
313 Sem dúvida, a alusão é menos à exis­ no comportamento efetivo da “ máquina políti­
tência das duas câm aras, pois enfim repre­ ca” . (N. de L. G. M.)
sentam uma simples divisão interna do legisla­ 31 6 Todas as formas, se legítimas, são conve­
tivo, do que ao princípio segundo o qual o nientes em si mesmas e dependentes, em cada
parlamento só está completo com a presença caso, das circunstâncias. (V. 1. III, c. III.) (N.
do rei. De qualquer forma, Rousseau revela d e L .G .M .)
melhor conhecimento da realidade política 31 7 “ Se o príncipe é demasiado independente
inglesa do que podemos supor em M ontes­ e desvia em seu interesse uma parte do poder
quieu, a julgar pela simplificação esquemática que o soberano lhe confiou, a igualdade das
que fez do governo britânico. (N. de L. G. M.) relações estabelecida no cap. I romper-se-á e
31 4 Alusão tanto ao “ liberum veto” (regra da
unanimidade nos sufrágios) quanto à partilha teremos ^ > S . . O poder que o soberano
G , E ,
interna do executivo — pontos abordados, confia ao príncipe já não beneficia inteira­
com minúcia, nas Considerações sobre o mente ao Estado.” (G. Beaulavon.) (N. de L.
Governo da Polônia. (N. de L. G. M.) G. M.)
100 R O U SSE A U

ter seus respectivos direitos3 18 O faz em todas as democracias3 1 9 . No


Governo, então, não será misto, mas primeiro caso, divide-se o Governo
temperado. para enfraquecê-lo, e no segundo para
reforçá-lo, pois encontra-se igualmente
Pode-se remediar por meios seme­
nos governos simples o máximo de
lhantes o inconveniente oposto e,
força e de fraqueza, enquanto as for­
quando o Governo é muito frouxo, eri­ mas mistas apresentam uma força
gir tribunais para concentrá-lo. Isso se média.

31 8 Mais adiante (1. IV, c. V), Rousseau volta­ 319 Entendam-se tais “tribunais” como ór­
rá à questão, tratando longamente do “tribuna- gãos corregedores ou fiscalizadores da execu­
to”. (N. de L. G. M.) ção das leis. (N. de L. G. M.)

C a p ítu lo VIII

Que qualquer forma de governo não


convém a qualquer país

Não sendo a liberdade um fruto de mo que lhes é necessário e de muitas


todos os climas, não está aò alcance de outras relações semelhantes de que ela
todos os povos. Quanto mais se medita se compõe.
sobre esse princípio estabelecido por Por outro lado, todos os governos
Montesquieu320 , tanto mais se sente não apresentam a mesma natureza; há
sua verdade, e, quanto mais é contes­ uns mais vorazes, outros menos, e as
tado, tanto mais se oferecem ocasiões diferenças se fundamentam num outro
de firmá-lo com novas provas. princípio que diz se tomarem mais
Em todos os governos do mundo a onerosas as contribuições públicas à
pessoa pública consome e nada pro­ medida que se distanciam de sua fonte.
duz. Donde lhe vem, pois, a substância Não é pela quantidade dos tributos que
consumida? Do trabalho de seus mem­ se deve medir o ônus, mas sim pelo
bros. É o supérfluo dos particulares caminho que têm de fazer para voltar
que produz o necessário do público. às mãos de que saíram. Quando essa
Conclui-se, daí, que o estado civil só circulação é rápida e bem estabelecida,
pode subsistir na medida em que o tra­ não importa que se pague muito ou
balho dos homens render além de suas pouco, pois o povo será sempre rico e
necessidades. as finanças andarão sempre bem. A o
contrário, por pouco que o povo dê,
Ora, esse excedente não é o mesmo
quando esse pouco não lhe volta3 2 1 ,
em todos os países do mundo. Em mui­
ele, dando sempre, logo se esgotará: o
tos é considerável, em outros medío­
Estado jamais será rico e o povo sem­
cre, em alguns nulo, e em outros,
pre será miserável.
ainda, negativo. Essa relação depende
Donde se segue que, quanto mais
da fertilidade do clima, do tipo de tra­
aumenta a distância entre o povo e o
balho exigido pela terra, da natureza
Governo, tanto mais onerosos se tor-
de suas produções, da força de seus
habitantes, do maior ou menor consu­
321 Esse retomo dos tributos só pode dar-se
por meio dos benefícios dos serviços governa­
320 Nos capítulos XIV e XVII do D o Espí­ mentais. Os povos bem servidos são ricos, em­
rito das Leis. (N. de L. G. M.) bora dêem muito ao Estado. (N. de L. G. M.)
D O C O N T R A T O SO C IAL 101

nam os tributos. Assim, o povo fica governados m onarquicam ente, para


menos sobrecarregado na dem ocracia que o excessivo supérfluo dos súditos
e mais na aristocracia, arcando, na seja consumido pelo luxo do prínci­
m onarquia, com o m aior peso. A pe323, pois é melhor que esse excesso
m onarquia só convém, pois, às nações seja consumido pelo Governo do que
opulentas; a aristocracia, aos Estados dissipado pelos particulares. H á exce­
medíocres tanto em riqueza quanto em ções, eu sei, porém essas mesmas exce­
tam anho; e a dem ocracia aos Estados ções confirmam a regra, pois cedo ou
pequenos e pobres. tarde produzem revoluções que devol­
Com efeito, quanto mais se reflete vem as coisas à ordem da natureza32 4.
sobre isso, tanto mais se encontram Distingam os sempre as leis gerais
diferenças entre os Estados livres e os das causas particulares que podem
m onárquicos322. Nos prim eiros, tudo modificar-lhes o efeito. Ainda quando
se emprega na utilidade com um ; nos todo o Sul estivesse coberto por repú­
outros, as forças públicas e particu­ blicas e todo o Norte por Estados
lares são recíprocas, aumentando despóticos, não seria menos verdadeiro
um as pelo enfraquecimento das outras,
que, pelo efeito do clima, o despotismo
e, finalmente, em lugar de governar os
convenha às regiões quentes, a barba­
súditos para torná-los felizes, o despo­
ria às frias, e a boa politia às regiões
tismo os torna miseráveis p ara gover­
ná-los. intermediárias. Sei ainda que, concor­
dando-se com o princípio, poder-se-á
Aí estão, pois, em cada clima, cau­ discutir quanto à aplicação: poderão
sas naturais pelas quais se pode indicar
a form a de governo a que leva a força dizer que há regiões frias muito férteis,
do clima e até dizer qual o tipo de e regiões meridionais muito sáfaras.
habitantes que deve ter. Tal dificuldade, porém, só existirá para
aqueles que não examinam o caso em
Os sítios ingratos e estéreis, nos
todas as suas relações. E preciso, como
quais o produto não vale o trabalho,
devem continuar incultos e desertos,
ou povoados unicamente por selva­ 323 A aversão ao luxo, já comentada ante­
riormente, leva Rousseau a conceder que
gens; as regiões em que o trabalho dos mesmo a dissipação pelo governante causa
homens rende exatamente o necessário menos mal do que o gasto suntuário dos cida­
devem ser habitadas por povos bárba­ dãos. (N. de L. G. M.)
ros, pois qualquer politia neles seria 32 4 Há, pois, uma relação causal entre as
impossível; os lugares em que é medío­ condições físicas e demográficas de um país e
a forma do seu governo. É uma relação muito
cre o excesso do produto sobre o traba­ cara aos teóricos que o antecederam, de Aris­
lho convêm aos povos livres; aqueles tóteles a Montesquieu. Esses “realistas” busca­
cuja terra abundante e fértil produz vam descobrir o nexo causal examinando os
muito com pouco trabalho querem ser Estados tal como existiam e, conseqüente­
mente, acabam por estabelecer uma primeira
relação entre as condições geográficas e a psi­
322 É curiosa a oposição entre Estados livres cologia dos indivíduos, para desta passarem à
e monárquicos que deixa transparecer clara­ forma de governo. Rousseau, fiel à sua orienta­
mente a oposição de Rousseau às cortes e aos ção fundamental, examina a possível relação
reis. Ademais, o raciocínio prossegue no pres­ entre a força do Governo e as condições
suposto de que nos Estados livres (democra­ econômicas. Inspira-se, pois, em Montesquieu
cias e aristocracias eletivas, ao que parece) o (o Livro XVIII do Do Espírito das Leis intitu­
que o Governo toma ao povo, a este volta, la-se “Das leis na relação que têm com a natu­
enquanto o despotismo (ou seja: a monarquia) reza do solo”), mas desenvolve em outro plano
leva o povo a perder para que o Governo e outro sentido sua própria investigação. (N.
ganhe. (N. de L. G. M.) de L. G. M.)
102 R O U SSE A U

já disse, levar em consideração as rela­ indigestão. “ Somos” , diz C hardin32 7,


ções dos trabalhos, das forças, do con­ “ animais carnívoros, lobos, em com pa­
sumo, etc.32 5. ração com os asiáticos. Alguns atri­
Suponham os que, de duas terras buem a sobriedade dos persas ao fato
iguais, um a produz cinco e outra dez. de ser seu país menos cultivado; creio,
Se os habitantes da prim eira conso­ ao contrário, que o país é m enos abun­
mem quatro e os da segunda nove, o dante em víveres porque se necessita
excesso do prim eiro produto será um um a menor quantidade deles p ara os
quinto e o do segundo, um décimo. habitantes. Se a sua frugalidade —
Sendo a relação entre esses dois exces­ continua o autor — fosse um resultado
sos inversa à dos produtos, a terra que da penúria da região, somente os po­
só produzir cinco dará o dobro de bres comeriam pouco, enquanto tal
supérfluo daquela que produzir dez. acontece com a generalidade das pes­
Não se trata, porém, do dobro do soas; comer-se-ia mais ou menos con­
produto, e não creio que alguém ouse forme a província, de acordo com a
colocar, em geral, a fertilidade de um a fertilidade da região, e, em lugar disso,
região fria sequer em situação de igual­ encontra-se a m esm a sobriedade em
dade à dos lugares quentes32 6. Supo­ todo o reino. Gabam -se bastante de
nham os, todavia, essa igualdade; equi­ seu modo de vida, dizendo que basta
parem os, se assim se quiser, a olhar-lhes a tez para reconhecer quan­
Inglaterra à Sicília, a Polônia ao Egito, to é melhor do que a dos cristãos. Com
e teremos mais ao sul a África e as ín ­ efeito, a cor dos persas é una; têm a
dias, enquanto ao norte nada teremos. pele bela, fina e lisa em contraposição
Para tal igualdade de produtos, que à de seus súditos, os arm ênios, que,
diferença de cultura! N a Sicília, basta vivendo à m oda européia, a têm rude,
arranhar a terra; na Inglaterra, quanto averm elhada e possuem o corpo gordo
trabalho p ara prepará-la! Ora, na e pesado.”
região em que se precisa de um m aior Quanto mais nos aproxim am os do
número de braços p ara produzir a equador, tanto mais os povos vivem de
m esma coisa, o supérfluo deve ser pouco. Quase não comem carne; seus
necessariam ente menor. alimentos comuns são o arroz, o
Considerai, além disso, que um milho, o cuscuz, o sorgo, a farinha de
mesmo núm ero de homens consome mandioca. H á nas índias milhões de
m uito m enos nas regiões quentes. O homens cuja nutrição não custa um
clim a aí exige ser sóbrio para que se ceitil por dia. Mesmo na Europa
possa passar bem: os europeus, que encontram os diferenças sensíveis,
nessas terras desejam viver como na quanto ao apetite, entre os povos do
sua, m orrem todos de disenteria e de Norte e os do Sul. Um espanhol viverá
oito dias com o jan tar de um alemão.
32 5 Se JL em relação a i = - L y -12- = Nas regiões em que os homens são
10 5 v 10 5 * 1
, assim chegamos ao inverso da relação
das produções. (N. de L. G. M.) 32 7 Chardin foi um dos viajantes do século
32 6 Em outras palavras: Supusemos uma XVIII cujos relatos forneceram matéria de
região produzindo o dobro do que produz cogitação aos filósofos, entre os quais se conta
outra. Ora, ninguém admite sequer que haja Montesquieu, que muito se valeu de seu livro
igualdade entre a produção da região fria e a Viagens à Pérsia, publicado com enorme
da quente. (N. de L. G. M.) repercussão, em 1711. (N. de L. G. M.)
D O C O N T R A T O SO C IAL 103

mais vorazes, o luxo tam bém se volta um a menor quantidade de alimento?


para os artigos de consumo — na A todas essas várias considerações
Inglaterra ele se m ostra num a mesa posso acrescentar uma, delas decor­
cheia de carnes e na Itália vos ofere­ rente e que as fortifica — as regiões
cem açúcar e flores. quentes têm menos necessidade de
O luxo das vestes oferece tam bém
habitantes que as frias, e poderiam
diferenças semelhantes. Nos climas em
nutri-los em m aior quantidade, daí
que as m udanças de estação são pron­
tas e violentas, têm-se roupas melhores resultando um duplo supérfluo que
e mais simples; naqueles em que se sempre oferece vantagem ao despo­
veste com o só fito de embelezar-se, tismo. Q uanto m aior superfície ocupa
procura-se no vestir mais brilho do que o mesmo número de habitantes, tanto
utilidade, sendo as próprias roupas um mais difíceis se tornam as revoltas,
luxo. Em Nápoles, vereis todos os dias porque não se podem fazer as com bi­
passearem no Posilippo homens com nações rápidas ou secretamente, e por­
jaqueta dourada e sem meias. A que sempre é fácil para o Governo des­
mesma coisa acontece com os prédios cobrir os projetos e cortar as
— reserva-se tudo para a magnifi­ comunicações. Quanto mais, porém,
cência porquanto nada se tem a temer um povo num eroso se agrega, menos o
das iriclemências da atmosfera. Em Governo pode usurpar o soberano; os
Paris e em Londres, quer-se m orar chefes328 deliberam tão seguramente
quente e comodam ente; em M adri, nos seus aposentos quanto o príncipe
têm-se salões soberbos, m as nenhum a no seu conselho, e a multidão se reúne
janela que feche, e dorme-se em ninhos tão rapidam ente nas praças quanto as
de rato. tropas nos quartéis. A vantagem de um
Os alimentos são muito m ais subs Governo tirânico reside, pois, em agir
tanciais e suculentos nas regiões quen­
a grandes distâncias. Com a ajuda dos
tes, sendo esta um a terceira diferença
pontos de apoio que se dá, sua força
que não pode deixar de influenciar a
segunda. Por que se comem tantos aum enta ao longe, como a das alavan­
legumes na Itália? Porque eles lá São cas329. A do povo, ao contrário, só
bons, nutritivos e de paladar excelente. age concentrada, evapora-se e perde-se
Em França, onde eles só vivem de ao estender-se, como o efeito da pól­
água, absolutamente não alimentam e vora espalhada na terra, que só pega
vêm às mesas quase que para nada;
não ocupam, contudo, menos terreno e 328 Os chefes da conspiração, não os do
não dão menos trabalho p ara serem Governo. (N. de L. G. M.)
cultivados. É experiência com provada 32 9 Isto não contradiz o que disse acima, no
que o trigo da Barbaria, aliás inferior capítulo IX do Livro II, sobre os inconve­
ao de França, rende muito mais em nientes dos grandes Estados, pois la se tratava
da autoridade do Governo sobre seus membros
farinha do que o de F rança, que, por e trata-se aqui de sua força contra os súditos.
sua vez, rende mais do que o trigo do Seus membros esparsos servem-lhe de ponto
Norte. Pode-se daí inferir que um a gra­ de apoio para agir sobre o povo, ao longe, mas
dação semelhante se observa, de modo ele não tem nenhum ponto de apoio para agir
diretamente sobre os seus próprios membros.
geral, na mesma direção, do equador Assim, num caso, o comprimento da alavanca
ao pólo. Ora, não será um a desvan­ determina a fraqueza e, em outros, a força. (N.
tagem visível ter, num produto igual, do A.)
104 R O U SSE A U

fogo grão por grão. A s regiões menos à tirania: as bestas ferozes só reinam
povoadas são assim as mais propícias nos desertos330 .

330 No manuscrito de Neuchâtel, Rousseau o tirano, e, dos domesticados, o bajulador” —


copiou uma frase de Diógenes Laércio — que terá inspirado esta passagem. (N. de L. G.
“Tales dizia que o pior dos animais selvagens é M.)

C a p ít u l o IX

Indícios de um bom governo

Quando, pois, se pergunta, de modo simples ou que tenham a má fé de não


absoluto, qual é o melhor Governo, concordar a seu respeito. Qual o fim
faz-se uma pergunta tão insolúvel da associação política? — a conserva­
quanto indeterminada ou, em outras ção e a prosperidade de seus membros.
palavras, ela tem tantas boas soluções
E qual o sinal mais seguro de que se
quantas combinações possíveis há nas
conservam e prosperam? — o seu nú­
posições absolutas e relativas dos
mero e a sua povoação3 3 1 . Não ide,
povos.
M as, quando se perguntasse quais pois, procurar alhures esse indício tão
são os característicos pelos quais se discutido. Em condições iguais, o
pode conhecer se um dado povo é bem Governo sob o qual, sem meios estra­
ou mal governado, então seria dife­ nhos, sem naturalizações, sem colô-
rente e a questão poderia de fato ser
resolvida. 331 Povoar, no sentido clássico, para signifi­
No entanto, de forma alguma é car tanto a multiplicação da espécie quanto a
resolvida, porque cada um quer resol­ ocupação do espaço habitável. Assim como já
reduzira a produção econômica à agrícola,
vê-la à sua moda. Os súditos enaltecem Rousseau agora se adstringe ao critério da
a tranqüilidade pública; os cidadãos, a povoação para avaliar a ação efetiva dos
liberdade dos particulares; um prefere governos. São critérios que hoje parecem
a segurança das propriedades, e outro, simplistas, porém, adotados por Rousseau de­
a das pessoas; um acha que o melhor pois de madura reflexão, representavam idéias
solidamente firmadas a seu tempo. Adam
Governo é o mais severo, outro sus­ Smith tendeu a tomar por única verdadeira
tenta ser o mais suave; este quer que os riqueza a que nasce da terra. Os fisiocratas
crimes sejam punidos, aquele acha que tiveram longa fase de prestígio. Quanto à
devem ser prevenidos; um crê vanta­ população, impõe-se notar que a teoria de
Malthus, posterior a Rousseau, encontrou
joso sermos temidos pelos vizinhos, e
séria oposição. (N. de L. G. M.)
outro, ainda, prefere que sejamos igno­ 332 Deve-se julgar, pelo mesmo princípio, sé­
rados; um fica contente quando o culos que merecem ser salientados devido à
dinheiro circula, e outro exige que o prosperidade do gênero humano. Muito se
povo tenha pão. Teríamos avançado admirou aqueles em que se viu florescer as le­
tras e as artes, sem penetrar no objeto secreto
mais se concordássemos nesses pontos de sua cultura, sem considerar o seu efeito
e em outros semelhantes? Não pos­ funesto: “Idque apud imperitos humanitas
suindo as quantidades morais uma me­ vocabatur, quam pars servitutis esset”*. Não
dida precisa, mesmo que se estivesse enxergaremos nunca, nas máximas dos livros,
de acordo quanto ao critério, como se o interesse grosseiro que faz os autores fala­
rem? Não; apesar do que eles possam dizer,
estaria quanto à sua apreciação? quando um país se despovoa malgrado o seu
De minha parte, sempre me espanto brilho, não é verdade que tudo vai bem e não
por não reconhecerem um indício tão basta que um poeta ganhe cem mil libras de
D O C O N T R A T O SO C IA L 105

nias, os cidadãos mais povoam e mais diminui e perece é o pior. Calculado­


se multiplicam, é infalivelmente o res, agora a tarefa é vossa: contai,
melhor. Aquele sob o qual o povo medi e comparai3 3 2 .

renda para que um século seja o melhor de dia que o povo francês vivesse feliz e numero­
todos. É preciso levar em consideração menos so, numa abastança honesta e livre. Outrora, a
o repouso aparente e a tranqüilidade dos che­ Grécia floresceu no seio das mais cruéis guer­
fes do que o bem-estar das nações tomadas ras. O sangue lá corria aos borbotões e toda a
como um todo e, sobretudo, dos Estados mais região estava cheia de homens. Parece, disse
numerosos. O granizo destrói alguns cantões, Maquiavel, que no meio dos assassínios, das
mas raramente determina a miséria. As rebe­ proscrições, das guerras civis, nossa república
liões, as guerras civis assustam muito os che­ se tornou mais poderosa; a virtude de seus
fes, mas não determinam a verdadeira infelici­ cidadãos, seus costumes, sua independência
dade dos povos, que podem até chegar a tiveram mais efeito para reforçá-la do que
experimentar uma folga enquanto se disputa todas essas dissensões o tiveram para enfra­
sobre quem irá tiranizá-los. É do seu estado quecê-la. Um pouco de agitação dá mais vigor
permanente que nascem suas prosperidades ou às almas, e o que faz verdadeiramente a espé­
as calamidades reais: quando tudo fica esma­ cie prosperar é menos a paz do que a liberda­
gado sob o jugo, então tudo perece, e ainda os de. (N. do A.)
chefes os destroem à vontade “ubi solitudinem * “Os tolos chamavam de humanidade o que
faciunt, pacem appellant”**. Quando os tor­ já era uma parte da servidão.” (Tácito: Agríco­
mentos dos grandes agitaram o reino de Fran­ la, XXXI.) (N. de L. G. M.)
ça e o coadjutor de Paris ia ao parlamento ** Onde fazem o deserto, chamam-no de paz.”
com um punhal no bolso, tal coisa não impe- (Tácito: Agrícola, XXI.) (N. de L. G. M.)

C a p itu lo X

Dos abusos do governo e de sua


tendência a degenerar

Assim como a vontade particular aí o vício inerente e inevitável que,


age sem cessar contra a vontade geral, desde o nascimento do corpo político,
o Governo despende um. esforço contí­ tende sem cessar a destruí-lo, assim
nuo contra a soberania. Quanto mais como a velhice e a morte destroem, por
esse esforço aumenta, tanto mais se al­ fim, o corpo do homem 33 4.
tera a constituição, e, como não há Há duas vias gerais pelas quais um
outra vontade de corpo que, resistindo Governo degenera, a saber: quando ele
à do príncipe, estabeleça equilíbrio se contrai, ou quando o Estado se
com ela3 3 3 , cedo ou tarde acontece dissolve.
que o príncipe oprime, afinal, o sobe­ O Governo se contrai quando passa
rano e rompe o tratado social. Reside do grande para o pequeno número, isto
é, da democracia para a aristocracia e
333 Nessa passagem Beaulavon vê uma con­ da aristocracia para a realeza. Tal a
tradição com o capítulo VII, onde se aconse­
lhou a composição de corpos intermediários
para “temperar” o Governo. Sem dúvida, o re­ 33 4 O corpo político, resultante da condição
paro tem cabimento, mas é preciso notar que humana, embora implique uma tomada de
agora Rousseau passa a examinar os casos de consciência, nada tem de artificial e sua vida
degenerescência dos Estados, sendo lícito con­ aproxima-se mesmo da vida orgânica. Assim,
ceder que sua argumentação excluía aqueles sua extinção final constitui uma fatalidade que
paliativos que, em tais casos, já não se mostra­ sobrevirá mais cedo ou mais tarde. (N. de L.
riam operantes. (N. de L. G. M.) G. M.)
106 R O U SSE A U

sua inclinação natural33 5. Se retroce­ para poder conservar sua forma. Ora,
desse do pequeno número para o gran­ se ele ainda mais se afrouxasse, disten­
de, poder-se-ia dizer que ele se afrouxa, dendo-se, sua força tornar-se-ia total­
mas esse progresso inverso é impossí­ mente nula e ele haveria, ainda menos,
vel. de subsistir. É preciso, pois, reforçar e
Com efeito, um Governo não muda contrair o mecanismo à medida que for
de forma senão quando seu mecanismo cedendo; caso contrário, o Estado, que
já gasto o deixa muito enfraquecido ele sustenta, tombaria em ruínas33 6.
33 5 A formação lenta e a expansão da repú­ até no dos tribunos quando eles começaram a
blica de Veneza através de suas lagunas ofere­ usurpar um poder ativo, pois as palavras
cem um exemplo notável dessa sucessão, e é de nenhuma influência têm sobre as coisas e,
espantar que, depois de mais de mil e duzentos quando o povo tem chefes que governam em
anos, os venezianos pareçam não encontrar-se seu lugar, seja qual for o nome que levem tais
senão ainda no segundo termo, que começou chefes, será sempre uma aristocracia.
no Serrar di Consiglio* em 1198. Quanto aos Do abuso da aristocracia nasceram as guerras
antigos duques, apesar do que diz a esse res­ civis e o triunvirato. Sila, Júlio César, Augusto
peito o Squitinio delia Libertà Veneta**, já se tornaram-se de fato verdadeiros monarcas e
provou que eles não foram de modo algum por fim, sob o despotismo de Tibério, o Estado
seus soberanos. foi dissolvido. A História romana não desmen­
Não deixarão de objetar-me com a república te, pois, meu princípio; ela o confirma***. (N.
romana que sofreu, dir-se-á, um progresso do A.)
inteiramente contrário, passando da monar­ * “Serrar di Consiglio” = fechamento do con­
quia para a aristocracia, e desta para a demo­ selho. (N. de L. G. M.)
cracia. Estou bem longe de pensar assim. ** Escrutínio da Liberdade Veneziana, obra
anônima, publicada em 1612, defendendo o
O primeiro estabelecimento de Rômulo foi um
direito dos imperadores sobre a república de
Governo misto, que degenerou rapidamente
Veneza. (N. de L. G. M.)
em despotismo. Devido a causas particulares,
*** Toda essa longa nota destina-se a empres­
o Estado pereceu antes do tempo, como se vê
tar certa base histórica a um capítulo que se
um recém-nascido morrer antes de tornar-se
homem. A expulsão dos Tarqüínios foi a ver­ desenvolve de maneira puramente teórica. Sem
dadeira época do nascimento da república. dúvida, o caso de Veneza aparece bastante
esquematizado, quer em seus aspectos oligár-
Ela, porém, não tomou a princípio uma forma quicos (duzentas famílias dominavam a “Qua-
estável, pois se deixou a obra pela metade, rantia” e esta compunha o “Consiglio”), como
quando não se aboliu o patriciado. Ficando também a forma rígida por que é exposto o
assim a aristocracia hereditária, que é a pior caso de Roma perdeu muito com a revisão crí­
das administrações legítimas, em conflito com tica, iniciada já no século XVIII, que viria
a democracia, a forma de governo, sempre acusar a relativa pobreza documentária dos
incerta e flutuante, só foi fixada, como o pro­ estudos da fase republicana. Vaughan ainda
vou Maquiavel, depois do estabelecimento dos condena Rousseau por forçar o pensamento de
tribunos. Só então houve um verdadeiro Maquiavel a propósito dos tribunos. (Décadas,
Governo e uma verdadeira democracia. O I, IV.) De qualquer forma, o esforço compro-
povo, com efeito, não era somente soberano, batório de Rousseau fazia-se necessário — a
mas também magistrado e juiz; o senado não passagem democracia-aristocracia-monarquia
passava de um tribunal subordinado, para não era a linha evolutiva comumente admitida
moderar e concentrar o Governo, e os próprios pelos teóricos da política. (N. de L. G. M.)
cônsules, apesar de patrícios, apesar de primei­ 33 6 Assim como um organismo, ao envelhe­
ros magistrados, e apesar de generais absolu­ cer, pode lançar mão de certos recursos para
tos na guerra, em Roma não eram senão os mitigar o declínio e evitar uma súbita extinção,
presidentes do povo. também o Estado, em sua tendência a degene­
Viu-se, desde então, o Governo tomar sua ten­ rar, pode recorrer a processos reconstituintes
dência natural e orientar-se fortemente para a como esses de contrair o Governo já compro­
aristocracia. O patriciado abolindo-se, como metido pelas divisões, imposições dos interes­
que por si mesmo, não se encontrava mais a ses privados, etc., antes que tais males mais se
aristocracia no corpo dos patrícios, como se expandam, acompanhando qualquer expansão
dá em Veneza e em Gênova, mas no corpo do do próprio corpo governamental. (N. de L. G.
senado, composto de patrícios e de plebeus, e M.)
D O C O N T R A T O SOCIAL 107

De dois modos pode dar-se o caso pam isoladamente o poder, que não
da dissolução do E stado33 7. devem exercer senão enquanto corpo,
Prim eiro, quando o príncipe não o que não é menor infração das leis e
mais adm inistra o Estado de acordo produz desordem ainda maior. Têm-se
com as leis e usurpa o poder soberano. então, por assim dizer, tantos príncipes
Dá-se, então, um a m udança notável quantos m agistrados, e o Estado, não
que consiste em contrair-se não o menos dividido do que o Governo, pe­
Governo, mas o Estado; quero com rece ou m uda de forma.
isso dizer que o grande Estado se dis­ Quando o Estado se dissolve, o
solve, que se form a outro dentro dele, abuso do Governo, qualquer que seja,
composto unicamente de mem bros do tom a o nome de anarquia33 9. A distin­
Governo, o qual, em relação ao resto guir-se: a democracia degenera em
do povo, não passa de senhor e tirano. oclocracia3 40, a aristocracia em oli­
Desse modo, no momento em que o garquia3 41; acrescentarei que a reale­
Governo usurpa a soberania, rompe-se za degenera em tirania, mas esta pala­
o pacto social e todos os simples cida­ vra é equívoca e exige explicação3 42.
dãos, repostos de direito em sua liber­ No sentido vulgar, um tirano é um
dade natural, estão forçados, mas não rei que governa com violência e sem
obrigados a obedecer3 3 8. levar em consideração a justiça e as
Acontece tam bém o mesmo caso leis. No sentido preciso, um tirano é
quando os membros do Governo usur- um particular que se arroga a autori­
dade real, sem ter direito a isso. Assim
33 7 No fundo, só há uma causa de dissolu­ os gregos entendiam a palavra tirano;
ção: a usurpação do poder soberano pelo aplicavam -na indiferentemente aos
Governo, distinguindo Rousseau o caso em bons e m aus príncipes, cuja autoridade
que a usurpação se faz pelo corpo governa­ nao fosse legítima3 43. Desse m odo, ti-
mental, daquele em que os usurpadores são os
membros desse corpo considerados pessoal­
mente. Ajuntemos que, em bora permaneçamos 33 9 No sentido estrito: a ausência de liames
no plano teórico, a passagem que aqui se inicia políticos, pois já não os há legítimos. A pala­
indubitavelmente tem aplicações diretas à vida vra anarquia, no texto, não corresponde ao
política do tempo, deixando transparecer a sentido moderno de ausência de Governo, seja
aversão à monarquia tirânica ou despótica que por causa da desordem social, seja como aspi­
caracterizava o sentimento cívico de Rous­ ração de um individualismo extremo. (N. de L.
seau. (N. de L. G. M.) G. M.)
338 Voltamos, assim, à teoria geral do con­ 3 40 Governo do populacho. (N. de L. G. M.)
trato social: os governos que usurpam a sobe­ 3 41 Governo de poucos, de um pequeno nú­
rania, a um só tempo, colocam-se fora da pólis mero. (N. de L. G. M.)
como infratores da lei e decretam a morte do
Estado, que só existe enquanto impera a vonta­ 3 42 Há, pois, como notou Ha\bwac\vs>, Ve­
de geral, isto é, enquanto todos os cidadãos nhas de aegenerescencia estatal: uma segue a
são detentores da soberania. Recai-se, pois, no evolução dem ocracia-aristocracia-m onarquia,
estado de natureza e, em sua liberdade natural, a outra faz-se pela passagem do legítimo ao
os homens só se dobrarão à força. “ Não estão ilegítimo. (N. de L. G. M.)
obrigados a obedecer” , diz Rousseau. Com 3 4 3 “Omnes enin et habentur et dicuntur
razão, Beaulavon registra que, se o Contrato tyranni, qui potestate utuntur perpetua in ea
Social deixa de recomendar a resistência à tira­ civitate quae libertate usa est. ” (Corn. Nep. in
nia — como todos os teóricos libertários, cujo Miltiad, cap. VIII.)* É verdade que Aristóteles,
ponto máximo são os “ monarcômacos” , defen­ Etic. Nicom ., Liv. VIII, c. 10, distingue o tira­
sores do direito de supressão física do usurpa­ no do rei, salientando que o primeiro governa
dor — , essa abstenção se funda na certeza, em seu próprio proveito e o segundo somente
registrada no cap. VIII do Livro II, de ser no de seus súditos, mas, além de todos os auto­
irrecuperável, para um povo, a liberdade perdi­ res gregos, de um modo geral, tomarem a pala­
da. (N. de L. G. M.) vra tirano num outro sentido, como se vê
108 R O U SSE A U

rano e usurpador são duas palavras é aquele que se intromete, contra as


perfeitamente sinônimas. leis, a governar segundo as leis; o dés­
A fim de dar nomes diferentes a coi­ pota é aquele que se coloca acim a das
sas diferentes, chamo tirano ao usurpa­ próprias leis. Assim, um tirano pode
dor da autoridade real, e déspota, ao não ser um déspota, m as um déspota é
usurpador do poder soberano. O tirano sempre um tirano.

sobretudo pelo Híeron de Xenofonte, con­ poder à custa da liberdade da cidade (isto é, do
cluir-se-ia da distinção de Aristóteles que, Estado), também é significativa, do ponto de
desde o começo do mundo, não existiu ainda vista etimológico, para a compreensão da frase
um único rei. (N. do A.) que se segue — tirano é quem usurpa, isto é,
* A citação de Cornélio Nepos, se importa usa, por tê-la arrebatado, a liberdade do corpo
para atestar que tirano é aquele que adquire o político. (N. de L. G. M.)

C a p itu lo XI
D a morte do corpo político

Tal é a tendência natural e inevitável por mais ou menos tempo. A constitui­


dos governos, mesmo dos mais bem ção do homem é obra da natureza, a
constituídos. Se Esparta e R om a pere­ do Estado, obra de arte3 4 5. Não
ceram, que Estado poderá durar para depende dos homens prolongar a pró­
sempre? Se quisermos form ar uma pria vida, mas depende deles prolongar
instituição duradoura, não pensemos, a do Estado pelo tempo que for possí­
pois, em torná-la eterna. P ara ser bem vel, dando-lhe a melhor constituição
sucedido não é preciso tentar o impos­ que possa ter. O mais bem constituído
sível, nem se iludir com dar à obra dos chegará a um fim, porém mais tarde do
homens um a solidez que as coisas que outro, se algum acidente impre­
hum anas não com portam 3 4 4. visto não determ inar seu desapareci­
O corpo político, como o corpo do mento antes do tempo.
homem, com eça a m orrer desde o nas­ O princípio da vida política reside
cimento e traz em si mesmo as causas na autoridade soberana. O poder legis­
de sua destruição. M as um ou outro lativo é o coração do Estado; o poder
podem ter um a constituição mais ou executivo, o cérebro que dá movimento
menos robusta e capaz de conservá-lo a todas as partes. O cérebro pode para-

3 4 4 Resumindo o capítulo anterior, este pará­ 3 4 5 Arte, num sentido apenas relativo, pois
grafo reafirm a a perecibilidade do Estado e não se deve conceber o contrato social como
sua principal razão, que é ser obra humana. algo inteiramente “ artificial” , “ sobrejuntando”
Considerando o eterno como inalcançável a existência humana, como desejou Durkheim.
para o homem, Rousseau abandona uma velha Se a constituição é obra da vontade coletiva,
tenáência áos filósofos dos séculos XVII e os termos do contrato decorrem da natureza
XVIII, que sempre propendiam a tom ar como das coisas, da qual os homens se tornam cons
absolutos abstratos o Homem, o Poder, a cientes exatamente para não contrariar, o que
Autoridade. O homem, como tudo a que ele se sempre lhes será funesto. A rigor, pode-se dizer
relaciona, não escapa à transitoriedade ine­ que o Estado é um a obra hum ana fundada na
própria natureza humana. Essa capacidade do
rente à sua condição — de tal sorte abre-se
homem para, por assim dizer, “desdobrar-se” ,
para os modernos a perspectiva de um verda­
dominando como ser consciente seus impulsos
deiro historicismo capaz de descrever os feitos de criatura natural primária, constitui, sem dú­
humanos como um fluxo de entidades, em rá­ vida, o fulcro da filosofia de Rousseau e a base
pida sucessão. Eis o que Herder e K ant apren­ de seus dois principais desenvolvimentos: a
deriam com Rousseau. (N. de L. G. M.) política e a educação. (N. de L. G. M.)
D O C O N T R A T O SO C IAL 109

lisar-se e o indivídiio continuar a viver. ria conservá-las por tão longo tempo.
Um homem torna-se imbecil e vive, Se o soberano não as tivesse reconhe­
m as, desde que o coração deixa de fun­ cido como constantem ente salutares,
cionar, o animal m orre3 4 6. ele as teria revogado mil vezes. Eis por
O Estado de form a algum a subsiste que, em todo Estado bem constituído,
pelas leis, mas sim pelo poder legislati­ as leis, longe de se enfraquecerem, ga­
vo3 4 1. A lei de ontem não obriga hoje, nham continuam ente nova força; o
m as o consentimento tácito presume-se preconceito3 48 da antiguidade as
pelo silêncio e presume-se que o sobe­ torna cada dia mais veneráveis, en­
rano confirma incessantemente as leis quanto, onde as leis ao envelhecer se
que, podendo, não ab-rogou. Tudo o enfraquecem, isso prova não haver
que um a vez declarou querer, quererá mais poder legislativo e não mais estar
sempre, a menos que o revogue. vivendo o Estado.
Por que, então, se confere tanto res­
peito às antigas leis? Justam ente por 3 4 7 A lei, em si mesma, é mera expressão da
serem antigas. Deve-se crer que só a vontade soberana. Quando a identifica com a
excelência das vontades anugas pode- potência legislativa em ação, Rousseau grafa a
palavra com maiúscula, assim distinguindo-a
de sua acepção comum que significa algo tran­
3 4 6 Os paralelos com a realidade biológica sitório e só adquirindo alguma estabilidade na
têm valor e função muito relativos no pensa­ medida em que continua a corresponder à von­
mento de Rousseau, que deles se utiliza como tade do soberano. (N. de L. G. M.)
meros recursos expositivos. V. Robert Dera- 3 48 Preconceito, aqui, não traz o sentido
thé: Jean-Jacques Rousseau et la Science Poli­ pejorativo atual. É, rigorosamente, o conceito
tique de Son Temps, Paris, 1950. (N. de L. G. que se antecipa pelo simples fato de serem
M.) antigas tais leis. (N. de'L. G. M.)

C a p ítu lo X II

Com o se mantém a autoridade soberana

Não tendo, o soberano, outra força com ar de mofa ao ouvirem a palavra


além do poder legislativo, só age por liberdade.
meio das leis, e não sendo estas senão Pelo que já foi feito, consideremos o
atos autênticos da vontade geral, o que pode ser feito. Não me referirei às
soberano só poderia agir quando o antigas repúblicas da G récia, m as
povo estivesse reunido. O povo reuni­ parece-me que a república rom ana era
do — dir-se-á — , que q u im era! Hoje é
um a quimera, m as não o foi há dois 3 49 Todo esse capítulo, que se desdobrará nos
mil anos. Os homens m udaram de dois seguintes, resume-se a uma afirmação: é
possível o exercício da soberania pelo povo. Se
natureza?
a frase nos parece hoje bastante óbvia, o
Os limites do possível, nas coisas mesmo não sucedia ao surgir o Contrato
m orais, são menos estreitos do que o Social, pois então o maior número de evidên­
pensam os; nossas fraquezas, nossos ví­ cias parecia depor em contrário. Acrescen­
cios e nossos preconceitos é que os temos ainda que, em todo o restante do Livro
III, Rousseau terá em mente o caso de Gene­
dim inuem 3 49. As almas baixas não bra, onde o “ Pequeno Conselho” usurpara o
crêem absolutamente na existência de poder executivo, como deixa bem clara a VI
grandes hom ens; vis escravos sorriem Carta da M ontanha. (N. de L. G. M.)
110 R O U SSE A U

um grande Estado, e a cidade de povo, na praça pública, era quase sem­


Rom a, um a grande cidade. O último pre tanto m agistrado quanto cidadão.
censo registrou em R om a quatrocentos Rem ontando até os prim eiros tem ­
mil cidadãos em arm as, e o último pos das nações, ver-se-á que a m aior
recenseam ento do Império, mais de parte dos antigos governos, mesmo os
quatro milhões de cidadãos, sem levar m onárquicos, como o dos m acedônios
em consideração os dependentes, os e o dos francos, possuía conselhos
estrangeiros, as mulheres, as crianças, semelhantes. Seja como for, esse único
os escravos. fato incontestável soluciona todas as
Pode-se im aginar qual a dificuldade dificuldades: parece-me legítimo infe­
de reunir freqüentemente o num eroso rir-se, da existência, a possibilida­
povo dessa capital e de seus arredores. de3 50.
No entanto, passavam -se poucas sema­
nas sem que se reunisse o povo rom a­ 3 50 Uma velha máxima autorizaria a inferir-
no, e até várias vezes. Ele não somente se, da possibilidade, a existência das coisas.
exercia os direitos da soberania, mas Invertendo-a, Rousseau dá-lhe maior verdade e
assim conclui a sua dem onstração afirmando
tam bém um a parte dos direitos do possível o exercício da soberania pelo povo
Governo. T ratava de certos assuntos, desde que, ao menos histojricamente, existiu.
julgava certas causas, e todo esse (N. de L. G. M.)

C a p ítu lo XIII

Continuação

Não basta que o povo reunido tenha dicas pela simples d a ta 3 52, qualquer
um a vez fixado a constituição do E sta­ assembléia do povo que não for convo­
do sancionando um corpo de leis; não cada pelos m agistrados designados
basta, ainda, que tenha estabelecido para esse fim e segundo as formas
um G overno perpétuo ou que, de um a prescritas deverá considerar-se ilegí­
vez por todas, tenha promovido a elei­ tim a, e tudo o que nela se fizer, nulo,
ção dos m agistrados; além das assem­ porquanto a própria ordem de reunir-
bléias extraordinárias que os casos se deve em anar da Lei.
imprevistos podem exigir, é preciso Quanto à repetição m ais ou menos
que haja outras, fixas e periódicas, que freqüente das assembléias legítimas,
nada. possa abolir ou adiar, de tal depende ela de tantas considerações,
m odo que, no dia previsto, o povo se que não se poderia a tal propósito esta­
encontre legitimamente convocado belecer regras precisas. Pode-se unica­
pela lei, sem que para tanto haja neces­ mente dizer, de modo geral, que, quan­
sidade de qualquer outra convocação to mais força possua o Governo, com
form al3 51. tanto mais freqüência deve m ostrar-se
M as, além dessas assembléias, jurí- o soberano.
Dir-me-ão: isso pode convir a um a
3 51 Previa a constituição de Genebra a reu­ única cidade, m as que fazer quando o
nião anual do Conselho Geral (assembléia da
totalidade dos cidadãos) para eleger os síndi­ 3 52 O simples fato de a lei fixar a data atribui
cos. O “ Pequeno Conselho” suspendeu tal reu­ plena legitimidade à assembléia. (N. de L. G.
nião, infringindo a lei. (N. de L. G. M.) M.)
DO CONTRATO SOCIAL lll

Estado compreende várias delas? Divi- Todavia, não se podendo reduzir o


dir-se-á a autoridade soberana? Ou, Estado a limites justos, resta ainda um
então, dever-se-á concentrá-la numa recurso — o de não admitir-se uma
única cidade e a ela submeter todo o
resto? capital, de fazer o Governo residir
Respondo que não se deve fazer nem alternativamente em cada cidade3 5 6, e
uma, nem outra coisa. Em primeiro de à sua volta reunir também, em rodí­
lugar, a autoridade soberana é simples zio, os Estados do país.
e una, e não se pode dividi-la sem Povoai igualmente o território, a ele
destruí-la. Em segundo lugar, uma
cidade, assim como uma nação, não estendei, em todos os lugares, os mes­
pode ser legitimamente submetida a mos direitos, a ele levai, em todas as
outra, porque a essência do corpo polí­ partes, a mesma abundância e a vida:
tico reside no acordo entre a obe­ assim o Estado tornar-se-á, ao mesmo
diência e a liberdade, e as palavras sú­
dito e soberano são correlações tempo, o mais forte e o mais bem
idênticas cuja idéia se reúne numa governado possível. Lembrai-vos de
única palavra — cidadão 3 53. que os muros das cidades só se erguem
Respondo, ainda, que é sempre um com os destroços das casas do campo
mal unir várias cidades em uma pólis
e, querendo fazer essa união, não nos A cada palácio que vejo elevar-se
devemos vangloriar de evitar com ela numa capital creio ver esboroar-se em
os inconvenientes naturais. Não se ruínas todo um país357.
deve absolutamente objetar, com o
abuso dos grandes Estados, àquele que 3 56 O problema surgiria concretamente no
só os deseja pequenos3 54. Como dar, P rojeto de C onstituição da Córsega, onde,
porém, aos pequenos Estados força rejeitando-se o rodízio aqui sugerido, escolhe-
se para sede do Governo (e não, propriamente,
suficiente pará resistir aos grandes? para capital, isto é, para cidade principal) um
Como, outrora, as cidades gregas pequeno núcleo — Corte — que jamais pode­
resistiram ao grande rei e como, mais ria dominar os demais. Cabe assinalar que
recentemente, a Holanda e a Suíça essa concepção repercutiu, embora de forma
resistiram à Casa d’Áustria3 5 5. indireta e modificada, na constituição de algu­
mas federações democráticas americanas que
adotaram a solução de um “distrito federal”
3 53 Cf. 1.1, c. VI. (N. de L. G. M.) para sede do Governo. (N. de L. G. M.)
3 54 Rousseau, como já vimos, só acreditava 3 5 7 A total oposição ao luxo citadino, o
possível a democracia nos pequenos Estados. exemplo das comunidades montanhesas da
(N. de L. G. M.) Suíça, o ideal das pequenas democracias e,
3 5 5 As alianças e as confederações poderão sobretudo, a convicção de que só o trabalho da
tornar um grupo de pequenos Estados mais terra é verdadeiramente produtivo chegam
forte do que um grande Estado inimigo. (N. de aqui a um paroxismo antiurbano perfeitamente
L. G. M.) conseqüente. (N. de L. G. M.)

C a p itu lo XIV

Continuação

No momento em que o povo se corpo soberano, cessa qualquer jurisdi-


encontra legitimamente reunido em ção do Governo, suspende-se o poder
112 ROUSSEAU

executivo e a pessoa do último cidadão sempre lhe pareceram perigosos; e


é tão sagrada e inviolável quanto a do essas assembléias do povo, que são a
primeiro magistrado, pois onde se égide do corpo político e o freio do
encontra o representado não mais exis­ Governo, sempre constituíram o hor­
te o representante3 58. A maioria dos ror dos chefes — por isso não rega­
tumultos acontecidos em Roma nos teiam cuidados, objeções, dificuldades
comícios resultou de ter-se ignorado e promessas para dissuadir os cida­
ou descuidado essa regra. Os cônsules, dãos de realizá-las. Quando estes são
então, não passavam de presidentes do avaros, covardes, pusilânimes, mais
povo, os tribunos eram simples orado­ amantes do repouso do que da liberda­
res3 59, nada sendo o senado. de, não se opõem por muito tempo aos
Esses intervalos de suspensão, nos tremendos esforços do Governo; eis
quais o príncipe reconhece ou deve como a força de resistência3 60 aumen­
reconhecer um superior verdadeiro, ta sem cessar, a autoridade soberana
afinal desfalece, e a maioria das pólis
3 58 A tal propósito, Beaulavon lembra uma
cai e perece antes do tempo.
velha instituição da monarquia francesa, se­
gundo a qual cessava qualquer outra autori­ Entre a autoridade soberana e o
dade quando o rei presidia o parlamento. Mas, Governo arbitrário, porém, introduz-se
nesse caso, o rei se tinha por detentor do poder às vezes um poder intermediário de
legislativo, que delegava temporariamente ao
parlamento, enquanto Rousseau deseja preve­
que é preciso falar.
nir que o executivo invada a esfera legislativa,
que é a esfera do soberano. Também cabe 3 59 Aproximadamente no sentido que se dá a
reparar que, se a medida proposta no C ontrato essa palavra no parlamento da Inglaterra*. A
Social parece teoricamente dispensável (pois à semelhança desses dois empregos teria colo­
lei continua a viger durante a assembléia, cado em conflito os cônsules e os tribunos,
impondo-se ao Governo), mostra-se de extre­ mesmo quando suspensa qualquer jurisdição.
ma necessidade na prática, porquanto os titu­ (N. do A.)
lares do executivo viriam para a assembléia *Speaker (orador) é o título do presidente da
armados do prestígio de detentores do poder Câmara dos Comuns. (N. de L. G. M.)
que lhes foi confiado, deixando de ser vistos 3 60 Do Governo ou de seus componentes. (N.
como simples cidadãos. (N. de L. G. M.) de L. G. M.)

C a p itu lo XV

Dos deputados ou representantes

Desde que o serviço público deixa fim, soldados para escravizar a pátria
de constituir a atividade principal dos e representantes para vendê-la.
cidadãos e eles preferem servir com É a confusão do comércio e das
sua bolsa a servir com sua pessoa, o artes, é o ávido interesse do ganho, é a
Estado já se encontra próximo da frouxidão e o amor à comodidade que
ruína. Se lhes for preciso combater, trocam os serviços pessoais pelo di­
pagarão tropas e ficarão em casa; se nheiro. Cede-se uma parte do lucro,
necessário ir ao conselho, nomearão para aumentá-lo à vontade. Dai ouro, e
deputados e ficarão em casa. À força logo tereis ferros. A palavra finança é
de preguiça e de dinheiro, terão, por uma palavra de escravos, não é conhe-
DO CONTRATO SOCIAL 113

cida na p ólis3 61. Num Estado vèrda- em seus interesses particulares3 6 4.


deiramente livre, os cidadãos fazem Numa pólis bem constituída, todos
tudo com seus braços e nada com o correm para as assembléias; sob um
dinheiro3 62; longe de pagar para se mau Governo, ninguém quer dar um
isentarem de seus deveres, pagarão passo para ir até elas, pois ninguém se
para cumpri-los por si mesmos. Dis­ interessa pelo que nelas acontece,
tancio-me bastante das idéias comuns, prevendo-se que a vontade geral não
pois considero as corvéias menos con­ dominará, e porque, enfim, os cuida­
trárias à liberdade do que os impos­ dos domésticos tudo absorvem. As
tos3 63. boas leis contribuem para que se
Quanto mais bem constituído for o façam outras melhores, as más levam a
Estado, tanto mais os negócios públi­ leis piores. Quando alguém disser dos
cos sobrepujarão os particulares no negócios do Estado: Que me importa?
espírito dos cidadãos. Haverá até um — pode-se estar certo de que o Estado
número menor de negócios particula­ está perdido.
res, porque a soma da felicidade A diminuição do amor à pátria, a
comum fornecendo uma porção mais ação do interesse particular, a imensi­
considerável à felicidade de cada indi­
dão dos Estados, as conquistas, os
víduo, restar-lhe-á menos a conseguir
abusos do Governo fizeram com que
se imaginasse o recurso dos deputados
3 6 1 As idéias fundamentais de Rousseau, à
falta de uma rigorosa organização sistemática ou representantes do povo nas assem­
de seu pensamento, vão confluindo lentamente, bléias da nação. É o que em certos paí­
até fixar-se em verdadeiros princípios. Assim, ses ousam chamar de Terceiro Esta­
o desprezo que votava ao luxo e aos requintes do3 6 5. Desse modo, o interesse
do progresso, mais a sua indeclinável defesa da
liberdade, consolidam-se na visão política de particular das duas ordens é colocado
um Estado pobre e pequeno, mas, por isso em primeiro e segundo lugares, ficando
mesmo, livre. No Projeto de Constituição para o interesse público em terceiro.
a Córsega, as finanças são comparadas ao te­ A soberania não pode ser represen­
cido adiposo que torna o corpo político “mais
pesado do que forte”. (N. de L. G. M.) tada pela mesma razão por que não
3 62 Nas Idéias Republicanas, Voltaire oferece
a esse trecho o seguinte comentário: “Essa tese 3 63 O regime feudal de tributos impunha
do Contrato Social é apenas extravagante. Há prestações em espécie que implicavam traba­
uma ponte a construir, uma rua a calçai-; será lho físico: as corvéias. Do fim da Idade Média
preciso que os magistrados, os negociantes e à Revolução, tais corvéias foram sendo substi­
os padres calcem a rua ou construam a ponte? tuídas por prestações em dinheiro e Turgot, em
O autor não quereria, sem dúvida, passar por 1776, desejou estabelecer uma resolução extin­
uma ponte construída por suas mãos: a idéia é guindo totalmente as prestações em espécie ou
digna de um preceptor que, devendo educar em trabalho, sendo saudado pela opinião
um jovem Fidalgo, lhe ensinasse o ofício de “esclarecida”. Só Rousseau parecia pressentir
carpinteiro, embora nem todos os homens a ameaça à igualdade que se contém nos
devam ser obreiros”. As palavras de Voltaire impostos em dinheiro que, nada representando
deixam patente a distância que mentalmente o para o rico, esmagam o pobre. Entrevia, pois,
separa de Rousseau: seu conceito de liberdade a função social da tributação. (N. de L. G. M.)
é teórico, abstrato, desligado da realidade e 3 6 4 Rousseau, não temendo parecer utópico,
incapaz de reagir contra ela, enquanto nosso aproxima-se sempre de seu ideal: uma pequena
Autor deseja uma liberdade real e radicada na sociedade simples e morigerada, com pouco
igualdade efetiva dos homens, sem importar-se comércio interno ou externo, vivendo quase
com a suposta dignidade dos magistrados, somente das trocas diretas e, pois, podendo
negociantes, padres e jovens fidalgos. (N. de L. dispensar a moeda. (N. de L. G. M.)
G. M.) 3 6 5 No Antigo Regime francês, os Estados
114 ROUSSEAU

pode ser alienada3 6 6, consiste essen­ na; vem-nos do Governo feudal3 70,
cialmente na vontade geral e a vontade desse Governo iníquo e absurdo no
absolutamente não se representa. É ela qual a espécie humana só se degrada e
mesma ou é outra, não há meio-ter­ o nome de homem cai em desonra3 71.
mo3 6 7. Os deputados do povo não são, Nas antigas repúblicas, e até nas
nem podem ser seus representantes; monarquias, jamais teve o povo repre­
não passam de comissários seus, nada sentantes, e não se conhecia essa pala-
podendo concluir definitivamente3 68. vra3 72. É bastante singular que em
É nula toda lei que o povo diretamente
3 68 V. nota anterior. A cerrada argumentação
não ratificar; em absoluto, não é lei. O de Rousseau, neste ponto, tornou-se fonte de
povo inglês pensa ser livre e muito se acesas controvérsias doutrinárias e jurídicas.
engana, pois só o é durante a eleição O Contrato Social opõe-se a Montesquieu,
dos membros do parlamento; uma vez negando que a simples existência de deputados
estes eleitos, ele é escravo, não é nada. eleitos garanta às leis o selo da vontade popu­
lar. Isso só acontece quando o deputado dispõe
Durante os breves momentos de sua de um “mandato imperativo” de seus eleitores,
liberdade, o uso, que dela faz, mostra e maior concessão não faz Rousseau ao princí­
que merece perdê-la3 69. pio representativo. Na Assembléia revolucio­
nária, o ponto suscitaria violentos debates, não
A idéia de representantes é moder- trepidando Robespierre em afirmar que cada
lei, para exprimir a vontade soberana, devera
Gerais dividiam-se no Primeiro Estado, com­ ser submetida ao plebiscito (referendum popu­
posto de representantes da nobreza, no Segun­ lar, na moderna linguagem constitucional).
do Estado, formado pelos representantes do Siéyès faria a defesa do sistema representativo,
clero, e no Terceiro Estado, que reunia os que foi o adotado, integrando-se na estrutura
representantes da burguesia, no primitivo sen­ constitucional da França e dos Estados Uni­
tido da palavra, isto é, dos habitantes dos bur­ dos, imitando-a, depois, todas as constituições
gos. Como a nobreza e o clero dispunham de democráticas modernas. Sob Napoleão, o prin­
privilégios, Rousseau pertinentemente acusa- cípio representativo sofreu sério abalo (então
os de defenderem interesses particulares e, Siéyès defendia diferente doutrina. . .), pois o
pois, de não se integrarem na vontade geral, imperador passara a ser o único representante
enquanto a burguesia não privilegiada, por da vontade de Deus e da nação, enquanto o
isso mesmo, pode ser identificada com o inte­ Corpo Legislativo baixava à categoria de mero
resse público, se não concretizando, ao menos órgão técnieo-legiferante. Terá sido este, possi­
aproximando-se da vontade geral. Ademais, o velmente, o primeiro esboço do sistema de que,
Terceiro Estado é o mais numeroso (estimava- geralmente, se servem os regimes autoritários.
se, em 1789, que representava dezenove vinte (N. de L. G. M.)
avos da população de França). Essa mesma 3 69 Ataque frontal a Montesquieu que, sim­
argumentação será retomada no famoso Que é plificando otimisticamente o modelo inglês,
o Terceiro E stado, de Siéyès, que a ela juntou não percebera que nos interstícios eleitorais a
uma defesa da representação parlamentar vontade popular não se exprime. (N. de L. G.
(condenada por Rousseau) para estabelecer, ao M.)
menos na estrutura formal, o princípio e 3 70 Como os Estados Gerais, compostos de
funcionamento da Assembléia Constituinte representantes dos “três Estados”, vêm do An­
revolucionária, modelo seguido pelas demo­ tigo Regime francês, Rousseau tem razão em
cracias. (N. de L. G. M.) dar raízes feudais ao parlamentarismo. (N. de
L. G. M.)
366 Cf. 1. II, c. I. (N. de L.G.M.)
371 . . . ”o nome de homem”, em sentido
3 6 7 O fundamento psicológico é claro e estrito, pois, pela “homenagem”, estabelecia-se
consistente: não se pode querer por outrem. um nexo de vassalagem, tornando-se o vassalo,
No máximo, podemos exprimir a vontade daí por diante, “homem de alguém”. (N. de L.
alheia, à condição, porém, de ser uma vontade G. M.)
conclusa e explícita. Logo, o deputado não 3 72 Nos Estados antigos, mesmo onde um se­
pode “representar” o povo, mas apenas expri­ nado preparava as leis (Atenas, Roma), estas
mir a sua vontade, depois de firmada e formu­ só adquiriam vigor depois de submetidas dire­
lada. (N. de L. G. M.) tamente ao povo. (N. de L. G. M.)
DO CONTRATO SOCIAL 115

Roma, onde os tribunos eram tão escravos executavam seu trabalho e a


reverenciados, não se tenha sequer sua grande ocupação era a liberdade.
imaginado que eles pudessem usurpar Não possuindo mais as mesmas vanta­
as funções do povo e que, no meio de gens, como conservaríamos os mesmos
tão grande multidão, nunca tivessem direitos? Vossos climas mais agressi­
tentado decidir por sua conta um único vos vos impõem maiores necessida­
plebiscito. Pode-se julgar, no entanto, des3 7 4; seis meses por ano, a praça pú­
qual o embaraço que às vezes a multi­ blica não é suportável; vossas línguas
dão causava, pelo que aconteceu no insonoras não podem fazer-se ouvir ao
tempo dos Gracos, quando uma parte ar livre; preferis o vosso ganho à vossa
dos cidadãos deu seu sufrágio do alto liberdade, e temeis muito mais a misé­
dos telhados. ria do que a escravidão.
Onde o direito e a liberdade são Q uê! a liberdade só se mantém com
tudo, os inconvenientes nada são. No o apoio da servidão? Talvez3 7 5. Os
seio desse povo prudente, tudo era dois excessos se tocam. Tudo o que, de
colocado em sua medida certa: deixa­ qualquer modo, não está na natureza,
vam seus litores fazer o que seus tribu­ apresenta seus inconvenientes; a socie­
nos não teriam ousado; não temiam dade civil mais do que todo o resto.
que os litores quisessem representá- Tais posições infelizes estabelecem-se
los3 73. naqueles lugares em que só se pode
No entanto, para explicar como os conservar a própria liberdade a expen­
tribunos algumas vezes o represen­ sas da de outrem, e onde o cidadão só
tavam, basta conceber como o Gover­ pode ser perfeitamente livre quando o
no representa o soberano. Não sendo a escravo é extremamente escravo. Essa
Lei mais do que a declaração da vonta­ era a situação de Esparta. Quanto a
de geral, claro é que, no poder legisla­ vós, povos modernos, não tendes es­
tivo, o povo não possa ser represen­ cravos, mas o sois; pagais a liberdade
tado, mas tal coisa pode e deve deles com a vossa. Acreditais certo
acontecer no poder executivo, que não enaltecer essa preferência; nela encon­
passa da força aplicada à Lei. Tal fato tro mais covardia do que humanidade.
leva-nos a ver que, se examinarmos De modo algum entendo, por tudo
bem as coisas, muito poucas nações isso, que se deve possuir escravos, nem
possuem leis. De qualquer modo, é que seja legítimo o direito de escravi­
certo que os tribunos, não tendo qual­ dão, uma vez que demonstrei o contrá­
quer parcela do poder executivo, ja ­ rio3 7 6; falo somente das razões pelas
mais puderam representar o povo ro­
mano baseando-se nos direitos de seus 3 7 4 Adotar nos países frios o luxo e a frouxi­
cargos, mas somente usurpando-os do dão dos orientais é querer dar-se grilhões, é
senado. submeter-se aos ferros ainda mais necessaria­
mente do que eles. (N. do A.)
Entre os gregos, tudo o que o povo 3 7 5 Aqui, Rousseau deve ceder ao peso da
tinha de fazer, fazia-o por si mesmo; evidência histórica: seus amados exempíos
encontrava-se freqüentemente reunido gregos e romanos, quando governados demo­
na praça. Residia num clima ameno, crática e diretamente, o eram por uma elite de
cidadãos para os quais trabalhava a multidão
não era de modo algum ávido, os de servos e escravos. Certa tendência moderna
e otimista do tecnicismo espera que a máquina
3 73 Já ao tempo de Cícero, os patrícios deixa­ venha a conferir equivalente liberdade de ocu­
vam de comparecer aos comícios curiais, par-se com a causa pública, aos cidadãos da
sendo aí representados pelos litores. (N. de L. p ó lis moderna. (N. de L. G. M.)
G. M.) 3 7 6 Cf. 1.1, c. II e IV. (N. de L. G. M.)
116 ROUSSEAU

quais os povos modernos, que se crêem ao soberano conservar entre nós o


livres, têm representantes, e porque os exercício de seus direitos, salvo se a
povos antiigos não os tinham. De qual­ pólis3 17 for muito pequena. Mas, se
quer modo, no momento em que um for muito pequena, será subjugada?
povo se dá representantes, não é mais Não. Logo adiante demonstrarei3 78
livre; não mais existe. como se pode reunir o poder exterior
Examinando tudo cuidadosamente, de um grande povo à polícia fácil e à
não vejo como seja doravante possível boa ordem de um pequeno Estado.
3 7 7 Mais uma vez e, agora, na conclusão, tor­ nas, inteiramente de sua mão, foi-me entregue
na-se visível que Rousseau desenvolveu todo por ele próprio, e autorizou-me a dele fazer, no
esse capítulo tendo em mente o seu Estado curso de minha vida, o emprego que me pare­
ideal reduzido, equilibrado e frugal no modo cesse útil”. D ’Antraigues teria pensado em
de vida. Os Estados modernos, por sua própria publicar o texto, mas amigos seus objetaram
constituição e proporções, são imperfeitos. (N. com o que de irrealizável e, por isso, perni­
de L. G. M.) cioso à monarquia ali se encontrava. Acabou
por convencer-se da possível má interpretação
3 78 É o que me tinha proposto fazer no desen­
“e o risco resultante para minha pátria”. Des­
volvimento desta obra, quando, ao tratai’ das
truiu o manuscrito. Assim, deixando de lado
relações externas, chegasse às confederações. essa possibilidade mal comprovada de quanto
É um assunto completamente novo, ainda
Rousseau pensava sobre as “federações”, res­
estando todos os princípios por serem estabele­
ta-nos apenas a breve indicação do Emílio (1.
cidos*. (N. do A.)
V), que pode ser completada com algumas
* Aqui cabe referência à famosa alegação do reflexões entremeadas na Paz Perpétua de
Conde d’Antraigues, membro da Assembléia Saint-Pierre, tal como anota Dreyfus-Brisac no
Nacional, em cuja biografia Vaughan reco­ Apêndice VIII de sua clássica edição do Con­
nhece o perfil de um aventureiro político. trato Social. A primeira passagem, muito
Numa nota final de seu folheto Sobre qual é a sucinta, permite apenas ajuizar a “federação”
situação da Assembléia Nacional, publicado como algo mais sólido do que uma aliança
em 1790 e transcrito por Dreyfus-Brisac, diz internacional moderna, porém bem mais frou­
ter conhecido o desenvolvimento do Contrato xo do que as confederações do tipo helvético.
Social prometido por Rousseau. Não era obra Quanto às observações da Paz Perpétua,
acabada, mas o manuscrito em que “traçava o dizem respeito a uma espécie de federação
plano, lançava as bases e registrava, ao iado de européia, sugerida por Saint-Pierre e que
dezesseis capítulos daquele texto, algumas de excluiria, se realizada, o tipo propriamente
suas idéias que esperava desenvolver no corpo rousseauniano de “federação”. (N. de L. G.
da obra. Esse manuscrito de trinta e duas pági- M.)

C a p ítu lo XVI
De como a instituição do governo não é
de modo algum um contrato
Uma vez bem estabelecido o poder no, considerado como tal, deter o
legislativo, resta estabelecer do mesmo poder executivo, o direito380 e o
modo o poder executivo, porquanto fato381 confundir-se-iam de tal modo
este último, que só obra por meio de
atos particulares, não sendo da essên­ que não se saberia mais o que é lei e o
cia do outro, dele é naturalmente sepa­ que não é, e o corpo político, assim
rado3 79. Se fosse possível ao sobera-
380 A lei, a expressão da vontade geral. (N.
3 79 Conclui-se, pois, a completa oposição a de L. G. M.)
Montesquieu: se este separa os poderes segun­ 381 O caso particular concreto a que se faz a
do a função, Rousseau os distingue segundo a aplicação da lei por uma decisão do magis­
natureza. (N. de L. G. M.) trado. (N. de L. G. M.)
DO CONTRATO SOCIAL 117

desnaturado382, cairia logo nas garras Primeiramente, a autoridade supre­


da violência contra a qual fora instituí­ ma, assim como não pode alienar-se,
do383. também não pode modificar-se; limi­
Sendo todos os cidadãos iguais pelo tá-la é destruí-la. É absurdo e contradi­
contrato social, o que todos devem tório que o soberano dê a si mesmo um
fazer, todos podem prescrever, en­ superior; obrigar-se a obedecer a um
quanto ninguém‘tem o direito de exigir senhor é entregar-se em plena liberda­
de outrem que faça aquilo que ele de38 7.
mesmo não faz. Ora, é propriamente Além disso, é evidente que esse con­
esse direito, indispensável para fazer trato constituiria um ato particular
viver e movimentar-se o corpo político, entre o povo e tais ou quais pessoas;
que o soberano dá ao príncipe ao insti­ conclui-se daí que esse contrato não
tuir o Governo384. poderia ser uma lei ou um ato de sobe­
Muitos pretenderam3 8 5 que o ato rania e que, conseqüentemente, seria
desse estabelecimento constituía um ilegítimo388.
contrato entre o povo e os chefes que Vê-se ainda que as partes contra­
se dá, contrato pelo qual se estipula­ tantes se encontrariam, entre si, unica­
riam entre as duas partes as condições mente sob a lei da natureza e sem
pelas quais uma se obrigaria a mandar nenhuma garantia de seus compro­
e a outra a obedecer. Convir-se-á, missos recíprocos, o que de todos os
estou certo, que assim teríamos uma modos é contrário ao estado civil:
estranha maneira de contratar38 6. Ve­ aquele que tem a força nas mãos sendo
jamos, porém, se tal opinião é susten­ sempre o senhor da execução, melhor
tável. seria concordarmos em dar o nome de
contrato ao ato de um homem que dis­
382 Pois já não haveria meio de saber se os sesse a um outro: Eu vos dou tudo que
fatos (as decisões do magistrado) corres­ é meu, sob a condição de que me deis o
pondem ao direito (a vontade geral), posto que que vos aprouver389.
uma só vontade, a ambos determinando, have­
ria de confundi-los. (N. de L. G. M.)
Há um único contrato no Estado, o
383 Cf. capítulos I e III deste Livro, (N. de L. da associação390, e, por si só, esse ex­
G. M.) clui todos os demais. Não se poderia
38 4 O soberano permanece em sua esfera, que imaginar nenhum contrato público qlie
é a das leis gerais do direito, enquanto ao não fosse uma violação do primeiro.
Governo toca o campo das aplicações particu­
lares, dos fatos. (N. de L. G. M.)
38 5 a rigor, só Locke falou de um contrato 38 7 Em “plena liberdade” natural, pois se
entre o povo e os seus chefes. Hobbes apre­ alguém já firmou o pacto social, comprome­
senta uma fórmula mais complexa, segundo a tendo-se a só obedecer à vontade geral, e de­
qual cada indivíduo se compromete com os de­ pois aceita a obediência a uma vontade parti­
mais e todos conjuntamente com o chefe. Mas, cular, rompe aquele pacto e retoma ao estado
como se tem anotado, Rousseau aqui enfrenta de natureza. (N. de L. G. M.)
não só Locke e Hobbes, mas ainda Althusius, 388 Cf. 1. II, c. IV e VI. (N. de L. G. M.)
Jurieu, etc. Enfim, opõe-se a quantos se servi­ 389 Cf. 1. I, c. IV, que termina por uma fór­
ram do esquema contratual sem aludir à von­ mula equivalente. (N. de L. G. M.)
tade geral que, aliás, foi ele o primeiro a definir 390 O contrato social. Todo este capítulo,
essencialmente. (N. de L. G. M.) aliás, recapitula as noções básicas dos livros
38 6 Cf. com a crítica à escravidão do capítulo Primeiro e Segundo, relembrando-os a propó­
IV do Primeiro Livro. (N. de L. G. M.) sito do poder executivo. (N. de L. G. M.)
118 ROUSSEAU

C a p ít u l o X V II

Da instituição do governo

À luz de que idéia se precisará, pois, e todos, os cidadãos, tornados magis­


conceber o ato pelo qual o Governo é trados, passam dos atos gerais aos atos
instituído? Salientarei de início que particulares, e da lei à execução3 92.
esse ato é complexo, ou composto de Essa mudança de relação não é, de
dois outros, a saber: o estabelecimento modo algum, uma sutileza de especula­
da lei e a execução da lei. ção sem exemplo na prática, pois
Pelo primeiro, o soberano estatui acontece diariamente no parlamento
que haverá um corpo de Governo, da Inglaterra, onde a câm ara baixa, em
estabelecido sob tal ou qual forma; certas ocasiões, se transforma numa
esse ato, vê-se, é uma lei.
grande comissão para discutir melhor
Pelo segundo, o povo nomeia os
os negócios, passando assim de corte
chefes que ficarão encarregados do
Governo estabelecido. Ora, sendo essa soberana, que era no instante prece­
nomeação um ato particular, não cons­ dente, a simples comissão, de tal sorte
titui uma segunda lei, mas simples que, logo depois, comunica a si
conseqüência da primeira e uma fun­ mesma, como câmara dos comuns, o
ção do Governo3 91. que acaba de assentar como grande
A dificuldade reside em entender-se comissão, e delibera, de novo, sob um
como se pode ter um ato particular título, sobre o que já resolveu sob
antes que o Governo exista, e como o outro.
povo, que não passa de soberano ou de Tal, a vantagem peculiar ao Gover­
súdito, pode tornar-se, em certas «cir­ no democrático — pode estabelecer-se
cunstâncias, príncipe ou magistrado. de fato por um simples ato da vontade
Ainda neste ponto se descobre uma geral. Depois disso, esse Governo
dessas espantosas propriedades do
provisório permanece na posse, caso
corpo político pelas quais concilia ope­
rações aparentemente contraditórias seja essa forma adotada, ou é estabele­
pois a de que tratamos faz-se por uma cido em nome do soberano o Governo
súbita conversão da soberania em prescrito pela lei, ficando tudo assim
democracia, de modo que, sem qual­
quer mudança sensível e somente por 392 Relaciona-se, habitualmente, esse pará­
grafo com a passagem em que Hobbes afirma:
meio de uma nova relação entre todos “Os que se reuniram em assembléia para for­
mar uma sociedade civil, desde então inicia­
391 Evidentemente, Rousseau teme embara­ ram uma dem ocracia, porque, por estarem reu­
çar-se nas definições rigorosas, que já traçou nidos por sua vontade, se supõe que se
in genere, quando aqui deve cuidar de um encontram obrigados a consentir no que for
aspecto prático e concreto da vida dos Esta­ resolvido pelo maior número, o que é propria­
dos. Cabe recordar que, mais de uma vez, o mente o Governo popular. . . ” {D e C ive, c.
C ontrato S ocial sublinhou a imperfeição ine­ VII.) Assim, da simples reunião em assembléia
rente aos Estados tal como existem, em face do resulta o estabelecimento da regra majoritária
que deveriam legitimamente ser. Aqui, porém, democrática e, desta, deriva Rousseau o direi­
as dificuldades são ainda-quase somente voca­ to de designar a pessoa do monarca. (N. de L.
bulares. (N. de L. G. M.) G. M.)
DO CONTRATO SOCIAL 119

dentro da regra393. Não é possível ins­ maneira legítima e sem renúncia aos
tituir o Governo por qualquer outra princípios acima estabelecidos.
393 Tornou-se clássica a objeção de Beaula- que o cidadão, membro do soberano, possa
von, endossada por Vaughan, segundo a qual. aparecer como magistrado temporário, pois já
desde que se constitui em democracia, o povo o vimos em outra dupla relação, qual seja a de
já não tem o direito de designar um rei. Para membro do soberano e súdito do Estado; 3.°)
Vaughan, há contradição com o capítulo ante­ não é a soberania, mas o poder executivo, que
rior, pois esta escolha do rei seria um contrato passa às mãos do monarca, e, uma vez este
entre povo e Governo, um ato particular e, designado, extingue-se a assembléia sob regra
portanto, ilegítimo. Halbwachs, o terceiro dos democrática, para restar o soberano na plena
grandes comentaristas do C ontrato Social, posse da soberania e o monarca no exercício
opõe-se a tais objeções argumentando que: 1 .°) de sua função executiva. Se a fórmula de
a regra democrática que se impõe pela simples Rousseau parece desnecessariamente compli­
instalação da assembléia não implica a adoção cada, cumpre notar que, graças a ela, chega­
de tal ou qual forma de governo (tendo idên­ mos a uma instituição monárquica escolhida
tico sentido o texto inspirador de Hobbes, v. em função do interesse comum e não tendo em
nota 392, supra); 2.°) o povo, como soberano, vista determinada pessoa que se quer como rei.
decide criar um Governo monárquico, e, como Só depois de escolhida a forma de governo e
assembléia democrática, designa a pessoa que que se passa a considerar o problema da esco­
o exercerá, sem que vá contradição em admitir lha dos governàntes. (N. de L. G. M.)

C a p itu lo XVIII

Meio de prevenir as usurpações do governo3 9 4

Desses esclarecimentos, e confir­ crático dentro de uma ordem de cida­


mando o capítulo XVI, resulta que o dãos, não é de forma alguma um
ato que institui o Governo não é de compromisso que toma, mas sim uma
modo algum um contrato, mas uma forma provisória que dá à administra­
lei; que os depositários do poder exe­ ção, até quando lhe aprouver ordenar
cutivo não são' absolutamente os se­ outra.
nhores do povo, mas seus funcioná­ É verdade que tais mudanças são
rios; que ele pode nomeá-los ou sempre perigosas e que só se deve
destituí-los quando lhe aprouver; que tocar no Governo estabelecido quando
para eles não cabe absolutamente con­ este se torna incompatível com o bem
tratar, mas obedecer; e que, incumbin­
público. Esta advertência representa,
do-se das funções que o Estado lhes
porém, uma máxima de política e não
impõe, não fazem senão desempenhar
seu dever de cidadãos, sem ter de uma regra de direito, e o Estado não
modo algum o direito de discutir as está mais obrigado a entregar a autori­
condições. dade civil a seus chefes, do que a auto­
Quando acontece, pois, que o povo ridade militar a seus generais.
institui um Governo hereditário; seja É ainda verdade que, em tal caso,
monárquico numa família, seja aristo- não se poderia observar com bastante
cuidado todas as formalidades exigidas
39 4 “Meio” e não “meios” como se lê em para distinguir um ato regular e legí­
algumas edições do C ontrato, pois tal é a
forma da edição original, que aliás se justifica:
timo de um tumulto sedicioso, e a von­
as assembléias periódicas são o único meio de tade de todo um povo, dos clamores de
reagir à usurpação. (N. de L. G. M.) uma facção. É neste ponto, sobretudo,
120 ROUSSEAU

que não se pode dar ao caso odioso3 9 5 venir ou retardar essa infelicidade,
senão aquilo que não se lhe pode recu­ sobretudo quando não têm necessidade
sar em todo o rigor do direito. É ainda, de convocação formal, pois então o
graças a essa obrigação que o príncipe príncipe não poderia impedi-las sem
consegue vantagem para conservar o abertamente declarar-se infrator das
seu poder malgrado o povo, sem que se leis e inimigo do Estado.
possa dizer que o haja usurpado, pois,
A abertura dessas assembléias, que
parecendo usar somente seus direitos,
só têm por objeto a manutenção do
é-lhe muito fácil dilatá-los e, pretex­
tando a tranqüilidade pública, impedir trabalho social, deve sempre se fazer
a realização de assembléias destinadas por duas proposições que jam ais se
a restabelecer a boa ordem, prevàle- podem suprimir e que são submetidas
cendo-se assim de um silêncio que im­ separadamente a sufrágio.
pede romper-se ou de irregularidades A primeira é: “ Se apraz ao soberano
que faz cometer, para em seu favor conservar a presente forma de gover­
supor a aprovação daqueles que o no .
medo faz calar e para punir aqueles A segunda é: “ Se apraz ao povo dei­
que ousam falar. Eis como os decênvi- xar a administração aos que se encon­
ros, eleitos a princípio por um ano e
tram atualmente encarregados dela”.
depois conservados por mais um ano,
tentaram reter perpetuamente o poder, Suponho, neste ponto, o que creio
não mais permitindo a reunião dos ter demonstrado, isto é, que não há no
comícios. Valendo-se ainda desse meio Estado nenhuma lei fundamental que
fácil é que todos os governos do não possa ser revogada, nem mesmo o
mundo, uma vez revestidos da força pacto social39 7, pois, se todos os cida­
pública, mais cedo ou mais tarde usur­
dãos se reunissem para, de comum
pam a autoridade soberana.
As assembléias periódicas, das acordo, romper esse pacto, não se pode
quais falei acima39 6, servem para pre- duvidar que fosse muito legitimamente
rompido. Grotius chega até a pensar
39 5 Na tradição jurídica romana, o “caso que cada um pode renunciar ao Estado
odioso” é aquele em que o exercício do direito do qual é membro e retomar sua liber­
reivindicado pode trazer perigos, donde a má­ dade natural e seus bens, saindo do
xima: “O dia restringenda, fa v o re s a m plian di”.
(N. de L. G. M.) país398. Ora, seria absurdo que todos
39 6 Cf. c. XIII. A insistência no recurso à os cidadãos reunidos não pudessem o
convocação das assembléias periódicas, clara que pode cada um deles em separado.
alusão ao caso de sua cidade natal, valeu a
Rousseau a queima pública, em Genebra, do
C ontrato S ocial e a ordem de prisão contra seu 39 7 Cf. 1.1, c. VII. (N. de L. G. M.)
autor. O Procurador-Geral Tronchin apontou 3 98 É claro que não se sai dele para escapar
passagens deste capítulo ao “Pequeno Conse­ ao dever e furtar-se a servir à pátria no
lho” e tanto bastou para desencadear a reação momento em que tem necessidade de nós. A
contra o até então venturoso- “cidadão de fuga seria, então, criminosa e punível; não
Genebra”. (N. de L. G. M.) haveria retirada, mas deserção. (N. do A.)
LIVRO QUARTO
C a p it u l o I

De como a vontade geral é indestrutível

Enquanto muitos homens reunidos propuser não fará senão dizer o que
se consideram um único corpo, eles todos já sentiram, e não cabem nem
não têm senão uma única vontade que brigas nem eloqüência para fazer com
se liga à conservação comum e ao que se transforme em lei o que cada
bem-estar geral. Então, todos os expe­ um já resolveu fazer, desde que esteja
dientes do Estado são vigorosos e certo de que os demais farão como ele.
simples, suas máximas claras e lumi­ O que engana os discutidores é que,
nosas; absolutamente não há qualquer não vendo senão Estados mal consti­
interesse confuso, contraditório; o bem tuídos desde a origem400, chocam-se
comum se patenteia em todos os luga­ com a impossibilidade de neles manter
res e só exige bom senso para ser per­ semelhante polícia, rindo-se401 só com
cebido. A paz, a união, a igualdade são imaginar todas as idiotices que um
inimigas das sutilezas políticas. Os ho­ impostor esperto, um discursador insi­
mens corretos e simples são difíceis de nuante poderia impingir ao povo de
enganar, devido à sua simplicidade. Paris e de Londres. Não sabem que o
Não os impressionam de modo algum povo de Berna submeteria Cromwell
as astúcias e os pretextos rebuscados, aos guizos e os genebrinos passariam o
nem chegam mesmo a ser bastante Duque de Beaufort pela disciplina402.
sutis para serem tolos. Quando se
vêem, entre os povos mais felizes do hoje, resolvem os problemas comuns pelo sis­
mundo, grupos de camponeses regula­ tema da democracia direta. A referência tam­
bém aparece no Projeto para a Córsega. (N. de
mentarem os negócios do Estado sob L. G. M.)
um carvalho e se conduzirem sempre 400 Essa, a maior deficiência do método de
sabiamente, pode-se deixar de despre­ Montesquieu: quando se considera apenas a
zar os rebuscamentos das outras na­ realidade imediatamente observável, corre-se o
ções, que com tanta arte e mistério se risco de aceitar por normal a perversão genera­
lizada. (N. de L. G. M.)
tornam ilustres e miseráveis?3 99 401 A tendência a ironizar a incapacidade
Um Estado assim governado tem popular é dada como mais um traço ptóptio
necessidade de bem poucas leis e, à dos “filósofos” da ilustração, de um Voltaire,
medida que se torna preciso promulgar por exemplo. (N. de L. G. M.)
402 Os guizos e a disciplina eram os castigos
outras novas, reconhece-se tal necessi­
então comumente impostos aos perturbadores
dade universalmente. O primeiro que a da ordem pública. O Duque de Beaufort era
um dos líderes da “fronda”, rebeiião que se
3 99 Para Rousseau, a Suíça fornecia dois levantou em Paris, durante a regência de Ana
exemplos aos países mais populosos, ricos e d’Áustria, com o fim ostensivo de expulsar
desenvolvidos da Europa: o modelo constitu­ Mazarino de França. Quanto a Cromwell,
cional de Genebra e o modelo vivo da exis­ Rousseau diria que “só foi dado por tirano de­
tência frugal e pacífica das comunidades rurais pois de ter passado, durante quinze anos, por
de certos cantões montanheses. Genebra, por ser o vingador da lei e o defensor da religião”.
esta altura, já o desiludira. Então cresce seu (Carta a Usteri, 18 de julho de 1763.) (N. de L.
apegamento pelos camponeses simples que, até G. M.)
124 ROUSSEAU

Quando, porém, o liame social co­ Cada um, desligando seu interesse do
meça a afrouxar e o Estado a enfraque­ interesse comum, bem sabe que não o
cer, quandc os interesses particulares pode isolar completamente; sua parte
passam a se fazer sentir e as pequenas do mal público, porém, não lhe parece
sociedades a influir na grande, o inte­ nada, em face do bem exclusivo de que
resse comum se altera e encontra pretende apropriar-se. Excetuado esse
opositores, a unanimidade não mais bem particular, ele deseja, tão forte­
reina nos votos, a vontade geral não é mente quanto qualquer outro, o bem
mais a vontade de todos403, surgem geral em seu próprio interesse. Mesmo
contradições e debates, e o melhor quando vende seu voto a peso de
parecer não é aprovado sem disputas. dinheiro, não extingue em si a vontade
Enfim, quando o Estado, próxirrto geral — ilude-a. A falta que comete é
da ruína, só subsiste por uma forma mudar a natureza da questão e respon­
ilusória e vã, quando se rompeu em der coisa diversa daquilo que se lhe
todos os corações o liame social, quan­ pergunta, de modo que, em lugar de
do o interesse mais vil se pavoneia dizer, com seu voto, “é vantajoso para
atrevidamente com o nome sagrado do o Estado” , ele diz “é vantajoso para tal
bem público, então a vontade geral homem ou tal partido que seja apro­
emudece40 4 — todos, guiados por vada tal ou qual proposta” . Assim, a
motivos secretos, já não opinam como lei da ordem pública nas assembléias
cidadãos, tal como se o Estado jamais não está tanto em nelas manter a von­
tivesse existido, e fazem-se passar tade geral, quanto em fazer com que
fraudulentamente, sob o nome de leis, sempre seja consultada e sempre res­
decretos iníquos cujo único objetivos é ponda40 6.
o interesse particular. Teria aqui muitas reflexões a fazer
Concluir-se-á daí que a vontade sobre o mero direito de votar em todo
geral esteja aniquilada e corrompida? o ato de soberania, direito do qual de
Não; ela é sempre constante, inalte­ modo algum se poderá despojar os
rável e pura, mas encontra-se subordi­
nada a outras que a sobrepujam40 5. cidadãos, e sobre o referente a opinar,
a propor, a dividir, a discutir 40 7, que o
403 Impõe-se bem compreender esse trecho, Governo tem sempre extremo cuidado
cuja linguagem é pouco precisa. Sabemos que
a vontade geral não precisa ser a vontade de em reservar para seus membros. Essa
todos, nem sequer da maioria — é o que há de importante matéria, no entanto, exigi­
comum na vontade de todos. Aqui Rousseau ria um tratado à parte e não posso,
se refere à vontade pretensamente geral, resul­
tante de uma coalização facciosa que se dispôs neste, dizer tudo.
seguir uma maioria para consagrar seu inte­
resse particular. (N. de L. G. M.) 40 6 Beaulavon duvida da possibilidade de
40 4 Agora, trata-se da vontade geral. Volta­ conseguir-se, por meio de leis regulamentares
mos àquele trecho da “Dedicatória” do segun­ do funcionamento das assembléias, tal resulta­
do D iscurso em que se fala dos povos, que, do. Parece, contudo, que “lei da ordem públi­
uma vez habituados à servidão, já não sabem ca”, nesse passo, significa antes a regra moral
viver fora dela. (N. de L. G. M.) imposta pelo interesse público, isto é, uma
40 5 Confirma-se, pois, a interpretação que daquelas leis que não se gravam no bronze,
estas notas vêm dando à natureza essencial da mas no coração, como se diz no próprio C on­
vontade geral. Substrato comum das consciên­ trato Social. A reação moral impedirá as coali­
cias individuais, reflexo do processo de sociali­ zões facciosas, que desviam a consulta à von­
zação de cada um e todos os indivíduos, a von­ tade geral e adulteram sua resposta. (N. de L.
tade geral está sempre presente neles. Mesmo o G. M.)
ato mais egoísta não a elide, senão apenas 40 7 Distinguem-se meticulosamente os mui­
passa por sobre ela. Ou, então, nela mesma tos passos, complementares porém distintos,
encontra algo que é de interesse particular. (N. que caracterizam a elaboração, fixação e
de L. G. M.) expressão da vontade geral. Não obstante, no
DO CONTRATO SOCIAL 125

C a p ítu lo II

Dos sufrágios

Vê-se, pelo capítulo precedente, de pelo vício inerente ao corpo político,


como, pelo modo de tratar os negócios têm-se por assim dizer dois Estados
gerais, pode-se ter um índice bastante num só; o que não é verdadeiro para os
seguro do estado real dos costumes e dois em conjunto, é verdadeiro para
da saúde do corpo político. Quanto cada um em separado. E, com efeito,
mais reinar o acordo nas assembléias, até nas épocas mais tempestuosas, os
isto é, quanto mais se aproximarem as plebiscitos do povo, quando o senado
opiniões da unanimidade, tanto mais não se imiscuía, decorriam sempre
dominante também será a vontade tranqüilamente e com grande plurali­
geral; porém os longos debates, as dade de sufrágios: os cidadãos não
dissensÕes, o tumulto prenunciam a tendo senão um interesse, o povo não
ascendência dos interesses particulares tinha senão uma vontade.
e o declínio do E stado408. Na outra extremidade do círculo,
Tal coisa parecerá menos evidente torna a aparecer a unanimidade, isto é,
quando duas ou mais ordens entram na quando os cidadãos, caindo na servi­
sua constituição, como em Roma os dão, não mais têm nem liberdade nem
patrícios e os plebeus, cujas querelas vontade. Então, o temor e a adulação
freqüentemente perturbaram os comí­ transformam os sufrágios em aclama­
cios, mesmo nos melhores tempos da ção; não se delibera mais, adora-se ou
República409. A excessão, porém, é se maldiz. Essa, a abjeta maneira de
mais aparente do que real, pois então,
os plebiscitos só obrigavam à plebe. Em 367, o
direito de “propor” há uma flecha diretamente senado, por anuência, emprestou força de lei a
apontada contra o “Pequeno Conselho” de todos os plebiscitos. No fim do século IV, essa
Genebra que se reservara monopolisticamente anuência passou a ser dada antes de votado o
a faculdade de apresentar projetos de delibera­ plebiscito, que, pois, virtualmente passou a ter
ção a todos os órgãos governamentais. (N. de força legiferante. Esses dados históricos, toma­
L. G. M.) dos à H istória R om ana de Piganiol, são cita­
408 Jamais admitindo a existência de partidos dos por Halbwachs que, contudo, acredita
ou facções no seio de um Esfado bem consti­ encontrar, na condenação do choque de parti­
tuído, Rousseau dispõe-se, aqui, a demonstrar dos nascidos de diferenças econômicas, uma
as más conseqüências de tal perturbação, a tendência de Rousseau à abstração que o afas­
começar pelos exemplos aparentemente mais ta, por exemplo, de certas análises realistas da
benévolos, como o das duas ordens de Roma, divisão partidária, como a de Marx no 18 Bru­
de que trata no parágrafo seguinte. (N. de L. m ário de Luís N apoleão. Ora, em Rousseau
G. M.) como em Marx, há o reconhecimento da divi­
409 Existindo em Roma as assembléias curi­ são política que o econômico impõe e que se
ais, compostas segundo o nascimento, e as deve buscar eliminar — por meios muito
centuriais, baseadas na fortuna, os tribunos da diversos, é óbvio — a fim de restabelecer a
plebe desejaram instalar uma nova assembléia imprescindível igualdade entre os súditos do
convocando os plebeus segundo suas tribos — Estado e membros do soberano. Não é menos
foram os concílios da plebe, cujas decisões se certo, contudo, que poucos socialistas, inclu­
chamavam, coerentemente, plebiscito. Assim sive os marxistas, souberam ler acertadamente
se escolhiam os tribunos, a partir de 471, mas a obra política de Rousseau. (N. de L. G. M.)
126 ROUSSEAU

opinar do senado ao tempo dos impe­ do a conformar-se com vontades que


radores. Algumas vezes, tal se proces­ não a sua. Como os opositores serão
sava com precauções ridículas. Tácito livres e submetidos a leis que não
observa410 que, sob Otao, os senado­ consentiram?
res, cumulando Vitélio de execrações, Respondo que a questão está mal
fingiam ao mesmo tempo fazer um proposta. O cidadão consente todas as
tumulto tremendo, a fim de que, se por leis, mesmo as aprovadas contra sua
um acaso ele se tornasse o senhor, não vontade e até aquelas que o punem
pudesse saber o que cada um deles quando ousa violar uma delas. A von­
dissera. tade constante de todos os membros do
Dessas várias considerações nascem
Estado é a vontade geral: por ela é que
as máximas pelas quais se deve regular
são cidadãos e livres41 4. Quando se
o modo de contar os votos e de compa­
rar as propostas, caso a vontade geral propõe uma lei na assembléia do povo,
seja mais ou menos fácil de ser conhe­ o que se lhes pergunta não é precisa­
cida, ou esteja o Estado em maior ou mente se aprovam ou rejeitam a pro­
menor declínio. posta, mas se estão ou não de acordo
Existe uma única lei que, pela sua
natureza, exige consentimento unâ­ 41 2 Compreenda-se isso sempre num Estado

nime — é o pacto social, por ser a livre, porquanto, alhures, a família, os bens, a
falta de asilo, a necessidade, a violência podem
associação civil o mais voluntário dos reter um habitante no país, malgrado sua von­
atos, deste mundo. Todo homem, tendo tade; nesse caso, a sua permanência por si só
nascido livre e senhor de si mesmo, não supõe seu consentimento ao contrato ou à
ninguém pode, a qualquer pretexto violação do contrato*. (N. do A.)
* Não se confunda essa noção da residência
imaginável, sujeitá-lo sem o seu con­ com a moderna teoria do “quase-contrato”
sentimento. Afirmar que o filho de um pela qual se consideram submetidos às obriga­
escravo nasce escravo, é afirmar que ções comuns os que não exprimiram sua ade­
não nasce homem. são ao Estado (os incapazes jurídicos: crian­
Se, quando surge o pacto social, ças, insanos e, em certos casos, as mulheres).
Para Rousseau, o consentimento deve ser
aparecem, pois, opositores, sua oposi­ explícito (ele cuida de indivíduos capacitados à
ção não invalida o contrato, apenas cidadania) e só se presume quando a condição
impede que se compreendam nele: são de presunção resulta de um ato voluntário,
estrangeiros entre os cidadãos411. qual seja o de ir residir naquele Estado. (N. de
L. G. M.)
Quando o Estado se instituiu, o con­ 41 3 Por que a maioria é sempre legítima na
sentimento encontra-se no fato de resi­ ascendência sobre a minoria, explicar-se-á
dir; habitar o território é submeter-se à mais abaixo, quando se tratar da relação entre
soberania 412. o voto individual e a vontade geral. Aqui ape­
nas se considera que, dispostos a viver em
Fora desse contrato primitivo, e em comum, como decidiram ao aceitar o pacto
conseqüência do próprio contrato, o social, os homens não podem estar em risco
voto dos mais numerosos sempre obri­ permanente de dissolver o corpo social cada
ga os dem ais413. Pergunta-se, porém, vez que não se alcance unanimidade nas
como o homem pode ser livre, e força­ deliberações. (N. de L. G. M.)
41 4 Em Gênova, lê-se na fachada das prisões
e nos grilhões dos forçados às galés a palavra
41 0 H istor., I, 85. (N. do A.) Libertas. Essa aplicação da divisa é bela e
41 1 No Projeto p ara a Córsega, há uma apli­ justa. Com efeito, só os malfeitores de todos os
cação prática para o princípio: os que não Estados impedem o cidadão de ser livre. Num
aceitam o pacto devem afastar-se da assem­ país em que todas essas pessoas estivessem nas
bléia, assim significando seu alheamento do galeras, gozar-se-ia da mais perfeita liberdade.
corpo político nascente. (N. de L. G. M.) (N. do A.)
DO CONTRATO SOCIAL 127

com a vontade geral que é a deles 41 5; estejam ainda na pluralidade41 7;


cada um, dando o seu sufrágio, dá com quando assim já não acontece, não há
isso a sua opinião, e do cálculo dos mais liberdade,"seja qual for o partido
votos se conclui a declaração da von­ tomado.
Ao mostrar, mais acim a418, como
tade geral. Quando, pois, domina a nas deliberações públicas se substituía
opinião contrária à minha, tal coisa a vontade geral por vontades particula­
não prova senão que eu me enganara e res, indiquei suficientemente os modos
que aquilo que julgava ser a vontade praticáveis de prevenir esse abuso;
geral, não o era. Se minha opinião par­ deles ainda falarei mais adiante419.
ticular tivesse predominado, eu teria Relativamente ao número propor­
feito uma coisa diferente daquela que cional dos sufrágios para declarar essa
quisera; então é que eu não seria vontade, dei também os princípios
livre41 6. pelos quais se pode determiná-lo. A
diferença de um único voto rompe a
Tal coisa supõe, é verdade, que igualdade; um único opositor rompe a
todos os caracteres da vontade geral unanimidade, mas entre a unanimidade
e a igualdade há diversos quinhões
41 5 Com essa afirmação, Rousseau conclui desiguais, podendo-se para cada um
sua construção doutrinária e, ao mesmo deles fixar esse número segundo o esta­
tempo, aparta-se, em definitivo, do individua­ do e as necessidades do corpo políti­
lismo. Se numa assembléia impera, como
única legítima, a regra da maioria, ela não c o 420.
decorre do fato de a soma de um maior núme­
ro de vontades ter maior peso do que a soma 41 7 Isto é, que a vontade geral ainda domine
das vontades menos numerosas, como diz um na consciência de' todos. (N. de L. G. M.)
conceito até hoje corrente. O que se entende, 41 8 A referência é aos capítulos III do Livro
de tal sorte, é a maior probabilidade de reve­ II e XVIII do Livro II, onde se afirmou que a
lar-se a vontade geral por intermédio do maior vontade geral não erra e se cuidou das medidas
número, porquanto, presente em cada um dos que podem evitar a usurpação do Governo,
componentes da assembléia, só poderá ser porém ainda no capítulo precedente se distin­
dominada e iludida pelos interesses particu­ guiam as três fases do processo de declínio que
lares de uma pequena parcela de indivíduos. da união, passando pelo afrouxamento do
Por isso mesmo, em perfeita saúde o corpo liame social, chega à mudez da vontade geral.
político não deveria conhecer — como inces­ (N. de L. G. M.)
santemente repete o C ontrato Social — “os 41 9 Nos dois capítulos seguintes. (N. de L. G.
M.)
longos debates, as dissensões, o tumulto”, pois
420 Num Estado politicamente sadio pode-se
nas assembléias, a rigor, nada importa a opi­
esperar pela unanimidade, não porque repre­
nião de cada um, que é o reflexo das diferenças
sente uma exigência mais alta e mais próxima
individuais, mas a expressão, por cada um, do
da perfeição aspirada, mas porque natural e
que todos têm de comum — a vontade geral:
Assim, no sistema político de Rousseau, ne­ espontaneamente tende a estabelecer-se desde
que todos têm a consciência dominada pelo
nhum valor essencial tem o indivíduo, cuja
interesse coletivo. Se admitimos o progressivo
única função é a de revelar o interesse coletivo, afrouxamento do liame social, só poderemos,
tanto que, se for voto vencido, estará moral­ contudo, tolerar tal perversão até o ponto em
mente obrigado a reconhecer que se afastou da que ainda supomos dominante a presença da
vontade geral e juridicamente obrigado a vontade geral na simples maioria (metade e
submeter-se a ela, para continuar a ser livre, mais um) dos cidadãos, pois a partir desse li­
isto é, a gozar da liberdade que o corpo polí­ mite estaríamos acertando um grupo domi­
tico assegura a seus membros. (N. de L. G. M.) nado pelos interesses particulares. Entre os
41 6 Nem a liberdade política, pois o Estado, dois limites — unanimidade e maioria —
em que predominam os interesses particulares, podem-se estabelecer critérios intermédios des­
já não garante a liberdade de seus súditos; nem tinados a reforçar a base de valor de certas
a liberdade moral, pois, já não ouvindo a'voz decisões mais graves e menos urgentes. (V.
mais profunda da própria consciência, a von­ parágrafo seguinte.) A regra dos dois terços é
tade estaria corrompida e a conduta trans­ freqüente nas organizações contemporâneas.
viada. (N. de L. G. M.) (N. de L. G. M.)
128 ROUSSEAU

Duas máximas gerais podem servir são das opiniões: nas deliberações em
para regulamentar essas relações: uma que se precisa resolver imediatamente,
diz que, quanto mais importantes e deve bastar a diferença de um único
graves as deliberações, tanto mais a voto. A primeira dessas máximas pare­
opinião que as provoca deve aproxi­ ce mais conveniente às leis, e a segun­
mar-se da unanimidade; a outra diz da, aos negócios. De qualquer modo,
que, quanto mais celeridade exigir o pela sua combinação estabelecem-se as
assunto em questão, tanto mais se deve melhores relações que se podem dar à
abreviar a diferença prescrita na divi­ pluralidade para pronunciar-se.

C a p ít u l o III

Das eleições

Relativamente às eleições do prín­ da sorte se inclui mais na natureza da


cipe e do magistrado, que são, como já democracia, na qual a administração é
disse, atos complexos421, há duas tanto melhor quanto, nela, menos se
maneiras para processá-las, a saber: a multiplicam os atos42 5.
escolha e a sorte. Uma e outra foram Em toda a verdadeira democracia, a
empregadas em várias repúblicas e magistratura não é uma vantagem mas
ainda hoje encontra-se uma mistura uma carga onerosa, que não se pode
muito complicada de ambas na eleição justamente impor mais a um particular
do doge de Veneza42 2. do que a outro. Somente a Lei pode
“ O sufrágio pela sorte”, diz Montes- impor essa carga àquele sobre o qual a
quieu423, “pertence à natureza da sorte recairá, pois assim, tomando-se a
democracia.” Concordo, mas como se condição igual para todos e não depen­
explica tal coisa? “A sorte”, continua dendo a escolha de nenhuma vontade
ele, “é um modo de eleger que não afli­ humana, absolutamente não há qual­
ge ninguém: deixa a cada cidadão uma quer aplicação particular que altere a
razoável esperança de servir a pá­ universalidade da L ei42 6.
tria 42 4.” Isso não são razões. Na aristocracia, o príncipe escolhe o
Se considerarmos que a eleição dos
chefes constitui função do Governo, e 42 4 Para Jbem penetrar o sentido do sorteio
não da soberania, verse-á por que a via praticado na democracia ateniense, que é
exemplo invocado por Montesquieu no trecho
referido, devemos lembrar-nos do sentido
421 V. Livro II, capítulo XVII, onde se expõe sagrado de que se imbuía toda a vida cívica da
tal “complexidade”, e as notas sobre a “ambi­ cidade antiga. “O homem que a sorte aponta,
güidade” que certos comentaristas julgarh dizendo que é caro aos deuses e parece-nos
encontrai- no texto. (N. de L. G. M.) justo que governe”, afirmava Platão nas L eis
422 Eis o sistema que, segundo Beaulavon, (Livro III). (N. de L. G. M.)
operou em Veneza do século XIII ao fim da 42 5 A repetição a evitar é a intervenção do
república: 1.°) o Grande Conselho elegia 30 povo numa decisão que, pelo seu caráter parti­
cidadãos; 2.°) os 30 elegiam 9; 3.°) os 9 ele­ cular, escapa à sua função de firmar leis
giam 40; 4.°) dos 40 sorteavam-se 12; 5.°) os gerais. A sorte substituía um desses atos parti­
12 elegiam 25; 6 .°) deles, sorteavam-se 9; 7.°) culares: a eleição. (N. de L. G. M.)
os 9 elegiam 25; 8 .°) dos 25, sorteavam-se 11; 42 6 A sorte enquadra-se, assim, na teoria da
9.°) os 11 elegiam 41; 10.°) os 41 elegiam o vontade geral, tanto evitando o desvio egoísta
doge. (N. de L. G. M.) do eleitor ao votar, quanto supondo a igual­
423 No D o Espírito das Leis, 1. II, c. II. (N. de dade de todos enquanto candidatos presumí­
L. G. M.) veis. (N. de L. G. M.)
DO CONTRATO SOCIAL 129

príncipe, o Governo se conserva por si As eleições pela sorte apresentariam


mesmo; nela, cabem melhor os sufrá­ poucos inconvenientes numa democra­
gios42 7. cia onde, todos sendo iguais tanto
O exemplo da eleição do doge de pelos costumes e pelos talentos quanto
Veneza, longe de destruir, confirma pelas máximas e pela fortuna, a esco­
essa distinção: tal forma combinada lha se tornasse quase indiferente. Já
convém a um Governo misto. É um disse, porém, que não há, de modo
erro considerar o Governo de Veneza algum, uma verdadeira democra­
como uma verdadeira aristocracia. Se
cia 430.
lá o povo de modo algum participa do
Governo, a nobreza é o próprio povo. Quando a escolha e a sorte se
Uma multidão de pobres barnabo- encontram misturadas, a primeira deve
tes428 nunca se achegou a qualquer preencher os lugares que exijam talen­
magistratura, e de sua nobreza só tem tos apropriados, tais como os cargos
o vão título de Excelência e o direito militares 4 31, e a outra convém àqueles
de assistir ao grande Conselho. Nesse
grande Conselho, tão numeroso quan­ 429 Yvernois, autor do Quadro das Duas Úl­
to o nosso Conselho geral de Genebra, timas Revoluções de Genebra (1789), e Picot,
cuja História de Genebra apareceu depois,
os ilustres membros não têm mais foram os dois historiadores genebrinos de que
privilégios do que os nossos simples se valeu G. Petitain para compor sua famosa
cidadãos. É certo que, pondo-se de nota sobre aquela república, tal como figura
parte a extrema disparidade das duas na edição de 1819-20 das obras de Rousseau.
repúblicas429, a burguesia de Genebra Aí se registra que Genebra, longe da igualdade
civil e política, conhecia cinco classes distin­
representa exatamente o patriciado tas: os cidadãos (por direito de nascimento) e
veneziano; nossos nativos e habitantes os burgueses (por carta de burguesia) partici­
representam os citadinos e o povo de pavam do Governo, havendo ainda os habitan­
Veneza; nossos camponeses, os súditos tes (estrangeiros que adquiriam o direito de
residência na cidade), os nativos (filhos dos
da terra firme; enfim, de qualquer precedentes) e os súditos (quantos, sem qual­
modo que se considere essa república, quer outro título, vivessem na cidade). Tam­
abstração feita do tamanho, seu G o­ bém o Governo conhecia cinco divisões: o
verno não tem mais aristocracia do Pequeno Conselho, com 25 membros vitalí­
cios; quatro síndicos, anualmente eleitos pelo
que o nosso. Toda a diferença reside Conselho Geral para dirigir o Pequeno Conse­
no fato de, não possuindo nenhum lho; o Conselho dos Duzentos, que, não obs­
chefe vitalício, não sentirmos a mesma tante, chegou a 250 membros e que preenchia
necessidade de sorteio. os postos vacantes do Pequeno Conselho,
sendo por este eleito; o Conselho dos Sessenta,
composto pelo Pequeno Conselho e por mais
4 2 7 O Governo, por sua função destinado a 35 membros do Conselho dos Duzentos,
tomar decisões particulares (v. nota 425 é devendo deliberar sobre matéria secreta e
particularmente apto à eleição. (N. de L. G. diplomática; o Conselho Geral, composto por
M.)‘ todos os burgueses e cidadãos, sem poder de
428 Os pobres de Veneza moravam no bairro iniciativa e dependente de ratificação do Con­
de São Bamabé e daí essa denominação des- selho dos Duzentos. Até o tempo de Rousseau,
preziva de “barnabotti”. Voltaire reprovou nunca o Conselho Geral passou de 1 600
Rousseau por recorrer a termo tão vulgar, com membros. (Cf. nota 422, supra.) (N. de L. G.
o que reflete bem sua concepção da história, M.)
que deveria ser solene e “dignificadora” da 430 Isto é, Governo direto e total por todo o
realidade. Rousseau, além de ter adquirido, povo. Aí a eleição dos magistrados seria, real­
quando em Veneza, o hábito da palavra então mente, compreensível. (N. de L. G. M.)
corrente, também sempre propendeu a identi­ 431 Quando a democracia se firmou em Ate­
ficar a história com a realidade, vulgar ou não, nas, criou os estrategos, que eram eleitos e não
da vida humana. (N. de L. G. M.) sorteados. (N. de L. G. M.)
130 ROUSSEAU

a que bastam o bom senso, a justiça, a dar e de recolher os votos na assem­


integridade, tais como os cargos de bléia do povo; talvez, porém, a história
judicatura, pois num Estado bem cons­ da polícia romana, nesse sentido, o
tituído essas qualidades são comuns a explique mais precisamente do que
todos os cidadãos432. todas as máximas que eu pudesse esta­
Nem a sorte, nem os sufrágios têm belecer. Não é indigno de um leitor
qualquer cabimento no Governo mo­ judicioso estudar um tanto detalhada­
nárquico. Sendo o monarca, de direito, mente como se tratava dos assuntos
públicos e particulares núm conselho
o único príncipe e magistrado, per­ de duzentos mil homens.
tence somente a ele a escolha de seus
auxiliares diretos. Quando o Padre de 432 Porque o Estado bem constituído incita,
Saint-Pierre propôs433 multiplicar os ou melhor, não abafa o desenvolvimento des­
conselhos do rei de França e eleger sas qualidades. (N. de L. G. M.)
seus membros por escrutínio, não per­ 433 No Discurso sobre a P o lissin o d ia (ll63),
que fez seu autor perder a cadeira da Acade­
cebia estar propondo a mudança da mia. Rousseau dele fizera um resumo crítico
forma de governo. que, com o do Projeto da Paz Perpétua, figura
Teria ainda de falar da maneira de neste volume. (N. de L. G. M.)

C a p ít u l o IV

Dos comícios romanos

Não possuímos qualquer documento indícios de que a maioria das coisas


bastante legítimo dos primeiros tempos que se dizem a tal propósito não passe
de R om a43 4, havendo mesmo muitos dè fábulas 43 5 e, em geral, a parte mais
43 4 Aqlii — ao contrário do que sucedeu em
instrutiva dos anais dos povos, que é a
passagens anteriores — , Rousseau reconhece história de seu estabelecimento, é a que
a necessidade de pôr em dúvida o que afirma­
vam os historiadores seus contemporâneos
43 5 A palavra Roma, que se julga vir de
acerca da Roma do primeiro século. Atende,
assim, à revisão critica iniciada por Beaufort, Romulus, é grega e significa força; a palavra
em 1738, com sua Dissertação sobre a Incer­ Numa tambéni é grega e significa lei. Que
teza dos Primeiros Cinco Séculos da História dizer de terem os dois primeiros reis dessa ci­
Romana. Traça um panorama da vida política dade usado, por antecipação, nomes tão de
da república ao qual não falta aquela segu­ acordo com o que fizeram?* (N. do A.)
rança que só o conhecimento da matéria pode * Esta nota caíra em descrédito — Voltaire
dar. Dreyfus-Brisac apontou, documentada- assinalava que “nomos” pouca relação tem
mente, que a fonte principal desse capítulo, com Numa; Beaulavon registrou que a etimo­
inclusive no que respeita às citações, está em logia de Roma é, hoje, muito diversamente
Sigonius, cujo Direito Antigo dos Cidadãos conceituada. Não obstante, o filólogo G.
Romanos foi obra possuída e compulsada por Dumezil, em Mitra Varuna: Ensaio sobre
Rousseau. A fonte era boa, e Rousseau soube Duas Representações Indo-Européias da Sobe­
compilar os dados. Seu retrato da política ro­ rania (1940), afirma que os dois primeiros reis
mana permanece sólido e coerente em relação de Roma são figurações míticas das duas fei­
aos conhecimentos do século XVIII, tornan­ ções da soberania, que deve ser forte, como o
do-se descabido pô-lo em confronto com o jovem e belicoso Rômulo, e justa, como o
que, desde então, a historiografia e a crítica velho legislador Numa. As festas rituais, as
vêm desvendando de novo. Não obstante, pela lupercálias e as flamínias ainda mais acen­
extensão e, até certo ponto, pelo conteúdo tuam essa simbologia. Bertrand de Jouvenel,
(pois, afinal, não devera passar de simples em 1947, anotou o paralelismo com a interpre­
exemplo), destoa indisfarçavelmente no con­ tação de Rousseau, numa nota à sua edição do
junto do Contrato Social. (N. de L. G. M.) Contrato. (Genebra, 1947.) (N. de L. G. M.)
DO CONTRATO SOCIAL 131

mais nos falta. A experiência nos ensi­ ção, uma polícia conveniente à capital
na todos os dias quais as causas que do mundo.
determinam as revoluções dos impé­ Dessa primeira divisão logo resultou
rios; como, no entanto, não se formam um inconveniente — é que, conti­
mais povos, não dispomos senão de nuando a tribo dos albanos43 7 e a dos
conjeturas para explicar como se for­ sabinos438 sempre no mesmo estado,
maram. enquanto a dos estrangeiros439 crescia
Os usos que encontramos estabele­ sem cessar, devido ao seu perpétuo
cidos atestam pelo menos que tiveram afluxo, esta última não tardou em
uma origem. Das tradições que remon­ ultrapassar as duas outras. O remédio
tam a essas origens, as que são apoia­ que Sérvio encontrou para esse abuso
das pelas maiores autoridades, e que perigoso foi mudar a divisão, abolindo
por razões mais fortes se confirmam, as raças e substituindo-as por outra
devem ser consideradas como as mais divisão baseada nos lugares da cidade
certas. São essas as máximas que me ocupados por cada tribo. Em lugar de
esforcei por seguir ao perquirir como o três tribos, organizou quatro, cada
povo mais livre e mais potente da terra uma das quais ocupava uma colina de
exerceu seu poder supremo. Roma e lhe trazia o nome. Reme­
Depois da fundação de Roma, a diando desse modo a desigualdade pre­
república nascente, isto é, o exército de sente, preveniu-a ainda para o futuro e,
fundadores composto por albanos, sa- a fim de que essa divisão não fosse
binos e estrangeiros43 6, foi dividida somente de lugares, mas também de
em três classes que, a partir dessa divi­ homens, proibiu aos habitantes passa­
são, receberam o nome de tribos. Cada rem de uma para outra divisão, o que
uma dessas tribos foi subdividida em impediu as raças de se misturarem.
dez cúrias e cada cúria em decúrias, à Dobrou também as três antigas ccn-
frente das quais se colocaram chefes túrias de cavalaria e acrescentou-lhes
chamados curiões e decuriÕes. doze outras, mas sempre sob os anti­
gos nojnes, meio simples e judicioso
Além disso, tirou-se de cada tribo pelo qual acabou por distinguir o
um corpo de cem cavaleiros ou cava­ corpo dos cavalheiros do corpo do
lheiros, chamado centúria, por onde se povo, sem suscitar murmúrios deste
vê que essas divisões, pouco necessá­ último.
rias num burgo, não eram a princípio A essas quatro tribos urbanas, Sér­
senão militares. Parece, porém, que um vio acrescentou quinze outras, chama­
instinto de grandeza levou a cidade- das tribos rústicas, por serem forma­
zinha de Roma a dar-se, por antecipa- das de habitantes do campo, divididas
em outros tantos cantões. Mais tarde,
43 6 Ainda hoje, essa questão histórica resta introduziram-se outras tantas novas e
em dúvida e sujeita a hipóteses interpretativas
mais ou menos bem fundadas. Do ponto de o povo romano encontrou-se, por fim,
vista da história dos fatos, Piganiol, no Ensaio dividido em trinta e cinco tribos, nú­
sobre as Origens de R o m a (1917), crê que o mero a que se cingiram até o fim da
povoamento se fez por invasores ários (alba­ república.
nos) e imigrantes lígures (sabinos), aos quais se D a distinção entre as tribos'cia cida-
juntaram etruscos-úmbrios (lúceres). Do ponto
de vista mítico, Dumezil (v. nota anterior)
acredita que rammenses, tícios e lúceres 43 7 Rammenses. (N. do A.)
correspondem menos a etnias do que a funções 43 8 Tatienses*. (N. do A.)
sociais (religiosa, bélica e agrícola) distintas * Ou tícios. (N. de L. G. M.)
(N ascim ento de R om a, 1944). (N. de L. G. M.) 43 9 Lúceres. (N. do A.)
132 ROUSSEAU

de e as do campo resultou um fato tos que, apesar de ter-se tornado cida­


digno de nota, pois de modo algum dão, chegasse a qualquer magistratura.
existe exemplo semelhante e Roma a Essa máxima era excelente, mas foi
isso deveu a conservação de seus cos­ levada tão longe, que dela resultou afi­
tumes e o crescimento de seu império. nal uma mudança e, certamente, um
Poder-se-ia crer que as tribos urbanas abuso na polícia.
logo se atirassem ao poder e às honra­ Primeiro, os censores, depois de, por
rias, e não tardassem em humilhar as muito tempo, se terem arrogado o
tribos rústicas. Aconteceu justamente direito de transferir arbitrariamente os
o contrário. Conhece-se o gosto dos cidadãos de uma para outra tribo, per­
antigos romanos pela vida campestre. mitiram que a maioria se inscrevesse
Esse gosto lhes vinha do sábio insti­ onde mais lhe aprouvesse, permissão
tuidor que uniu, à liberdade, os traba­ que certamente não era boa para nin­
lhos rústicos e militares e, por assim guém e privava a censura de um de
dizer, relegou à cidade as artes, os ofí­ seus grandes recursos. Além disso,
cios, a intriga, a fortuna e a escravi­ como os grandes e os poderosos se ins­
dão. creviam todos nas tribos do campo, e
Assim, tudo o que Roma tinha de os libertos, tornando-se cidadãos, fica­
ilustre vivia nos campos e cultivava as vam nas cidades com a populaça, em
terras, tornando-se costume só aí pro­ geral as tribos não mais tiveram nem
curar os esteios da república. Sendo sede nem território, porém todas se
esse o estado dos mais dignos patrí­ encontraram de tal modo misturadas,
cios, acabou respeitado por todos; a que não se podiam mais discernir os
vida simples e trabalhosa dos campo­ membros de cada uma senão pelos
neses foi preferida à vida ociosa e cor­ registros. Desse modo, o conceito da
rupta dos burgueses de Roma, e não palavra tribo passou de real4 4 0 a pes­
houve quem, infeliz proletário na cida­ soal, ou antes, tornou-se quase uma
de, não se tomasse, como trabalhador quimera.
dos campos, cidadão respeitável. Não Aconteceu ainda que, estando mais
foi sem motivo, dizia Varrão, que nos­ ao alcance, as tribos da cidade com
sos magnânimos ancestrais estabele­ maior facilidade mostravam-se mais
ceram na aldeia o viveiro desses ho­ fortes nos comícios e venderam o Esta­
mens fortes e bravos que os defendiam do àqueles que conseguiam comprar os
em tempo de guerra e os nutriam em sufrágios da canalha que as compu­
tempo de paz. Plínio diz positivamente nha.
que as tribos dos campos eram dignifi­ Relativamente às cúrias, o institu-
cadas por causa dos homens que as to r4 41, tendo feito dez em cada tribo,
compunham, enquanto, para ignomí todo o povo romano, por encontrar-se
nia, se transferiam para as da cidade então fechado dentro dos muros da
os frouxos que se queriam castigar. O cidade, passou a compor-se de trinta
sabino Ápio Cláudio, tendo vindo cúrias, das quais cada uma possuía
instalar-se em Roma, foi aí cumulado seus templos, seus deuses, oficiantes,
de honrarias e inscrito numa tribo rús­ sacerdotes e festas, chamadas compita-
tica que, depois, tomou o nome de sua
família. Por fím, os libertos entravam
4 40 Relativa aos bens, à propriedade imobi­
sempre nas tribos urbanas e nunca nas liária. (N. de L. G. M.)
rurais, e em toda a república não há 4 41 Rômulo, o primeiro e legendário institui­
um único exemplo de um desses liber­ dor. (N. de L. G. M.)
DO CONTRATO SOCIAL 133

lia, semelhantes às paganalia que mais forma, Sérvio simulou4 42 dar-lhe fei­
tarde apareceram entre as tribos rústi­ ção militar. Incluiu na segunda classe
cas. duas centúrias de escudeiros, e duas de
Quando da nova divisão feita por máquinas de guerra, na quarta; em
Sérvio, não podendo esse total de trin­ cada classe, com exceção da última,
ta ser igualmente dividido entre as qua­ distinguiu os jovens dos velhos, isto é,
tro tribos, não quis nele tocar. As aqueles que ficavam obrigados a trazer
cúrias, independentes das tribos, torna­ armas dos que, pela idade, disto esta­
ram-se uma outra divisão dos habitan­ vam isentos pela lei, distinção que,
tes de Roma, mas de modo algum se mais do que a dos bens, determinou a
cogitou das cúrias, nem entre as tribos necessidade de freqüentemente refazer
rústicas nem entre o povo que as com­ o censo ou a contagem. Por fim, quis
punha, porque, tornando-se as tribos que a assembléia se reunisse no
um estabelecimento puramente civil e Campo de Marte e que todos os que
introduzindo-se uma outra polícia para estivessem em idade de prestar serviço
o recrutamento das tropas, as divisões comparecessem armados.
militares de Rômulo tornaram-se su­ O motivo pelo qual não adotou na
pérfluas. Assim, embora estando todo última classe essa mesma divisão entre
cidadão inscrito numa tribo, dificil­ jovens e velhos é que se não concedia
mente não estaria cada um inscrito ao populacho, de que se formava, a
também numa cúria. honra de carregar armas para a defesa
Sérvio estabeleceu ainda uma ter­ da pátria; era preciso ter lar para obter
ceira divisão, que não tinha nenhuma o direito de defendê-lo e, dessas inúme­
relação com as precedentes, e, por seus ras tropas de mendigos que hoje bri­
resultados, se tomou a mais impor­ lham nos exércitos dos reis, não have­
tante de todas. Distribuiu todo o povo ria talvez um só que não fosse
romano em seis classes, que não distin­ rechaçado com desprezo de uma coor­
guiu nem pelo lugar nem pelos ho­ te romana, quando os soldados eram
mens, mas sim pelos bens. Desse os defensores da liberdade.
modo, as primeiras classes eram ocu­ Não obstante, distinguiam-se ainda,
padas pelos ricos, as últimas pelos po­ na última classe, os proletários daque ­
bres e as médias por aqueles que goza­ les que chamavam capite censi. Os pri­
vam de fortuna medíocre. Essas seis meiros, que não se encontravam com­
classes dividiam-se em cento e noventa pletamente reduzidos a nada, davam,
e três outros corpos, chamados centú­ ao menos, cidadãos ao Estado e, a\gu-
rias, e esses corpos eram distribuídos mas vezes, nas necessidades urgentes,
de tal modo, que só a primeira classe soldados. Aqueles que não tinham
compreendia mais da metade deles, e a absolutamente nada e que só podiam
última formava um único. Resultou ser contados pela cabeça eram consi­
que a classe menos numerosa em ho­ derados nulos e foi Mário o primeiro a
mens era a mais numerosa em centú­ se dignar arrolá-los.
rias, e que a última classe só represen­ Sem afirmar aqui se esse terceiro
tava uma subdivisão, ainda que
4 42 A alegada simulação atribuiria a Sérvio
compreendesse, sozinha, mais da meta­
uma argúcia sobre-humana, porém as necessi­
de dos habitantes de Roma. dades militares de Roma parecem suficiente­
A fim de que o povo percebesse mente exigentes para explicar a utilização dire­
menos as conseqüências desta última ta dessa composição política. (N. de L. G. M.)
134 ROUSSEAU

arrolamento era bom ou mau em si nos comícios, e, como não havia cida­
mesmo, creio poder afirmar que ele dão que não estivesse inscrito numa
somente se tornou possível devido aos cúria, numa centúria ou numa tribo,
costumes simples dos primeiros roma­ conclui-se que nenhum cidadão era
nos, seu desinteresse, seu gosto pela excluído do direito do sufrágio e que o
agricultura, seu desprezo pelo comér­ povo romano era verdadeiramente so­
cio e Dela febre do ganho. Qual seria o berano de direito e de fato.
povo moderno a que a devoradora avi­ Para que os comícios fossem legiti­
dez, o espírito inquieto, a intriga, os
mamente convocados e para que aqui­
deslocamentos contínuos, as perpétuas lo que neles se fazia tivesse força de lei,
revoluções das fortunas permitiriam impunham-se três condições: primeira,
durar vinte anos um tal arranjo sem que o corpo, ou o magistrado, que as
perturbar todo o Estado? É preciso
mesmo notar que os costumes e a cen­ convocasse estivesse para tanto reves­
sura, mais forte que essa instituição, tido da autoridade necessária; segun­
corrigiram o vício em Roma, e que um da, que a assembléia se realizasse num
certo rico se viu relegado à classe dos dos dias permitidos pela lei; terceira,
pobres por ter ostentado em demasia a que os augúrios fossem favoráveis.
sua riqueza. O motivo da primeira exigência não
Por tudo isso pode-se facilmente precisa ser explicado; a segunda é uma
compreender por que quase sempre se questão de polícia, pois assim não se
faz menção a cinco classes, apesar de permitia que se realizassem os comí­
terem, realmente, existido seis. A sexta, cios nos dias nefastos e nos dias de
não fornecendo nem soldados ao exér­ mercado nos quais as pessoas do
cito, nem votantes ao Campo de campo, vindas a Roma para negócios,
Marte 4 43, e não sendo quase de nenhu­ não tinham tempo para passar o dia na
ma utilidade na república, raramente praça pública. Por meio da terceira, o
era contada para alguma coisa. senado refreava um povo orgulhoso e
Tais foram as várias divisões do reclamador, e temperava conveniente­
povo romano. Vejamos, agora, o efeito mente o ardor dos tribunos sediciosos,
que produziam nas assembléias. Essas porém estes encontraram mais de um
assembléias, legitimamente convoca­ meio para se livrarem de tal incômodo.
das, chamavam-se comícios . Realiza­ As leis e as eleições dos chefes não
vam-se comumente na praça de eram os- únicos pontos submetidos ao
R om a4 4 4 ou no Campo de Marte e julgamento dos comícios; tendo o povo
distinguiam-se em comícios por cúrias, romano usurpado as funções mais
comícios por centúrias e comícios por importantes do Governo, pode-se dizer
tribos, segundo aquela dessas três for­ que o destino da Europa era regula­
mas para a qual eram ordenadas. Os mentado nessas assembléias. Essa va­
comícios por cúrias ligavam-se à insti­ riedade de objetivos dava lugar às vá­
tuição de Rômulo; os por centúrias, à rias formas que tomavam as
de Sérvio; os por tribos, à dos tribunos assembléias, de acordo com os assun­
do povo. Nenhuma lei recebia sanção, tos sobre os quais tinham de pronun­
nenhum magistrado era eleito senão ciar-se.
Para julgar essas diversas formas,
4 43 Digo no C am po de M arte, porque era aí basta compará-las. Rômulo, ao insti­
que se reuniam os comícios por centúrias; nas
duas outras formas, o povo se reunia no
tuir as cúrias4 4 5, tinha em vista conter
F or um ou em outro lugar, e então os capite
censi tinham tanta influência e autoridade 4 4 5 Rousseau ja ressalvou a possibilidade de
quanto os primeiros cidadãos. (N. do A.) tratar-se de uma instituição puramente legen­
4 4 4 Ou seja, no Forum. (N. de L. G. M.) dária, como hoje sabemos ser. (N. de L. G. M.)
DO CONTRATO SOCIAL 135

o senado pelo povo e este pelo senado, classe suplantava em número de votos
dominando igualmente a todos. Deu, todas as outras. Quando todas essas
pois, ao povo, por esse meio, toda a centúrias estavam de acordo, nem se
autoridade do número para equilibrar continuava a recolher sufrágios; o que
a do poder e das riquezas que deixava o menor número tinha decidido passa­
aos patrícios. Mas, de acordo com o va como decisão da multidão e pode-se
espírito da monarquia, deixou, no dizer que, nos comícios por centúrias,
entanto, maior vantagem aos patrícios, os assuntos se regulamentavam muito
dada a influência de seus clientes na mais pela pluralidade dos escudos do
pluralidade dos sufrágios. Essa admi­ que pela dos votos.
rável instituição dos patrões e dos Essa extrema autoridade, porém, era
clientes foi uma obra-prima de política contrabalançada de dois modos: pri­
e de humanidade sem a qual o patri-
meiro, de ordinário, os tribuiios e, sem­
ciado, tão contrário ao espírito da
pre, um grande número de plebeus,
república, não poderia ter subsistido.
Somente Roma teve a honra de dar ao pertencendo à classe dos ricos, contra­
mundo esse belo exemplo, do qual ja ­ balançavam o crédito dos patrícios
mais resultaram abusos e que não obs­ nessa primeira classe.
tante nunca se repetiu. O segundo meio consistia no seguin­
te: em lugar de fazer-se de início vota­
Tendo essa mesma forma de cúria
rem as centúrias pela sua ordem, o que
subsistido sob os reis até Sérvio, não
sendo considerado legítimo o reino do sempre teria feito começar pela primei­
último Tarqüínio, tal coisa fez com ra, escolhia-se uma pela sorte e
que se distinguissem em geral as leis essa4 4 6 procedia sozinha à eleição; de­
reais pelo nome de leges curiatae. pois disso, todas as centúrias, chama­
das num outro dia de acordo com a
Sob a república, as cúrias, sempre
limitadas às quatro tribos urbanas e só sua classificação, repetiam a mesma
compreendendo o populacho de Roma, eleição, e comumente a confirma­
não podiam convir nem ao senado, que v am 4 4 7 . Destituía-se assim a hierar­
se colocava à frente dos patrícios, nem quia da autoridade do exemplo, para
aos tribunos, que, apesar de plebeus, se atribuí-la à sorte, segundo o princípio
colocavam à frente dos cidadãos abas­ da democracia.
tados. Caíram, pois, no descrédito e Resultava desse uso ainda outra
sua degradação foi tal, que seus trinta vantagem, qual seja a de os cidadãos
litores reunidos faziam o que os comí­ do campo terem tempo, entre as duas
cios por cúrias deveriam fazer. eleições, para se informar quanto ao
A divisão por centúrias era tão favo­ mérito do candidato provisoriamente
rável à aristocracia, que a princípio nomeado, a fim de só dar seu voto com
não se percebia como o senado não conhecimento de causa. Mas, a pre­
vencia sempre nos comícios que tra­ texto de celeridade, chegou-se ao ponto
ziam esse nome e pelos quais eram de abolir esse uso e as duas eleições
eleitos os cônsules, os censores e os de­ passaram a ser feitas no mesmo dia.
mais magistrados curuis. Com efeito,
das cento e noventa e três centúrias 4 4 6 Essa centúria, tirada assim ao acaso, cha­
que formavam as seis classes de todo o mava-se proerogativa, por ser ela a primeira a
quem se pedia o sufrágio, e daí veio a palavra
povo romano, a primeira compreendia prerrogativa. (N. do A.)
noventa e oito, e, só se contando os 4 4 7 Foi Caio Graco o autor dessa reforma.
votos por centúrias, só esta primeira (N. de L. G. M.)
136 ROUSSEAU

Os comícios por tribos eram pro­ maus desígnios, acabaram por cair no
priamente o Conselho do povo roma­ descrédito, abstendo-se os próprios
no. Só eram convocados pelos tribu­ sediciosos de um meio que lhes punha
nos; os tribunos neles eram eleitos, e os projetos demasiado à mostra. É ver­
neles aprovados os plebiscitos. Não dade que toda a majestade do povo ro­
somente o senado aí não fruía de mano só se encontrava nos comícios
nenhuma posição especial como tam­ por centúrias, os únicos completos,
bém não possuía sequer o direito de a porquanto nos comícios por cúrias fal­
eles assistir 4 48 e, obrigados a obedecer tavam as tribos rústicas e, nos comí­
a leis que não haviam podido votar, os cios por tribos, o senado e os patrícios.
senadores eram nesse ponto menos li­ Quanto à maneira de recolher os
vres do que os últimos cidadãos. Essa sufrágios, era, entre os primeiros roma­
injustiça era, de todo, mal compreen­ nos, tão simples quanto os seus costu­
dida, e bastaria só ela para invalidar os mes, embora menos simples ainda do
decretos de um corpo no qual não que em Esparta. Cada um dava seu
eram admitidos todos os seus mem­ sufrágio em voz alta, um escrivão os
bros4 49. Mesmo que todos os patrícios anotava à medida que iam sendo
assistissem a esses comícios de acordo dados; a pluralidade de votos em cada
com o direito que tinham como cida­ tribo determinava o sufrágio da tribo;
dãos, tornando-se então simples parti­ a pluralidade de votos entre as tribos
culares, não teriam sequer influído determinava o sufrágio do povo; assim
numa forma de sufrágios que se conta­ também para as cúrias e as centúrias.
vam por cabeça e na qual o mais ínfi­ Esse uso aproveitou enquanto domi­
mo proletário podia tanto quanto o nava entre os cidadãos a honestidade e
príncipe do senado. cada um envergonhava-se de dar publi­
Vê-se pois que, além da ordem resul­ camente seu sufrágio a um projeto
tante dessas várias distribuições para a injusto ou a um súdito indigno, mas,
contagem dos sufrágios de um povo quando o povo se corrompeu e se pas­
tão numeroso, essas distribuições não sou a comprar os votos, tornou-se mais
se reduziam a formas indiferentes em conveniente que fossem dados em
si mesmas, dando cada uma efeitos segredo, a fim de conter os compra­
relativos aos fins que as tornavam dores pela desconfiança e também
preferidas. para fornecer aos velhacos um meio de
Sem entrar, a esse respeito, em mais não se tornarem traidores.
numerosos pormenores, resulta dos Bem sei que Cícero censura essa
esclarecimentos precedentes que os mudança e, em parte, lhe atribui a
comícios por tribos eram mais favorá­ ruína da república4 50. Mas, ainda que
veis ao Governo popular, e os comí­ sinta o peso que deve ter aqui a autori­
cios por centúrias, à aristocracia. Rela­ dade de Cícero, não posso concordar
tivamente aos comícios por cúrias, nos com ele; penso, ao contrário, que, por
quais somente o populacho de Roma não se ter praticado um número sufi­
formava a pluralidade, como só ser­ ciente de mudanças semelhantes, se
viam para favorecer a tirania e os acelerou a perda do Estado. Como o
regime das pessoas sãs não é apro­
4 48 Nem o senado tinha, coletivamente, um priado aos doentes, não se deve querer
posto superior nesses comícios, nem os sena­ governar um povo corrompido pelas
dores podiam deles participar. (N. de L. G. M.)
4 49 Pois nem todos os cidadãos participavam
desses comícios. (N. de L. G. M.) 4 50 N o D e L e g ib u s, IV. (N . de L. G . M.)
DO CONTRATO SOCIAL 137

mesmas leis que convêm a um povo qüentemente recorrer a expedientes


bom. N ada prova melhor essa máxima extraordinários para suprir a insufi­
do que a duração da república de ciência das leis; às vezes, supunham-se
Veneza, cujo simulacro ainda existe, prodígios, mas esse meio, que podia
unicamente porque suas leis só convêm enganar o povo, não enganava aqueles
a homens maus. que o governavam; outras vezes, con­
Distribuíram-se, pois, aos cidadãos vocava-se bruscamente uma assem­
umas tabuinhas 4 51, com as quais cada bléia antes que os candidatos houves­
um podia votar sem que se soubesse sem tido o tempo de fazer as suas
quai era a sua opinião; estabeleceram- intrigas; outras vezes ainda, gastava-se
se também novas formalidades para o toda uma sessão falando, quando se
recolhimento das tabuinhas, a conta­ via o povo, já conquistado, disposto a
gem dos votos, a comparação dos nú­ tom ar um mau partido. Por fim,
meros, etc.; isso não impediu que porém, a ambição tudo frustrou e
freqüentemente se suspeitasse da fideli­ incrível é que, em meio a tantos abu­
dade dos funcionários encarregados sos, esse povo imenso, graças a seus
dessas funções4 52. Fizeram*se ainda, antigos regulamentos, não deixava de
para impedir a intriga e o tráfico dos eleger magistrados, de aprovar leis, de
sufrágios, editos cujo grande número julgar as causas, de resolver os negó­
mostra a inutilidade. cios particulares e públicos, quase com
a mesma facilidade com que o poderia
Nos últimos tempos, impôs-se fre­ ter feito o próprio senado.

4 5 1 As leis que adotaram essa reforma fica­ 4 52 C ustodes, diribitores*, rogatores sujfra-
ram conhecidas como “tabelárias” (139-107 a. giorum . (N. do A.)
C.). O voto se resumia a um “A ” (significando * Halbwachs anota que “diribitores” surge,
“antiquo”, isto é, o que já está estabelecido) ou na edição de 1782 do C ontrato , onde antes
a um “V. R.” (que significa “uti rogas”, ou (edição de 1762) se lia “distributores”. A
seja, a aprovação da mudança proposta). (N. variante escapou a Vaughan e a Dreyfus-
de L. G. M.) Brisac. (N. de L. G. M.)

C a p ítu lo V

Do tribunato

Quando não se pode estabelecer ainda, simultaneamente, caso seja ne­


uma proporção exata entre as partes cessário, de ambos os lados4 53.
constitutivas do Estado, ou quando Esse corpo, que chamarei de tribu­
causas indestrutíveis lhes alteram in­ nato, é o conservador das leis e do
cessantemente as relações, institui-se
4 53 Em termos mais simples: o corpo inter­
então uma magistratura particular que mediário deverá ver se o Governo detém todo
absolutamente não forma corpo com o poder do soberano e, em contrapartida, se
todo esse poder é utiiizado no interesse público
as outras, que torna a colocar cada e só nele. Em verdade, o tribunato, tal como o
termo na sua verdadeira relação e que concebe Rousseau, jamais se concretizou e não
estabelece uma ligação ou um termo se confunde quer com a instituição romana,
quer com os órgãos franceses do consulado e
médio quer entre o príncipe e o povo, do império que tiveram semelhante denomina­
quer entre o príncipe e o soberano, ou ção. (N. de L. G. M.)
138 ROUSSEAU

poder legislativo. Serve, algumas o poder executivo, de que é unicamente


vezes, para proteger o soberano contra o moderador, e quaiido quer outorgar
o Governo, como em Roma. faziam os leis, que apenas deve proteger. O enor­
tribunos do povo4 5 4; outras vezes, me poder dos éforos, que não consti­
para sustentar o Governo contra o tuiu perigo enquanto Esparta conser­
povo, como atualmente em Veneza faz vou seus costumes, acelerou a
o Conselho dos Dez, e, outras vezes corrupção uma vez começada. O san­
ainda, para manter o equilíbrio de um gue de Agis, degolado por esses tira­
lado e de outro, como os éforos o fa­ nos, foi vingado por seu sucessor; o
ziam em E sparta4 5 5. crime e o castigo dos éforos apressa­
O tribunato não é certamente uma ram igualmente a perda da república e,
parte constitutiva da pó lis e não deve depois de Cleômenes, Esparta nada
ter nenhuma porção do poder legisla­ mais foi4 5 7. Roma pereceu ainda pela
tivo nem do executivo, e nisso exata­ mesma via e o poder excessivo dos tri­
mente está seu maior poder, pois, não bunos, usurpado grau por grau, serviu
podendo fazer nada, tudo pode impe­ por fim, com o auxílio das leis feitas
dir. É mais sagrado e mais reveren­ para a liberdade, como salvaguarda
ciado, como defensor das leis, do que o dos imperadores que a destruíram 4 58.
príncipe que as executa e o soberano Quanto ao Conselho dos Dez em
que as dá. Foi o que se viu, muito Veneza, é um tribunal de sangue,
claramente, em Roma, quando aqueles detestável tanto aos patrícios quanto
patrícios orgulhosos, que sempre des­ ao povo e que, longe de proteger reso­
prezaram todo o povo, se sentiram for­ lutamente as leis, depois de sua degra­
çados a curvar-se diante de um mero dação não serve senão para desferir
funcionário do povo que não tinha nas trevas golpes que não se ousa
nem auspícios nem jurisdição 4 5 6. enxergar.
O tribunato sabiamente equilibrado O tribunato, como o Governo, se
representa o mais firme apoio de uma enfraquece pela multiplicação de seus
boa constituição, mas, por menor que membros. Quando os tribunos do povo
seja a força que possua em demasia, romano, a princípio em número de
tudo subverte; quanto à fraqueza, ela dois, depois de cinco, quiseram dupli­
não está em sua natureza: desde que car esse número, o senado permitiu
seja algo, nunca é menos do que deve­ que o fizessem, por estar certo de con­
ria ser. ter uns pelos outros, o que não deixou
Degenera em tirania quando usurpa de acontecer 4 59.
O melhor meio de prevenir as usur-
4 5 4 Assim também compreendeu Maquiavel
a função do tribuno romano (D écadas, I, IV). 4 5 7 Aqui se reconhece, segundo Halbwachs, a
Os historiadores modernos neles reconhecem narração, por Plutarco, da vida de Ágfs, que,
uma garantia do povo contra o Governo. (N. tentando restabelecer a velha lei espartana, foi
de L. G. M.) estrangulado pelos éforos, sendo vingado por
4 5 5 Se os éforos realmente deviam manter a Cleômenes, que voltou às regras de Licurgo.
disciplina no seio dos cidadãos, terá sido isso (N. de L. G. M.)
apenas um reforço da autoridade governa­ 4 5 8 César chamou a si o poder dos tribunos,
mental em face da resistência dos súditos. (N. que depois os imperadores jamais abandona­
de L. G. M.) riam. (N. de L. G. M.)
4 5 6 a origem plebéia do tribuno romano não 4 59 Esses dados históricos são bastante incer­
lhe conferia direito a auspícios nas eleições, tos (v. nota 436, supra). Só se sabe que, a par­
nem a séquito ou qualquer insígnia de sua fun­ tir de 471, se elegeram quatro tribunos e que o
ção. (N. de L. G. M.) número passou a dez em 457. (N. de L. G. M.)
DO CONTRATO SOCIAL 139

pações de um corpo tão temível — de com issões e x tra o r d in á r ia s .


meio sobre o qual nenhum Governo Esse meio me parece sem inconve­
até hoje refletiu — seria não tornar nientes, porque, como já disse, não
esse corpo permanente, mas estabe­ fazendo o tribunato parte da constitui­
lecer certos intervalos durante os quais ção, pode ser afastado sem que ela
ficaria suprimido. Tais intervalos, que sofra com isso. Tal coisa me parece
não devem ser suficientemente grandes muito eficaz, pois que um magistrado,
para permitir que os abusos encontrem novamente reinstalado, assim não
tempo de se fortalecer, podem ser fixa­ parte em absoluto do poder de que dis­
dos pela lei de modo a tornar fácil, punha um seu predecessor, mas daque­
caso necessário, o abreviá-los por meio le que a Lei lhe dá.

C a p itu lo VI

Da ditadura

A inflexibilidade das leis, que as im­ lidade ao mais digno. Essa comissão
pede de se ajustarem aos aconteci­ pode se dar de dois modos, segundo a
mentos, pode, em certos casos, torná- espécie do perigo.
las perniciosas e determinar, por seu Se, para remediá-lo, basta aumentar
intermédio, a perda do Estado em a atividade do Governo, há que con­
crise. A ordem e a lentidão das formas centrá-lo em um ou dois de seus mem­
exigem um lapso de tempo que às bros. Desse modo, não é a autoridade
vezes as circunstâncias recusam. das leis que se altera, mas somente a
Podem surgir mil casos que o Legisla­ forma de sua administração. Se o peri­
dor de modo algum preveniu, e será go for tal que o aparelho das leis repre­
previdência muito necessária saber-se sente um obstáculo a evitar, nomeia-se
que não se pode prever tudo. então um chefe supremo que faça com
Não se deve, pois, querer firmar as que todas as leis se calem e, por um
instituições políticas a ponto de afastar momento, suspenda a autoridade do
a possibilidade de suspender-lhes o soberano. Em tal caso, a vontade geral
efeito. Até Esparta deixou suas leis não é duvidosa e evidencia-se, como
cochilarem. primeira intenção do povo, que não pe­
Mas só os perigos muito grandes reça o Estado. Dessa maneira, de
podem compensar o de alterar a ordem modo algum a suspensão da autori­
pública, e jamais se deve sustar o dade legislativa abole a vontade geral:
poder sagrado das leis, senão quando o magistrado que a faz calar, não a
se tratà da salvação da pátria. Nesses pode fazer falar; domina-a, sem poder
casos raros e evidentes, previne-se a representá-la — pode fazer tudo,
segurança pública por um ato parti­ menos leis 4 61.
cular460 que confere a responsabi-
4 6 1 A vontade geral, para que pudesse indicar
4 60 Não se trata de estabelecer um novo regi­ um ditador, presumivelmente dispôs-se a obe­
me, alterando-se a lei de reorganização do decê-lo enquanto potência executiva, que outro
Estado, mas tão-só de indicar um governante limite não conhece senão o do termo de seu
de tipo especial para enfrentar uma determi­ mandato. Não obstante, a vontade geral,
nada conjuntura — o ato é, em tudo e por intransferível pela própria natureza, continua
tudo, particular. (N. de L. G. M.) intata, embora silenciosa, guardando seu ex-
140 ROUSSEAU

O primeiro meio era empregado vá-la além de seu mandato. Parecia, ao


pelo senado romano quando, por uma contrário, que um poder tão grande era
fórmula consagrada, encarregava os muito pesado para quem dele se reves­
cônsules de prover à salvação da repú­ tia, tanto se apressava em desfazer-se
blica. O segundo surgia quando um dele, como se ocupar o lugar das leis
dos dois cônsules nomeava um dita­ representasse um posto por demais pe­
d o r4 62; uso cujo exemplo Alba deu a noso e perigoso.
Roma. Não é ainda o perigo do abuso, mas
Nos começos da república, recor­ o da degradação, que me faz censurar
reu-se muito freqüentemente à ditadu­ o uso imoderado, nos primeiros tem­
ra, porque o Estado não dispunha pos, dessa magistratura suprema, pois,
ainda de uma situação bastante fixa conquanto a prodigalizassem em elei­
para suster-se unicamente pela força ções, em consagrações, em honrarias,
de sua constituição. em coisas de mera formalidade 4 63, era
Então, tom ando os costumes supér­ de temer-se que ela se tornasse menos
fluas muitas das precauções que foram temível quando necessária e que se
necessárias em outros tempos, não se acostumassem a considerar como um
temia que um ditador abusasse de sua título vão aquele que só se empregava
autoridade, nem que tentasse conser- em cerimônias vãs.
Pelo fim da república, os romanos,
tornando-se mais circunspectos, pou­
clusivo poder de ditar leis para quando voltar
a exprimir-se. Daí decorre, aliás, a necessidade
param a ditadura com tão pouco crité­
de só instalar-se a ditadura por breves perío­ rio quanto outrora a prodigaliza­
dos. O ponto importa, por igual, na medida em ram 4 6 4. Compreender-se-ia facilmente
que distingue nitidamente a ditadura definida que seu temor era infundado, que a fra­
por Rousseau das ditaduras modernas. Nestas, queza da capital valia como segurança
o ditador sempre surge como o suposto repre­
sentante, sem limitações, da vontade popular e contra os magistrados que tinha em
sua função é, de fato, ditar as leis a seu arbí­ seu seio; que um ditador, em certos
trio. Cabe ainda observar que, muito embora o casos, podia defender a liberdade pú­
discricionarismo italiano freqüentemente tenha blica sem jamais poder atentar contra
apelado para a doutrina de Maquiavel, este, ao
aludir à ditadura, sempre o fez de forma a
ela, e que os grilhões de Roma não se­
colocar-se em posição muito próxima à de riam de modo algum forjados na pró­
Rousseau. Ambos, aliás, partiam do prece­ pria Roma, mas nos seus exércitos. A
dente romano, o que já explica em boa parte a pouca resistência que Mário ofereceu a
tendência comum a só ver na ditadura um Sila, e Pompeu a César, mostrou muito
recurso republicano para as fases críticas,
porém, nas D écadas (1. I, CXXXIV), Maquia­ bem o que se poderia esperar da auto­
vel sublinha a necessária brevidade do expe­ ridade de dentro contra a força de fora.
diente como condição imprescindível para que Esse erro levou-os a cometerem
não se torne pernicioso ao Estado. Em suma, o
ditador, para Rousseau, seria aquele mesmo
servidor já definido ao tratar do executivo que, * A impressão de vergonha ou, pelo menos, de
excepcional e temporariamente, recebesse desagrado é igualmente registrada por Ma­
“carta branca” para o desempenho de seus quiavel (idem, ibidem). (N. de L. G. M.)
encargos, sem por isso deixar de ser servidor. 4 63 Com razão Beaulavon distingue os dita­
Em nossa história política, a atuação de Feijó dores nomeados para cerimônias sacras ou
no Ministério da Justiça é o único caso que civis, dos verdadeiros ditadores políticos, com
pode ser aproximado desse modelo de dita- os quais de comum só tinham o nome. (N. de
dor-repúblico. (N. de L. G. M.) L. G. M.)
4 62 Fazia-se essa nomeação à noite e em 4 6 4 Se Sila e César foram ainda ditadores, o
segredo, como se houvesse vergonha em colo­ título já incluía novas funções que anunciavam
car um homem acima das leis*. (N. do A.) o império. (N. de L. G. M.)
DO CONTRATO SOCIAL 141

muitas faltas, como, por exemplo, não não procurou o meio mais legítimo e
ter nomeado um ditador no caso de seguro de salvar o Estado, mas sim, o
Catilina. Tratando-se somente de um de receber toda a glória desse caso 4 6 6.
caso interno da cidade e, no máximo, Com muita justiça foi, portanto, glori­
de uma certa província da Itália, com a ficado como libertador de Roma, e jus­
autoridade sem limites que as leis da­ tamente punido como infrator das leis.
riam ao ditador, facilmente ele debela­ Se brilhante foi sua recondução, nem
ria a conjuração que só foi abafada de­ por isso deixou de, na verdade, consti­
vido a um conjunto de acasos felizes tuir uma graça.
que a prudência humana jamais devera Ademais, seja qual for o modo por
esperar. que se confere essa importante comis­
Em lugar disso, o senado se conten­ são, é preciso fixar sua duração num
tou com conferir todo o seu poder aos
prazo bastante curto, que jamais possa
cônsules. Daí resultou que Cícero,
para agir eficientemente, se viu obri­ ser prolongado4 6 7. Nas crises que
gado a ultrapassar esse poder num determinam o seu estabelecimento, o
momento capital e, se os primeiros Estado é logo destruído ou salvo e,
transportes de alegria aprovaram sua uma vez passada a necessidade urgen­
conduta, foi com justiça que depois se te, a ditadura toma-se tirânica ou vã.
pediu conta do sangue dos cidadãos Em Roma, só havendo ditadores por
derramado contra as leis4 6 5, censura seis meses, a maioria deles abdicava
que não se poderia fazer a um ditador. antes desse termo. Se o termo fosse
A eloqüência do cônsul, porém, tudo mais longo, talvez se sentissem tenta­
arrebatou e ele mesmo, apesar de dos a prolongá-lo ainda mais, como
romano, preferindo sua glória à pátria, fizeram os decênviros com os termos
de um ano. Os ditadores só tinham o
4 6 5 Entre os poderes do senado, de que então tempo de atender às necessidades que
dispunha Cícero, não se incluía o de suspender determinavam sua eleição; não o de
o direito de apelar para o povo, que cabia a
qualquer cidadão, quando condenado. Assim,
pensar em outros projetos.
a execução dos companheiros de Catilina
exorbitou da lei. Clódio propôs uma lei que 4 6 6 O que ele não poderia garantir-se se pro­
punia genericamente os autores de abusos pusesse um ditador, não ousando nomear a si
dessa ordem, e Cícero exilou-se antes de vê-la mesmo e não podendo ter certeza de que seu
votada. Outra lei, visando-o pessoalmente, colega o nomearia. (N. do A.)
condenou-o depois ao exílio. (N. de L. G. M.) 4 6 7 V. nota 4 6 1, supra. (N. de L. G. M.)

C a p itu lo V II

Da censura

Assim como a declaração da vonta­ espécie de lei4 69 cujo ministro é o cen­


de geral se faz pela Lei, a declaração sor, que só faz aplicá-la aos casos
do julgamento público se faz pela particulares, a exemplo do príncipe.
censura4 68. A opinião pública é a O tribunal censório, longe pois de

4 es Novamente, Roma é a inspiradora de que Rousseau reservou à censura, cuja regra


Rousseau. Entre as funções dos censores superior •— equiparável à lei na esfera jurídica
romanos, incluía-se a de zelar pelos costumes — está na opinião pública. (N. de L. G. M.)
públicos, castigando atos que legalmente não 4 69 Não escrita, consuetudinária. (N. de L. G.
constituíam crime ou infração. Esta, a tarefa M.)
142 ROUSSEAU

representar o árbitro da opinião do dos” nos duelos4 72, praticado insisten­


povo, não passa de seu declarador e, temente no reino de França, foi aboli­
desde que disso se afasta, suas decisões do devido às palavras, que se seguem,
tornam-se vãs e sem efeito4 70. de um edito do rei: “Quanto àqueles
É inútil distinguir os costumes de que têm a covardia de chamar segun­
uma nação dos objetos de sua estima, d o s Esse julgamento, precedendo o
pois tudo se prende ao mesmo princí­ do público, prescreveu-o rapidamente.
pio e se confunde necessariamente. Mas, quando os mesmos editos4 73 qui­
Entre todos os povos do mundo, não é seram estabelecer que também era
em absoluto a natureza, mas a opinião, covardia bater-se em duelo, o que é
que decide a escolha de seus prazeres. muito verdadeiro, mas contrário à opi­
Melhorai as opiniões dos homens, e nião comum, o público mofou dessa
seus costumes purificar-se-ão por si decisão, sobre a qual já formara juízo.
mesmos. Ama-se sempre aquilo que é Já disse, em outro ponto4 7 4, que,
belo ou que se julga belo. É, porém, não estando submetida a opinião pú­
nesse julgamento que surge o engano, blica à coerção, não se necessita de
sendo pois necessário regulá-lo. Quem qualquer indício, no tribunal estabele­
julga os costumes, julga a honra, e cido, para representá-la. Não se pode
quem julga a honra, vai buscar sua lei admirar demais com que arte esse
na opinião. recurso, inteiramente perdido para os
As opiniões de um povo nascem de modernos, era utilizado entre os roma-
sua constituição. Embora a Lei não
regulamente os costumes, é a legisla­ 4 72 No reinado de Henrique II de França,
ção que os faz nascer; quando ela quando Queluz morreu num duelo com
enfraquece, os costumes degeneram, d’Entragues, as testemunhas de ambos passa­
ram também a bater-se, do que resultou a
mas então o julgamento dos censores morte de Maugiton. Assim surgiram os “se­
não fará o que a força das leis não fez. gundos”. O rei, horrorizado com o sucesso,
Conclui-se daí que a censura só mandou erigir um mausoléu aos dois mortos,
pode ser útil para conservar os costu­ porém a bazófia dos duelistas não se emendou,
mes, jam ais para restabelecê-los. Esta­ passando-se a dizer “vou esculpi-lo em már­
more” para significar “vou matá-lo em duelo”.
belecei censores durante o vigor das (N. de L. G. M.)
leis; desde que o percam, tudo estará 4 73 Serão, provavelmente, os numerosos edi­
perdido, pois nada de legítimo471 tos de Luís XIV, entre os quais se destacam os
ainda terá força quando as leis já não a de 1651, 1670 e 1679, todos renovando o de
tiverem. 1643 que instituiu o famoso “tribunal de
honra” tão condenado por Rousseau. (V.
A censura mantém os costumes, principalmente a Carta a d ’A lembert.) A inefi­
impedindo as opiniões de se corrompe­ ciência de tais resoluções atesta-se pelo fato
rem, conservando a sua retidão por de, nos primeiros vinte anos de seu governo, o
meio de aplicações sábias e até, algu­ rei ter expedido mais de mil concessões de
graça a duelistas condenados. Os costumes
mas vezes, fixando-os, quando ainda se reagiram, contudo, no sentido de uma lenta
mostram incertos. O uso de “ segun­ humanização e, ao tempo de Rousseau, embo­
ra houvesse muitos duelos, já se incluía a gran­
de maioria deles na regra do “primeiro san­
4 70 O censor não é, pois, um moralista a con­ gue”. (N. de L. G. M.)
duzir a opinião. Se esta não aprova seus atos, 4 ' 4 Apenas indico, neste capítulo, o que tratei
eles se tornam tão inócuos quanto as decisões mais longamente na Carta ao Sr. dAlembert*.
governamentais que não se apóiam em lei. (N. (N. do A.)
de L. G. M.) * Trata-se da Carta sobre os Espetáculos.
4 71 Em sentido amplo, que abrange o jurídico Também na Nova Heloísa (I, carta LVII)
e o moral. (N. de L. G. M.) Rousseau cuida dos duelos. (N. de L. G. M.)
DO CONTRATO SOCIAL 143

nos e, mais ainda, entre os lacedemô- sobre o que é e o que não é honesto, a
nios. Grécia não recorre de seu julgamento.
Tendo um homem de maus costu­
mes apresentado uma boa proposta ao 4 7 5 Os exemplos aqui citados vêm de Plutar-
co, nos D ito s N otáveis dos Lacedem ônios. (N.
conselho de Esparta, os éforos, sem
de L. G. M.)
levar em consideração essa proposta, 4 7 6 Eles eram de outra ilha, que a delicadeza
fizeram com que um homem de bons de nossa língua proíbe nomear neste momen­
costumes a apresentasse4 7 5. Que to*. (N. do A.)
honra para um e que infâmia para o * Na cópia do C ontrato dedicada a
d’Yvernois e que está na biblioteca de Gene­
outro, sem fazer elogio ou censura a bra, há a seguinte nota manuscrita: “Eles eram
qualquer dos d o is! Alguns bêbados de de Quios [na grafia francesa: Chio ] e não de
Sam os4 7 6 macularam o tribunal dos Sam os. Mas, dado o assunto, jamais ousei
éforos; no dia seguinte, por edito públi­ empregar essa palavra no texto. Creio, contu­
do, ser tão ousado como qualquer outro. Mas
co, permitiu-se aos sâmios serem vi­ a ninguém se permite ser sujo ou grosseiro,
lãos. Um verdadeiro castigo teria sido seja qual for o caso. Os franceses puseram
menos severo do que semelhante impu­ tanta decência em sua língua, que nela não se
nidade. Quando Esparta se pronuncia pode dizer a verdade”. (N. de L. G. M.)

C a p itu lo VIII
Da religião civil477

Os homens de modo algum tiveram mentos e de idéias para que se possa


a princípio outros reis além dos deuses, resolver aceitar um semelhante como
nem outro Governo senão o teocráti- senhor e persuadir-se de que assim se
c o 4 78. Raciocinaram como Calígu- estará bem.
la 4 79 e, então, raciocinaram bem. Pelo simples fato de colocar-se Deus
Impõe-se uma lenta alteração de senti­ à frente de cada sociedade política,
conclui-se que houve tantos deuses
4 7 7 Neste capítulo se desenvolve a tese ante­ quantos são os povos. Dois povos
riormente esboçada, de forma muito breve,
numa carta a Voltaire (18 de agosto de 1756).
Como fontes da concepção de Rousseau sobre tista, digno de um Sócrates cristianizado, e o
a função política do elemento religioso já outro extremo representado por um altruísmo
foram apontados, pelo efeito negativo, Bayle patriótico, exaltado, impositivo, à maneira de
(D icionário H istórico, Pensam entos D iversos um Catão modernizado. O certo é que, no
e C om entários Filosóficos), e, pela influência C ontrato, domina essa última tendência, que já
positiva, Maquiavel (principalmente nas D éca ­ estrutura no esboço que figura no M anuscrito
das), possivelmente Spinoza (Tratado P olítico de Genebra, terminando com as seguintes
e Tratado Teológico-Político) e Montesquieu palavras: “Quanto ao concurso da religião no
(D o Espírito das Leis). Como, porém, arguta­ estabelecimento civil, vê-se que não será
mente anota Vaughan, o que há de melhor e menos útil poder dar ao liame moral uma força
mais discutível no capítulo é do próprio Rous­ interior que penetre até a alma e seja sempre
seau, que, não sem alguma ingenuidade, rea­ independente dos bens, dos. males, da própria
briu a questão de atender-se a César e a Cristo vida e de todos os sucessos humanos”. (N. de
na velha e desafiadora proposição bíblica que L. G. M.)
afirma “ser impossível servir a dois senhores”. 4 78 No sentido genérico: o poder é d o s sacer­
Rousseau, de tal sorte, teria dado expansão a dotes. (N. de L. G. M.)
um seu conflito interno: aquele que sempre o 4 79 Cf. 1. I, c. II. Calígula julgava-se, por ser
fez hesitar entre o extremo de um cristianiso rei, de natureza diferente e superior à de seus
puramente individual, meditativo, quase quie- súditos. (N. de L. G. M.)
144 ROUSSEAU
estranhos um ao outro, e quase sempre tica era também teológica; a jurisdição
inimigos, não poderiam reconhecer por dos deuses ficava, por assim dizer, fi­
muito tempo um mesmo senhor; dois xada pelos limites das nações. O Deus
exércitos, batalhando, não poderiam de um povo não dispunha de qualquer
obedecer ao mesmo chefe. Eis como direito sobre os outros povos. Os deu­
das divisões nacionais resultou o po­ ses dos pagãos não eram, de modo
liteísmo480 e, daí, a intolerância teoló­ algum, deuses invejosos; dividiam
gica e civil que naturalmente é a entre si o império do mundo. O próprio
mesma, como explicaremos logo Moisés e o povo hebreu dão, algumas
adiante. vezes, exemplo dessa idéia, ao falarem
A fantasia dos gregos de reencontrar do Deus de Israel. É verdade que
seus deuses entre os povos bárbaros consideravam como nulos os deuses
veio daquela, que também tinham, de dos cananeus, povos proscritos, desti­
se considerarem os soberanos naturais nados à destruição e cujo lugar deve­
desses povos. Mas atualmente tornou- riam ocupar. Mas note-se como se
se bem ridícula a erudição que fala da referiam às divindades dos povos vizi­
identidade dos deuses das diversas nhos que lhes era proibido atacar: “ A
nações, como se Moloch, Saturno e posse do que pertence a Chamos,
Cronos pudessem ser o mesmo deus, vosso Deus”, dizia Jefté aos amonitas,
como se o Baal dos fenícios, o Zeus “não vos é legitimamente devida?
dos gregos e o Júpiter dos latinos Pelas mesmas razões, possuímos as
pudessem ser o mesmo, como se terras adquiridas por nosso Deus
pudesse existir algo de comum entre vencedor.” 482 Aí está, parece-me, uma
seres quiméricos que têm nomes dife­ paridade claramente reconhecida entre
rentes 4 81. . os direitos de Chamos e os do Deus de
Se me perguntarem por que no paga­ Israel483.
nismo, quando cada Estado possuía Quando, porém, os judeus, submeti­
seu culto e seus deuses, não havia guer­ dos aos reis da Babilônia e em seguida
ras de religião, responderei que era por aos da Síria, obstinadamente não qui­
isso mesmo, pois cada Estado, tendo seram reconhecer nenhum outro Deus
tanto seu culto quanto seu Governo além do seu, essa recusa, considerada
próprio, de modo algum distinguia como uma rebelião contra o vencedor,
seus deuses de suas leis. A guerra polí­ incitou contra eles as perseguições que
se encontram na sua História e das
480 Não, propriamente, o politeísmo sincré-.
tico, de que Rousseau a seguir cuidará falando
do paganismo, mas, antes, da pluralidade de 482 N onne ea quae p o ssid e t C ham os deus tuus
deuses e religiões. (N. de L. G. M.) tib i ju re debentur ? (Juizes, 11, 24). Este é o
481 Rousseau foi desmentido neste ponto, texto da Vulgata. O Padre de Carrières tradu­
como nas anteriores observações sobre a histó­ ziu: “Não acreditais ter direito de possuir o
ria poíitico-religiosa, pela ciência moderna. que pertence a Camos, vosso deus?” Ignoro a
Lembremos, contudo, que datam do fim do sé­ força do texto hebreu, mas vejo que, na Vulga­
culo XIX os primeiros trabalhos mais sólidos ta, Jefté reconhece positivamente o direito do
sobre a mitologia comparada, bem como o deus Camos e que o tradutor francês enfra­
R a m o de Ouro, de Frazer (1890), que é a pri­ queceu esse reconhecimento por um “segundo
meira obra a cuidar do caráter mágico do vós” que não está em latim. (N. do A.)
poder de mando entre os primitivos. Só na 483 Tese ousada, por isso que sempre os ju­
segunda década de nosso século Max Weber deus foram dados como adeptos, desde cedo,
analisaria mais amplamente o poder carismá­ de um monoteísmo rigoroso e exclusivista. (N.
tico. (N. de L. G. M.) de L. G. M.)
DO CONTRATO SOCIAL 145

quais não se conhece outro exemplo tado deixasse de ser uno e determinou
antes do cristianismo48 4. as divisões intestinas que jamais deixa­
Encontrando-se, pois, cada região li­ ram de agitar os povos cristãos. Ora,
gada unicamente às leis do Estado que não podendo essa nova idéia de um
as prescrevia, absolutamente não havia reino do outro mundo penetrar na ca­
maneira de converter um povo senão beça dos pagãos, eles sempre conside­
dominando-o, nem outros missionários raram os cristãos como verdadeiros
que não os conquistadores. Como a rebeldes que, por sob uma submissão
obrigação de mudar de culto era a lei hipócrita, só esperavam o momento
dos vencidos, necessário se fazia come­ oportuno para se tornarem indepen­
çar por vencer antes de falar nisso. dentes e senhores, assim usurpando,
Longe de serem os homens a combater pela habilidade, a autoridade que fin­
pelos deuses, eram, como em Homero, giam respeitar em sua fraqueza. Tal a
os deuses que combatiam por eles; causa que determinou as persegui­
cada um pedia a vitória ao seu, e paga­ ções48 5.
va-a com novos altares. Os romanos, O que os pagãos temiam aconteceu
antes de tomarem um lugar, intimavam e, então, tudo mudou de aspecto. Os
os deuses a abandoná-lo. Quando dei­ humildes cristãos mudaram de lingua­
xaram irritados os deuses dos tarenti- gem e logo se viu esse pretenso reino
nos, fizeram-no por considerarem esses do outro mundo tornar-se neste, sob
deuses submetidos aos seus e obriga­ um chefe visível, o mais violento
dos a lhes prestar homenagem. Deixa­ despotismo.
vam aos vencidos seus deuses, como No entanto, como sempre houve um
deixavam suas leis. Uma coroa ao Jú­ príncipe e leis civis, resultou dessa
piter do Capitólio era o único tributo dupla posse um conflito perpétuo de
que freqüentemente lhes impunham. jurisdição que tornou toda a boa poli-
Tendo, por fim, os romanos estendi­ tia impossível nos Estados cristãos e
do, com seu império, o seu culto e seus jamais se conseguiu saber se era ao se­
deuses, e tendo freqüentemente eles nhor ou ao padre que se estava obri­
mesmos adotado os dos vencidos, con­ gado a obedecer.
cedendo a uns e a outros o direito de Inúmeros povos, no entanto, mesmo
pólis, os povos desse vasto império na Europa ou nas suas vizinhanças,
passaram sem sentir a contar com uma quiseram conservar ou restabelecer o
multidão de deuses e de cultos, quase antigo sistema, sem obter sucesso. O
que os mesmos em todos os lugares, e, espírito do cristianismo tomou conta
assim, o paganismo foi finalmente de tudo. O culto sagrado sempre per­
conhecido no mundo como uma únicá maneceu ou tornou-se independente do
e mesma religião. soberano e sem ligação necessária com
Foi nessas circunstâncias que Jesus o corpo do Estado. Maomé teve idéias
veio estabelecer na terra um reino espi­ muito boas, ligou muito bem seu siste­
ritual; separando, de tal sorte, o siste­ ma político e, enquanto a forma de seu
ma teológico do político, fez que o Es- Governo persistiu entre os califas seus

48 4 É da melhor evidência que a guerra dos 48 5 Depois de levantar muitas hipóteses sobre
fócios, chamada guerra sagrada, não foi uma as causas das perseguições, Piganiol conclui:
guerra de religião. Seu objetivo estava em “De qualquer forma, a opinião pública odiava
punir sacrilégios e não em submeter os incréus. os cristãos, sobretudo por considerá-los
(N. do A.) ateus”. (N. de L. G. M.)
146 ROUSSEAU

sucessores, esse Governo foi exata­ Mas ele devera compreender que o
mente uno e, por isso, bom. Mas os espírito dominador do cristianismo era
árabes, tomando-se florescentes, letra­ incompatível com seu sistema e que o
dos, educados, fracos e covardes, interesse do padre sempre seria mais
foram subjugados por bárbaros e, forte do que o do Estado. Não foi tanto
então, recomeçou a divisão entre os o que há de horrível e de falso na sua
dois poderes. Ainda que ela seja menos política, senão o que nela existe de
aparente entre os maometanos do que justo e verdadeiro, que a tom ou odio­
entre os cristãos, existe entre aqueles, s a 488.
sobretudo na seita de Ali, e há Esta­ Acho que desse ponto de vista
dos, como a Pérsia, em que não deixa desenvolvendo os fatos históricos, re­
de fazer-se sentir. futar-se-ia com facilidade os sçnti-
Entre nós, os reis da Inglaterra mentos opostos de Bayle e de Warbur-
tornaram-se chefes da Igreja e a ton, um dos quais pretende não ser
mesma coisa fizeram os czares; com nenhuma religião útil ao corpo político
esse título, porém, tornaram-se menos e o outro afirma, pelo contrário, que o
seus senhores do que seus ministros, cristianismo é o seu mais forte apoio.
adquiriram menos o direito de mudá-la Ao primeiro, poder-se-ia provar que ja ­
do que o poder de mantê-la, não são mais se fundou qualquer Estado cuja
nela legisladores, mas somente prínci­ base não fosse a religião e, ao segundo,
pes. Em todo lugar em que o clero que a lei cristã, no fundo, é mais preju­
forma um corpo 48 6 é, na sua alçada, dicial do que útil à firme constituição
senhor e legislador; há, pois, na Ingla­ do Estado. Para melhor fazer-me en­
terra e na Rússia, do mesmo modo tender, basta dar um pouco de precisão
como alhures, dois poderes e dois às idéias, muito vagas, sobre religião,
soberanos48 7. relativas ao meu assunto.
De todos os autores cristãos, o filó­
sofo Hobbes é o único que viu muito A religião considerada em relação à
bem o mal e o remédio, que ousou pro­ sociedade, que é geral ou particular,
por a reunião das duas cabeças da pode também dividir-se em duas espé­
águia, e reconduzir-se tudo à unidade cies, a saber: a religião do homem e a
política, sem a qual jamais serão bem do cidadão. A primeira, sem templos,
constituídos o Estado e o Governo. altares e ritos, limitada ao culto pura­
mente interior do Deus supremo e aos
48 6 Deve-se notar que não são tanto as deveres etemos da moral, é a religião
assembléias formais, como as de França, pura e simples do Evangelho, o verda­
quanto a comunhão das igrejas que faz do deiro teísmo e aquilo que pode ser cha­
clero um corpo. A comunhão e a excomunhão mado de direito divino natural. A
são o pacto social do clero, pacto com o qual
será sémpre o senhor dos povos e dos reis. outra, inscrita num só país, dá-lhe seus
Todos os padres, que comungam juntos, são deuses, seus padroeiros próprios e tute­
concidadãos, ainda que estejam nos dois extre­ lares, tem seus dogmas, seus ritos, seu
mos do mundo. Essa invenção é uma obra­
prima de política. Não havia nada de seme­
lhante entre os padres pagãos, mas também 488 Vede, entre outras, numa carta de Grotius
eles jamais organizaram um corpo de clérigos. a seu irmão, datada de 11 de abril de 1643, o
(N. do A.) que esse sábio homem aprova e o que censura
48 7 Dois soberanos, porque só o soberano no livro D e C ive. É verdade que, levado pela
tem poder de legislar e aí a legislação da maté­ indulgência, parece perdoar ao autor o bem
ria religiosa vem do clero e não do monarca. tendo em consideração o mal; mas nem todo
(N. de L. G. M.) mundo é tão clemente. (N. do A.)
DO CONTRATO SOCIAL 147

culto exterior prescrito por lei. Afora a devotá-lo à cólera dos deuses: Sacer
única nação que a segue, todos os de­ e sto 492.
mais para ela são infiéis estrangeiros e É, porém, má, pois, fundando-se no
bárbaros; ela só leva os deveres e os erro e na mentira, engana os homens,
direitos do homem até onde vão seus torna-os crédulos, supersticiosos, e
altares. Foram assim as religiões dos submerge o verdadeiro culto da Divin­
primeiros povos, às quais se pode dar o dade num cerimonial vão. Ainda é má
nome de direito divino civil ou positi­ quando, tomando-se exclusiva e tirâni­
vo. ca, transforma um povo em sangui­
Há uma terceira espécie de religião, nário e intolerante, de forma que ele só
mais estranha, que, dando ao homem respira a atmosfera do assassínio e do
duas legislações, dois chefes, duas pá­ massacre, e crê estar praticando uma
trias, o submete a deveres contradi­ ação salutar ao matar todos aqueles
tórios e o impede de poder ao mesmo que não admitem seus deuses. Isso põe
tempo ser devoto e cidadãos. Tal é a tal povo num estado natural de guerra
religião dos lam as489, a dos japoneses com todos os demais, situação essa
e a do cristianismo romano. Pode-se muito prejudicial à sua própria segu­
chamar, a esta, religião do padre. Dela rança.
resulta uma espécie de direito misto e Resta, pois, a religião do homem ou
insociável490 que não tem nome. o cristianismo, não o cristianismo de
Se considerarmos politicamente hoje, mas o do Evangelho, que é
essas três espécies de religião, veremos completamente diverso. Pois nessa re­
que todas elas têm seus defeitos. A ter­ ligião santa, sublime, verdadeira, os
ceira é tão evidentemente má, que se homens, filhos do mesmo Deus, reco­
perde tempo no divertimento de de­ nhecem-se todos como irmãos, e a
monstrá-lo. Tudo o que rompe a unida­ sociedade que os une não se dissolve
de social, nada vale; todas as institui­ nem com a morte.
ções que põem o homem em Mas essa religião, não tendo nenhu­
contradição consigo mesmo, nada ma relação particular com o corpo
valem. político493, deixa as leis unicamente
com a força que tiram de si mesmas,
A segunda é boa por unir o culto di­ sem acrescentar-lhes qualquer outra, e,
vino ao amor das leis e porque, fazen­ desse modo, fica sem efeito um dos
do da pátria objeto da adoração dos grandes elos da sociedade particu­
cidadãos, lhes ensina que servir o Esta­ la r494. Mais ainda, longe de ligar os
do é servir o deus tutelar. É uma espé­ corações dos cidadãos ao Estado,
cie de teocracia, na qual não se deve de
modo algum ter outro pontífice que
não o príncipe, nem outros padres 492 Declarando-se “sagrado”, com esta fór­
mula, qualquer indivíduo, ele estava excomun­
além dos magistrados491. Nesse caso, gado, separado dos homens e entregue aos
morrer pela pátria é alcançar o martí­ deuses. (N. de L. G. M.)
rio, violar as leis é ser ímpio, e subme­ 493 Seu campo de ação é toda a humanidade
ter um culpado à execração pública é e, pois, permanece acima das sociedades parti­
culares. (N. de L. G. M.)
49 4 Que será a profunda e constante cons­
489 Sacerdotes do budismo tibetano. (N. de L. ciência, em cada cidadão, da vontade geral, do
G. M.) “eu comum” da coletividade. Aqui Rousseau
490 Ou seja: anti-social. (N. de L. G. M.) aponta uma função política que o elemento
491 Como nas cidades-estados da antigui­ religioso pode preencher. (V. nota 463, supra.)
dade. (N. de L. G. M.) (N. de L. G. M.)
148 ROUSSEAU
desprende-os, como de todas as coisas seria preciso que todos os cidadãos,
da terra. Não conheço nada mais con­ sem exceção, fossem igualmente bons
trário ao espírito social. cristãos, mas, se, por infelicidade,
Dizem que um povo de verdadeiros encontrar-se entre ele um único ambi­
cristãos formaria a sociedade mais per­ cioso, um único hipócrita — por
feita que se poderia imaginar. Contra exemplo: um Catilina, um Cromwell
essa suposição só vejo uma grande — , certamente esse único faria tábua
dificuldade — uma sociedade de ver­ rasa de seus piedosos compatriotas. A
dadeiros cristãos não mais seria uma caridade cristã não permite facilmente
sociedade de hom ens49 5. que se pense mal do próximo. Desde
Afirmo até que essa suposta socie­ que ele, por qualquer artimanha,
dade, com toda a sua perfeição, não aprenda a arte de impor-se e de apode­
seria nem a mais forte, nem a mais rar-se de uma parte da autoridade pú­
duradoura, pois, à força de ser perfeita, blica, será um homem constituído em
faltar-lhe-ia coesão, estando seu vício dignidade — Deus quer que o respei­
destruidor na sua própria perfeição. tem. Logo mais, ei-lo uma potência —
Cada um desempenharia seu dever, Deus quer que ele seja obedecido. O
o povo estaria submetido às leis, os depositário desse poder abusa? — é o
chefes seriam justos e ponderados, os açoite com o qual Deus pune seus
magistrados íntegros e incorruptíveis,
filhos. Toma-se como obrigação de
os soldados desprezariam a morte, não consciência expulsar o usurpador: ter-
existiria nem vaidade, nem luxo. Tudo se-á de perturbar a calma pública, usar
isso está muito bem, mas passemos
de violência, verter sangue — tudo
adiante. ^
O cristianismo é uma religião intei­ isso não condiz com a doçura do cris­
ramente espiritual, preocupada unica­ tão e, depois, que importa ser livre ou
mente com as coisas do céu, não escravo neste vale de misérias? O
pertencendo a pátria do cristão a este essencial é alcançar o paraíso, e a
mundo. É verdade que ele cumpre o resignação não passa de mais um meio
seu dever, mas o faz com uma indife­ para isso.
rença profunda quanto ao bom ou mau Sobrevêm uma guerra estrangeira,
sucesso de seus trabalhos49 6. Con­ os cidadãos marcham sem dificuldade
tanto que nada tenha a censurar em si para o combate, nenhum deles pensa
mesmo, pouco lhe importa se tudo vai em fugir; cumprem seu dever, mas sem
bem ou mal cá embaixo. Se o Estado paixão pela vitória; melhor sabem
está florescente, dificilmente ousa morrer do que vencer. Que importa
gozar da felicidade pública, teme orgu­ sejam vencidos ou vencedores? A
lhar-se da glória de seu país; se o Esta­ Providência não sabe, melhor do que
do perece, bendiz a mão de Deus que eles, o que lhes convém? Pode-se ima­
pesa sobre seu povo. ginar o partido que um inimigo orgü-
Para que fosse pacífica a sociedade lhoso, impetuoso e apaixonado pode
e para que se mantivesse a harmonia, tirar desse estoicismo! Colocai-lhes à
frente esses povos generosos a quem
495 p orqUe seu interesse comum se coloca no devora o amor ardente da glória e da
outro mundo e não neste, onde o Estado tem pátria, suponde vossa república cristã
seus alicerces e encontra sua finalidade. (N. de
L. G. M.) à frente de Esparta e de Roma: os cris­
49 6 Porque não tem por ele um interesse real, tãos piedosos serão dominados, esma­
particular ou geral. (N. de L. G. M.) gados, destruídos, antes de conse­
DO CONTRATO SOCIAL 149

guirem tempo de se dar conta, ou, a cruz expulsou a águia, desapareceu


então, deverão sua salvação somente todo o valor romano.
ao desprezo que o inimigo lhes dedi­ Deixando de parte, porém, as consi­
car. A meu ver, foi um belo discurso o derações políticas, voltemos ao direito
dos soldados de F ábio49 7 — eles não e fixemos os princípios sobre este
juraram morrer ou vencer, juraram importante ponto. O direito, que o
voltar vencedores e cumpriram seu pacto social dá ao soberano sobre os
juramento. Jamais cristãos teriam feito súditos, não ultrapassa, como já o
semelhante juramento, pois acredita­ disse, os limites da utilidade públi­
riam estar tentando a Deus. c a 499. Os súditos, portanto, só devem
Engano-me ao aludir a uma repú­ ao soberano contas de suas opiniões
blica cristã, pois cada um desses dois enquanto elas interessam à comuni­
termos exclui o outro. O cristianismo dade. Ora, importa ao Estado que cada
só prega servidão e dependência. Seu cidadão tenha uma religião que o faça
espírito é por demais favorável à tira­ amar seus deveres; os dogmas dessa
nia, para que ela cotidianamente não religião, porém, não interessam nem ao
se aproveite disso. Os verdadeiros cris­ Estado nem a seus membros, a não ser
tãos são feitos para ser escravos 498 ; enquanto se ligam à moral e aos deve­
sabem-no e não.se comovem absoluta­
res que aquele que a professa é obri­
mente, porquanto esta vida curta
gado a obedecer em relação a outrem.
pouco preço apresenta a seus olhos.
Quanto ao mais, cada um pode ter as
Dizem-nos que as tropas cristãs são opiniões que lhe aprouver, sem que o
excelentes. Nego. Que me mostrem tro­ soberano possa tomar conhecimento
pas tais. Quanto a mim, não conheço delas, pois, como não chega sua
absolutamente tropas cristãs. Poderão
citar-me as cruzadas. Sem discutir o competência ao outro mundo, nada
valor dos cruzados, observai que, bem tem a ver com o destino dos súditos na
vida futura, desde que sejam bons cida­
longe de serem cristãos, eram soldados
dãos nesta vida.
do padre, cidadãos da Igreja; batiam-se
por seu país espiritual que ela, não se Há, pois, uma profissão de fé pura­
sabe como, tinha tomado temporal. A mente civil, cujos artigos o soberano
bem julgar, isso integra-se no paganis­ tem de fixar, não precisamente como
mo: como o Evangelho de modo algum dogmas de religião, mas como senti­
estabelece uma religião nacional, é mentos de sociabilidade sem os quais é
impossível qualquer guerra sagrada
entre os cristãos. 499 “Na república”, diz o Marquês
Sob os imperadores pagãos, os sol­ d’Argenson, “cada um é perfeitamente livre,
dados cristãos eram bravos. Todos os naquilo que não prejudica aos outros*.” Aí
está o limite invariável; não se poderia colo­
autores cristãos afirmam-no e eu acre­ cá-lo mais exatamente. Não pude furtar-me ao
dito: era uma emulação de honra com prazer de citar algumas vezes esse manuscrito,
as tropas pagãs. Desde que os impera­ ainda que não seja conhecido do público, a fim
dores passaram a ser cristãos, essa de prestar homenagem à memória de um
emulação não subsistiu mais e, quando homem ilustre e respeitado que, até no ministé­
rio, conservou o coração de um verdadeiro
cidadão e opiniões corretas e sadias sobre o
49 7 Citado por Tito Lívio. (N. de L. G. M.) Governo de seu país. (N. do A.)
498 Cabe assinalar o paralelismo com a * Vaughan assinala que a citação não é tex­
“moral de escravos” que Nietzsche acusou na tual, mas apenas de sentido geral. (N. de L. G.
ética cristã. (N. de L. G. M.) M.)
150 ROUSSEAU

impossível ser bom cidadão 500 ou sú­ veis 502. É impossível viver em paz
dito fiel501. Sem poder obrigar nin­ com pessoas que se acredita réprobas;
guém a crer neles, pode banir do Esta­ amá-las seria odiar Deus que as puniu;
do todos os que neles não acreditarem, de qualquer modo, impõe-se sejam
pode bani-los não como ímpios, mas reconduzidas ou martirizadas. Em
como insociáveis, como incapazes de todos os lugares onde se admite a into­
amar sinceramente as leis, a justiça, e lerância religiosa, é impossível que não
de imolar, sempre que necessário, sua tenha um efeito civil 503 e, assim que
vida a seu dever. Se alguém, depois de surge, o soberano não mais o é, mesmo
ter reconhecido esses dogmas, condu­ temporalmente 50 4. Daí por diante, os
zir-se como se não cresse neles, deve padres serão os verdadeiros senhores e
ser punido com a morte, pois cometeu os reis não passarão de funcionários
o maior de todos os crimes — mentiu seus.
às leis. Atualmente, quando não existe mais
Os dogmas da religião civil devem
ser simples, em pequeno número, enun­ 502 Ou seja: dos dogmas decorre a discrimi­
ciados com precisão, sem explicações nação entre os concidadãos. (N. de L. G. M.)
ou comentários. A existência da Divin­ 503 O casamento, por exemplo, sendo um

dade poderosa, inteligente, benfazeja, contrato civil, tem efeitos civis, sem os quais é
impossível que a sociedade subsista. Suponha­
previdente e provisora; a vida futura; a mos, pois, que um clero acabe por atribuir só a
felicidade dos justos; o castigo dos si o direito de efetuar esse ato — direito que
maus; a santidade do contrato social e deve necessariamente usurpar em qualquer
das leis — eis os dogmas positivos. religião intolerante — ; não ficará então claro
que, fazendo a esse propósito valer a autori­
Quanto aos dogmas negativos, limito­ dade da Igreja, ele torna vã a do príncipe, que
os a um só: a intolerância, que per­ não terá outros súditos além daqueles que o
tence aos cultos que excluímos. clero quiser dar-lhe? Senhor de casar ou de
Na minha opinião, enganam-se os não casar as pessoas, segundo tenham ou não
que estabelecem uma distinção entre a uma tal doutrina, segundo admitam ou rejei­
tem tal ou qual formulário, segundo sejam
intolerância civil e a teológica. Essas mais ou menos devotos, conduzindo-se pru­
duas intolerâncias são insepará­ dentemente e mantendo-se firmes, não é claro
que só ele disporá das heranças, dos tributos,
dos cidadãos, do próprio Estado, que não
500 Beaulavon lucidamente delineia, neste poderia mais subsistir formando-se unica­
ponto, a suma do pensamento de Rousseau: mente de bastardos? Mas — diriam — citá-
“O que importa ao Estado não é a parte por lo-ão aos tribunais pelo abuso, intimá-lo-ão,
assim dizer metafísica da religião, mas unica­ sentenciá-lo-ão, ele será seqüestrado pelo tem­
mente suas conseqüências morais e sociais. O poral. Que lástima! O clero, por pouco que
Estado terá, pois, o direito de proibir ou de tenha, não digo de coragem, mas de bom
impor tal ou qual dogma metafísico — não senso, deixará fazer e continuará seu caminho;
mais, como freqüentemente sustentaram os tranqüilamente deixará citar, intimar, senten­
cristãos, em nome da verdade, mas em nome ciar, prender, e acabará sendo o senhor. Par-
da utilidade. É uma espécie de intolerância ce-me não ser tão grande sacrifício o abando­
utilitária que substitui a doutrinária”. (N. de L. nar-se uma parte, quando se está certo de
G. M.) apoderar-se do todo*. (N. do A.)
501 César, pleiteando por Catilina, esforçou- * Rousseau hesitou muito em incluir esta nota
se por estabelecer o dogma da mortalidade da no Contrato, tendo mandado tirá-la da pri­
alma; Catão e Cícero, ao refutá-lo, não se meira edição, embora figure em alguns exem­
divertiram filosofando, mas contentaram-se plares. Depois, autorizou sua publicação, tal­
com mostrar que César falava como mau cida­ vez por ter desistido de escrever uma projetada
dão e adiantava uma doutrina perniciosa ao defesa dos protestantes franceses. (N. de L. G.
Estado. Com efeito, era essa questão que deve­ M.)
ria julgar o senado de Roma, e não uma ques­ 50 4 Porque esbarra, nas questões civis, com
tão de teologia. (N. do A.) as proibições religiosas. (N. de L. G. M.)
DO CONTRATO SOCIAL 151

e não pode mais existir qualquer reli­ é pernicioso. O motivo pelo qual se diz
gião nacional exclusiva, devem-se tole­ ter-se convertido Henrique IV à reli­
rar todas aquelas que toleram as gião rom ana50 5 deveria fazer com que
demais, contanto que seus dogmas em a deixassem todos os homens honestos
e, sobretudo, todo príncipe que sou­
nada contrariem os deveres do cida­ besse raciocinar.
dão. Mas, quem quer que diga: Fora
da Igreja não há salvação — deve ser 50 5 Diz-se que os ministros protestantes sus­
excluído do Estado a menos que o Es­ tentaram que Henrique IV poderia salvar a
tado seja a Igreja, e o príncipe, o pontí­ alma em qualquer religião, enquanto os padres
católicos afirmavam que só a sua fé teria tal
fice. Tal dogma só serve para um efeito. E o rei decidiu-se segundo o que consi­
Governo teocrático; em qualquer outro derou de maior prudência. . . (N. de L. G. M.)

C a p ít u l o IX

Conclusão

Depois de haver estabelecido os Tudo isso, porém, forma um novo ob­


verdadeiros princípios do direito polí­ jeto muito vasto para as minhas curtas
tico e ter-me esforçado por fundar o vistas, e eu deveria fixá-las sempre
Estado em sua base, ainda restaria mais perto de mim.
ampará-lo por suas relações externas,
o que compreenderia o direito das gen­ ciai às relações políticas. O último livro do
tes, o comércio, o direito da guerra e as C ontrato aflora algumas — sobretudo as rela­
cionadas com a vida moral e religiosa dos sú­
conquistas, o direito público, as ligas, ditos do Estado. Neste capítulo final, escapa-
as negociações, os tratados 50 6, etc. lhe ainda, entre as relações exteriores, uma
referência ao direito público, que aí não simbo­
liza apenas as normas da soberania externa,
50 6 É, sem dúvida, do plano primitivo das senão todo o campo aberto pela definição
Instituições Políticas que Rousseau aqui se fundamental da Lei, de que tão minuciosa­
despede, em definitivo, porém não sem grande mente cuidara o C ontrato e da qual flui um
melancolia. Em aparência, justifica-se a muti­ grande número de problemas sócio-jurídicos.
lação de que resulta o C ontrato Social, pois Enfim, entregando ao editor o livro com que
nele se teria tratado de tudo quanto se rela­ alteraria o rumo das idéias e da ação política
ciona com a vida interna do Estado, deixan­ do mundo ocidental, passando a figurar como
do-se de lado suas relações externas. Não obs­ o principal inspirador da grande Revolução,
tante, Rousseau está bem consciente de só ter Jean-Jacques Rousseau confessa-se franca­
estudado o “mecanismo” do Estado, deixando mente insatisfeito e coagido pelas circuns­
de parte uma grande série de questões que, tâncias a realizar obra bem menos ampla do
nascidas da vida social, por assim dizer espon­ que planejara e gostaria de ter desenvolvi­
taneamente, vão interessar de forma substan- do. . . (N. de L. G. M.)
ENSAIO SOBRE
A ORIGEM DAS LÍNGUAS
In t r o d u ç ã o

1. Circunstâncias da composição

Este Ensaio, que só f o i publicado depois da morte de Rousseau, inclui-se,


presumivelmente, entre as obras de seu período inicial de produção. Indicam-no
o estilo, a própria organização da matéria e, sobretudo, os assuntos de que trata.
Não obstante, os especialistas ainda não conseguiram indicar uma data provável
de redação que seja unanimemente aceita.
Vaughan afirma que, ao menos em parte, o Ensaio já estava escrito antes,
com certeza, do Discurso sobre a Desigualdade e, talvez, até do primeiro Discur­
so. Toma, como base para essa inferência, o fa to de surgirem no texto elementos
que pertencem aos estudos de música originalmente destinados à Enciclopédia.
P. M. Masson acredita que o Ensaio não passa de uma das muitas e extensas
notas adicionadas, como apêndices, ao segundo Discurso, que, contudo, acabou
p o r assumir proporções e caráter de texto autônomo. Petitain, que iniciou as p es­
quisas mais aprofundadas sobre a cronologia da produção de Rousseau, data o
Ensaio de 1759, porém não justifica tal indicação.
Podemos tomar a data indicada p o r Petitain como a máxima provável, pois
já no ano seguinte estava escrito o Emílio, que se editaria simultaneamente em
Am sterdam e Paris, no ano de 1762. Aliás, uma nota, que figura nas primeiras
edições do Emílio, f a z referências a esse texto, chamando-o de Ensaio sobre o
Princípio da Melodia, surgindo o título com que hoje o conhecemos na mesma
nota, porém em edições posteriores. Dificilmente, entretanto, podem os fixar com
igual segurança uma data provável mínima. A s preocupações musicais de R ous­
seau duraram longo período de sua vida, vindo a predominar em sua vida intelec­
tual p o r três vezes: deixando de lado as singularidades da juventude, podemos,
contar, primeiro, o episódio da nova notação musical, que se resume na Disserta­
ção sobre a Música Moderna e que termina com a viagem a Veneza; depois há
o capítulo em que Rousseau parece destinado a representar, entre os enciclope­
distas, o papel de especialista em assuntos musicais (1743-1748) e durante o qual
se dá o prim eiro e fu gaz desentendimento com Voltaire; afinal, vêm os dois anos
(1753-1754) que antecedem a concepção do segundo Discurso (e são marcados
pela fam osa querela entre os adeptos da música francesa e os da italiana) para
alcançarem o auge com a publicação rumorosa da Carta sobre a Música France­
sa, que teve duas edições no ano de 1753. Caberá escolher um desses períodos
para aí localizar a redação do Ensaio. A versão de Vaughan parece bastante
verossímil, mas para adotá-la precisaríamos da certeza, que nos falta, de ter o
Ensaio saído dos escritos destinados à Enciclopédia, porquantç a hipótese con-
156 INTRODUÇÃO

trária seria igualmente possível. Adem ais, a oposição à teoria de Rameau, o alvo
preferido dos enciclopedistas, já começara, para Rousseau, no primeiro momen­
to das disputas musicais, com o parecer da Academ ia sobre seu sistema de nota­
ção, e o acompanharia pelo resto de sua vida.
Não obstante, pela análise do texto somos levados a propender p o r uma
data tardia que, se não fo r a de Petitain, colocar-se-á muito próxim a a ela. Há, no
Ensaio, indícios, se não concludentes, ao menos capazes de justificar tal inferên­
cia. Em prim eiro lugar, a própria refutação de Rameau, que, a princípio sem
indicação clara de nome , malgrado a transparência das alusões, toma endereço
explícito e direto no capítulo X I V e na nota do capítulo X IX , funda-se basica­
mente na maior ou menor musicalidade natural das línguas, ou seja, em termos
muito semelhantes aos da polêm ica de 1752-1753 entre “italianos ” e “fran ceses”.
M esmo admitindo-se que haja no Ensaio elementos comuns à colaboração musi­
cal destinada à Enciclopédia, sente-se que a orientação do texto já sofreu a
influência das contendas da moda, negando-se, aliás, Rousseau a endossar os
exageros então correntes sobre a “m usicalidade ” do idioma italiano e, acen­
tuando a menor aptidão da língua francesa para servir à música, volta-se para o
problem a que considera central: o prim ado da melodia. Adem ais, todo o fundo
de interpretações antropológicas e sociais mostra-se muito mais próxim o das
proposições gerais do segundo Discurso (ao qual pode mesmo servir de texto
subsidiário no trabalho dos analistas) do que da teoria, ainda algo incerta, do
Discurso inicial. Afinal o desejo de fundir numa só linha interpretativa a trans­
form ação do homem pela sociedade, a form ação e a evolução das línguas, e o
desenvolvimento da expressão musical, revela-nos um Rousseau ainda moço,
porém já maduro e coerente, tal como o supomos, com ponderáveis razões
biográficas e críticas, ao redigir a primeira versão das Instituições Políticas.
D e qualquer modo, permanecerá no terreno das hipóteses mais ou menos
fundadas a data em que f o i escrito o Ensaio sobre a Origem das Línguas e, p o r­
tanto, as circunstâncias de sua composição.

2. Fontes e influências
Também aqui não podem os ser muito precisos, porquanto não se p ode indi­
car com segurança as fontes de um texto de história incerta e cujas referências
bibliográficas são apenas incidentais. Cabe apenas registrar certas influências
evidentes e diretas. Neste caso está, sem dúvida, Condillac, no que respeita ao
problem a das línguas ou, mais exatamente, ao problem a do desenvolvimento da
razão humana, que no Ensaio adquire importância básica. Já apontara Jean
Morei (Fontes do Discurso sobre a Desigualdade, in Annales de la Sociéíé Jean­
Jacques Rousseau, 1910) a influência nítida de Condillac no segundo Discurso.
D epois Robert Derathé (O Racionalismo de J.-J. Rousseau, Paris, 1948) apon­
tara no Emílio a persistência desses elementos Não surpreenderá, pois, que
reapareçam, mais uma vez, no Ensaio.
Explícitos ou implícitos, encontram-se nos capítulos iniciais do Ensaio
aqueles princípios do Emílio, segundo os quais tudo o que a razão possui passou
primeiro pelos sentidos, não sendo a razão, em sentido amplo, algo simples ou
primário, senão o fruto do entrosamento de todas as demais faculdades do
homem, que se processa numa passagem das idéias simples às idéias complexas,
INTRODUÇÃO 157

isto é, da razão sensitiva ou pueril à razão intelectual ou humana. Não passam,


no fundo, da versão dada p o r Jean-Jacques a çertas passagens do Ensaio sobre a
Origem dos Conhecimentos Humanos, de Condillac, que se editara em 1746.
Ora, o desenvolvimento racional do homem encontra sua expressão mais carac­
terística na form ação da linguagem.
A té o século XV II, efetivamente, continuava a imperar o mito da língua
Adâmica. A referência a uma Idade de Ouro, então transformada em Estado
Natural, que se supunha constituir o estágio inicial real da espécie humana, natu­
ralmente levava a cogitar, como fizeram pensadores de grande porte, acerca da
língua que teria valido aos homens que povoaram o mundo nessa fa se edênica e
se comporia de termos que não sim bolizavam mas traduziam efetivamente a
essência das coisas. Se, pois, no século dezoito Rousseau apareceria para arran­
car o conceito de Estado Natural de sua anterior condição mítica e proto-his-
tórica, transformando-o na descrição, evolutiva mas ontogênica, da base fisio ló ­
gica e instintiva do complexo humano, naturalmente haveria de se interessar
pelos que, como Condillac, descreviam a evolução da mente humana partindo de
estágios simples e diretamente ligados a fenôm enos biológicos — idéias simples
que resultariam de simples percepções — para chegar a etapas de maior comple­
xidade — “idéias com plexas” resultantes da “reunião ou coleção de várias
percepções ” — , a fim de chegar à definição fin a l e extensiva do entendimento, ao
mesmo tempo que firm avam o termo inicial da evolução das línguas numa base
biológica, que corresponderia às interjeições arrancadas ao aparelho fonador
pelos impulsos instintivos mais simples. Com o sempre, Rousseau procura subli­
nhar que, no viver como no falar, o homem só superaria esses modos espontâ­
neos para ascender a form as mais complexas se m otivações poderosas a tanto o
movessem. E, nessa linha geral de desenvolvimento da mente, da linguagem e da
vida humana, insere a evolução da música.
N o que respeita ao problem a musical, que de form a alguma podem os consi­
derar secundário num texto do qual, ao menos inicialmente, representou o obje­
tivo principal e ostensivo, a grande influência a ser citada é negativa. D e fato,
para Rousseau, como para todos os enciclopedistas, porém na mais ampla medi­
da que lhe perm itia o conhecimento mais aprofundado do assunto, era preciso
opor-se a Rameau. Ora, se no exercício da crítica dos espetáculos correntes a
oposição se fa zia entre a ópera francesa e a italiana, Rameau, que fíguraVa como
representante máximo dos “franceses ”pela orientação teórica que traçara e pelo
constante e aplaudido exercício da criação, deveria representar o alvo da predile­
ção do partido oposto, não só pela sua qualidade de chefe de um dos grupos em
luta, senão, e principalmente, p o r ser o autor de tratados teóricos de singular
significação. Eram, pois, os escritos de Rameau sobre a harmonia os elementos
que Rousseau tinha so b os olhos cada vez que escrevia sobre música.
Não obstante, em que pese o alcance das idéias de Rousseau sobre a música
e as línguas — relativo no prim eiro caso e assaz considerável no segundo — , o
Ensaio sobre a Origem das Línguas é peça substancial, embora de função subsi­
diária, para a compreensão das idéias — estas, originais e decisivas — de R ous­
seau sobre o homem e a sociedade. Os dois Discursos, principalmente o segundo
deles, assumem mais ampla e clara significação quando completados com a
parte inicial deste Ensaio, enquanto boa parte do Emílio, como indica o próprio
autor, depende da boa inteligência do processo de desenvolvimento do intelecto
158 INTRODUÇÃO

individual, acerca do qual há no Ensaio indispensáveis indicações. Sem a devida


penetração dos Discursos e do Emílio, sempre se entenderá menos com pleta­
mente o Contrato Social, como acontece, infelizmente, com certa freqüência.
Tais são, aliás, as razões que justificam a inclusão do Ensaio, neste volume da
edição brasileira das obras de Rousseau, entre os escritos comumente chamados
dé políticos.
N este sentido, dispensamo-nos de repetir, acerca de fon tes e influências, o
que j á dissem os a propósito dos demais textos políticos. D os viajantes, como
Chardin, aos filósofos, como Platão e Montaigne, valem aqui a Rousseau os
mesmos autores e livros de que anteriormente já se servira. Se, p o r vezes, sua
posição em fa ce desses inspiradores positivos ou negativos parece agora mais
caracterizada, tal como acontece indubitavelmente com a oposição a Hobbes,
tais variantes confirmarão o quanto operaram tais influências e,p o is, o papel que
tiveram na form ação do pensamento de Rousseau.

3. Resenha analítica
Distinguem-se no Ensaio três partes bem caracterizadas e correspondendo a
três interesses bem definidos: a) a origem da linguagem — estudo da necessidade
de comunicação no homem natural; b) diferenciação das línguas — estudo da
evolução dos grupos humanos e dos meios de expressão; c) estudo particular das
questões musicais relacionadas com a evolução lingüística e social. Quanto ao
último capítulo, cuja importância desejamos sublinhar expressamente, parece
constituir caso à parte, embora logicamente ligado às duas partes iniciais, como
se mostrará mais adiante.

A . ORIGEM D A L IN G U A G E M
É a diferenciação das línguas que dá interesse e conteúdo à pesquisa de sua
origem. Eis p o r que o Ensaio se inicia (cap. I) assinalando que a linguagem dife­
rencia o homem entre os seres vivos, enquanto os homens entre si se distinguem
pela variedade das línguas — “não se sabe de onde é um homem antes de ter
falado ”. Por que causas semelhantes terão levado os homens a resultados tão
diferentes? Rousseau começa p o r traçar uma hipótese explicativa única para
demonstrar com o todos os homens, p o r sua condição, precisaram servir-se da
palavra.
A necessidade de comunicar-se com o semelhante p ode ser satisfeita tanto
pelo m ovim ente-(gesto) quanto pela voz (palavra), mas-a comunicação sonora
não se impõe forçosam ente. Há signos mudos (símbolos desligados de palavras)
poderosamente eloqüentes. “A ssim se fa la aos olhos muito melhor do que aos
ouvidos ”, ao menos quando se trata de exprimir sentimentos simples. Por isso,
pode-se imaginar que “se sempre conhecêssemos tão-só necessidades físicas bem
poderíam os jam ais ter falado ”.
Não falam os porque sejamos mais aptos para isso do que os outros animais,
nem tampouco apenas para exprimir as mesmas necessidades físicas que são co­
muns a eles e a nós. Se, em maior ou menor proporção, todos os seres vivos se
comunicam, “a língua de convenção só pertence ao homem, e esta é a razão po r
INTRODUÇÃO 159

que o homem progride, seja para o bem ou para o mal, e p o r que os animais não
o conseguem ”.
Distingamos, pois, no homem considerado em estado natural, as necessi­
dades que “ditaram os prim eiros g e sto s” das paixões que “arrancaram as prim ei­
ras v o ze s” (cap. II). Não se creia que o desenvolvimento das línguas seja racio­
nal, geométrico, porquanto de sua essência resulta o serem vivas e figuradas.
“Não se começou raciocinando, mas sentindo ”; enquanto as necessidades físicas
opunham os homens, as necessidades morais, as paixões, aproximavam-nos, sus­
citando a linguagem que, forçosam ente, seria figurada (cap. III). Supondo-o
assim (cap. IV), a prim eira língua se comporia de combinações de sons simples
que, além do arranjo sonoro, ainda conheceriam a diversificação do tempo e da
qualidade, criando expressões capazes de proteger as paixões que se quer comu­
nicar. Poucas consoantes, bastantes apenas para evitar os hiatos, imensa fartura
de sons e acentos, largo recurso à onomatopéia fariam dessa língua inicial algo
mais próximo da música do que da linguagem de que nos valemos em nossa con­
dição atual. Eis p o r que o Crátilo platônico, bem compreendido, está longe de ser
ridículo.
Nessa hipótese evolutiva, pode-se avançar ainda um passo, pois parece
natural o progresso que irá multiplicando as consoantes, em prejuízo das infle­
xões, numa transição da língua passional à racional (cap. V). Rousseau não se
contenta, contudo, com a explicação hipotética — em tudo conforme com seu
método genético. N o caso particular das línguas, p o d e oferecer-nos uma com pro­
vação objetiva, válida ao menos para um largo período do desenvolvimento das
línguas e que encontra, na escrita, documentos de importância singular.
À escrita ficou realmente reservada a função de registrar boa parte da evo­
lução da língua, sendo três as principais maneiras de escrever que se conhecem:
a) representar, não os sons, mas os próprios objetos, seja diretamente (anti­
gos mexicanos), seja alegoricamente (antigos egípcios);
b) representar as palavras p o r caracteres convencionais (chineses);
c) representar as partes elementares das palavras, sejam vogais, sejam arti­
culadas, para depois combiná-las em vocábulos.
“Esses três modos de escrever correspondem, exatamente, aos três diferen­
tes estados em que se p o d e considerar os homens reunidos em nações”: povos
selvagens, povos bárbaros e p o vo s policiados. Não se creia, contudo, que a arte
de escrever dependa da arte de falar — sua evolução prende-se a outras necessi­
dades que são, sobretudo, de precisão e clareza. Inevitavelmente, pois, a escrita
altera a língua, tirando-a do domínio da paixão desejosa de exprimir-se para
entregá-la à força e à clareza da razão. Eis p o r que só quando os gregos j á escre­
viam suas poesias é que puderam sentir todo o encanto da composição pura­
mente verbal dos poem as homéricos (cap. VI).
Conseqüentemente, nas línguas modernas procura-se, em pura perda, qual­
quer acento real, isto é, musical, po is nelas só se encontra o acento prosódico e
o vocal, acrescentando-se, ainda, o acento gráfico que, malgrado freqüentes
confusões, nada tem de comum com aqueles (cap. VII). A acentuação surge exa­
tamente quando desaparecem os acentos — as velhas línguas, faladas p o r nós,
nãó seriam entendidas pelos que delas se serviram correntemente. Por outro lado,
nenhuma música há nas línguas modernas e, quando falam os de sua musicali-
160 INTRODUÇÃO

d ade, apenas indicamos sua maior ou menor aptidão para serem aproveitadas na
composição musical. Tal é o caso até mesmo do italiano.

B. D IF E R E N C IA Ç Ã O D A S L ÍN G U A S

Iniciando o oitavo capítulo do Ensaio, reconhece Rousseau que até então só


cuidou das línguas prim itivas em geral e de sua evolução no tempo. Resta-lhe,
pois, um segundo desenvolvimento teórico para explicar a evolução complemen­
tar, porém possivelm ente simultânea, que levou os homens a diferentes línguas.
A explicação terá fundamento nitidamente mesológico-comparativo. Se o erro
comum dos europeus está em só considerar seu próprio caso, “para estudar o
homem, importa que a vista alcance mais longe; impõe-se começar observando
as diferenças para descobrir as propriedades ”. Por isso dedicará dois capítulos
especiais (IX e X ) à análise da form ação e diferenciação das línguas meridionais
e das línguas do norte.
A qu i voltamos, sem dúvida, ao mesmo clima teórico de outros escritos ao
tratarem das “sociedades nascentes ”. A precedência dada ao sul explica-se, aliás,
assim: nos climas quentes, as condições físicas tornam mais viável o isolamento
em que inicialmente viviam os homens. Se impulsos básicos levam-nos à repro­
dução e mesmo ao pequeno grupo biológico dela resultante, fa lta va o verdadeiro
convívio social que provoca a comparação com situações semelhantes, fo n te da
reflexão que, em si mesma, é a comparação de uma pluralidade de idéias. D a í a
barbárie dos prim eiros homens: “Sempre vendo tão-só o que estava à sua volta,
nem mesmo isso conheciam, nem sequer conheciam a si próprios. Tinham a idéia
de um pai, de um filho, de um irmão, porém não a de um homem ” D a í sua aspe­
reza natural: “Tudo que conheciam lhes era caro. Inimigos do resto do mundo,
que não viam e ignoravam, odiavam-se porque não podiam conhecer-se ”.
Concebendo uma Idade de Ouro, que não é a dos jusnaturalistas, porque
nela não há uma reunião natural e pacífica dos homens, e também não é a de
Hobbes, p o is o estado de guerra é apenas eventual no isolamento necessário,
Rousseau propende a crer que, então, a atividade produtiva seria a do pastoreio
e a da caça — a agricultura exige a expansão da posse, e, ao mesmo tempo, sua
defesa. Se, pois, passa em exame exemplos do estágio patriarcal bíblico, é para
m ostrar quanto nele ainda se está longe duma verdadeira e completa sociedade,
porém ainda assim não se esquece de que essa fa se “está bem longe da primeira
idade”. Para sair da rudeza bárbara, depois que a evolução da atividade levou os
caçadores à guerra e à conquista, e os pastores à fixação e à p a z, viria um desen­
volvimento agrícola. “O selvagem é caçador; o bárbaro, pastor; o homem civili­
zado, agricultor. ” D e tal sorte, a interpretação mesológica se reforça pelo parale­
lismo sócio-econômico.
Se, pois, necessidades afastam os homens, novas necessidades os reunirão.
Para que estas surjam, operam-se “acidentes da natureza ”, sejam cataclismá-
ticos, sejam simplesmente cíclicos como as estações em sua sucessão. A fogueira
ou a fonte, recursos simples na luta contra a natureza, são também lugares de
reunião. “A í se form aram os prim eiros laços de fam ília e aí se deram os prim ei­
ros encontros entre os dois sexos. ” E da reunião nasce a necessidade de se comu­
nicarem, isto é, a linguagem desenvolvida. Que, no Sul, se ligou substancialmente
INTRODUÇÃO 161

ao prazer e, pois, se f e z de acentos sedutores até que novas alterações levassem


o homem a só pensar em si mesmo.
Já o Norte é região de vida dura, que seleciona os homens mais fortes — ou
seja: as vozes mais ásperas — e lhes impõe o dever de uma constante atividade
— isto é, de expressões secas e diretas. A língua nasce de uma constante carência
e não do amor e da ternura. É a linguagem “da cólera e das ameaças, e essas
vozes sempre se acompanham de articulações fortes, que as tornam ásperas e
estridentes A ssim se marcam “as causas físicas mais gerais da diferença carac­
terística das línguas prim itivas ”, que hoje ainda caracterizam “as línguas moder­
nas, centenas de vezes misturadas e refundidas”.

C. A QU ESTÃO D A M ÚSICA

Claro fica que, inicialmente, as línguas meridionais eram po r natureza


musicais, ou melhor: faziam -se com a própria música. E, também, que essa músi­
ca, form ada naturalmente, era pura melodia. M uito provavelm ente tais atributos
ainda se discerniam na língua e na música dos gregos (cap. XII). A melodia é,
pois, essencial à música, como o desenho a uma pintura — o que leva Rousseau
a figurar uma hipótese sobre a arte não-figurativa, verdadeiramente profética,
que não cabe porém na ordem de nossas cogitações. Seu principal objetivo, nes­
tes capítulos dedicados à música e também eles algo afastados de nosso interesse
principal, é caracterizar a harmonia com o uma racionalização da criação sonora
que, p o r mais legítima que seja, sempre tende a abafar a invenção melódica, ou
seja, o que de musical há na música e o que de sentimental e natural há nas suas
expressões (cap. XIV). É a polêm ica contra Rameau que, de tal sorte, acaba p o r
estabelecer-se francam ente e, como convinha à querela em curso, pôr-se em dire­
ta relação com as línguas, observadas as características temperamentais destas.
Trata-se de deixar bem claro que o simples estímulo das sensações, po r mais cal­
culado que seja, não atinge o objetivo maior da comunicação musical, que é de
despertar, p o r via de sensações estimuladas, impressões morais (cap. X V ). D esa­
tendendo à natureza temporal da música (cap. X V I) e aproximando-se perigosa­
mente da mera sensação física (cap. XVII), os músicos atentam contra sua pró ­
pria arte: “Deixou já de falar e logo não cantará mais; então, com todos os seus
acordes e toda a sua harmonia, não terá mais efeito algum sobre nós ”.
Todas as alegações eruditas, como as referências descabidas à música grega
(cap. XVIII), de nada valerão para deter a degenerescência da música moderna
que, comprometida pela antimusicalidade dos bárbaros durante toda a Idade
M édia, encontrará o termo fin a l na racionalização, isto é, na harmonização, ini­
migo m ortal da melodia (cap. X IX ).

D . O C A PÍTU L O F IN A L

Já as prim eiras palavras do capítulo X X denunciam que ele não se liga dire­
tamente aos que o precedem. D e fa to , as palavras iniciais — tais progressos. . .
— não se referem especificamente aos progressos, aliás funestos, da música, de
que se acaba de falar, senão diretamente às transformações da língua, de que se
tratou até o capítulo X I. Há base, pois, para inferir-se ou que Rousseau haja
162 INTRODUÇÃO

inserido suas observações musicais num texto anteriormente preparado para


explicar a evolução das línguas (e, então, a hipótese de P. M. M asson cresce de
importância), ou que o texto, concebido e atacado como um todo, p o r qualquer
razão permaneceu privado de alguns capítulos anteriores ao que conclui a versão
de que hoje dispomos.
D e qualquer form a, esse vigésimo capítulo é um esboço precioso dos desen­
volvimentos que, no final, deixa vislumbrar com a frase de Duelos, inter-relação
sobre a língua-sociedade, não apenas no sentido evolutivo, que de qualquer modo
ficou bastante explícito nas duas porções iniciais do Ensaio, senão também no
sentido daquela alienação da natureza humana submetida à deformação trazida
pelas anomalias da sociedade policiada ao cair sob o despotismo. É o que nos
perm item supor os quatro parágrafos do capítulo X X .
D e fa to , se a vida em sociedade transfigurou e alterou o sentido prim eiro e
natural da linguagem, tirando-lhe quase tudo da comunicação sentimental e
moral, para dar-lhe apenas precisão e clareza, um segundo passo, ainda mais
funesto, aqui fic a assinalado: quando não há liberdade, a língua se torna inútil.
Realmente, se o homem tudo perde quando perde a liberdade, não há p o r que
pretender reservar-se a comunicação com os semelhantes quando suas relações
são ditadas do alto. A eloqüência, comunicação entre os cidadãos sobre matéria
de interesse comum, esvazia-se de sentido e função. Restariam os sermões, isto é,
a eloqüência em solilóquio e ditada pelq autoridade, porém até mesmo a form a
deturpada deixa de ser útil em relação ao povo, do qual afinal para nada depen­
de. E, conseqüentemente, a linguagem, permanecendo em função secundária e
apenas para contatos sem grandes conseqüências, já não conhece um verdadeiro
cultivo; “no sussurro dos sofás ”, no púlpito, na voz de “um acadêmico que, num
dia de assembléia pública, lê uma memória ” sem qualquer repercussão, resume-
se a vida desse instrumento que o homem conquistou e desenvolveu para mais
ligar-se aos outros homens.
Eis como se torna evidente e decisiva a importância do Ensaio sobre as Lín­
guas no desenvolvimento da teoria política deJean-Jacques Rousseau.
ENSAIO SOBRE
A ORIGEM DAS LÍNGUAS’
NO QUAL SE FALA DA
MELODIA E DA IMITACÀO MUSICAL

1 Nas primeiras edições do Emílio, Rousseau, ao referir-se a este texto em nota que figura no Livro IV, cha­
mava-o de Ensaio sobre o Princípio da Melodia. O título atual surge na mesma nota, porém nas edições
subsequentes. (N. de L. G. M.) -
C a p ít u l o I

Dos vários meios de comunicar nossos


pensamentos

A palavra distingue os homens entre flzeram-no buscar meios para isso.


os animais2; a linguagem, as nações Tais meios só podem provir dos senti­
entre si — não se sabe de onde é um dos, pois estes constituem os únicos
homem antes de ter ele falado. O uso e instrumentos pelos quais um homem
a necessidade levam cada um a apren­ pode agir sobre outro. Aí está, pois, a
der a língua de seu país, mas o que faz instituição dos sinais sensíveis para
ser essa língua a de seu país e não a de exprimir o pensamento. Os inventores
um outro? A fim de explicar tal fato, da linguagem não desenvolveram esse
precisamos reportar-nos a algum moti­ raciocínio, mas o instinto sugeriu-lhes
vo que se prenda ao lugar e seja ante­ a conseqüência4.
rior aos próprios costumes, pois, sendo Limitam-se a dois os meios gerais
a palavra a primeira instituição so­ por via dos quais podemos agir sobre
os sentidos de outrem: o movimento e
cial3, só a causas naturais deve a sua a voz. A ação do movimento pode ser
forma.
Desde que um homem foi reconhe­
cido por outro como um ser sensível, 3 Instituição social, porque, na formação da
linguagem, interessa menos a aptidão fisioló­
pensante e seníèlhante a ele próprio,' o gica para emitir e articular sons do que a
desejo ou a necessidade de comunicar- necessidade de comunicação que leva o
lhe seus sentimentos e pensamentos homem a utilizar essa possibilidade para
desenvolver as palavras. E o que se lerá a
seguir, sendo de sublinhar que Rousseau não
2 Pelo Discurso sobre a Desigualdade sabe­ trepida e chega aos extremos de suas hipóteses
mos, primeiro, que não é tanto pelo entendi­ quando coloca o gesto em posição equivalente
mento que os homens se distinguem dos ani­ à da palavra enquanto meio de comunicação,
mais, senão pela sua qualidade específica de para depois apontar a razão da preferência
homem: a capacidade de se aperfeiçoar tanto pela linguagem falada. (N. de L. G. M.)
individualmente quanto como espécie. Fiel à 4 SupÕe-se aqui o homem em um nível de
lição de Montaigne, Rousseau opõe-se à unani­ existência extremamente singelo — vive sozi­
midade dos seus contemporâneos, para os nho, embora venha a ter contatos com os
quais o homem se caracteriza como um “ ani­ semelhantes. Em tais condições, não se neces­
mal racional”. Aqui, se a faculdade da palavra sita explicar o uso da palavra nem pela razão
é apontada como traço distintivo, logo se nem por um impulso inato, pois estamos em
patenteará sua pequena importância, para tor­ face de um fenômeno de “vivência” ; a possibi­
nar mais evidente a função da linguagem que, lidade oferecida pela constituição do homem
essa, é um dos aperfeiçoamentos típicos do vale à necessidade trazida pelo contato com
homem. (N. de L. G. M.) outro homem. (N. de L. G. M.)
166 ROUSSEAU

imediata, no tato, ou mediata, no vras mas com sinais. Não o diziam,


gesto. A primeira, encontrando seu li­ mostravam-no5.
mite no comprimento do braço, não Abri a História antiga e a encontra­
pode transmitir-se a distância, mas a reis cheia desses meios de convencer os
outra alcança tão longe quanto o raio olhos, que nunca deixam de produzir
visual. Restam, pois, somente a vista e efeito mais seguro do que o de todos os
o ouvido como órgãos passivos da lin­ discursos que se poderia colocar em
guagem entre homens dispersos. seu lugar. O objeto oferecido antes da
Apesar de serem a linguagem do palavra acorda a imaginação, excita a
gesto e a da voz igualmente naturais, a curiosidade, mantém o espírito em sus­
primeira, todavia, parece mais fácil e penso e na expectativa do que se vai
depende menos de convenções, por­ dizer. Observei que os italianos e os
quanto um maior número de objetos prov.ençais, entre os quais comumente
impressiona antes nossos olhos do que o gesto precede o discurso, encontram
nossos ouvidos, e as figuras apresen­ assim um meio de se fazer ouvir me­
tam maior variedade do que os sons, lhor e até com mais prazer. Entretanto,
mostrando-se também mais expres­ a linguagem mais expressiva é aquela
sivas e dizendo mais em menos tempo. em que o sinal diz tudo antes que se
O amor, dizem, foi o inventor do dese­ fale. Tarqüínio, Trasíbulo, decepando
nho; pôde também inventar a palavra, os botões de papoula, Alexandre apon­
porém com menor felicidade. Pouco do seu selo à boca do favorito, Dióge-
satisfeito com ela, despreza-a; possui nes passeando diante de Zenão, não
maneiras mais vivas para se exprimir. falavam melhor do que com palavras?
Quanto dizia a seu amante aquela que Qual o conjunto de palavras que te­
com tanto prazer traçava a sua som­ riam exprimido tão bem as mesmas
bra ! Que sons poderia empregar para idéias? Dario, com seu exército na
traduzir esse movimento, do braço? Cítia, recebe do rei dos citas uma rã,
Nossos gestos nada significam além um pássaro, um rato e cinco flechas. O
de nossa inquietação natural, mas não mensageiro entrega silenciosamente o
é desses gestos que desejo falar. Só os presente e parte. O terrível discurso foi
europeus gesticulam quando falam; compreendido, e Dario só se preocu­
dir-se-ia que toda a força de sua lin­ pou em alcançar, com a maior rapidez
guagem reside nos braços, e acrescen­ possível, o seu país. Substituí esses si­
tam-lhe ainda a dos pulmões, de nada nais por uma carta — quanto mais
lhes servindo tudo isso. Enquanto um ameaçadora for, menos intimidará.
francês se agita e martiriza o corpo Não passaria de uma fanfarronada, da
dizendo muitas palavras, um turco tira qual Dario só teria de rir.
por um momento o cachimbo da boca, Quando o levita Efraim 6 quis vingar
diz a meia voz duas palavras e esma­
ga-o com uma sentença. 5 Em síntese, o meio expressivo em si mesmo
nada vale — depois de ter servido para trans­
Depois que aprendemos a gesticular, mitir os símbolos das coisas e das ações, pode
esquecemo-nos da arte das pantomi­ esvaziar-se de conteúdo e permanecer como
mas, pelo mesmo motivo por que, pos­ algo inteiramente inócuo, como seja a gesticu­
suindo muitas belas gramáticas, não lação. (N. de L. G. M.)
6 Desse episódio bíblico (Juizes ”, 19 a 21)
entendemos mais os símbolos dos egíp­ Rousseau tirara um breve poema em prosa,
cios. O que os antigos diziam com pelo qual sempre demonstrou particular cari­
maior vigor não exprimiam com pala­ nho. (N. de L. G. M.)
ENSAIO SOBRE A ORIGEM DAS LÍNGUAS 167

a morte de sua mulher, não escreveu às impressiona por meio de golpes redo­
tribos de Israel; dividiu-lhe o corpo em brados, proporciona-vos emoção bem
doze pedaços que enviou a elas. A hor­ diversa da causada pela presença do
rível visão, empunharam rapidamente próprio objeto, diante do qual, com um
as armas, gritando todos a uma só voz: só golpe de vista, tudo já vistes. Supon­
N ão! nunca tal coisa aconteceu em de uma situação de dor perfeitamente
Israel, desde o dia em que nossos pais conhecida — vendo a pessoa aflita,
saíram do Egito até hoje. E a tribo de dificilmente vos comovereis até o pran­
Benjamim foi exterminada7. to; dai-lhe, porém, tempo para dizer-
Em nossos dias, o assunto, transfor­ vos tudo que sente e logo vos desman­
mado em arrazoados, em discussões, chareis em lágrimas. Assim as cenas
até mesmo em brincadeiras, arrastar- de tragédia conseguem efeito9. Somen­
se-ia, e permaneceria impune o mais te a pantomima, sem o discurso,
tremendo dos crimes. O rei Saul, vol­ deixar-vos-á quase tranqüilo e o dis­
tando da lavoura, também despedaçou curso, sem -o gesto, arrancar-vos-á lá­
os bois de seu arado e serviu-se de um grimas. As paixões possuem seus ges­
sinal semelhante para fazer Israel tos, mas também suas inflexões, e
socorrer a cidade de Jabés. Os profetas essas inflexões que nos fazem tremer,
dos judeus, os legisladores dos gregos, essas inflexões a cuja voz não se pode
oferecendo freqüentemente ao povo fugir, penetram por seu intermédio até
objetos visíveis, falavam-lhe melhor 0 fundo do coração, imprimindo-lhe,
com esses objetos do que o teriam feito mesmo que não o queiramos, os movi­
com longos discursos, e o modo pelo mentos que as despertam e fazendo-
qual Ateneu conta como o orador nos sentir o que ouvimos. Concluamos
Hipérides fez absolver a cortesã Fri- que os sinais visíveis tornam a imita­
néia, sem alegar em sua defesa uma ção mais exata e que o interesse me­
única palavra, constitui ainda uma lhor se excita pelos sons1°.
eloqüência muda, cujo efeito, em todos Inclino-me, por isso, a pensar que,
os tempos, não é raro8. se sempre conhecêssemos tão-só neces-
Assim se fala aos olhos muito me­
lhor do que aos ouvidos. Não há uma 9 Em outro trecho, expliquei por que as infeli-
só pessoa que não reconheça a verdade cidades fingidas nos tocam bem mais do que
do juízo de Horácio a tal respeito. as verdadeiras. Uma pessoa pode soluçar
ouvindo uma tragédia e nunca, durante toda a
Compreende-se mesmo que os discur­ vida, sentir piedade por qualquer infeliz. O tea­
sos mais eloqüentes são aqueles em tro se presta admiravelmente para enobrecer
que se introduz o maior número de nosso amor-próprio com todas as virtudes que
imagens e os sons nunca possuem não possuímos. (N. do A.)
maior energia do que quando fazem o 10 Aqui se esboça uma teoria psicológica da
comunicação e, aparentemente, uma estética
efeito das cores. baseada na imitação, cabendo, por isso
Temos coisa totalmente diversa, mesmo, lembrar que no pensamento de Rous­
contudo, quando se trata de comover o seau as paixões constituem a mais direta
coração e inflamar as paixões. A expressão natural do homem e, corresponden­
temente, as inflexões emocionais importam
impressão sucessiva do discurso, que mais do que a significação racional das pala­
vras. Assim, o caráter imitativo da arte acaba
7 Restaram somente seiscentos homens, sem por passar para segundo plano, prevalecendo a
mulheres e filhos. (N. do A.) comunicação emotiva e, portanto, ganhando a
8 Apresentando-a nua aos juizes. (N. de L. G. palavra falada um valor que não possuem os
M.) símbolos puramente visuais. (N. de L. G. M.)
168 ROUSSEAU

sidades físicas, bem poderíamos jamais que dizem, vêem-se forçados a ensi­
ter falado, e entender-nos-íamos perfei­ nar-lhes, antes, uma outra língua, não
tamente apenas pela linguagem dos menos complicada, por meio da qual
gestos11. Poderíamos ter estabelecido possam fazer com que entendam aque­
sociedades, pouco diversas do que são la.
hoje, ou que alcançassem até melhor o Chardin1 4 conta que, nas índias, os
seu objetivo. Teríamos podido instituir mensageiros, um segurando a mão do
leis, escolher chefes, inventar artes, outro e modificando as pressões de um
estabelecer o comércio e, numa pala­ modo que ninguém pode perceber, tra­
vra, fazer quase tantas coisas quantas tam assim, publicamente mas em se­
fazemos com o auxílio da palavra. A gredo, de todos os negócios sem dizer
língua epistolar dos “salames” 12 uma só palavra. Suponde esses mensa­
transmite, sem temor dos ciumentos, geiros cegos, surdos e mudos — não se
os segredos da galantaria oriental para entenderiam menos bem, mostrando
o interior dos haréns mais bem guarda­ tal fato que, dos dois sentidos pelos
dos. Os mudos do sultão se entendem quais somos ativos, um só bastaria
para formar-nos uma linguagem.
entre si e compreendem por sinais tudo
Parece, ainda pelas mesmas obser­
o que se lhes diz, tão bem quanto se
vações, que a invenção da arte de
poderia dizer-lhes por meio do discur­
comunicar nossas idéias depende
so. O Sr. Pereyra13 e todos aqueles menos dos órgãos que nos servem para
que, como ele, ensinam os mudos não tal comunicação do que de uma facul­
somente a falar mas também a saber o dade própria do homem, que o faz
11 Desenvolvendo as afirmações anteriores empregar seus órgãos com esse fim e
(v. nota n.° 3, supra) chegamos agora à convic­ que, caso lhe faltassem, o fariam
ção de que as simples necessidades físicas, isto empregar outros órgãos com o mesmo
é, individuais, dispensariam a palavra, que, fim. Dai ao homem uma organização
pois, como se dizia no início do Ensaio, tem
sua origem nas necessidades mais complexas
tão grosseira quanto possais imaginar:
que resultam do convívio com os semelhantes indubitavelmente, adquirirá menos
— defrontamos uma convenção social. O tre­ idéias, mas, desde que haja entre ele e
cho é, contudo, complexo e de difícil interpre­ seus semelhantes qualquer meio de
tação, pois nele se admite que o homem natu­ comunicação pelo qual um possa agir
ral viva em grupo — são, porém,
agrupamentos “naturais”, resultantes diretos e o outro sentir, acabarão afinal por
dos impulsos biológicos, algo mais complexos, comunicar todas as idéias que pos­
porém da mesma natureza dos grupos animais. suem1 5.
Não obstante, nesta passagem, Rousseau enca­
rece o valor da simbólica em si, distinguindo-a 1 4 Trata-se do mesmo Chardin, autor das
do instrumento de simbò|lização. Viagens e especialmente da Viagem à Pérsia,
(N. de L. G. M.) que já conhecemos de citações em outros tex­
12 Os “salames” são multidões de coisas as tos (v., por ex., nota j ao Discurso sobre a
mais comuns, como uma laranja, uma fita, um Desigualdade). Convém registrar que no D i­
pedaço de carvão, etc., cujo envio possui um cionário de Música também surgem fartas
sentido conhecido de todos os amorosos nas referências a essa mesma fonte, que assim se
regiões onde se usa tal língua. (N. do A.) torna um ponto de reparo para as hipóteses
13 Em 1760, o espanhol Jacob Rodríguez sobre a data em que se escreveu este Ensaio.
Pereyra foi chamado a Paris, e aí passou a (N. de L. G. M.)
viver como pensionista real. Impressionado 1 6 Concluindo anteriores desenvolvimentos,
com sua atividade reeducativa, BufTon lou­ aqui se rejeita em definitivo qualquer explica­
vou-o no capítulo da História Natural do ção meramente fisiológica da comunicação
Homem dedicado ao sentido da audição. (N. pela linguagem. Assim se afirma a origem so ­
de L. G. M.) cial da linguagem, tal como hoje a aceitam a
ENSAIO SOBRE A ORIGEM DAS LÍNGUAS 169

Os animais dispõem, para essa co­ das formigas se compõem de gestos,


municação, de uma organização mais falando somente aos olhos. D e qual­
do que suficiente e jamais qualquer quer modo, justamente por serem natu­
deles utilizou-a. Com o que, segundo rais, tanto uma quanto outra dessas
me parece, se firma uma diferença línguas não são adquiridas: os ani­
muito característica. Aqueles animais mais, que as falam, já as possuem ao
que trabalham e vivem em comum, nascer; todos as teme em todos os luga­
como os castores, as formigas e as abe­ res são as m esm as; absolutamente não
lhas, possuem — não duvido — algu­ as mudam e nelas não conhecem qual­
ma língua natural para se comuni­ quer progresso. A língua de convenção
carem entre si. Há mesmo razão para só pertence ao homem e esta é a razão
crer-se que a língua dos castores e a por que o homem progride, seja para o
psicologia e a sociologia atuais (v. Ernst Cas­ bem ou para o mal, e por que os ani­
sirer: Ensaio sobre o Homem, Nova York, mais não o conseguem. Essa distinção,
1953). Embora se sigam, na passagem, alguns por si só, pode levar-nos longe. Dizem
equívocos de ordem zoológica, não chegam
eles a invalidar a afirmação básica — “a lín­ que se explica pela diferença de ór­
gua de convenção só pertence ao homem”. (N. gãos. Gostaria de conhecer tal explica­
d eL .G .M .) ção.

C a p ít u l o II

De como a primeira invenção das palavras não


vem das necessidades, mas das paixões

Pode-se, pois, crer que as necessi­ Assim devia ser. Não se começou
dades ditam os primeiros gestos e que raciocinando, mas sentindo. Pretende-
as paixões arrancaram as primeiras se que os homens inventaram a palavra
vozes. Seguindo a trajetória dos fatos para exprimir suas necessidades; tal
com base nessas distinções, seria tal­ opinião parece-me insustentável. O
vez preciso raciocinar sobre a origem efeito natural das primeiras necessi­
das línguas de um modo totalmente dades1 7 consistiu em separar os ho­
diverso do que se fez até hoje. O gênio mens e não em aproximá-los18. Era
das línguas orientais, as mais antigas preciso que assim acontecesse para
que conhecemos, desmente por com­ que a espécie acabasse por esparra­
pleto a marcha didática que se imagina mar-se e a terra se povoasse com rapi­
para a sua composição. Essas línguas dez, pois sem isso o gênero humano
nada possuem de metódico e racioci­ ter-se-ia amontoado num canto do
nado; são vivas e figuradas. Apresen­ mundo e todo o resto ficaria deserto.
tam-nos a linguagem dos primeiros ho­ Daí se conclui, por evidência, não se
mens como línguas de geômetras e veri­ dever a origem das línguas às primei-
ficamos que são línguas de poetas1 6.
1 7 Mais exatamente: das necessidades físicas
1 • Não se deve tomar esta afirmação — tão instintivas, como a seguir ficará claro. (N. de
admiravelmente formulada — como uma L. G. M.)
expressão do alegado anti-racionalismo de 18 Há, aqui, uma clara ressonância de Hob­
Rousseau, senão como uma inferência baseada bes, embora logo depois adquira inesperada
em dados históricos. (N. de L. G. M.) extensão finalista. (N. de L. G. M.)
170 ROUSSEAU

ras necessidades dos homens; seria vozes. Os frutos não fogem de nossas
absurdo que da causa que os separa mãos, é possível nutrir-se com eles sem
resultasse o meio que os une. Onde, falar; acossa-se em silêncio a presa que
pois, estará essa origem? Nas necessi­ se quer comer; mas, para emocionar
dades morais19, nas paixões. Todas as um jovem coração, para repelir um
paixões aproximam os homens, que a agressor injusto, a natureza impõe
necessidade de procurar viver força a sinais, gritos e queixumes. Eis as mais
separarem-se. Não é a fome ou a sede, antigas palavras inventadas, eis por
mas o amor, o ódio, a piedade, a cóle­ que as primeiras línguas foram cantan­
ra, que lhes arrancaram as primeiras tes e apaixonadas antes de serem sim­
19 Tais necessidades já derivam de um conta­
ples e metódicas. Tudo isso não será
to com os semelhantes, de um primeiro rudi­ indistintamente verdadeiro, porém den­
mento de vida social. (N. de L. G. M.) tro em pouco voltarei ao assunto.

C a p ít u l o III

De como a primeira linguagem teve de ser


figurada

Como os primeiros motivos que esses homens maiores e mais fortes do


fizeram o homem falar foram paixões, que ele próprio e a dar-lhes o nome de
suas primeiras expressões foram tro­ gigantes. Depois de muitas experiên­
pos. A primeira a nascer foi a lingua­ cias, reconheceria que, não sendo esses
gem figurada e o sentido próprio foi pretensos gigantes nem maiores nem
encontrado por último. Só se chama­ mais fortes do que ele, à sua estatura
ram as coisas pelos seus verdadeiros não convinha a idéia que a princípio li­
nomes quando foram vistas sob sua gara à palavra gigante. Inventaria,
forma verdadeira. A princípio só se pois, um outro nome comum a eles e a
falou pela poesia, só muito tempo de­ si próprio, como, por exemplo, o nome
pois é que sê tratou de raciocinar. homem e deixaria o de gigante para o
falso objeto que o impressionara du­
Bem sei que, neste ponto, o leitor me
rante sua ilusão. Aí está como a pala-
interromperá e me perguntará como
vTa figurada nasce, antes da própria,
pode uma expressão ser figurada antes
quando a paixão nos fascina os olhos e
de ter um sentido próprio, se a figura
a primeira idéia que nos oferece não é
consiste na translação do sentido.
a da verdade. O que disse a respeito
Concedo-o; mas, para me compreen­
das palavras e dos nomes aplica-se
derem, será preciso substituir a palavra
sem dificuldade aos torneios de frases.
que transpomos pela idéia que a pai­
Apresentando-se, em primeiro lugar, a
xão nos oferece — só se transpõem as
imagem ilusória oferecida pela paixão,
palavras porque se transpõem também
a linguagem que lhe corresponderia foi
as idéias, pois de outro modo a lingua­
também a primeira inventada; depois
gem figurada nada significaria. Res
tomou-se metafórica quando o espírito
pondo, portanto, com um exemplo.
esclarecido, reconhecendo seu próprio
Um homem selvagem, encontrando erro, só empregou as expressões para
outros, inicialmente ter-se-ia amedron­ as próprias paixões que as produzi­
tado. Seu terror tê-lo-ia levado a ver ram.
ENSAIO SOBRE A ORIGEM DAS LÍNGUAS 171

C a p ít u l o IV
D os caracteres distintivos da primeira língua
e das mudanças que teve de sofrer

Os sons simples saem naturalmente guem, podem do mesmo modo multi­


da garganta, permanecendo a boca, plicar-se. Todas as notas musicais são
naturalmente, mais ou menos aberta. outros tantos acentos. É verdade que
Mas as modificações da língua e do só temos três ou quatro na palavra,
palato, que fazem a articulação, exi­ porém os chineses possuem muitos
gem atenção e exercícios; não as mais e, em compensação, possuem
conseguimos sem desejar fazê-las.
Todas as crianças têm necessidade de próprio Rousseau, encontramos o seguinte:
"ACCENT. Assim se chama, na acepção mais
aprendê-las e inúmeras não o conse­ geral, qualquer modificação da voz falada na
guem com facilidade. Em todas as lín­ duração e tom das sílabas e palavras de que se
guas, as exclamações mais vivas são compõe o discurso, o que demonstra uma rela­
inarticuladas. Os gritos e gemidos são ção exata entre os dois usos dos acentos e as
duas partes da melodia, a saber, o ritmo e a
vozes simples; os mudos, ou seja, os entonação. Accentus, diz o gramático, quasi
surdos, só lançam sons inarticulados. ad cantus [ . . . ] .
O Padre Lamy não concebe mesmo “Distinguem-se três desses gêneros [de acen­
que os homens pudessem jamais inven­ tos] no discurso simples: o acento gramatical,
tar outros sons, se Deus não os ensi­ que inclui a regra dos acentos propriamente
nasse expressamente a falar. As articu­ ditos, segundo os quais o som da sílaba é grave
ou agudo, e a da quantidade, segundo a qual
lações são poucas, os sons são cada sílaba é breve ou longa, et c. . . ”
inúmeros e os acentos20, que os distin­ O que nos traz de volta ao gramático brasi­
leiro, quando diz:
20 Adotamos, para traduzir a palavra accent,
sua correspondente mais próxima em portu­ “Tem havido, no domínio prosódico, tradi­
guês: acento. O emprego do termo parece cional confusão entre quantidade, qualidade e
exato, a nos basearmos em Eduardo Carlos tonicidade. A tradição latina e a sutileza da
Pereira: “Acento (do latim accentus = canto) distinção entre a extensão, timbre e intensidade
é a modulação da voz humana, que se reforça das vogais são a fonte constante de baralha-
e se enfraquece sobre certas sílabas do vocábu­ mento entre os gramáticos. A quantidade silá­
lo, dando-lhe maior ou menor sonoridade; do bica quase desapareceu no domínio romano.
que resulta a variedade, a harmonia, a beleza Entretanto, representou ela o papel proemi­
musical das palavras, elemento tão necessário nente nas línguas clássicas — o grego e o
como o próprio som. Há na palavra, disse Cí­ latim. Nelas, era o acento tônico subordinado
cero, uma espécie de canto: est in dicendo à quantidade, ao passo que fenômeno inverso é
etiam quidam cantus”. O acento dos gramá­ o que se dá nas línguas neolatinas, nas quais a
ticos latinos correspondia, em significação quantidade se subordina à tonicidade. Naque­
etimológica e uso, ao termo prosódia dos las línguas antigas, a quantidade, na expressão
gramáticos gregos [ . . .]. de Guardia, era a alma do acento tônico; hoje
“Por uma natural transladação de sentido, a a tônica é o centro de gravidade do vocábulo
palavra acento designa também os sinais gráfi­ neolatino”. (Idem, § 80, observações.)
cos, chamados acento agudo, grave e circun­ Quanto ao plural da palavra, em sendo o caso,
flexo, com que indicamos certos valores fonéti­ seguimos a indicação de Rousseau no citado
cos na deficiência de símbolos literais/’ Dicionário:
(Eduardo Carlos Pereira, Gramática Exposi- “A C C E N S . Os poetas empregam freqüente­
tiva, Curso Superior, São Paulo, Companhia mente esta palavra no plural para significar o
Editora Nacional, § 82, observações.) próprio canto e o fazem acompanhar ordina­
Ora, consultando o Dicionário de Música, do riamente por um epíteto, e tc . . . ” (N. da T.)
172 ROUSSEAU

menos consoantes. A essa fonte de a onomatopéia, nesse caso, apresen­


combinações acrescentai a do tempo tar-se-ia continuamente.
ou da quantidade e tereis não somente Essa língua possuiria muitos sinô­
mais palavras, porém mais sílabas nimos para exprimir o mesmo ser em
diversificadas do que necessitará a suas várias relações21 e poucos advér­
mais rica dâs línguas. bios e palavras abstratas para exprimir
Não duvido que, independen­ essas mesmas relações. Compreenderia
temente do vocabulário e da sintaxe, a inúmeros aumentativos, diminutivos,
primeira língua, caso ainda existisse, palavras compostas, partículas expleti-
não houvesse conservado caracteres vas para dar a cadência aos períodos e
originais que a distinguiriam de todas tomar fluentes as frases; contaria mui­
as demais. Não somente todos os tor­ tas irregularidades e anomalias; des­
neios dessa língua deveriam fazer-se cuidaria da analogia gramatical para
por imagens, sentimentos e figuras, se prender à eufonia, ao número, à har­
como também, na sua parte mecânica, monia e à beleza dos sons. Em lugar de
deveriam corresponder a seu primeiro arrazoados, teria sentenças; persua­
objeto e apresentar, aos sentidos e ao diria sem convencer e descreveria sem
entendimento, as impressões quase ine­ raciocinar; parecer-se-ia, em certos
vitáveis da paixão que se procura aspectos, com a língua chinesa, em
comunicar. outros, com a grega e, ainda em
Como as vozes naturais são inar­ outros, com a árabe. Prolongai essas
ticuladas, as palavras possuiriam pou­ idéias em todas as 'suas implicações e
cas articulações; algumas consoantes vereis que o Crátilo22 de Platão não é
interpostas, destruindo o hiato das tão ridículo quanto parece ser.
vogais, bastariam para tomá-las cor­
rentes e fáceis de pronunciar. Em 21 Diz-se que o árabe possui mais de mil
palavras diferentes para designar o camelo,
compensação, os sons seriam muito mais de cem para espada, etc. (N. do A.).
variados, a diversidade dos acentos 22 No Crátilo, Platão sustenta que o nome de
multiplicaria as vozes; a quantidade, o uma coisa significa a natureza dessa coisa.
ritmo, constituiriam novas fontes de Assim adota uma concepção que se liga à ori­
gem sobrenatural do conhecimento e da pala­
combinações, de modo que as vozes, vra, segundo a qual falar não é emitir um sim­
os sons, o acento, o número, que são ples sopro de ar, um flatus voeis, senão revelar
da natureza, deixando às articulações, a própria natureza dos seres. Aliás, as religiões
que são convenções, bem pouco a sempre atribuíram transcendental significado
fazer, cantar-se-ia em lugar de falar. A ao verbo. Não obstante, Rousseau, no caso,
parece referir-se apenas a uma simples conse­
maioria dos radicais seriam sons imi- qüência da teoria platônica: o nome das coisas
tativos, quer do acento das paixões, não resulta de uma escolha arbitrária. (N.de L.
quer do efeito dos objetos sensíveis — G. M .)

C a p ít u l o V

Da escrita

Quem quer que estude a história e o tes, e que as inflexões que desaparecem
progresso das línguas, verificará que, e as qualidades que se igualam são
quanto mais se tornam monótonas as substituídas por combinações gramati­
vozes, mais se multiplicam as consoan­ cais e por novas articulações. Somente,
ENSAIO SOBRE A ORIGEM DAS LÍNGUAS 173

porém, o decorrer do tempo pode tra­ as sílabas imagináveis. Esse modo de


zer tais mudanças. N a medida em que escrever, que é o nosso, com certeza foi
as necessidades crescem, os negócios imaginado por povos comerciantes
se complicam, as luzes se expandem, a que, viajando em inúmeros países e
linguagem muda de caráter. Toma-se tendo de falar diversas línguas, se
mais justa e menos apaixonada, substi­ viram forçados a inventar caracteres
tui os sentimentos pelas idéias, não que pudessem ser conhecidos de todos.
fala mais ao coração, senão à razão. Não se trata, precisamente, de escrever
Por isso mesmo, o acento se extingue e a palavra, mas de analisá-la.
a articulação progride; a língua fica Esses três modos de escrever corres­
mais exata, mais clara, porém mais pondem, exatamente, aos três diferen­
morosa, mais surda e mais fria. Tal tes estados em que -se pode considerar
progresso parece-me perfeitamente na­ os homens reunidos em nações. A pin­
tural. tura dos objetos convém aos povos sel­
Um outro meio de comparar as lín­ vagens; os sinais das palavras e das
guas e julgar de sua antiguidade encon­ proposições, aos povos bárbaros; e o
tra-se na escrita, e na razão inversa da alfabeto, aos povos policiados.
perfeição dessa arte. Quanto mais Não se deve, pois, pensar que esta
grosseira for a escrita, mais antiga a última invenção constitua uma prova
língua. A primeira maneira de escrever da grande antiguidade do povo inven-,
não consiste em pintar os sons mas os tor. Pelo contrário, é provável que o
próprios objetos, seja diretamente, povo que a encontrou tivesse em mira
como o faziam os mexicanos, seja por a comunicação mais fácil com outros
figuras alegóricas, como o fizeram povos que falassem outras línguas, os
outrora os egípcios23. Esse estado quais eram, pelo menos, seus contem­
corresponde à língua apaixonada e já porâneos e poderiam ser mais antigos
supõe algo de sociedade e de necessi­ do que ele. Não se pode dizer o mesmo
dades suscitadas pelas paixões. dos outros dois métodos. Confesso, no
A segunda maneira consiste em entanto, que, se nos ativermos à Histó­
representar as palavras e as proposi­ ria e aos fatos conhecidos, a escrita
ções por caracteres convencionais, o pelo alfabeto parece remontar tão alto
que só pode sobrevir quando a língua quanto qualquer outra. Não sur­
se formou inteiramente e quando todo preende, contudo, que não tenhamos
um povo se une por leis comuns, pois monumentos dos tempos em que não
já vai nisso uma convenção dupla. Tal se escrevia2 4.
é a escrita dos chineses e consiste, real­ É pouco verossímil que os primeiros
mente, em pintar os sons e falar aos a terem a idéia de resolver a palavra
olhos. em sinais elementares conseguissem
O terceiro modo é a decomposição desde o início divisões bastante exatas.
da voz falada num certo número de Quando depois perceberam a insufi-
partes elementares, sejam vogais,
sejam articuladas, com as quais se pos­ 2 4 Pelo segundo Discurso e, também, pela
sam formar todas as palavras e todas Carta a Christophe de Beaumont, sabemos que
o método histórico de Rousseau admitia, na
falta de documentação precisa, as hipóteses
23 Cabe lembrar que, como é óbvio, os dois interpretativas provadas apenas pela maior ou
exemplos dados não passavam, então, de menor capacidade de explicar coerente e veros-
meras suposições sem base objetiva. (N. de L. similmente a evolução dos fatos conhecidos.
G. M.) (N. de L. G. M.)
174 ROUSSEAU

ciência de sua análise, uns, como os uma tal escrita pode bastar a um povo
gregos, multiplicaram os caracteres de policiado prova-o o exemplo dos mexi­
seu alfabeto, e outros contentaram-se canos, que possuíam uma ainda menos
em variar o sentido e o som por meio cômoda.
de posições ou combinações diferentes. Comparando-se o alfabeto copta
Desse modo parecem ser escritas as com o siríaco ou com o fenício,
inscrições das ruínas de Tchelminar, conclui-se, com facilidade, que um
das quais Chardin nos oferece écti- vem do outro. E não causaria espanto
pos2 5. Não se distinguem neles senão que fosse este último o original, nem
duas figuras ou caracteres2 6, porém de que, nesse ponto, o povo mais moder­
tamanhos diferentes e colocadas em no tivesse instruído 0 mais antigo.
vários sentidos. Essa língua desconhe­ Também é certo que o alfabeto grego
cida e de uma antiguidade quase vem do fenício; compreende-se mesmo
espantosa, todavia, deveria ser, a seu que devesse vir. Não se sabe se Cadmo
tempo, bem formada, se a julgarmos ou qualquer outro o trouxe da Feníciá,
pela perfeição das artes patenteada mas o certo é que os gregos não o
pela beleza dos caracteres e pelos foram procurar e que os próprios fení­
monumentos admiráveis em que se cios o trouxeram, pois, dos povos da
acham tais inscrições2 7. Não sei por Ásia e da África, foram os primeiros e
que se fala tão pouco dessas ruínas quase os únicos2 8 que comerciaram na
impressionantes. Quando li a sua des­ Europa e chegaram à Grécia m uito1
crição por Chardin, pensei estar-me
transportando para um outro mundo. 2 7 “Essa escrita parece muito bela e nada tem
Parece-me que tudo isso leva à refle­ de confusa ou bárbara. Dir-se-ia que as letras
xão apaixonada. foram douradas, pois há muitas, sobretudo
maiúsculas, onde ainda aparece o ouro e certa­
A arte de escrever não se liga à de mente constitui fato admirável e inconcebível
falar. Prende-se a necessidades de que o ar não tenha conseguido,-durante tantos
outra natureza que, mais cedo ou mais séculos, apagar essa douração. Quanto ao
tarde, aparecem, de acordo com cir­ mais, não constitui prodígio que tantos sábios
do mundo nunca tenham conseguido com­
cunstâncias totalmente independentes preender qualquer coisa dessa escrita, dado
da duração dos povos, e que jamais que de forma alguma se aproxima de nenhuma
poderiam ter surgido no seio de nações escrita que chegou até nosso conhecimento,
muito antigas. Não se sabe por quanto enquanto todas as escritas atualmente conheci­
tempo a arte dos hieróglifos constituiu das, com exceção do chinês, possuem grande
afinidade entre si e parecem provir da mesma
talvez a única escrita dos egípcios. Que fonte. Õ que existe nesta de mais maravilhoso
é que os guebros, últimos remanescentes dos
2 5 Embora éctipo, em sentido estrito, signifi­ antigos persas, cuja religião conservam e per­
que a reprodução em relevo do cunho de moe­ petuam, não só não conhecem melhor do que
das (e ectipografia, a tipografia em relevo), a nós esses caracteres como também seus carac­
palavra, no caso, é usada para indicar reprodu­ teres não se assemelham a eles mais do que os
ção, por moldagem, de inscriçõès gravadas na nossos. Conclui-se daí que oü é um caráter de
pedra. (N. de L. G. M.) cabala, o que não é verossímil por ser comum
2 6 “Muitos se admiram”, diz Chardin, “com e natural ao edifício em todas as suas partes,
o fato de duas figuras poderem produzir tantas ou que não existe outra da mesma mão, ou que
letras, mas, quanto a mim, não vejo nisso mo­ é de uma tal antiguidade que quase não ousa­
tivo para tão grande espanto, desde que as le­ ríamos dizer.” Chardin, efetivamente, com esse
tras de nosso alfabeto, em número de vinte e trecho, faria presumir que, no tempo de Ciro e
três, se compõem apenas de duas linhas — a dos jnagos, essa escrita já estava esquecida e
reta a circular, isto é, com um C e um I for­ tão pouco conhecida quanto hoje. (N. do A.)
mam-se todas as letras que compõem nossas 28 Considero os cartagineses fenícios, por
palavras”. (N. do A.) serem uma colônia de Tiro. ÍN. do A.)
ENSAIO SOBRE A ORIGEM DAS LÍNGUAS 175

antes de irem os gregos às suas terras. precisamente determinada de letras ou


O que não prova, em absoluto, que o elementos da palavra: uns possuem-
povo grego não seja tão antigo quanto nas mais, outros menos, segundo as
o fenício. línguas e as diversas modificações que
A princípio, os gregos não só adota­ se dão às vozes e às consoantes. Os
ram os caracteres dos fenícios mas que só conhecem cinco vogais muito se
ainda a direção de suas linhas, da enganam: os gregos escreviam sete, os
direita para a esquerda. A seguir, ima­ primeiros romanos seis3 0; os Senhores
ginaram escrever em sulcos, isto é, vol­ de Port-Royal contam dez, o Sr. D u­
tando da esquerda para a direita e, de­ elos dezessete. Não duvido de que se
pois desta para a esquerda, pudesse descobrir outras mais, se 0 há­
alternativamente29. Por fim, escreve­ bito tivesse tornado o ouvido mais sen­
ram como o fazemos hoje, reòome- sível e a boca mais exercitada às várias
çando todas as linhas da esquerda para modificações de que são suscetíveis.
a direita. Esse progresso não apresenta Na medida da delicadeza do órgão,
nada de natural, pois a escrita em sul­ encontrar-se-á mais ou menos modifi­
cos é irretorquivelmente a mais cômo­ cações entre o a agudo e o o grave,
da de ler. Fico até admirado de não se entre o i e o e aberto, etc. É o que cada
ter restabelecido com a imprensa; um pode provar passando, com voz
sendo, porém, difícil de ser escrita a contínua e nuançada, de uma para
mão, teve de ser abolida quando os outra vogal. Pode-se fixar um número
manuscritos se multiplicaram. maior ou menor dessas nuanças e assi­
nalá-las por caracteres particulares na
Mas, ainda que o alfabeto grego
medida em que, pelo hábito, se possui
venha do fenício, não se conclui daí
uma sensibilidade mais ou menos apri­
que a língua grega resulte da fenícia.
morada, dependendo esse hábito das
Uma dessas proposições não implica a espécies de vozes usadas na linguagem,
outra e parece que a língua grega já era às quais os órgãos insensivelmente se
muito velha, enquanto a arte de escre­ adaptam. A mesma coisa se pode
ver ainda era recente, até imperfeita, dizer, aproximadamente, das letras
entre os gregos. Até o sítio de Tróia, só articuladas ou consoantes. A maioria
possuíam dezesseis letras, se na verda­ das nações, porém, não agiu desse
de as tinham. Diz-se que Palamedes modo.Tomaram o alfabeto umas às ou­
acrescentou quatro, e Simônides, qua­ tras e representaram, por meio dos
tro outras. Tudo isso permanece um mesmos caracteres, vozes e articula­
pouco longínquo. Pelo contrário, o ções muito diferentes, o que determi­
latim, língua, mais moderna, quase nou, por mais exata que seja a ortogra­
desde seu nascimento contou com alfa­ fia, que se leia sempre ridiculamente
beto completo, do qual, no entanto, os uma outra língua que não a sua, salvo
primeiros romanos não se utilizaram, no caso de se ter muita prática.
porquanto começaram a escrever a sua
história muito tarde e os lustros eram 30 “ Vocales quas graece septem, Romulus sex,
assinalados apenas com cravos. usus posterior quinque commemorat, Y velut
Ademais, não há uma quantidade graeca rejecta. ” (Mart. Capei., Lib. III.)* (N.
do A.)
* “As vogais, em língua grega, eram sete; no
29 Ver Pausânias, Arcad. Os latinos, no
tempo de Rômulo, seis; o uso posterior as
começo, escreveram assim e, daí, segundo Ma­
rius Victorinus, veio a palavra versus. (N. do reduz a cinco, pois o foi Y grego rejeitado.”
A.) (N. de L. G. M.)
176 ROUSSEAU

A escrita, que parece dever fixar a comum, adequada unicamente ao caso


língua, é justamente o que a altera; não em que se encontra. Os meios que se
lhe muda as palavras, mas o gênio; utilizam para substituir esse recurso
substitui a expressão pela exatidão. estendem, alongam a língua escrita e,
Quando se fala, transmitem-se os senti­ passando dos livros para o discurso,
mentos, e quando se escreve, as idéias. enfraquecem a própria palavra31. D i­
Ao escrever, é-se obrigado a tomar zendo-se tudo como se escreve não se
todas as palavras em sua acepção faz mais do que ler falando.
comum, porém aquele que fala varia
suas acepções pelos tons, determina-as 31 O melhor desses meios, e que não apresen­
como lhe apraz. Menos preocupado taria esse defeito, seria a pontuação, se a tives­
sem deixado menos imperfeita. Por que, por
em ser claro, dá maior importância à
exemplo, não possuímos o ponto vocativo? O
força; não é possível que uma língua ponto de interrogação que possuímos era
escrita guarde pormuito tempo a viva­ muito menos necessário, pois, pelo menos na
cidade daquela que só é falada. Escre­ nossa língua, tão-só pela construção já se sabe
vem-se as vozes e não os sons. Ora, quando se interroga ou não. Mas, como distin­
numa língua acentuada são os sons, os guir, na escrita, um homem que se nomeia de
um que se chama? Certamente constitui-se um
acentos, as inflexões de toda sorte que equívoco, que seria sanado pelo ponto vocati­
constituem a maior energia da lingua­ vo. O mesmo equívoco se encontra na ironia,
gem, que tomam uma frase, fora daí quando o acento não a faz sentir. (N. do A.)

C a p ít u l o V I

Se é provável que Homero soubesse escrever

Apesar do que se diz sobre a inven­ mar que toda a Odisséia é um conjunto
ção do alfabeto grego, eu a considero de idiotices e de inépcias que uma ou
muito mais moderna do que se julga, e duas letras teriam reduzido a fumo,
é principalmente no caráter da língua enquanto que se pode tomar esse
que fundamento tal opinião. Muitas poema razoável e mesmo muito bem
vezes veio a meu espírito a dúvida não conduzido supondo-se que seus heróis
só de que Homero soubesse ler, mas tenham ignorado a escrita. Se a Ilíada
até de que no seu tempo se escrevesse. tivesse sido escrita seria muito menos
Sinto muito que tal dúvida tão formal­ cantada, os rapsodos menos procura­
mente seja desmentida pela história de dos e menos multiplicados. Nenhum
Belerofonte na Ilíada e, como tenho a outro poeta foi tão cantado, salvo
infelicidade de ser, como o Padre Har- Tasso em Veneza e, assim mesmo, só
douin, um pouco obstinado em meus pelos gondoleiros, que não são grandes
paradoxos, sentir-me-ia bastante tenta­ leitores. Outro preconceito bastante
do, se fosse menos ignorante, a esten­ enraizado concerne à quantidade de
der minhas dúvidas até sobre essa his­ dialetos empregados por Homero. Os
tória e de acusá-la de ter sido, sem dialetos, distinguidos pela palavra,
muito exame, interpolada pelos compi­ aproximam-se e confundem-se na es­
ladores de Homero. Não somente crita; tudo, insensivelmente, se liga a
encontram-se, no resto da Ilíada, pou­ um modelo comum. Quanto mais uma
cos traços dessa arte, mas ouso afir­ nação lê e se instrui, mais desaparecem
ENSAIO SOBRE A ORIGEM DAS LÍNGUAS 177

seus dialetos e, por fim, só permane­ reunidos por escrito muito mais tarde e
cem como gíria no seio do povo, que lê com grande dificuldade. Foi quando
pouco e nunca escreve. começaram a abundar na Grécia os li­
Ora, sendo esses dois poemas poste­ vros e as poesias escritas que se sentiu,
riores ao sítio de Tróia, não é absoluta­ por comparação, todo o encanto da de
mente certo que os gregos, que realiza­ Homero. Os outros poetas escreviam,
ram o sítio, conhecessem a escrita e só Homero tinha cantado, e só se dei­
que o poeta que o cantou tivesse ciên­ xou de ouvir com encantamento esses
cia dela. Esses poemas por muito cantos divinos quando a Europa se en­
tempo permaneceram inscritos unica­ cheu de bárbaros que se meteram a jul­
mente na memória dos homens; foram gar o que não podiam sentir.

C a p ít u l o V II

D a prosódia moderna

Não sabemos de uma língua sonora acentos e não os possuímos; nossos


e harmoniosa que fale tanto pelos sons pretensos acentos não passam de vo­
quanto pelas vozes. Enganamo-nos gais ou de sinais de quantidade, não
quando julgamos substituir o acento assinalam nenhuma variedade de sons.
pela acentuação. Só se inventa a acen­ A prova está em que todos esses acen­
tuação quando o acento já se per­ tos se revelam ou por tempos desiguais
deu32. Ainda há mais. Cremos ter ou por modificações dos lábios, da lín-

32 Alguns sábios pretendem, contra a opinião satietatem. Haec igitur duo voeis dico modera-
comum e contra prova baseada em todos os tionem, et verborum conclusionem, quod ora-
manuscritos antigos, terem os gregos conhe­ tionis severitas p a ti possit, a poética ad
cido e praticado na escrita os sinais chamados eloquentiam traducenta duxerunt ”.
acentos, e fundamentam essa opinião em dois Aqui está o segundo, extraído de Isidoro, nas
trechos que transcreverei tanto um quanto suas Origens, Livro I, capítulo XX:
outro, a fim de que o leitor possa julgar de seu “Praeterea quaedam sententiarum notae apud
verdadeiro sentido. celeberrimos auctores fuerunt, quasque antiqui
Eis o primeiro, extraído de Cícero, no seu tra­ ad distinctionem scripturarum carminibus et
tado D o Orador, Livro III, § 44: historiis apposuerunt. N ota est figura própria
“Hanc diligentiam subsequitur modus etiam et in litterae modum posita, ad demonstrandum
form a verborum, quod jam vereor ne h\iic Ca- unamquamque verbi sententiarumque ac ver-
tulo videatur esse puerille. Versus enim veteres suum rationem. Notae autem versibus appo-
illi in hac soluta oratione propemodum, hoc nuntur numero X X V I, quae sunt nominibus
est, números quosdam nobis esse adhibendos infra scriptis, etc.
putaverunt. Interspirationis enim non defatiga- Para mim, por aí vejo que ao tempo de Cícero
tionis nostrae, neque librariorum notis, sed os bons copistas praticavam a separação das
verborum et sententiarum modo, interpunctas palavras e empregavam certos signos equiva­
clausulas in orationibus esse voluerunt: idque lentes à nossa pontuação. E, além disso, a
princeps Isocrates instituísse fertur, ut incondi- invenção do número e a declaração da prosa
tam antiquorum dicendi consuetudinem, delec- atribuída a Isócrates. Não posso reconhecer,
tationis atque aurium causa (quemadmodum contudo, os signos escritos, os acentos e, ainda
scribit discipulus ejus Naucrates), numeris que os reconhecesse, disso não se poderia con­
adstringeret. cluir senão algo que não objeto e que se enqua­
‘‘Namque haec duo musici, qui erant quondam dra perfeitamente em meus princípios, isto é,
iidem poetae, machinati ad voluptatem sunt, que, quando os romanos começaram a estudar
versum atque cantum, ut et verborum numero, o grego, os copistas inventaram, para indicar a
et vocum modo, delectatione vincerent aurium pronúncia, os sinais dos acentos, dos espíritos
178 ROUSSEAU

gua, do palato, que determinam a pelo mais a que se refere, vê-se que o
diversidade das vozes; nenhum pelas Sr. Duelos não reconhece qualquer
modificações da glote, que é o que acento musical em nossa língua, mas
determina a diversidade de sons. unicamente o acento prosódico e o
Assim, quando o nosso acento circun­ vocal. Acrescenta-se-lhe um acento
flexo não é uma voz simples, é uma ortográfico que em nada influencia a
longa, ou então nada é. Vejamos, voz, o som ou a quantidade, mas que
agora, o que acontecia entre os gregos. às vezes indica uma letra suprimida,
Dionísio de Halicarnasso diz que a como o circunflexo, e, outras vezes,
elevação do tom no acento agudo e o fixa o sentido equívoco de um monos­
abaixamento no grave formavam uma sílabo, como o pretenso acento grave
quinta; assim também o acento prosó­ que distingue ou advérbio de lugar de
dico era mustcal, sobretudo o circun­ ou partícula disjuntiva e à usado como
flexo, no qual a voz, depois de ter subi­ artigo de a como verbo. Acento que
do uma quinta, descia, na mesma distingue esses monossílabos somente
sílaba, uma quinta33. Por esse trecho e à vista, não determinando nenhum
efeito na pronúncia3 4. Assim, a defini­
è da prosódia. Em absoluto não se segue que ção de acento adotada geralmente
tais signos fossem usados entre os gregos, que pelos franceses não convém a quais­
deles não tinham qualquer necessidade. (N. do
A.)
quer dos acentos da sua língua.
* “A este cuidado segue-se o do ritmo e da Estou certo de que muitos de seus
forma das palavras; o que então receio que pa­ gramáticos, preocupados em marca­
Ireça pueril a Catulo. Entretanto, os próprios rem nos acentos uma elevação ou um
I antigos achavam que a prosa deveria ser senti­
da quase como um verso, isto é, que uns certos
abaixamento de voz, acusarão, tam­
ritmos devessem ser admitidos por nós. Quise­ bém neste ponto, um paradoxo e, por
ram, com efeito, que pausas para a respiração não recorrerem suficientemente à expe­
fossem introduzidas nas orações, marcadas riência, acreditarão poder determinar
não pelos sinais da nossa fadiga, nem por si­ por modificações da glote esses mes­
nais dos escritores, mas pelo ritmo das pala­
vras é sentenças; e sabe-se que Isócrates foi o mos acentos que se emitem tão-só
primeiro a ensinar isso, e subordinava, restrin­ variando a abertura da boca ou as
gia a maneira de falar, desordenada, dos anti­ posições da língua. Eis, porém, o que
gos a números, em razão do prazer e dos ouvi­ tenho a dizer-lhes para comprovar a
dos (como escreve Náucrates, seu discípulo).
“Com efeito, dois músicos, eles mesmos outro- experiência e tornar irreplicável a
ra poetas, a fim de agradar, procuravam o minha prova.
verso e o canto, de modo a vencer, pelo prazer, Assumi com a voz exatamente o
a fadiga do ouvido, não só com o número das uníssono de um instrumento musical e,
palavras, mas também com o modo das vozes.
Julgaram, pois, que estas duas coisas — a sobre esse uníssono, pronunciai exata­
moderação da voz e a cadência das palavras mente todas as palavras francesas mais
— deviam ser transferidas, tanto quanto a gra- diversamente acentuadas que puderdes
vváade. da oração o permitisse, da poética para reunir. Como não se trata, nesse caso,
a eloqüência.” — Cícero, D e Oratore.
“Além disso, entre os mais célebres autores
do acento oratório, mas somente do
antigos, havia certos sinais de sentenças que gramatical, não é sequer necessário
apunham aos versos e histórias a fim de sepa­
rar as escrituras. Tal sinal tem figura própria,
à maneira de uma letra, para pôr em relevo a 3 4 Poder-se-ia crer que por esse mesmo acen­
razão de alguma palavra, sentença ou verso. to os italianos distinguem, por exemplo, e
Os sinais, porém, usados nos versos, são vinte verbo de e conjunção; o primeiro, porém, se
e seis, cujos nomes se transcrevem abaixo. . . ” distingue ao ouvido por um som mais forte e
Isidoro, — Origines. (N. de L. G. M.) mais sustentado, o que toma vogal o acento
33 Duelos, Remarques sur la Grammaire Gé­ com o qual é assinalado — observação que
nérale et Raisonnée. pág. 30. (N. do A.) Buonmattei fez mal em não anotar. (N. do A.)
ENSAIO SOBRE A ORIGEM DAS LÍNGUAS 179

que as várias palavras formem um sen­ estivesse bem fixado, não tinham ainda
tido contínuo. Falando desse modo, valor igual ao do uso. Acrescentaria,
observai se não marcais sobre esse mais, que foram substitutivos. Os anti­
som todos os acentos tão sensível e gos hebreus não possuíam quaisquer
nitidamente quanto os pronunciáveis pontos ou acentos, nem mesmo vogais.
sem dificuldade, variando vosso tom Quando as outras nações se resolve­
de voz. Ora, posto esse fato, que é ram a falar hebreu e os judeus falaram
incontestável, eu asseguro que, expri­ outras línguas, a sua perdeu o seu
mindo-se todas as vossas inflexões no acento; tornaram-se necessários pon­
mesmo tom, não assinalam sons dife­ tos e sinais para regulamentá-la e isso
rentes. Não imagino o que se possa antes restabeleceu o sentido das pala­
responder a isso. vras. do que a pronúncia da língua. Os
Toda língua, em que se pode colocar judeus de hoje, falando hebreu, não
inúmeras árias musicais sobre as mes­ mais seriam compreendidos por seus
mas palavras, não possui um acento antepassados.
musical determinado. Fosse ele deter­ Para saber o inglês é preciso apren­
minado e a ária também o seria; desde dê-lo duas vezes — uma a ler e outra a
que o canto é arbitrário, o acento nada falar. Se um inglês lê em voz alta e um
vale. estrangeiro lança os olhos sobre o
As línguas modernas da Europa livro, o estrangeiro não percebe liga­
estão, todas, mais ou menos no mesmo ção alguma entre o que vê e o que
caso. Não excetuo sequer a italiana. A ouve. Por que assim acontece? Porque,
língua italiana, tanto quanto a france­ tendo sido a Inglaterra sucessivamente
sa, não é em si mesma musical. A dife­ conquistada por vários povos, as pala­
rença reside unicamente em que unia vras sempre foram escritas do mesmo
se presta à música e outra nãó. modo, enquanto o modo de pronun­
Tudo isso leva à confirmação do ciá-las mudou freqüentemente. Há
princípio que diz deverem todas as lín­ muita diferença entre os sinais que
guas escritas, por um progresso natu­ determinam o sentido da escrita e
ral, mudar de caráter e perder força, aqueles que regulamentam a pronún­
ganhando clareza; que quanto mais se cia. Seria muito fácil criar, unicamente
procurar aperfeiçoar a gramática e a com consoantes, uma língua muito
lógica, mais se acelerará esse progres­ clara para ser escrita, mas que não se
so; e que, para rapidamente tomar poderia falar. A álgebra possui algo
uma língua fria e monótona, basta dessa língua. Quando uma língua é
estabelecer academias no seio do povo mais clara por sua ortografia do que
que a fala. por sua pronúncia, isso constitui sinal
Conhecem-se as línguas derivadas de ser mais escrita do que falada.
pela diferença entre a ortografia e a Assim poderia ser a língua erudita dos
pronúncia. Quanto mais antigas e ori­ egípcios e assim são, para nós, as lín­
ginais são as línguas, menos arbitra­ guas mortas. Naquelas que são sobre­
riedade existe no modo de pronunciá- carregadas de consoantes inúteis, pare­
las e, conseqüentemente, menos ce que a escrita precedeu a palavra —
complicação de caracteres para deter­ quem não diria estar o polonês nesse
minar a sua pronúncia. Todos os sinais caso? Se fosse verdade, a língua polo­
prosódicos dos antigos, diz o Sr. nesa deveria ser a mais fria de todas as
Duelos, supondo-se que seu emprego línguas.
180 ROUSSEAU

C a p ítu lo VIII
Diferenças geral e local na origem das línguas

Tudo o que afirmei até agora se refe­ mais longe; impõe-se começar obser­
re em geral às línguas primitivas e ao vando as diferenças, para descobrir as
progresso que resulta de sua duração, propriedades3 5.
mas não explica nem a sua origem nem O gênero humano, nascido nas
as suas diferenças. A principal causa regiões quentes, daí passa para as
que as distingue é local, resulta dos cli­ frias; nestas se multiplica e, depois,
mas em que nascem e da maneira pela volta às regiões quentes. Dessa ação e
qual se formam. A tal causa deve-se reação resultam as revoluções da terra
recorrer para conceber a diferença e a agitação contínua de seus habitan­
geral e característica que se nota entre tes. Esforcemo-nos, nas nossas pesqui­
as línguas do sul e as do norte. O gran­ sas, para seguir a própria ordem da
de defeito dos europeus consiste em natureza. Inicio uma longa digressão
sempre filosofarem sobre as origens sobre um assunto tão repisado quanto
das coisas baseando-se no que se passa trivial, mas ao qual sempre se tem
à sua volta. Nunca deixam de nos necessidade de voltar, mesmo quando
apontar os primeiros homens, habi­ já muito se tenha dito, a fim de encon­
tando uma terra ingrata e rude, mor­ trar a origem das instituições huma­
rendo de frio e de fome, impelidos a nas.
conseguirem um abrigo e roupas; vêem
em todos os lugares somente a neve e 3 5 Com esta notável repulsa ao etnocentrismo
os gelos da Europa, sem se lembrarem europeu, afastamo-nos decididamente da
orientação unanimemente aceita pelos autores
de que a espécie humana, como todas do século XVIII, para os quais era válido um
as outras, nasceu nas regiões quentes, e conceito de homem deduzido de certos princí­
que em dois terços do globo pouco se pios gerais anistóricos. Rousseau quer buscar,
conhece o inverno. Quando se quer para além da “ordem natural” e na própria
vida dos homens tal qual existem em todo o
estudar os homens, é preciso olhar em mundo, a ordem humana, isto é, o conheci­
torno de si, mas, para estudar o mento do homem em sua própria realidade.
homem, importa que a vista alcance (N. de L. G. M.)

C a p ítu lo IX
Formação das línguas meridionais

Nos primeiros tempos3 6, os homens esparsos na superfície da terra não


possuíam outra sociedade que não a da
3 6 Chamo de primeiros tempos os referentes à família, outras leis que não as da natu­
dispersão dos homens, seja qual for a idade do reza, e, por língua, apenas o gesto e al­
gênero humano na qual se queira fixar a guns sons inarticulados3 7. Não se liga­
época*. (N. do A.)
* Confirma-se, pois, que o “estado de nature­
vam por qualquer idéia de fraternidade
za”, para Rousseau, não é histórico, porém comum e, possuindo como único árbi­
apenas evolutivo. (N. de L. G. M.) tro a força, acreditavam-se inimigos
ENSAÏO SOBRE A ORIGEM DAS LÍNGUAS 181

uns dos outros. Essa opinião era-lhes não pode ser clemente, justo, ou piedo­
comunicada por sua fraqueza e igno­ so, nem tampouco mau e vingativo.
rância. Nada conhecendo, tudo te­ Quem nada imagina não sente mais do
miam: atacavam para se defenderem. que a si mesmo: encontra-se só no
Deveria ser um animal feroz esse meio do gênero humano.
homem abandonado sozinho na super­ A reflexão nasce das idéias compa­
fície da terra, à mercê do gênero huma­ radas; a pluralidade dessas idéias é que
no. Estava pronto a fazer aos outros leva à comparação. Quem vê um único
todo o mal que neles temia. As fontes objeto não pode fazer comparações.
da crueldade são o temor e a fraque­ Quem vê somente um pequeno número
za38. de objetos e, desde a infância, sempre
As afeições sociais só se desen­ os mesmos, também não os compara,
volvem em nós com nossas luzes. A porque o hábito de vê-los impede a
piedade, ainda que natural ao coração atenção necessária para examiná-los.
do homem, permaneceria eternamente À medida, porém, que nos impressiona
inativa sem a imaginação que a põe em um objeto novo, queremos conhecê-lo
ação. Como nos deixamos emocionar e procuramos relações entre ele e os
pela piedade? — Transportando-nos que já conhecemos. Assim aprendemos
para fora de nós mesmos, identifican­ a conhecer o que está sob nossos olhos
do-nos com o sofredor. Só sofremos e somos levados, pelo que nos é estra­
enquanto pensamos que ele sofre; não nho, a examinar aquilo que nos interes­
é em nós, mas nele, que sofremos. sa39.
Figuremo-nos quanto de conheci­ Aplicai essas idéias aos primeiros
mentos adquiridos supõe tal transposi­ homens e encontrareis os motivos de
ção. Como poderia eu imaginar males sua barbárie. Sempre vendo tão-só o
dos quais não formo idéia alguma? que estava à sua volta, nem mesmo
Como poderia sofrer vendo outro isso conheciam, nem sequer conheciam
sofrer, se nem soubesse que ele sofre? a si próprios. Tinham a idéia de um
Se ignoro o que existe de comum entre pai, de um filho, de um irmão, porém
ele e mim? Aquele que nunca refletiu, não a de um homem. Sua cabana con­
tinha todos os seus semelhantes: para
3 7 As verdadeiras línguas absolutamente não ele, era a mesma coisa um estrangeiro,
possuem uma origem doméstica; somente uma
convenção mais geral e mais duradoura pode um animal, um monstro. Além de si
estabelecê-las. Os selvagens da América quase mesmos e de sua família, todo o uni­
nunca falam, a não ser fora de casa; cada um verso nada significava para eles.
guarda silêncio em sua cabana e fala à família Resultam daí as contradições apa­
por sinais, sendo tais sinais pouco freqüentes,
pois um selvagem é menos iriquieto e impa­
rentes que se notam entre os pais das
ciente do que um europeu, não tendo tantas nações. Tanta naturalidade e tanta
necessidades e esforçando-se mais para supri- desumanidade; costumes tão ferozes e
las sozinho. (N. do A.) corações tão ternos; tanto amor pela
38 Nova ressonância de Hobbes faz-se sentir própria família e tanta aversão pela
aqui, de tal modo, contudo, que esclarece a
sua espécie. Todos os seus sentimen-
posição de Rousseau, desfazendo certos equí­
vocos. De fato, o seu “homem natural”, como
o hobbesiano, é um feixe de reações primárias 39 Esta descrição psicológica já nos traz do
fisiopsicológicas (aqui suposto como agindo “homem natural” ao homem posto num pro­
num passo real — porém, não histórico — de cesso inicial de integração social. Cabe assina­
sua evolução), mas não é “naturalmente bom”. lar que a imaginação, motor da razão, só co­
Sua “bondade” precisa de estímulo para entrar meça a agir e crescer nos contatos com os
em ação. (N. de L. G. M.) semelhantes. (N. de L. G. M.)
182 ROUSSEAU

tos, concentrados nos seres próximos, tir-se a propriedade da terra, ninguém


adquiriam maior energia. Tudo o que pensava em cultivá-la. A agricultura é
conheciam lhes era-caro. Inimigos do uma artç que exige instrumentos; se­
resto do mundo, que não viam e igno­ mear para colher é uma precaução que
ravam, odiavam-se porque não podiam exige previdência. O homem em socie­
conhecer-se40. dade procura espalhar-se, o homem
Esses tempos de barbárie foram a isolado se limita. Fora do alcance de
Idade de Ouro, não porque os homens sua vista e de até onde pode alcançar
estivessem unidos, mas porque esta­ seu braço, para ele não existe direito,
vam separados. Cada um, dizem, jul­ nem propriedade* Quando o ciclope
gava-se o senhor de tudo. Pode ser que rola a pedra até a entrada de sua caver­
sim, mas ninguém conhecia e desejava na, tanto seus rebanhos quanto ele
sen|ío o que estava sob a sua mão; suas ficam em segurança. Mas quem defen­
necessidades, em lugar de aproximá-lo derá as colheitas daquele em cujo
de seus semelhantes, distanciavam-no. favor as leis não vigiam?
Os homens, se quiserem, atacavam-se Dir-me-ão que Caim foi lavrador e
quando se encontravam, mas encontra­ que Noé plantou a vinha. Por que não?
vam-se muito raramente. Em todos os Estavam sós; a quem temeriam? Aliás,
lugares dominava o estado de guerra e o argumento nada diz contra mim,
a terra toda estava em paz 41. pois já expliquei, mais acima, o que
Os primeiros homens foram caçado­ entendia por primeiros tempos. Tor­
res ou pastores e não lavradores; os nando-se fugitivo, Caim viu-se obri­
primeiros bens se constituíram de reba­ gado a abandonar a agricultura; a vida
nhos e não de campos. Antes de repar­ errante dos descendentes de Noé le­
vou-os também a esquecê-la. Precisa­
40 Talvez melhor do que em qualquer outro ram povoar a terra antes de çultivá-la;
escrito de Rousseau, neste trecho se evidencia essas duas coisas muito dificilmente se
a reciprocidade entre o conhecimento e a fazem ao mesmo tempo. Não mais
moral, isto é, a relação entre o desenvolvi­
mento racional do homem e sua identificação houve agricultura durante a primeira
com o semelhante. Tal relação é o fundamento dispersão do gênero humano, enquanto
do que poderíamos chamar de sociologia de a família não se assentou e o homem
Rousseau. Ao mesmo tempo, fixa-se sua ver­ não fixou habitação. Os povos que não
dadeira noção acerca da “bondade natural” : o
homem, naturalmente, não tem necessidade de
se fixam não podem cultivar; assim
ser bom ou de ser mau, mas apenas de ser. A foram outrora os nômades, os árabes
potencialidade benévola, além jie não ser inata, que viviam sob tendas, os citas em car­
mas decorrente dessa situação básica, só se roças e assim, ainda hoje, são os tárta­
realiza pelo convívio amplo. (N. de L. G. M.) ros errantes e os selvagens da América.
41 Hobbes afirmara ser o estado natural um
estado de guerra de todos contra todos. Aqui Geralmente, entre todos os povos
se tom a bem clara a posição de Rousseau: se o cuja origem conhecemos, os primeiros
filósofo inglês acertara ao descrever o feixe de bárbaros mostram-se mais vorazes e
reações impulsivas constitutivo do homem carnívoros do que agricultores e graní-
natural — que Rousseau concebia, fundamen­
talmente, como o equipamento fisiopsicológico voros. Os gregos citam quem primeiro
básico de qualquer homem em qualquer lugar os ensinou a cultivar a terra e parece
e a qualquer tempo — , errara, contudo, ao jul­ que só bem tarde conheceram essa
gar que tais elementos individuais determinam arte. Quando dizem, porém, que antes
o comportamento dos seres. A conjuntura, as
relações com os semelhantes, é que possibili­
de Triptólemo só viviam de bolotas,
tam, ou não, tal ou qual atitude. (N. de L. G. afirmam algo que não pode ser verda­
M.) deiro e que é desmentido pela sua pró-
ENSAIO SOBRE A ORIGEM DAS LÍNGUAS 183

pria história, pois ao tempo de Triptó- vra “junta” 42 mostra que esses bois
lemo comiam carne, tanto que ele os çram assim jungidos para o trabalho.
proibiu de comê-la. De resto, não se Fica claramente dito que esses bois
sabe que tenham levado em grande trabalhavam quando os sabeus os rou­
consideração tal proibição. Nos festins baram e pode-se imaginar qual a exten­
de Homero matava-se um boi para são de terra que quinhentos pares de
regalar os hóspedes, como hoje se bois deviam cultivar.
mataria um leitãozinho. Lendo-se que Tudo isso é verdadeiro, porém não
Abraão serviu um bezerro a três pes­ confundamos os tempos. A época
soas, que Eumeu mandou assar dois patriarcal, que conhecemos, está bem
cabritos para o jantar de Ulisses e que longe da primeira idade. A Escritura
o mesmo fez Rebeca para o de seu enumera, entre uma e outra, dez gera­
marido, pode-se imaginar que tremen­ ções, naqueles séculos em que os ho­
dos devoradores de carne eram os ho­ mens viviam muito. Que fizeram du­
mens daqueles tempos. Para conceber rante essas dez gerações? Nada
como eram as refeições dos antigos, sabemos. Vivendo separados e quase
basta ver a dos selvagens de hoje — sem sociedade, apenas falavam —
quase disse: a dos ingleses. como poderiam escrever? E, na unifor­
O primeiro bolo que se comeu foi a midade de sua vida isolada, que acon­
comunhão do gênero humano. Quando tecimentos poderiam comunicar?
os homens começaram a se fixar, surri- Adão falava, Noé falava — seja.
baram um pouco de terra em torno da Adão foi instruído pelo próprio Deus.
cabana: era mais um jardim do que Ao se dividirem, os filhos de Noé
uma lavoura. O pouco de grão colhido abandonaram a agricultura e a língua
era moído entre duas pedras; dele se comum pereceu com a primeira socie­
faziam alguns bolos que eram cozidos dade. Tal coisa aconteceria ainda que
sob a cinza ou sobre a brasa ou, ainda, nunca tivesse existido uma Torre de
sobre uma pedra aquecida, e só eram Babel. Sabe-se de solitários esquece­
comidos durante os festins. Esse uso rem, em ilhas desertas, a sua própria
antigo, que foi consagrado pela Páscoa língua. Bem raramente os homens con­
entre os judeus, conserva-se ainda hoje
servam, depois de muitas gerações fora
na Pérsia e nas índias. Aí só se come
de seu país, a sua própria língua,
pão sem fermento, e esses pães, feitos
mesmo trabalhando em comum e vi­
em folhas delgadas, cozinham-se e
vendo, entre si, em sociedade.
comem-se em cada refeição. Só se lem­
braram de fermentar o pão quando se Esparsos no vasto deserto do
preçisou de uma quantidade maior, mundo, os homens tornaram a cair na
pois a fermentação não se processa estupidez bárbara em que se encontra­
bem numa quantidade pequena. riam se tivessem nascido da terra.
Aceitando-se essas idéias, tão naturais,
Sei que já no tempo dos patriarcas torna-se fácil conciliar a autoridade da
se pode encontrar a agricultura em
larga escala. A proximidade do Egito Escritura com a dos monumentos anti­
cedo a terá levado para a Palestina. O gos, não se ficando reduzido a tratar
como fábulas tradições tão antigas
livro de Jó, talvez o mais antigo de
todos os livros existentes, fala da cultu­ 42 No texto francês está paire, que significa
ra dos campos; cita quinhentas juntas indiferentemente quaisquer seres postos dois a
de bois entre as riquezas de Jó. A pala­ dois. (N. de L. G. M.)
184 ROUSSEAU

quanto os povos que no-las transmiti­ basta a si mesma. Oferece ao homem,


ram 43. quase sem trabalho, alimento e roupa;
Nesse estado de embrutecimento, dá-lhe até moradia. As tendas dos pri­
tinha-se, contudo, de ’viver. Os mais meiros pastores se faziam com peles de
ativos e robustos, aqueles que sempre animais. Era também de peles o teto da
andavam à frente, não podiam viver arca e do tabernáculo de Moisés.
somente de frutos e da caça. Torna­ Quanto à agricultura,. que demorou
ram-se caçadores, violentos, sanguiná­ mais para nascer, liga-se a todas as
rios; depois, com o decorrer dos tem­ artes; leva à propriedade, ao Governo,
pos, guerreiros, conquistadores, às leis e, pela mesma via, à miséria e
usurpadores. A História enodoou seus aos crimes, que são inseparáveis, para
monumentos com os crimes desses pri­ a nossa espécie, da ciência do bem e do
meiros reis; a guerra e a conquista não mal. Por isso os gregos não conside­
passam de caça de homens. Depois de ram Triptólemo unicamente como o
tê-los conquistado, só faltava devorá- inventor de uma arte útil, mas também
los — foi o que aprenderam a fazer como um instituidor e um sábio a
seus sucessores. quem deviam sua primeira disciplina e
O maior número, menos ativo e suas primeiras leis. Moisés, pelo con­
mais pacífico, desde que pôde, parou, trário, parece formar sobre a agricul-
reuniu gado, cercou-o e tornou-o dócil tilra um juízo de desaprovação, dan­
ao homem; para alimentar-se, apren­ do-lhe por inventor um mau e
deu a guardá-lo, a multiplicá-lo, e considerando desprezíveis suas oferen­
assim se iniciou a vida pastoril. das aos olhos de Deus. Dir-se-ia que o
primeiro lavrador denunciou, em seu
A indústria humana desenvolve-se
caráter, os maus resultados de sua arte.
segundo as necessidades que determi­
O autor do Gênesis viu bem mais
nam o seu aparecimento. D os três
modos de viver possíveis para o longe do que Heródoto.
Prendem-se à precedente divisão os
homem, ou seja: a caça, o trato dos
três estados do homem considerado em
rebanhos e a agricultura — a primeira
relação à sociedade. O selvagem é
adestra o corpo para a força, para a
caçador; o bárbaro, pastor; o homem
habilidade, para a corrida, e a alma
civilizado, agricultor.
para a coragem, a astúcia, enrijecendo
Quer, pois, procurando a origem das
o homem e tomando-o feroz. A região
dos caçadores não continua sendo, por artes, quer observando os primeiros
costumes, veremos que tudo se liga, em
muito tempo, a da caça4 4 . É preciso
seguir de longe a presa, e daí vem a seu princípio, aos meios de atender à
equitação. É preciso alcançar a mesma subsistência e, no que concerne àqueles
presa que foge, e daí as armas leves desses meios que reúnem os homens,
como a funda, a flecha e o dardo. A 44 O ofício de caçador não é favoráve) ao
arte pastoril, mãe do repouso e das pai­ povoamento. Essa observação, que foi feita
quando as ilhas de São Domingos e das Tarta­
xões ociosas, é aquela que melhor se rugas eram habitadas por caçadores de touros
selvagens, confirma-se pela condição em que
4 3 Nova hipótese evolutiva bem característica se encontra a América Setentrional. Jamais se
da metodologia rousseauniana. Assinale-se verifica que os pais de qualquer nação nume­
ainda que todo este trecho não passa de uma rosa tenham sido caçadores; todos foram agri­
árdua tentativa para expor, em termos mais ou cultores ou pastores. A caça deverá, pois, ser
menos históricos, uma realidade que trans­ considerada, neste ponto, menos como um
cende os fatos ordenados cronologicamente. recurso de subsistência do que como um aces­
(N. de L. G. M.) sório do estado pastoril. (N. do A.)
ENSAIO SOBRE A ORIGEM DAS LÍNGUAS 185

que são eles determinados pelo clima e se a escravidão, os trabalhos e as misé­


pela natureza do solo4 5 . Será, pois, rias inseparáveis do estado social.
também pelas mesmas causas que se Aquele que quis que o homem fosse
deve explicar a diversidade das línguas sociável pôs o dedo no eixo do globo e
e a oposição de seus caracteres. o inclinou sobre o eixo do universo.
Os climas amenos, os territórios Com esse leve movimento, vejo a face
abundantes e férteis foram os primei­ da terra mudar-se e decidir-se a voca­
ros a se povoarem e os últimos onde se ção do gênero humano; ouço ao longe
formaram nações porque neles os ho­ os gritos insensatos de uma louca mul­
mens podiam com maior facilidade tidão; vejo construírem-se os palácios
passar uns sem os outros e ainda por­ e as cidades; vejo nascerem as artes, as
que as necessidades, que determinaram leis e o comércio; vejo os povos forma­
o nascimento da sociedade, aí se fize­ rem-se, espalharem-se, sucederem-se
ram sentir mais tarde. como ondas do mar; vejo os homens
Suponde uma eterna primavera na reunidos em alguns pontos de seu terri­
terra; em todos os lugares, suponde tório para aí se devorarem mutua­
água, gado, pastos; suponde os ho­ mente e transformarem o resto do
mens, saindo das mãos da natureza, e mundo num tremendo deserto, monu­
depois de dispersar-se num tal meio — mento digno da união social e da utili­
não posso imaginar como um dia dade das artes 4 7.
renunciariam à sua liberdade primitiva A terra nutre os homens, mas, quan­
e deixariam a vida isolada e pastoril, do as primeiras necessidades os disper­
tão conveniente à sua indolência natu­ sam, outras necessidades os reúnem e
ral4 6, para desnecessariamente impor-
somente então falam e fazem falar de
4 5 Nessa proposição do problema das rela­
si. Para não cair em contradição, pre­
ções entre as condições naturais e os padrões ciso que me dêem tem po’ para que
de vida dos povos sente-se a clara influência de possa explicar-me.
Montesquieu. Não se pode, porém, subestimar Quando se procura saber em que
a substancial contribuição de Rousseau, que
amplia e fecunda a idéia de que as condições lugares nasceram os pais do gênero
do solo e clima influenciam as tendências humano, de onde saíram as primeiras
peculiares aos povos, buscando marcar como colônias, de onde vieram as primeiras
as necessidades fundamentais se ligam a técni­ emigrações, não podereis enumerar os
cas adequadas à sua satisfação e, num segundo
climas agradáveis da Ásia Menor, da
passo, como esses complexos técnico-eco-
nômicos básicos vão, se não determinar, ao Sicília ou da África, nem mesmo o
menos condicionar os padrões sociais que a se­ Egito; citareis as areias da Caldéia e os
guir se desenvolvem. rochedos da Fenícia. Em todos os tem­
46 Não se pode conceber até que ponto o pos encontrareis a mesma situação. A
homem é naturalmente preguiçoso. Dir-se-ia
que só vive para dormir, vegetar e ficar imóvel. China, por mais que se povoe de chine­
Dificilmente consegue resolver-se a praticar os ses, povoa-se também de tártaros; os
movimentos necessários para impedir que citas inundaram a Europa e a Ásia; as
morra de fome. Nada quanto essa deliciosa montanhas da Suíça atualmente lan-
indolência mantém nos selvagens o apega-
mento a seu estado. Só em sociedade nascem
as paixões que tornam o homem inquieto, pre­ 4 7 Apartando-se de Hobbes e, também, dos
vidente e ativo. Nada fazer constitui a primeira jusnaturalistas, Rousseau define sua própria
e a mais forte paixão do homem, depois da de doutrina: 1) o homem não é naturalmente
se conservar. Se bem se observasse, ver-se-ia sociável; 2) a vida em sociedade é que, colo­
que até entre nós cada um trabalha para alcan­ cando-o em face do problema ético, pode
çar o repouso, sendo, pois, ainda a preguiça levá-lo à guerra com os semelhantes. (N. de L.
que nos toma laboriosos. (N. do A.) G .M .)
186 ROUSSEAU

çam sobre nossas regiões férteis uma em conjunto as perdas comuns. As tra­
perpétua colônia que promete nunca se dições das desgraças da terra, tão
esgotar. freqüentes nos tempos antigos, mos­
Dir-se-á natural que os habitantes tram de quais instrumentos se serviu a
de uma região hostil a deixem para Providência para forçar os seres huma­
ocupar uma melhor. Muito bem; mas, nos a se unirem. Depois que se estabe­
por que essas regiões melhores, em leceram as sociedades, cessaram esses
lugar de formigarem de habitantes grandes acidentes ou então se tom a­
seus, se transformam em asilo dos ram raros. Parece que isso continuará
outros? Para sair de uma região hostil a acontecer — as mesmas infelicidades
é preciso estar nela e por que, então, que reuniram os homens esparsos
nascem aí preferencialmente tantos dispersaram aqueles. que se reuni­
homens? Parece mais razoável que ram 50.
devessem as regiões ingratas povoar-se As mudanças das estações repre­
unicamente com o excedente das fér­ sentam outra causa, mais geral e mais
teis e vemos acontecer justamente o permanente, que deve produzir o
contrário. A maioria dos povos latinos mesmo efeito nos climas expostos a tal
dizia-se aborígine48, enquanto a variação. Forçados a se abastecerem
magna Grécia, muito mais fértil, só era para o inverno, vêem-se os habitantes
povoada por estrangeiros; todos os na contingência de se auxiliar mutua­
povos gregos originavam-se de várias mente, coagidos a estabelecer entre si
colônias, salvo aquele cujo solo era o uma espécie de convenção. Quando se
pior, o povo ático, que se dizia autóc­ tornam impossíveis as expedições e o
tone ou nascido de si mesmo. Final­ rigor do frio os faz parar, o tèdio liga-
mente, sem penetrar na noite dos tem­ os tanto qjianto a necessidade. Os
pos, os povos modernos oferecem uma lapões, enterrados nos gelos, e os
observação decisiva, pois qual o clima esquimós, que são o mais selvagem de
mais triste do mundo senão o conside­ todos os povos, no inverno reúnem-se
rado como a fábrica do gênero huma­ nas suas cavernas e., no verão, não se
n o 49? conhecem mais. Se o seu grau de
As associações de homens são, em desenvolvimento e as suas luzes vierem
grande parte, obra dos acidentes da a aumentar um pouco só, reunir-se-ão
natureza — os dilúvios particulares, os para sempre.
mares extravasados, as erupções dos
O estômago e o intestino do homem
vulcões, os grandes terremotos, os
não são feitos para digerir carne crua
incêndios despertados pelo raio e que
e, em geral, não é ela do agrado do
destroem as florestas, tudo que atemo­
paladar. Com a talvez única exceção
rizou e dispersou os selvagens de uma
dos esquimós, de quem acabo de faiar,
região, depois reuniu-os para reparar
50 A função de fatores acidentais na evolução
48 As palavras autóctones e aborígines signi­ humana — que já conhecemos, sobretudo do
ficam somente que os primeiros habitantes da segundo Discurso — aqui ressurge e sempre
região eram selvagens, sem sociedade, sem com o mesmo sentido, que não é propriamente
leis, sem tradições, e que povoaram antes de o de um destino cego, como poderiam fazer
falar. (N. do A.) crer os termos “azar” ou “acidente”, mas o de
4à Como vimos em nota anterior, Rousseau estímulos eventuais da ação humana, enquanto
recusa-se aos mecanicismos climáticos ou esta, se não é irrestrita, sempre conserva uma
fisiopsicológicos — para ele, os homens trans­ margem de franco arbítrio no dirigir-se. (N. de
formam-se porque são ativos. (N. de L. G. M.) L. G. M.)
ENSAIO SOBRE A ORIGEM DAS LÍNGUAS 187

até os próprios selvagens tostam as Nas regiões áridas, pelo contrário,


carnes. O fogo, além de ser útil para tiveram de se reunir para furar poços e
cozinhá-las, ainda apraz à vista e seu para abrir canais a fim de dessedentar
calor é agradável ao corpo. A visão os animais. Nelas vêem-se homens
das chamas, que faz os animais fugi­ associados desde tempos quase ime­
rem, atrai o homem 51. Reúnem-se em moriais, pois ou a região continuaria
torno de uma fogueira comum, aí se deserta Ou então o trabalho humano a
fazem festins, aí se dança. Os agradá­ tornaria habitável53. Entretanto, nossa
veis laços do hábito aí aproximam, tendência a tudo relacionar com nos­
insensivelmente, o homem de seus sos próprios usos desperta, a tal respei­
semelhantes e, nessa fogueira rústica, to, algumas reflexões necessárias.
queima o fogo sagrado que leva ao O primeiro estado da terra diferia
fundo dos corações o primeiro senti­ muito daquele em que se encontra
mento de humanidade. hoje, quando a vemos ornamentada ou
Nas regiões quentes, as fontes e os desfigurada pela mão do homem. Rei­
rios desigualmente espalhados são ou­ nava nas suas produções o caos que os
tros pontos de reunião, tanto mais poetas imaginaram nos elementos.
necessários quanto os homens menos Nesses tempos remotos, nos quais
podem viver sem água do que sem fréqiientemente sobrevinham revolu­
fogo. Sobretudo os bárbaros, que ções, nos quais mil acidentes muda­
vivem de rebanhos, têm necessidade de vam a natureza do solo e os aspectos
bebedouros comuns e a história dos do terreno, tudo crescia em confusão
mais antigos tempos nos conta ter sido — árvores, legumes, arbustos, verdu­
neles que se iniciaram tanto os seus ras — , espécie alguma tinha tempo de
tratados quanto as suas disputas52. A tomar para si o terreno que mais lhe
abundância de água pode retardar o convinha e nele asfixiar as demais;
estabelecimento da sociedade entre separaram-se lentamente, pouco a
habitantes de lugares bem irrigados. pouco, e depois sobreveip, a confusão
que tudo misturou.
51 O fogo, tanto quanto ao homem, causa
grande prazer aos animais quando, habituados Existe uma tal relação entre as
à sua vista, já experimentaram o seu agradável necessidades do homem e as produções
calor. Freqüentemente mesmo, não lhes seria da terra que basta povoar-se esta para
menos útil do que a nós, pelo menos para que tudo subsista. Antes, porém, que
aquecer os filhotes. No entanto, nunca se
ouviu dizer que qualquer animal, selvagem ou
os homens reunidos estabelecessem,
doméstico, tenha adquirido suficiente indústria por meio de seus trabalhos comuns,
para fazer fogo, ainda que com nosso exemplo. um equilíbrio entre as suas produções,
Aí estão, entretanto, esses seres raciocinantes
teve a natureza de se incumbir sozinha
que dizem formar, em face do homem, uma
sociedade fugitiva, e cuja inteligência, no desse equilíbrio que a mão dos homens
entanto, não pode desenvolver-se ao ponto de hoje conserva — mantinha-o ou resta­
tirar faíscas de um seixo e de recòlhê-las ou, belecia-o por meio de revoluções,
pelo menos, de conservar as fogueiras abando­
nadas ! Os filósofos, posso jurar, mofam aber­
como os homens a mantêm ou restabe­
tamente de nós. Pelo que escrevem, percebe-se lecem por sua inconstância. A guerra,
perfeitamente que nos tomam por animais. (N.
do A.) 53. V. notas anteriores. Dois exemplos opostos
52 Vede o exemplo, tanto de um quanto de — a água e o fogo — produzem o mesmo efei­
outro, no capítulo X X I do Gênesis, entre to; se a natureza é estímulo, a necessidade
Abraão e Abimelec, a propósito do poço do criada pelo homem é que move e orienta a
juramento. (N. do A.) a^ão humana.
188 ROUSSEAU

que ainda não reinava entre eles, pare­ essa tendência e retarda esse progres­
cia reinar entre os elementos: os ho­ so; sem eles, tudo aconteceria mais
mens não queimavam cidades, não rapidamente e a terra já estari£ talvez
cavavam minas, nem abatiam árvores, sob as águas. Antes do trabalho huma­
mas a natureza acendia vulcões, exci­ no, as fontes, mal distribuídas, espa­
tava tremores de terra e o fogo do céu lhavam-se mais desigualmente, fertili­
consumia as florestas. Um raio, um zavam menos a terra e saciavam com
dilúvio, uma exalação conseguiam em maior dificuldade os seus habitantes.
poucas horas mais do que atualmente Os rios freqüentemente eram inacessí­
cem mil braços de homens no decorrer veis, com bordas escarpadas ou panta­
de um século. Sem isso, não vejo como nosas; como a arte humana não os
o sistema pôde subsistir e o equilíbrio retinha nos seus leitos, comumente
manter-se. Nos dois reinos organiza­ abandonavam-nos, extravasavam para
dos, com o decorrer dos tempos, as a direita e para a esquerda, mudando a
grandes espécies haveriam de absorver direção e o curso, dividindo-se em inú­
as pequenas5 4, a terra toda em pouco meros braços. Às vezes secavam, às
tempo ficaria recoberta tão-só de árvo­ vezes areias movediças impediam de
res e de animais ferozes e, afinal, tudo abordá-los e, assim, morria-se de sede
teria perecido 5 5. no meio das águas.
As águas aos poucos perderiam a Quantas regiões áridas só são habi­
circulação que vivificava a terra. As táveis devido aos sangradouros e aos
montanhas abatem-se e diminuem, os canais que os homens tiraram dos
rios carreiam, o mar enche-se e eleva- rios! Quase toda a Pérsia só subsiste
se, tudo, insensivelmente, tende ao graças a esse artifício; a China formiga
nível, porém a mão do 'homem retém de gente com o auxílio de numerosos
desses canais; sem os dos Países-
5 4 Pretende-se que, por uma espécie de ação e Baixos, estes seriam inundados pelos
de reação natural, as várias espécies do reino rios, como o seriam pelo mar, sem os
animal se manteriam por si mesmas numa per­ diques. O Egito, a região mais fértil da
pétua oscilação que, para elas, representaria o
terra, só é habitável devido ao trabalho
equilíbrio. Quando a espécie devoradora, se­
gundo dizem, tiver se multiplicado demais a do homem; nas grandes planícies,
expensas da espécie devorada, não mais então desprovidas de rios e cujo solo não
encontrando meio de subsistência, será preciso possui uma inclinação suficiente, só se
que a primeira diminua e deixe à segunda o
tempo de se reproduzir até que, de novo forne­
pode recorrer aos poços. Se, pois, os
cendo abundante meio de subsistência à outra, primeiros povos, a que se faz menção
esta novamente diminuirá, enquanto a espécie na História, não habitavam regiões fér­
devoradora se reproduzirá outra vez. Mas não
çarece nada verossímil uma tal oscilação, pois,
teis ou margens acessíveis, não é por­
nesse sistema, impõe-se que haja uma época que esses sítios acolhedores fossem
em que a espécie que serve de presa aumente, e desérticos, mas porque seus numerosos
diminua aquela que dela se nutre. O que me habitantes, podendo ignorar-se uns aos
parece contra qualquer bom senso. (N. do A.)
5 5 Embora inesperada, a incursão pelo campo outros, por mais tempo viveram no
da evolução geral dos seres vivos (v., em parti­ seio de suas famílias, isolados e sem
cular, a nota de Rousseau) vem demonstrar comunicação. Mas, nas regiões áridas,
não apenas o desejo de integrar os dados mais nas quais só os poços torneciam água,
recentes no delineamento interpretativo senão
ainda o desígnio de sublinhar a função dos ele­ tiveram de reunir-se para cavá-los, ou.
mentos fortuitos em qualquer progressão evo­ pelo menos, combinarem o seu uso.
lutiva, ainda que não humana. (N. de L. G. M.) Terá sido essa a origem das sociedades
ENSAIO SOBRE A ORIGEM DAS LÍNGUAS 189

e das línguas nas regiões quentes 5 6. Mas, como? Nesse tempo os ho­
Aí se formaram os primeiros laços mens nasciam da terra? Sucediam-se
de família e aí se deram os primeiros as gerações sem que os dois sexos se
encontros entre os dois sexos. As unissem e §em que ninguém se enten­
moças vinham procurar água para a desse? Não. Havia famílias, mas não
casa, os moços para dar de beber aos havia nações; havia línguas domésti­
rebanhos. Olhos habituados desde a cas, mas nenhuma língua popular;
infância aos mesmos objetos, começa­ havia casamentos, mas não amor.
ram aí a ver outras coisas mais agradá­ Cada família bastava-se a si mesma e
veis. O coração emocionou-se com perpetuava-se unicamente pelo sangue;
esses novos objetos, uma atração des­
os filhos nascidos dos mesmos pais
conhecida tomou-o menos selvagem,
cresciam juntos e aos poucos encon­
experimentou o prazer de não estar só.
travam meios de se explicarem entre si;
A água, insensivelmente, tomou-se
mais necessária, o gado teve sede mais os sexos com a idade se distinguiam, a
vezes: chegava-se açodadamente e par­ inclinação natural era suficiente para
tia-se com tristeza. Nessa época feliz, uni-los, o instinto ocupava o lugar da
na qual nada assinalava as horas, nada paixão, o hábito o da preferência, pas­
obrigava a contá-las, e o tempo não sava-se a marido e esposa sem deixar
possuía outra medida além da distra­ de ser irmão e irm ã58. Não havia nisso
ção e do tédio. Sob velhos carvalhos, nada de muito estimulante para desem­
vencedores dos anos, uma juventude brulhar a língua, nada que pudesse
ardente aos poucos esqueceu a feroci­ com bastante freqüência arrancar os
dade. Acostumaram-se gradativamente acentos das paixões ardentes a fim de
uns aos outros e, esforçando-se por transformá-los em instituições e o
fazer entender-se, aprenderam a expli­ mesmo se pode dizer das necessidades
car-se. Aí se deram as primeiras festas raras e pouco exigentes que poderiam
— os pés saltavam de alegria, o gesto levar certos homens aos trabalhos
ardoroso não bastava e a voz o acom­ comuns. Um começava a bacia da
panhava com acentuações apaixona­ fonte e o outro a acabava a seguir,
das; o prazer e o desejo confundidos freqüentemente sem necessidade de
faziam-se sentir ao mesmo tempo. Tal qualquer acordo e, algumas vezes, até
foi, enfim, o verdadeiro berço dos sem se terem visto. Numa palavra, nos
povos — do puro cristal das fontes saí­
ram as primeiras chamas do amor 5 7. 58 Foi preciso que os primeiros homens
desposassem suas irmãs. Na simplicidade dos
5 6 Entrosam-se, pois, a evolução natural geral primeiros costumes, esse uso se perpetuou sem
e a evolução particular do homem, conser­ inconvenientes enquanto as famílias permane­
vando, porém, caracteres peciiliares. A ação ceram isoladas, e mesmo depois da reunião
humana mostra-se bastante fraca em face do dos povos mais antigos. A lei que o aboliu, no
processo natural, porém seus efeitos são decisi­ entanto, não é menos sagrada por ser de insti­
vos, se tivermos em conta menos as alterações tuição humana. Aqueles que só a consideram
que o homem impõe à natureza do que a trans­ pelo liame que forma entre as famílias não vêm
formação de si mesmo a que, para tanto, está seu aspecto mais importante. Na familiaridade
obrigado. Nada, pois, resta em Rousseau da que o comércio doméstico necessariamente
ordem preestabelecida e inalterável dos jusna- estabelece entre os dois sexos, a partir do
turalistas. (N. de L. G. M.) momento em que uma lei tão santa deixasse de
5 7 A hipótese explicativa deve ser aceita falar ao coração e de impor-se aos sentidos,
como tal. Seguem-se as ressalvas relativas aos não haveria mais honestidade entre os homens
grupos, por assim dizer, naturais — que, como e os mais terríveis costumes logo determina­
já se tornou óbvio, representam outra hipótese riam a destruição do gênero humano. (N. do
não-histórica. (N. de L. G. M.) A.)
190 ROUSSEAU

climas amenos, nos terrenos férteis, seu coração ficasse só dentro de si


precisou-se de toda a vivacidade das m esm o59.
paixões agradáveis para levar os seus
habitantes a começarem a falar. As 59 Não há, pois, uma correspondência neces­
primeiras línguas, filhas do prazer e sária entre o que é social e o que é mau, como
não da necessidade, durante muito fariam supor certas interpretações esquemá­
ticas do pensamento de Rousseau. Pelo contrá­
tempo carregaram o ensinamento de rio, o elemento pernicioso só se instala entre os
seu pai: o seu acento sedutor só desa­ homens vivendo em grupo quando um se apro­
pareceu com os mesmos sentimentos pria egoisticamente do que deve ser de todos.
que o tinham despertado, quando Esse tema ético geral é o mesmo que, no plano
político, dá fundamento à exposição crítica do
novas necessidades introduzidas entre Discurso sobre a Desigualdade e irá inspirar
os homens obrigaram cada um a só as normas práticas do Contrato Social. (N. de
pensar em si mesmo e a fazer com que L, G. M.)

C a pítu lo X

Formação das línguas do norte

Com o decorrer dos tempos, todos os povos setentrionais são tão robus­
os homens se tornam semelhantes, tos, pois o são não porque o clima os
porém é diferente a ordem de seu pro­ fez assim, mas porque só respeitou os
gresso. Nos climas meridionais, onde a que assim eram, não sendo de admirar
natureza é pródiga, as necessidades que os filhos conservassem a boa cons­
nascem das paixões; nas regiões frias, tituição dos pais.
onde ela é avara, as paixões nascem Compreende-se, desde logo, que os
das necessidades 60, e as línguas, tristes homens mais robustos devem possuir
filhas da necessidade, ressentem-se de órgãos menos delicados, suas vozes
sua áspera origem. devem ser mais ásperas e mais fortes.
Ainda que o homem se habitue com Aliás, que diferença enorme existe
as intempéries, com o frio, com a penú­ entre as inflexões comovedoras que
ria e até com a fome, há, contudo, um resultam dos frêmitos da alma e os gri­
ponto em que a natureza sucumbe — tos arrancados pelas necessidades físi­
nas garras dessas provações cruéis cas! Nesses tremendos climas, nos
tudo que é débil perece e tudo mais se quais durante nove meses do ano tudo
fortalece. Não há um ponto interme­ está morto, o sol só aquece o ar duran­
diário entre o vigor e a morte. Por isso te poucas semanas, parecendo que o
faz unicamente para dizer aos habitan­
Como as paixões que derivam de necessi­ tes de que bens estão privados e para
dades implicam novas necessidades, impõe-se acentuar-lhes a miséria; nesses lugares
esclarecer o jogo de palavras deste trecho, que em que a terra nada dá, senão com
apenas quer indicar como, em certas condi­
ções, imperam as necessidades básicas indivi­ muito trabalho, e onde a fonte da vida
duais e, em outras, as necessidades resultantes parece estar muito mais nos braços do
já dos contatos sociais. De qualquer forma, é que no coração, os homens, ocupados
sempre a necessidade, motor da vida coletiva, incessantemente em atender à subsis­
que cria e tempera as línguas, como e por que
cria as sociedades: cada qual com sua fisiono­
tência, dificilmente pensavam em laços
mia própria, porém todas animadas por um mais doces: tudo se limitava ao impul­
mesmo impulso. (N. de L. G. M.) so físico — a ocasião determinava a
ENSAIO SOBRE A ORIGEM DAS LÍNGUAS 191

escolha, e a facilidade, a preferência. A natural, tal impressão contribuiu ainda


ociosidade, que alimenta as paixões, mais para a sua dureza.
cedeu lugar ao trabalho, que as recal­ Com efeito, os homens setentrionais
ca. Antes de pensar em viver feliz, não deixam de possuir paixões, mas as
tinha-se de pensar em viver. A socie­ possuem de outro tipo. As das regiões
dade só se formou pela indústria, por­ quentes são voluptuosas, prendendo-se
quanto a necessidade mútua unia ao amor e à ternura. A natureza faz
muito mais os homens do que o teria tanto pelos habitantes que estes quase
não sentem necessidade de fazer algo.
feito o sentimento. Sempre presente, o
Para um asiático sentir-se satisfeito,
perigo de perecer não permitia que se
basta ter mulher e repouso, mas no
limitassem à língua do gesto, e entre norte, onde os habitantes consomem
eles a primeira palavra não foi amai- muito num solo ingrato, os homens
me, mas ajudai-me. submetidos a tantas necessidades mos­
Esses dois termos, embora muito tram-se fáceis de irritar. Tudo que su­
semelhantes61, são pronunciados em cede à sua volta os inquieta e, como só
tom bem diferente. Nada se tinha a subsistem com dificuldade, quanto
fazer sentir e tudo a fazer compreen­ mais pobres são tanto mais questão
der; não se tratava de energia, mas de fazem do pouco que possuem. Abor­
clareza. O acento, que o coração não dá-los equivale a atentar contra sua
vida. Daí resulta o seu temperamento
fornecia, foi substituído por articula­
irascível, tão predisposto a se trans­
ções fortes e sensíveis e, se houve na formar em fúria contra quantos os
forma da linguagem alguma impressão atingem. Por isso, os seus sons mais
naturais são os da cólera e das amea­
61 Em francês, efetivamente, aimez-moi e ças, e essas vozes sempre se acompa­
aidez-moi distinguem-se por uma única con­ nham de articulações fortes, que as tor­
soante. (N. da T.) nam ásperas e estridentes.

C apítu lo XI

Reflexões sobre essas diferenças

Tais são, na minha opinião, as cau­ ticular dos homens que se auxiliam,
sas físicas mais gerais da diferença que raciocinam com sangue-frio, ou àe
característica das línguas primitivas. pessoas coléricas que brigam, porém
As do sul tiveram de ser vivas, sono­ os ministros dos deuses anunciando os
ras, acentuadas, eloqüentes e freqüen­ mistérios sagrados, os sábios dando
temente obscuras, devido à energia. As leis ao povo, os chefes arrastando a
do norte surdas, rudes, articuladas, gri­ multidão, devem falar árabe ou
tantes, monótonas e claras, devido persa62. Nossas línguas valem mais
antes à força das palavras do que a escritas do que faladas; lêem-nos com
uma boa construção. As línguas mo­ mais prazer do que nos escutam. Pelo
dernas, centenas de vezes misturadas e contrário, as línguas orientais perdem,
refundidas, ainda conservam alguma
coisa dessas diferenças: o francês, o 62 O turco é uma língua setentrional. (N. do
inglês e o alemão são a linguagem par­ A.)
192 ROUSSEAU

escritas, sua vida e calor. O sentido só do Maomé a proclamá-lo, em pessoa,


em parte está nas palavras, toda a sua nessa língua eloqüente e cadenciada,
força reside nos acentos. Julgar o gênio com aquela voz sonora e persuasiva
dos orientais pelos seus livros é querer que seduzia o ouvido antes de seduzir
pintar um homem tendo por modelo o coração e animando incessantemente
seu cadáver. suas sentenças com o acento do entu­
Para apreciar as ações dos homens, siasmo, prostrar-se-ia ao solo, gritan­
impõe-se levar em consideração todas do: “Grande profeta, enviado de D e u s!
levai-me até a glória e o martírio; dese­
as suas relações, coisa que jamais nos
jamos vencer ou morrer por vós”. O
ensinam a fazer: quando nos coloca­ fanatismo sempre nos pareceu ridículo
mos no lugar dos outros, o fazemos tal porque não encontra entre nós uma
como já somos, modificados, e não voz para se fazer ouvir. Os nossos
como devem ser eles, e, quando pensa­ fanáticos não são verdadeiros fanáti­
mos julgá-los baseados na razão, só cos: não passam de espertalhões ou de
conseguimos comparar seus precon­ loucos. Nossas línguas, em vez de pos­
ceitos com os nossos. Alguém, por suírem inflexões convenientes aos ins­
saber ler um pouco de árabe, sorri ao pirados, só têm gritos para os possuí­
folhear o Alcorão, mas, se tivesse ouvi­ dos pelo diabo.

C a p í t u lo X II

Origem e relações da música 63

Com as primeiras vozes formaram- volta das fontes de que falei, os primei­
se as primeiras articulações ou os pri­ ros discursos constituíram as primeiras
meiros sons, segundo o gênero das pai­ canções; as repetições periódicas e
xões que ditavam estes ou aquel.as. A medidas do ritmo e as inflexões melo­
cólera arranca gritos ameaçadores, que diosas dos acentos deram nascimento,
a língua e o palato articulam, porém a com a língua, à poesia e à música, ou
voz da ternura, mais doce, é a glote melhor: tudo isso não passava da pró­
que modifica, tornando-a um som. pria língua naqueles felizes climas e
Sucede, apenas, que os acentos são encantadores tempos em que as únicas
nela mais freqüentes ou mais raros, as necessidades urgentes que exigiam o
inflexões mais ou menos agudas, se­ concurso de outrem eram as que o
gundo o sentimento que se acrescenta. coração despertava.
Assim, com as sílabas nascem a cadên­ Foram em verso as primeiras histó­
cia <£ os sons: a paixão faz falarem rias, as primeiras arengas, as primeiras
todos os órgãos e dá à voz todo o seu leis. Encontrou-se a poesia antes da
brilho; desse modo, os versos, os can­ prosa, e haveria de assim suceder, pois
tos e a palavra têm origem comum. A que as paixões falaram antes da razão.
A mesma coisa aconteceu com a músi­
63 Provavelmente este Ensaio inicialmente se ca. A princípio não houve outra músi­
destinava a tratar da música (v. Introdução e
nota n.° 1), sendo pois de crer-se que aqui se
ca além da melodia, nem outra melo­
iniciaria, propriamente, a discussão central dia que não o som variado da palavra;
que, nesta edição, passa a ter interesse secun­ os acentos formavam o canto, e as
dário. (N. de L. G. M.) quantidades, a medida; falava-se tanto
ENSAIO SOBRE A ORIGEM DAS LÍNGUAS 193

pelos sons e pelo ritmo quanto pelas que conseguimos de nós mesmos, ao
articulações e pelas vozes. Segundo vê-los tão bem expostos, é fingir acre­
Estrabão, outrora dizer e cantar eram ditar neles para não desgostar os nos­
o mesmo, o que mostra, acrescenta ele, sos sábios 6 6. Burette, tendo traduzido,
que a poesia é a fonte da eloqüência 6 4. como pôde, em notas de nossa música
Seria melhor dizer que tanto uma alguns trechos de música grega, teve a
quanto outra tiveram a mesma fonte e ingenuidade de fazer executá-los na
a princípio foram uma única coisa. Academia de Letras e os acadêmicos
Levando-se em consideração o modo tiveram a paciência de ouvi-los. Admi­
pelo qual se ligaram as primeiras ro-me dessa experiência num país cuja
sociedades, pode sentir-se surpreen­
música é indecifrável para qualquer
dido pelo fato de terem sido as primei­
outra nação. Mandai músicos estran­
ras histórias escritas em verso e que se
geiros de vossa escolha executar um
cantassem as primeiras leis? Será mo­
monólogo de ópera francesa e vos
tivo de admiração terem os primeiros
gramáticos submetido sua arte à músi­ desafio a reconhecê-lo. Não obstante,
ca e serem, ao mesmo tempo, profes­ são esses mesmos franceses que preten­
sores de uma e de outra? 6 5 diam julgar a melodia de uma ode de
Uma língua que não tenha, pois, Píndaro posta em música há dois mil
senão articulações e vozes possui so­ anos!
mente a metade de sua riqueza; na ver­ Li que, outrora, na América, os ín­
dade, transmite idéias, mas, para trans­ dios, vendo os efeitos surpreendentes
mitir sentimentos e imagens, das armas de fogo, recolheram do chão
necessitam-se ainda de ritmos e de as balas de mosquetão e depois, lan­
sons, isto é, de uma melodia: eis o que çando-as com a mão ao mesmo tempo
a língua grega possuía, e falta à nossa. que produziam forte ruído com a boca,
Sempre nos admiramos com os efei­ surpreendiam-se por não matarem nin­
tos prodigiosos da eloqüência, da poe­ guém. Assemelham-se a esses índios os
sia e da música entre os gregos; tais
efeitos não mais se combinam em nos­ 6 6 Sem dúvida, em certa medida se deverá
sas cabeças porque não mais atingi­ descontar o exagero grego, mas será também
mos coisas semelhantes, e o máximo conceder demais ao preconceito moderno levar
essas reduções a ponto de fazerem desaparecer
todas as diferenças. “Quando a música dos
6 4 Geogr., Liv. I. (N. do A.) gregos do tempo de Anfião e de Orfeu”, diz o
6 5 “A rchytas atque A ristoxenes etiam subjec- Padre Terrasson, “estava no ponto em que
tam grammaticen musicae putaverunt, et eos- hoje se encontra nas cidades mais distantes da
dem utriusque rei praeceptores fu isse . . . Tum capital, é que suspendia o cursõ dos rios,
Eupolis, apud quem Prodamus et musicen et atraía os carvalhos e fazia os rochedos se
litteras docet. Et Maricas, qui est Hyperbolus, moverem. Atualmente, quando alcançou tão
nihil se ex musicis scire nisi litteras confite- alto ponto de perfeição, gosta-se muito dela,
tur. "(Quintil., Lib. I, cap. X.)* (N. do A.) penetra-se mesmo em suas belezas, mas ela
* “Além disso, Arquitas e Aristóxeno julga­ deixa tudo em seu lugar. A mesma coisa acon­
vam que a gramática estivesse subordinada à teceu com os versos de Homero, poeta nascido
música e que eles próprios eram preceptores de nos tempos em que ainda se ressentiam da
uma e de outra dessas artes. . . Por outro lado, infância do espírito humano, em comparação
há Êupolis, em casa de quem Prodamus ensi­ com aqueles que os seguiram. Extasiaram-se
nava não só a música mas também as primei­ com seus versos; hoje contentam-se em sabo­
ras letras. E também Maricas, que é Hipér- rear e apreciar os dos bons poetas.” Não se
bolo, admite que o que sabe de música nada pode negar possuir o Padre Terrasson alguma
mais é que gramática.” (Quintiliano, 1. I, c. X.) filosofia, mas não é certamente nesse trecho
(N. de L. G. M.) que o demonstrou. (N. do A.)
194 ROUSSEAU

nossos oradores, músicos e sábios. O música, mas estaria, sim, em produzir,


prodígio não está em que não consiga­ com instrumentos tão diversos, os mes­
mos o que faziam os gregos com sua mos efeitos.

C a p í t u l o X III

Da melodia

Ninguém duvida que o homem seja A melodia constitui exatamente, na


modificado pelos seus sentidos, mas, música, o que o desenho representa na
por não podermos distinguir tais modi­ pintura — assinala traços e figuras,
ficações, confundimos-lhes as causas. nos quais os acordes e os sons não pas­
Reconhecemos um domínio excessivo, sam de cores. Mas, dir-me-ão, a melo­
mas também insuficiente das sensa­ dia não passa de uma sucessão de
ções, não percebendo que freqüente­ sons. Sem dúvida, mas o desenho tam­
mente não só nos afetam como sensa­ bém nada mais é do que um arranjo de
ções mas ainda como sinais e imagens, cores. Um orador serve-se da tinta
e que seus efeitos morais também pos­ para escrever suas obras, porém isso
suem causas morais. Tal como os significará ser a tinta um licor de forte
sentimentos despertados em nós pela eloqüência?
pintura não vêm das cores, o império Suponde um país em que não se
que a música possui sobre nossa alma tenha qualquer idéia do desenho, mas
não é obra dos son s67. Belas cores no qual muita gente, que passasse os
bem graduadas agradam à vista, mas dias combinando, misturando e mati­
tal prazer é uma sensação pura. São o zando as cores, se considerasse em pri­
desejo e a imitação que conferem vida meira plana na pintura. Essas pessoas
e alma a essas cores, são as paixões julgariam a nossa pintura exatamente
por elas reveladas que comovem as como fazemos com a música dos gre­
nossas, são os objetos por elas repre­ gos. Quando lhes falassem da emoção
sentados que nos afetam. O interesse e despertada em nós por belos quadros e
o sentimento não dependem das cores. de como é admirável comover-se com
Os traços de um quadro tocante tam­ um assunto patético, seus sábios ime­
bém tocam numa estampa. Tirai os diatamente aprofundar-se-iam na ma­
traços de um quadro e as cores nada téria, comparariam suas cores com as
serão. nossas, examinariam se nosso verde é
mais suave ou o vermelho mais bri­
6 7 Todo o capítulo se desenvolverá em torno lhante, procurariam quais os acordes
desse paralelo entre a música e a pintura que, de cor que podem despertar o pranto,
aliás, não possui grande consistência do ponto quais os que podem encolerizar. Os
de vista psicológico e estético, além de pagar Burette de tal país reuniriam em trapos
pesado tributo ao mau princípio de aquilatar a
obra de arte apenas pelo elemento comunica­ velhos alguns fragmentos desfigurados
tivo, como era de hábito no século XVIII. Não de nossos quadros e depois pergunta­
obstante, sem que se possa explicar por que, riam, surpreendidos, o que existe de
Rousseau, levando o seu raciocínio às últimas tão maravilhoso nesse colorido.
conseqüências, acaba por profetizar o apareci­
mento de uma pintura não figurativa — tal Se, em qualquer nação vizinha, se
qual só se viria a conhecer no século XX. (N. começasse a formar um traço qual­
de L. G. M.) quer, um certo esboço, uma figura
ENSAIO SOBRE A ORIGEM DAS LÍNGUAS 195

ainda imperfeita, tudo isso passaria arte. Que digo? Da arte? N ão! De
por garatujas, por uma pintura capri­ todas as artes, senhores, de todas as
chosa e barroca, e se apegariam, para ciências. Somente a análise das cores,
preservar o gosto, a esse belo simples o cálculo das refrações do prisma
que, na verdade, nadá exprime, mas podem dar-vos as relações exatas que
que faz esplender matizes bonitos, estão na natureza e a regra de todas
grandes planos bem coloridos e vastas essas relações. Ora, tudo no universo
gradações de tons sem qualquer linha. não é senão relação. Sabe-se tudo,
Finalmente, devido ao progresso, pois, quando se sabe pintar: sabe-se
chegar-se-ia talvez à experiência do tudo quando se sabe juntar as cores.”
prisma. Logo algum artista célebre Que diríamos de um pintor tão des­
nela basearia um esplêndido sistema. provido de sentimentos e de gosto para
“Senhores”, diria aos demais, “para assim raciocinar, limitando estupida­
filosofar impõe-se recorrer às causas mente ao aspecto físico de sua arte o
físicas. Aí estão a decomposição da prazer despertado em nós pela pintu­
luz, todas as cores primitivas, suas ra? Que diríamos do músico que, cheio
relações, proporções e os verdadeiros de preconceitos semelhantes, acredi­
tasse ver unicamente na harmonia a
princípios do prazer que a pintura des­
fonte dos grandes efeitos da música?
perta em vós. Palavras misteriosas,
Mandaríamos o primeiro colorir pai­
como desenho, representação, figura,
néis e condenaríamos o outro a com­
são mera charlatanice dos pintores por óperas francesas.
franceses que, por suas imitações, Como, pois, a pintura não é a arte
esperam despertar não sei que movi­ de combinar algumas cores de um
mentos na alma, quando se sabe que modo agradável à vista, também a mú­
nela só existem as sensações. Já vos sica não é a arte de combinar os sons
disseram maravilhas sobre seus qua­ de uma maneira que agrade ao ouvido.
dros; vede, porém, minhas cores. Se só fossem isso, tanto uma quanto
“Os pintores franceses”, continua­ outra figurariam entre as ciências
ria, “observaram talvez o arco-íris e naturais e não entre as belas-artes.
colheram da natureza certo gosto das Somente a imitação as eleva até esse
gradações e algum instinto do colori­ grau. Ora, que faz da pintura uma arte
do. Eu, de minha parte, mostrei-vos os de imitação? — o desenho. E da músi­
grandes e verdadeiros princípios da ca? — a melodia.

C apít u l o X I V

Da harmonia

A beleza dos sons pertence à nature­ mentarão prazer ouvindo belos sons,
za; seu efeito é puramente físico e mas, se inflexões melodiosas que lhes
resulta do concurso de várias partí­ sejam familiares não os animarem,
culas de ar postas em movimento pelo esse prazer não será delicioso, nem se
corpo sonoro e por todas as suas alí­ transformará em voluptuosidade. Os
quotas, talvez ao infinito, dando esse mais belos cantos ao nosso gosto sem­
conjunto uma sensação agradável. pre impressionarão mediocremente um
Todos os homens do universo experi­ ouvido não acostumado a eles. São
196 ROUSSEAU

uma língua cujo dicionário se precisa fazer um dia dessa arte uma arte de
conhecer. imitação? Onde está o princípio dessa
A harmonia propriamente dita en­ pretensa imitação? De que é sinal a
contra-se em situação ainda menos harmonia? E o que existe de comum
favorável. Possuindo apenas belezas de entre os acordes e nossas paixões?
convenção, jamais agrada a ouvidos Fazendo-se a mesma pergunta quan­
que não se instruíram a esse respeito e to à melodia, a resposta virá por si
só com reiterado hábito poder-se-á mesma: já está de antemão no espírito
senti-la e saboreá-la. Os ouvidos rústi­ dos leitores. A melodia, imitando as
cos só ouvem ruídos em nossas conso­ inflexões da voz, exprime as lamenta­
nâncias. Quando se alteram as propor­ ções, os gritos de dor ou de alegria, as
ções naturais, não é de espantar que ameaças, os gemidos. Devem-se-lhe
não exista mais o prazer natural. todos os sinais vocais das paixões.
Um som traz consigo todos os sons Imita as inflexões das línguas e os tor­
harmônicos concomitantes, naquelas neios ligados, em cada idioma, a certos
relações de força e de intervalos que impulsos da alma. Não só imita como
devem ter entre si para causar a mais fala, e sua linguagem, inarticulada mas
perfeita harmonia desse mesmo som. viva, ardente e apaixonada, possui cem
Juntai-lhe uma terça ou uma quinta, ou vezes mais energia do que a própria
qualquer outra consonância, e não a palavra. Disso provém a força das imi­
estareis juntando, mas sim redobran­ tações musicais e nisso reside o impé­
do-a, pois estareis conservando a rela­
rio do canto sobre corações sensíveis.
ção intervalar, porém alterando a de
Em certos sistemas, a harmonia pode
força. Reforçando uma consonância e
concorrer para tanto, ligando a suces­
não as outras, rompeis a proporção.
são de sons por algumas leis de modu­
Desejando fazer melhor do que a natu­
lação, tornando as entonações mais
reza, fazeis pior. Vossos ouvidos e
vosso gosto estragaram-se por uma justas e levando ao ouvido um teste­
arte mal compreendida. Naturalmente, munho fidedigno dessa justeza, aproxi­
só existe a harmonia do uníssono. mando e fixando inflexões inapre­
O Sr. Rameau pretende que os tim­ ciáveis a intervalos consonantes e
bres altos de uma certa simplicidade ligados. Mas, oferecendo também em­
sugerem naturalmente seus baixos e baraços à melodia, tira-lhe a energia e
que um homem possuidor de bom a expressão, apaga a acentuação apai­
ouvido, embora não exercitado, natu­ xonada para substituí-la pelo intervalo
ralmente entoará esse baixo. Eis um harmônico: submete-nos unicamente a
preconceito de músico, desmentido por dois únicos modos de cantar, quando
toda e qualquer experiência. Não so­ deveria haver tantos quantos são os
mente aquele que não tiver escutado tons oratórios; apaga e destrói multi­
nem o baixo nem a harmonia não dões de sons ou de intervalos que não
poderia por si só encontrar essa har­ entram no seu sistema; em uma pala­
monia ou esse baixo, como também vra, de tal modo separa o canto da
desagradá-lo-iam caso os ouvisse, pois palavra que essas duas linguagens se
gostaria muito mais do simples unísso­ combatem, se contrariam, tiram uma
no. da outra qualquer caráter de verdade e,
Mesmo que se calculasse, durante num tema patético, não podem unir-se
milhares de anos, as relações dos sons sem absurdo. Por isso, o povo sempre
e as leis da harmonia, como se poderia acha ridículo exprimir-se em canto as
ENSAIO SOBRE A ORIGEM DAS LÍNGUAS 197

paixões fortes e sérias, pois sabe que imitação, que uma espécie de discurso
em nossas línguas essas paixões não substitua a voz da natureza. Engana-se
têm inflexões musicais e que os ho­ o músico que quer reproduzir o ruído
mens do norte, como os cisnes, não pelo próprio ruído. Desconhece tanto a
morrem cantando. força quanto a fraqueza de sua arte,
A harmonia sozinha é, em si mesma, formando juízos sem gosto e sem
insuficiente para as expressões que discernimento.
parecem depender unicamente dela. A Ensinai-lhe que precisa produzir o
tempestade, o murmúrio das águas, os ruído pelo canto; que, se quisesse fazer
ventos, as borrascas, não são bem as rãs coaxarem, seria preciso fazê-las
transmitidos por simples acordes. De cantar, pois não lhe basta imitar:
qualquer modo que se faça, somente o impõe-se emocionar e agradar. Sem
ruído nada diz ao espírito, tendo os isso, sua imitação enfadonha nada será
objetos de falar para se fazerem ouvir e e, não despertando interesse em nin­
sendo sempre necessário, em qualquer guém, não causa qualquer impressão.

C a pít u l o XV

De como nossas mais vivas sensações


freqüentemente agem por meio de
impressões morais

Enquanto se continuar considerando outro. Se meu gato me ouve imitar um


os sons unicamente pela excitação que miado, logo o vejo atento, inquieto e
despertam em nossos nervos, de modo agitado, mas, percebendo ser eu quem
algum se terá verdadeiros princípios da estava imitando a voz de seu seme­
música, nem noção de seu poder sobre
lhante, acalma-se e fica em repouso.
os corações. Os sons, na melodia, não
agem em nós apenas como sons, mas Por que essa diferença de impressão,
como sinais de nossas afeições, de nos­ uma vez que tal diferença não existe na
sos sentimentos. Desse modo desper­ excitação das fibras, pois o próprio
tam em nós os movimentos que expri­ gato enganou-se a princípio?
mem e cuja imagem neles Se o maior dos impérios que sobre
reconhecemos. Até entre os animais se nós possuem as nossas sensações não
percebe qualquer coisa desse efeito
advém de causas morais, por que então
m oral68. O latido de um cão chama
somos nós tão sensíveis a impressões
68 Embora não disponha das distinções mais que são nulas para os bárbaros? Por
bem marcadas de que hoje nos servimos, que as nossas músicas mais comove­
Rousseau deseja sublinhar a distância que vai doras não passam, ao ouvido de um
da pura sensação fisiopsicológica ao senti­
mento de claro conteúdo ético. Efetivamente, caraíba, de um ruído qualquer? Seus
se o sentimento, em si, pode decorrer de uma nervos são de natureza diversa da dos
sensação, não adquirirá sentido moral sem o nossos? Por que não são também eles
segundo e essencial elemento, que é a relação
com o semelhante. O exemplo oferecido, mal­
atingidos? Ou por que essas mesmas
grado o caráter bastante precário da psicologia comoções afetam tanto a uns e tão
animal, que então não passava de primário pouco a outros?
empirismo, é formulado, contudo, de maneira
cautelosa e destina-se apenas a sublinhar o Cita-se, como prova do poder físico
correspondente caso humano. (N. de L. G. M.) dos sons, a cura das picadas de tarân-
198 ROUSSEAU

tuia69. Tal exemplo prova justamente Só conheço um sentido em cujas


o contrário. As pessoas picadas por sensações não se mistura nada de
esse inseto, para se curar, não precisam moral — é o paladar. Também a gulo­
nem de sons absolutos nem mesmo de dice só é vício dominante naqueles que
árias, mas sim de árias cuja melodia nada sentem.
lhes seja conhecida e cujas frases Quem desejar filosofar sobre a força
compreendam. Os italianos necessitam das sensações, comece, pois, por afas­
de árias italianas; os turcos, de árias tar, das impressões puramente sen­
turcas. Cada um só é afetado pelos suais, as impressões intelectuais e mo­
acentos que lhe são familiares, seus rais que recebemos por via dos
nervos só se prestam a isso quando seu sentidos, mas das quais estes só são
espírito os dispõe para tal — impõe-se causas ocasionais; evite o erro de con­
que compreendam a língua que lhes ferir aos objetos sensíveis um poder
falam, para que o que lhes dizem os que não possuem ou derivados das
ponha em movimento. Contam que as afeições da alma que nos sugerem. As
cantatas de Bernier curaram a febre de cores e os sons têm grande poder como
um músico francês. Elas dariam febre representações e sinais, porém pequeno
a um músico de qualquer outra nação.
como simples objetos dos sentidos.
Nos outros sentidos, até no mais
Conjuntos de sons e de acordes talvez
grosseiro de todos, podem-se observar
me distraiam por um momento, mas,
as mesmas diferenças. Que mudança
de impressão se produz quando um para encantar-me e comover-me, esses
homem, tendo posta a mão e fixado o conjuntos precisam oferecer-me algo
que não seja nem acorde nem som e
olho no mesmo objeto, acredita-o
sucessivamente animado e inanimado, que, apesar de mim mesmo, me emo­
ainda que os sentidos sejam atingidos cione. Até os cantos, quando só são
do mesmo modo? O arredondado, a agradáveis e nada dizem, também can­
brancura, a firmeza, o doce calor, a sam, pois não é tanto o ouvido que
resistência elástica, o arfar repetido, leva o prazer ao coração quanto este
não lhe oferecem mais do que uma que o conduz até ao ouvido. Creio que
impressão agradável, porém insípida, se desenvolvêssemos melhor estas
se não acreditar sentir um coração idéias, poupar-se-iam muitos raciocí­
cheio de vida a palpitar por sob tudo nios tolos sobre a música antiga. Mas,
isso. neste século em que se esforçam por
materializar todas as operações da
69 A medicina popular recomendava, para alma e destituir os sentimentos de
curar os efeitos da picada venenosa da tarân­ qualquer moralidade, muito me enga­
tula, que o paciente dançasse ao som de músi­
ca, afirmando outros que o envenenado se sen­ narei se a nova filosofia não se tornar
tia impelido a dançar. Daí a “tarantela” tiraria tão funesta ao bom gosto quanto à
seu nome. (N. de L. G. M.) virtude.

C a p ít u l o X V I

Falsa analogia entre as cores e os sons

Não há espécie de absurdo que as ciado nas considerações sobre as be-


observações físicas não tenham propi- las-artes. Na análise dos sons encon-
ENSAIO SOBRE A ORIGEM DAS LÍNGUAS 199

traram-se as mesmas relações que na plicar os sons ouvidos ao mesmo


da luz. Encareceu-se imediatamente tempo ou desenvolver as cores umas
essa analogia, sem se dar atenção à após outras será mudar-lhes a econo­
experiência e à razão. O espírito de sis­ mia, colocar o olho no lugar do ouvido
tema tudo confundiu e, como não se e vice-versa.
soubesse pintar para os ouvidos, resol­ Dizeis: como cada cor se determina
veu-se cantar para os olhos. Vi aquele pelo ângulo de refração do raio que a
famoso cravo no qual se pretendia dá, também cada som é determinado
fazer música com cores. Tal fato resul­ pelo número das vibrações do corpo
tava de um conhecimento assaz errô­ sonoro, num dado tempo. Ora, sendo
neo das operações da natureza e de as mesmas as relações desses ângulos e
não se reconhecer que o efeito das desses números, é evidente a analogia.
cores reside na sua permanência e o Pode ser, mas tal analogia é racional e
dos sons na sua sucessão70. não sensível; o problema é outro. Em
Todas as riquezas do colorido ex­ primeiro lugar, o ângulo de refração é
põem-se ao mesmo tempo na face da sensível e mensurável, e o número de
terra; ao primeiro golpe de vista, vê-se refrações não o é. Os corpos sonoros,
tudo. Mas, quanto mais se olha, mais submetidos à ação do ar, incessante­
se fica encantado, tem-se somente de mente mudam de dimensões e de sons.
admirar e contemplar continuamente. As cores são duradouras, os sons aca­
bam e nunca se pode ter a certeza de
Tal não acontece com o som. A
que aqueles que renascem sejam os
natureza não o analisa e não o separa
mesmos que se extinguiram. Ademais,
dos harmônicos: ao contrário, escon­
de-os sob a aparência do uníssono ou, cada cor é absoluta, independente,
enquanto para nós cada som só é rela­
se por vezes os separa no canto modu­
tivo e só pode ser distinguido por
lado do homem e no gorjeio de alguns
comparação. Um som não possui em si
pássaros, o faz sucessivamente, um
mesmo qualquer caráter absoluto que
após outro, inspirando cantos e não
contribua para o seu reconhecimento.
acordes, ditando a melodia e não a É grave ou agudo, forte ou suave em
harmonia. As cores são o adorno dos relação a um outro; em si mesmo não é
seres inanimados, toda a matéria é nada disso. No sistema harmônico, um
colorida, mas os sons anunciam o som qualquer naturalmente também
movimento, e a voz, um ser sensível. nada é; não é tônico, dominante, har­
Só os corpos animados cantam. Não é mônico ou fundamental, porque todas
o flautista automático que toca a flau­ essas propriedades não passam de rela­
ta, mas o mecânico que mediu o sopro ções e, podendo o sistema inteiro va­
e fez os dedos se moverem. riar do grave ao agudo, cada som
Assim, cada sentido possui seu pró­ muda de ordem e de lugar dentro do
prio campo. O campo da música é o sistema, na medida em que este muda
tempo; o da pintura, o espaço. Multi­ de grau. As propriedades dos corpos,
no entanto, não consistem em relações.
70 Neste capítulo se reduz o paralelo do capí­ O amarelo é amarelo independen­
tulo XII à simples questão da comunicabi- temente do vermelho ou do azul, sendo
lidade da emoção estética e de seus conteúdos em todos os lugares sensível e reconhe­
éticos, pois a diferença da natureza física entre cível, e, uma vez fixado o ângulo de
o som e a cor e, correspondentemente, a
especificidade das sensações por um e por refração que o determinou, pode-se ter
outra provocadas serão indicadas com vigor e a certeza de sempre obter o mesmo
precisão. (N. de L. G. M.) amarelo em todos os tempos.
200 ROUSSEAU

As cores não estão nos corpos colo­ gio de uma arte, que só age pelo movi­
ridos, mas na luz; para que se veja um mento, consiste em poder formar até a
objeto é preciso que esteja iluminado. imagem do repouso. O sono, a calma
Os sons também têm necessidade de da noite, a solidão e o próprio silêncio
um motor e, para que existam, o corpo entram nos quadros da música. Sabe-
sonoro deve ser vibrado. Isso repre­ se que o ruído pode produzir o efeito
senta uma outra vantagem em favor da do silêncio, e este, o efeito daquele,
vista, pois a emanação perpétua dos como quando adormecemos em meio a
astros é o instrumento natural que age uma leitura igual e monótona e acor­
sobre ela, enquanto a natureza, por si damos no momento em que cessa. A
mesma, poucos sons engendra e, a música, porém, age mais intimamente
menos que se admita a harmonia das sobre nós, excitando, por intermédio
esferas celestes, seres vivos precisam de um sentido, sensações semelhantes
produzi-la. àquela que se pode excitar por um
Por aí se vê estar a pintura mais pró­ outro e, como a relação só pode tor­
xima da natureza, e a música, da arte nar-se sensível quando há impressão
humana. Percebe-se também que uma forte, a pintura, destituída dessa força,
interessa mais do que a outra, justa­ não pode dar à música as imitações
mente porque aproxima mais o homem que a música dela extrai. A natureza
do homem e sempre nos dá alguma toda pode estar adormecida, mas aque­
idéia de nossos semelhantes. A pintura le que a contempla não dorme, consis­
freqüentemente é morta e inanimada; tindo a arte do músico em substituir a
pode transportar-vos ao fundo de um imagem insensível do objeto pela dos
deserto. Desde, porém, que os sinais movimentos que sua presença excita
vocais atinjam vosso ouvido, anun­ no coração do contemplador. Não
ciam um ser semelhante a vós. São, somente agitará o mar, animará as
por assim dizer, os órgãos da alma e, chamas de um incêndio, fará os rios
embora também possam representar a correrem, cair a chuva e aumentarem
solidão, dizem que não estais só. Os as torrentes, como também pintará o
pássaros trinam, somente o homem horror de um deserto tremendo, ene­
canta. E não se pode ouvir canto ou grecerá as paredes de uma prisão
sinfonia sem se dizer imediatamente: subterrânea, acalmará a tempestade,
“Um outro ser sensível está aqui”. tornará o ar tranqüilo e sereno, e, da
Uma das maiores vantagens do mú­ orquestra, lançará uma nova frescura
sico consiste em poder pintar as coisas nos bosques. Não representará direta­
que não se poderiam ouvir, enquanto o mente tais coisas, mas excitará na
pintor não pode representar aquelas alma os mesmos sentimentos que se
que não se podem ver, e o maior prodí­ experimenta vendo-as.

C a pítu lo X V II

Erro dos músicos, prejudicial à sua arte

Vede como tudo sempre nos leva poder dos sons segundo a ação do ãr e
aos efeitos morais de que vos falei e o vibrar das fibras nervosas, estão
como os músicos, que só consideram o longe de saber em que consiste a força
ENSAIO SOBRE A ORIGEM DAS LÍNGUAS 201

dessa arte. Quanto mais a aproximam instituições harmônicas, a música se


das impressões puramente físicas, torna mais ruidosa ao ouvido e menos
tanto mais se distanciam de sua ori­ agradável ao coração. Deixou já de
falar e logo não cantará mais; então,
gem, e mais lhe diminuem, também, a com todos os seus acordes e toda a sua
primitiva energia. Abandonando o harmonia, não terá mais efeito algum
acento oral e atendendo unicamente às sobre nós.

C a p ít u l o XVIII
De como o sistema musical dos gregos não
possuía relação alguma com o nosso

Como se deram tais mudanças? por porém, no falar se passa por intervalos
uma mudança natural do caráter das menores do que quando se canta, foi
línguas. Sabe-se que nossa harmonia é natural que observassem a repetição
uma invenção gótica. Zombam de nós dos tetracordes na sua melodia oral,
aqueles que pretendem encontrar o sis­ como obedecemos à repetição das oita­
tema dos gregos no nosso. Aquele sis­ vas na nossa melodia harmônica.
tema só era harmônico, segundo o sen­ Só reconheceram como consonância
tido que damos à palavra, no aquelas que denominamos consonân­
respeitante à afinação dos instru­ cias perfeitas, excluindo desse número
mentos por consonâncias perfeitas. as terças e as sextas. Por quê? Porque,
Todos os povos que possuem instru­ ignorando o intervalo do tom menor
mentos de cordas são forçados a afiná- ou pelo menos proscrevendo-o da prá­
los por meio de consonâncias, mas tica e não sendo as suas consonâncias
aqueles que não os têm possuem nos temperadas, todas as suas terças maio­
seus cantos inflexões que conside­ res eram uma coma mais fortes, sendo
ramos desafinadas por não entrarem em outro tanto mais fracas suas terças
no nosso sistema e por não podermos menores e, conseqüentemente, alteran­
grafá-las. Observou-se isso nos cantos do-se reciprocamente suas sextas
dos selvagens da América e isso tam­ maiores e menores na mesma medida.
bém deveria ter-se observado em diver­ Imagine-se, agora, que noções de har­
sos intervalos da música dos gregos, monia se pode ter e que modos harmô­
caso se tivesse estudado essa música nicos se pode estabelecer excluindo do
com menos preconceitos oriundos da número de consonâncias as terças e as
nossa. sextas. Se as próprias consonâncias,
Os gregos dividiam o seu diagrama que admitiam, resultassem de um ver­
em tetracordes, como dividimos o dadeiro sentimento de harmonia, tê-
nosso teclado em oitavas, e as mesmas las-iam pelo menos subentendidas por
divisões em cada tetracorde para eles sob seus cantos, e a consonância tácita
se repetiam exatamente como se repe­ das marchas fundamentais emprestaria
tem, para nós, em cada oitava, seme­ seu nome às marchas diatónicas que
lhança que não se poderia conservar lhes sugerissem. Longe de possuírem
na unidade do modo harmônico e que menos consonâncias do que nós, tê-
não se teria sequer imaginado. Como, las-iam em maior número e, por exem-
202 ROUSSEAU

pio, preocupados com o baixo dó-sbl, nuamente os grandes intervalos das


chamariam consonância à segunda consonâncias e a dificuldade de con­
dó-ré. trolar a entonação nas relações dema­
Perguntar-se-á, contudo, por que siado compostas dos intervalos meno­
duas marchas diatónicas. Por causa de res, o órgão escolheu um meio-termo e
um instinto que, numa língua acen­ naturalmente caiu em intervalos meno­
tuada e cantante, nos leva a escolher as res do que as consonâncias e mais sim­
inflexões mais cômodas, pois, entre as ples do que as comas. Tal não impediu
modificações demasiado fortes que se que intervalos menores fossem empre­
precisa dar à glote para entoar conti­ gados em gêneros mais patéticos.

C apítu lo XIX

Como degenerou a música

À medida que a língua se aperfei­ pendente das palavras. Cessaram,


çoou, a melodia, impondo-se a si então, também, pouco a pouco, esses
mesma novas regras, insensivelmente prodígios que produzira quando não
perdeu algo de sua antiga energia e passava de acento e de harmonia da
substituiu o cálculo dos intervalos pela poesia e que lhe dava, sobre as pai­
delicadeza das inflexões. Foi assim, xões, o império que, depois, a palavra
por exemplo, que aos poucos se aboliu deixou de possuir sobre a razão. E,
a prática do gênero enarmônico. Quan­ desde que a Grécia se encheu de
do os teatros se apresentaram mais sofistas e de filósofos, não conheceu
regularmente, só se cantou de modo mais nem poetas, nem músicos céle­
prescrito e, à medida que se multipli­ bres. Cultivando a arte de convencer,
cavam as regras da imitação, a língua perdeu a de comover. O próprio Pla­
imitativa se enfraquecia. tão, enciumado de Homero e de Eurí-
Tendo o estudo da filosofia e o pro­ pides, difamou um e não pôde imitar o
gresso do raciocínio aperfeiçoado a outro. .
gramática, excluíram também da lín­ Logo a servidão juntou sua in­
gua aquele tom vivo e apaixonado que fluência à da filosofia 71. A Grécia sob
a princípio a tornara tão cantante. grilhões perdeu aquele fogo, que só
Desde os tempos de Menalípides e de anima as almas livres, e não encontrou
Filóxeno, os sinfonistas, que a princí­ mais, para louvar seus tiranos, o tom
pio eram mantidos por poetas e só exe­ com o qual cantara seus heróis. A mis­
cutavam sob sua direção e, por assim tura dos romanos enfraqueceu ainda
dizer, sob seu ditado, tornaram-se mais o que restava de harmonia e de
independentes e dessa libertação é que acento na linguagem. O latim, língua
a Música se lastima tão amargamente mais surda e menos musical, fez mal à
numa comédia de Ferécrates, em tre­
cho citado por Plutarco. Assim, a 71 Por sob as afirmações estéticas desse tre­
melodia, começando a nao permanecer cho, sente-se a repercussão do tema político: a
desigualdade faz degenerar a cultura espiritual
tão intimamente ligada ao discurso, e tudo caminha para a franca tirania e o conse­
insensivelmente tomou uma existência qüente aviltamento da criação artística. (N. de
à parte e a música se tornou mais inde­ L. G. M.)
ENSAIO SOBRE A ORIGEM DAS LÍNGUAS 203

Música ao adotá-la. O canto empre­ fazer nada de melhor senão deter-se em


gado na capital pouco a pouco alterou cada um deles o mais que se podia,
o das províncias. Os teatros de Roma ampliá-lo e levá-lo a produzir o maior
prejudicaram os de Atenas. Quando ruído possível. O canto logo passou a
Nero ganhava prêmios, a Grécia dei­ ser somente uma seqüência aborrecida
xara de merecê-los e a mesma melodia, e lenta de sons arrastados e gritados,
dividida entre duas línguas, conveio, sem doçura, cadência e graça, e, se al­
menos a uma do que à outra. guns sábios afirmavam a necessidade
Por fim, aconteceu a catástrofe72 de observar-se no canto latino as lon­
que destruiu os progressos do espírito gas e as breves, é certo pelo menos que
humano sem afastar os vícios que se cantaram os versos como se fossem
eram obra sua. A Europa, inundada de prosa e não jnais se cuidou de pés, de
bárbaros e subjugada por ignorantes, ritmo ou de qualquer outra espécie de
perdeu ao mesmo tempo suas ciências, canto medido.
suas artes e o instrumento universal Despojado de qualquer melodia e
tanto de umas quanto de outras, isto é, formado unicamente pela força e pela
a língua harmoniosa e aperfeiçoada. dureza dos sons, o canto sugeriu por si
Esses homens grosseiros, engendrados mesmo, finalmente, o meio de tornar-
pelo norte, habituaram insensivelmente se ainda mais sonoro com o auxílio
todos os ouvidos à rudeza de seus ór­ das consonâncias. Várias vozes, inces­
gãos: sua voz, dura e destituída de santemente arrastando em uníssono
acentuação, era ruidosa, sem ser sono­ sons de uma dureza ilimitada, encon­
ra. O Imperador Juliano comparava o traram por acaso alguns acordes que,
falar dos gauleses ao coaxar das rãs. pelo reforço do ruído, passaram a lhes
Sendo todas as articulações tão áspe­ parecer agradáveis — assim se iniciou
ras quanto eram nasais e surdas suas a prática do descanto e do contra­
vozes, não podiam senão comunicar a ponto.
seu canto uma espécie de brilho, que Ignoro durante quantos séculos os
consistia em reforçar o som das vogais músicos giraram em torno de questões
para esconder a abundância e dureza inúteis suscitadas pelo efeito conhe­
das consoantes. cido de um princípio ignorado. O leitor
Esse canto ruidoso, juntando-se à mais infatigável não suportaria, em
inflexibilidade do órgão, obrigou esses Jean de Muris, o palavrório de oito ou
recém-chegados e os povos subjugados dez grandes capítulos para saber se, no
que os imitaram a alongarem todos os intervalo de oitava dividido em duas
sons para fazer-se compreendidos. A consonâncias, é a quinta ou a quarta
articulação penosa e os sons reforça­ que deverá ficar no grave e, quatro­
dos concorreram também para expul­ centos anos depois, ainda encontramos
sar da melodia qualquer sentimento de em Bontempi não menos tediosas
medida e de ritmo. Como a passagem enumerações de todos os baixos que
de um som a outro era sempre a mais devem comportar a sexta em lugar da
difícil de pronunciar, não se podia quinta. A harmonia, no entanto, tomou
insensivelmente a direção que a análise
72 A Idade Média. O preconceito antimedie- lhe prescrevia, até que por fim a inven­
valista, embora comum no tempo, não deixa
de ser curioso em Rousseau, dada sua conde­
ção do modo menor e das dissonâncias
nação da decadência artística e moral da anti­ introduziu aquele elemento arbitrário
guidade (cf. Discursos). (N. de L. G. M.) de que está cheia e que somente o
204 ROUSSEAU

preconceito nos impede de perceber 73. modos, a escala, tudo, enfim, adquiriu
Esquecida a melodia e voltando-se novos aspectos e as sucessões harmô­
inteiramente a atenção do músico para nicas passaram a regular o movimento
a harmonia, aos poucos tudo se dirigiu das partes. Tendo o movimento usur­
para esse novo objeto. Os gêneros, os pado o nome da melodia, não se pôde
com efeito desconhecer nessa nova
73 Ligando toda harmonia a esse princípio melodia os traços da mãe e tornando-
muito simples, que é o da ressonância das cor­ se assim de modo gradual, puramente
das nas suas alíquotas, o Sr. Rameau funda o harmônico nosso sistema musical, não
modo menor e a dissonância em sua pretensa é de admirar que o acento oral com
experiência de uma corda sonora em movi­
mento fazer vibrar outras cordas mais longas
isso tenha sofrido e a música perdido
na sua décima segunda e na sua décima sétima quase toda a sua energia.
maior, no grave. Essas cordas, de acordo com Eis como o canto aos poucos se tor­
ele, vibram e estremecem em todo o seu nou uma arte inteiramente separada da
comprimento, mas não ressoam. Aí está, pare­
ce-me, uma física muito estranha, pois é como palavra, da qual se origina, como as
se se dissesse que o sol alumia e que não se vê harmônicas dos sons determinaram o
nada. esquecimento das inflexões da voz e
Essas cordas mais longas, não produzindo como, por fim, limitada ao efeito pura­
senão o som da mais aguda, por se dividirem,
vibrarem e ressoarem em uníssono, confundem mente físico do concurso de vibrações,
o som daquela corda com o seu e parecem não viu-se a música privada dos efeitos
produzir nenhum som. O erro reside em ter-se morais, que produzira quando era
acreditado vê-las vibrar em toda a sua exten­ duplamente a voz da natureza7 4.
são e em ter-se observado mal os nós. Duas
cordas sonoras, formando qualquer intervalo
harmônico, podem fazer ouvir seu som funda­ 7 4 Assim, o que se poderia tomar como mero
mental no grave, mesmo sem uma terceira problema musicológico particular — a impor­
corda. Essa é a experiência conhecida e confir­ tância relativa da harmonia e da melodia —
mada do Sr. Tartini. Mas uma corda sozinha acaba por integrar-se, lógica e coerentemente,
não possui outro som fundamental a não ser o numa concepção geral da evolução moral,
seu, não faz ressoar ou vibrar seus múltiplos, qual seja. a integração social do homem sem
mas unicamente o seu uníssono e as alíquotas. destruição de sua natureza própria. A passa­
Como o som não possui outra causa além das gem adquire notável significação se nos lem­
vibrações do corpo sonoro e como, onde a brarmos de que, ao cabo de uma análise mera­
causa age livremente, o efeito sempre a segue, mente formal, freqüentemente os críticos
diz-se um absurdo quando se fala em separar consideram assistemático o pensamento de
as vibrações da ressonância. ( N. do A.) Rousseau. (N. de L. G. M.)

C a pitu lo X X

Relação entre as línguas e o governo

Tais progressos não são nem fortui­ tituía uma força pública, impunha-se a
tos nem arbitrários; prendem-se às eloqüência. De que serviria hoje, quan­
vicissitudes das coisas. As línguas se do a força pública substitui a persua­
formam naturalmente baseadas nas são? Não se tem necessidade nem de
necessidades dos homens, mudam e se arte nem de figura para dizer: assim o
alteram de acordo com as mudanças quero. Qual é o discurso, pois, que
dessas mesmas necessidades. Nos tem­ ainda resta a fazer ao povo reunido?
pos antigos, quando a persuasão cons­ Sermões. E qual o interesse daqueles
ENSAIO SOBRE A ORIGEM DAS LÍNGUAS 205

que os fazem, em persuadir o povo, se riadores modernos, que quiseram inse­


não é o povo quem distribui mercês? rir arengas nas suas histórias, só
As línguas populares tornaram-se, despertaram zombaria. Suponha-se um
também para nós, tão perfeitamente homem arengando, em francês, o povo
inúteis quanto a eloqüência. As socie­ de Paris na Praça Vendôme; mesmo
dades tomaram sua última forma: nela que grite com toda força, não se distin­
nada mais se muda senão com o guirá uma única palavra. Heródoto lia
canhão e com a moeda, e como nada sua história aos povos da Grécia reuni­
se tem a dizer ao povo, a não ser: dai dos ao ar livre e tudo ressoava com
dinheiro, diz-se por meio de cartazes aplausos. Hoje o acadêmico que, num
nas esquinas ou de soldados nas casas. dia de assembléia pública, lê uma
Para tanto não se precisa reunir nin­ memória, é ouvido com dificuldade no
guém; pelo contrário, convém manter fundo da sala. Os charlatães de feira
os súditos esparsos — tal a primeira abundam menos em França do que na
máxima da política moderna7 5. Itália, não por serem menos ouvidos
Existem línguas favoráveis à liber­ aqui, mas somente por serem menos
dade, são as sonoras, prosódicas, har­ compreendidos. O Sr. d’Alembert crê
moniosas, cujo discurso de bem longe que se poderia dizer o recitativo fran­
se distingue. As nossas são feitas para cês à italiana: seria preciso, então,
o sussurro dos sofás. Nossos pregado­ dizê-lo ao ouvido, senão nada se enten­
res se atormentam, suam nos templos, deria. Afirmo ser uma língua escravi­
sem que se saiba nada do que disse­ zada toda aquela com a qual não se
ram. Depois de se esgotarem gritando consegue ser ouvido pelo povo reuni­
durante uma hora, saem quase mortos do. É impossível que um povo perma­
do púlpito. Certamente não valia a neça livre e fale uma tal língua.
pena cansarem-se tanto. Terminarei estas reflexões superfi­
Entre os antigos, podia-se ser ouvi­ ciais, mas que podem suscitar outras
do com facilidade na praça pública; mais profundas, com o trecho que mas
falava-se durante um dia inteiro sem sugeriu: [Constituiria matéria para um
grande incômodo. Os generais arenga­ exame acentuadamente filosófico ob­
vam suas tropas, eram ouvidos e de servar nos fatos e demonstrar pelos
modo algum se esgotavam. Os histo- exemplos como o caráter, os costumes
e os interesses de um povo influenciam
7 5 Ou seja: posta a sociedade sob um governo sua língua 7 6] .
tirânico, desaparece a liberdade — não só a
liberdade política propriamente dita, senão as
liberdades ligadas mais diretamente à pessoa 7 6 Remarques sur la Grammaire Générale et
humana que, pois, se aliena. (N. de L. G. M.) Raisonnée, por Duelos pág. 2. (N. do A.)
DISCURSO
SOBRE A ORIGEM E OS
FUNDAMENTOS DA DESIGUALDADE
ENTRE OS HOMENS
In t r o d u ç ã o

de Paul Arbousse-Bastide

Origens

Em 1753, a Academia de Dijon propôs, para prêmio do ano seguinte, a


questão: Qual a origem da desigualdade entre os homens e será ela permitida
pela lei natural? Rousseau resolveu concorrer mais uma vez. Para se concentrar
melhor, porém, deixou Paris e afastou-se do convívio dos demais, perto de uma
floresta, em Saint-Germain. A s Confissões contam qual era então seu estado de
espírito: “Metido o dia todo na floresta, procurava e aí encontrava a imagem dos
primeiros tempos dos quais orgulhosamente traçava a história; não dava ouvidos
às pequenas mentiras dos homens, minha alma elevava-se até a divindade ”. O
escritor acabou a obra em Chambéry, redigindo uma dedicatória à República de
Genebra, que traz a data de 12 de junho de 1754. A obra apareceu impressa sob
o título de Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os
Homens.
A s fontes deste segundo discurso foram estudadas por M oreP. São duas: de
um lado, Rousseau sofreu a influência da filosofia enciclopédica, e, de outro, a
das ciências naturais e históricas.
1) Os filósofos, como Diderot e Condillac, os juristas, como Grócio e
Pufendorf, tinham destruído a idéia tradicional de uma criação do estado social
por Deus e difundiram as idéias de uma evolução natural do homem e das socie­
dades, de sua organização progressiva da barbárie para a civilização; desses filó ­
sofos e juristas, teóricos do direito natural, Rousseau toma, aliás, mais o seu mé­
todo do que as idéias, em relação a um bom número das quais, pelo contrário,
proclamará seu desacordo. O método consiste em reconstruir racionalmente a
história humana em lugar de se basear exclusivamente nos dados da geografia,
da erudição e da teologia; por aí pode-se fazer um julgamento dessa história,
justificando-a ou condenando-a. Em alguns pontos de pormenor, Rousseau
chega até a adotar quase que a teoria completa de um de seus predecessores: a
teoria das paixões é de Diderot. A origem de nossos conhecimentos, partindo dos
sentidos, fo i descrita por Condillac; o nascimento da idéia de propriedade fora
analisado por Grócio e Pufendorf.
2) Diversamente dos filósofos e apesar de suas próprias declarações. Rous­
seau pede aos fatos a confirmação de seus raciocínios. Apóia seu sistema no es-

1 A nnales Jean-Jacques R ousseau, 1909. (N . de P .A .-B .)


210 INTRODUÇÃO

tudo do corpo humano, das raças e dos povos. Suas principais fontes, neste
ponto, são: Buffon, na sua monumental História Natural, da qual cita sobretudo
o capítulo sobre A Natureza do Homem; P. Dutertre, autor de uma História
Geral das Antilhas Habitadas pelos Franceses; e a História das Vingais, publi­
cação periódica, editada desde 1746. Foi daí que o filósofo extraiu o retrato,
desde então legendário, do “bom selvagem Convém lembrar Montaigne e,
especialmente, o capítulo dos Ensaios sobre Os Canibais2.

Análise sistemática do discurso

Dedicatória:

A dedicatória é dirigida à República de Genebra. Rousseau nela descreve o


Estado ideal, na form a por que decorre das teses enunciadas no segundo discurso
e atribui a origem dessas teses e seu valor ao fato de, na sua mais tenra infância,
ter sido formado de acordo com os costumes e as leis da República de Genebra.
A) O escritor apresenta as razões pelas quais escolheu a República de
Genebra para dedicar-lhe a obra. Felicita-se por ter nascido em Genebra, o Esta­
do mais perfeito possível existente na terra. Se não tivesse a felicidade de lá nas­
cer, as seguintes razões o fariam reconhecer em Genebra o Estado mais perfeito:
a) Razões morais:
1) Lá a virtude individual é idêntica à virtude social.
2) Existe uma unidade profunda entre os governantes e os governados.
3) O homem é livre.
4) A autoridade da lei não reconhece exceção para nenhum privilegiado.
5) A ancianidade da lei é a fiadora de sua adaptação ao povo que, de sua
parte, está muito bem adaptado a ela.
b) Razões políticas:

1) Genebra não possui ambições em relação a seus vizinhos. Seus vizinhos


também não possuem nenhuma em relação a ela.
2) O direito de legislação é comum a todos os cidadãos, mas reserva-se aos
magistrados o direito de propor leis. Com isso evitam-se dois erros: o de Roma,
que excluía os magistrados do poder legislativo, e o de Atenas, que lhes conferia
todo esse poder.
c) Razões “providenciais” : as amenidades da região e do clima; as riquezas
do solo.
B) O autor dirige a cada categoria de genebrinos uma dedicatória especial:
1) A os cidadãos, não deseja fazer a sua felicidade, uma vez que ela já exis­
te, mas sim conservá-la, obedecendo aos magistrados.
2) A os magistrados dirige elogios devidos à felicidade que proporcionam a

2 A esse respeito poder-se-á recorrer ao brilhante livro, copiosam ente docum entado, de A fon so A rinos de
M ello Franco: O índio Brasileiro e a Revolução Francesa, Ed. J. O lym pio, R io de Janeiro, 1937. (N . de
P.A.-B.)
INTRODUÇÃO 211

seus administrados e à consideração com que tratam as classes sociais mais


desfavorecidas, das quais fazia parte o p ai de Rousseau.
3) A os pastores da religião, que dão o exemplo do amor ao próximo e à
pátria.
4) A s mulheres, guardiãs dos costumes e da paz.

Conclusão:

A República de Genebra oferece a imagem da verdadeira felicidade. A


Rousseau basta contemplá-la para sentir-se feliz.

PREFÁCIO

A) O autor expõe a idéia geral do Discurso.


1) O conhecimento do homem é o mais importante de todos.
2) A dificuldade está em que se impõe distinguir o homem como deveria ser
(estado de natureza original), do homem em que se transformou (evolução do
tempo devida a mudanças exteriores e ao progresso natural do homem). Há, pois,
uma bondade original da natureza humana: a evolução social corrompeu-a.
3) A aplicação dessa idéia geral ao problema particular da desigualdade:
existe uma igualdade original inscrita no homem natural; causas físicas produzi­
ram pouco a pouco as várias desigualdades, que são artificiais.
B) O autor justifica o método observado no Discurso.
1) O método é o raciocínio; somente esse possui rigor lógico, mas suas
conclusões são hipotéticas: . .conhecer bem um estado (o estado de natureza)
que não existe mais, que, talvez, nunca existiu, que provavelmente jamais existi­
rá, mas do qual se impõe, no entanto, possuir noções justas ”.
2) Esse primeiro método precisa ser completado por um segundo: o recurso
à experiência. Dificuldades na aplicação desse segundo método: má vontade dos
filósofos e dos chefes de Estado.
C) O autor afirma acreditar que seu Discurso traz uma solução ao pro­
blema do direito natural.
1) Os autores se contradizem entre si sobre essa questão e contradizem-se
a si mesmos, dando uma definição abstrata e complicada da coisa que hipotetica­
mente é “natural”.
2) Rousseau definiu o direito natural em função não do estado social, que
é posterior ao estado de natureza, mas do homem natural original.
3) Encontrou no Discurso os dois fundamentos do direito natural: o ins­
tinto de conservação, que prende o homem a si mesmo, e a piedade, que o prende
a outrem.

Conclusão:

1) A oposição entre os poderosos e os fracos só superficialmente explica a


evolução das sociedades. Impõe-se procurar um fundamento natural primitivo.
2) Esse fundamento permite distinguir aquilo que na sociedade fo i desejado
pela natureza, isto é, por Deus, do que fo i produzido pelo homem.
212 INTRODUÇÃO

DISCURSO

Nas páginas preliminares, o autor formula com precisão o problema de que


irá tratar. Distingue duas espécies de desigualdade: a desigualdade natural ou f í ­
sica, e a desigualdade moral e política. Não se trata de procurar a primeira ori­
gem ou as relações entre as duas, mas de estudar como se deu a passagem da pri­
meira à segunda. A própria formulação do problema leva Rousseau a tomar
posição em relação a questões de método: é necessário alcançar novamente o es­
tado de natureza pelo raciocínio; impõe-se evitar o erro dos filósofos que atri­
buem aos selvagens sentimentos dos civilizados; tem-se de separar os fatos, pois
a história é contrária à natureza; tem-se de respeitar o ensino da religião, que re­
vela ter sido procurada imediatamente por Deus a passagem ao estado social. O
problema que subsiste para a filosofia é o seguinte: “Que poderia ter acontecido
ao gênero humano se fora abandonado a si mesmo ”.

PRIMEIRA PARTE

Análise do estado de natureza a fim de determinar se nele reina a desigual­


dade. Para tanto, o autor rejeita duas espécies de dados: os conhecimentos sobre­
naturais e a evolução biológica do homem. Supõe que o homem, no estado de
natureza, se encontra constituído anatomicamente como hoje.
A) Descrição do homem no estado de natureza.

I) O homem físico

1) Suas qualidades. Tem organização fisiológica perfeita. Suas necessi­


dades são facilmente satisfeitas. E capaz de adquirir todos os instintos dos ani­
mais. Possui temperamento robusto, reforçado pela seleção natural, que elimina
os fracos. Ignora o uso das máquinas, seu corpo é seu único instrumento. É auda­
cioso e não tímido, pois tem consciência de sua força. Faz-se temer pelos
animais.
2) Suas enfermidades naturais. Não se deve exagerá-las. A criança é melhor
protegida por suas mães do que os filhotes de outros animais. O velho, por ter
menos força, sofre menos necessidades. A s doenças, enfim, são raras. Na verda­
de, são produzidas pela vida social. Quem leva um tipo de vida simples, não fica
doente. A natureza fez-nos para sermos sadios e é remédio melhor do que os dos
médicos. “O homem que medita é um animal depravado. ”
3) Verificação desta última tese:
Os animais, uma vez domesticados, degeneram. Os selvagens, de acordo
com os relatos de viajantes, possuem a vista, o ouvido e o olfato mais desenvol­
vidos do que nós. Todo ser vivo é, pois, pela sua natureza, fisicamente forte.

II) O homem psicológico

1) O homem possui, em comum com os animais, os sentidos de onde pro­


vêm as idéias; por meio deles, percebe e sente.
2) O que o distingue do animal é, em primeiro lugar, a liberdade; por ela, o
homem quer e não quer; deseja e teme. Depois, a faculdade de aperfeiçoar-se e
INTRODUÇÃO 213

também de retrogradar; é a causa das infelicidades dos homens, que não soube­
ram permanecer nafelicidade do estado natural.
3) A s faculdades intelectuais superiores nascem das faculdades inferiores.
a) A razão é posta em ação pelas paixões que, por sua vez, são suscitadas
pelas necessidades. A s paixões elementares reduzem-se a três desejos e um
temor: o desejo de nutrição, o de reprodução e o de repouso; o temor da dor. O
homem, ignorante do que seria a morte, não poderia temê-la.
b) Essa opinião pode ser comprovada, de um lado, pela história do pro­
gresso intelectual, que está condicionado pelas paixões e pelas necessidades,
incessantemente aumentadas, do homem social; de outro lado, pela observação
dos selvagens, que não possuem desejos ou imaginação, e vivem inteiramente no
momento presente.
c) O progresso intelectual supõe trabalho, curiosidade, previdência — coi­
sas próprias não do homem natural mas do homem social. O progresso intelec­
tual supõe também duas condições que são as convenções sociais: a linguagem e
a divisão de terras.
4) Rousseau trata do problema da origem das línguas na intenção de pro­
var, de acordo com Condillac, que a língua supõe a sociedade e, portanto, não
pôde nascer naturalmente. Rousseau, consciente da dificuldade do problema e da
precariedade de todas as soluções, descreve os seguintes estágios naformação da
língua:
a) O grito é a primeira linguagem natural.
b) A s inflexões da voz servem, pouco a pouco, para designar os objetos.
c) Surge, por fim , a instituição dos sinais, simbolizando as articulações da
voz. Limitada, a princípio, por palavras-frases, decompõe-se em infinitos e em
nomes próprios, depois estende-se aos adjetivos, que são abstrações, e às idéias
gerais. Compreende, então, as primeiras classificações lógicas e biológicas, como
as de Aristóteles.
5) Conclusão: a sociabilidade não está inscrita na natureza humana origi­
nal. O homem não tem necessidade de outrem. Não sofre nem a dor, nem a misé­
ria, que o tornariam digno de piedade. O estado de natureza caracteriza-se pela
suficiência do instinto, o estado de sociedade pela suficiência da razão.

III) O homem moral

1) Amoralismo integral: o homem não é então nem bom, nem mau, ignora
tanto as virtudes quanto os vícios. O estado de natureza é mais vantajoso para
ele e lhe proporciona mais felicidade do que o estado social.
2) O primeiro princípio da moral natural: o instinto de conservação de si
mesmo. O erro de Hobbes, nesse ponto, consiste em ter acreditado que, para
conservar-se a si mesmo, impunha-se lutar com os outros e matá-los ou torná-los
escravos. Ora, a ausência da bondade não implica a maldade. O direito sobre as
coisas de que tem necessidade não leva o homem natural a um domínio univer­
sal. Pode-se muito bem zelar pela própria conservação sem prejudicar a de
outrem. O erro de Hobbes deve-se a ter levado em consideração necessidades tar­
dias para julgar o estado original do homem. Ora, o homem primitivo não pode­
ria ser mau, uma vez que não sabia o que era bom e mau.
214 INTRODUÇÃO

3) O segundo princípio da moral natural: a piedade.


O homem é naturalmente indulgente; a piedade é um movimento da nature­
za, anterior a qualquer reflexão. A prova disso pode ser encontrada no instinto
maternal, nos animais e, até, nos tiranos mais cruéis, que, naturalmente, sentiam
piedade pelos males que não tinham causado.
O erro de Mandeville reside em ter pensado que a piedade é uma virtude
social. Ora, a piedade é mais forte no estado de natureza, onde nos identificamos
espontaneamente com os infelizes, do que no estado social, no qual nos dirigimos
pela reflexão. A piedade espontânea do povo, e até da canalha, é superior à do
filósofo. A primeira inspira a máxima natural: “Alcança o teu bem, causando o
menor mal possível a outrem ”. A segunda produz a máxima razoável: “Faze a
outrem o que queres que te façam A vantagem do segundo princípio — a pie­
dade — é que ele equilibra o primeiro — a conservação de si mesmo — e o
compensa.
4) A s paixões: São mais violentas no estado de natureza. A paixão pela
alimentação pode ser facilmente satisfeita e, quando isso se dá, extingue-se. A
mesma coisa acontece com o amor. Tem-se de distinguir, no amor, o moral que
é fictício, nascido da sociedade, inventado pelas mulheres, e o físico, que é natu­
ral: “Qualquer mulher lhe serve ”. Comprovam-no, de um lado, os costumes dos
selvagens, a exemplo dos caraíbas, e, de outro, os animais: os combates entre os
machos só existem onde as fêmeas são menos numerosas. Ora, existem mais
mulheres do que homens.

Conclusão: Descrição recapitulativa do homem no estado de natureza.

B) A existência e a importância da desigualdade num tal estado de


natureza.

1) A desigualdade é quase nula no estado de natureza. Em nenhuma de


suas form as possui grande realidade ou influência.
2) A maioria das desigualdades resulta, com efeito, do hábito e da educa­
ção e, conseqüentemente, da sociedade que exercita ou não as forças do corpo e
as do espírito.
3) A s desigualdades naturais, de início fracas e insignificantes, são multi­
plicadas pela sociedade que, de um lado, aumenta os desejos e, de outro, favorece
a cultura. Desse modo, só se notou a beleza depois de inventada pelo amor men­
tal, e também a servidão e a dominação decorrentes da força e da riqueza só vie­
ram a existir quando os homens convieram entre si quanto à sua dependência
mútua.

C) Transição para a segunda parte:

Falta, ainda, mostrar que a perfectibilidade e as virtudes sociais se desen­


volveram, que o homem se tornou sociável e mau. Uma tal mudança poderia não
se processar e permanecer o homem imutável no estado de natureza. E, também,
difícil e conjetural descrever como se originou o desenvolvimento. Escapam-nos
as causas mínimas que tiveram essas conseqüências consideráveis; elas consti­
tuem uma série de acasos.
INTRODUÇÃO 215

SEGUNDA PARTE

Rousseau descreve os cinco estágios pelos quais passou a humanidade no


seu desenvolvimento, caracterizando-se cada qual por um novo crescimento da
desigualdade. Entre eles, o estágio decisivo f o i o da propriedade; dela vem todo
o mal, mas só fo i inventada tardiamente e depois de longa evolução que a tornou
necessária.

A) O estado de natureza e os primeiros progressos.

1) Resumo da vida que levavam os homens no estado de natureza: vida


puramente animal, limitada às sensações puras “e com muita dificuldade
aproveitando-se dos dons que lhes oferecia a natureza". Os acontecimentos prin­
cipais dessa vida eram a alimentação e a sexualidade, mas não implicavam
quaisquer relações continuas dos humanos entre si.
2) Os primeiros progressos nasceram das dificuldades que se apresentam
no meio natural, particularmente por causa dos animais. Consistiram em exercí­
cios do corpo, na descoberta de armas naturais e nas primeiras disputas entre os
homens para proverem a subsistência.
3) Os primeiros progressos reforçam-se com a multiplicação rápida dos
seres humanos, que se espalham pelas mais diversas regiões do globo. A adapta­
ção às estações e às regiões leva à invenção da pesca, da caça, da vestimenta e
do fogo. Essas invenções suscitam a percepção confusa de novas relações, a fo r­
mação de uma consciência orgulhosa da superioridade humana sobre os animais
e, finalmente, a descoberta, feita por cada um, de que os outros pensam e agem
como ele, de que “o único móvel das ações humanas é o bem-estar
4) D aí nascem os primeiros compromissos mútuos. O interesse comum,
mais freqüente do que a concorrência, ensina o homem a contar com a assis­
tência de seus semelhantes. Tais compromissos limitam-se ao presente, mas
ligam-se às primeiras manifestações da língua universal dos gestos e dos gritos,
que às vezes se completam por algumas articulações convencionais.
B) A Idade do Ouro.

1) Os primeiros progressos capacitaram os homens a conseguir outros mais


rápidos. Entre eles, a habitação é o mais importante. Teve três conseqüências
imediatas: .
a) a constituição da família, que é a primeira form a de sociedade;
b) a constituição de uma primeira forma de propriedade, pois fo i mais fácil
ao homem construir uma choça para si do que desalojar uma família inteira da
que ocupa;
c) o desenvolvimento psicológico do homem, com o aparecimento do amor
conjugal e do amor paternal, e a diferenciação econômica dos sexos.
2) Os homens então utilizam seu tempo para procurar comodidades ignora­
das por seus antepassados: o aperfeiçoamento da linguagem, a princípio entre os
povos insulares, depois entre os continentais; a formação das primeiras nações,
o nascimento das relações de vizinhança — de um lado, o amor sentimental, a
noção de beleza, de ciúme; de outro, as reuniões comunitárias, os cantos e a
dança.
216 INTRODUÇÃO

3) Esse estado é a “verdadeira juventude do mundo fica a meio caminho


entre a adolescência primitiva e a perversão atual. Já se vêem nele, porém, os ger­
mes dos males futuros: a estima e a consideração públicas surgem, então, crian­
do as primeiras desigualdades e os primeiros deveres de civilidade; são fontes de
contendas e de vingança. Introduz-se a moralidade: impõe-se a necessidade de
policiar os costumes e de punir os contraventores. O homem já pode ser conside­
rado cruel.

C) O primeiro progresso da desigualdade: a propriedade.

A invenção da propriedade suscita, de um lado, a existência da primeira


grande desigualdade, a que separa os ricos dos pobres e, de outro lado, a forma­
ção das primeiras sociedades civis, baseadas em leis.

1) A desigualdade entre ricos e pobres.

a) Causas: o desenvolvimento da metalurgia e da agricultura. A arte de tra­


balhar o ferro fo i a primeira a ser inventada, por ocasião de uma erupção vulcâ­
nica. Tornou-se, então, necessário um aumento da produção do trigo para ali­
mentar os trabalhadores metalúrgicos e para ter-se alguma coisa a trocar com os
objetos fabricados.
b) Conseqüências: a cultura das terras leva à sua divisão: sua posse conti­
nua, por aquele que as trata, transforma-se no direito de propriedade. A desigual­
dade dos talentos naturais é multiplicada pelo rendimento do trabalho. Os mais
corajosos ou mais atilados tornam-se os mais ricos. Desenvolvem-se as artes, as
riquezas e as línguas.
c) Quadro da humanidade nesse estado: a igualdade desapareceu, o traba­
lho tornou-se necessário, o desenvolvimento das faculdades psíquicas leva à dis­
tinção entre o que é e o que parece ser; a sociedade impõe-nos parecermos coisa
diferente do que somos. O homem torna-se escravo de suas necessidades e de
seus semelhantes. A riqueza suscita a ambição, a concorrência, a rivalidade de
interesses, a herança, a dominação universal.

2) A formação da sociedade e das leis.

a) Sendo a força insuficiente para conservar o que adquiriu, o rico, a fim de


legitimar sua posse, imagina dar aos homens máximas e instituições além das
n a tu ra is.
D aí a formação de associações e de governantes; daí a perda da liberdade e
do direito natural.
b) Imediatamente as sociedades multiplicam-se e cobrem a terra. Mas, se o
direito civil mantém a ordem no interior de uma sociedade, o direito natural sub­
siste nas relações das sociedades entre si. D aí as guerras nacionais.
c) Podem-se propor outras hipóteses para explicar a formação da socieda­
de. Essa é a mais natural. Isso porque a conquista não é viável sem convenções,
a riqueza é a primeira forma da conquista e a convenção, que fundamenta a
sociedade, é mais vantajosa para o rico do que para o pobre, que nada tem a
perder.
INTRODUÇÃO 217

D) O segundo progresso da desigualdade: os magistrados.

A o criar os magistrados, a sociedade produziu uma segunda grande desi­


gualdade: a dos poderosos e a dos fracos.
1) A insuficiência do primeiro pacto — pelo qual os indivíduos se consti­
tuem em sociedade — traz consigo a necessidade de um segundo pacto — pelo
qual a sociedade dá a si mesma um Governo. Com efeito, a obra política não
deve ser abandonada ao acaso, nem deixar oportunidade para fraquezas e revol­
tas. Há necessidade de magistrados para fazer observar as deliberações do povo,
mas, inversamente, os chefes são feitos para defender a liberdade dos povos, não
para avassalá-los.
2) Neste ponto, são múltiplos os erros dos teóricos políticos:
a) Uns falam de uma tendência natural do homem para a servidão, por
confundirem o estado atual com o estado original.
b) Outros baseiam o poder político numa extensão do poder paterno,
enquanto se deu justamente o contrário: a permanência da autoridade paterna e
seu rigor provieram do regime social.
c) Não somente o Governo não pode deixar de basear-se numa conven­
ção, como ainda essa convenção só é válida quando compromete as duas partes
e respeita, no futuro, sua liberdade. O erro de Pufendorf reside em ter acreditado
que se pode alienar tanto a liberdade quanto os bens. Ora, a liberdade é um dom
da natureza e, se apesar de mim continuo senhor de mim mesmo, com muito
mais razão não posso alienar a liberdade de meus descendentes.
3) Esse estágio não é, pois, o do poder arbitrário, mas o de um pacto entre
o povo e seus chefes, sob leis fundamentais. Essas leis fundamentais foram reco­
nhecidas pelos próprios chefes, como, por exemplo, Luís XIV. Quando se rom­
pem as leis, efetiva-se imediatamente a volta à liberdade; nisso se fundamenta o
direito de abdicar. Todavia, a razão mostra-se insuficiente para fundar a socieda­
de, é necessária a intervenção da vontade divina. A religião completa a sociabili­
dade: “Poupa ainda mais sangue do que o fanatismo fa z derramar ”.
4) A s várias formas de governo estão em função do grau de desigualdade.
A desigualdade com lucro de um só leva à monarquia; com lucro de alguns, à
aristocracia; com lucro do maior número, à democracia. A s magistraturas são
eletivas; a riqueza, o talento ou a idade favorecem-lhe o acesso, porém os abusos
das competições suscitam, por reação, a constituição de poderes hereditários: os
reis tornam-se deuses, os súditos escravos e, assim, dá-se a passagem ao estágio
seguinte.

E) O terceiro e último progresso da desigualdade: o despotismo.

A mudança do poder legítimo em poder arbitrário provoca o aparecimento


da terceira grande forma de desigualdade: a do senhor e do escravo.
1) Essa mudança é necessária. A s distinções políticas acarretam distinções
civis, que são reforçadas pelas paixões de cada um. Por exemplo, o usurpador é
obrigado a dar uma parte do poder a seus cúmplices e, para fazer com que seus
súditos se esqueçam da servidão, leva-os a guerras de dominação sobre outros
povos.
2) Há quatro espécies de desigualdade: a das qualidades naturais, única
natural; a do poderio; a da nobreza e de classe; e a da riqueza. Constituem a
218 INTRODUÇÃO

causa do progresso humano, tanto no que tem de bom quanto no que tem de
mau, mas engendram mais males do que bens.
3) Retrato da humanidade no seu último estágio. Rousseau, sem o dizer,
descreve o quadro do Antigo Regime: opressão, impostos, guerras, duelos, frivo­
lidade de costumes, luxo e estetismo.
4) O despotismo fecha o círculo da evolução. Com efeito, reencontra todos
os caracteres do estado de natureza: os homens, então, são iguais por não vale­
rem nada: o direito do mais forte vence; a moralidade reduz-se a uma obediência
cega; não existe mais virtude de costumes, nem noção do bem. Um tal estado
legitima todas as revoluções.

Conclusão geral:

A desigualdade não é legítima do ponto de vista natural.


1) Segundo a reflexão ensina, houve uma alteração da alma e das paixões
humanas, chegando à transformação da natureza; o homem natural desapareceu
gradativamente e cedêu lugar a agrupamentos de homens artificiais e de paixões
fictícias sem fundamento na natureza.
2) A observação confirma-o: o homem selvagem conhece o repouso e a
liberdade: seu próprio testemunho basta-lhe para ser feliz. Não possuem sentido,
para ele, as palavras poderio e reputação. O homem policiado conhece o traba­
lho e a escravidão. Só é feliz pelo testemunho de outrem. Vive para as aparên­
cias: suas virtudes, no fundo, não passam de vícios disfarçados.

Importância do discurso
1) Diferentemente do primeiro discurso, o Discurso sobre a Desigualdade
não fo i premiado pela Academia de Dijon. Conferiu-se o prêmio a outro discur­
so, que fo i impresso, de autoria do Padre Talbert, notável autor de sermões, de
inúmeros elogios, de peças e de poesias, e freqüentemente laureado pelas acade­
mias de província. O Padre Talbert e suas obras há muito tempo caíram no mais
completo esquecimento. Do mesmo modo, a Dedicatória à República de Gene­
bra não produziu, naquela cidade, o efeito esperado por Rousseau, como o prova
uma carta a Perdriau, datada de 28 de novembro de 1754. O autor, com efeito,
descrevera muito mais a cidade de seus sonhos do que a realidade da vida polí­
tica genebrina e até incorrera em certos erros no quadro dessa vida, que
esboçara.
2) Mas, ao contrário do primeiro discurso, o segundo encontrou, não
somente entre os literatos, mas no grande público, um êxito imediato e triunfal.
Mornet, que passou em revista quinhentas bibliotecas particulares do século
XVIII, nelas encontrou somente quinze vezes o primeiro discurso, enquanto o
segundo aparece setenta e seis vezes, e a Nova Heloísa, cento e sessenta e cinco
vezes. Em dois pontos especiais, a repercussão do discurso fo i considerável: a)
Rousseau instaurou, definitivamente, na literatura, o mito do selvagem livre,
feliz, robusto e puro, a superioridade da vida simples na natureza em oposição à
vida doentia das cidades civilizadas; b) voltou a dar forma à doutrina da igualda­
de, ao ideal de vida comunitária, que fo i o dos espartanos e dos primeiros
cristãos.
INTRODUÇÃO 219

3) Enquanto o escritor quase renegou o primeiro discurso, o segundo marca


um ponto decisivo na evolução de suas idéias, levando-o a colocar um problema
muito mais geral, que somente o Contrato Social resolverá. Esta última obra co­
meça do seguinte modo: “O homem nasceu livre e em todo lugar encontra-se a
ferros. O que se crê senhor dos demais não é menos escravo do que eles. Como
adveio tal mudança? Ignoro-o. Que pode legitimá-la? Creio poder resolver a
pergunta ”. O Discurso sobre a Desigualdade estuda a questão de fato; suas
conclusões são hipotéticas. O Contrato Social estudará a questão de direito, a
única interessante e verdadeiramente rigorosa. Quaisquer que sejam, porém, as
revisões que o Contrato Social traga ao pensamento de Rousseau, este, com o
segundo discurso, livra-se da influência demasiado forte de Diderot e conquista
sua autonomia. Diderot, e com ele os enciclopedistas, pensavam que a sociabili­
dade representa uma tendência da natureza humana: a sociedade é natural. É
inútil o contrato social no sentido em que Rousseau o entenderá; só haverá
necessidade do contrato para escolher o regime político de uma sociedade já
constituída; finalmente, a sociedade tornou-se má e corrompeu o homem, mas o
homem pode ainda salvar-se por meio de uma reforma individual, por uma volta
à verdadeira natureza original, pela restauração do direito natural. Rousseau,
pelo contrário, afirma aqui que o estado social é contra a natureza; que toda
associação tem como origem uma convenção; que, antes do contrato instituindo
um Governo, necessita-se de um contrato instituindo a sociedade; que nossa
natureza, fundamentalmente boa, está irremediavelmente corrompida. A vontade
individual perdeu sua retidão natural e não pode tomar a iniciativa de uma
redenção que só poderá vir de uma luz superior: a vontade geral. É isso que o
Contrato Social afirmará. O segundo discurso leva-nos, pois, ao seguinte ponto:
o estado de natureza não poderia subsistir eterna e imutavelmente: impunha-se
que as tendências ao aperfeiçoamento acabassem por desenvolver-se no homem
natural, mas não era necessário que se desenvolvessem numa direção determi­
nada. A via que a humanidade tomou resulta, na realidade, de fatos contingentes.
Essas tendências desenvolveram-se ao acaso, ao sabor do arbítrio — daí adveio
o mal — , mas poderiam e deveriam ter sido dirigidas durante seu desenvolvi­
mento; desse modo, o bem teria sido conservado. Qual a direção que se deve
impor às tendências naturais por ocasião da passagem para o estado social? Essa
é a questão que resta a resolver depóis do Discurso sobre a Origem da
Desigualdade.
DISCURSO SOBRE A SEGUINTE QUESTÃO,
PROPOSTA PELA ACADEMIA DE DIJON:
QUAL É A ORIGEM DA DESIGUALDADE
ENTRE OS HOMENS,
E É ELA AUTORIZADA PELA LEI NATURAL?
Non in depravatis, sed in his quae bene secundum naturam
se habent, considerandum est quid sit naturale1.
A ristóteles, Política, Livro I, cap. II.

1 “ N ão é entre os povos depravados, m as entre os que bem se conform am à natureza, que se deve examinar
o que é natural.” Aristóteles, Política, Livro I, cap. II. (N . de P. A.-B.)
A d v e r t ê n c ia s o b r e a s N o t a s

Juntei algumas notas a este trabalho, de acordo com meu hábito preguiçoso
de trabalhar em intervalos irregulares. Essas notas2, por vezes, distanciam-se
bastante do assunto e não servem, por isso, para serem lidas com o texto. Colo­
quei-as, pois, no fim do Discurso, no qual me esforcei por seguir, do melhor
modo que pude, o caminho mais reto. Os que tiverem a coragem de recomeçar
poderão distrair-se, na segunda vez, levantando a caça e tentando percorrer as
notas. Não terá importância que os outros não as leiam.

2 Essas notas de Rousseau, seriadas por letras, enccntram-se nas páginas 2 9 5 -3 2 0 . (N . do E.)
A R e p ú b l ic a de G enebra

Magníficos, Honradíssimos e Soberanos Senhores

Convencido de que só ao cidadão vossos muros, teria acreditado não


virtuoso cabe prestar à sua pátria as poder isentar-me de oferecer esse qua­
honras que ela possa consentir, há trin­ dro da sociedade humana4 àquele,
ta anos esforço-me por merecer ofere­ dentre todos os povos, que me parece
cer-vos uma homenagem pública. Esta possuir as suas maiores vantagens e
feliz ocasião substituindo em parte o melhor ter prevenido os seus abusos.
que meus esforços não puderam fazer, Se tivera de escolher o lugar de meu
acreditei ser-me permitido aqui levar nascimento, teria escolhido uma socie­
em consideração mais o zelo que me dade de tamanho limitado pela exten­
anima do que o direito que deveria são das faculdades humanas5, isto é,
autorizar-me. Tendo a felicidade de
pela possibilidade de ser bem gover­
haver nascido entre vós, como poderia
nada e na qual, bastando cada um a
meditar sobre a igualdade que a natu­
reza estabeleceu entre os homens e seus encargos, ninguém fosse obrigado
sobre a desigualdade instituída por eles a incumbir outros das funções de que
sem pensar na profunda sabedoria com fora encarregado; um Estado no qual
a qual uma e outra, felizmente combi­ todos os particulares se conhecessem
nadas neste Estado, concorrem, da entre si, onde as manobras obscuras do
maneira mais próxima à lei natural e vício e a modéstia da virtude não
mais favorável à sociedade3, para a pudessem furtar-se aos olhos e ao ju l­
manutenção da ordem pública e a feli­ gamento do público, e onde esse hábito
cidade dos particulares? Procurando agradável de ver-se e de conhecer-se
as melhores máximas que o bom senso transformasse o amor da pátria em
possa ditar acerca da constituição de
um Governo, fiquei tão impressionado 4 Em oposição ao homem no estado de natu­
de vê-las todas em execução no vosso, reza, antes de qualquer sociedade, e cujo retra­
que, mesmo sem ter nascido dentro de to Rousseau fará. (N . de P. A.-B.)
& Confrontar: 1.°) com a descrição da verda­
deira ignorância que “consiste em limitar sua
3 É uma aplicação imediata da citação de curiosidade à extensão das. faculdades que se
Aristóteles, colocada em epígrafe, e um anún­ receberam” (C arta ao R ei da Polônia); 2.°)
cio da segunda frase do C ontrato Social: com a condição necessária para qualquer
“ Esforçar-me-ei sempre nessa procura para democracia: “Um Estado muito pequeno, no
unir aquilo que o direito permite ao que o inte­ qual seja fácil reunir o povo e onde cada cida­
resse prescreve, a fim de que não fiquem sepa­ dão possa, sem esforço, conhecer os dem ais” .
radas a justiça e a utilidade”. (N . de P. A. B.) (C ontrato Social, III, IV.) (N. de P. A. B.)
224 ROUSSEAU

amor dos cidadãos, mais do que em no Estado9 pudesse considerar-se


amor da terra. acima da lei, e que ninguém de fora
Teria desejado nascer num país no pudesse impor-se-lhe, sendo o Estado
qual o soberano6 e o povo não pudes­ obrigado a reconhecê-lo, pois, seja
sem alimentar senão um único e qualfo r a constituição de um Governo,
mesmo interesse, a fim de que todos os se encontrarmos um único homem que
movimentos da máquina7 tendessem não se submeta à lei, todos os outros
somente para a felicidade comum. Não estarão certamente à discrição dele
podendo tal coisa suceder, a menos (a)10 e, se houver um chefe nacional e
que o povo e o soberano não sejam um outro estrangeiro, seja qual fo r a
senão uma mesma pessoa, conclui-se divisão de autoridade que possam efe­
que eu desejaria ter nascido sob um tuar, é impossível que um e outro con­
governo democrático, sabiamente sigam ser bem obedecidos, e o Estado
equilibrado. bem governado.
Teria desejado viver e morrer livre, Não desejaria, de modo algum,
isto é, de tal modo submetido às leis8 morar numa república de instituição
que nem eu, nem ninguém, pudesse nova11, ainda que tivesse leis boas,
sacudir o honroso jugo, esse jugo salu­ temendo que o Governo, constituído
tar e suave que as cabeças mais orgu­ talvez de modo diferente daquele que
lhosas tanto mais docilmente supor­ devesse ser para o momento, não con­
tam, quanto mais afeitas são a não viesse aos novos cidadãos, ou os cida­
suportar qualquer outro. dãos ao novo Governo, eficasse o Es­
Teria, pois, desejado que ninguém tado sujeito a abalar-se e destruir-se
quase desde o nascimento. Porque
acontece com a liberdade o que se dá
6 Para R ousseau, o soberano não é, como se
entende na linguagem corrente, uma pessoa, o com esses alimentos sólidos e suculen­
rei, o imperador. E o povo, na medida em que tos ou com esses vinhos generosos,
faz as leis, o aspecto ativo do corpo político; o apropriados para nutrir e fortificar os
Estado é seu aspecto passivo, o povo enquanto temperamentos robustos que têm o há­
observa as leis. (Cf. Contrato Social, I, VI.)
(N. de P. A.-B.)] No trecho em questão, Rous­
bito deles, mas que abatem, arruinam e
seau usa o termo em sentido propositadamente
ambíguo — primeiro, opõe soberano a povo, 9 Notar a progressão das idéias: o segundo
para, depois, indicar com o, a fim de satisfazer parágrafo do texto falava do lugar de nasci­
aos anseios de felicidade comum, se impõe mento; o terceiro, da região; alcançam os,
identificar as duas entidades “numa mesma agora, um corpo social inteiramente organi­
pessoa” . É o princípio democrático, que, con­ zado — o Estado. (N . de P. A.-B.)
tudo, neste passo Rousseau apresenta com I 0 Rousseau visa a teoria de Hobbes. Segun­
todas as cautelas, com o o governo adequado a do Hobbes, o Estado pode ter com o origem
“ uma sociedade de tamanho limitado”, concre- uma convenção, um contrato, pelo qual cada
tamente à República de Genebra. (N. de L. G. cidadão renuncia a todos os seus direitos,
menos a um; o chefe conserva, pois, todos os
7 No vocabulário de Descartes, o corpo é seus direitos naturais e, por isso, exerce um
uma máquina, pois todos os seus movimentos poder absoluto sobre todos os cidadãos. No
podem ser explicados mecanicamente. Rous­ artigo Economia Política, Rousseau mostrará
seau esboça aqui a metáfora biológica que será pormenorizadamente por que se impõe substi­
desenvolvida no artigo Economia Política: a tuir a submissão de todos a um só, pela sub­
sociedade possui a mesma organização que um missão de todos, também compreendendo os
corpo vivo. (N . de P. A.-B.) chefes, ao governo e à lei. (N . de P. A.-B.)
8 É a definição da liberdade civil, diferente da II Uma república de instituição nova. Com
liberdade natural. A liberdade civil é a trans­ efeito, para Rousseau não existe sociedade
posição dessa última ao estado social. (Cf. natural. Todas elas são instituídas por uma
Contrato Social, I, VIII.) (N . de P. A.-B.) convenção, (N . de P. A.-B.)
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 225

atordoam os fracos e delicados, que uma república que de modo algum ten­
absolutamente não lhes são afeitos. Os tasse a ambição de seus vizinhos e que
povos, uma vez acostumados a possuí­ com justiça pudesse contar, na necessi­
rem senhores, não conseguem viver dade, com socorro. Conclui-se que,
sem eles. Se tentam sacudir o jugo, numa posição tão feliz, ela nada teria a
distanciam-se a tal ponto da liberdade temer a não ser de si mesma e que, se
que, tomando por ela uma licença esses cidadãos fossem adestrados nas
desenfreada que lhe é oposta, as suas armas, antes seria para manter entre
revoluções quase sempre os entregam a eles o ardor guerreiro e a altivez da
sedutores que só fazem agravar suas coragem, que assentam tão bem à
cadeias. O próprio povo romano, esse liberdade e alimentam o seu gosto, do
modelo de todos os povos livres, não que pela necessidade de atender à pró­
fo i capaz de governar-se ao sair da pria defesa.
opressão dos Tarqüínios. Aviltados Teria procurado um país no qual o
pela escravatura e pelos trabalhos direito de legislação fosse comum a
ignominiosos que eles lhes impuseram, todos os cidadãos'2, pois quem me­
a,princípio não fo i senão a uma popu­ lhor do que eles pode saber quais as
laça estúpida que se precisou dirigir e condições em que lhes convém viver
governar com a maior sabedoria a fim juntos numa mesma sociedade? Mas
de que, acostumando-se pouco a pouco não aprovaria plebiscitos como os dos
a respirar o ar salutar da libetdade, romanos, nos quais os chefes de Esta­
essas almas abatidas, ou antes, embru­ do e os mais interessados em sua
tecidas pela tirania, adquirissem paula­ conservação estavam excluídos das
tinamente a severidade de costumes e a deliberações de que freqüentemente
altivez da coragem, que por fim o tor­ dependia a sua salvação, e, por incon-
nariam o mais respeitável de todos os seqüência absurda, privavam-se os ma­
povos. Eu teria, pois, procurado para gistrados dos direitos usufruídos pelos
minha pátria uma república feliz e simples cidadãos.
tranqüila, cuja ancianidade de certo Teria desejado, pelo contrário, para
modo se perdesse na noite dos tempos, sustar os projetos interessados e mal
que só tivesse experimentado os golpes
necessários para suscitar e fortalecer 12 Não é exato para a Genebra de então. A
em seus habitantes a coragem e o amor população dividia-se aí em quatro classes,
pela pátria, e na qual os cidadãos, desiguais em seus direitos, sob todos os aspec­
habituados de há muito a uma inde­ tos. Somente a classe dos cidadãos ou burgue­
pendência sábia, fossem não somente ses, que correspondia a 1 600 pessoas em
24 000 habitantes, tinha entrada no Conselho
livres mas dignos de sê-lo. Geral, depositário do poder legislativo. M esmo
Desejaria ter escolhido para mim esse C onselho Geral, depois das reformas
uma pátria despida, por feliz impotên­ introduzidas por Calvino (1541-43), perdera a
cia, do feroz amor das conquistas, e iniciativa das leis e a designação direta dos
síndicos, em favor de Conselhos restritos,
garantida, por situação ainda mais recrutados por cooptação e representação da
feliz, do temor de tornar-se suscetível Igreja. A liás, toda a história de Genebra é
da conquista por um outro Estado; marcada pela luta entre o governo da Igreja e a
uma cidade livre, colocada entre nume­ assembléia popular. Rousseau é, pois, exces­
sivo em seus elogios e, por isso, eles seriam
rosos povos, nenhum dos quais com
m al-acolhidos na própria Genebra. Rousseau
interesse de invadi-la e cada um dos mudaria de opinião sobre Genebra e denun­
quais com interesse de impedir os de­ ciaria o poder arbitrário dos síndicos na S éti­
mais de invadi-la; em uma palavra, ma C arta da M ontanha. (N. de P. A.-B.)
226 ROUSSEAU

concebidos, e as inovações perigosas ainda um dos vícios que puseram a


que, por fim , puseram a perder os perder a república de Atenas.
atenienses, que cada um não possuísse Teria, porém, escolhido aquela na
o poder de propor novas leis segundo qual os particulares, contentando-se
sua fantasia, que esse direito perten­ em dar sanção às leis e em decidir,
cesse somente aos magistrados, que até enquanto corpo e segundo o parecer
eles o usassem com circunspecção, que dos chefes, os mais importantes negó­
0 povo, por sua parte, mostrasse tanta cios públicos, estabelecessem tribunais
reserva ao dar seu consentimento a respeitados; distinguissem com cuida­
essas leis, e sua promulgação só se do os vários departamentos; elegessem
pudesse fazer com tanta solenidade cada ano os mais capazes e os mais ín­
que, antes de ser a constituição des­ tegros de seus concidadãos para admi­
truída, contassem com tempo de se nistrar a justiça e governar o Estado, e
convencerem de que sobretudo a gran­ na qual, assim prestando a virtude dos
de antiguidade das leis é que as torna magistrados testemunho da sabedoria
santas e veneráveis, de que o povo logo do povo, aqueles e este se honrassem
despreza aquelas que vê mudar todos mutuamente. De modo que, se algum
os dias e de que, habituando-se a dia funestos mal-entendidos viessem a
menosprezar os usos antigos a pretexto turvar a tranqüilidade pública, até
de melhorá-los, freqüentemente se in­ esses tempos de cegueira e de erros se
troduzem grandes males para corrigir caracterizariam por provas de modera­
outros menores'' 3. ção, de estima recíproca e de um res­
Teria evitado, sobretudo, como ne­ peito comum pelas leis, que equivalem
cessariamente mal governada, uma a prenúnctos e garantias de uma recon­
república cujo povo, acreditando poder ciliação sincera e perpétua.
dispensar os magistrados ou conceder- Tais são, M a g n í f i c o s , H o n r a ­
lhes apenas uma autoridade precária, d í s s i m o s e S o b e r a n o s S e n h o r e s , as

reservasse imprudentemente para si a vantagens que eu procuraria na pátria


administração dos negócios civis e a que escolhesse para mim. Se a Provi­
execução de suas próprias leis1 4; tal dência lhe acrescentara uma localiza­
deve ter sido a constituição grosseira ção encantadora, um clima temperado,
dos primeiros governos imediatamente uma terra fértil e a perspectiva mais
saídos do estado de natureza e tal fo i deliciosa que existisse sob o céu, eu
não desejaria, para rematar a minha
felicidade, senão gozar todos esses
13 Manifesta-se aqui, plenamente, o conser- bens no seio dessa pátria feliz, vivendo
vantismo de Rousseau. Confronte-se com a
definição que dá Montesquieu da boa lei — é tranqüilamente numa agradável socie­
aquela que resistiu à prova dos tempos. (N . de dade com meus concidadãos, prati­
P. A.-B.) (Conseqüentemente, não há confun­ cando com eles, e segundo seu exem­
dir o conservantismo de Rousseau com o dese­ plo, a humanidade, a amizade e todas
jo de conservar uma ordem injusta e fundada
na desigualdade, posto que se formula, explici­
as virtudes, e deixando após mim a
tamente, como o desígnio de permitir que, honrada memória de um homem de
numa sociedade de homens livres e iguais, bem e de um patriota honesto e
ajam as forças de estabilidade social, evitando virtuoso.
a desorganização e as mudanças a esmo. (N. Se, menos feliz ou muito tardia­
de L. G. M.)]
1 4 Essa é a distinção fundamental entre sobe­ mente prudente, eu me visse reduzido a
rano e governante sobre a qual repousará o acabar em outros climas uma carreira
Contrato Social. (N. de P. A.-B.) insegura e fraca, lastimando inutil-
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 227

mente o repouso e a paz de que me pri­ sois nem suficientemente ricos para
vara uma juventude imprudente, pelo enlanguescer-vos com a preguiça e per­
menos alimentaria em minha alma der com delícias vãs o gosto da verda­
esses mesmos sentimentos que não deira felicidade e o das virtudes sóli­
poderia ter aproveitado em meu país, das, nem tão pobres para necessitardes
e, imbuído de uma terna e desinte­ de socorro estrangeiro que vossa in­
ressada afeição por meus concidadãos dústria não exige. E quase nada vos
distantes, dirigir-lhes-ia, do fundo de custa conservar essa liberdade precio­
meu coração, mais ou menos o se­ sa, que só se alcança nas grandes
guinte discurso: nações com impostos exorbitantes.
“Meus caros concidadãos, ou antes, “Possa durar sempre, para a felici­
meus irmãos, uma vez que tanto os dade de seus cidadãos e exemplo dos
laços de sangue quanto as leis nos povos, república tão sábia e felizmente
unem quase que a todos, é-me agradá­ constituída! Tal o único voto que vos
vel não poder pensar em vós sem ao falta fazer e o único cuidado que vos
mesmo tempo pensar em todos os bens resta a tomar. E, só a vós, de agora em
de que gozais e cujo valor talvez ne­ diante, caberá, não constituir vossa
nhum de vós alcança melhor do que felicidade1 5, pois vossos antepassados
eu, que os perdi. Quanto mais reflito já vos pouparam esse trabalho, mas
sobre vossa situação política e civil, sim torná-la duradoura pela sabedoria
menos consigo imaginar que a natu­ que tiverdes de bem utilizar-vos dela. É
reza das coisas humanas possa com­ da vossa união perpétua, de vossa
portar outra melhor. Em todos os de­ obediência às leis, do respeito que
mais governos, quando se trata de tiverdes pelos seus ministros, que de­
assegurar o maior bem do Estado, penderá vossa conservação. Se subsis­
iodas as coisas se limitam sempre a tir entre vós o menor germe de amar­
projetos de idéias ou, pelo menos, a gor ou de desconfiança, apressai-vos
simples possibilidades; em vosso caso, em destruí-lo como um fermento funes­
vossa felicidade é completa — basta to, do qual, cedo ou tarde, resultariam
somente usufruir dela — e, para vos vossas infelicidades e a ruína do Esta­
tornardes bastante felizes, basta so­ do. Conjuro-vos a que penetreis todos
mente contentar-vos com sê-lo. Vossa 0 fundo de vosso coração e consulteis
soberania adquirida ou conquistada à a voz secreta de vossa consciência1 6.
ponta de espada e conservada, durante Alguém dentre vós conhecerá no uni­
dois séculos, graças a vosso valor e verso corpo mais íntegro, mais esclare­
sabedoria, é enfim plena e universal­ cido, mais respeitável do que o de vos­
mente reconhecida. Tratados dignos sos magistrados? Todos os seus
fixam vossas fronteiras, asseguram membros não vos dão o exemplo de
vossos direitos e fortalecem vosso moderação, de simplicidade de costu­
repouso. Vossa constituição é excelen­ mes, de respeito pelas leis e de reconci­
te, ditada pela mais sublime razão e liação a mais sincera? Rendei, pois,
garantida por potências amigas e res­ sem reservas, a chefes tão sábios, esta
peitáveis; vosso Estado é tranqüilo,
não tendes nem guerras, nem conquis­ 1 5 Rousseau é obsediado pela palavra “felici­
tadores a temer, não conheceis outros dade”, que incessantemente aparece nessa
Dedicatória, e, neste trecho, é repetida três
senhores senão as sábias leis que fizes­ vezes em doze linhas. (N. de P. A.-B.)
tes, administradas por magistrados ín­ 1 6 Alusão à especificidade e à condição de
tegros que são de vossa escolha; não inata da consciência moral. (N. de P. A.-B.)
228 ROUSSEAU

confiança salutar que a razão deve à contínuos e extemporâneos não se


virtude; pensai que eles são de vossa j'azem sequer ouvidos quando necessá­
escolha, que eles a justificam e que as rios. ”
honras, devidas àqueles que consti­ E vós, M a g n í f i c o s e H o n r a ­
tuístes em dignitários, recaem necessa­ d ís s im o s S e n h o r e s , vós, dignos e
riamente sobre vós mesmos. Nenhum respeitáveis magistrados de um povo
de vós será pouco esclarecido a ponto livre, permiti-me particularmente ofe­
de ignorar que, onde cessa o vigor das recer-vos minhas homenagens e meus
leis e a autoridade de seus defensores, respeitos. Se houver, nesse mundo,
não pode existir segurança1 7 ou liber­ posição propícia a honrar aqueles que
dade para ninguém. De que se trata, a ocupam, será, sem dúvida, a atri­
pois, em vosso caso, senão de fazer, de buída pelo talento e pela virtude, aque­
boa vontade e com sincera confiança, la de que' vos tornastes dignos e à qual
o que sempre seríeis obrigados a fazer fostes elevados pelos vossos concida­
por um interesse verdadeiro, por dever dãos. Seu próprio mérito ainda acres­
e pela razão?18 Que uma culposa e centa ao vosso um brilho novo e, esco­
funesta indiferença pela manutenção lhidos por homens capazes de
da constituição não vos leve jamais a governar outros, para a eles próprios
desprez.ar, quando necessário, as opi­ governar, eu vos considero tão acima
niões sábias dos mais esclarecidos e dos outros magistrados quanto um
dos mais zelosos dentre vós, mas que a povo livre, principalmente o povo que
eqiiidadç, a moderação, a mais respei­ tendes a honra de conduzir, fica, por
tosa firmeza, continuem a regula­ suas luzes e por sua razão19, acima da
mentar vossas decisões e a mostrar em populaça dos outros Estados.
vós, para todo o universo, o exemplo Que me seja permitido citar um
de um povo altivo e modesto, tão cioso exemplo do qual deveriam restar vestí­
de sua glória quanto de sua liberdade. gios mais firmes e que estará sempre
Livrai-vos, sobretudo, e este será meu presente no meu coração. Nunca deixo
último conselho, de jamais ouvir inter­ de lembrar-me, com a mais agradável
pretações sinistras e discursos envene­ emoção, da memória do virtuoso cida­
nados, cujos motivos secretos são dão a quem devo a luz e que, freqüen­
freqüentemente mais perigosos do que temente, alimentou minha infância
as ações que representam seu objeto. com o respeito que vos era devido. Eu
Todas as casas despertam e se mantêm o vejo ainda vivendo do trabalho de
alarmadas aos primeiros sinais de um suas mãos e alimentando sua alma
guarda fiel e bom, que só ladra quando corn as mais sublimes verdades. Vejo
se aproximam os ladrões, mas odeia-se Tácito, Plutarco e Grócio misturados,
0 oportunismo desses animais baru­ à sua frente, com os instrumentos do
lhentos que incessantemente atrapa­ ofício20. Vejo a seu lado um filho que-
lham o repouso público e cujos avisos
19 A s luzes correspondem aos talentos; a
razão, à virtude. (N . de P. A.-B.)
1 7 A segurança é tão importante, para Rous­ 20 Rousseau alude a seu pai e a suas leituras
seau, quanto a liberdade. A s duas vantagens da juventude. Tácito é o historiador dos pri­
do contrato social consistem em oferecer, a meiros tempos do Império romano; Plutarco, o
cada cidadão, a segurança de vida e em garan­ autor da Vida dos Homens Ilustres da antigui­
tir a posse de seus bens. (N. de P. A.-B.) dade; Grócio, jurisconsulto e historiador ho­
1 8 A edição original e a de Genebra dizem landês, que viveu em França na corte de Luís
“par devoir et pour la raison ”. A edição de XIII, é o autor do Direito da Guerra e da Paz;
1801 diz “par devoir et par raison". (N . de P. Rousseau formou seu pensamento político par­
A.-B.) tindo dessas obras. (N . de P. A.-B.)
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 229

rido recebendo, com frutos bem par­ prazer, ama naturalmente respeitar-
cos, as instruções ternas do melhor dos vos, e os mais ardentes em sustentar
pais. Se os desvarios de uma juventude seus direitos são os mais inclinados a
louca me fizeram, durante um certo respeitar os vossos.
tempo, esquecer lições tão sábias, Não surpreende que os chefes de
tenho afelicidade de, por fim, demons­ uma sociedade civil prezem-lhe a gló­
trar que, ainda que se tenha alguma ria e a felicidade; mas chega a inquie­
tendência para o vicio, dificilmente tar os homens testemunharem que os
ficará perdida para sempre uma educa­ que se consideram magistrados, ou
ção na qual o coração estiver presente. antes, os senhores de uma pátria mais
Tais são, M a g n í f i c o s e H o n r a ­ santa e mais sublime, demonstrem
d ís s im o s S en h ores, os cidadãos algum amor pela pátria terrestre que os
e até os simples habitantes nascidos no alimenta. Como me é agradável poder
Estado em que governais; tais são abrir em nosso favor exceção tão rara
esses homens instruídos e sensatos dos e colocar, à altura de nossos melhores
quais, sob o nome de operários e de cidadãos, esses depositários zelosos
povo, se têm nas outras nações idéias dos dogmas sagrados autorizados
tão baixas e falsas. Meu pai, confesso- pelas leis, esses veneráveis pastores de
o com alegria, não se distinguiria de almas, cuja eloqüência viva e agradá­
modo algum entre seus concidadãos, vel leva com mais facilidade ao cora­
não era mais do que todos eles eram, e, ção as máximas do Evangelho, posto
tal como era, não havia região em que que sempre começam por praticá-las
o seu convívio não fosse procurado, eles mesmos! Todo o mundo sabe com
cultivado, mesmo com proveito, pelas que sucesso a grande arte da tribuna é
pessoas mais honestas. Não me cabe, cultivada em Genebra. Mas, acostu­
e, graças ao céu, não tenho necessi­ mados demais a ouvir dizer de um
dade de falar-vos da consideração que modo e ver agir de outro, poucas pes­
podem esperar de vós homens dessa soas sabem até que ponto reinam entre
têmpera — vossos iguais tanto pela nossos ministros21 o espírito do cris­
educação quanto pelos direitos da tianismo, a santidade dos costumes, a
natureza e do nascimento, vossos infe­ severidade para consigo mesmo e a
riores por vontade própria — , pela suavidade para com o próximo. Talvez
preferência que devem a vosso mérito, caiba somente à cidade de Genebra
que reconheceram, e pelo qual, por mostrar o exemplo edificante de união
vossa vez, lhes deveis certo reconheci­ tão perfeita numa sociedade de teólo­
mento. Sei, com viva satisfação, com gos e de letrados; é, em grande parte,
quanta doçura e condescendência tem­ em sua sabedoria e sua moderação
perais, para eles, a gravidade que con­ reconhecidas, em seu zelo pela prospe­
vém aos ministros das leis, como lhes ridade do Estado, que baseio a espe­
retribuís em estima e atenções o que rança de sua tranqüilidade eterna, e
vos devem em obediência e respeito:
conduta cheia de justiça e de sabedo­ 21 A os olhos de Rousseau, Genebra reproduz
ria, propícia a distanciar cada vez mais a vida dos primeiros cristãos, que, para ele, é a
a memória dos acontecimentos infeli­ ideal e que somente o protestantismo pode per­
zes, que é preciso esquecer para jamais mitir que tornemos a encontrar. Compare-se
com a ironia de Imbert de la Tour: “A pri­
rever; conduta ainda mais criteriosa na meira criação de Calvino foi um livro, a Insti­
medida em que esse povo equitativo e tuição, a segunda foi uma cidade, Genebra.
generoso transforma seu dever num Livro e cidade completam-se”. (N . de P. A.-B.)
230 ROUSSEAU

noto, num misto de prazer, admiração de vossa convivência, os defeitos que


e respeito, como têm horror pelas tre­ nossos jovens vão adquirir em outros
mendas máximas daqueles homens países, de onde, em lugar de tantas coi­
sagrados e bárbaros de quem a história sas úteis, que lhes seriam proveitosas,
fornece mais de um exemplo, e que, só relatam, com tom pueril e ares ridí­
para sustentar os pretensos direitos de culos adquiridos entre mulheres perdi­
Deus, isto é, seus interesses, eram das, a admiração por não sei que pre­
tanto menos avaros do sangue humano tensas grandezas, frívolas
quanto mais se jactavam de ser o seu compensações da servidão, que jamais
sempre respeitado. valerão a augusta liberdade. Sede sem­
Poderia esquecer essa preciosa me­ pre, pois, o que sois: as castas guardiãs
tade da república que fa z a felicidade dos costumes e os doces liames da paz,
da outra, e cuja doçura e sabedoria e continuai a fazer valer, em todas as
mantêm nesta a paz e as boas manei­ ocasiões, os direitos do coração e da
ras? Amáveis e virtuosas cidadãs, o natureza em proveito do dever e da
destino de vosso sexo será sempre virtude.
governar o nosso22. Excelente vosso Orgulho-me de não ter sido desmen­
casto poder, quando, exercido unica­ tido pelos acontecimentos, baseando
mente na união conjugal, não se fa z em tais garantias a esperança da felici­
sentir senão em favor da glória do Es­ dade comum dos cidadãos e a glória
tado e da felicidade pública! Assim as da república. Confesso que, com todas
mulheres mandavam em Esparta e essas vantagens, ela não brilhará com
assim merecereis mandar em Genebra. esse esplendor com o qual a maioria
Que homem bárbaro poderia resistir à dos olhos se ofusca e cujo gosto pueril
voz da honra e da razão na boca de e funesto é o mais mortal inimigo da
uma terna esposa? E quem não despre­ felicidade e da liberdade. Que uma
zaria o luxo vão, vendo vossa aparên­ juventude dissoluta vá procurar alhu­
cia simples e modesta que, pelo brilho res os prazeres fáceis e arrependi­
que lhe advém de vós, parece ser a mentos profundos, que as pessoas de
mais favorável à beleza? Cabe a vós pretenso bom gosto admirem, em ou­
manter sempre, por vosso império gen­ tros lugares, a grandeza dos palácios, a
til e inocente e por vosso espírito insi­ beleza das equipagens, os mobiliários
nuante, o amor das leis no Estado e a soberbos, a pompa dos espetáculos e
concórdia entre os cidadãos, e também todos os refinamentos da ociosidade e
reunir, por meio de casamentos felizes, do luxo — em Genebra só se encontra­
as famílias divididas e sobretudo corri­ rão homens. Todavia, um tal espetá­
gir, por meio da doçura persuasiva de culo tem certamente seu preço, e aque­
vossas lições e pelas graças modestas les que o procurarem não valerão
menos que os admiradores do resto.
2 2 Esta declaração pode parecer contraditória Dignai-vos, M a g n í f i c o s , H o n ­
com muitas outras, especialmente com a C arta
r a d ís s im o s e So ber an o s Se n h o r e s,
a Bordes: “ Não tenho interesse algum em fazer
a corte às mulheres; aceito que elas me honrem receber, todos com a mesma bondade,
com o epíteto de pedante, tão temido de todos os testemunhos respeitosos de interesse
os nossos galantes filósofos. . . O homem e a que tenho pela vossa prosperidade
mulher são feitos para se amarem e se unirem; comum. Se fu i bastante desastrado
passada, porém, essa união legítima, qualquer
comércio de amor entre eles é uma fonte tre­ para ser culpado por qualquer trans­
menda de desordem, na sociedade e nos costu­ porte indiscreto nessa viva efusão de
mes”. (N. de P. A.-B.) meu coração, suplico-vos que me per­
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 231

doeis, levando em consideração a terna M a g n íf ic o s , H o n r a d ís s im o s e


afeição de um verdadeiro patriota e o So b e r a n o s S e n h o r e s ,
zelo ardente e legítimo de um homem vosso humílimo e obedientíssimo servi­
que não almeja nenhuma felicidade dor e concidadão
maior, para si mesmo, do que vos ver a
todos felizes. J.-J. Rousseau
Sou, com o mais profundo respeito, Chambéry, 12 de junho de 1754.
P r e f á c io

O mais útil e o menos avançado de milhares de causas sempre renovadas,


todos os conhecimentos humanos p a ­ pela aquisição de uma multidão de
rece-me ser o do homem (b)23 e ouso conhecimentos e de erros, pelas mu­
afirmar que a simples inscrição do danças que se dão na constituição dos
templo de Delfos2 4 continha um pre­ corpos e pelo choque contínuo das pai­
ceito mais importante e mais difícil xões, por assim dizer mudou de apa­
que todos os grossos livros dos mora­ rência a ponto de tornar-se quase
listas. Considero, ainda, o assunto irreconhecível e, em lugar de um ser
deste discurso como uma das questões agindo sempre por princípios certos e
mais interessantes que afilosofia possa invariáveis, em lugar dessa simplici­
propor e, infelizmente para nós, como dade celeste e majestosa com a qual
uma das mais espinhosas a que pos­ seu autor a tinha marcado, não se
sam responder os filósofos, pois, como encontra senão o contraste disforme
conhecer a fonte da desigualdade entre entre a paixão que crê raciocinar e o
os homens, se não se começar a conhe­ entendimento delirante.
cer a eles mesmos? E como o homem O que há de mais cruel ainda é que,
chegará ao ponto de ver-se tal como o todos os progressos da espécie humana
formou a natureza, através de todas as distanciando-a incessantemente de seu
mudanças produzidas na sua constitui­ estado primitivo, quanto mais acumu­
ção original pela sucessão do tempo e lamos novos conhecimentos, tanto
das coisas, e separar o que pertence à mais afastamos os meios de adquirir o
sua própria essência daquilo que as mais importante de todos: é que, num
circunstâncias e seus progressos acres­ certo sentido, à força de estudar o
centaram a seu estado primitivo ou nele homem, tornamo-nos incapazes de co­
mudaram ? Como a estátua de Glauco, nhecê-lo2 5.
que o tempo, o mar e as intempéries ti­ É fácil de ver que nessas mudanças
nham desfigurado de tal modo que se sucessivas da constituição humana é
assemelhava mais a um animal feroz que se deve procurar a origem primeira
do que a um deus, a alma humana, das diferenças que distinguem os ho­
alterada no seio da sociedade por mens, os quais, na opinião comum, são
23 Confrontar com o pensamento de Pascal: 2 5 O progressivo afastamento dos padrões
“ Acreditei pelo menos encontrar muitos co m ­ iluministas do tempo — já sublinhado em
panheiros no estudo do homem, e que esse era notas ao primeiro discurso — torna-se, agora,
o verdadeiro estudo que lhe é próprio. Enga­ bem patente e, sobretudo, definido. Rousseau
nei-me; existem ainda menos a estudá-lo, do adota a noção de lei natural, mas repele o sim-
que à geometria” . (N. de P. A.-B.) plismo dos que, afirmando existir uma ordem
2 4 “Conhece-te a ti mesmo.” Sócrates adotara natural preestabelecida, dão por bom e certo
essa divisa com o sua. (N . de P. A.-B.) tudo que existe, caindo, portanto, numa espé-
234 ROUSSEAU

naturalmente tão iguais entre si quanto Que meus leitores não pensem que
o eram os animais de cada espécie ouso iludir-me julgando ter visto o que
antes que várias causas físicas tives­ me parece tão difícil de ser visto. Ini­
sem introduzido em algumas espécies ciei alguns raciocínios, arrisquei algu­
as variedades que nelas notamos. Com mas conjeturas, antes com intenção de
efeito, não é concebível que essas pri­ esclarecer e de reduzir a questão ao seu
meiras mudanças, sejam quais forem verdadeiro estado do que na esperança
os meios pelos quais se deram, tenham de resolvê-la. Outros poderão, desem­
alterado, a um só tempo e da mesma baraçadamente, ir mais longe na
maneira, todos os indivíduos da espé­ mesma direção, sem que para ninguém
cie; porém, tendo-se uns aperfeiçoado seja fácil chegar ao término pois não
ou deteriorado e adquirido várias qua­ constitui empreendimento trivial sepa­
lidades, boas ou más, que de modo rar o que há de original e de artificial
algum eram inerentes à sua natureza, na natureza atual do homem, e conhe­
ficaram outros por mais longo tempo cer com exatidão um estado que não
em seu estado original. Foi isso que mais existe, que talvez nunca tenha
determinou entre os homens a primeira existido, que provavelmente jamais
fonte de desigualdade, que é mais fácil existirá2 6, e sobre o qual se tem, con­
tudo, a necessidade de alcançar noções
demonstrar assim em geral do que
assinalar-lhe com precisão as verda­
deiras causas. 2 6 Rousseau tem com o objetivo reencontrar,
por meio da hipótese, a história da evolução,
no decorrer da qual os homens se elevaram até
cie de fatalismo conformista capaz de excluir o estado social. O método empregado por ele é
qualquer distinção entre o bem e o mal e psicológico; o estado de natureza, com o o defi­
desaconselhando qualquer esforço de regenera­ ne aqui, é o homem, fazendo-se abstração da
ção. Rousseau, pelo contrário, defende o crité­ vida social; o problema é, então, saber quais
rio ético acim a de todos os valores e só o crê são, no homem, os elementos que derivam da
realizável por uma ação voluntária. Mas, para constituição do indivíduo. Esse método foi cri­
julgar e para agir, impõe-se conhecer o objeto ticado pelos sociólogos modernos que, pelo
dessas operações — daí a busca da verdadeira contrário, pensam que a sociedade possui uma
lei natural, que “não constitui empreendimento natureza específica e que não se limita a uma
fácil”, pois está em “ separar o que há de origi­ soma de unidades individuais. (N . de P. A.-B.)
nal e de artificial na natureza atual do homem [Vale, não obstante, registrar que a noção de
e conhecer com exatidão um estado que não síntese social só foi encontrada por Durkheim
mais existe, que talvez jam ais tenha existido, (que se confessava constante leitor de Rous­
que provavelmente jam ais existirá”. seau) no século X X . Mesmo o s fundadores da
Esse empreendimento implicará desfazer ciência social — salvo a honrosa exceção de
dois pontos obscuros. O primeiro é puramente Karl Marx — continuaram, ainda depois de
m etodológico e Rousseau acaba de enunciá-lo: conceberem uma essência social distinta da
se a ciência é um produto social, todo o esfor­ individual ou da simples soma das realidades
ço que se fizer para aprimorar o método trará, individuais, a considerar a existência de duas
por igual, um afastamento do objeto. O segun­ realidades, lado a lado. Tal ambigüidade de'
do diz respeito ao próprio objeto, pois, lutando pensamento é notória nos “evolucionistas” e
contra os pontos de vista firmados em seu “ biologistas” que, como Rousseau, só se inte­
tempo, Rousseau procurará, com o indicamos, ressaram por traçar a evolução que nos trouxe,
refutar uma noção fatalista da ordem natural homens e sociedades, do mais simples ao mais
— na qual se confundem o originário e o complexo. Atualmente, já bem assimilado o
adquirido — , mas também cuidará de afastar conceito de síntese, os sociólogos não temem
as noções a tal propósito postas em circulação versar problemas que se julgavam reservados à
por certos cultores do direito natural. Voltare­ psicologia, destacando-se, entre os trabalhos
mos ao ponto em nota subseqüente, para me­ sociológicos contemporâneos, os dedicados ao
lhor acompanhar o pensamento de Rousseau. estudo da influência do social na formação da
(N. de L. G. MJ personalidade. (N . de L.G.M.)]
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 235

exatas para bem julgar de nosso estado na. Essa ignorância da natureza do
presente. Àquele que pretender deter­ homem é que lança tanta incerteza e
minar exatamente as precauções a obscuridade sobre a definição verda­
serem tomadas para fazer sobre esse deira do direito natural, pois, como diz
assunto observações sólidas, tornar-se- o Sr. Burlamaqui2 9, a idéia do direito
á mesmo necessário mais filosofia do e, mais ainda, a do direito natural, são
que se pensa e não me pareceria indig­ evidentemente idéias relativas à natu­
na dos Aristóteles e dos Plínios de reza do homem. É, pois, dessa mesma
nosso século uma boa solução do natureza — continua ele — de sua
seguinte problema: “Quais as experiên­ constituição e de seu estado, que se
cias necessárias para chegar-se a co­ devem deduzir os princípios dessa
nhecer o homem natural e quais os ciência.
meios para fazer tais experiências no Não é sem surpresa e sem escândalo
seio da sociedade?"2 7 Longe de tentar que se nota a pequena concordância
resolver esse problema, creio ter medi­ que reina sobre esse importante assun­
tado bastante sobre o assunto para to entre os diversos autores que já tra­
ousar de antemão responder que os taram dele. Entre os escritores mais sé­
maiores füósofos não serão suficiente­ rios, encontram-se com dificuldade
mente bons para dirigir essas experiên­ dois que sejam da mesma opinião
cias, nem os mais poderosos soberanos sobre esse ponto. Sem falar dos antigos
para fazê-las2*, não sendo razoável filósofos, que parecem ter-se esforçado
contar com tal concurso, sobretudo para se contradizer entre si sobre os
com a perseverança ou, antes, a suces­ princípios mais fundamentais, os juris­
são de luzes e de boa vontade necessá­ consultos romanos submetem o
rias, tanto duma quanto doutra parte, homem e todos os outros animais à
para alcançar bom êxito. mesma lei natural, por atribuírem esse
Essas pesquisas, tão difícies de nome antes à lei, que a natureza impõe
fazer-se e sobre as quais se pensou tão a si mesma, do que à que prescreve, ou
pouco até aqui, constituem todavia os melhor, por causa da acepção particu­
únicos meios que nos restam para lar que esses jurisconsultos dão à pala­
remover uma multidão de dificuldades, vra lei que, segundo parece, só empre­
que nos ocultam o conhecimento dos garam, nessa ocasião, como expressão
fundamentos reais da sociedade huma­ das relações gerais estabelecidas pela
natureza entre todos os seres animados
2 7 Aristóteles, entre os gregos, e Plínio, entre
visando à sua conservação comum. Os
os romanos, foram os dois sábios da antigui­ modernos só reconhecem como lei
dade que acumularam as observações e as uma regra prescrita a um ser moral,
experiências da história natural. O método de isto é, inteligente, livre e considerado
Rousseau é claro: para alcançar o homem nas suas relações com os demais seres,
natural, com o qual se deve reconstruir a socie­
dade, impõe-se isolar nele tudo o que existe de limitando conseqüentemente ao único
social. “C aso contrário, corre-se o risco de animal dotado de razão, isto é, ao
incorrer no erro daqueles que, raciocinando homem, a competência da lei natural;
sobre o estado de natureza, carreiam para ele definindo, porém, esta lei cada um a
as idéias tomadas da sociedade.” (N . de P.
A.-B.)
28 Rousseau pensa, ao mesmo tempo, na 29 Burlamaqui (1694-1748), professor gene-
tradição do mecenismo científico dos príncipes brino, autor dos Princípios de Direito Natural
e no despotismo esclarecido próprios do século (1747) e dos Princípios do Direito Político
XVII, do qual oferece uma idéia a Carta ao (1751). Influiu muito diretamente em Rous­
R ei da Polônia. (N . de P.A.B.) seau. (N . de P. A.-B.)
236 ROUSSEAU

seu modo, estabelecem tudo sobre regras sobre as quais, para proveito
princípios tão metafísicos que há, comum, conviria que os homens con­
mesmo entre nós, muito poucas pes­ cordassem entre si, e depois dá-se o
soas em situação de compreender esses nome de lei natural à coleção dessas
princípios, em lugar de poderem en­ regras, sem outra prova além do bem
contrá-los por si mesmos. De forma que, segundo acham, resultaria de sua
que todas as definições desses homens prática universal. A í está certamente
sábios, aliás em perpétua contradição um meio muito cômodo de compor
entre si, concordam unicamente quan­ definições e explicar a natureza das
to a ser impossível compreender a lei coisas por conveniências arbitrárias.
da natureza e, conseqüentemente, obe­ Enquanto, porém, não conhecermos
decê-la, sem ser grande pensador e pro­ o homem natural, em vão desejaremos
fundo metafísico. Tal coisa significa, determinar a lei que ele recebeu ou
precisamente, que os homens tiveram aquela que melhor convém à sua
de utilizar, para o estabelecimento da constituição. Quanto podemos apreen­
sociedade, luzes que só se desenvolvem der bem claramente sobre o objeto
com muito trabalho e para poucas pes­ dessa lei é que não somente é preciso,
soas, no próprio seio da sociedade. para ser lei, que a vontade daquele a
Conhecendo tão mal a natureza e que obriga possa submeter-se a ela
concordando tão pouco quanto ao sen­ com conhecimento, como, também,
tido da palavra lei, seria muito difícil para ser natural, é preciso que se expri­
convir numa boa definição da lei natu­ ma imediatamente pela voz da nature­
ral. Assim, todas as que encontramos za.
nos livros, além do defeito de não
serem uniformes, têm ainda o de serem Deixando de lado, pois, todos os li­
extraídas de vários conhecimentos que vros científicos, que só nos ensinam a
os homens, em absoluto, não têm natu­ ver os homens como eles se fizeram, e
ralmente, e de vantagens cuja idéia só meditando sobre as primeiras e mais
podem ter depois de sair do estado de simples operações da alma humana,
natureza30. Começa-se por procurar creio nela perceber dois princípios
30 É a aplicação do método geral, exposto anteriores à razão., um dos quais inte­
no início do Prefácio, à teoria do direito natu­ ressa profundamente ao nosso bem-es­
ral. Para Rousseau, a sociedade só pode ter
nascido de uma convenção; é o postulado exa­
tar e à nossa conservação, e o outro
tamente oposto ao da escola do direito natural. nos inspira uma repugnância natural
Rousseau manifesta seu desacordo com os por ver perecer ou sofrer qualquer ser
Enciclopedistas e com o artigo D ireito N atural sensível e principalmente nossos seme-
de Diderot. Essa tomada de posição fez com
que o classificassem de artificialista. |A con­ conceito de sociabilidade por qualquer motivo
tenda entre as várias correntes de estudiosos ultrapassava a condição de mero instinto
do direito natural nunca esclareceria suficien­ humano, isto é, de elemento puramente indivi­
temente qual a verdadeira base natural das dual. Rousseau, aceitando prontamente a con­
relações sociais. Grócio, sem dúvida, enun­ cepção individualista, dispõe-se a apurar até
ciando uma “ sociabilidade” que levaria os ho­ que ponto se pode, com propriedade, falar de
mens a viverem em sociedade, “ ainda que lei natural, posto que a palavra lei já implica
Deus não existisse”, avançara o mais que per­ uma regra consciente e voluntária; conseqüen­
mitia a cultura iluminista. Concorreu, pois, temente, busca saber até onde ia a confusão
para a efetiva laicização do direito natural, entre, de um lado, o liame natural, originário,
mas, nem pelos seus escritos, nem pelos de fundamental e universal, e, de outra parte, as
seus discípulos e continuadores (nenhum dos regras resultantes das convenções sociais e
quais o igualou em força de penetração e inter­ que, a seu ver, são artificiais, tardias, deriva­
pretação), fica-se sabendo, ao certo, se esse das e particulares. (N. de L. G. M.)|
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 237

lhantes31. Do concurso e da combina­ nal, de suas verdadeiras necessidades e


ção que nosso espírito seja capaz de dos princípios fundamentais de seus
fazer desses dois princípios, sem que deveres, representa ainda o único meio
seja necessário nela imiscuir o da que se pode empregar para afastar essa
sociabilidade, parecem-me decorrer multidão de dificuldades que se apre­
todas as regras do direito natural, re­ sentam sobre a origem da desigualdade
gras essas que a razão, depois, é força­ moral, sobre os verdadeiros funda­
da a restabelecer com outros funda­ mentos do corpo político, sobre os
mentos quando, por seus direitos recíprocos de seus membros e
desenvolvimentos sucessivos, chega a sobre inúmeras questões semelhantes,
ponto de sufocar a natureza. tão importantes quanto mal esclareci­
das.
Desse modo, não se é mais obrigado Considerando a sociedade humana
a fazer do homem um filósofo em lugar de modo calmo e desinteressado, a
de fazê-lo um homem; seus deveres princípio ela só parece mostrar a vio­
para com outrem não lhe são unica­ lência dos homens poderosos e a
mente ditados pelas lições tardias de opressão dos fracos; o espírito se
sabedoria e, enquanto resistir ao im­ revolta contra a dureza de uns ou é le­
pulso interior natural da comiseração, vado a deplorar a cegueira dos outros e
jamais fará qualquer mal a um outro — como nada é menos estável entre os
homem, nem mesmo a um ser sensível, homens do que essas relações exterio­
exceto no caso legítimo em que, encon­ res produzidas mais freqüentemente
trando-se em jogo sua conservação, é pelo acaso do que pela sabedoria, e
obrigado a dar preferência a si mesmo. que chamam de fraqueza ou poder,
Por esse meio, terminam também as riqueza ou pobreza — , os estabeleci­
antigas disputas quanto à participação mentos humanos parecem, à primeira
dos animais na lei natural, pois é claro vista, fundamentados em montões de
que, desprovidos de luzes e de liberda­ areia movediça. Só quando os exami­
de, não podem reconhecer tal lei. Mas, namos de perto, só quando removemos
possuindo algo de nossa natureza, de­ o pó e a areia que cobrem o edifício,
vido à sensibilidade de que são dota­ percebemos a sólida base sobre a qual
dos, julgar-se-á que devam também se ergue e se aprende a respeitar os
participar do direito natural e que o seus fundamentos. Ora, sem o estudo
homem esteja obrigado para com eles sério do homem, de suas faculdades
a certos deveres. Parece, com efeito, naturais e de seus desenvolvimentos
que, se estou obrigado a não praticar sucessivos, jamais se chegará a fazer
qualquer mal para com meu seme­ essas distinções e, no estado atual das
lhante, é menos por ser ele um ser coisas, separar o que a vontade divi­
razoável do que por ser um ser sensí­ na32 fe z daquilo que a arte humana
vel, qualidade que, sendo comum ao pretendeu fazer. A s pesquisas políticas
animal e ao homem, pelo menos deve e morais sugeridas pela importante
dar a um o direito de nãò ser maltra­ questão que examino são, pois, de
tado inutilmente pelo outro. todos os modos úteis, e a história hipo-
Esse mesmo estudo do homem origi-
32 D escartes definira a natureza: o que foi
31 O instinto de conservação é a fonte do instituído pela vontade divina, servindo a
egoísm o; a piedade, do altruísmo. A sociedade imutabilidade dessa vontade para explicai1 a
possui, pois, uma base psicológica e a sociolo­ permanência das leis da natureza. (N . de P.
gia repousa sobre a psicologia. (N . de P. A.-B.) A.-B.)
238 ROUSSEAU

1c lic a d o s governos representa, para o meios que pareciam dever cumular


h o m e m , uma lição sob todos os aspec­ nossa miséria.
tos instrutiva. Considerando aquilo em
q u e n o s teríamos tornado se tivés­ Quem te Deus esse
s e m o s s id o abandonados a nós mes­ Jussit, et humana qua parte locatus es
m o s , devemos aprender a bendizer in re, Disce33.
aquele cuja mão benfazeja, corrigindo Pérsio, Sá tira s. I I I , r. 71.
n o s s a s instituições e dando-lhes uma
p o s iç ã o estável, preveniu as desordens 33 “ Ouvi o qut L>eus ordenou que sejais e
q u e d e v e r ia m resultar delas e fe z com em razão de que parcilha fostes estabelecido no
q u e d e n o s s a felicidade nascessem os estado humano." (N. de P. A.-B.)
DISCURSO
SOBRE A ORIGEM E OS
FUNDAMENTOS DA DESIGUALDADE
ENTRE OS HOMENS
É d o h o m f m que devo falar e a virtude sempre se encontram, nos mes­
questão que examino me diz que vou mos indivíduos, na proporção do
falar a homens pois não se propõem poder ou da riqueza: tal seria uma boa
questões semelhantes quando se tem questão para discutir entre escravos
medo de honrar a verdade. Defenderei, ouvidos por seus senhores, mas que
pois, com confiança, a causa da huma­ não convém a homens razoáveis e
nidade perante os sábios que me convi­ livres, que procuram a verdade.
dam a fazê-lo e não ficarei descontente De que se trata, pois, precisamente
comigo mesmo se me tornar digno de neste Discurso? De assinalar, no pro­
meu assunto e de meus juizes. gresso das coisas, o momento em que,
Concebo, na espécie humana, dois sucedendo o direito à violência, sub­
tipos de desigualdade: uma que chamo meteu-se a natureza à lei; de explicar
de natural ou física, por ser estabele­ por que encadeamento de prodígios o
cida pela natureza e que consiste na forte pôde resolver-se a servir ao fraco,
diferença das idades, da saúde, das for­ e o povo a comprar uma tranqüilidade
ças do corpo e das qualidades do espí­ imaginária pelo preço de uma felici­
rito e da alma; a outra, que se pode dade real. •
chamar de desigualdade moral ou polí­ Os filósofos que examinaram os
tica, porque depende de uma espécie de fundamentos da sociedade sentiram
convenção e que é estabelecida ou, todos a necessidade de voltar até o es­
pelo menos, autorizada pelo consenti­ tado de natureza, mas nenhum deles
mento dos homens. Esta consiste nos chegou até lá. Uns3 4 não hesitaram em
vários privilégios de que gozam alguns supor, no homem, nesse estado, a
em prejuízo de outros, como o serem noção do justo e do injusto, sem
mais ricos, mais poderosos e homena­ preocuparem-se com mostrar que ele
geados do que estes, ou ainda por faze­ deveria ter essa noção, nem que ela lhe
rem-se obedecer por eles. fosse útil. Outros3 5 falaram do direito
Não se pode perguntar qual a fonte natural, que cada um tem, de conser­
da desigualdade natural, porque a res­ var o que lhe pertence, sem explicar o
posta estaria enunciada na simples que entendiam por pertencer. Outros3 6
definição da palavra. Pode-se, ainda
menos, procurar a existência de qual­ 3 4 Trata-se antes da opinião geral difusa, do
quer ligação essencial entre essas duas que de um determinado filósofo. Talvez R ous­
desigualdades, pois, em outras pala­ seau pensasse também em Locke e em M ontes­
vras, seria perguntar se aqueles que quieu. (N . de P. A.-B.)
3 5 Outros: Grócio, Pufendorf, Burlamaqui.
mandam valem necessariamente mais (N . de P. A.-B.)
do que os que obedecem e se a força do 3 6 O utros: Aristóteles, Hobbes e, de certa
corpo ou do espírito, a sabedoria e a forma, Grócio. (N . de P. A.-B.)
242 ROUSSEAU

dando inicialmente ao mais forte auto­ a esclarecer a natureza das coisas do


ridade sobre o mais fraco, logo fizeram que a mostrar a verdadeira origem e
nascer o Governo, sem se lembrarem semelhantes àquelas que, todos os dias,
do tempo que deveria decorrer antes fazem nossos físicos sobre a formação
que pudesse existir entre os homens o do mundo. A religião nos ordena a crer
sentido das palavras autoridade e que, tendo o próprio Deus tirado os
governo. Enfim, todos, falando inces­ homens do estado de natureza logo de­
santemente de necessidade, avidez, pois da criação, são eles desiguais por
opressão, desejo e orgulho, transpor­ que assim o desejou; ela não nos proí­
taram para o estado de natureza idéias be, no entanto, de formar conjeturas
que tinham adquirido em sociedade; extraídas unicamente da natureza do
falavam do homem selvagem e descre­ homem e dos seres que o circundam38,
viam o homem civil3 7. Não chegou acerca do que se teria transformado o
mesmo a surgir, no espírito da maioria gênero humano se fora abandonado a
dos nossos, a dúvida quanto a ter exis­ si mesmo. Eis o que me perguntam e o
tido o estado de natureza, conquanto que me proponho a examinar neste
seja evidente, pela leitura dos livros Discurso. Interessando meu assunto ao
sagrados, que, tendo o primeiro homem em geral, esforçar-me-ei por
homem recebido imediatamente de empregar uma linguagem que conve­
Deus as luzes e os preceitos, não se nha a todas as nações, ou melhor,
encontrava nem mesmo ele nesse esta­ esquecendo os tempos e os lugares
do e que, acrescentando aos escritos de para só pensar nos homens a quem
Moisés a fé que lhe deve todo filósofo
cristão, é preciso negar que, mesmo 38 É evidente a inspiração cartesiana. D es­
antes do dilúvio, os homens jamais se cartes instaurara uma dúvida universal, dei­
tenham encontrado no estado puro de xando de lado as verdades ligadas à fé. Ele
procurava saber tudo o que a razão humana
natureza, a menos que não tenham tor­
pode ensinar-nos por suas próprias luzes,
nado a cair nele por causa de qualquer independentemente do que a Revelação nos
acontecimento extraordinário — para­ ensinou por outros meios. D escartes chegou
doxo bastante difícil de defender e até a justificar seu tratado D o M undo de um
completamente impossível de provar. modo exatamente idêntico ao utilizado por
Rousseau no D iscurso sobre a Desigualdade.
Comecemos, pois, por afastar todos Descartes afirma, com efeito, que sua exposi­
os fatos, pois eles não se prendem à ção sobre a criação do mundo, das plantas e
questão. Não se devem considerar as dos animais é a única em acordo com a razão
pesquisas, em que se pode entrar neste e a verdade, não estando, porém, ele em
contradição com a narrativa bíblica do Gêne­
assunto, como verdades históricas,
sis; com efeito, Deus, infinito e todo-poderoso,
mas somente como raciocínios hipoté­ podia criar os seres com o lhe aprouvesse, seja
ticos e condicionais, mais apropriados geneticamente e de acordo com o método
cartesiano, seja completamente form ados e de
pronto em toda a sua perfeição, com o o ensina
37 Os selvagens, de acordo com Rousseau, a Bíblia. “Adão e Eva não foram criados
só com grande inexatidão representam o esta­ crianças, mas na idade de homens perfeitos”,
do de natureza. Um método falso fez com que Princípios, XII, 45; ora somente a razão não
os filósofos sc enganassem quanto às tendên­ pode decidir, por si só, uma questão que inte­
cias primitiva, do homem e lhe atribuíssem, ressa a todo o poder divino; somente Deus
por exemplo, uma crueldade inata. Rousseau, pode dizer-nos com o de fato agiu. D o mesmo
todavia, utilizar-se-á do exemplo dos selvagens modo, Rousseau afirma a irrealidade do esta­
neste seu discurso, mas somente a título de do de natureza ao mesmo tempo que a necessi­
verificação de suas hipóteses; nunca a psicolo­ dade de estudá-la, caso se deseje compreender
gia do primitivo serviu-lhe de ponto de apoio somente pela razão o que se passa. (N . de P.
para uma indução científica. (N . de P. A.-B.) A.-B.)
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 243

falo, supor-me-ei no Liceu de Atenas, descrever de acordo com as qualidades


repetindo as lições de meus mestres, que recebeste, e que tua educação e
tendo os Platões e os Xenócrates39 teus hábitos puderam falsear40, mas
como juizes e o gênero humano como que não puderam destruir. Há, eu sei,
ouvinte. uma idade em que o homem individual
Oh ! homem, de qualquer região que gostaria de parar; de tua parte, procu­
sejas, quaisquer que sejam tuas opi­ rarás a época na qual desejarias que
niões, ouve-me; eis tua história como tua espécie tivesse parado. Descon­
acreditei tê-la lido não nos livros de tente com teu estado presente, por
teus semelhantes, que são mentirosos, motivos que anunciam à tua infeliz
mas na natureza que jamais mente. posteridade maiores descontenta­
Tudo o que estiver nela será verda­
deiro; só será falso aquilo que, sem o mentos ainda, quem sabe gostarias de
querer, tiver misturado de meu. Os retrogradar. Tal desejo deve constituir
tempos de que vou falar são muito dis­ o elogio de teus primeiros antepassa­
tantes; como mudaste! É, por assim dos, a crítica de teus contemporâneos e
dizer, a vida de tua espécie que vou o temor daqueles que tiverem a infelici­
dade de viver depois de ti.
39 O Liceu era um logradouro de Atenas
onde Aristóteles dava seus cursos. Rousseau 40 N o texto francês: dépraver, falsear (anti­
confunde-o com o jardim de A cadem os, onde go sentido da palavra em francês), desviar de
Platão reunia seus discípulos. Xenócrates sua natureza verdadeira. Cf., mais adiante: “ O
(406-314) foi o segundo sucessor de Platão, na homem que medita é um animal depravado".
direção da Academia. (N . de P. A.-B.) (N . de P. A.-B.)

P r im eir a P arte

Por importante que seja, para bem pio garras retorcidas, se era peludo
julgar o estado natural do homem, como um urso e se, andando com qua­
considerá-lo desde sua origem e exami­ tro pés (c), seus olhares dirigidos para
ná-lo, por assim dizer, no primeiro a terra e limitados a um horizonte de
embrião da espécie, não seguirei sua alguns passos não assinalavam, ao
organização através de seus desenvol­ mesmo tempo, o caráter e os limites de
vimentos sucessivos; não me deterei suas idéias. Não poderei formular
procurando no sistema animal o que sobre esse assunto senão conjeturas
poderia ter sido inicialmente para ter­ vagas e quase imaginárias. A anatomia
se tornado o que é. Não examinarei se, comparada progrediu muito pouco até
como pensava Aristóteles41, suas hoje, as observações dos naturalistas
unhas compridas não foram a princí­ ainda são muito incertas para que se
possa, sobre tais fundamentos, estabe­
41 O valor de Áristóteles com o naturalista
lecer a base de um raciocínio sólido;
resulta do fato de ter ele introduzido sistemati­ assim, sem ter recorrido aos conheci­
camente o método comparativo em biologia; mentos naturais que temos sobre esse
salientou a analogia em que diferentes classes ponto e sem levar em consideração as
zoológicas aparentam órgãos cuja estrutura e mudanças que se deram na conforma­
aspecto exterior são muito dessemelhantes. O
que a mão é para o homem, a,pinça o é para os
ção, tanto interior quanto exterior do
crustáceos: o que a asa é para o pássaro, a bar­ homem, à medida que aplicava seus
batana o é para o peixe, etc. (N . de P. A.-B.) membros a novos usos e se nutria com
244 ROUSSEAU

novos alimentos, eu o suporei confor­ alimentos (e) que os outros animais


mado em todos os tempos como o vejo dividem entre si e, conseqüentemente,
hoje: andando sobre dois pés, utili­ encontra sua subsistência mais facil­
zando suas mãos como o fazemos com mente do que qualquer deles poderá
as nossas, levando seu olhar a toda a conseguir.
natureza e medindo com os olhos a Habituados, desde a infância, às
vasta extensão do céu. intempéries da atmosfera e ao rigor
Despojando esse ser, assim consti­ das estações, experimentados na fadiga
tuído, de todos os dons sobrenaturais e forçados a defender, nus e sem
que ele .pôde receber e de todas as armas, a vida e a prole contra as ou­
faculdades artificiais que ele só pôde tras bestas ferozes ou a elas escapar
adquirir por meio de progressos muito correndo, os homens adquirem um
longos, considerando-o, numa palavra, temperamento robusto e quase inalte­
tal como deve ter saído das mãos da rável; os filhos, trazendo para o mundo
natureza, vejo um animal menos forte a excelente constituição de seus pais e
do que uns, menos ágil do que outros, fortificando-a pelas mesmas atividades
mas, em conjunto, organizado de que a produziram, adquirem, desse
modo mais vantajoso do que todos os modo, todo o vigor de que a espécie
demais. Vejo-o fartando-se sob um car­ humana é capaz. A natureza faz com
valho, refrigerando-se no primeiro ria­ eles precisamente como a lei de Espar-
cho, encontrando seu leito ao pé da ta com os filhos dos cidadãos; torna
mesma árvore que lhe forneceu o fortes e robustos aqueles que são bem
repasto e, assim, satisfazendo a todas constituídos e leva todos os outros a
as suas necessidades. perecerem43, sendo quanto a isso dife­
A terra abandonada à fertilidade rente de nossas sociedades, onde o
natural (d)*2 e coberta por florestas Estado, tornando os filhos onerosos
imensas, que o machado jamais muti­ para os pais, mata-os indistintamente
lou, oferece, a cada passo, provisões e antes de seu nascimento 4 4.
abrigos aos animais de qualquer espé­ Sendo o corpo o único instrumento
cie. Os homens, dispersos em seu seio,
observam, imitam sua indústria e, 43 A natureza é, pois, um instrumento de sal­
assim, elevam-se até o instinto dos ani­ vação. (N. de P. A.-B.)
mais, com a vantagem de que, se cada 4 4 Rousseau, uma vez convencido da superio­
espécie não possui senão o seu próprio ridade de certos valores, dificilmente os aban­
donava, ainda mesmo quando contraditórios
instinto, o homem, não tendo talvez entre si. Assim, o ideal espartano permanecerá
nenhum que lhe pertença exclusiva­ no desenvolvimento de siia obra, não obstante
mente, apropria-se de todos, igual­ perceber-se que esse ideal de severa simplici­
mente se nutre da maioria dos vários dade conscientemente desejada e praticada de
maneira a engendrar todo um sistema social se
opõe à concepção de uma vida “naturaí” irres­
42 Lucrécio, no Livro V do D e Natura trita e na qual não se compreenderia nada do
Rerum, explica que os primeiros habitantes gênero da estrita “polícia” de Esparta. Apesar
humanos da terra eram maiores, mais vigoro­ disso, os dois valores opostos acabam por
sos, mais resistentes do que os atuais. Isso harmonizar-se em certas passagens de nosso
acontecia porque a terra e o céu possuíam autor, com o, por exemplo, nessa em que a sele­
ainda toda a força produtora, enquanto que ção eugênica artificial dos espartanos é dada
mais tarde a terra ficou como uma mulher com o a perpetuação da seleção natural da luta
velha, cansada de ter filhos. Essa descrição pela vida, que Rousseau conseguira entrever,
paradisíaca da juventude do mundo é uma das bem antes dos evolucionistas, através dos
formas do mito da idade do ouro. (N. de P. dados bastante precários da história natural de
A.-B.) seu tempo. (N. de L. G. M.)
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 245

que o homem selvagem conhece, é por land e Pufendorf asseguram também 4 6


ele empregado de diversos modos, de que nenhum ser é tão tímido quanto o
que são incapazes, dada a falta de homem em estado de natureza, e que
exercício, nossos corpos, e foi nossa ele está sempre tremendo e pronto a
indústria que nos privou da força e da fugir ao menor ruído que o alcance, ao
agilidade que a necessidade obrigou o menor movimento que perceba. Tal
selvagem a adquirir. Se tivesse um coisa pode ser verdadeira em relação
machado, seu punho romperia galhos aos objetos que não conhece e não du­
tão resistentes? Se tivesse uma funda, vido que se atemorize com todos os
lançaria com a mão, com tanto vigor, novos espetáculos que se lhe oferecem,
uma pedra? Se possuísse uma escada, sempre que não pode distinguir o bem
subiria a uma árvore tão ligeiramente? e o mal físicos que deles deva esperar,
Se tivesse um cavalo, seria tão veloz na nem comparar suas forças com os peri­
corrida? Dai ao homem civilizado o gos pelos quais deve passar — são
tempo de reunir todas essas máquinas circunstâncias raras no estado de natu­
à sua volta; não se poderá duvidar que, reza, no qual todas as coisas se desen­
com isso, sobrepasse, com facilidade, o volvem de uma maneira tão uniforme e
homem selvagem. Se quiserdes, porém, no qual a face da terra não está sujeita
ver um combate mais desigual ainda, às mudanças bruscas e contínuas que
deixai-os nus e desarmados uns de­ determinam as paixões e a incons­
fronte dos outros, e logo reconhecereis tância dos povos congregados. Mas o
qual a vantagem de sempre ter todas as homem selvagem, vivendo disperso
forças à sua disposição, de sempre entre os animais e vendo-se desde cedo
estar pronto para qualquer eventuali­ na iminência de medir forças com eles,
dade e de transportar-se, por assim logo fez a comparação e, verificando
dizer, sempre todo inteiro consigo que mais os ultrapassa em habilidade
mesmo (j). do que eles o sobrepujam pela força,
aprende a não mais temêLlos. Colocai
Hobbes 4 5 pretende que o homem é um urso ou um lobo em disputa com
naturalmente intrépido e não procura um selvagem robusto, ágil, corajoso
senão atacar e combater. Um filósofo como todos eles o são, armado de
ilustre pensa o contrário, e Cumber- pedra e de um bom bastão, e vereis que
o perigo será, no mínimo, recíproco e
4 5 Thomas Hobbes de Malmesbury que, depois de várias experiências
(1588-1678) foi, na opinião de Augusto semelhantes, as bestas ferozes, que não
C om te, um grande inventor, um dos primeiros
a perceberem, em seu relevo brutal, a realidade gostam de atacar-se mutuamente, com
política. Suas obras são: Elementa Philoso- pouca vontade atacarão o homem, pois
phica de Cive (1642); Human Nature or the já verificaram ser tão feroz quanto
Fundamental Elemçnt o f Policy (1650); Levia­ elas. Em relação aos animais que têm
than or the Matter, Firm and Authority o f a
Commonwealth Ecclesiastical and Civil
realmente força maior do que a des­
(1651). A antítese fundamental do Leviatã é a treza do homem, este encontra-se no
dá vaidade, raiz de todos os apetites naturais, e caso das demais espécies mais fracas,
do temor da morte violenta, fonte da razão e que não deixam de subsistir; o homem
da moralidade. A vaidade é o desejo e todo de­
sejo leva a desejo de poder; ela engrendra o
desprezo que conclam a à vingança; o estado 4 6 Richard Cumberland (1613-1718), prelado
de natureza é uma guerra de qualquer homem anglicano, autor do De Legibus Naturae
contra qualquer outro homem. Rousseau Disquisitio Philosophica (1672), no qual recu­
opor-se-á vivamente a essa teoria. (N . de P. sa o sistema de Hobbes, opondo-lhe a lei da
A. B.) benevolência universal. (N . de P. A.-B.)
246 ROUSSEAU

contando ainda com a vantagem de, risco de perecer com ela. Esse perigo,
não menos disposto do que os animais porém, é comum a muitas outras espé­
à caminhada e encontrando nas árvo­ cies, nas quais os menores, durante
res um refúgio quase seguro, dispor algum tempo, não são capazes de pro­
sempre da aceitação ou recusa do curar por si mesmos a alimentação e,
embate, e da escolha entre a fuga ou o se a infância é mais longa entre nós, a
combate. Acrescentemos que, segundo vida sendo mais longa também, neste
parece, nenhum animal guerreia natu­ ponto tudo é quase igual (g), havendo
ralmente com o homem, a não ser no não obstante sobre a duração da pri­
caso de sua própria defesa ou de uma meira idade e sobre o número das
fome extrema, nem lhe testemunha crianças (h) outras regras que não se
essas antipatias violentas, que parecem prendem ao meu assunto. Entre os
anunciar ser uma espécie destinada velhos, que agem e transpiram pouco,
pela natureza a servir de pasto a outra. a necessidade de alimentos diminui
Aí estão, sem dúvida, os motivos com a faculdade de atendê-la e, como a
pelos quais os negros e os selvagens vida selvagem distancia deles os reu-
dão tão pouca importância aos ani­ matismos e a gota, e como a velhice,
mais ferozes que possam encontrar nos entre todos os males, é aquele que o
bosques. Os caraíbas da Venezuela, socorro humano menos pode aliviar,
entre outros, vivem, a esse respeito, na extinguem-se um dia, sem que nos
mais profunda segurança e sem o apercebamos que deixaram de viver e
menor inconveniente. Embora vivam quase sem que eles mesmos percebam.
quase nus, diz François Correal, não Quanto às doenças, não repetirei as
deixam de corajosamente expor-se nas declamações inúteis e falsas que faz
matas, armados unicamente de flecha e contra a medicina a maioria das pes­
arco. Jamais se ouviu falar, no entanto, soas de boa saúde, mas perguntarei se
que alguns deles tenham sido devora­ há uma observação sólida da qual se
dos pelos animais. possa concluir que, no país em que
Outros inimigos, mais temíveis e em essa arte é mais descuidada, a vida do
face dos quais o homem não conta homem seja mais breve do que naque­
com os mesmos meios para defender- les em que a cultivam com o maior dos
se, são as enfermidades naturais, a cuidados. E como poderia acontecer,
infância, a velhice e as doenças de toda se nós nos causamos males mais nume­
espécie; sinais muito tristes de nossa rosos do que os remédios que a medi­
fraqueza, os dois primeiros são co­ cina pode nos fornecer? A extrema
muns a todos os animais e o último desigualdade na maneira de viver; o
pertence principalmente ao homem que excesso de ociosidade de uns; o exces­
vive em sociedade. Observo até, em so de trabalho de outros; a facilidade
relação à infância, que, levando a mãe de irritar e de satisfazer nossos apetites
consigo o filho para todos os lugares, e nossa sensualidade; os alimentos
tem muito mais facilidade para alimen­ muito rebuscados dos ricos, que os nu­
tá-lo do que as fêmeas de inúmeros trem com sucos abrasadores e que
animais que são forçadas, continua­ determinam tantas indigestões; a má
mente e com muita fadiga, a ir e vir, de alimentação dos pobres, que freqüente­
um lado para outro para procurar mente lhes falta e cuja carência faz que
pasto e, de outro, para amamentar e sobrecarreguem, quando possível, avi­
nutrir seus filhotes. E verdade que, se a damente seu estômago; as vigílias, os
mulher morre, o filho corre grande excessos de toda sorte; os transportes
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 247

imoderados de todas as paixões; as outras e é fácil perguntar aos caçado­


fadigas e o esgotamento do espírito, as res se, nas suas caminhadas, encon­
tristezas e os trabalhos sem-número tram muitos animais enfermos. Muitos
pelos quais se passa em todos os esta­ encontraram animais que apresen­
dos e pelos quais as almas são perpe­ tavam ferimentos enormes muito bem
tuamente corroídas — são, todos, cicatrizados, que tiveram ossos e até
indícios funestos de que a maioria de membros quebrados e reconstituídos
nossos males é obra nossa e que tería­ sem outro cirurgião além do tempo,
mos evitado quase todos se tivéssemos sem outro regime além de sua vida
conservado a maneira simples, uni­ comum e que não deixaram de curar-se
forme e solitária de viver prescrita pela perfeitamente por não serem atormen­
natureza. Se ela nos destinou a sermos tados por incisões, envenenados por
sãos, ouso quase assegurar que o esta­ drogas e extenuados por jejuns. Final­
do de reflexão é um estado contrário à mente. por mais útil que possa ser
natureza e que o homem que medita é entre nós a medicina bem adminis­
um animal depravado47. Quando se trada, será sempre certo que o selva­
pensa na constituição dos selvagens, gem doente, abandonado a si mesmo,
pelo menos daqueles que não estraga­ nada espera senão da natureza e, em
mos com nossos licores fortes, quando compensação, nada deve temer senão o
se sabe que eles quase não conhecem seu mal, o que freqüentemente torna
outras doenças senão as feridas e a sua situação preferível à nossa.
velhice, fica-se bastante inclinado a Evitemos, pois, confundir o homem
crer que com facilidade se faria a his­ selvagem com os homens que temos
tória das doenças humanas seguindo a diante dos olhos. A natureza trata
das sociedades civis. Pelo menos é a todos os animais abandonados a seus
opinião de P latão48 que, de acordo cuidados com uma predileção com qué
com alguns remédios empregados ou parece querer mostrar quanto é ciosa
aprovados por Podalírio e Macaão no desse direito. O cavalo, o gato, o touro,
cerco de Tróia, acha não serem ainda o próprio asno têm, na maioria, uma
conhecidas entre os homens várias estatura mais alta, e todos uma consti­
doenças que esses remédios deveriam tuição mais robusta, mais vigor, força
excitar, e Celso conta que a dieta, hoje e coragem quando nas florestas do que
tão necessária, só foi inventada por em nossas casas; perdem a metade des­
Hipócrates49. sas vantagens tornando-se domésticos
Com tão poucas fontes de males, o e poder-se-ia dizer que todos os nossos
homem, no estado de natureza, não cuidados para tratar bem e alimentar
sente, pois, necessidade de remédios e, esses animais só conseguem degenerá-
menos ainda, de médicos; a espécie hu­ los. Acontece o mesmo com o próprio
mana não está, pois, a esse respeito, homem. Tornando-se sociável e escra­
em condições piores do que todas as vo, torna-se fraco, medroso e subser­
viente, e sua maneira de viver, frouxa e
4 7 Essa frase causou escândalo; na C arta a afeminada, acaba por debilitar ao
Philopolis, Rousseau contornará a objeção. mesmo tempo sua força e sua coragem.
(N . de P. A.-B.) Acrescentemos que, entre a condição
48 R epública, Livro III. (N. de P. A.-B.) selvagem e a doméstica, a diferença de
49 C elso: célebre médico do século de A ugus­
to. H ipócrates é o maior médico da antigui­ homem para homem deverá ser ainda
dade, nascido aproximadamente em 460 a.C. maior do que a existente de animal
(N . de P. A.-B.) para animal, pois sendo o animal e o
248 ROUSSEAU

homem tratados igualmente pela natu­ mais exercitadas deverão ser aquelas
reza, todas as comodidades que o cujo objetivo principal seja o ataque e
homem a si mesmo oferece, mas não a defesa, quer para subjugar a presa,
aos animais, são outras tantas causas quer para defender-se de tornar-se a de
particulares que fazem com que mais um outro animal; os órgãos que só se
perceptivelmente degenere. aperfeiçoam pela lassidão e pela sen­
Não constituem, pois, para esses sualidade devem, ao contrário, perma­
primeiros homens, nem tão grande necer num estado de grosseria que
mal, nem, sobretudo, tão grande obstá­ deles excluirá qualquer delicadeza;
culo à sua conservação, a nudez, a ficando seus sentidos, nessa direção,
falta de moradia e a privação de todas divididos, terá o tato e o gosto de uma
as inutilidades que consideramos tão rudez extrema, e a vista, a audição e o
necessárias. Se não têm a pele peluda, olfato de uma enorme sutileza. E esse o
de modo algum disso necessitam nas estado animal em geral e também, de
regiões quentes e, nas frias, desde logo acordo com os relatos dos viajantes, o
sabem apropriar-se da dos animais que da maioria dos povos selvagens. Eis
por que não devemos espantar-nos
dominaram; se só têm dois pés para
com o fato de os hotentotes do cabo da
correr, têm dois braços para atender à
Boa Esperança descobrirem navios em
sua defesa e às suas necessidades. Seus
alto mar a olho nu tão longe quanto os
filhos talvez andem tardiamente e com
holandeses os divisam com óculos,
dificuldade, mas as mães os carregam
nem, por igual, que os selvagens da
com facilidade, o que constitui uma
América sintam os espanhóis no seu
vantagem, que falta às demais espé­
encalço como o poderiam fazer os
cies, nas quais, ao ser a mãe perse­
melhores cães, nem, também, que
guida, vê-se obrigada a abandonar seus
todas essas nações bárbaras suportem
filhotes ou a regular seus passos pelos
sem sacrifício sua nudez, agucem seu
deles. Finalmente, a menos que se
paladar com pimenta e bebam licores
suponham esses singulares e fortuitos
europeus como água.
concursos de circunstâncias dos quais
falarei em seguida e que poderiam Até aqui levei em consideração
muito bem jam ais ter acontecido, é somente o homem físico; esforcemo-
claro e sem contestação possível que o nos por encará-lo, agora, em seu
primeiro a arranjar vestes e uma habi­ aspecto metafísico e moral.
tação ofereceu a si mesmo, desse Em cada animal vejo somente uma
modo, coisas pouco necessárias, pois m áquina50 engenhosa a que a natureza
tinha passado até então sem elas e conferiu sentidos para recompor-se por
também por não se poder imaginar si mesma e para defender-se, até certo
como não poderia ele suportar, feito ponto, de tudo quanto tende a destruí-
homem, um gênero de vida em que la ou estragá-la. Percebo as mesmas
vivia desde a infância. coisas na máquina humana, com a
diferença de tudo fazer sozinha a natu­
Só, desocupado e sempre próximo reza nas operações do animal, en­
do perigo, o homem selvagem deve quanto o homem executa as suas como
gostar de dormir e ter o sono leve, agente livre. Um escolhe ou rejeita por
como os animais que, pensando pouco,
dormem, por assim dizer, todo o tempo
em que não estão pensando. Consti­ 50 Rousseau adota o mecanismo cartesiano
dos corpos. No parágrafo seguinte, segue a
tuindo a própria conservação quase teoria cartesiana do espírito, que o divide em
sua única preocupação, as faculdades entendimento e vontade. (N . de P. A.-B.)
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 249

instinto, e o outro, por um ato de liber­ e o animal, haveria uma outra quali­
dade, razão por que o animal não pode dade muito específica que os distin­
desviar-se da regra que lhe é prescrita, guiria e a respeito da qual não pode
mesmo quando lhe fora vantajoso haver contestação — é a faculdade de
fazê-lo, e o homem, em seu prejuízo, aperfeiçoar-se, faculdade que, com o
freqüentemente se afasta dela. Assim, auxílio das circunstâncias, desenvolve
um pombo morreria de fome perto de sucessivamente todas as outras e se
um prato cheio das melhores carnes e encontra, entre nós, tanto na espécie
um gato sobre um monte de frutas ou quanto no indivíduo; o animal, pelo
de sementes, embora tanto um quanto contrário, ao fim de alguns meses, é o
outro pudessem alimentar-se muito que será_por toda a vida, e sua espécie,
bem com o alimento que desdenham, no fim de milhares de anos, o que era
se fosse atilado para tentá-lo; assim, os no primeiro ano desses milhares. Por
homens dissolutos se entregam a ex­ que só o homem é suscetível de tor­
cessos que lhes causam febre e morte, nar-se im becil?51 Não será porque
porque o espírito deprava os sentidos e volta, assim, ao seu estado primitivo e
a vontade ainda fala quando a natu­ — enquanto a besta, que nada adqui­
reza se cala. riu e também nada tem de bom a per­
Todo animal tem idéias, posto que der, fica sempre com seu instinto — o
tem sentidos; chega mesmo a combi­ homem, tornando a perder, pela velhi­
nar suas idéias até certo ponto e o ce ou por outros acidentes, tudo o que
homem, a esse respeito, só se diferen­ sua perfectibilidade lhe fizera adquirir,
cia da besta pela intensidade. Alguns volta a cair, desse modo, mais baixo
filósofos chegaram mesmo a afirmar do que a própria besta? Seria triste,
que existe maior diferença entre um para nós, vermo-nos forçados a convir
homem e outro do que entre um certo que seja essa faculdade, distintiva e
homem e certa besta. Não é, pois, quase ilimitada, a fonte de todos os
tanto o entendimento quanto a quali­ males do homem; que seja ela que,
dade de agente livre possuída pelo com o tempo, o tira dessa condição
homem que constitui, entre os animais, original na qual passaria dias tran­
a distinção específica daquele. A natu­ qüilos e inocentes; que seja ela que,
reza manda em todos os animais, e a fazendo com que através dos séculos
besta obedece. O homem sofre a desabrochem suas luzes e erros, seus
mesma influência, mas considera-se vícios e virtudes, o torna com o tempo
livre para concordar ou resistir, e é o tirano de si mesmo e da natureza (i).
sobretudo na consciência dessa liber­ Seria horrível ter de louvar como um
dade que se mostra a espiritualidade de ser benfeitor o primeiro a sugerir aos
sua alma, pois a física de certo modo habitantes das margens do Orinoco o
explica o mecanismo dos sentidos e a uso dessas tabuazinhas que aplicam
formação das idéias, mas no poder de nas têmporas de seus filhos e que, pelo
querer, ou antes, de escolher e no senti­ menos, lhes asseguram uma parte de
mento desse poder só se encontram sua imbecilidade e de sua felicidade
atos puramente espirituais que de original.
modo algum serão explicados pelas O homem selvagem, abandonado
leis da mecânica. pela natureza unicamente ao instinto,
Mas, ainda quando as dificuldades
que cercam todas essas questões dei­ 51 Sofrendo no corpo e no espírito, Rousseau
xassem por um instante de causar dis­ tom a posição contra a filosofia do progresso e
cussão sobre diferença entre o homem das luzes. (N . de P. A.-B.)
250 ROUSSEAU

ou ainda, talvez, compensado do que ao distanciar-se da condição anim al53.


lhe falta por faculdades capazes de a Ser-me-ia fácil, caso fosse necessá­
princípio supri-lo e depois elevá-lo rio, apoiar essas opiniões em fatos e
muito acima disso, começará, pois, fazer ver que, em todas as nações do
pelas funções puramente animais (j). mundo, os progressos do espírito se
Perceber' e sentir será seu primeiro proporcionaram precisamente segundo
estado, que terá em comum com todos as necessidades que os povos recebe­
os outros animais; querer e não querer, ram da natureza ou aquelas às quais as
desejar e temer, serão as primeiras e circunstâncias os obrigaram e, conse­
quase as únicas operações de sua alma, qüentemente, as paixões que os leva­
até que novas circunstâncias nela vam a atender às suas necessidades.
determinem novos desenvolvimentos. Mostraria, no Egito, as artes nascendo
Apesar do que dizem os moralis­ e espalhando-se segundo o transborda-
ta s 52, o entendimento humano muito mento do Nilo; acompanharia seu pro­
deve às paixões, que, segundo uma opi­ gresso entre os gregos, onde as viram
nião geral, lhe devem também muito. É germinar, crescer e elevar-se até os
pela sua atividade que nossa razão se céus entre as areias e os rochedos da
aperfeiçoa; só procuramos conhecer Ática, sem poder lançar raízes nas bor­
porque desejamos usufruir e é impos­ das férteis do E u ro ta5 4; observaria que
sível conceber por que aquele, que não em geral os povos do norte são mais
industriosos do que os do su l5 5 por
tem desejos ou temores, dar-se-ia a
menos poderem se privar disso, como
pena de raciocinar. As paixões, por
se a natureza quisesse assim igualar as
sua vez, encontram sua origem em nos­
coisas, conferindo aos espíritos a ferti­
sas necessidades e seu progresso em
lidade que recusa à terra.
nossos conhecimentos, pois só se pode
Mas, sem recorrer aos testemunhos
desejar ou temer as coisas segundo as
idéias que delas se possa fazer ou pelo incertos da história5 6, quem não verá
simples impulso da natureza; o homem que tudo parece afastar do homem sel­
selvagem, privado de toda espécie de vagem a tentação e os meios de deixar
luzes, só experimenta as paixões desta de ser selvagem? Sua imaginação nada
lhe descreve, o coração nada lhe pede.
última espécie, não ultrapassando,
pois, seus desejos a suas necessidades Suas módicas necessidades encon­
tram-se com tanta facilidade ao alcan-
físicas (k ) . Os únicos bens que conhece
no universo são a alimentação, uma
fêmea e o repouso; os únicos males que 53 Rousseau concorda com Lucrécio e Mon­
taigne, no sentido de exorcizar o temor da
teme, a dor e a fome. Digo a dor e não morte e de mostrar que esse temor não é natu­
a morte, pois jamais o animal saberá o ral, mas adquirido de origem social. (N . de P.
que é morrer, sendo o conhecimento da A.-B.)
morte e de seus terrores uma das pri­ 5 4 Eurotas: rio da Lacônia que banhava
meiras aquisições feitas pelo homem Esparta. Os espartanos distinguiram -se-pela
sua rusticidade. (N . de P. A.-B.)
5 5 Montesquieu, ao estudar a influência do
52 Rousseau toma o partido de Diderot, que clima na vida política, tornara célebre a oposi­
reabilitava a paixão, em sua tradução dos ção entre os povos do Norte e os do Sul. (N . de
Princípios da Filosofia M oral, de Shaftesbury, P. A.-B.)
e em sua A pologia do Padre de Prades (1752), 5 6 Comparar com a declaração anterior:
contra os moralistas do século precedente, “Afastem os todos os fatos”. V. também a nota
Pascal, La Bruyère, Fénelon, que descreviam o 26, supra, onde se registra o sentido evolutivo
drama do homem com o uma luta da razão que Rousseau imprime à interpretação dos
contra as paixões. (N . de P. A.-B.) fatos. (N. de L. G. M.)
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 251

ce da mão e encontra-se ele tão longe arte de reproduzi-lo! E quantas vezes,


do grau de conhecimento necessário talvez, cada um desses segredos não
para desejar alcançar outras maiores morreu com aquele que o descobrira!
que não pode ter nem previdência, nem Que diremos da agricultura, arte que
curiosidade. O espetáculo da natureza, exige tanto trabalho e previdência, que
por muito familiar, torna-se-lhe indife­ se liga a tantas outras artes, que
rente; é sempre a mesma ordem, são evidentemente só pode ser praticada
sempre as mesmas revoluções; não numa sociedade pelo menos em início
possui espírito para espantar-se com as e que não nos serve tanto para extrair
maiores maravilhas e não é nele que se da terra os alimentos que forneceria
deve procurar a filosofia de que o sem a sua prática quanto para forçá-la
homem tem necessidade para saber às preferências que são mais de nosso
observar por ama vez o que sempre gosto? Suponhamos, porém, que os ho­
viu. Sua alma, que nada agita, entre­ mens se tivessem multiplicado de tal
ga-se unicamente ao sentimento da modo que as produções da natureza
existência atual sem qualquer idéia do não fossem mais suficientes para ali­
futuro, ainda que próximo, e seus pro­ mentá-los, suposição que, digamos de
jetos, limitados como suas vistas, difi­ passagem, indicaria à espécie humana
cilmente se estendem até o fim do dia. uma grande vantagem nessa maneira
É esse, ainda hoje, o grau de previ­ de viver; suponhamos que, sem forjas e
dência dos caraíbas: de manhã vende o sem oficinas, os instrumentos agrícolas
colchão de algodão e de tarde chora, tivessem caído do céu nas mãos dos
querendo readquiri-lo, por não ter pre­ selvagens, que esses homens tivessem
visto que na noite seguinte necessitaria vencido o ódio mortal que todos têm
dele. por um trabalho contínuo, que tives­
Quanto mais se medita sobre esse sem aprendido primeiramente a bem
assunto tanto mais aumenta, aos nos­ prever suas necessidades, que tivessem
sos olhos 5 7, a distância entre as puras adivinhado como se deve cultivar a
sensações e os mais simples conheci­ terra, semear as sementes e plantar as
mentos, sendo impossível conceber-se árvores, que tivessem encontrado a
como um homem teria podido, unica­ arte de moer o trigo e de fazer com que
mente por suas forças, sem o auxílio a uva fermentasse, enfim, todas as coi­
da comunicação e sem a premência da sas que preciso fora que os deuses58
necessidade, vencer intervalo tão gran­ lhes ensinassem por não se poder con­
de. Quantos séculos talvez tenham ceber como as poderiam prender por si
decorrido antes de chegarem os ho­ mesmos — qual seria, depois disso, o
mens à altura de ver outro fogo que homem suficientemente insensato para
não o do céu ! Quantos acasos não lhes atormentar-se com a cultura de um
foram necessários para aprender os campo de que o despojaria o primeiro
usos mais comuns desse elemento!
Quantas vezes não deixaram que ele se
extinguisse antes de ter adquirido a 58 D e acordo com a mitologia antiga, Ceres,
a deusa das colheitas, ensinou agricultura aos
homens. Rousseau adota, neste ponto, uma
5 7 A partir deste ponto, Rousseau inspirar- concepção nacionalista da evolução da huma­
se-á no Ensaio sobre a Origem dos C onheci­ nidade: os deuses foram inventados pelos ho­
m entos H um anos (1746) de Condillac. A his­ mens para dar autoridade às descobertas
tória do pensamento humano durante muito humanas; também desse modo os legisladores
tempo foi orientada unicamente pelas impres­ atribuíram à inspiração divina suas constitui­
sões dos sentidos. (N. de P. A.-B.) ções. (N. de P. A.-B.)
252 ROUSSEAU

a chegar, fosse indiferentemente inventado?61 Que progresso poderia


homem ou besta, e a quem conviesse conhecer o gênero humano esparso nas
essa colheita? E como poderia cada florestas entre os animais? E até que
um resolver-se a passar sua vida num ponto poderiam aperfeiço ar-se e escla­
trabalho penoso, cujo prêmio tem recerem-se mutuamente homens que,
tanto mais certeza de não recolher não tendo domicílio fixo nem necessi­
quanto de ser-lhe muitíssimo necessá­ dade uns dos outros, se encontrariam
rio? Em uma palavra, como poderia talvez, somente duas vezes na vida,
essa situação levar os homens a culti­ sem se conhecer e sem se falar? 62
varem a terra enquanto não fosse divi­ Lembre-se de quantas idéias deve­
dida entre eles, isto é, enquanto não mos ao uso da palavra; como a gramá­
estivesse suprimido o estado de natu­ tica exercita e facilita as operações do
reza? 59 espírito; pense-se nos trabalhos inima­
Quando quiséssemos supor um gináveis e no tempo infinito que custou
homem selvagem tão hábil na arte de a primeira invenção das línguas; jun­
pensar quanto o dizem os filósofos60, tem essas reflexões às precedentes e
quando dele fizéssemos, segundo o ter-se-á idéia de como foram precisos
milhares de anos para sucessivamente
exemplo destes, um filósofo, a desco­ desenvolverem-se no espírito humano
brir por si só as mais sublimes verda­
as operações de que era capaz62.
des, a construir, graças a conjuntos de Que me seja permitido examinar,
raciocínios muito abstratos, máximas por um instante, as dificuldades relati­
de justiça e de razão extraídas do amor vas à origem das línguas. Poderia
à ordem em geral ou da vontade contentar-me em citar ou repetir aqui
conhecida de seu Criador; em uma as pesquisas do Sr. Padre de Condil-
palavra, quando supuséssemos em seu la c 63 sobre esse assunto, as quais,
espírito o quanto de inteligência e de todas, confirmam inteiramente minha
luzes que devera ter e que, na realida­ opinião e talvez me tenham sugerido a
de, só se encontra nele de lentidão e primeira idéia. Mas, de acordo com o
estupidez, que utilidade a espécie tira­ modo pelo qual esse filósofo resolve as
ria de toda essa metafísica impossível
de ser comunicada e destinada a pere­ 61 O equipamento físico-psíquico natural não
cer com o indivíduo que a tivesse supõe, nem favorece as “ luzes”, cuja expansão
só se pode conceber, portanto, com o resultante
de novas “necessidades” provenientes, por seu
&9 O progresso, tal qual o conhecemos reali­ turno, de situações relacionadas e nunca de
zado, não é, pois, inerente ao homem natural. impulsos estritamente individuais. (N . de L. G.
A este, sem dúvida, era concedida a possibili­ M.)
dade de algum avanço sobre si mesmo — 62 N a corfcepção de Rousseau, o grande
com o Rousseau explicitamente reconhecerá passo mediante entre o isolamento individual e
— , porém nunca na atabalhoada transfor­ as relações com os semelhantes é representado
mação que tudo perverteu — convenções, pelo uso da linguagem. Daí o constante inte­
regras, códigos — para acabar pervertendo o resse de nosso Autor pelo problema e pelo
próprio homem. Não se queira, pois, no grande especialista na matéria, Condillac, logo
homem natural reconhecer o anormal “filóso­ abaixo nomeado. (N. de L. G. M.)
fo” civilizado. (N . de L. G. M.) 63 Étienne de Condillac (1715-1780) foi o
60 Os filósofos: os partidários das idéias ina­ grande filósofo francês da segunda metade do
tas, Descartes, Leibnitz e, sobretudo, seus século XVIII e o chefe da escola sensualista.
discípulos. Rousseau é partidário do sensua­ Rousseau refere-se aqui à sua Gram ática, I e
lismo e do empirismo. A pedagogia do Emílio II. Ele mesmo, mais tarde, escreverá um En­
basear-se-á numa psicologia genérica do espí­ saio sobre a Origem das Línguas. (N . de P.
rito humano. (N . de P. A.-B.) A.-B.)
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 253

dificuldades, que apresenta a si e, como quase não havia outro meio de


mesmo, sobre a origem dos sinais insti­ encontrarem-se senão o de não se per­
tuídos, mostrando dar por suposto o derem de vista, logo encontravam-se
que coloco como problema — a saber: em situação de nem sequer se reconhe­
uma espécie de sociedade já estabele- cerem uns aos outros. Notai, ainda,
eida entre os inventores da língua — , que, tendo o filho todas as suas neces­
creio, voltando às suas reflexões, dever sidades para exprimir e, conseqüente­
juntar-lhes as minhas, para expor as mente, mais coisas para dizer à mãe do
mesmas dificuldades à luz mais conve­ que esta ao filho, deveu fazer os maio­
niente a meu assunto. A primeira que res esforços de invenção e a língua
se apresenta será imaginar como elas empregada por ele devera ser, em gran­
puderam tornar-se necessárias, pois, de parte, obra sua — o que multiplica
não tendo os homens qualquer corres­ as línguas em tantas quantos indiví­
pondência entre si, nem necessidade al­ duos houver para falá-las, contri­
guma de tê-la, não se conceberia nem a buindo ainda para tanto a vida errante
necessidade dessa invenção nem a sua e vagabunda que não dá tempo a que
possibilidade se não fora indispen­ nenhum idioma adquira consistência.
sável. Diria, como muitos outros, que Dizer que a mãe dita ao filho as pala­
as línguas nasceram no comércio do­ vras de que deverá servir-se para
méstico dos pais, das mães e dos pedir-lhe isto ou aquilo mostra bem
filhos, mas, além de tal coisa não resol­ como se ensinam as línguas, mas nada
ver as objeções, seria cometer a falta adianta quanto à sua formação.
daqueles que, raciocinando sobre o es­ Suponhamos essa primeira dificul­
tado de natureza, transportam para ele dade vencida; transponhamos, por um
as idéias pertencentes à sociedade e momento, o espaço imenso que, com
vêem sempre a família reunida numa certeza, existiu entre o estado puro de
mesma habitação e seus membros natureza e a necessidade de línguas, e
guardando entre si uma união tão ínti­ procuremos, supondo-as necessárias
ma e permanente quanto entre nós, (m), como puderam elas começar a
onde tantos interesses comuns os reú­ estabelecer-se. Nova dificuldade, pior
nem, enquanto que, nesse estado primi­ ainda do que a precedente, pois, se os
tivo, não tendo nem casas, nem caba­ homens tiveram necessidade da pala­
nas, nem propriedades de qualquer vra para aprender a pensar, tiveram
espécie, cada um se abrigava em qual­ muito mais necessidade ainda de saber
quer lugar e, freqüentemente, por uma pensar para encontrar a arte da pala­
única noite: os machos e as fêmeas vra e, quando se chegasse a com­
uniam-se fortuitamente segundo o preender como os sons da voz foram
acaso, a ocasião e o desejo, sem que a tomados como intérpretes convencio­
palavra fosse um intérprete necessário nais de nossas idéias, ainda restaria
das coisas que tinham a dizer-se, e por saber quais puderam ser os intér­
separavam-se com a mesma facilidade pretes dessa convenção para aquelas
(l). A mãe a princípio aleitava seus fi­ idéias que, não tendo de modo alguiji
lhos devido à sua própria necessidade; um objeto sensível, não se poderiam
depois, tendo o hábito lhos tornado indicar nem pelo gesto, nem pela voz.
caros, alimentava-os por causa da Isso faz com que somente possamos
necessidade deles. Os filhos, assim que formar conjeturas toleráveis sobre o
tinham forças para procurar pasto, não nascimento dessa arte de comunicar os
tardavam a abandonar a própria mãe pensamentos e de estabelecer um co­
254 ROUSSEAU

mércio entre os espíritos, arte sublime são mais apropriadas a representá-las


que já está tão longe de sua origem, como sinais instituídos. Tal substitui­
mas que o filósofo ainda vê a uma dis­ ção só pôde fazer-se com o consenti­
tância tão grande de sua perfeição que, mento comum e de maneira bastante
absolutamente, não há homem bas­ difícil para ser praticada por homens
tante ousado para assegurar que um cujos órgãos grosseiros não possuíam
dia a alcançaria, desde que as revolu­ ainda qualquer exercício, sendo essa
ções, que o tempo necessariamente substituição mais difícil de conceber-se
traz, se detivessem em seu proveito, os em si mesma, posto que aquele acordo
preconceitos abandonassem as acade­ unânime teve que ser motivado e a
mias ou se calassem diante delas, e palavra parece ter sido muito neces­
estas pudessem, durante séculos intei­ sária para estabelecer-se o uso da
ros sem interrupção, ocupar-se desse palavra.
assunto espinhoso. Deve-se acreditar que as primeiras
A primeira língua do homem, a lín­ palavras utilizadas pelos homens tive­
gua mais universal, a mais enérgica e a ram em seu espírito significação muito
única de que se necessitou antes de mais extensa do que aquela que pos­
precisar-se persuadir homens reunidos, suem nas línguas já formadas e que,
é o grito da natureza. Como esse grito ignorando a divisão do discurso em
só era proferido por uma espécie de suas partes constitutivas, os homens, a
instinto nas ocasiões mais prementes, princípio, deram a cada palavra o sen­
para implorar socorro nos grandes tido de uma proposição inteira. Quan­
perigos ou alívio nas dores violentas, do começaram a distinguir o sujeito do
não era de muito uso no curso comum atributo e o verbo do substantivo, o
da vida, onde reinam sentimentos mais que não representou pequeno esforço
moderados. Quando as idéias dos ho­ de espírito, os substantivos não foram
mens começaram a estender-se e a de início senão outros tantos nomes
multiplicar-se, e se estabeleceu entre próprios, o presente do infinito foi o
eles uma comunicação mais íntima, único tempo dos verbos, e, quanto aos
procuraram sinais mais numerosos e adjetivos, a noção só se desenvolveu
uma língua mais extensa; multipli­ com muita dificuldade, visto que todo
caram as inflexões de voz e juntaram- adjetivo é uma palavra abstrata e as
lhes gestos que, por sua natureza, são abstrações, operações penosas e pouco
mais expressivos e cujo sentido depen­ naturais.
de menos de uma determinação ante­ Cada objeto, a princípio, recebeu
rior. Exprimiram, pois, os objetos visí­ um nome particular, sem levar em
veis e móveis graças a gestos, e aqueles consideração os gêneros e as espécies,
que atingem a audição, graças a sons que esses primeiros instituidores 6 4 não
imitativos; mas, como o gesto só indi­ estavam em condições de distinguir —
ca os objetos presentes ou fáceis de todos os indivíduos se apresentaram
serem descritos e as ações visíveis, isolados a seu espírito como o são no
como o gesto não é de uso universal, quadro da natureza. Se um carvalho se
porquanto a obscuridade ou a interpo­
sição de um corpo o torna inútil, e 6 4 Instituidores: autores da instituição da lin­
como o gesto mais exige do que excita guagem. Rousseau, depois de ter manifestado
seu acordo com Condillac sobre o princípio da
a atenção, resolveram então substituí- explicação, segue, neste ponto, opinião contrá­
lo pelas articulações da voz que, sem ria quanto aos pormenores da explicação. (N.
ter a mesma relação com certas idéias, de P. A.-B.)
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 255

chamava A, um outro chamava-se B, a imaginação nela se imiscua, a idéia


pois a primeira idéia que se tem de logo se torna particular. Tentai traçar-
duas coisas é que não são a mesma vos a imagem de uma árvore em geral
coisa e, freqüentemente, necessita-se de e jamais conseguireis; mesmo que não
muito tempo para observar o que pos­ o queirais, será preciso vê-la pequena
suem de comum; eis como quanto ou grande, pouco densa ou copada,
mais se limitavam os conhecimentos clara ou escura, e, se dependesse de
mais extenso se tornava o dicionário. vós nela não ver senão o que se encon­
A confusão de toda esta nomenclatura tra em todas as árvores, essa imagem
não pôde resolver-se com facilidade, já não se pareceria com uma árvore.
pois, para classificar os seres sob deno­ Os seres puramente abstratos são
minações comuns e genéricas, precisa­ assim vistos ou só se concebem pelo
va-se conhecer as propriedades e as discurso. Basta a definição do triân­
diferenças, eram necessárias observa­ gulo para dar-vos a idéia verdadeira;
ções e definições, isto é, a história assim que figurardes um deles em
natural e a metafísica, muito mais do vosso espírito, será um determinado
que aquilo com que os homens desse triângulo e não qualquer outro, e não
tempo poderiam contar. podereis evitar tornar as linhas sensí­
Aliás, as idéias gerais só podem veis ou o plano colorido. Precisa-se,
introduzir-se no espírito com o auxílio portanto, enunciar proposições, falar
das palavras 6 5 e o entendimento só as para ter idéias gerais, pois, assim que a
aprende por via de proposições. É essa imaginação pára, o espírito só se movi­
uma das razões pelas quais não pode­ menta à custa do discurso. Se os pri­
rão os animais formar tais idéias, nem meiros inventores, por isso, não pude­
jamais adquirirem a perfectibilidade ram dar nomes senão às idéias que já
que depende delas. Quando um maca­ tinham, conclui-se que os primeiros
co vai, sem hesitar, de uma a outra substantivos nunca puderam ser senão
noz, imaginar-se-á que tenha a idéia nomes próprios.
geral dessa espécie de fruto e que com­ Mas quando, por meios que não
pare seu arquétipo 6 6 com esses dois conheço, nossos novos gramáticos co­
indivíduos? Não, está claro; mas a meçaram a estender suas idéias e a
visão de uma dessas nozes faz com que generalizar suas palavras, a ignorância
surjam na sua memória as sensações dos inventores obrigou esse método a
que recebeu da outra, e seus olhos, sujeitar-se a limites muito estreitos e
modificados de uma certa maneira, como, a princípio, eles tinham multi­
anunciam ao seu paladar a modifica­ plicado demasiado os nomes dos indi­
ção por que passará. Toda idéia geral é víduos por não conhecerem seus gêne­
puramente intelectual e, por pouco que ros e espécies, demarcaram, depois,
muito poucas espécies e gêneros, por
6 5 Essa é a teoria nominalista, predileta da não terem considerado nos seres todas
psicologia inglesa. (Locke, Berkeley, Hume.) as suas diferenças67. Para levar as
(N . de P. A.-B.)
6 6 A rquétipo é palavra que aparece freqüente­
mente nas filosofias de Platão, Malebranche, 6 7 O gênero é uma classe muito geral de obje­
Berkeley. É a idéia em si de um objeto, tal tos que se subdividem em espécies. A diferença
com o se apresenta no entendimento divino; é um caráter indeterminado no gênero e pró­
todos os objetos da mesma espécie são criados prio à espécie. Determina, pois, a espécie no
por D eus segundo o modelo de seu arquétipo; interior do gênero. Por exemplo, a diferença
o verdadeiro conhecimento das coisas para o “raciocinante” determina a espécie “hom em ”
homem consiste no conhecimento de seus no interior do gênero “ animal”. (N . de P.
arquétipos. (N . de P. A.-B.) A.-B.)
256 ROUSSEAU

divisões bastante longe, necessitar-se- vras abstratas, os aoristos69 e todos os


iam mais experiências e luzes do que tempos dos verbos, as partículas, a sin­
ele poderia possuir, e mais pesquisas e taxe, ligar as proposições, os raciocí­
trabalhos do que desejaria realizar. nios, e formar toda a lógica do discur­
Ora, se, mesmo hoje, se descobrem so. Quanto a mim, atemorizado com
cada dia novas espécies que até aqui ti­ as dificuldades que se multiplicam e
nham escapado a todas as nossas convencido da impossibilidade quase
observações, pode-se imaginar como demonstrada de terem podido as lín­
escaparam a homens que só julgavam guas nascer e estabelecer-se por meios
as coisas pelo seu primeiro aspecto. puramente hum anos70, deixo, a quem
Quanto às classes primitivas e às o desejar, empreender a discussão
noções mais generalizadas, é supérfluo desse problema difícil de saber o que
acrescentar que deveriam ainda esca­ foi mais necessário — a sociedade já
par-lhes. Como teriam podido, por organizada quando se instituíram as
exemplo, imaginar ou compreender as línguas, ou as línguas já inventadas
palavras matéria, espírito, substância, quando se estabeleceu a sociedade.
moda, figura, movimento68, uma vez Quaisquer que sejam tais origens,
que nossos filósofos, que há tanto vê-se, pelo menos, o pouco cuidado
tempo se utilizam delas, demonstram que teve a natureza ao reunir os ho­
grande dificuldade para entendê-las, e mens por meio de necessidades mútuas
as idéias relativas a tais palavras,sendo e ao facilitar-lhes o uso da palavra,
puramente metafísicas, não se pode­ como preparou mal sua sociabili­
riam encontrar delas qualquer modelo dade 71 e como pôs pouco de si mesma
na natureza? em tudo que fizeram para estabelecer
Detenho-me nestes primeiros passos os seus laços. Com efeito, é impossível
e peço a meus juizes que suspendam imaginar por que, nesse estado primiti­
aqui a leitura para refletir, partindo da vo, um homem sentiria mais necessi­
invenção unicamente dos substantivos dade de um outro homem do que um
físicos, isto é, da parte da língua mais macaco ou um lobo de seu semelhante;
fácil de encontrar, sobre o caminho ou ainda — uma vez supondo-se essa
que falta fazer para exprimir todos os necessidade — , qual o motivo que
pensamentos dos homens, para tomar poderia levar o outro a atendê-lo; ou,
uma forma constante, para poder ser
falada em público e influir na socieda­ 69 O aoristo é um dos tempos da conjugação
grega, correspondente ao passado simples e ao
de. Peço-lhes que reflitam como foram passado com posto. (N . de P. A.-B.)
necessários tempo e conhecimentos 7 0 Meios puramente humanos, isto é, basica­
para encontrar os números (ri), as pala­ mente humanos, compreendidos no substrato
físico-psíquico do homem individual tal com o
podemos conjeturá-lo em “estado de nature­
68 Crítica empírica das entidades metafísicas za” . Rousseau compreende e confessa a difi­
da escolástica medieval e que fora conservada culdade do problema da origem da linguagem,
pelos filósofos racionalistas do século XVII. A que continuará a preocupá-lo e que o levará ao
substância é um ser que existe em si e por si: a “Ensaio” sobre o assunto, mas desde já quer
matéria e o espírito são as duas substâncias estabelecer que não admite qualquer meio de
principais. O modo é uma manifestação singu­ comunicação fora de um complexo de relações
lar e final da substância; por exemplo: este entre seres semelhantes, isto é, fora de uma
corpo. A figura é a forma exterior de um situação social. (N . de L. G. M.)
corpo. O movimento não existe em absoluto, 71 Ironia contra Grócio, que estabeleceu a
pois só existe movimento relativo. (N . de P. sociabilidade com o um atributo natural do
A.-B.) indivíduo. (N. de L. G. M.)
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 257

finalmente, neste último caso, como se exercerem, a fim de que não se tor­
poderiam estabelecer condições entre nassem supérfluas e onerosas antes do
si. Sei que incessantemente nos repe­ tempo, nem tardias e inúteis ao apare­
tem que nada teria sido tão miserável cer a necessidade. O homem encon­
quanto o homem nesse estado 72; e, se trava unicamente no instinto todo o
é verdade, como creio tê-lo provado, necessário para viver no estado de
que só depois de muitos séculos pode­ natureza; numa razão cultivada só
ria sentir ele o desejo e a oportunidade encontra aquilo de que necessita para
de sair dessa condição, tal acusação viver em sociedade.
fora de fazer-se à natureza e não àque­ Parece, a princípio, que os homens
le assim constituído por ela. Mas, se nesse estado de natureza, não havendo
compreendo bem o termo miserável, é entre si qualquer espécie de relação
ele uma palavra sem sentido algum ou moral ou de deveres comuns, não
que só significa uma privação dolorosa poderiam ser nem bons nem maus ou
e sofrimento do corpo ou da alma. possuir vícios e virtudes, a menos que,
Ora, desejaria que me explicassem tomando estas palavras num sentido fí­
qual poderia ser o gênero de miséria de sico, se considerem como vícios do
um ser livre cujo coração está em paz e indivíduo as qualidades capazes de
o corpo com saúde. Pergunto qual das prejudicar sua própria conservação, e
duas — a vida civil ou a natural — é virtudes aquelas capazes de em seu
mais suscetível de tornar-se insupor­ favor contribuir, caso em que se pode­
tável àqueles que a fruem. À nossa ria chamar de mais virtuosos àqueles
volta, vemos quase somente pessoas que menos resistissem aos impulsos
que se lamentam de sua existência, inú­ simples da natureza73. Sem nos afas­
meras até que dela se privam assim tarmos do senso comum, é oportuno
que podem, e o conjunto das leis divi­ suspender o julgamento que pode­
nas e humanas mal basta para deter ríamos fazer de uma tal situação e des­
essa desordem. Pergunto se algum dia confiar de nossos preconceitos até que,
se ouviu dizer que um selvagem em de balança na mão, se tenha exami­
liberdade pensou em lamentar-se da nado se há mais virtudes do que vícios
vida e em querer morrer. Que se julgue, entre os homens civilizados; ou se suas
pois, com menos orgulho, de que lado virtudes são mais proveitosas do que
está a verdadeira miséria. Pelo contrá­ funestos seus vícios; ou se o progresso
rio, nada seria tão miserável quanto de seus conhecimentos constitui com­
um selvagem ofuscado por luzes, ator­ pensação suficiente dos males que se
mentado por paixões e raciocinando causam mutuamente à medida que se
sobre um estado diferente do seu. instruem sobre o bem que deveriam
Deveu-se a uma providência bastante dispensar-se; ou se não estariam, na
sábia o fato de as faculdades, que ele melhor das hipóteses, numa situação
apenas possuía potencialmente, só po­ mais feliz não tendo nem mal a temer
derem desenvolver-se nas ocasiões de nem bem a esperar de ninguém, ao

72 A lusão a Pascal, cuja A p o lo g ia da R eli­ 7 3 Agora, é a moral que se conceituará com o


gião C ristã se funda na oposição entre a gran­ produto do social, pois — a exemplo da lin­
deza do homem com D eus e de sua miséria guagem — falta-lhe base e finalidade na exis­
sem D eus; isso porque, para Pascal, a natureza tência individual básica, enquanto se torna,
é originalmente corrompida; a natureza sem primeiro, possível e, depois, fatal m esm o, na
graça é o pecado. Rousseau recusa, absoluta­ convivência entre semelhantes. (N . de L. G.
mente, a noção de pecado. (N . de P. A.-B.) M.)
258 ROUSSEAU

invés de ter-se submetido a uma depen­ satisfazer uma multidão de paixões


dência universal e obrigar-se a receber que são obra da sociedade e que torna­
tudo daqueles que nada se obrigam a ram as leis necessárias. O mau, diz ele,
lhe dar. é uma criança robusta. Resta saber se
Não iremos, sobretudo, concluir o homem selvagem é uma criança
com H obbes7 4 que, por não ter nenhu­ robusta. Mesmo que se concordasse
ma idéia da bondade, seja o homem com ele, que se concluiria? Que, sendo
naturalmente mau; que seja corrupto esse homem, quando robusto, tão
porque não conhece a virtude; que nem dependente dos outros quanto quando
sempre recusa a seus semelhantes ser­ fraco, não haveria espécie alguma de
viços que não crê dever-lhes; nem que, excessos a que não se entregasse; que
devido ao direito que se atribui com bateria em sua mãe quando tardasse
razão relativamente às coisas de que muito a dar-lhe o peito, que estrangu­
necessita, loucamente imagine ser o laria um de seus irmãos mais moços
proprietário do universo inteiro. Hob­ quando o incomodasse, que morderia a
bes viu muito bem o defeito de todas as perna de um semelhante quando esti­
definições modernas de direito natural, vesse ferido ou perturbado. Consti­
mas as conseqüências, que tira das tuem, porém, duas suposições contra­
suas, mostram que o toma num sentido ditórias ser, no estado de natureza,
que não é menos falso. Raciocinando robusto e dependente. O homem é
sobre os princípios que estabeleceu, fraco quando dependente e, antes de
esse autor deveria dizer que, sendo o ser robusto, se emancipa. Hobbes não
estado de natureza aquele no qual o viu que a mesma causa que impede os
cuidado de nossa conservação é o selvagens de usar a razão, como o pre­
menos prejudicial ao de outrem, esse tendem nossos jurisconsultos, os impe­
estado era, conseqüentemente, o mais de também de abusar de suas faculda­
propício à paz e o mais conveniente ao des, como ele próprio acha; de modo
gênero humano. Ele diz justamente o que se poderia dizer que os selvagens
contrário por ter incluído, inoportuna­ não são maus precisamente porque
mente, no desejo de conservação do não sabem o que é ser bons, pois não é
homem selvagem a necessidade de nem o desenvolvimento das luzes, nem
o freio da lei, mas a tranqüilidade das
7 4 O estado de natureza de que fala Rousseau paixões e a ignorância do vício que os
não é o estado de guerra a que se refere Hob­ impedem de proceder mal: Tanto plus
bes, pois o homem é acessível à piedade. Aliás, in illis proficit vitiorum ignoratio,
Rousseau modificará sua opinião quanto a
esse segundo ponto. N o Ensaio sobre a Origem
quam in his cognitivo virtutis7 5. Há,
das Línguas, cap. IV, sustentará que a piedade aliás, outro princípio que Hobbes não
implica a reflexão — tem-se de saber o que percebeu: é que, tendo sido possível ao
exvste. de comum entre nós e aqueles que
sofrem; ora, os homens crêem-se inimigos uns
dos outros. Nada conhecendo, tudo temem; 7 5 Citação de um trecho de Justino (Histórias
atacam para defender-se. Certamente já existia I, II) que se aplica aos Citas: “D esse modo,
a piedade, mas no interior de um pequeno parece admirável que a natureza lhes dê o que
grupo; “tinham a idéia de um pai, de um filho, os gregos não puderam adquirir por meio do
de um irmão, mas não de um homem” ; reu­ longo ensinamento dos sábios nem pelos pre­
niam “costumes tão ferozes e corações tão ter­ ceitos dos filósofos que não sobrepujaram,
nos, tanto amor por sua família e aversão pela com seus costumes civilizados, a barbárie
sua espécie”. Enfim, a piedade é muito anterior inculta: serviu muito mais a estes a ignorância
à reflexão, mas só se estende a toda a humani­ dos vícios do que àqueles o conhecimento da
dade por meio desta. (N. de P. A.-B.) virtude”. (N . de P. A.-B.)
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 259

homem, em certas circunstâncias, sua­ com os dentes assassinos seus fracos


vizar a ferocidade de seu amor-próprio membros e rasgando com as unhas as
ou o desejo de conservação antes do entranhas palpitantes dessa criança.
nascimento desse amor (o), tempera, Que agitação tremenda não experi­
com uma repugnância inata de ver so­ menta essa testemunha de um aconte­
frer seu semelhante, o ardor que consa­ cimento pelo qual não tem nenhum
gra ao seu bem-estar. Não creio ter a interesse pessoal! Que angústias não
temer qualquer contradição, se confe­ sofre com esse espetáculo, sem poder
rir ao homem a única virtude natural levar socorro algum à mãe desfalecida
que o detrator mais acirrado das virtu­ ou à criança m oribunda!
des humanas teria de reconhecer. Falo Tal o movimento puro da natureza,
da piedade, disposição conveniente a anterior a qualquer reflexão; tal a
seres tão fracos e sujeitos a tantos força da piedade natural que até os
males como o somos; virtude tanto costumes mais depravados têm dificul­
mais universal e tanto mais útil ao dade em destruir, porquanto se vê
homem quando nele precede o uso de todos os dias, em nossos espetáculos,
qualquer reflexão, e tão natural que as emocionar-se e chorar por causa das
próprias bestas às vezes são dela al­ infelicidades de um desafortunado,
guns sinais perceptíveis. Sem falar da aquele mesmo que, se estivesse no
ternura das mães pelos filhinhos e dos lugar do tirano, agravaria ainda mais
perigos que enfrentam para garanti-los, os tormentos de seu inimigo, como o
comumente se observa a repugnância sanguinário Sila, tão sensível aos
que têm os cavalos de pisar num ser males que não tinha causado, ou aque­
vivo. Um animal não passa sem in­ le Alexandre de Fers, que não ousava
quietação ao lado de um animal morto assistir à representação de uma tragé­
de sua espécie; há até alguns que lhes dia, temendo que o vissem chorar com
dão uma espécie de sepultura, e os Andrômaca e Príamo, enquanto ouvia
mugidos tristes do gado entrando no sem emoção os gritos de tantos cida­
matadouro exprimem a impressão que dãos que, por sua ordem, eram degola­
tem do horrível espetáculo que o dos cada dia.
impressiona. Vê-se, com prazer, o
autor da Fábula das Abelhàs7 6 força­ Mollissima corda
do a reconhecer o homem como um ser Humano generi dare se natura
compassivo e sensível, sair, no exem­ fatetur,
plo que nos dá, de seu estilo frio e sutil Quae lacrymas dedit7 7
para oferecer-nos a imagem patética de
um homem aprisionado que descobre Mandeville compreendeu muito bem
lá fora uma besta feroz arrancando um que, com toda a sua moral, os homens
filho do seio de sua mãe, estraçalhando jamais passariam de uns monstros se a
natureza não lhes tivesse conferido a
7 6 Trata-se de M andeville, médico holandês piedade para apoio da razão; não
que clinicava na Inglaterra, morto em 1733. compreendeu, no entanto, decorrerem
Sua Fábula das A belhas, publicada em 1723 e somente dessa qualidade todas as vir-
traduzida para o francês em 1740, sustenta que
o luxo e os vícios, bem com o a embriaguez e a
prostituição, constituem coisas boas e vantajo­ 7 7 “ A natureza, dando-lhe lágrimas, reco­
sas para a sociedade. Berkeley refutou esse nhece que. deu ao gênero humano corações
ponto de vista no seu A lciphron. (N . de P. muito ternos.” Juvenal, Sátira X V , verso 131.
A.-B.) (N . de P. A.-B.)
260 ROUSSEAU

tudes sociais que quer contestar nos homem prudente se distancia; a cana­
homens. Com efeito, que são a genero­ lha, as mulheres do mercado, é que
sidade, a clemência, a humanidade, separam os contendores e impedem as
senão a piedade aplicada aos fracos, pessoas de bem de se degolarem
aos culpados ou à espécie humana em mutuamente78.
geral? Até a benquerença e a amizade Certo, pois a piedade representa um
são, bem entendidas, produções de sentimento natural que, moderando em
uma piedade constante fixadas num cada indivíduo a ação do amor de si
objeto especial, pois desejar que al­ mesmo, concorre para a conservação
guém não sofra não será desejar que mútua de toda a espécie. Ela nos faz,
seja feliz? A ser verdadeiro que a sem reflexão, socorrer aqueles que
comiseração não passa de um senti­ vemos sofrer; ela, no estado de nature­
mento que nos coloca no lugar daquele za, ocupa o lugar das leis, dos costu­
que sofre, sentimento obscuro e vivo mes e da virtude, com a vantagem de
no homem selvagem, desenvolvido ninguém sentir-se tentado a desobe­
mas fraco no homem civil, que impor­ decer à sua doce voz; ela impedirá
tará tal idéia para a verdade do que qualquer selvagem robusto de tirar a
digo, senão para dar-lhe mais força? A uma criança fraca ou a um velho enfer­
comiseração, com efeito, mostrar-se-á mo a subsistência adquirida com difi­
tanto mais enérgica quanto mais inti­ culdade, desde que ele mesmo possa
mamente se identificar o animal espec­ encontrar a sua em outra parte; ela, em
tador com o animal sofredor. Ora, é lugar dessa máxima sublime da justiça
evidente que essa identificação deveu raciocinada — Faze a outrem o que
ser infinitamente mais íntima no esta­ desejas que façam a ti — , inspira a
do de natureza do que no estado de todos os homens esta outra máxima de
raciocínio. É a razão que engendra o bondade natural, bem menos perfeita,
amor-próprio e a reflexão o fortifica; mas talvez mais útil do que a prece­
faz o homem voltar-se sobre si mesmo; dente — Alcança teu bem com o
separa-o de quanto o perturba e aflige. menor mal possível para outrem.
É a filosofia que o isola; por sua causa, Numa palavra, antes nesse sentimento
diz ele, em segredo, ao ver um homem natural do que nos argumentos sutis
sofrendo: “Perece, se queres; quanto a deve procurar-se a causa da repug­
mim, estou seguro” . Nada, além dos nância que todo homem experimen­
peFigos da sociedade inteira, atrapalha taria por agir mal, mesmo independen­
o sono tranqüilo do filósofo e o arran­ temente das máximas da educação.
ca do leito. Podem impunemente dego­ Ainda que possa ser próprio de Sócra­
lar um seu semelhante sob sua janela, tes e dos espíritos de sua têmpera
ele só terá de levar as mãos às orelhas
e ponderar um pouco consigo mesmo 78 N as C onfissões, Rousseau afirma que esse
para impedir a natureza, que nele se retrato do filósofo que raciocina contra a.pie­
dade natural tapando os ouvidos é o de D ide­
revolta, de identificar-se com aquele
rot. Aproveita-se disso para acusar Diderot de
que se assassina. O homem selvagem ter, devido à sua influência, dado às próprias
de modo algum possui esse talento obras “o tom duro e o aspecto negro” que de­
admirável e, por falta de sabedoria e de pois não mais apresentaram. Esse retrato tam­
razão, vemo-lo cada dia entregar-se bém visa Lucrécio (com o célebre trecho
“suave m ari magno ”. . . “é doce ver um nau­
temerariamente ao primeiro senti­ frágio quando se está ao abrigo em terra
mento de humanidade. Nos motins, firme”) e o moralista inglês Shaftesbury. (N . de
nas arruaças, a populaça se reúne, o P. A.-B.)
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 261

adquirirem a virtude pela razão, há causam entre nós, já mostram à sacie­


muito tempo o gênero humano não dade a insuficiência das leis nesse
existiria mais, se sua conservação só particular, além disso seria útil exami­
dependesse dos que pertencem a esse nar se tais desordens não nasceram
grupo. com as próprias leis, pois, nesse caso,
Com paixões tão pouco ativas e mesmo que fossem as leis capazes de
freio tão salutar, os homens, mais fero­ reprimir as desordens, o menos que se
zes do que maus e mais preocupados poderia exigir é que sustassem um mal
em se defender do mal que possam que não existiria sem elas.
receber do que tentados a fazê-lo a Comecemos por distinguir, no senti­
outrem, não estavam sujeitos a dispu­ mento do amor, o moral do físico. O fí­
tas muito perigosas. Como não tinham sico é esse desejo geral que leva um
entre si nenhuma espécie de comércio, sexo a unir-se a outro. O moral é o que
como conseqüentemente' não conhe­ determina esse desejo e o fixa exclusi­
ciam nem a vaidade, nem a considera­ vamente num só objeto ou que, pelo
ção, a estima ou o desprezo; como não menos, faz com que tenha por esse ob­
possuíam a menor noção do teu e do jeto preferido um grau bem maior de
meu, nem qualquer idéia verdadeira de energia. Ora, é fácil de compreender
justiça; como consideravam as violên­ que o moral, no amor, é um sentimento
cias, que podiam tolerar, como um mal artificial, nascido do costume da socie­
fácil de ser reparado e não como uma dade e celebrado com muita habilidade
injúria que deve ser punida; e como e cuidado pelas mulheres, que visam a
não pensavam na vingança senão estabelecer seu império e tornar domi­
maquinalmente e no momento, à ma­ nante o sexo que deveria obedecer.
neira do cão que morde a pedra que lhe Esse sentimento, baseando-se em cer­
atiram — suas disputas raramente te­ tas noções de mérito ou de beleza, que
riam conseqüências sangrentas, se não um selvagem é incapaz de ter, e em
conhecessem assunto mais excitante comparações que não está em condi­
do que o alimento. Percebo, porém, um ção de fazer, deve ser quase nulo para
outro mais perigoso, de que devo falar. ele. Isso porque, posto que seu espírito
Entre as paixões que agitam o cora­ não pôde engendrar idéias abstratas de
ção do homem, há uma, ardente, impe­ regularidade e de proporção, seu cora­
tuosa, que torna um sexo necessário ao ção também não é capaz dos senti­
outro, paixão tremenda que enfrenta mentos de admiração e de amor que,
perigos, anula todos os obstáculos e mesmo sem se perceber, nascem da
que, nos seus furores, parece capaz de aplicação dessas idéias. Ele ouve uni­
destruir o gênero humano, a cuja camente o temperamento que recebeu
conservação se destina. Que aconte­ da natureza e não o gosto que não
ceria aos homens, entregues a essa pôde adquirir — qualquer mulher lhe
raiva desenfreada e brutal, sem pudor, convém.
sem comedimento e diariamente dispu­ Limitados unicamente ao aspecto fí­
tando entre si os amores ao preço de sico do amor e bastante felizes para
seu sangue? ignorar essas preferências que irritam
ImpÕe-se convir, inicialmente, em o sentimento e lhes aumentam as difi­
que, quanto mais violentas são as pai­ culdades, os homens devem sentir
xões, mais necessárias as leis para menos freqüentes e menos vivamente
contê-las. Mas, se as desordens e cri­ os ardores do temperamento e, em
mes, que essas paixões cotidianamente conseqüência, disputar com menor fre­
262 ROUSSEAU

qüência e crueldade. A imaginação, ro de fêmeas pareça cinco sextos


que determina tantos prejuízos entre menor. Ora, nenhum desses dois casos
nós, não atinge corações selvagens; se aplica à espécie humana, na qual o
cada um recebe calmamente o impulso número de fêmeas sobrepassa em geral
da natureza, entrega-se a ele sem esco­ o de macho e na qual jam ais se obser­
lha, com mais prazer do que furor, e, vou, mesmo entre os selvagens, as fê­
uma vez satisfeita a necessidade, extin­ meas, como as de outras espécies,
gue-se todo o desejo. terem período de cio e de isolamento.
É, pois, incontestável que o próprio Além disso, entre inúmeros desses ani­
amor, assim como todas as outras pai­ mais, entrando toda a espécie ao
xões, só na sociedade adquiriu esse mesmo tempo em efervescência, surge
ardor impetuoso que muito freqüente­ um momento terrível de ardor comum,
mente o torna tão funesto aos homens de tumulto, de desordem e de combate,
e é tanto mais ridículo figurar selva­ momento que não aparece na espécie
gens esganando-se sem tréguas para humana, na qual nunca o amor é perió­
satisfazer à sua brutalidade, quanto dico. Não se pode, pois, concluir do
essa opinião é diretamente contrária à combate de certos animais pela posse
experiência. Os caraíbas, que são o das fêmeas que a mesma coisa aconte­
povo que até agora menos se distan­ cesse ao homem no estado de natureza
ciou do estado de natureza, são justa­ e, se de qualquer modo se pudesse che­
mente o mais calmo nos seus amores e gar a essa conclusão, como essas
o menos sujeito ao ciúme, apesar de dissensões não destruíram as outras
viver num clima abrasador que.sempre espécies, não se deve pelo menos julgar
parece emprestar a tais paixões uma sejam elas mais funestas à nossa. E
atividade muito maior. bem possível, nesse caso, que elas
Quanto às induções que se poderiam ainda causassem menos devastações
inferir, em muitas espécies de animais, do que em sociedade, sobretudo nos
dos combates dos machos que sempre países em que, valendo os costumes
ensangüentam nossos quintais ou que, ainda alguma coisa, o ciúme dos
por ocasião da primavera, fazem nos­ amantes e a vingança dos esposos
sas florestas retinir com seus gritos ao determinam diariamente duelos, assas­
disputarem a fêmea, é preciso começar sínios e coisas piores, onde o dever de
por excluir todas as espécies nas quais uma fidelidade eterna só serve para
a natureza estabeleceu, no poder rela­ proporcionar adultérios e onde as pró­
tivo dos sexos, relações nitidamente prias leis da continência e da honra
diferentes das nossas: assim, a briga expandem forçosamente a devassidão e
dos galos não serve como indução multiplicam os abortos.
para a espécie humana. Nas espécies Concluamos que, errando pelas flo­
em que a proporção é melhor observa­ restas, sem indústrias, sem palavra,
da, esses combates não podem ter ou­ sem domicílio, sem guerra e sem liga­
tras causas além da raridade das fê­ ção, sem qualquer necessidade de seus
meas em relação ao número de machos semelhantes, bem como sem qualquer
ou os intervalos exclusivos nos quais a desejo de prejudicá-los, talvez sem se­
fêmea recusa constantemente a aproxi­ quer reconhecer alguns deles indivi­
mação do macho, o que nos leva à pri­ dualmente, o homem selvagem, sujeito
meira causa, pois, se cada fêmea só a poucas paixões e bastando-se a si
suporta o macho durante dois meses mesmo, não possuía senão os senti­
cm cada ano, isso faz com que o núme­ mentos e as luzes próprias desse esta-
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 263

do, no qual só sentia suas verdadeiras É fácil de ver, com efeito, que entre
necessidades, só olhava aquilo que as diferenças que distinguem os ho­
acreditava ter interesse de ver, não mens, inúmeras, consideradas como
fazendo sua inteligência maiores pro­ naturais, são unicamente obra do hábi­
gressos do que a vaidade. Se por acaso to e dos vários gêneros de vida que os
descobria qualquer coisa, era tanto homens adotam em sociedade. Assim,
mais incapaz de comunicá-la quanto um temperamento robusto ou delicado,
nem mesmo reconhecia os próprios a força ou a fraqueza, que dele deri­
filhos. A arte perecia com o inventor. vam, resultam mais freqüentemente da
Então não havia nem educação, nem maneira dura ou afeminada pela qual
progresso; as gerações se multipli­ se foi educado do que da constituição
cavam inutilmente e, partindo cada primitiva dos corpos. A mesma coisa
uma sempre do mesmo ponto, desenro­ acontece com as forças do espírito; a
lavam-se os séculos com toda a grosse­ educação não só estabelece diferença
ria das primeiras épocas; a espécie já entre os espíritos cultos e os que não o
era velha e o homem continuava sem­ são, como também aumenta a que exis­
pre criança79. te entre os primeiros na proporção da
Estendi-me desse modo sobre a cultura, pois, quando um gigante e um
suposição80 dessa condição primitiva anão andam pelo mesmo caminho,
porque, devendo destruir antigos erros cada passo, que um e outro dêem, trará
e preconceitos inveterados, achei que uma vantagem a mais ao gigante. Ora,
devia pulverizá-los até a raiz e mos­ se se fizer uma comparação entre a
trar, no quadro do verdadeiro estado diversidade prodigiosa de educação e
de natureza, como a desigualdade, de gêneros de vida que reina nas várias
mesmo natural, está longe de ter nesse ordens do estado civil, e a simplicidade
estado tanta realidade e influência e uniformidade da vida animal e selva­
quanto pretendem nossos escritores81.
gem, na qual todos se alimentam com
79 A incapacidade, que Rousseau aponta no
os mesmos alimentos, vivem da mesma
homem natural, para uma acumulação cultural maneira e fazem exatamente as mes­
por sobre e para além das gerações em suces­ mas coisas, compreender-se-á quanto
são, representa a antítese teórica e conjètural deve a diferença de homem para
do sentido histórico da vida humana. Em ou­ homem ser menor no estado de natu­
tras palavras: os feitos do homem, longe de
poderem ser atribuídos às suas capacidades de
reza do que no estado de sociedade e
animal superior, resultam substancialmente da quanto aumenta a desigualdade natu­
vida em sociedade que supera e transfigura as ral na espécie humana por causa da
existências individuais. Por isso os historia­ desigualdade de instituição.
dores modernos reconhecem em Rousseau um
Mas, mesmo se a natureza mos­
precioso precursor que, principalmente através
de Herder, legou-nos uma visão inteiramente trasse na distribuição desses dons
inédita da História. (N . de L. G. M.) todas as preferências que se pretende
80 O autor lembra que esse quadro do estado que tenha, qual a vantagem alcançada
de natureza não passa de uma hipótese bem pelos favorecidos em prejuízo dos
fundamentada, pois sua eloqüência fez com
que nos esquecêssem os disso. (N de P. A.-B.)
demais, num estado de coisas-que não
81 Hobbes via na força um método, mais admitiria quase nenhuma espécie de
curto e mais natural do que as convenções, relação entre eles? De que servirá a be­
para fundamentar uma sociedade: o mais forte leza onde não houver amor de espécie
submete seus súditos, seja com o um pai sub­ alguma? De que serve o espírito a pes­
mete os filhos a seu governo, seja como o ven­
cedor submete o inimigo vencido à servidão. soas que não falam e a astúcia aos que
(N . de P. A.-B.) não têm interesses? Ouço sempre dizer
264 ROUSSEAU

gue os mais fortes oprimirão os fracos. Sem prolongar inutilmente esses de­
E preciso, porém, que me expliquem o talhes, cada qual deve ver como, por
que querem dizer com a palavra opres­ serem os laços da servidão formados
são. Uns dominarão com violência, ou­ unicamente pela dependência mútua
tros gemerão submetidos a todos os dos homens e pelas necessidades recí­
seus caprichos. Aí está precisamente o procas que os unem, é impossível sub­
que observo entre nós, mas não sei jugar um homem sem antes tê-lo colo­
como se poderia dizer isso de homens cado na situação de não viver sem o
selvagens, com os quais se teria mesmo outro, situação essa que, por não exis­
grande dificuldade para fazer com­ tir no estado de natureza, nele deixa
preender o que é servidão e domina­ cada um livre do jugo e torna inútil a
ção. Um homem poderá muito bem lei do mais forte83.
apossar-se dos frutos colhidos por um Depois de ter provado ser a desi­
outro, da caça morta por ele, do antro gualdade apenas perceptível no estado
que lhe servia de abrigo, mas como de natureza, e ser nele quase nula sua
chegaria ao ponto de fazer-se obede­ influência, resta-me ainda mostrar sua
cer? E quais poderão ser as cadeias da origem e seus progressos nos desenvol­
dependência entre homens que nada vimentos sucessivos do espírito huma­
possuem? Se me expulsam de uma ár­ no. Depois de ter mostrado que a
vore, sou livre de ir a uma outra; se me perfectibilidade, as virtudes sociais e
perseguem num certo lugar, que me as outras faculdades que o homem
impedirá de ir para outro? Se encon­ natural recebera potencialmente ja ­
trar um homem com força bem supe­ mais poderão desenvolver-se por si
rior à minha e, além disso, o bastante próprias, pois para isso necessitam do
depravado, preguiçoso e feroz para concurso fortuito de inúmeras causas
obrigar-me a prover a sua subsistência estranhas, que nunca poderiam surgir e
enquanto nada fizer, será preciso que sem as quais ele teria permanecido
ele se resolva a não me perder de vista eternamente em sua condição primiti­
um só instante e ter-me amarrado com va, resta-me considerar e aproximar os
muito cuidado enquanto dormir, te­
mendo que eu escape ou que o mate, vários acasos que puderam aperfeiçoar
isto é, será obrigado a expor-se volun­ a razão humana, deteriorando a espé­
tariamente a um trabalho muito maior cie, tornar m au8 4 um ser ao transfor­
do que deseja evitar e do que dá a mim má-lo em ser social e, partindo de tão
mesmo. Depois de tudo isso, sua vigi­ longe, trazer enfim o homem e o
lância amaina um pouco, um ruído mundo ao ponto em que o conhece­
imprevisto faz com que volte a cabeça, mos.
ando vinte passos em direção à flores­
ta, meus grilhões se quebram e ele 83 Essa crítica da teoria do direito do mais
forte visa Hobbes, que baseava o direito na
nunca mais me vê em toda a sua relação senhor-escravo. O vencido teme a
vida82. morte e prefere a sujeição à escravidão. Para
Rousseau, por um lado, esse temor e essa sujei­
82 Para que se estabeleça entre os homens, a ção só podem ser permanentes no estado de
desigualdade de poder carece de uma base real natureza; por outro lado, não é legítimo que os
que Rousseau propende a apontar na institui­ comprom issos assumidos devido ao temor
ção da propriedade, sem a qual o esforço des­ sejam obrigatórios. Toda a argumentação será
pendido na sujeição e vigia do semelhante retomada no Contrato Social, I, III, D o direito
escravizado não seria compensador, como do mais forte e da escravidão. (N . de P. A.-B.)
seria tê-lo a trabalhar numa acumulação de 84 Mau: no original, “méchant”: mau, vicia
bens em proveito do escravizador. (N .d e L. G. do, corrompido. Rousseau emprega igual­
M.) mente o termo dépravé. (N . de P. A.-B.)
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 265

Confesso que os acontecimentos que sibilidade de, por um lado, destruí­


tenho de descrever podendo sobrevir rem-se certas hipóteses, no caso de
de inúmeros modos, só por conjeturas estar-se, de outro lado, impossibilitado
posso decidir-me na escolha. Mas, de lhes atribuir o grau de certeza de
além dessas conjeturas se tornarem fato; sobre a razão pela qual, sendo
verdadeiras razões quando são as mais dois fatos considerados como bastante
prováveis que se possam extrair da reais para ligar uma seqüência de fatos
natureza das coisas e os únicos meios intermediários, desconhecidos ou con­
que se possa ter para descobrir a ver­ siderados como tais, cabe à história,
dade, as conseqüências que eu quero quando existe, apresentar os fatos que
deduzir das minhas conjeturas, por os ligam e porque, faltando a história,
isso não serão conjeturais, porquanto, à filosofia cabe determinar os fatos
sobre os princípios que acabo de semelhantes que podem ligá-los8 6, e
assentar não se poderia estabelecer porque, enfim, em matéria de aconteci­
qualquer outro sistema que me forne­ mentos, a semelhança reduz os fatos a
cesse os mesmos resultados e do qual um número de classes diferentes muito
pudesse inferir as mesmas conclusões8 5.
menor do que se imagina. Basta-me
Isso me dispensará de estender mi­
oferecer esses objetos à consideração
nhas reflexões sobre a maneira pela
qual o transcurso de tempo compensa de meus juizes; basta-me ter agido de
a pequena verossimilhança dos aconte­ modo a não terem os leitores vulgares
cimentos; sobre o poderio impressio­ necessidade de considerá-los.
nante de causas minúsculas quando
agem sem interrupção; sobre a impos- 8 6 Quando, pela falta de dados objetivos, uma
série histórica se mostra incompleta, a filosofia
pode e deve interpolar uma interpretação co e­
8 5 D o método evolutivo e conjetural não rente — eis outro ponto em que o moderno
resultam, pois, meras conjeturas, mas certezas historicismo foi inspirar-se em Rousseau. (N .
consoantes à realidade. (N . de L. G. M.) de L. G. M.)

Se g u n d a P arte

O verdadeiro fundador da sociedade dei-vos de ouvir esse impostor; estareis


civil8 7 foi o primeiro que, tendo cerca­ perdidos se esquecerdes que os frutos
do um terreno, lembrou-se de dizer isto são de todos e que a terra não pertence
é meu e encontrou pessoas suficiente­ a ninguém !” Grande é a possibilidade,
mente simples para acreditá-lo. Quan­ porém, de que as coisas já então tives­
tos crimes, guerras, assassínios, misé­ sem chegado ao ponto de não poder
rias e horrores não pouparia ao gênero mais permanecer como eram, pois essa
humano aquele que, arrancando as idéia de propriedade, dependendo de
estacas ou enchendo o fosso, tivesse muitas idéias anteriores que só pode­
gritado a seus semelhantes: “Defen- riam ter nascido sucessivamente, não
se formou repentinamente no espírito
8 7 Confrontar com o pensamento de Pascal: humano. Foi preciso fazer-se muitos
“ Este cão é meu, diziam essas pobres crianças;
esse é o meu lugar ao sol — aí está o com eço
progressos, adquirir-se muita indústria
e a imagem da usurpação de toda a terra”. (N . e luzes, transmiti-las e aumentá-las de
de P. A.-B) geração para geração, antes de chegar
266 ROUSSEAU

a esse último termo do estado de natu­ na carreira, vigoroso no combate. As


reza. Retomemos, pois, as coisas de armas naturais, que são os galhos de
mais longe ainda e esforcemo-nos por árvore e as pedras, logo se encon­
ligar, de um único ponto de vista, em traram em sua mão. Aprendeu a domi­
sua ordem mais natural, essa lenta nar os obstáculos da natureza, a com­
sucessão de acontecimentos e de co­ bater, quando necessário, os outros
nhecimentos88. animais, a disputar sua subsistência
O primeiro sentimento do homem com os próprios homens ou a compen­
foi o de sua existência, sua primeira sar-se daquilo que era preciso ceder ao
preocupação a de sua conservação. As mais forte.
produções da terra forneciam-lhe todos À medida que aumentou o gênero
os socorros necessários, o instinto humano, os trabalhos se multiplicaram
levou-o a utilizar-se deles. Como a com os homens. A diferença das terras,
fome e outros apetites o fizessem expe­ dos climas, das estações pôde forçá-los
rimentar sucessivamente novas manei­ a incluí-la na sua própria maneira de
ras de existir, houve um que o convi­ viver. Anos estéreis, invernos longos e
dou a perpetuar sua espécie e essa rudes, verões escaldantes, que tudo
tendência cega, desprovida de qualquer consomem, exigiram deles uma nova
sentimento do coração, não engendrou indústria. A margem do mar e do rio,
senão um pacto puramente animal; inventaram a linha e o anzol, e se tor­
uma vez satisfeita a necessidade, os naram pescadores e ictiófagos. Nas
dois sexos não se reconheciam mais e florestas, construíram arcos e flechas,
o próprio filho, assim que podia viver e se tornaram caçadores e guerreiros.
sem a mãe, nada mais significava para Nas regiões frias, cobriam-se com as
ela. peles dos animais que tinham matado.
Essa foi a condição do homem nas­ O trovão, um vulcão ou qualquer
cente; essa foi a vida de um animal acaso feliz, fez com que conhecessem o
limitado inicialmente às sensações fogo, novo recurso contra os rigores do
puras que, tão-só se aproveitando dos inverno; aprenderam a conservar esse
dons que a natureza lhe oferecia, longe elemento, depois a reproduzi-lo e, por
estava de pensar em arrancar-lhes al­ fim, a preparar as carnes que antes
guma coisa. Mas logo surgiram dificul­ devoravam cruas.
dades e impôs-se aprender a vencê-las; Essa adequação reiterada dos vários
a altura das árvores, que o impedia de seres a si mesmos e de uns a outros
alcançar os frutos, a concorrência dos levou, naturalmente, o espírito do
animais que procuravam nutrir-se homem a perceber certas relações.
deles, a ferocidade daqueles que lhe Essas relações, que exprimimos pelas
ameaçavam a própria vida, tudo o palavras grande, pequeno, forte, rápi­
obrigou a entregar-se aos exercícios do do, lento, medroso, ousado e outras
corpo; foi preciso tornar-se ágil, rápido idéias semelhantes, comparadas aó
azar da necessidade e quase sem pen­
88 Todo esse parágrafo apresenta a tese prin­ sar nisso, acabaram por produzir-lhe
cipal do D iscurso, cuja apresentação fora pre­ uma certa espécie de reflexão, ou
parada pela I Parte, onde já a tínhamos esbo­ melhor, uma prudência maquinal, que
çado na indicação relativa à dependência entre lhe indicava as precauções mais neces­
a desigualdade de poder e a desigualdade de
posses (Cf. nota 81 supra). Explicitamente
sárias à sua segurança.
enunciada, a tese terá agora indicados seus As novas luzes, que resultaram
porquês histórico-evolutivos. (N . de L. G. M.) desse desenvolvimento, aumentaram
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE

sua superioridade sobre os demais ani­ Ensinando-lhe a experiência sor o


mais, dando-lhe consciência dela. amor ao bem-estar o único móvel <ias
Aplicou-se a preparar-lhes armadilhas, ações humanas, encontrou-se em situ a
revidou-lhes os ataques de mil manei­ ção de distinguir as situações r a ra s em
ras e, embora inúmeros deles o sobre- que o interesse comum poderia faze lo
passassem em força no combate ou em contar com a assistência de seus seme
rapidez na corrida, daqueles que pode­ lhantes e aquelas, mais raras ainda, em
riam servi-lo ou nutri-lo veio a tornar- que a concorrência deveria fazer com
se, com o tempo, o senhor de uns e o que desconfiasse deles. N<> primeiro
flagelo de outros. Assim, o primeiro caso, unia-se a eles cm bandos ou,
olhar que lançou sobre si mesmo quando muito, em qualquer tipo dc
produziu-lhe o primeiro movimento de associação livre, que não obrigava nin­
orgulho; assim, apenas distin­ guém, e só durava quanto a necessi­
guindo as categorias por considerar-se dade passageira que a reunira. No
o primeiro por sua espécie, dispôs-se segundo caso. cada um procurava
desde logo a considerar-se o primeiro obter vantagens do melhor modo, seja
como indivíduo. abertamente, se acreditava poder agir
Embora seus semelhantes não fos­ assim, seja por habilidade e sutileza,
sem para ele o que são para nós e não caso se sentisse mais fraco.
tivesse mais comércio com eles do que Eis como puderam os homens insen
com os outros animais, não foram sivelmente adquirir certa idéia gros­
esquecidos nas suas observações. As seira dos compromissos mútuos e da
conformidades, que o tempo pôde vantagem de respeitá-los, mas somente
fazê-lo perceber entre eles, sua fêmea e tanto quanto poderia exigi-lo o inte­
sua própria pessoa, levaram-no a ajui­ resse presente e evidente, posto que
zar aquelas que não percebia e, vendo para eles não existia a providência e.
que todos se comportavam como teria longe de se preocuparem com um futu­
feito em circunstâncias idênticas, con­ ro distante, não pensavam nem mesmo
cluiu que suas maneiras de pensar e de no dia de amanhã. Se era caso dc agar
sentir eram inteiramente conformes à rar um veado, cada um sentia que para
sua. Uma vez bem estabelecida em seu tanto devia ficar no seu lugar, mas, se
espírito, essa importante verdade le­ uma lebre passava ao alcance de um
vou-o a seguir, por meio de um deles, não há dúvida de que ele a perse­
pressentimento tão seguro e mais rápi­ guiria sem escrúpulos e, tendo alcan
do do que a dialética, as melhores re­ çado a sua presa, pouco se lhe dava
gras de conduta que, para seu proveito faltar a dos companheiros.
e segurança, achou melhor manter Facilmente se compreende que um
para com eles89. tal comércio não exigia uma lingua­
gem muito mais rebuscada do que a
89 Aqui se esclarece um dos aspectos do das gralhas ou dos macacos que se reú­
muito discutido e nem sempre bem formulado
antirracionalismo de Rousseau. M enos do que
nem quase do mesmo modo. Gritos
adverso à razão, recusa-se ele a conceber for­ inarticulados, muitos gestos e alguns
mas superiores e inferiores do conhecimento ruídos imitativos compuseram durante
— o mais rudimentar empirismo equivale, em muito tempo a língua universal; jun­
eficácia prática, à melhor dialética do ilumi- tando-se-lhes, em cada região, alguns
nismo. E o conhecimento só pode servir para
conduzir o homem na vida, jam ais cabendo sons articulados e convencionais —
justificá-lo com o um fim em si, à maneira dos cuja instituição, como já disse, não é
enciclopedistas. (N . de L. G. M.) muito fácil explicar — , obtiveram-se
268 ROUSSEAU

línguas particulares, porém grosseiras, como o amor conjugal e o amor pater­


imperfeitas, quase como as que até no. Cada família tornou-se uma peque­
hoje possuem várias nações selvagens. na sociedade, ainda mais unida por
Salto multidões de séculos, forçado serem a afeição recíproca e a liberdade
pelo tempo que decorre, pela abun­ os únicos liames e, então, se estabe­
dância das coisas que tenho a dizer e leceu a primeira diferença no modo de
pelo progresso quase insensível desses viver dos dois sexos, que até aí nenhu­
preliminares, pois, quanto mais lentos ma apresentavam. As mulheres torna­
são os acontecimentos em sua suces­ ram-se mais sedentárias e acostuma­
são, tanto mais prontos para serem ram-se a tomar conta da cabana e dos
descritos. filhos, enquanto os homens iam procu­
Esses primeiros progressos puseram rar a subsistência comum. Os dois
por fim o homem à altura de conseguir sexos começaram, assim, por uma via
outros mais rápidos. Quanto mais um pouco mais suave, a perder alguma
esclarecia o espírito, mais se aperfei­ coisa de sua ferocidade e de seu vigor.
çoava a indústria. Logo, deixando de Mas, se cada um em separado tornou-
adormecer sob a primeira árvore, ou se menos capaz de combater as bestas
de recolher-se a cavernas, encontrou selvagens, em compensação foi mais
alguns tipos de machados de pedra fácil reunirem-se para resistirem em
duros e cortantes, que serviam para comum.
cortar lenha, cavar a terra e fazer Nesse novo estado, numa vida sim­
choupanas de ramos, que logo resolveu ples e solitária, com necessidades
cobrir de argila e de lama. A essa muito limitadas e os instrumentos que
época se prende uma primeira revolu­ tinham inventado para satisfazê-las, os
ção que determinou o estabelecimento homens, gozando de um lazer bem
e a distinção das famílias e que intro­ maior, empregaram-no na obtenção de
duziu uma espécie de propriedade da inúmeras espécies de comodidades des­
qual nasceram talvez brigas e comba­ conhecidas por seus antepassados; foi
tes. No entanto, como os mais fortes o primeiro jugo que, impensadamente,
possivelmente foram os primeiros a impuseram a si mesmos e a primeira
fazer habitações que se sentiam capa­ fonte de males que prepararam para
zes de defender, é de crer que os fracos seus descendentes, pois, além de assim
acharam mais rápido e seguro imitá- continuarem a enfraquecer o corpo e o
los do que tentar desalojá-los e, quanto espírito, essas comodidades, perdendo
aos que já possuíam cabanas, nenhum pelo hábito quase todo o seu deleite e
deles certamente procurou apropriar-se degenerando ao mesmo tempo em
da de seu vizinho, menos por não lhe verdadeiras necessidades, a privação
pertencer do que por ser-lhe inútil e se tornou muito mais cruel do que doce
não poder apossar-se dela sem expor- fora sua posse, e os homens sentiam-se
se a um combate violento com a famí­ infelizes por perdê-las, sem terem sido
lia ocupante. felizes por possuí-las.
Os primeiros progressos do coração Nesse ponto, podemos entrever um
resultaram de uma situação nova que pouco melhor como o uso da palavra
reunia numa habitação comum os se estabeleceu ou se aperfeiçoou insen­
maridos e as mulheres, os pais e os sivelmente no seio de cada família e
filhos. O hábito de viver junto fez com pode-se ainda conjeturar como várias
que nascessem os mais doces senti­ causas particulares puderam aumentar
mentos que são conhecidos do homem, a linguagem e acelerar seu progresso.
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 269

tornando-se assim mais necessária. xões recebe sacrifícios de sangue hu­


Grandes inundações ou tremores de mano.
terra cercaram com água ou com A medida que as idéias e os senti­
precipícios regiões habitadas; revolu­ mentos se sucedem, que o espírito e o
ções do globo separaram e cortaram coração entram em atividade, o gênero
em ilhas porções do continente. Conce­ humano continua a domesticar-se, as
be-se que, entre homens aproximados ligações se estendem e os laços se aper­
desse modo e forçados a viver juntos, tam. Os homens habituaram-se a reu­
teve de formar-se um idioma comum, nir-se diante das cabanas ou em torno
mais facilmente do que entre aqueles de uma árvore grande; o canto e a
que erravam livremente nas florestas dança, verdadeiros filhos do amor e do
da terra firme. Portanto, é muito possí­ lazer, tornaram-se a distração, ou
vel que, depois de suas primeiras tenta­ melhor, a ocupação dos homens e das
tivas de navegação, alguns insulares te­ mulheres ociosos e agrupados. Cada
nham trazido até nós o uso da palavra um começou a olhar os outros e a
e é pelo menos bastante verossímil que desejar ser ele próprio olhado, pas­
a sociedade e as línguas tenham nasci­ sando assim a estima pública a ter um
do nas ilhas e aí se aperfeiçoado antes preço. Aquele que cantava ou dançava
de serem conhecidas no continente. melhor, o mais belo, o mais forte, o
mais astuto ou o mais eloqüente, pas­
Tudo começa a mudar de aspecto.
sou a ser o mais considerado, e foi esse
Até então errando nos bosques, os
o primeiro passo tanto para a desigual­
homens, ao adquirirem situação mais
dade quanto para o vício; dessas pri­
fixa, aproximam-se lentamente e por
meiras preferências nasceram, de um
fim formam, em cada região, uma
lado, a vaidade e o desprezo, e, de
nação particular, una de costumes e outro, a vergonha e a inveja. A fermen­
caracteres, não por regulamentos e tação determinada por esses novos ger­
leis, mas, sim, pelo mesmo gênero de mes produziu, por fim, compostos
vida e de alimentos e pela influência funestos à felicidade e à inocência.
comum do clima. Uma vizinhança per­ Assim que os homens começaram a
manente não pode deixar de, afinal, apreciar-se mutuamente e se lhes for­
engendrar algumas ligações entre as mou no espírito a idéia de considera­
famílias. Jovens de sexo diferente habi­ ção, cada um pretendeu ter direito a
tam cabanas vizinhas; o comércio ela e a ninguém foi mais possível dei­
passageiro, exigido pela natureza, logo xar de tê-la impunemente. Saíram daí
induz a outro, não menos agradável e os primeiros deveres de civilidade,
mais permanente, pela freqüentação mesmo entre os selvagens, e por isso
mútua. Acostumam-se a considerar os toda afronta voluntária tornou-se um
vários objetos e a fazer comparações; ultraje porque, junto com o mal que
insensivelmente, adquirem-se idéias de resultava da injúria ao ofendido, este
mérito e de beleza, que produzem nela via desprezo pela sua pessoa,
sentimentos de preferência. À força de freqüentemente mais insuportável do
se verem, não podem mais deixar de que o próprio mal. Eis como, cada um
novamente se verem. Insinua-se na punindo o desprezo que lhe dispen­
alma um sentimento terno e doce, e, à savam proporcionalmente à impor­
menor oposição, nasce um furor impe­ tância que se atribuía, as vinganças
tuoso; com o amor surge o ciúme, a tornaram-se tremendas e os homens
discórdia triunfa e a mais doce das pai­ sanguinários e cruéis. Aí está precisa­
270 ROUSSEAU

mente o grau a que chegara a maioria os homens se tornassem menos tole­


dos povos selvagens que conhece­ rantes e a piedade natural já sofresse
mos90 e, por não ter distinguido certa alteração, esse período de desen­
suficientemente as idéias e observado volvimento das faculdades humanas,
como os povos já estavam longe do ocupando uma posição média exata
primeiro estado de natureza, inúmeras entre a indolência do estado primitivo
pessoas apressaram-se a concluir ser o e a atividade petulante de nosso amor-
homem naturalmente cruel e ter neces­ próprio, deve ter sido a época mais
sidade de polícia para abrandar-se. feliz e a mais duradoura. Mais se refle­
Ora, nada é mais meigo do que o te sobre isso e mais se conclui que esse
homem em seu estado primitivo, quan­ estado era o menos sujeito às revolu­
do, colocado pela natureza a igual dis­ ções, o melhor para o homem (p), que
tância da estupidez dos brutos e das certamente saiu dele por qualquer
luzes funestas do homem civil, e com­ acaso funesto que, para a utilidade
pelido tanto pelo instinto quanto pela comum, jamais deveria ter acontecido.
razão a defender-se do mal que o O exemplo dos selvagens, que foram
ameaça, é impedido pela piedade natu­ encontrados quase todos nesse ponto,
ral de fazer mal a alguém sem ser a parece confirmar que o gênero humano
isso levado por alguma coisa ou era feito para sempre nele permanecer,
mesmo depois de atingido por algum que esse estado é a verdadeira juven­
mal. Porque, segundo o axioma do tude do mundo91 e que todos os pro­
sábio Locke, “não haveria afronta se gressos ulteriores foram, aparente­
não houvesse propriedade” . mente, outros tantos passos para a
É preciso observar, porém, que a perfeição do indivíduo e, efetivamente,
sociedade iniciada e as relações já para a decrepitude da espécie.
estabelecidas entre os homens exigiam Enquanto os homens se conten­
deles qualidades diversas daquelas que taram com suas cabanas rústicas,
deviam à sua constituição primitiva; enquanto se limitaram a costurar com
que começando a moralidade a intro­ espinhos ou com cerdas suas roupas de
duzir-se nas ações humanas, e consti­ peles, a enfeitar-se com plumas e con­
tuindo cada um perante as leis o único chas, a pintar o corpo com várias
juiz e vingador das ofensas que rece­ cores, a aperfeiçoar ou embelezar seus
bia, a bondade que convinha ao estado arcos e flechas, a cortar com pedras
puro de natureza não era mais a que agudas algumas canoas de pescador ou
convinha à sociedade nascente; que as alguns instrumentos grosseiros de mú­
punições se tornavam mais severas à sica — em uma palavra: enquanto só
medida que as ocasiões de ofensa se se dedicaram a obras que um único
tornavam mais freqüentes e que cabe­ homem podia criar, e a artes que não
ria ao terror das vinganças ocupar o solicitavam o concurso de várias
lugar de freio das leis. Assim, embora mãos, viveram tão livres, sadios, bons
e felizes quanto o poderiam ser por sua
90 Rousseau distingue, implicitamente, duas natureza, e continuaram a gozar entre
espécies de selvagens: 1) os bons selvagens,
que conservaram a simplicidade do estado de
si das doçuras de um comércio inde-
natureza original — seriam antes “primiti­
vos” ; 2) os maus selvagens, que aprenderam os 91 A expressão é de Lucrécio, D a Natureza,
vícios da corrupção social sem equilibrá-los Livro V. O tema é uma retomada daquele que
com as vantagens da civilização — seriam Rousseau desenvolveu ao começar a primeira
antes “bárbaros”. (N. de P. A.-B.) parte. (N . de P. A.-B.)
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 271

pendente; mas, desde o instante em que matérias metálicas em fusão, deu aos
um homem sentiu necessidade do so­ observadores a idéia de imitar essa
corro de outro, desde que se percebeu operação da natureza. Precisa-se ainda
ser útil a um só contar com provisões supor, nesses observadores, muita co­
para dois, desapareceu a igualdade, ragem e previdência para empreender
introduziu-se a propriedade, o trabalho um trabalho tão penoso e imaginar,
tornou-se necessário e as vastas flores­ com tal antecedência, as vantagens que
tas transformaram-se em campos apra­ dele poderiam tirar, coisa que só tenta­
zíveis que se impôs regar com o suor riam espíritos já mais desenvolvidos
dos homens e nos quais logo se viu a do que esses deveriam ser.
escravidão e a miséria germinarem e Quanto à agricultura, conheceu-se o
crescerem com as colheitas. princípio muito antes de ser a prática
A metalurgia e a agricultura foram estabelecida e absolutamente não é
as duas artes cuja invenção produziu possível que os homens, ocupados
essa grande revolução. Para o poeta continuamente em obter sua subsis­
foram o ouro e a prata, mas para o tência das árvores e das plantas, não
filósofo foram o ferro e o trigo que formassem rapidamente a idéia das
civilizaram os homens e perderam o vias empregadas pela natureza para a
gênero humano. Um e outro eram tam­ geração dos vegetais; sua indústria,
bém desconhecidos dos selvagens da porém, só muito tarde voltou-se para
América que, por isso, sempre perma­ esse lado, seja porque as árvores, que,
neceram nesse estado; os outros povos juntamente com a caça e a pesca, for­
parecem ter continuado ainda bárba­ neciam sua alimentação, não necessi­
ros enquanto praticaram uma dessas tavam de seus cuidados, seja por falta
artes sem a outra. E talvez uma das de conhecer o uso do trigo, ou, ainda,
melhores razões por que a Europa foi, por falta de instrumentos para cultivá-
senão mais cedo, pelo menos mais lo, por não preverem uma necessidade
constantemente e melhor policiada do futura ou, afinal, por falta de meios
que as outras partes do mundo, é ser para impedir os outros de se apro­
ela, ao mesmo tempo, a mais abun­ priarem do fruto de seu trabalho.
dante em ferro e a mais fértil em trigo. Tornando-se mais industriosos, pode-
É muito difícil conjeturar como os se imaginar que, com pedras agudas e
homens chegaram a conhecer e a paus pontudos, começaram a cultivar
empregar o ferro, pois não é crível que à volta de sua cabana alguns legumes
tenham imaginado por si mesmos ou raízes muito antes de saber prepa­
extrair a matéria da mina e dar-lhe o rar o trigo e de contar com instru­
preparo necessário para pô-la em mentos necessários para a cultura em
fusão, antes de saber o que resultaria grande escala, mesmo sem levar em
disso. Por outro lado, menos ainda se consideração que, para dedicar-se a
poderá atribuir essa descoberta a essa ocupação e semear as terras, é
algum incêndio acidental, posto que as preciso inicialmente resolver-se a per­
minas se formam em lugares áridos e der alguma coisa para depois ganhar
desprovidos de árvores e de plantas, mais — preocupação muito distan­
podendo-se até imaginar que a natu­ ciada da tendência de espírito de um
reza tomara precauções para escon­ homem selvagem que, como disse,
der-nos esse segredo fatal. Não resta, sente muita dificuldade para, de
pois, senão a circunstância extraordi­ manhã, pensar nas necessidades da
nária de algum vulcão que, vomitando noite.
272 ROUSSEAU

A invenção das outras artes foi, em sua honra o nome de Tesmofo-


pois, necessária para forçar o gênero ria92, com isso quiseram dar a enten­
humano a dedicar-se à arte agrícola. der ter a partilha das terras produzido
Desde que se tòrnaram necessários ho­ uma nova espécie de direito, isto é, o
mens para fundir e forjar o ferro, preci­ direito de propriedade, diverso daquele
sou-se de outros para alimentar a estes. resultante da lei natural93.
Na medida em que se multiplicou o nú­ Estando as coisas nesse estado, te­
mero de trabalhadores, menos mãos riam assim continuado se os talentos
houve para atender à subsistência fossem iguais e se, por exemplo, o
comum, sem que com isso houvesse emprego de ferro e a consumação dos
menos bocas para consumi-la, e, como alimentos sempre estivessem em exato
uns precisaram de comestíveis em equilíbrio. Mas a proporção, que nada
troca do ferro, outros por fim encon­ mantinha, logo se rompeu; os mais for­
traram o segredo de empregar o ferro tes realizavam mais trabalho, o mais
na multiplicação dos comestíveis. Nas­ habilidoso tirava mais partido do seu,
ceram assim, de um lado, a lavoura e a o mais engenhoso encontrava meios
agricultura e, de outro, a arte de prepa­ para abreviar a faina, o lavrador sentia
rar os metais e de multiplicar-lhes o mais necessidade de ferro ou o ferreiro
emprego. mais necessidade de trigo e, traba­
Da cultura de terras resultou neces­ lhando igualmente, um ganhava muito
sariamente a sua partilha e, da proprie­ enquanto outro tinha dificuldade de
dade, uma vez reconhecida, as primei­ viver. Assim, a desigualdade natural
ras regras de justiça, pois, para dar a insensivelmente se desenvolve junto
cada um o que é seu, é preciso que com a desigualdade de combinação, e
cada um possua alguma coisa; além as diferenças entre os homens, desen­
disso, começando os homens a alongar volvidas pelas diferenças das circuns­
suas vistas até o futuro e tendo todos a tâncias, se tornam mais sensíveis, mais
noção de possuírem algum bem passí­
vel de perda, nenhum deixou de temer 92 Dizia-se Ceres Tesmófora, isto é, legisla­
a represália dos danos que poderia dora, a fim de lembrar que ela revelara aos
causar a outrem. Essa origem mostra­ humanos a arte da agricultura. A s tesmoforias,
festas anuais em sua homenagem, só podiam
se ainda mais natural, por ser impos­ ser celebradas pelas mulheres. (N . de P. A.-B.)
sível conceber a idéia da propriedade 93 Não se deve aferir os dados de Rousseau
nascendo de algo que não a mão-de- pela moderna antropologia cultural. Se tal
obra, pois não se compreende como, fizéssem os, o melhor que nosso autor poderia
para apropriar-se de coisas que não oferecer seriam simples pressentimentos, não
raro desmentidos pelas observações posterio­
produziu, o homem nisso conseguiu res, embora indicando distinções que mais
pôr mais do que o seu trabalho. tarde se precisariam, com o essa dos bárbaros
Somente o trabalho, dando ao cultiva­ compreendidos com o povos em estágio d e cul­
dor um direito sobre o produto da terra tura diferente dos primitivos. Mas, se tais
pressentimentos puderem interessar ao leitor
que ele trabalhou, dá-lhe conseqüen­ moderno, melhor fará ele atentando para cer­
temente direito sobre a gleba pelo tas intuições verdadeiramente geniais de R ous­
menos até a colheita, assim sendo cada seau, entre as quais avulta a desta passagem
ano; por determinar tal fato uma posse sobre a relação entre trabalho e propriedade,
contínua, transforma-se facilmente em tema fundamental da econom ia e sociologia do
século X IX e, também, da política moderna.
propriedade. Quando os antigos, diz Cabe sublinhar a importância da noção num
Grócio, emprestaram a Ceres o epíteto trabalho dedicado ao problema da desigual­
de legisladora e a uma festa celebrada dade. (N . de L. G. M.)
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 273

permanentes em seus efeitos e, em dos quais num certo sentido se torna


idêntica proporção, começam a influir escravo, mesmo quando se torna se­
na sorte dos particulares. nhor: rico, tem necessidade de seus ser­
Tendo as coisas chegado a tal viços; pobre, precisa de seu socorro, e
ponto, facilmente se imagina o resto. a mediocridade não o coloca em situa­
Não me deterei descrevendo a inven­ ção de viver sem eles. É preciso, pois,
ção sucessiva das outras artes, o pro­ que incessantemente procure interes­
gresso das línguas, o ensaio e o empre­ sá-los pelo seu destino e fazer com que
go dos talentos, a desigualdade das achem, real ou aparentemente, residir
fortunas, o uso e o abuso das riquezas, o lucro deles em trabalharem para o
nem todos os detalhes complementares seu próprio. Isso faz com que seja falso
que cada qual pode sem esforço imagi­ e artificioso para com uns, e, para com
nar. Limitar-me-ei unicamente a lançar outros, imperativo e duro, e o coloca
um golpe de vista sobre o gênero hu­ na contingência de iludir a todos aque­
mano posto na nova ordem de coisas. les de que necessita, quando não pode
Eis, pois, todas as nossas faculdades fazer-se temer por eles ou não consi­
desenvolvidas, a memória e a imagina­ dera de seu interesse ser-lhes útil. Por
ção em ação, o amor-próprio interes­ fim, a ambição devoradora, o ardor de
sado, a razão em atividade, alcan­ elevar sua fortuna relativa, menos por
çando o espírito quase que o termo da verdadeira necessidade do que para
perfectibilidade de que é suscetível. Aí colocar-se acima dos outros, inspira a
estão todas as qualidades naturais pos­ todos os homens uma negra tendência
tas em ação, estabelecidos a posição e a prejudicarem-se mutuamente, uma
o destino de cada homem, não somente inveja secreta tanto mais perigosa
quanto à quantidade dos bens e o quanto, para dar seu golpe com maior
poder de servir ou de ofender, mas segurança, freqüentemente usa a más­
também quanto ao espírito, à beleza, à cara da bondade; em uma palavra, há,
força e à habilidade, quanto aos méri­ de um lado, concorrência e rivalidade,
tos e aos talentos e, sendo tais qualida­ de outro, oposição de interesses e, de
des as únicas que poderiam merecer ambos, o desejo oculto de alcançar lu­
consideração, precisou-se desde logo cros a expensas de outrem. Todos esses
tê-las ou afetar possuí-las. Para pro­ males constituem o primeiro efeito da
veito próprio, foi preciso mostrar-se propriedade e o cortejo inseparável da
diferente do que na realidade se era. desigualdade nascente.
Ser e parecer tornaram-se duas coisas Antes que se tivessem inventado os
totaímente diferentes94. Dessa distin­ sinais representativos das riquezas,
ção resultaram o fausto majestoso, a elas só podiam consistir em proprie­
astúcia enganadora e todos os vícios dades e animais, os únicos bens reais
que lhes formam o cortejo. Por outro que os homens podiam possuir. Ora,
lado, o homem, de livre e independente quando as heranças cresceram em nú­
que antes era, devido a uma multidão mero e em extensão, a ponto de cobrir
de novas necessidades passou a estar todo o solo, e tocaram-se umas às
sujeito, por assim dizer, a toda a natu­ outras, uns só puderam prosperar a
reza e, sobretudo, a seus semelhantes expensas dos outros, e os supranume­
rários, que a fraqueza ou a indolência
tinham impedido por seu turno de as
9 4 Comparar com o primeiro discurso, com e­
ço da primeira parte, sobre os malefícios da adquirir, tendo se tornado pobres sem
polidez. (N . de P. A.-B.) nada ter perdido, porque, tudo mudan­
274 ROUSSEAU

do à sua volta, somente eles não muda­ tenham, afinal, refletido sobre tão
ram, viram-se obrigados a receber ou miserável situação e as calamidades
roubar sua subsistência da mão dos que os afligiam. Os ricos, sobretudo,
ricos. Daí começaram a nascer, segun­ com certeza logo perceberam quanto
do os vários caracteres de uns e de lhes era desvantajosa uma guerra per­
outros, a dominação e a servidão, ou a pétua cujos gastos só eles pagavam e
violência e os roubos. Os ricos, de sua na qual tanto o risco da sua vida como
parte, nem bem experimentaram o pra­ o dos bens particulares eram comuns.
zer de dominar, logo desdenharam Aliás, qualquer que fosse a interpre­
todos os outros e, utilizando seus anti­ tação que pudessem dar às suas usur­
gos escravos para submeter outros, só pações, sabiam muito bem estarem
pensaram em subjugar e dominar seus estas apoiadas unicamente num direito
vizinhos, como aqueles lobos famintos precário e abusivo e que, tendo sido
que, uma vez comendo carne humana, adquiridas apenas pela força, esta
recusam qualquer outro alimento e só mesma poder-lhes-ia arrebatá-las sem
querem devorar homens. que pudessem lamentar-se. Os enrique­
Assim, os mais poderosos ou os cidos só pela indústria não podiam ba­
mais miseráveis, fazendo de suas for­ sear sua propriedade em melhores títu­
ças ou de suas necessidades uma espé­ los. Por mais que dissessem: “ Fui eu
cie de direito ao bem alheio, equiva­ quem construiu este muro; ganhei este
lente, segundo eles, ao de propriedade, terreno com meu trabalho”, outros
seguiu-se à rompida igualdade a pior poderiam responder-lhes: “Quem vos
desordem; assim as usurpações dos deu as demarcações, por que razão
ricos, as extorções dos pobres, as pai­ pretendeis ser pagos a nossas expensas,
xões desenfreadas de todos, abafando a de um trabalho que não vos impuse­
piedade natural e a voz ainda fraca da mos? Ignorais que uma multidão de
justiça, tornaram os homens avaros, vossos irmãos perece e sofre a necessi­
ambiciosos e maus. Ergueu-se entre o dade do que tendes a mais e que vos
direito do mais forte e o do primeiro seria necessário um consentimento ex­
ocupante um conflito perpétuo que ter­ presso e unânime do gênero humano
minava em combates e assassinatos para que, da subsistência comum, vos
(q). A sociedade nascente foi colocada apropriásseis de quanto ultrapassasse
no mais tremendo estado de guerra; o a vossa?” Destituído de razões legíti­
gênero humano, aviltado e desolado, mas para justificar-se e de forças sufi­
não podendo mais voltar sobre seus cientes para defender-se, esmagando
passos nem renunciar às aquisições com facilidade um particular, mas
infelizes que realizara, ficou às portas sendo ele próprio esmagado por gru­
da ruína por não trabalhar senão para pos de bandidos, sozinho contra todos
sua vergonha, abusando das faculda­ e não podendo, dados os ciúmes mú­
des que o dignificam. tuos, unir-se com seus iguais contra os
inimigos unidos pela esperança
Attonitus novitate mali, divesque, mi- comum da pilhagem, o rico, forçado
[serque
Effugere optat opes, et quae modo vo- 9 5 “Tom ados de estupor com a novidade do
[verat odit9 5 mal, tanto o rico quanto o pobre desejam esca­
par às riquezas e maldizem aquilo que um ins­
Ovídio, Metamorfoses, XI, v. 127 tante atrás invocaram com seus votos.” Oví­
dio, M etam orfoses, X I, verso 127, citado por
Não é possível que os homens não Montaigne, Ensaios, II, XII. (N . de P.A. -B.)
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 275

pela necessidade, acabou concebendo res mútuos o poderoso e o fraco, repa­


o projeto que foi o mais excogitado rem de certo modo os caprichos da for­
que até então passou pelo espírito tuna. Em uma palavra, em lugar de
humano. Tal projeto consistiu em voltar nossas forças contra nós mes­
empregar em seu favor as próprias for­ mos, reunamo-nos num poder supremo
ças daqueles que o atacavam, fazer de que nos governe segundo sábias leis,
seus adversários seus defensores, inspi­ que protejam e defendam todos os
rar-lhes outras máximas e dar-lhes ou­ membros da associação, expulsem os
tras instituições que lhe fossem tão inimigos comuns e nos mantenham em
favoráveis quanto lhe era contrário9 6 concórdia eterna” .
o direito natural. Fora preciso muito menos do que o
Com esse desígnio, depois de expor equivalente desse discurso para arras­
a seus vizinhos o horror de uma situa­ tar homens grosseiros, fáceis de sedu­
ção que os armava, a todos, uns contra zir, que aliás tinham questões para des­
os outros, que lhes tornava as posses lindar entre si, que não podiam
tão onerosas quanto o eram suas dispensar árbitros e possuíam dema­
necessidades, e na qual ninguém en­ siada ambição para poder por muito
contrava a segurança, fosse na pobreza tempo dispensar os senhores. Todos
ou na riqueza, inventou facilmente correram ao encontro de seus gri­
razões especiosas para fazer com que lhões9 7, crendo assegurar sua liberda­
aceitassem seu objetivo: “Unamo- de, pois, com muita razão98 reconhe­
nos”, disse-lhes, “para defender os fra­ cendo as vantagens de um
cos da opressão, conter os ambiciosos estabelecimento político, não conta­
e assegurar a cada um a posse daquilo vam com a suficiente experiência para
que lhe pertence; instituamos regula­ prever-lhe os perigos: os mais capazes
mentos de justiça e de paz, aos quais de pressentir os abusos eram precisa­
todos sejam obrigados a conformar-se, mente aqueles que contavam aprovei­
que não abram exceção para ninguém tar-se deles, e até os prudentes com­
e que, submetendo igualmente a deve- preenderam a necessidade de
resolverem-se a sacrificar parte de sua
96 Na verdade, o contrato social é mais van­
tajoso para os ricos, cujos bens garante, do que
liberdade para conservar a do outro,
para os pobres, aos quais nada mais oferece do como um ferido manda cortar um
que a segurança da pessoa. Cf. C ontrato braço para salvar o resto do corpo.
Social, I, IX: “O mais singular dessa alienação Tal foi ou deveu ser a origem da
é que, aceitando a comunidade os bens dos sociedade e das leis, que deram novos
particulares, Jonge de despojá-los, não faz
senão com isso assegurar a posse legítima, entraves ao fraco e novas forças ao
cambiando a usurpação por um direito verda­ rico (r), destruíram irremediavelmente
deiro, e o gozo pela propriedade”. Igualmente a liberdade natural, fixaram para sem­
Rousseau aplicará à fórmula de tal contrato pre a lei da propriedade e da desigual-
uma importante refutação: todo bem que não é
efetivamente trabalhado por seu possuidor, ou
cujo uso interessa à comunidade, pode ser 9 7 Chegamos ao passo em que o Contrato S o ­
definitivamente alienado. Impõe-se com ­ cial encontrará seu ponto de partida: “ O
preender que, neste passo, Rousseau critica a homem nasceu livre e em todas as partes
idéia — exprimida por Diderot no artigo D i encontra-se a ferros” . (N . de P. A.-B.)
reito N atural — dum tratado social,ditado pe 98 Hobbes e Locke já haviam observado que
la!natureza,duma sociedade geral do gênero hu a razão trabalhava por incitação da necessi­
mano. O verdadeiro contrato social é coisa bem dade de segurança e que permitia a realização
diversa. Cf. M anuscrito de Genebra, cap.II,que da passagem do estado de natureza para o es­
critica explicitamente Diderot. (N . de P. A.-B.) tado social. (N . de P. A.-B.)
276 ROUSSEAU

dade, fizeram de uma usurpação sagaz esses grandes corpos do que fora,
um direito irrevogável e, para lucro de antes, entre os indivíduos dos quais se
alguns ambiciosos, daí por diante compunham. Daí nasceram as guerras
sujeitaram todo o gênero humano ao nacionais, as batalhas, os assassinatos,
trabalho, à servidão e àm iséria. Vê-se, as represálias que levam a natureza a
com facilidade, como o estabeleci­ agitar-se e chocam a razão, e todos
mento de uma única sociedade tornou
esses preconceitos horríveis que consi­
indispensável o de todas as outras e deram como virtude a honra de derra­
como foi preciso se unirem, por sua
mar o sangue humano. As pessoas de
vez, para enfrentar forças conjuntas.
As sociedades, multiplicando-se ou bem passaram a incluir entre seus
deveres o de degolar seus semelhantes;
estendendo-se rapidamente, logo cobri­
ram toda a superfície da terra e não viu-se, por fim, os homens se massa­
crarem aos milhares sem saber por que
mais se pôde encontrar um único
ponto do universo em que se conse­ e cometeram-se mais assassinatos num
guisse escapar ao jugo e subtrair-se ao só dia de combate e mais horrores na
gládio, freqüentemente mal dirigido, tomada de uma única cidade do que se
que cada homem perpetuamente pas­ cometera, no estado de natureza, em
sou a ver suspenso sobre a sua cabeça. toda a face da terra, durante séculos
Tornando-se, deste modo, o direito inteiros. Tais são os primeiros efeitos
civil a regra comum dos cidadãos, a lei que se discernem na divisão do gênero
natural só encontrou lugar, entre as humano em diferentes sociedades. Vol­
diversas so cied ad es", onde, sob o temos à sua instituição.
nome de direito das gentes, foi mode­ Sei que muitos atribuíram outras
rada por algumas convenções tácitas origens às sociedades políticas, como
para tornar o comércio possível e fazer as conquistas do mais potente ou a
as vezes da comiseração natural que, união dos fracos. A escolha entre essas
perdendo entre as sociedades quase causas é indiferente ao que desejo esta­
toda a força que tinha entre os homens, belecer; no entanto, à que acabo de
só reside ainda em algumas grandes expor me parece a mais natural pelas
almas cosmopolitas capazes de trans­ seguintes razões: 1.° porque, no pri­
por as barreiras imaginárias que sepa­ meiro caso, não sendo o direito de con­
ram os povos e, a exemplo do ser sobe­ quista, de modo algum, um direito, não
rano que os criou, agasalham todo o
gênero humano na sua benevolên­ 100 C oloca-se o problema do direito natural
cia100. em seus verdadeiros termos, que são de duas
Os corpos políticos, deste modo ordens distintas: 1) históricos, pois o jusnatu-
ralismo destinava-se precipuamente a restabe­
permanecendo, entre si, em estado de lecer a obediência à ordem natural, que, por
natureza, logo se ressentiram dos in­ sua vez, melhor se exprimiria no estado de
convenientes que haviam forçado os natureza, com o é óbvio; 2) morais, que interes­
particulares a sair dele, e tal estado savam especialmente a Rousseau, para quem o
tornou-se ainda mais funesto entre direito moral constituiria uma compensação à
fria mecânica da lei civil. Cf. o desenvolvi­
mento ulterior do tema nos parágrafos seguin­
99 Rousseau esboça o projeto de procurar o tes. Até hoje, esses dois sentidos do direito
fundamento de um contrato social entre todas natural são permanentes e, ao menos no que
as sociedades no seio da humanidade. (N . de tange ao direito internacional, operantes. (N.
P. A.-B.) de L. G. M.)
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 277

pôde fundamentar nenhum outro101, lhes mal; porque, conseqüentemente,


ficando sempre o conquistador e os tinham estes mais precauções a tomar
povos conquistados em estado de guer­ para defender-se disso, e, porque, por
ra entre si, a menos que a nação, repos­ fim, é razoável crer-se ter sido uma
ta em plena liberdade, escolha volunta­ coisa inventada antes por aqueles a
riamente seu vencedor como chefe; até quem é útil do que por aqueles a quem
então, como só se basearam na violên­ causa mal.
cia, umas poucas capitulações feitas, O Governo nascente não teve uma
sendo conseqüentemente por si mes­ forma constante e regular. A falta de
mas nulas, não pode haver nesta hipó­ filosofia e de experiência só deixava
tese nem verdadeira sociedade, nem perceber os inconvenientes presentes, e
corpo político, nem outra lei senão a só se pensava em remediar os outros
do mais forte; 2.° porque essas pala­ na medida em que se apresentavam.
vras forte e fraco são, no segundo caso, Malgrado todos os trabalhos dos mais
equívocas; porque, no intervalo que se sábios legisladores, o estado político
encontra entre o estabelecimento do permaneceu sempre imperfeito, porque
direito de propriedade ou do primeiro era quase obra do acaso e porque, ape­
ócupante, e o dos governos políticos, nas iniciado, o tempo, descobrindo os
as palavras pobre e rico dão melhor o defeitos e sugerindo os remédios,
sentido desses termos, porquanto, com nunca pôde corrigir os vícios de consti­
efeito, um homem não tinha, antes das tuição. Remendava-se continuamente,
leis, quaisquer outros meios de domi­ quando fora preciso ter começado por
nar seus iguais senão atacando seus limpar a eira e afastar todo o material
bens ou lhes transmitindo certa porção velho, como fez Licurgo em Esparta,
do seu; 3.° porque os pobres, não para depois construir um edifício sóli­
tendo senão sua liberdade para perder, do. A sociedade, a princípio, consti­
seria uma tremenda loucura de sua tuiu-se somente de algumas conven­
parte destituir-se voluntariamente do ções gerais que todos os particulares se
único bem que lhes restava, para nada comprometeram a observar e das quais
ganhar em compensação; porque os a comunidade se tornou fiadora peran­
ricos, ao contrário, sendo por assim te cada um deles. Foi necessário que a
dizer sensíveis em todas as partes de experiência demonstrasse como uma
seus bens, era muito mais fácil causar- tal constituição era fraca e como os
infratores podiam facilmente evitar a
101 Neste ponto, Rousseau visa Hobbes e acusação ou o castigo das faltas, das
também Aristóteles e Grócio. Cf. C ontrato quais somente o público deveria ser
Social, I, IV: D a escravidão. testemunha e juiz; foi preciso que se
A sociedade não é absolutamente contrária
ao estado de natureza, porquanto este admite a iludisse a lei de mil modos, que os
possibilidade da sociabilidade e da perfectibi- inconvenientes e as desordens se multi­
lidade: a sociedade poderia, pois, ter sido boa, plicassem continuamente para que, por
se fora uma transposição racional do estado de fim, se pensasse em confiar a particu­
natureza; mas, tendo-se dado ao acaso a pas­
sagem para o estado social, a existência da
lares a perigosa custódia da autoridade
sociedade atual é acidental e essa sociedade pública e se delegasse a magistrados o
forçosamente é má. Não era necessária a evo­ cuidado de fazer observar as delibera­
lução da sociedade, mas impunha-se dirigi-la ções do povo. É suposição que não se
para que fosse boa; entregue a si mesma, ela pode contraditar seriamente aquela
tudo corrompeu. O Contrato Social enunciará,
precisamente, os princípios de uma evolução que diz terem sido os chefes escolhidos
dirigida. (N . de P. A.-B.) antes de organizar-se a confederação, e
278 ROUSSEAU

os ministros escolhidos antes de existi­ pelas coisas que vêem, julgam coisas
rem as próprias leis. muito diferentes, que não viram; atri­
Não seria mais razoável crer que os buem aos homens uma tendência natu­
povos se tenham inicialmente lançado ral à servidão pela paciência com a
nos braços de um senhor absoluto, sem qual aqueles, que têm sob os olhos,
condições nem compensações, e que suportam a sua, sem pensar que com a
lançar-se na escravidão fosse o pri­ liberdade acontece o mesmo que com a
meiro meio que pudessem imaginar ho­ inocência e a virtude, cujo valor só se
mens orgulhosos e desconfiados para percebe à medida que a própria pessoa
atender à segurança comum102. Com usufrui delas e cujo gosto se perde
efeito, por que se darem a superiores, assim que se as perdem. “Conheço as
senão para defender-se da opressão e delícias de tua terra”, dizia Brási-
proteger seus bens, suas liberdades e das10 4 a um sátrapa que comparava a
suas vidas que, por assim dizer, repre­ vida de Esparta à de Persépolis, “mas
sentam os elementos constitutivos de não podes conhecer os prazeres da
seu ser? Ora, como nas relações de minha.”
homem para homem o pior que pode Assim como um corcel indomável
acontecer a um é ver-se à discrição do eriça a crina, bate com o pé na terra e
outro, não contrariaria o bom senso se debate impetuosamente só com a
começar por despojar-se, nas mãos de aproximação do freio, enquanto que
um chefe, das únicas coisas p ara cuja um cavalo domado agüenta paciente­
conservação necessitavam de seu auxí­
mente o chicote e a espora, também o
lio? Que equivalente poderia oferecer-
homem bárbaro não dobra sua cabeça
lhes o chefe pela concessão de tão belo
ao jugo que o homem civilizado carre­
direito? E, se tivesse ousado exigi-lo, a
pretexto de defendê-los, não receberia ga sem murmurar e prefere a mais
logo a resposta do apólogo: “Que nos tempestuosa liberdade a uma tranqüila
fará a mais o inimigo?” Incontes­ dominação. Não é, pois, pelo avilta­
tável, pois, e máxima fundamental de mento dos povos dominados que se
todo o direito político, é que os povos devem julgar das disposições naturais
se deram chefes para defender sua do homem a favor ou contra a servi­
liberdade e não para serem dominados. dão, mas sim pelo prodígio realizado
“Se temos um príncipe” dizia Plínio a por todos os povos livres para se
Trajano, “é para que nos preserve de defenderem da opressão. Sei que os
ter um senhor.” 103 primeiros nada fazem senão enaltecer
Os políticos fazem sobre o amor à continuamente a paz e o sossego de
liberdade os mesmos sofismas que os que gozam sob seus grilhões e que
filósofos sobre o estado de natureza — miserrimam servitutem pacem appel­
lant 10 5, mas quando vejo os outros
102 Essa era a opinião de Hobbes e de Gró- sacrificarem os prazeres e o repouso, a
cio. (N . de P. A.-B.)
1 03 Citação inexata. “Seis, ut sunt diversa na­
riqueza, o poder e a própria vida pela
tura dominatio et principatus, ita non aliis esse
principem gratiorem, quam qui maxime dom i­ 104 Brásidas: general espartano; durante a
num graventur” (Plínio, Panegírico, XLV). guerra do Peloponesò, ganhou a batalha de
“Sabes que, assim como a tirania e o poder Anfípolis, na qual foi ferido mortalmente (422
legítimo são de natureza contrária, do mesmo a. C.). (N . de P. A.-B.)
modo não há homens mais apegados a seu 105 “Chamam de paz a mais miserável das
imperador do que aqueles a quem mais pesa servidões.” Tácito, H istórias IV, XVII. (N. de
um senhor.” (N. de P. A.-B.) P. A.-B.)
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 279

conservação desse único bem tão des­ volta. Os bens do pai, dos quais é
prezado por aqueles que o perderam, verdadeiramente senhor, são os laços
quando vejo animais, nascidos livres e que retêm seus filhos em sua dependên­
detestando o cativeiro, esmagarem a cia, e só pode fazê-los participar de sua
cabeça contra as grades da prisão, sucessão na medida em que se torna­
quando vejo multidões de selvagens rem merecedores do pai por contínua
nus desprezarem as volúpias européias deferência a seus desejos. Ora, longe
e enfrentarem a fome, o fogo, o ferro e de poderem esperar os súditos por
a morte para conservar somente sua qualquer favor semelhante de seu dés­
independência, concluo não poderem pota, por lhe pertencerem como um
ser os escravos os mais indicados para próprio seu — .eles e tudo o que pos­
raciocinar sobre a liberdade. suem — , ou pelo menos por pretender
Quanto à autoridade paterna, da ele que assim seja, vêem-se obrigados a
qual muita gente fez derivar o governo receber como favor o que lhes deixa de
absoluto e toda a sociedade, sem exa­ seus próprios bens: faz justiça quando
minar as provas em contrário de Locke os despoja, presta-lhes um favor quan­
e Sidney10 6, basta observar que nada do os deixa viver.
no mundo mais se distancia do espírito Continuando assim a examinar os
feroz do despotismo do que a doçura fatos segundo o direito, não se encon­
dessa autoridade, que leva em conside­ trará mais solidez do que verdade no
ração antes o benefício daquele que estabelecimento voluntário da tirania e
obedece do que a utilidade daquele que seria difícil mostrar a validade de um
comanda. Além disso, o pai, pela lei da contrato que só obrigaria uma das par­
natureza, só é senhor dó filho enquanto tes, no qual tudo caberia a um lado e
necessário seu auxílio, tornando-se de­ nada a outro, e que só resultaria em
pois disso iguais e, então, o filho, intei­ prejuízo de quem nele se compromete.
ramente independente do pai, só lhe Esse sistema odioso está bem longe de
deve respeito sem nenhuma obediên­ ser, mesmo hoje, o dos sábios e bons
monarcas, e sobretudo dos reis de
cia, pois o reconhecimento representa
França, como se pode verificar em vá­
um dever que se deve cumprir, mas
rias passagens de seus editos, e, em
não um direito que se possa exigir. Em
especial, no seguinte trecho de uma
lugar de dizer que a sociedade civil de­
obra célebre, publicada em 1667, em
riva do poder paterno, dever-se-ia, pelo
nome e por ordem de Luís XIV: “Que
contrário, dizer que dela tira esse
em absoluto se diga não estar o sobe­
poder sua principal força. Um indiví­ rano sujeito às leis de seu Estado, pois
duo só foi reconhecido como pai de
que a proposição contrária é uma ver­
outros quando estes se reuniram à sua
dade do direito das gentes, que a adu­
lação algumas vezes atacou, mas que
10 6 Algernon Sidney (morto em 1683), autor
os bons príncipes sempre defenderam
dos D iscursos a P ropósito do G overno, refu­
tou, ponto a ponto, o Patriarca de Filmer
como uma divindade tutelar de seus
(publicado, postumamente, em 1653) que Estados. Quanto mais legítimo é di­
defendia o fundamento paternal da monarquia. zer-se com o sábio Platão, que a felici­
Locke, no primeiro de seus Tratados sobre o dade perfeita de um reino consiste em
G overno, repete Sidney. Rousseau retoma o
ser o príncipe obedecido pelos seus sú­
assunto e o comentário a esses autores no iní­
cio do artigo sobre a “ Econom ia Política” . (N . ditos, em o príncipe obedecer a lei e em
de L. G. M.) ser a lei justa e visar sempre ao bem do
280 ROUSSEAU

público!” 107 Não me deterei procu­ Locke, não poder ninguém vender sua
rando saber se, sendo a liberdade a liberdade senão ao ser submetido a
mais nobre das faculdades do homem, uma potência arbitrária que o trate de
não equivaleria a degradar a natureza acordo com sua fantasia. “ Pois” ,
pôr-se ao nível das bestas escravas do acrescenta ele, “ isto séria vender sua
instinto, ofender mesmo o autor de seu própria vida, da qual não se é se­
ser quando se renuncia sem reservas ao nhor.” 109 Perguntarei, somente, com
mais precioso de todos os seus dons, que direito aqueles que não temem
quando se submete a cometer os cri­ aviltar-se até tal ponto, puderam sub­
mes proibidos para agradar a um se­ meter sua posteridade à mesma igno­
nhor feroz e insensato, e ainda se o mínia e em seu nome renunciar a bens
operário sublime deverá ficar mais que ela não recebe de sua liberalidade
irado em ver destruir do que em ver e sem os quais a própria vida é onerosa
desonrar sua mais bela obra. Não leva­ a todos dignos dela.
rei em consideração, em se querendo, a Pufendorf diz que, assim como por
autoridade de Barbeyrac108, que de­ meio de convenções e de contratos se
clara precisamente, de acordo com transfere a fortuna a outrem, pode-se
abrir mão da liberdade em proveito de
1 0 7 Este trecho parece estar em contradição alguém. Eis o que me parece um racio­
com todos os princípios que, na realidade, cínio bastante falho, póis, em primeiro
guiaram Luís X IV em sua política de autori­
dade, de dom inação e conquistas. Impõe-se
lugar, o bem que alieno torna-se-me
saber em que circunstâncias e com que desíg­ coisa inteiramente estranha cujo abuso
nios foi escrito. É extraído do Traité des Droits me é indiferente, mas é de meu inte­
de la Reine Trés-Chrétienne sur Divers États resse que não abusem de minha liber­
de la Monarchie d ’E spagne (1667). Quando, dade e não posso, sem tornar-me cul­
depois da morte de Filipe IV, rei da Espanha,
Luís X IV preparou-se, apesar das renúncias pado do mal que me forçarão a fazer,
formais consentidas no seu contrato d.e casa­ expor-me a tornar-me instrumento do
mento, para invadir os Países-Baixos espa­ crime. Além disso, o direito de proprie­
nhóis, publicou esse Traité. Fazendo-se passar dade sendo apenas de convenção e
com o “ submetido às leis de seu Estado” , isto é,
com o colocado por elas na necessidade de
instituição humana, qualquer homem
pegar em armas, Luís XIV pensava somente pode a seu arbítrio dispor daquilo que
em influenciar as potências estrangeiras e não possui; isso, porém, não acontece com
em governar seus próprios súditos: aliás, o os bens essenciais da natureza, tais
mesmo Traité apressa-se a prevenir as conse­
quências da verdade que acaba de anunciar:
“Os reis são os autores das leis nos seus Esta­ 109 Idéia cara a Rousseau, que a desenvol­
dos. Isso não quer dizer que se duvide de terem verá no Contrato Social, I, IV, D a escravidão.
os reis o poder de fazer e de derrogar leis; esse “Afirmar que um homem se dá gratuitamente
direito é, indiscutivelmente, um dos mais belos constitui uma afirmação absurda e inconce­
florões de sua coroa” . Ao apresentar isolada­ bível; t^l ato é ilegítimo e nulo, pre c isa m e n te
mente um trecho, Rousseau faz com que tome porque aquele que o faz não está no completo
um caráter inteiramente diverso; sem dúvida, domínio de seus sentidos.” Essa idéia repousa
desejou ele dar sutil lição ao governo então numa concepção da liberdade exposta na Pro­
existente. (N . de P. A.-B.) fissão de Fé do Vigário Saboiano, II. “Sem dú­
10 8 Barbeyrac, professor de direito em Gro- vida, não sou livre de não querer meu próprio
ningue, publicou no com eço do século XVII bem; não sou livre de querer meu m al. . . (A
uma tradução francesa das obras de Pufendorf providência) não quer o mal que o homem faz
sobre O Direito da Natureza, Das Gentes e ao abusar da liberdade que ela lhe dá, mas ela
D os deveres do Homem e do Cidadão. R ous­ não o impede de fazer. Ela o criou livre a fim
seau o atacará no Contrato Social, II, II. (N . de que ele fizesse, não o mal, mas o bem,
de P. A.-B.) escolhendo-o.” (N . de P. A.-B.)
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 281

como a vida e a liberdade, de que cada observância das leis nele estipuladas e
um pode gozar e dos quais é pelo que formam os liames de sua
menos duvidoso se tenha o direito de união110. Tendo o povo, quanto às
despojar-se. Destituindo-se de uma, relações sociais, reunido todas as suas
degrada-se o ser; destituindo-se de vontades numa só, tornam-se todos os
outra, anula-se quanto existe em si pró­ assuntos, sobre os quais essa vontade
prio, e, como nenhum bem temporal se exprime, outras tantas leis funda­
pode dispensar-se de uma e de outra, mentais que obrigam todos os mem­
constituiria ofensa às leis da natureza e bros do Estado sem exceção, regula­
à razão renunciar a elas a qualquer mentando uma delas a escolha e o
preço. Mas, ainda que se pudesse alie­ poder dos magistrados encarregados
nar sua liberdade como a seus bens, a de zelar pela execução das outras. Esse
diferença seria muito grande para os fi­ poder se estende a quanto possa man­
lhos que só gozam dos bens do pai pela ter a constituição, sem chegar a mudá-
transmissão de seu direito, enquanto, la. Juntam-se-lhe honrarias que tornam
sendo a liberdade um dom que lhes respeitáveis as leis e seus ministros e,
advém da natureza pela qualidade de para estes, pessoalmente, prerrogativas
homem, seus pais não têm qualquer que os compensam dos trabalhos peno­
direito de despojá-los dele. De modo sos acarretados por uma boa adminis­
que, assim como para estabelecer a tração. O magistrado, por seu lado,
escravidão precisou-se violentar a na­ obriga-se a só utilizar o poder que lhe é
tureza, foi necessário modificá-la para confiado segundo a intenção dos que
perpetuar esse direito e os juriscon­ confiaram nele, a manter cada um no
sultos que pronunciaram gravemente gozo tranqüilo do que lhe pertence e,
nascer escravo o filho de um escravo em todas as ocasiões, a preferir a utili­
resolveram, em outras palavras, que dade pública a seu próprio interesse.
um homem não nasceria homem. Antes que a experiência o demons­
Parece-me, portanto, certo não so­ trasse, ou o conhecimento do coração
mente que os governos não começaram humano fizesse prever os abusos inevi­
pelo poder arbitrário que não passa da táveis de uma tal constituição, ela cer­
corrupção, termo extremo e que afinal tamente pareceu a melhor, por serem
reduz os governos simplesmente à lei aqueles que estavam encarregados de
do mais forte, do qual foram inicial­ sua conservação os mais interessados
mente o remédio, mas também que, nisso, pois, não se baseando a magis­
ainda quando tivessem assim começa­ tratura e seus direitos senão nas leis
do, sendo esse poder por sua natureza fundamentais, assim que fossem estas
ilegítimo, não pôde servir de base aos destruídas, os magistrados deixariam
direitos da sociedade e, conseqüente­ de ser legítimos e o povo não mais
mente, à desigualdade de instituição.
Sem entrar, nesse momento, nas pes­
110 Rousseau acabará as pesquisas, que aqui
quisas que ainda restam por fazer anuncia, no C ontrato Social, onde distinguirá:
sobre a natureza fundamental de qual­ 1) o contrato social, pelo qual se constitui um
quer governo, limito-me, seguindo a “corpo moral e coletivo” , que é o “corpo polí­
opinião comum, a considerar aqui o tico”, ou seja, o “ Estado”, quando passivo, ou
estabelecimento do corpo político o “ Soberano” , quando ativo (1. I, c. IV); 2) a
constituição de um governo, mero “corpo
como um verdadeiro contrato entre o intermediário entre os súditos e o soberano” ,
povo e os chefes que escolhe, contrato no que não vai qualquer contrato (1. III, c. I).
pelo qual as duas partes se obrigam à (N . de L. G. M.)
282 ROUSSEAU

estaria obrigado a obedecer-lhes, e autoridade soberana um caráter sagra­


como não era o magistrado, mas a lei, do e inviolável que privasse os súditos
que constituíra a essência do Estado, do direito funesto de dispor dela.
cada um de direito voltaria de novo à Ainda que a religião tivesse prodigali­
sua liberdade natural. zado somente este bem aos homens, já
Por menos que se reflita atenta­ bastaria para que todos devessem ado­
mente sobre o assunto, tal coisa se rá-la e adotá-la, mesmo com seus abu­
confirmaria por novas razões e, pela sos, porquanto ela poupa muito mais
natureza do contrato, ver-se-ia que não sangue do que aquele que o fanatismo
poderia ser irrevogável, pois, se não faz correr112. Mas sigamos o fio de
houvesse poder superior capaz de nossa hipótese.
fazer-se fiador da fidelidade dos con­ As várias formas de governo têm
tratantes, nem de forçá-los a cumprir sua origem nas diferenças mais ou
seus compromissos recíprocos, somen­ menos profundas encontradas entre os
te as partes ficariam como juizes em particulares por ocasião da instituição.
causa própria e cada uma delas sempre Um homem era eminente pelo poder,
estaria no direito de renunciar ao con­ pela virtude, riqueza ou crédito; só ele
trato assim que achasse que a outra foi eleito magistrado e o Estado tor­
estivesse infringindo as condições ou nou-se monárquico. Se inúmeros ho­
desde que estas cessassem de convir- mens, quase iguais entre si, se sobrepu­
lhes. Sobre tal princípio parece legí­ nham aos demais, eram eleitos
timo fundamentar-se111 o direito de conjuntamente e fez-se uma aristocra­
abdicar. Ora, considerando apenas, cia. Aqueles, entre os quais a fortuna
como o fazemos, a instituição humana, ou os talentos eram menos despropor­
se o magistrado, que está com todo o cionais e se encontravam menos dis­
poder em suas mãos e se apropria de tanciados do estado de natureza, toma­
todas as vantagens do contrato, tivesse ram em comum a administração
o direito de renunciar à autoridade, suprema e formaram uma democra­
com muito mais razão deveria o povo, cia113. O tempo demonstrou qual des­
que paga por todas as faltas dos che­ sas formas era a mais vantajosa para
fes, ter o direito de renunciar à depen­ os homens. Uns submeteram-se unica­
dência. Mas as dissensÕes profundas, mente às leis, outros logo obedeceram
as desordens infinitas, que esse poder a senhores. Os cidadãos quiseram con­
perigoso necessariamente acarretaria, servar sua liberdade, os súditos só pen­
mostram, mais do que qualquer outra saram em arrancá-la de seus vizinhos,
coisa, como os governos humanos ti­ não podendo conceber que outros
nham necessidade de uma base mais gozassem de um bem do qual eles pró­
sólida do que a pura razão e como era prios não mais gozavam. Em uma
necessário à tranqüilidade pública que palavra, de um lado ficaram as rique­
a vontade divina interviesse para dar à zas e as conquistas, e, do outro, a feli­
cidade e a virtude.
111 Cf. Contrato Social, III, X , onde Rous­
seau examina os casos de dissolução do Esta­ 11 2 Cf. importante capítulo sobre a R eligião
do. “ Desse modo, no momento em que o C ivil, no Contrato Social, IV, VIII, no qual
governo usurpa a soberania rompe-se o pacto Rousseau enaltece o papel social da religião
social e todos os simples cidadãos, repostos natural e ataca o fanatismo e a insociabilidade
por direito em sua liberdade natural, são força­ das religiões reveladas. (N . de P. A.-B.)
dos, mas não obrigados a obedecer.” (N . de P. 113 Cf. a mesma divisão, no Contrato Social,
A.-B.) III, IV, VI. (N. de P. A.-B.)
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 283

Nesses diversos governos, todas as Se seguirmos o processo da desi­


magistraturas foram a princípio eleti­ gualdade nessas diferentes revoluções,
vas e, quando a riqueza não a arreba­ verificaremos ter constituído seu pri­
tava, a preferência distinguiu o mérito, meiro termo o estabelecimento da lei e
que dá um ascendente natural, e a do direito de propriedade; a instituição
idade, que dá experiência nos negócios da magistratura, o segundo; sendo o
e calma nas deliberações. Os antepas­ terceiro e último a transformação do
sados dos hebreus, os gerontes de poder legítimo em poder arbitrário.
Esparta, o senado de Roma e a própria Assim, o estado de rico e de pobre foi
etimologia da palavra de nossa língua autorizado pela primeira época; o de
seigneur 11 4 mostram como outrora poderoso e de fraco pela segunda; e,
era a velhice respeitada. Quanto mais pela terceira, o de senhor e escravo,
as eleições recaíam sobre homens de que é o último grau da desigualdade e
idade avançada, tanto mais se torna­ o termo em que todos os outros se
vam freqüentes e as dificuldades ainda resolvem, até que novas revoluções
mais se faziam sentir; as tramas apare­ dissolvam completamente o Governo
ceram, as facções se formaram, os par­ ou o aproximem da instituição legíti­
tidos se exasperaram, as guerras civis ma.
se atearam, enfim, sacrificou-se o san­ Para compreender a necessidade
gue dos cidadãos à pretensa felicidade desse progresso, é preciso considerar
do Estado e se esteve a ponto de cair menos os motivos do estabelecimento
na anarquia dos tempos anteriores. A do corpo político do que a forma que
ambição dos principais aproveitou-se assume na sua prática e os inconve­
dessas circunstâncias para perpetuar nientes que traz consigo, pois os vícios
seus mandatos em suas famílias; o que tornam as instituições necessárias
povo, já acostumado com a dependên­ são os mesmos que tornam inevitável o
cia, com a calma e as comodidades da abuso. E como — salvo a exceção
vida, e já incapaz de quebrar seus gri­ única de Esparta, onde a lei velava
lhões, consentiu em deixar aumentar a principalmente pela educação das
sua servidão para assegurar sua tran­ crianças e onde Licurgo estabeleceu
qüilidade. Assim, tendo se tornado costumes que quase o dispensavam de
hereditários, os chefes acostumaram-se acrescentar-lhes leis — as leis, menos
a considerar a magistratura como um fortes do que as paixões, contêm os ho­
bem de família e a si próprios proprie­ mens sem mudá-los, seria fácil provar
tários do Estado, do qual a princípio que todo Governo que, sem se corrom­
não seriam senão funcionários; a cha­ per nem se alterar, andasse sempre
mar seus concidadãos de escravos, a exatamente de acordo com a finalidade
incluí-los, como o gado, entre as coisas de sua instituição, teria sido instituído
que lhes pertenciam e chamar a si mes­ sem necessidade e que um país, no
mos de iguais aos deuses e de reis dos qual ninguém ludibriasse as leis nem
reis. abusasse da magistratura, não teria
necessidade nem de magistrados, nem
114 Os gerontes, isto é, os velhos, constituíam de leis.
o Conselho dos anciãos. Daí a expressão As distinções políticas levam neces­
gerontocracia (governo dos velhos). A palavra sariamente às distinções civis. Cres­
francesa seigneur vem do latim senior que sig­
nifica “mais idoso”, “velho”. Igual etim ologia
cendo a desigualdade entre o povo e
tem o vocábulo senhor em português. (N . de P. seus chefes, faz-se ela logo sentir entre
A.-B.) os particulares e nesse meio se modi­
284 ROUSSEAU

fica de inúmeras maneiras segundo as dade (s), desde que, reunidos em uma
paixões, os talentos e as ocorrências. O mesma sociedade, são forçados a com­
magistrado não poderia usurpar um parar-se entre si e a tomar conheci­
poder ilegítimo sem engendrar criatu­ mento das diferenças reveladas no uso
ras às quais é forçado a dar certa parte contínuo que têm de fazer uns dos
dele. Aliás, os cidadãos só se deixam outros. Essas diferenças são de várias
oprimir quando,levados por uma ambi­ espécies. Mas a riqueza, a nobreza ou
ção cega e olhando mais abaixo do que a condição, o poder e o mérito pessoal
acima de si mesmos, a dominação sendo, em geral, as distinções princi­
torna-se-lhes mais cara do que a pais pelas quais as pessoas se medem
independência e quando consentem em na sociedade, provarei que o acordo ou
carregar grilhões para por sua vez o conflito dessas forças diversas são a
poder aplicá-los. É muito difícil redu­ indicação mais certa de um Estado
zir à obediência aquele que não procu­ bem ou mal constituído; mostrarei de­
ra comandar e o político mais esperto pois que, entre esses quatro tipos de
não conseguiria submeter homens que desigualdade, constituindo as qualida­
só desejassem ser livres. Mas a desi­ des pessoais a origem de todas as
gualdade se expande, sem dificuldade, outras, a riqueza é a última a que por
entre almas ambiciosas e covardes, fim elas se reduzem, porque, sendo a
sempre prontas a correr os riscos da mais imediatamente útil ao bem-estar e
fortuna e a quase indiferentemente a mais fácil de comunicar-se, servem-
dominar ou servir, conforme lhes seja se dela com facilidade para comprar
a fortuna favorável ou contrária. Eis todo o resto. Essa observação permite
como, seguramente, veio um tempo no julgar com bastante precisão como
qual os olhos do povo foram fascina­ cada povo se distanciou de sua institui­
dos a tal ponto que aos seus conduto­ ção primitiva e do caminho que per­
res bastava dizer ao menor dos ho­ correu até o termo extremo da corrup­
mens: “ Sê grande, tu e toda a tua ção. Salientaria como esse desejo
raça”, para que logo ele parecesse universal de reputação, de honrarias e
grande aos olhos de todos e aos seus de preferências, que nos devora, a
próprios, e seus descendentes se elevas­ todos adestra e põe em confronto os
sem ainda mais à medida que dele se talentos e as forças, excita e multiplica
distanciavam; quanto mais a causa as paixões e como, tornando todos os
fosse distante e incerta, mais aumen­ homens concorrentes, rivais, ou me­
tava o efeito; quanto mais se pudesse lhor, inimigos, cotidianamente deter­
contar com indolentes11 5 numa famí­ mina desgraças, acontecimentos e ca­
lia, tanto mais ela se tornava ilustre. tástrofes de toda espécie, fazendo com
que tantos pretendentes entrem num
Se aqui coubesse entrar em porme­ mesmo combate. Mostraria que é a ta l
nores, explicaria facilmente como, sem ânsia de fazer falar de si, a esse furor
sequer imiscuir-se o Governo, torna-se de distinguir-nos, quase sempre nos
inevitável entre os particulares a desi­ colocando fora de nós, que devemos o
gualdade de consideração e de autori-
que há de melhor e de pior entre os
homens: nossas virtudes e nossos ví­
11 5 Chamam-se reis indolentes aos últimos
reis da linhagem merovíngia, que deixaram
cios, nossas ciências e nossos erros,
toda a autoridade aos prefeitos-do-poço, a nossos conquistadores e filósofos, isto
começar de Thierry III (675) até Childerico III é, uma multidão de coisas más contra
(752). (N. de P. A.-B.) um pequeno número de coisas boas.
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 285

Provaria, por fim, que, se vemos um que se ouviria dizerem ao opressor de


punhado de poderosos e de ricos no seu país:
cume das grandezas e das fortunas,
enquanto a multidão rasteja na obscu­ Pectore si fratris gladium juguloque
ridade e na miséria, é porque os pri­ [parentis
meiros só dão valor às coisas de que Condere me jubeas gravidaeque in
gozam por estarem os demais privados [vis cera par tu
delas e porque, sem mudar de estado, Conjugis, invita peragam tamen
deixariam de ser felizes se o povo dei­ [omnia dextra 11 6.
xasse de ser miserável. Lucano, F. I, v. 376
Mas tais pormenores sozinhos cons­
tituiriam assunto de uma obra conside­ D a extrema desigualdade das condi­
rável, na qual se pesariam as vanta­ ções e das fortunas, da diversidade das
gens e os inconvenientes de todos os paixões e dos talentos, das artes inú­
povos em relação aos direitos do esta­ teis, das artes perniciosas, das ciências
do de natureza e no qual se mostra­ frívolas, surgiria uma multidão de
riam todas as várias faces sob as quais preconceitos, igualmente contrários à
a desigualdade se apresentou até hoje e razão, à felicidade e à virtude; ver-se-ia
poderá apresentar-se nos séculos futu­ fomentado pelos chefes tudo o que,
ros, segundo a natureza desses gover­ desunindo-os, pudesse enfraquecer os
nos e as revoluções que o tempo neces­ homens reunidos, tudo o que pudesse
sariamente lhes trará. Ver-se-ia a dar à sociedade um ar de concórdia
multidão premida interiormente pelas aparente e nela implantar um germe de
conseqüências das mesmas precau­ divisão real, tudo o que pudesse inspi­
ções, que tomaria contra o que a amea­ rar às várias ordens uma desconfiança
ça de fora; ver-se-ia a opressão crescer e um ódio mútuos graças à oposição
continuamente, sem que os oprimidos de seus direitos e de seus interesses, e,
pudessem jamais saber qual seu termo, conseqüentemente, fortificar o poder
nem quais os meios legítimos que lhes que os contém a todos.
restariam para sustá-la; ver-se-iam os É do seio dessa desordem e dessas
direitos dos cidadãos e as liberdades revoluções que o despotismo11 7, ele­
nacionais apagarem-se pouco a pouco vando aos poucos sua horrenda cabeça
e as reclamações dos fracos serem e devorando tudo o que percebesse de
consideradas como murmúrio sedicio­ bom e de sadio em todas as partes do
so; ver-se-ia a política restringir a uma Estado, conseguiria por fim esmagar
porção mercenária do povo a honra de sob seus pés as leis e o povo, e estabe­
defender a causa comum; ver-se-ia daí lecer-se sobre as ruínas da república.
nascer a necessidade dos impostos, o Os tempos que precederiam esta últi­
agricultor desencorajado abandonar ma mudança seriam períodos de agita­
seu campo, mesmo durante a paz, e ções e de calamidades, mas, no fim,
deixar a charrua para cingir a espada;
ver-se-iam nascer as regras funestas e 11 6 “ Se me ordenasses cravar minha espada
singulares relativas aos pontos de no seio de meu irmão, na garganta de meu pai
honra; ver-se-iam os defensores da pá­ ou no ventre de minha esposa grávida, apesar
tria tornarem-se, mais tarde ou mais de a contragosto, tudo isso minha mão faria
até o fim.” Lucano, Farsália, I, verso 376. (N .
cedo, seus inimigos e manterem conti­ de P. A.-B.)
nuamente um punhal alçado contra 11 7 Rousseau inicia aqui uma severa crítica
seus cidadãos, e chegaria o tempo em do Antigo Regime. (N. de P. A.-B.)
286 ROUSSEAU

tudo seria devorado pelo monstro e os dessas revoluções breves e freqüentes,


povos não mais teriam nem chefes, ninguém pode lamentar-se da injustiça
nem leis, mas unicamente tiranos. de outrem, mas unicamente de sua pró­
Desde esse momento também deixa­ pria imprudência ou de sua infelici­
riam de interessar os costumes e a vir­ dade.
tude, pois em todo lugar onde reina o Descobrindo e seguindo, deste
despotismo, cui ex honesto nulla est modo, os caminhos esquecidos e perdi­
spes 118, não suporta ele qualquer dos que levaram o homem do estado
outro senhor; desde que fale, não há natural ao estado civil, restabelecendo,
nem probidade nem dever a consultar, com auxílio das posições interme­
e a única virtude que resta aos escra­ diárias que acabo de assinalar, aqueles
vos é a mais cega obediência. que o tempo premente me fez suprimir
É este o último grau da desigual­ ou a imaginação não me sugeriu, qual­
dade, o ponto extremo que fecha o cír­ quer leitor atento deverá impressio­
culo e toca o ponto de que partimos; nar-se com o espaço imenso que sepa­
então, todos os particulares se tornam ra esses dois estados. É nessa lenta
iguais, porque nada são, e os súditos, sucessão de coisas que encontrará a
não tendo outra lei além da vontade do solução de uma infinidade de proble­
senhor, nem o senhor outra regra além mas de moral e de política, que os filó­
de suas paixões, as noções do bem e os sofos não podem resolver120. Com­
princípios da justiça desfalecem nova­ preenderá que o gênero humano de
mente; então tudo se governa unica­ uma época não sendo o gênero huma­
mente pela lei do mais forte e, conse­ no de outra, esta é a razão por que
qüentemente, segundo um novo estado Diógenes não encontrava um
de natureza, diverso daquele pelo qual homem121, pois ele procurava entre
começamos, por ser este um estado de seus contemporâneos o homem de uma
natureza em sua pureza, e o outro, época já passada. Catão, dirá ele, pere­
fruto de um excesso de corrupção. ceu com Roma e com a liberdade, por-
Aliás, há tão pequena diferença entre
esses dois estados e o contrato de 120 O C ontrato S ocial os resolverá. (N . de P.
Governo é de tal modo desfeito pelo A.-B.) [O tiranicídio legítimo, isto é, o direito
despotismo, que o déspota só é senhor de matar o mau príncipe, fora preocupação
enquanto é o mais forte e, assim que se doutrinária e — por que não? — prática de
pode expulsá-lo, absolutamente não primeira importância ao tempo da consolida­
lhe cabe reclamar contra a violência. A ção das monarquias nacionais e das lutas reli­
rebelião que finalmente degola ou des­ giosas. Houve “m onarcôm acos” jesuítas,
trona um sultão é um ato tão jurídico com o Mariana, e reformistas, com o Buchanan.
quanto aqueles pelos quais ele, na vés­ Rousseau aqui volta corajosamente ao tema
pera, dispunha das vidas e dos bens de — que se tom ara objeto das piores persegui­
seus súditos. Só a força o mantinha, só ções sob o despotismo esclarecido — e assim,
a força o derruba; todas as coisas se faz uma de suas maiores contribuições ao espí­
passam, assim, segundo a ordem na­ rito revolucionário em form ação, rebaixando o
tural119 e, seja qual for o resultado rei à sua condição de homem falível e, sobretu­
do, de criminoso punível. (N . de L. G. M.)]
118 “ Para quem não existe esperança alguma 121 o Cínico (413-323 a.C.), des­
com o homem honesto.” (N . de P. A.-B.) prezava as convenções sociais e vivia num
119 Rousseau parece predizer, para depois do tonel. Certa vez passeou em pleno dia nas ruas
Antigo Regime, a Revolução de 1789, e até de Atenas com uma lanterna na mão; ao ser
invocá-la. (N . de P. A.-B.) interrogado, respondeu: “ Procuro um homem”.
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 287

que se encontrava deslocado no seu sé­ honra de servi-los; jacta-se orgulhosa­


culo e o maior dos homens mente de sua própria baixeza e da pro­
simplesmente surpreendeu o mundo teção deles, e, orgulhoso de sua escra­
que deveria ter governado quinhentos vidão, refere-se com desprezo àqueles
anos antes122. Em uma palavra, expli­ que não gozam a honra de partilhá-la.
cará como a alma e as paixões huma­ Que espetáculo não seriam para um
nas, altemando-se insensivelmente, caraíba os trabalhos penosos e inveja­
mudam, por assim dizer, de natureza; dos de um ministro europeu! Quantas
por que nossas necessidades e nossos mortes cruéis não preferiria esse selva­
prazeres mudam de objeto com o gem indolente ao horror de uma tal
decorrer dos tempos; por que, desapa­ vida que freqüentemente nem sequer se
recendo gradativamente o homem na­
ameniza pelo prazer de bem proceder!
tural, a sociedade só oferece aos olhos
Mas, para aquilatar o objetivo de tan­
do sábio uma reunião de homens artifi­
ciais e de paixões factícias que são tos cuidados, seria preciso que as pala­
obra de „todas essas relações novas e vras poder e reputação tivessem um
não têm nenhum fundamento na natu­ sentido para seu espírito e que sou­
reza. O que a reflexão nos ensina a besse existir uma espécie de homens
esse propósito, a observação o con­ que dão valor aos olhos do resto do
firma perfeitamente123: o homem sel­ mundo e se sentem satisfeitos consigo
vagem e o homem policiado diferem de mesmos mais pelo testemunho de ou­
tal modo, tanto no fundo do coração trem do que pelo seu próprio. Tal, com
quanto nas suas inclinações, que aqui­ efeito, a verdadeira causa de todas
lo que determinaria a felicidade de um essas diferenças: o selvagem vive em si
reduziria o outro ao desespero. O pri­ mesmo; o homem sociável, sempre
meiro só almeja o repouso e a liberda­ fora de si, só sabe viver baseando-se na
de, só quer viver e permanecer na ocio­ opinião dos demais e chega ao senti­
sidade e mesmo a ataraxia do estóico mento de sua própria existência quase
não se aproxima de sua profunda indi­ que somente pelo julgamento destes.
ferença por qualquer outro objeto. O Não cabe no meu assunto mostrar
cidadão, ao contrário, sempre ativo, como de uma tal disposição nasce
cansa-se, agita-se, atormenta-se sem tamanha indiferença pelo bem e pelo
cessar para encontrar ocupações ainda mal, com tão belos discursos sobre a
mais trabalhosas; trabalha até a morte, moral; como, tudo reduzindo-se às
corre no seu encalço para colocar-se aparências, tudo se torna artificial e
em situação de viver ou renunciar à representado, seja a honra, a amizade,
vida para adquirir a imortalidade; cor­ a virtude, freqüentemente mesmo os
teja os grandes, que odeia, e os ricos, próprios vícios com os quais por fim se
que despreza; nada poupa para obter a encontra o segredo de se glorificar12 4;
como, em uma palavra, perguntando
122 Trata-se sempre de Catão que, depois do
sempre aos outros o que somos e não
primeiro D iscurso, tomou a Sócrates o lugar ousando jamais interrogarmo-nos a
de “maior dos homens”. (N. de P. A.-B.) nós mesmos sobre esse assunto, em
123 Rousseau relembra seu método; é aná­ meio a tanta filosofia, humanidade,
logo ao das ciências de seu tempo, principal­ polidez e máximas sublimes, só temos
mente a física newtoniana — trata-se de apre­
sentar uma grande hipótese que dê conta dos
fatos mas que seja deduzida a priori. N o 12 4 A lusão às M áxim as de La R ochefou­
fundo, é o método científico de Descartes. (N . cauld, que todas elas explicavam as virtudes
de P. A.-B ) aparentes por vícios ocultos. (N . de P. A.-B.)
288 ROUSSEAU

um exterior enganador e frívolo, honra nossas faculdades e aos progressos do


sem virtude, razão sem sabedoria e espírito humano, tomando-se, afinal,
prazer sem felicidade. Basta-me ter estável e legítima graças ao estabeleci­
provado não ser esse, em absoluto, o mento da propriedade e das leis.
estado original do homem e que unica­ Conclui-se, ainda, que a desigualdade
mente o espírito da sociedade e a desi­ moral, autorizada unicamente pelo
gualdade, que ela engendra, é que direito positivo, é contrária ao direito
mudam e alteram, desse modo, todas natural sempre que não ocorre, junta­
as nossas inclinações naturais. mente e na mesma proporção, com a
Esforcei-me por expor a origem e o desigualdade física — distinção que
progresso da desigualdade, o estabele­ determina suficientemente o que se
cimento e o abuso das sociedades polí­ deve pensar, a esse respeito, sobre a
ticas, quanto possam essas coisas espécie de desigualdade que reina entre
deduzir-se da natureza do homem uni­ todos os povos policiados, pois é
camente pelas luzes da razão e inde­ manifestamente contra a lei da nature­
pendentemente dos dogmas sagrados, za, seja qual for a maneira por que a
que dão à autoridade soberana a san- definamos, uma criança mandar num
são do direito divino. Conclui-se dessa velho, um imbecil conduzir um sábio,
exposição que, sendo quase nula a ou um punhado de pessoas regurgitar
desigualdade no estado de natureza, superfluidades enquanto à multidão
deve sua força e seu desenvolvimento a faminta falta o necessário12 5.

12 5 Pode-se comparar com o conjunto desse sobre consolidar e alargar a visão do homem
D iscurso uma passagem de Buffon que expri­ peculiar a seu tempo, Rousseau prega, já nes­
me idéia muito próxima: “ O homem selvagem ses primeiros discursos, a revolução. Impõe-se,
é, de todos os animais, o mais singular, o contudo, notar que essa revolução não é ape­
menos conhecido e o mais difícil de descrever; nas em prol da igualdade política — que a
mas ou nós distinguimos o que só a natureza Revolução Francesa viria cumprir em seus
nos deu daquilo que nos comunicaram a edu­ aspectos jurídicos formais — mas também em
cação, a im itação, a arte e o exemplo, ou, prol da igualdade econômica. Se o segundo
então, confundim o-los tão bem que não seria tema revolucionário não se estabelece com a
nitidez que o primeiro encontrará no C ontrato
de espantar que desconhecêssem os inteira­
Social, vale notar que, no universo de pensa­
mente o retrato de um selvagem caso nos fosse
mento rousseauniano, ambos se enunciam
apresentado com as verdadeiras cores e os úni­
essencialmente unidos e que, apelando pela
cos traços naturais que devem formar-lhe o liberdade dos homens sob o poder do sobera­
caráter. . . Um selvagem absolutamente selva­
no, Rousseau o termina por um grito de revol­
gem . . . seria um espetáculo curioso para um
ta, não contra as cabeças coroadas, mas con­
filósofo; poderia, observando seu selvagem, tra os que “regurgitam superfluidades”. Ver,
avaliar com exatidão a força dos apetites da nesse sentido, a nota i a este discurso, na qual,
natureza; nele veria a alma a descoberto; nele contrapondo os males engendrados pelos ho­
distinguiria todos os movimentos naturais e, mens aos que se recebem da natureza, R ous­
talvez, nele reconhecesse mais doçura, tranqüi­ seau entre todos dedica sua mais violenta acu­
lidade e calm a do que na sua alma; talvez sação aos provenientes da desigualdade de
visse, claramente, que a virtude pertence mais riquezas — “uns morrem de suas necessidades
ao homem selvagem do que ao civilizado e que e outros de seus excessos”, eis a condição do
o vício só com eçou a nascer na sociedade” . homem na sociedade disforme que Rousseau
Buffon, H istória Natural, Variedades na E spé­ conhecia e desejava pelo menos corrigir. (N . de
cie Humana, 1749. Acrescentemos ainda que, L. G. M.)
In t r o d u ç ã o à s n o t a s d e R o u s s e a u a o
“ D is c u r s o s o b r e a D e s i g u a l d a d e ”

de Paul Arbousse-Bastide

Para não romper a unidade de seu Discurso, Rousseau , como o fazem os


autores modernos de teses, apresentou na form a de notas a documentação bas­
tante erudita em que se apoiou. Com o algumas dessas notas deram, porém, lugar
a desenvolvimentos muito abundantes, Rousseau resolveu colocá-las, todas ju n ­
tas, no fim do Discurso, numa espécie de apêndice.
O interesse dessas notas reside no fa to de, em prim eiro lugar, levantarem,
pela repetição, os dois temas que parecem fundam entais a Rousseau: o caráter
científico de sua descrição do estado de natureza e o paralelo estereotipado entre
a bondade da natureza e a perversidade da sociedade. A descrição do estado de
natureza baseia-se nos resultados de numerosas ciências que eram então incluí­
das sob o nome de história natural: a geologia (a nota d fa la da fertilidade natu­
ral da terra); a biologia animal (a nota g estabelece a lei de duração das espé­
cies; as notas e, h, m estudam a alimentação e a sexualidade animais: o homem
é naturalmente frugívoro, e, como os frugívoros, nunca tem mais do que dois.fi-
Ihos de cada vez; finalmente, a sociedade entre o macho e a fêm ea não se funda­
menta naturalmente: “Não existe no homem qualquer m otivo que o leve a procu­
rar a mesma mulher; na mulher nenhuma razão para procurar o mesmo
homem ”); a psicologia animal (é mais natural para o homem andar sobre duas
patas do que sobre quatro — nota c; o conhecimento de si mesmo vai contra a
natureza — nota b; existe uma transição contínua, entre as form as superiores
dos animais, como o orangotango, e as form as inferiores do homem, como a
criança e o selvagem — notay, a psicologia do prim itivo, confirmando os dados
da psicologia animal: o selvagem é frugívoro — nota e — , apresenta uma grande
diversidade física — nota k — , é naturalmente robusto -— nota f — , prefere sua
vida à dos civilizados — nota p — , enquanto o homem de nossas sociedades é
carnívoro, uniformizado, enfraquecido e sua felicidade fictícia não resiste ao
apelo da vida natural). Rousseau, desse modo, reúne um feixe de provas conse­
qüentes que dão certo valor científico à sua teoria — o selvagem, o animal, a
própria terra, tudo se mobiliza para lembrar ao homem a bondade original da
natureza. M as o método é, em Rousseau, tão interessante quanto os resultados
dessa vasta informação. O escritor, particularmente na nota k, protesta contra o
postulado da identidade da natureza humana: a filosofia, até o presente, não
apresentou o caráter de universalidade que deve ser o seu; limita-se a ser uma
filosofia européia. Dcá p o r diante, o filósofo deve tornar-se um viajante; Rous-
290 ROUSSEAU

seau chega até a traçar o plano das viagens ao fim das quais o filósofo poderá ela­
borar uma filosofia do homem.
O paralelo, habitual em Rousseau, entre o estado de natureza e o estado de
sociedade, particularmente na extensa nota i, torna-se convencional e dá lugar a
uma ênfase oratória que hoje nos parece excessiva; Jean-Jacques constrói um
quadro porm enorizado dos dois estados, na intenção de resolver o problem a colo­
cado, há dois séculos, pelos metafísicos: neste mundo, a soma dos males será
superior ou inferior à soma dos bens? Pontos particulares desse paralelismo são
retomados nas notas 1 (os desejos são naturalmente limitados, mas acrescidos
pelos hábitos sociais), n (a instituição das línguas apresenta mais inconvenientes
do que vantagens), q (no estado de natureza, a dispersão era um refúgio contra a
violência; sua possibilidade desaparece, aos poucos, com o estado social), o (o
amor de si mesmo ou o instinto de conservação é natural e bom, o amor-próprio
é fictício e nefasto, r (a riqueza perm ite que se façam impunemente as madraça-
rias que se desejarem). Todavia, surge, timidamente, um terceiro tema: o de uma
regeneração da sociedade pervertida; será o tema mais fecundo, uma vez que
anuncia o Contrato Social. Na nota s, o problema é colocado segundo os mesmos
temas que no Contrato: trata-se de transpor para a sociedade civil a igualdade
rigorosa do estado de natureza e, para isso, “a condição dos cidadãos deve deter­
minar-se não pelo seu mérito pessoal, mas pelos reais serviços p o r eles prestados
ao Estado ”. Talvez não seja p o r acaso que Rousseau reservou para esse tema a
primeira e a última dessas notas (a e s).
O segundo interesse dessas notas está em precisar as fontes de Rousseau e
em descobrir em função de que nível de cultura ele emitiu sua teoria. D e todos os
autores citados, o que mais aparece é Buffon. Rousseau transcreve trechos intei­
ros de sua História Natural. O historiador grego Heródoto é também citado mui­
tas vezes, devendo-se incluir, também, Ctésias de Cnide e São Jerônimo. São
ainda consultadas p o r Rousseau as narrativas dos viajantes modernos: a História
das Viagens é citada duas vezes; Correal, Kolben, o Padre du Tertre, Gautier,
Buttel, Dapper, Merola, Purchas, Saint-John são citados uma vez. Finalmente,
Rousseau refere-se quer a sábios mais ou menos contemporâneos — os psicó­
logos Vossius, Condillac e Locke — , quer aos dois grandes mestres do pensa­
mento ocidental — os moralistas Platão e Montaigne.
N otas

(a) Heródoto conta que, depois do por qualquer de seus descendentes12 6.


assassínio do falso Smerdis, tendo se (b ) Desde meu primeiro passo,
reunido os sete libertadores da Pérsia apóio-me com confiança numa dessas
para resolver que forma dariam ao autoridades respeitáveis pafa os filóso­
Estado, Otanes opinou firmemente fos, por virem de uma razão sólida e
pela república, opinião tanto mais sublime que somente eles sabem en­
extraordinária na boca de um sátrapa, contrar e compreender12 7.
quanto, além da pretensão ao império “Qualquer que seja o interesse que
que poderiam ter, os poderosos temem tenhamos por nos conhecer a nós mes­
mais do que a morte uma espécie de mos, não sei se não conhecemos me­
governo que os force a respeitar os lhor tudo aquilo que não se refere a
homens. Otanes, como se pode imagi­ nós. Providos pela natureza de órgãos
nar, não foi atendido e, vendo que se ia unicamente destinados à nossa conser­
proceder à eleição de um monarca, ele, vação, só os empregamos para receber
que não queria nem obedecer nem as impressões estranhas, só procura­
mandar, voluntariamente cedeu aos mos voltar-nos para fora e existir fora
outros concorrentes seu direito à de nós; demasiadamente ocupados em
coroa, pedindo como única compensa­ multiplicar as funções de nossos senti­
ção serem, tanto ele quanto sua des­ dos e em aumentar a extensão exterior
cendência, livres e independentes, ten­ de nosso ser, raramente nos utilizamos
do-se-lhe concedido tal coisa. Ainda
que Heródoto não nos conte a restri­ 126 A anedota se encontra nas H istórias de
ção que foi imposta a esse- privilégio, Heródoto, III, L X X X III, e é contada por
ter-se-á necessariamente de supô-la, M ontaigne, Ensaios, III, VII. Montaigne dá a
conhecer a restrição em questão. “ I Otanes]
pois, caso não existisse, Otanes, não renunciou em favor de seus companheiros a
reconhecendo nenhuma lei e não tendo seu direito de poder alcançar [o império) por
de prestar contas a ninguém, seria eleição ou por sorte, contanto que ele e os seus
todo-poderoso no Estado e até mais vivessem nesse império fora de qualquer sujei­
ção e domínio, salvo a das leis antigas, e tives­
poderoso do que o próprio rei. Mas sem aí toda a liberdade que não causasse pre­
não havia qualquer probabilidade de juízo àquelas [leis] — não desejoso tanto de
um homem, capaz de contentar-se em mandar quanto de não ser mandado.” O racio­
tal caso com esse privilégio, mostrar-se cínio de Rousseau é uma reminiscência da teo­
capaz de abusar dele. Com efeito, não ria de Hobbes, para quem o chefe é aquele que
conservou seus direitos naturais, enquanto
se sabe que tenha esse direito determi­ todos os demais cidadãos renunciaram a ele.
nado a menor perturbação no reino, (N . de P. A.-B.)
nem causada pelo sábio Otanes, nem 12 7 Trata-se de Buffon. (N.. de P. A.-B.)
292 ROUSSEAU

desse sentido interior que nos reduz às mais, que foi preciso atar-lhe pedaços
nossas verdadeiras dimensões e que de madeira que a obrigavam a man­
distingue de nós tudo que não nos per­ ter-se ereta em equilíbrio sobre os dois
tence. No entanto, é desse sentido que pés. A mesma coisa sucedeu com a
devemos utilizar-nos se desejarmos criança que, em 1694, foi encontrada
conhecer-nos; somente por ele podere­ nas florestas da Lituânia e que vivia
mos julgar-nos. Como dar, porém, a entre os ursos. Não apresentava, conta
esse sentido, toda a sua atividade e o Sr. de Condillac, qualquer sinal de
extensão? Como desembaraçar nossa razão, andàva sobre os pés e as mãos,
alma, na qual reside, de todas as ilu­ não possuía qualquer linguagem e emi­
sões de nosso espírito? Perdemos o há­ tia sons que de modo algum se asseme­
bito de invocá-la; ela ficou sem apro­ lhavam aos de um homem. O pequeno
veitamento em meio do tumulto de selvagem de Hanôver, que há muitos
nossas sensações corporais, fanou-se anos foi conduzido à corte da Ingla­
ao fogo de nossas paixões; o coração, terra, sentia a maior das dificuldades
o espírito, os sentidos, tudo trabalhou para resignar-se a andar sobre os dois
contra ela.” Hist. Nat., D a Natureza pés e, em 1719, encontraram-se dois
do Homem. outros selvagens nos Pireneus que cor­
(c) As mudanças que pode produzir riam pelas montanhas como se fossem
na conformação do homem o prolon­ quadrúpedes. Quanto à objeção de que
gado hábito de andar sobre dois pés, as tal coisa levaria a nos privarmos do
relações que ainda se observam entre uso das mãos, do qual nos advêm tan­
os braços e as pernas anteriores dos tas vantagens, além do exemplo dos
quadrúpedes e a indução feita sobre o macacos, que mostram poderem as
seu modo de andar fizeram com que mãos ser muito bem empregadas dos
nascessem dúvidas acerca da posição dois modos, isso só poderia provar que
que nos deveria ser mais natural. o homem pode dar a seus membros
Todas as crianças começam andando uma destinação mais cômoda do que a
com quatro pés e precisam de nosso da natureza e não que a natureza desti­
exemplo e de nossas lições para apren­ nou o homem a andar de um modo
derem a manter-se de pé. Há mesmo diferente do que lhe ensina.
nações selvagens, como a dos hotento- Há, porém, parece-me, muito melho­
tes, que, descuidando bastante das res razões a apresentar para afirmar
crianças, deixam que andem tanto que o homem é um bípede. Primeiro,
tempo sobre as mãos, que depois têm mesmo que se fizesse ver que ele pode­
muito trabalho para endireitá-las; a ria ter anteriormente conformação di­
mesma coisa acontece com os filhos versa da que conhecemos e nesse ínte­
dos caraíbas das Antilhas. Há inúme­ rim transformar-se por fim naquilo que
ros exemplos de homens quadrúpedes é, não seria o bastante para concluir
e, entre outros, poderia citar o exemplo que tal se teria passado dessa maneira,
daquela criança que encontraram, em porquanto, após ter mostrado a possi­
1344, perto de Hesse, onde fora criada bilidade dessas mudanças, seria preci­
por lobos e que depois dizia, na corte so ainda, antes de admiti-las, mostrar
do Príncipe Henrique, que, se depen­ pelo menos sua verossimilhança. Além
desse unicamente dela, preferiria voltar disso, se os braços do homem parecem
a viver com os lobos do que continuar ter podido, quand© necessário, servir-
a viver entre os homens. De tal modo lhe de pernas, será essa a única obser­
se habituara a andar como esses ani­ vação favorável a esse sistema contra
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 293

um grande número de outras que lhe mento só rastejam. Os fatos particu­


são contrárias. As principais são: o lares pouco peso têm ainda contra a
modo pelo qual a cabeça do homem se prática universal de todos os homens e
acha ligada ao corpo, pois, em lugar de até das nações que, não dispondo de
dirigir seu olhar horizontalmente, nenhuma comunicação com as outras,
como o fazem todos os outros animais nada puderam imitar delas. Uma
e como ele próprio tem ao andar de pé, criança abandonada na floresta antes
ficaria ele, andando com quatro pés, de poder andar, e alimentada por algu­
com os olhos diretamente fixados na ma besta, terá seguido o exemplo de
terra, situação pouco favorável para a sua ama, tentando andar como ela;
conservação do indivíduo; o fato de dando-lhe o hábito algumas facilidades
lhe faltar a cauda, de que não precisa que de modo algum lhe advinham de
andando com dois pés, mas que é útil sua natureza e, como os manetas con­
aos quadrúpedes, não faltando a ne­ seguem, à força de exercício, fazer com
nhum destes; estar o seio da mulher os pés tudo o que fazemos com as
muito bem situado para um bípede, mãos, conseguirá finalmente empregar
que carrega o filho nos braços, e tão as mãos como se fossem pés.
mal parâ um quadrúpede, que nenhum (d) Caso se encontre entre meus lei­
o tem colocado dessa maneira; que, tores algum físico suficientemente
sendo a parte traseira de altura exces­ fraco para apresentar-me dificuldades
siva proporcionalmente às pernas da quanto à suposição dessa fertilidade
frente, isso determina que, quando natural da terra, desejo responder-lhe
andamos com quatro pés, nos arraste­ com este trecho:
mos sobre os joelhos, formando tudo “Como os vegetais extraem, para se
isso um animal mal proporcionado e alimentarem, muito mais substâncias
que anda pouco comodamente; que, se do ar e da água, do que da terra, acon­
o homem colocasse espalmados tanto tece que, ao perecerem, dão à terra
o pé quanta a mão, teria na perna tra­
muito mais do que dela extraíram;
seira uma articulação a menos que os
aliás, uma floresta, retendo os vapores,
outros animais, a saber, aquela que
causa as águas da chuva. Assim, numa
une o cânon à tíbia; que, pousando
somente a ponta do pé, como sem dú­ floresta, em que durante muito tempo
vida seria obrigado a fazê-lo, o tarso, não se tocasse, muito aumentaria a ca­
sem falar da pluralidade dos ossos que mada de terra que serve à^vegetação;
o compõem, pareceria muito grosso mas os animais dando à terra menos
para ocupar o lugar do cânon e de suas do que extraem dela e tendo os homens
articulações, com o metatarso e a tíbia um consumo enorme de lenha e de
demasiado unidos para, nessa situa­ plantas para o fogo e para outros usos,
ção, dar à perna humana a mesma conclui-se que a camada de terra vege­
flexibilidade que tem a dos quadrúpe­ tal de uma região habitada deverá sem­
des. O exemplo das crianças, tomado pre diminuir e, por fim, ficar como a
numa época em que as forças naturais terra da Arábia Pétrea e como a de
ainda não se desenvolveram nem os tantas outras províncias do Oriente
membros ainda se fortaleceram, nada que, efetivamente, é a região há mais
conclui absolutamente; poder-se-ia, tempo habitada, e onde só se encon­
pelo mesmo motivo, dizer que os cães tram sal e areia, pois o sal fixo das
não são destinados a andar, porque plantas e dos animais permanece,
algumas semanas depois do seu nasci­ enquanto todas as outras partes se
294 ROUSSEAU

volatilizam” . Hist. Nat. Provas da os frugívoros possuem-nos de certa


Teoria da Terra, art. 7.°. espécie, como o cólon,, que não se
Pode-se a isso juntar a prova de fato encontra entre os vorazes. Parece,
relativa à quantidade de árvores e de pois, que o homem, tendo os dentes e
plantas de toda a espécie, de que esta­ os intestinos como os dos animais
vam repletas quase todas as ilhas frugívoros, deveria ser incluído nessa
desertas descobertas nestes últimos sé­ classe; não somente as observações
culos e pelo que a história nos conta anatômicas confirmam essa opinião,
das imensas florestas que se precisou mas os monumentos da antiguidade
abater em toda a terra à medida que se depõem ainda favoravelmente. “Di-
povoou ou policiou. Sobre o assunto cearco”, diz São Jerônimo, “conta, nos
farei ainda as três observações seguin­ seus livros de antiguidades gregas, que,
tes: a primeira é que, caso haja uma sob o reinado de Saturno, no qual a
variedade de vegetais que possa com­ terra ainda era fértil por si mesma, ne­
pensar o desperdício de matéria vege­ nhum homem comia carne e todos vi­
tal feito pelos animais, segundo o viam dos frutos e dos legumes que
raciocínio do Sr. de BufTon, serão cresciam naturalmente.” (Liv. II, A dv.
sobretudo os bosques, cujas copas e fo­ Jovinian.) Essa opinião pode ainda
lhas acumulam e retêm uma quanti­ basear-se nos relatos de inúmeros via­
dade maior de água e de vapores do jantes modernos; François Correau
que o fazem as outras plantas; a segun­ afirma, entre outros, que a maioria dos
da consiste em que a destruição do habitantes das Lucaias, que os espa­
solo, isto é, a perda da substância nhóis transportaram para as ilhas de
apropriada à vegetação, deve acelerar- Cuba, de São Domingos e outros luga­
se à medida que a terra é mais culti­ res, morreram por terem comido carne.
vada e os habitantes mais industriosos Pode-se ver, por aí, que deixo de lado
consomem em quantidade muito maior muitas vantagens que poderia salien­
seus produtos de toda a espécie. Minha tar. Porquanto, sendo a presa quase
terceira observação, e a mais impor­ que o único motivo de luta entre os
tante, consiste em que os frutos das ár­ animais carniceiros e vivendo os frugí­
vores fornecem ao animal uma alimen­ voros entre si numa paz contínua, se a
tação mais abundante do que o podem espécie humana fosse deste último gê­
fazer os outros vegetais; é essa uma nero, sem dúvida houvera muito maior
experiência que eu mesmo fiz compa­ facilidade para subsistir no estado de
rando os produtos de dois terrenos natureza e muito menos necessidade e
iguais em tamanho e em qualidade, um ocasiões para dele sair.
coberto de castanheiros e outro semea­ (j) Todos os nossos conhecimentos
do de trigo. que exigem reflexão, todos aqueles que
(e) Entre os quadrúpedes, as duas só se adquirem pelo encadeamento de
distinções mais universais das espécies idéias e que só se aperfeiçoam sucessi­
vorazes baseiam-se uma na forma dos vamente, parecem estar completa­
dentes'e a outra na conformação dos mente fora do alcance do homem sel­
intestinos. Os animais que só vivem de vagem, por falta de comunicação com
vegetais têm todos os dentes chatos, seus semelhantes, isto é, por falta do
como o cavalo, o boi, o carneiro, a instrumento que serve a essa comuni­
lebre; mas os vorazes, ao contrário, os cação e das necessidades que a tornam
têm pontudos, como o gato, o cão, o imprescindível. Seu saber e sua indús­
lobo, a raposa. Quanto aos intestinos, tria limitam-se a saltar, correr, lutar,
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 295

lançar uma pedra, escalar uma árvore. do seu andar ultrapassa a imagina-
Mas, se ele só sabe essas coisas, em çao.
compensação as sabe muito melhor do Admira-se de não se utilizarem mais
que nós, que delas não temos a mesma freqüentemente para fins reprováveis
necessidade; como elas dependem uni­ de sua habilidade, o que, não obstante,
camente do exercício do corpo e não acontece por vezes, como se pode ver
são suscetíveis de qualquer comunica­ pelo exemplo que disso apresenta:
ção ou progresso de um indivíduo para “Um marinheiro holandês, desem­
outro, o primeiro homem pôde ser tão barcando no Cabo, encarregou”, conta
hábil quanto seus últimos descenden­ ele, “um hotentote de segui-lo à cidade
tes. com um rolo de tabaco aproximada­
Os relatos dos viajantes estão cheios mente de vinte libras. Quando os dois
de exemplos da força e vigor dos ho­ estavam a alguma distância do grupo,
mens nas nações bárbaras e selvagens; o hotentote perguntou ao marinheiro
não deixam de louvar, ainda e não se ele sabia correr. — Correr? — res­
menos, sua habilidade e ligeireza e, pondeu o holandês. — Sim, e muito
como bastam dois olhos para observar bem. — Vejamos — disse o africano e,
as coisas, nada impede que acredi­ fugindo com o tabaco, desapareceu
temos nos testemunhos oculares a esse quase imediatamente. O marinheiro,
respeito. Extraio ao acaso alguns confundido com tal velocidade, não
exemplos dos primeiros livros que me pensou em persegui-lo e nunca mais
caem sob a mão. viu nem o seu tabaco nem o carrega­
“ Os hotentotes”, disse Kolben128, dor”.
“conhecem melhor a pesca do que os “Possuem o golpe de vista tão pron­
europeus do Cabo. São igualmente há­ to e a mão tão certa, que os europeus
beis na rede, no anzol e no arpão, tanto ficam em grande desvantagem. A cem
nas enseadas quanto nos rios. Não passos acertaram com uma pedra num
mostram menos habilidade para agar­ alvo do tamanho de uma moeda de
rar o peixe com a mão. São de uma meio-soldo, e o que há de mais espan­
habilidade incomparável no nadar. Seu toso é que, em lugar de fixar como nós
modo de nadar tem qualquer coisa de os olhos no alvo, fazem movimentos e
surpreendente e que lhes é inteiramente contorsões contínuas. Parece que a sua
particular. Nadam com o corpo direito pedra é levada por uma mão invisível.”
e as mãos estendidas fora da. água, de O Padre du Tertre129 escreve sobre
modo que parecem andar sobre a terra. os selvagens das Antilhas quase a
Quando o mar está mais agitado e as mesma coisa que acabamos de \er
ondas como qúe formam montanhas, sobre os hotentotes do cabo da Boa
parecem dançar na crista das vagas, Esperança. Enaltece sobretudo a sua
subindo e descendo como um pedaço precisão para acertar com as flechas os
de cortiça.” pássaros em vôo e os peixes nadando.
“ Os hotentotes”, diz ainda o mesmo Os selvagens da América setentrional
autor, “ apresentam uma habilidade não são menos célebres pela sua força
surpreendente na caça e a velocidade e agilidade; segue-se um exemplo que

128 Pierre K olben (1675-1726); viajante e 12 9 Jean-Bapíiste du Tertre (1610-168 7); m is­
naturalista alemão, autor de uma Viagem ao sionário dominicano nas Antilhas, autor de
C abo da Boa Esperança (1719). (N . de P. uma H istória G eral das A n tilh as H abitadas
A.-B.) p e lo s Franceses (1667-1671). (N . de P. A.-B.)
296 ROUSSEAU

poderá facilitar o julgamento da dos (h) Creio existir entre os animais


índios da América meridional: carniceiros e os frugívoros uma outra
“Em 1746, um índio de Buenos diferença ainda mais geral do que á
Aires, sendo condenado às galés em salientada na nota e, pois esta alcança
Cádiz, propôs ao governo resgatar sua até os pássaros. Tal diferença consiste
liberdade expondo a vida numa festa no número dos filhotes, que em geral
pública. Prometeu atacar sozinho o nunca excede de dois de cada vez para
touro mais furioso sem outra arma as espécies que só vivem de vegetais e
além de uma corda, derrubá-lo, amar­ que. ordinariamente vai além desse nú­
rá-lo com a corda pela parte que lhe mero para os animais vorazes. É fácil
indicassem, selá-lo, bridá-lo, montá-lo conhecer, a esse respeito, a destinação
e combater, assim montado, dois ou­ da natureza pelo número de tetas, que
tros touros dentre os mais furiosos que não passa de duas nas fêmeas da pri­
fizessem sair do Torillo e que ele mata­ meira espécie, como a jumenta, a vaca,
ria a todos, um depois do outro, no a cabra, a corça, a ovelha, e que sem­
momento em que ordenassem e sem o pre é de seis ou de oito nas outras fê­
auxílio de ninguém. Foi-lhe concedido. meas, como a cadela, a gata, a loba e o
O índio cumpriu sua palavra e obteve tigre femeo, etc. A galinha, a gansa, a
bom êxito em tudo que prometera. pata, que todas são aves vorazes,
Sobre o modo como se saiu nisso e assim como a águia, a gaivota, a coru­
sobre os pormenores do combate, ja, também põem e chocam um grande
pode-se consultar o primeiro tomo in- número de ovos, o que jamais acontece
12 das Observações sobre a História com a pomba e a rola, nem aos pássa­
Natural do Sr. G autier130, de onde ros que exclusivamente comem os
esse fato é extraído, na página 262. grãos, os quais só põem e chocam dois
(g) “ A duração da vida dos cava­ ovos de cada vez. O motivo que se
los”, diz o Sr. de Buffon, “é, como em pode dar para essa diferença reside no
todas as outras espécies, proporcional fato de que os animais, que só vivem
à duração do seu tempo de cresci­ de ervas e de plantas, passam quase o
mento. O homem, que leva catorze
dia todo no pasto e, sendo forçados a
anos crescendo, pode viver seis ou sete
empregar muito tempo para se nutri­
vezes esse tempo, isto é, noventa ou
rem, não poderiam ser capazes de criar
cem anos; o cavalo, cujo crescimento
muitos filhotes, enquanto que os vora­
se realiza em quatro anos, pode viver
zes, que fazem seu repasto quase num
seis ou sete vezes quatro anos, isto é,
instante, podem, com mais facilidade e
vinte e cinco ou trinta anos. São tão
mais freqüentemente, voltar aos seus
raros os exemplos que podem ser
contrários a essa regra, que nem rebanhos e à caça, reparando assim o
mesmo se deve considerá-los como gasto de uma quantidade tão grande de
um a exceção da qual se possam extrair leite. A respeito de tudo isso, poder-
conseqüências, e, como os cavalos rús­ se-ia fazer observações especiais e
ticos crescem em menos tempo do que reflexões, mas, não sendo este lugar
os cavalos finos, vivem também menos apropriado para tanto, basta-me ter
tempo e estão velhos aos quinze anos.” mostrado nesta parte o sistema mais
Hist. Nat. — D o Cavalo. geral da natureza, sistema que fornece
uma nova razão para excluir o homem
130 Sem dúvida trata-se de Jean-Antoine
da classe dos animais carniceiros e
Gautier (1674-1729), professor de filosofia em para colocá-lo entre as espécies frugí­
Genebra. (N . de P. A.-B.) voras.
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 297

(i) Um autor célebre131 calculando suscetível e que a natureza benfazeja


os bens e os males da vida humana e tivera o cuidado de afastar dele.
comparando as duas somas, achou que Os homens são maus — uma expe­
a última ultrapassa de muito a pri­ riência triste e contínua dispensa pro­
meira e que, afinal de contas, a vida vas; no entanto, o homem é natural­
era para o homem péssimo presente. mente bom — creio tê-lo
Não me surpreende essa conclusão. O demonstrado; o que, pois, poderá tê-lo
autor tirou todas as suas conclusões da depravado a esse ponto senão as
constituição do homem civil; se tivesse mudanças sobrevindas em sua consti­
se informado sobre o homem natural, tuição, os progressos que fez e os
pode-se imaginar que encontraria re­ conhecimentos que adquiriu? Por mais
sultados muito diversos; perceberia que se admire a sociedade humana,
que o homem só tem aqueles males que não será menos verdadeiro que ela
a si mesmo se infligiu e que a natureza necessariamente leva os homens a se
está justificada. Não foi sem esforço odiarem entre si à medida que seus
que conseguimos tornar-nos tão infeli­ interesses se cruzam, a aparentemente
zes. Quando, por um lado, se conside­ se prestarem serviços e a realmente se
ram os imensos trabalhos dos homens, causarem todos os males imagináveis.
tantas ciências profundas, tantas artes Que se poderá pensar de um comér­
inventadas, tantas forças empregadas, cio no qual a razão de cada particular
abismos superados, montanhas arrasa­ lhe dita máximas diferentemente con­
das, rochas arrebentadas, rios tomados trárias às que a razão pública prega ao
navegáveis, terras arroteadas, lagos corpo da sociedade e onde cada um
sulcados, pântanos esgotados, enormes encontra seu lucro na infelicidade de
construções erguidas sobre a terra, o outrem? Não haverá, certamente, um
mar coberto de navios e de marinhei­ homem de fortuna a quem herdeiros
ros, e, por outro lado, se procuram as ávidos e, freqüentemente, seus próprios
verdadeiras vantagens que resultaram filhos não desejem intimamente a
de tudo isso para a felicidade da espé­ morte; nenhum navio naufragado dei­
cie humana, não se pode deixar de xou de constituir uma boa notícia para
ficar impressionado com a imensa certo negociante; não há uma casa que
desproporção que reina entre essas coi­ um devedor de má fé não gostaria que
sas, e deplorar a cegueira do homem se incendiasse com todos os papéis que
que, para alimentar seu louco orgulho contém; todos os povos se regozijam
e não sei que vã admiração por si pró­ com os desastres de seus vizinhos.
prio, faz com que corra com ardor Assim, encontramos nossos lucros no
atrás de todas as misérias de que é prejuízo de nossos semelhantés e a
perda de um quase sempre determina a
131 Trata-se, provavelmente, de Diderot, que prosperidade de outro. Mas o que exis­
a última parte do D iscurso descreve com o o te de mais perigoso ainda é que as
filósofo que “ argumenta consigo m esm o” calamidades públicas constituem a
tapando-se os ouvidos, e que as Confissões expectativa e a esperança de uma mul­
acusam de ter dado às primeiras obras de
Rousseau “esse tom duro e esse ar negro”. Tal tidão de particulares; uns desejam
cálculo dos bens e dos males estava na moda doenças, outros a mortalidade, outros
desde que o filósofo Leibniz acreditara ter a guerra, outros a fome. Vi homens
demonstrado que “tudo vai muito bem no me­ indignos chorarem de dor sabendo da
lhor dos mundos possíveis” e que Bayle vulga­
rizara suas idéias ao criticá-las. (N . de P.
possibilidade de um ano fértil, e o
A.-B.) grande e funesto incêndio de Londres,
298 ROUSSEAU

que custou â vida e os bens a tantos interfere no combate, este acaba com
infelizes, fez a fortuna a mais de dez alguns murros; o vencedor come, o
mil pessoas. Sei que Montaigne censu­ vencido vai tentar a sorte e tudo fica
ra o ateniense t)èm ades132 por ter em paz. Mas, com o homem em socie­
mandado punir um artesão que, ven­ dade, as coisas se passam muito
dendo esquifes caríssimos, ganhava diferentemente: trata-se, em primeiro
muito com a morte dos cidadãos. Mas, lugar, de atender ao necessário e,
alegando Montaigne razão para pu­ depois, ao supérfluo; depois, vêm as
nir-se todo o mundo, é evidente que tal delícias e, depois, as imensas riquezas;
razão confirma as minhas. Penetre­ depois, os súditos e os escravos. Não
mos, pois, através de nossas frívolas há um momento de cjescanso. O que há
demonstrações de benevolência, no de mais singular é que, quanto mais
que se passa no fundo dos corações e naturais e prementes são as necessida­
reflitamos sobre como deva ser um es­ des, tanto mais aumentam as paixões
tado de coisas no qual todos os ho­ e, o que é pior, o poder de satisfazê-las,
mens são forçados a agradár-se e a de forma que, depois de longas prospe-
destruir-se mutuamente, e no qual nas­ ridades, depois de terem se devorado
cem inimigos por dever e traidores por muitos tesouros e arruinado muitos
interesse. Caso me respondam que a homens, meu herói acabará por tudo
sociedade é constituída de tal modo sufocar até que seja ele o único senhor
que cada homem lucra auxiliando os do universo. Esse, abreviadamente, o
outros, replicarei que isso seria muito quadro moral, senão da vida humana,
bom se ele não lucrasse mais ainda pelo menos das pretensões secretas do
prejudicando-os. Não há, absoluta­ coração de todo homem civilizado.
mente, um lucro legítimo que não Comparai, sem prevenção, o estado
possa ser ultrapassado por aquele que do homem civil com o do homem sel­
se pode fazer ilegitimamente e o dano vagem e indagai, se puderdes, como,
que se faz ao próximo é sempre mais
além de sua maldade, suas necessi­
lucrativo do que os serviços. Não se
dades e misérias, o primeiro abriu
trata, pois, senão de encontrar os
novas portas à dor e à morte. Se consi­
meios para assegurar-se a própria
derardes as penas do espírito que nos
impunidade e para isso os poderosos
consomem, as paixões violentas que
empregam todas as forças e os fracos
nos esgotam e nos arruinam, os traba­
todas as artimanhas.
lhos excessivos com os quais se sobre­
O homem selvagem, depois de ter
carregam os povos, a preguiça ainda
comidò, fica em paz com toda a natu­
mais perigosa à qual os ricos se aban­
reza e é amigo de todos os seus seme­
donam, e que fazem que morram uns
lhantes. Caso, por vezes, tenha de
de suas necessidades e os outros de
disputar a alimentação, jamais avança seus excessos; se pensardes nas mistu­
desferindo golpes, sem antes ter com­
ras monstruosas de alimentos, nos
parado a dificuldade de vencer com a
temperos perniciosos, nas mercadorias
de encontrar em outro lugar sua
adulteradas, nas drogas falsificadas,
subsistência, e, como o orgulho não
nas trapaças daqueles que as vendem,
nos erros daqueles que as administram,
13 2 D em ades (cerca de 318 a. C.), orador ate­
niense, adversário de Demóstenes. A anedota no veneno das vasilhas em que são
se encontra nos Ensaios, I, X X I. (N. de P. preparados; se prestardes atenção às
A.-B.) doenças epidêmicas oriundas do ar
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 299

confinado entre as multidões de ho­ perdem a vida, tal fato não deixa de
mens reunidos, às que ocasionam a realmente duplicar a perda da espécie
delicadeza de nosso modo de vida, às humana. Inúmeros são os meios vergo­
passagens alternadas do interior de nhosos para impedir o nascimento dos
nossas casas para o ar livre, ao uso da homens e enganar a natureza; quer por
roupa vestida ou desvestida com pou­ esses gostos brutais e depravados que
quíssima precaução e a todos os cuida­ insultam sua obra mais encantadora,
dos que nossa sensualidade excessiva gostos qüe jamais foram conhecidos
transformou em hábitos necessários e tanto dos selvagens quanto dos ani­
cuja negligência ou privação nos custa mais e que nos países policiados nasce­
imediatamente a vida ou a saúde; se ram de uma imaginação corrompida;
levardes em consideração os incêndios seja por esses abortos secretos, dignos
e os tremores de terra que, consumindo frutos da depravação e da honra vicia­
ou revirando cidades inteiras, fazem da; seja pelo enjeitamento e assassínio
que os habitantes morram aos milha­ de uma multidão de crianças, vítimas
res; em uma palavra, se reunirdes os da miséria de seus pais ou da vergonha
perigos que todas essas causas juntam desumana de suas mães; seja, enfim,
continuamente sobre nossas cabeças, pela mutilação desses infelizes, uma
vereis como a natureza faz que pague­ parte de cuja existência e toda descen­
mos caro o desprezo que demos às dência são sacrificadas a canções vãs
suas lições. ou, o que é ainda pior, ao ciúme brutal
Neste ponto, não repetirei acerca da de alguns homens — mutilação que,
guerra o que já disse alhures, mas dese­ neste último caso, ultraja duplamente a
jaria que as pessoas instruídas quises­ natureza, tanto pelo tratamento que
sem ou ousassem, por uma vez, mos­ recebem aqueles que são atingidos,
trar ao público a minúcia dos horrores quanto pelo uso a que se destinam !
que são cometidos nos exércitos pelos Mas não haverá mil casos mais
arrendatários de víveres e de hospitais; freqüentes e mais perigosos ainda, nos
ver-se-ia que suas manobras, não de­ quais os direitos paternais ofendem
masiado secretas, devido às quais os abertamente a humanidade? Quantos
exércitos mais brilhantes se trans­ talentos enterrados e inclinações força­
formam em menos do que nada, das pela coerção imprudente dos pais !
matam mais soldados do que ceifa o Quantos homens, que se teriam distin­
ferro do inimigo. Constitui ainda um guido numa situação apropriada, mor­
cálculo não menos impressionante o rem infelizes e desonrados numa dada
relativo aos homens que o mar traga situação para a qual não tinham o
todos os anos pela fome, pelo escorbu­ menor go sto ! Quantos casamentos
to, pelos piratas, pelo fogo ou, ainda, felizes, mas desiguais, foram rompidos
pelos naufrágios. E preciso ainda, está ou perturbados e quantas castas espo­
claro, lançar à conta da propriedade sas desonradas por essa ordem de con­
estabelecida e, conseqüentemente, da dições sempre em contradição com a
sociedade, os assassínios, os envenena­ da natureza; quantas outras uniões
mentos, os assaltos nas estradas e as insuportáveis formadas pelo interesse e
próprias punições desses crimes. São condenadas pelo amor e pela ra z ã o !
punições necessárias para prevenir Até mesmo quantos esposos honestos e
males maiores, mas se, por causa do virtuosos se supliciam, mutuamente,
assassínio de um homem, dois ou mais por se terem unido m a l! Quantas víti­
300 ROUSSEAU

mas jovens e infelizes da avareza dos telhadores, carpinteiros, pedreiros ou,


pais não se lançam ao vício ou passam ainda, aqueles que trabalham nas pe­
seus dias tristes entre lágrimas e dreiras; que se reúnam, digo, todos
gemendo sob laços indissolúveis, que o esses objetos e poder-se-ão ver, no
coração repele e que somente o ouro estabelecimento e no aperfeiçoamento
forjou! Felizes aqueles que, por vezes, das sociedades, os motivos da diminui­
a coragem ou a virtude arrancam da ção da espécie observada por mais de
vida antes que uma bárbara violência um filósofo.
os force a se entregarem ao crime ou O luxo, impossível de ser prevenido
ao desespero! Perdoai-me, pai e mãe entre homens ávidos de suas próprias
para sempre deploráveis; aumentei, comodidades e da consideração dos
contra minha vontade, vossas penas, demais, rapidamente termina a obra do
mas possam elas servir de eterno e ter­ mal que as sociedades começaram e, a
rível exemplo a quem quer que ouse pretexto de permitir que vivam os
violar o mais sagrado de seus direitos, pobres, coisa que não devera fazer,
em nome da própria natureza! empobrece todo o resto e, cedo ou
Como só me referi a essas uniões tarde, despovoa o Estado,
mal formadas, produtos de nossa polí­ O luxo é um remédio muito pior do
cia, poderíeis pensar que aquelas que o que o mal que pretende sanar, ou
amor e a simpatia presidiram estejam melhor, ele mesmo, em qualquer Esta­
isentas desses inconvenientes. Que do, grande ou pequeno, é o pior de
aconteceria se tentasse mostrar a espé­ todos os males que possam advir e,
cie humana atacada na sua própria para sustentar uma multidão de cria­
fonte e até no mais santo de todos os dos e de miseráveis engendrados por
laços, nos quais só se óusa ouvir a ele, oprime e arruina o operário e o
natureza depois de ter consultado a cidadão. É como aqueles ventos escal­
fortuna e onde, confundindo a desor­ dantes do Sul que, cobrindo a erva e a
dem civil com as virtudes e os vícios, a verdura de insetos devoradores, sub­
continência se torna uma precaução traem a substância dos animais úteis e
criminosa e a recusa de dar a vida pelo levam a todos os lugares em que se
seu semelhante um ato de humani­ fazem sentir a penúria e a morte.
dade? Mas, sem rasgar o véu que cobre Da sociedade e do luxo engendrado
tantos horrores, contentèmo-nos com por ela, nascem as artes liberais e
indicar aquele mal a que outros devem mecânicas, o comércio, as letras e
dar remédio. todas essas inutilidades que fazem a
Que se acrescente, a tudo isso, esse indústria florescer, que enriquecem e
número de ofícios insalubres que abre­ perdem os Estados. É muito simples o
viam a vida ou destroem o tempera­ motivo dessa ruína. É fácil ver que, por
mento, como os trabalhos das minas, sua natureza, a agricultura deverá ser a
as várias preparações dos metais, dos menos lucrativa de todas as artes, pois
minerais, sobretudo do chumbo, do sendo seus produtos, quanto ao uso, os
cobre, do mercúrio, do cobalto, do mais indispensáveis para todos os
arsênico, do rosalgar133; esses outros homens, deverá o seu preço ser propor­
ofícios perigosos que todos os dias cus­ cional às posses de todos os pobres.
tam a vida a inúmeros operários, como Do mesmo princípio pode-se extrair a
seguinte regra: as artes, em geral, são
133 O rosalgar é um sulfureto natural do arsê­ lucrativas na razão inversa de sua utili­
nico, de cor vermelha. (N . de P. A.-B.) dade e as mais necessárias deverão por
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 301

fim tornar-se as mais descuidadas. Por sua caça; que nos expliquem como
aí se vê o que se deve pensar das verda­ esses miseráveis tiveram simplesmente
deiras vantagens da indústria e do efei­ a audácia de enfrentar pessoas tão há­
to real que resulta de seus progressos. beis como éramos, com tão bela disci­
Tais são as causas visíveis de todas plina militar, códigos tão perfeitos e
as misérias a que a opulência acaba leis sábias, enfim por que, depois de
por lançar as nações mais admiradas. aperfeiçoar-se a sociedade nas regiões
À medida que a indústria e as artes se do Norte e de ter-se tanto trabalho
estendem e florescem, o cultivador para nelas ensinar aos homens seus
desprezado, sobrecarregado de impos­ deveres mútuos e a arte de conviver
tos necessários à manutenção do luxo agradável e tranqüilamente, não mais
e condenado a passar uma vida de tra­ se viu aparecer algo de semelhante a
balho e fome, abandona seus campos essas multidões de homens que outrora
para ir procurar nas cidades o pão que lá se produziam? Tenho muito receio
deveria levar para lá. Quanto mais as de que, afinal, alguém se disponha a
capitais enchem de admiração os olhos dizer-me que todas essas grandes coi­
estúpidos do povo, tanto mais se deve­ sas, a saber: as artes, as ciências e as
ria sofrer vendo os campos abandona­ leis, foram muito sabiamente inventa­
dos, as terras incultas e as estradas das pelos homens como uma peste
inundadas de infelizes cidadãos trans­ salutar para prevenir a multiplicação
formados em mendigos ou ladrões, e excessiva da espécie, temendo que este
destinados a um dia acabarem a sua mundo que nos é destinado se tornasse
miséria no suplício ou num monturo. E por fim demasiado pequeno para seus
assim que o Estado, enriquecendo por habitantes.
um lado, se enfraquece e se despovoa Pois então será preciso destruir as
por outro, e as monarquias mais pode­ sociedades, suprimir o teu e o meu, e
rosas, depois de muitos esforços para voltar a viver nas florestas com os
se tornarem opulentas e desertas, aca­ ursos? E essa uma conseqüência à
bam por se tornar a presa das nações moda de meus adversários, que prefiro
pobres que sucumbem à tentação fu­ antes prevenir do que possibilitar-lhes
nesta de invadi-las e que, por sua vez, a vergonha de formulá-la. O h ! vós, a
se enriquecem e se enfraquecem até quem a voz celeste não se fez ouvir e
que sejam, elas próprias, invadidas e que não reconheceis para vossa espécie
destruídas por outras. outro destino senão o de terminar em
Que se dignem explicar-nos o que paz esta curta vida; vós, que podeis
puderam produzir essas ondas de bár­ deixar no meio das cidades vossas
baros que durante tantos séculos inun­ funestas aquisições, vossos espíritos
daram a Europa, a Ásia, a África. Será inquietos, vossos corações corrom­
que deviam sua prodigiosa população pidos e vossos desejos desenfreados;
à indústria de suas artes, à sabedoria retomai, posto que depende de vós,
de suas leis, à excelência de sua polí­ vossa antiga e primeira inocência, ide
cia? Que tenham os nossos sábios a aos bosques esquecer o espetáculo e a
bondade de dizer-nos por que, ao invés memória dos crimes de vossos contem­
de se multiplicarem desse modo, esses porâneos e não temais aviltar vossa
homens ferozes e brutais, sem luzes, espécie renunciando às suas luzes para
sem freio, sem educação, a cada renunciar a seus vícios. Quanto aos
momento não se entredevoram mutua­ homens semelhantes a mim, cujas pai­
mente para disputar suas pastagens e xões destruíram para sempre a simpli-
302 ROUSSEAU

cidade original, que não podem mais mesmo têm barba. Houve, e talvez
alimentar-se de ervas e de bolotas, nem haja ainda, nações de homens com
viver sem leis e sem chefes; aqueles uma estatura gigantesca e, deixando de
que foram honrados, na pessoa de seu lado a fábula dos pigmeus, que pode
primeiro pai, por lições sobrenaturais; muito bem não passar de um exagero,
aqueles que verão, na intenção de dar sabe-se que os lapÕes e, sobretudo, os
inicialmente às ações humanas uma groenlandeses estão muito abaixo da
moralidade que não adquiriram ao fim estatura média do homem. Pretende-se
de muito tempo, a razão de um pre­ ainda existirem povos inteiros que,
ceito indiferente em si mesmo e inex­ como os quadrúpedes, possuem cau­
plicável por qualquer outro sistema, das. E, sem depositar fé cega nos rela­
em uma palavra, aqueles que estão tos de Heródoto e de Ctesias134,
convencidos de ter a voz divina cha­ pode-se pelo menos aproveitar deles
mado todo o gênero humano às luzes e aquela opinião, muito plausível, de
à felicidade das inteligências celestes que, se fora possível praticar boas
— todos esses, pelo exercício das vir­ observações nesses tempos antigos,
tudes que se obrigam a praticar ao quando os vários povos apresentavam
aprender a conhecê-las, esforçar-se-ão modos de vida mais diferentes entre si
por merecer o prêmio eterno que do que acontece atualmente, ter-se-ia
devem esperar; respeitarão os sagrados então notado, no aspecto e na complei­
laços da sociedade de que são mem­ ção do corpo, variedades bem mais
bros; amarão seus semelhantes e os notáveis. Todos esses fatos, dos quais é
servirão com todas as suas forças; fácil fornecer provas incontestáveis, só
obedecerão escrupulosamente às leis e podem surpreender os habituados a
aos homens que são seus autores e olhar unicamente os objetos que os cir­
ministros; honrarão, sobretudo, os cundam, e que ignoram os efeitos
bons e sábios príncipes que saberão poderosos da diversidade dos climas,
prevenir, sanar ou paliar essa chusma do ar, dos alimentos, do modo de
de abusos e de males sempre prontos a viver, dos hábitos em geral e, sobretu­
oprimir-nos; animarão o zelo desses do, a força surpreendente dessas mes­
dignos chefes mostrando-lhes, sem mas causas quando agem continua­
temor e sem adulação, a grandeza de mente sobre muitas gerações seguidas.
sua tarefa e a austeridade de seu dever, Atualmente, quando o comércio, as
mas nem por isso desprezarão menos viagens e as conquistas mais unem os
uma constituição que só pode manter- vários povos e suas maneiras de vida
se com o auxílio de tantas pessoas aproximam-se incessantemente pela
respeitáveis, que mais freqüentemente comunicação freqüente, percebe-se
se deseja ter do que de fato se obtém e terem diminuído certas diferenças na­
da qual, malgrado todos os seus cuida­ cionais e cada um, por exemplo, pode
dos, nascem sempre mais calamidades observar que os franceses de hoje não
reais do que vantagens aparentes. possuem mais esses grandes corpos
(j) Entre os homens que conhece­ brancos e louros descritos pelos histo­
mos, por nós mesmos, pelos historia­ riadores latinos, se bem que o tempo,
dores ou pelos viajantes, uns são juntamente com a mistura dos francos
negros, outros brancos e outros verme­
lhos; uns têm cabelos longos, outros só 13 4 C tésias: historiador grego, médico de
têm lã encarapinhada; uns são quase Artaxerxes Mnémon (V século a. C.)- (N . de P.
todos cobertos de pêlos, outros nem A.-B.)
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 303

e dos normandos, què também eram lhas não são cobertas de pêlo, com
brancos e louros, deverá ter restabele­ exceção das sobrancelhas, que são
cido o que o convívio com os romanos muito longas. Ainda que tenham o
pudesse excluir da influência do clima resto do corpo muito peludo, o pêlo aí
na constituição natural e na cor da tez não é muito espêsso e sua cor é escura.
dos habitantes. Todas essas varieda­ Por fim, a única parte que os dinstin-
des, que inúmeras causas podem pro­ gue dos homens é a perna, que não tem
duzir e efetivamente produziram na barriga. Andam eretos, segurando com
espécie humana, fazem com que, quan­ a mão o pêlo do pescoço; abrigam-se
to a vários animais semelhantes aos nos bosques e dormem em cima das ár­
homens — que os viajantes, sem um vores, onde constroem uma espécie de
exame acurado, consideraram como teto que os protege da chuva. Seus ali­
feras, por causa de algumas diferenças mentos são frutos ou nozes selvagens.
que notaram na conformação exterior, Jamais comem carne. Os negros que
ou unicamente porque tais animais não atravessam as florestas costumam
falavam — eu desconfie serem, com acender fogueiras durante a noite;
efeito, verdadeiros homens selvagens, notam eles que, pela manhã, depois de
cuja raça, dispersada antigamente nos sua partida, os pongos tomam o seu
bosques, não encontrara ocasião de lugar à volta do fogo e só se retiram
desenvolver qualquer de suas faculda­ quando ele se extingue, pois, embora
des virtuais, não adquirindo nenhum sendo muito habilidosos, não têm inte­
grau de perfeição e encontrando-se ligência suficiente para alimentá-lo
ainda no estado primitivo de natureza. com lenha.
Demos um exemplo do que desejo “ Algumas vezes andam em grupo e
dizer. matam os negros que atravessam as
“ Encontra-se”, diz o tradutor da florestas. Chegam até a atacar os ele­
História das Viagens 13 5, “no reino do fantes que vêm pastar nas regiões habi­
Congo, um certo número desses gran­ tadas por eles e os incomodam tanto
des animais que nas índias Orientais com socos ou pauladas que os forçam
chamam de orangotangos e que são a fugir soltando gritos. Nunca se agar­
como o meio-termo entre a espécie hu­ ra um pongo vivo, porque são tão
mana e os bugios. Battel13 6 conta que robustos que dez homens não seriam
nas florestas de Mayomba, no reino de capazes de prendê-lo; mas os negros
Loango, se podem ver duas espécies de agarram muitos deles quando ainda
monstros: os maiores chamam-se pon- novos, matando a mãe, ao corpo da
gos e os outros enjocos. Os primeiros qual o filhote se agarra fortemente.
têm uma semelhança exata com o Quando um desses animais morre, os
homem, mas são muito mais largos e outros cobrem seu corpo com um mon­
de estatura muito alta. Possuindo um tão de ramos ou de folhas. Pur-
rosto humano, têm os olhos muito chass13 7 acrescenta que, nas conversa­
encovados. As mãos, as faces, as ore­ ções que tivera com Battel, ouvira dele
próprio que um pongo lhe arrebatou
135 A H istória das Viagens ( L ’H istoire des um negrinho que passou um mês intei­
Voyages): publicação periódica que existia
desde 1746. (N . de P. A.-B.)
ro entre esses animais, pois eles não
13 6 A n d ré B attel (1565-1640): viajante inglês,
aprisionado pelos portugueses, explorou a 137 Sam uel Purchass (1577-1628): colecio­
costa sudoeste da África e publicou uma nar­ nador inglês e editor de narrativas de viagem.
rativa de suas viagens. (N . de P. A.-B.) (N . de P. A.-B.)
304 ROUSSEAU

fazem nenhum mal ao homem que os tanto jeito que poderia ser tomado
surpreende, pelo menos quando este como um homem na cama. Os negros
não os olha, como observara o negri- contam coisas estranhas sobre esses
nho. Battel não descreveu a segunda animais; asseguram que não só forçam
espécie de monstro. as mulheres e as moças, como também
“D apper138 confirma que o reino ousam atacar homens armados. Em
do Congo está cheio desses animais uma palavra, há forte aparência de tra­
que na índia são chamados de orango­ tar-se do sátiro dos antigos. Merol-
tangos, isto é, moradores dos bosques la139 talvez se refira a esses animais
e que os africanos chamam de quojas quando conta que os negros algumas
morros. Esse animal, diz ele, é tão vezes agarram nas suas caças homens
semelhante aos homens, que certos via­ e mulheres selvagens.”
jantes chegaram a julgá-lo fruto de Fala-se ainda dessas espécies de ani­
uma mulher e de um macaco, quimera mais antropoformes no terceiro tomo
que os próprios negros rejeitam. Um da mesma História das Viagens, sob o
desses animais foi transportado do nome de beggos e de mandrills; mas,
Congo para a Holanda e apresentado para limitarmo-nos aos relatos prece­
ao Príncipe de Orange, Frederico Hen­ dentes, encontra-se na descrição desses
rique. Era da altura de uma criança de pretensos monstros semelhanças cho­
três anos e de nediez medíocre, mas cantes com a espécie humana e dife­
atarracado e bem proporcionado, renças menores do que as que se pode­
muito ágil e vivo, as pernas carnudas e riam notar de homem para homem. De
robustas, toda a parte da frente nua modo algum se encontram nessas pas­
mas o traseiro coberto de pêlos negros. sagens os motivos nos quais os autores
Seu semblante, à primeira vista, pare­ se fundamentam para recusar a esses
cia-se com o de um homem, mas pos­ animais o nome de homens selvagens,
suía o nariz achatado e recurvado; mas é fácil imaginar dever-se isso à
suas orelhas eram também como as da sua estupidez e, também, a não fala­
espécie humana; seu seio, pois era uma rem; são razões fracas para aqueles
fêmea, era carnudo, o umbigo enterra­ que sabem que, apesar de o órgão da
do, os ombros muito juntos, suas mãos palavra ser natural ao homem, a pala­
divididas em dedos e polegares, a bar­ vra em si, todavia, não lhe é natural e
riga da perna e o calcanhar gordos e até que ponto sua perfectibilidade pôde
carnudos. Comumente andava ereto elevar o homem civil acima de seu es­
sobre as pernas e era capaz de levantar tado originai. O pequeno número de li­
e carregar fardos bem pesados. Quan­ nhas em que são feitas essas descrições
do queria beber, pegava com uma das permite-nos imaginar como esses ani­
mãos a tam pa do vaso e com a outra mais foram mal observados e com que
segurava a base, enxugando em segui­ preconceitos foram vistos. Por exem­
da, graciosamente, os lábios. Deitava- plo, são qualificados de monstros, mas
se para dormir pondo a cabeça sobre convêm em que eles geram. Num certo
um travesseiro e cobrindo-se com trecho, Battel diz que os pongos
matam os negros que atravessam as
13 8 O liver D apper (cerca de 1680): médico e
florestas, num outro, Purchass acres-
geógrafo holandês, autor de numerosas obras
sobre os países africanos, a China, a Pérsia, as 139 Geronim o M erolla: capuchinho e m issio­
terras do Sul da América, as ilhas do Arquipé­ nário italiano, nascido em 1650, autor de uma
lago, etc. (N . de P. A.-B.) Viagem ao Congo. (N. de P. A.-B.)
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 305

centa que eles não lhes causam ne­ como creio, imitar a ação de um
nhum mal, mesmo quando os sur­ homem. Seja como for, está bem
preendem, pelo menos quando os demonstrado que o macaco não é uma
negros não começam a olhá-los. Os variedade do homem, não somente por
pongos se reúnem em torno das foguei­ não possuir a faculdade de falar, mas,
ras acesas pelos negros, quando estes sobretudo, porque se tem a certeza de
se afastam, e por sua vez se retiram, que sua espécie não é capaz de aperfei­
quando o fogo se extingue. Aí está o çoar-se, o que constitui o caráter espe­
fato; vejamos o comentário do obser­ cífico da espécie humana; parece que
vador: “ Pois, embora sendo muito essas experiências não foram feitas
habilidosos, não têm inteligência sufi­ relativamente aos pongos e os orango­
ciente para alimentá-lo com lenha” . tangos com cuidado suficiente para
Gostaria de descobrir como Battel ou poder tirar a mesma conclusão. Have­
Purchass, seu compilador, pôde saber ria, no entanto, um meio pelo qual, se
que a retirada dos pongos era um o orangotango ou outros seres fossem
resultado antes de sua estupidez do que da espécie humana, as observações
de sua vontade. Num clima como o de mais grosseiras poderiam disso certifi­
Loango, o fogo não é uma coisa muito car-se, até mesmo demonstrando; mas,
necessária para os animais e, se os ne­ além de uma única geração não ser
gros o acendem, é mais para amedron­ suficiente para essa experiência, ela pa­
tar os animais ferozes do que contra o rece impraticável, porque seria neces­
frio, sendo pois muito possível que de­ sário que aquilo que não passa de uma
pois de, durante certo tempo, ter-se suposição fosse demonstrado como
deleitado com a chama ou de ter-se verdadeiro, antes que a prova desti­
aquecido bem, os pongos se aborreçam nada a verificar o fato fosse tentada
de ficar sempre no mesmo lugar e se inocentemente.
retirem para o seu pasto, que exige Os julgamentos precipitados, que
mais tempo do que se comessem carne. não são fruto de uma razão esclare­
Aliás, sabe-se que a maioria dos ani­ cida, estão sujeitos a chegar ao exces­
mais, sem excetuar o homem, é natu­ so. Nossos viajantes sem-cerimonio-
ralmente preguiçosa e se furta a todas samente apresentam bestas, sob os
as espécies de cuidados que não sejam nomes de pongos, mandrills, orango­
de absoluta necessidade. Finalmente, tangos, que são os mesmos seres que
parece muito estranho que os pongos, os antigos, sob o nome de sátiros, fa u ­
cuja habilidade e força se enaltecem, nos e silvanos, consideravam divinda­
que sabem enterrar os seüs mortos e des. Verificar-se-á talvez, -depois de
construir abrigos com galhos, não sai­ pesquisas mais exatas, não serem nem
bam lançar lenha ao fogo. Lembro-me bestas nem deuses, mas homens. Espe­
de ter visto um macaco fazer essa rando, parece-me haver muitos moti­
mesma manobra que não querem ad­ vos para, nesse assunto, basearmo-nos
mitir poderem os pongos fazer; é ver­ mais em Merolla, religioso culto, teste­
dade que, não estando então minhas munha ocular e que, com toda a sua
idéias voltadas para esse lado, cometi ingenuidade, não deixava de ser
eu mesmo a falta que censuro em nos­ homem de espírito, do que no comer­
sos viajantes, e descuidei de verificar ciante Battel, em Dapper, em Purchass
se a intenção do macaco era, com efei­ e nos outros compiladores.
to, manter o fogo ou simplesmente, Que julgamento cremos poderiam
306 ROUSSEAU

expender tais observadores sobre a Ora, não se deve esperar que as três
criança encontrada em 1694, de quem primeiras classes forneçam bons obser­
já falei atrás, que não apresentava ne­ vadores e, quanto aos da quarta, pos­
nhum sinal de razão, andava sobre os suídos pela vocação sublime que os
pés e as mãos, não possuía nenhuma inspira, mesmo que não fossem como
linguagem e soltava sons que de modo todos os outros, sujeitos aos precon­
algum se pareciam com os de um ceitos próprios ao seu estado, pode-se
homem? crer que não se dedicariam de boa von­
“Passou-se muito tempo”, continua tade a buscas aparentemente de pura
o mesmo filósofo que me forneceu esse curiosidade e que os desviariam dos
fato, “ antes de poder ela proferir algu­ trabalhos mais importantes a que se
mas palavras ainda que de modo bár­ destinam. Aliás, para pregar eficiente­
baro. Assim que pôde falar, interroga­ mente o Evangelho, basta o zelo, e
ram-na quanto ao seu primeiro estágio, Deus dá o reàto, mas, para estudar os
mas não se lembrava dele mais do que homens, são necessários talentos que
nós nos recordamos do que nos acon­ Deus não se esforça para dar a nin­
teceu no berço.” guém e que nem sempre os santos pos­
Se, infelizmente para ela, essa crian­ suem. Não se abre um livro de viagens
ça tivesse caído nas mãos de nossos em que não se encontrem descrições de
viajantes, não se pode duvidar que, de­ caracteres e de costumes, mas fica-se
pois de ter notado seu silêncio e sua espantado ao verificar que essas pes­
estupidez, não tivessem resolvido man­ soas, que tanto descreveram coisas, só
dá-la de volta para o campo ou presa disseram o que cada um já sabia, só
para um parque de aclimação e, souberam perceber, no outro lado do
depois, falariam dela, em belos relatos, mundo, o que poderiam notar sem sair
como de uma besta singularíssima que de sua rua e que os verdadeiros traços
se parecia muito com o homem. que distinguem as nações e atingem
Depois de, por trezentos ou quatro­ olhos feitos para ver quase sempre
centos anos, os habitantes da Europa escaparam aos seus. Daí veio esse belo
inundarem as outras partes do mundo provérbio de moral, tão repisado pela
e incessantemente publicarem novos turba filosofesca — que os homens,
repositórios de viagens e de relatos, em todos os lugares, são os mesmos e
estou persuadido de que, quanto aos que, possuindo em todos os lugares as
homens, só reconhecemos os europeus; mesmas paixões e os mesmos vícios, é
parece até, devido aos preconceitos bastante inútil tentar caracterizar os
ridículos que ainda não se extinguiram vários povos — , o que é aproximada­
entre os letrados, que cada um, sob o mente tão bem raciocinado quanto se
título pomposo de estudo do homem, disséssemos não se poder distinguir
só faz o dos homens de seu país. Os Pedro de João porque ambos têm um
particulares podem satisfazer-se indo e nariz, uma boca e olhos.
vindo; parece que a filosofia não sai do Veremos, algum dia, renascer os
lugar, de modo que a de cada povo é tempos felizes em que os povos não se
pouco adaptável a um outro. A causa intrometiam querendo filosofar, mas
disso é manifesta, pelo menos para as quando os Platões, os Tales e os Pitá-
regiões distantes. Somente quatro tipos goras, tomados por um desejo ardente
de homens fazem viagens de longo de saber, empreendiam as maiores via­
curso — os marinheiros, os comer­ gens unicamente para se instruir e iam
ciantes, os soldados e os missionários. longe sacudir o jugo dos preconceitos
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 307

nacionais, conhecer os homens por Parece que a China foi bem observada
suas conformidades e diferenças, e pelos jesuítas. Kempfer dá uma idéia
adquirir seus conhecimentos univer­ passável do pouco que viu no Japão.
sais, que não são exclusivamente os de Salvo esses relatos, não conhecemos,
um século ou de uma região, mas, em absoluto, os povos das índias
sendo de todos os tempos e de todos os Orientais, visitadas unicamente por
lugares, são, por assim dizer, a ciência europeus mais interessados em encher
comum dos sábios? suas bolsas do que suas cabeças.
Admira-se a magnificência de al­ Ainda precisa ser observada toda a
guns curiosos que, com grandes despe­ África e seus numerosos habitantes,
sas, fizeram ou custearam viagens ao tão singulares pelo seu caráter quanto
Oriente, com sábios e pintores, para lá pela cor; a terra toda está coberta de
desenhar ruínas e decifrar ou copiar nações das quais só conhecemos os
inscrições; custo, porém, a com­ nomes, e ainda queremos julgar o gê­
preender como, num século que se van­ nero hum ano! Suponhamos um Mon­
gloria de altos conhecimentos, não se tesquieu, um Buffon, um Diderot, um
encontrem dois homens bem ligados, D uelos1 43, um d’Alembert, um Con­
ricos, um em dinheiro e outro em dillac ou homens dessa têmpera, via­
gênio, ambos amando a glória e aspi­ jando para instruir seus compatriotas,
rando à imortalidade, um dos quais observando e descrevendo, como o
sacrifique vínte mil escudos de sua for­ sabem, a Turquia, o Egito, a Barbá-
tuna e outro dez anos de sua vida para ria 144, o Império de Marrocos, a
uma célebre viagem em volta do Guiné, o país dos Cafres1 4 5, o interior
mundo, a fim de, pelo menos uma vez, da África e suas costas orientais, as
em lugar de estudar sempre pedras e M alabares1 4 6, o Mogol1 4 7, os rios do
plantas, estudarem os homens e os cos­ Ganges, os reinos do Sião, de Pegu1 48
tumes e, depois de tantos séculos dedi­ e de A va1 49, a China, a Tartária1 50 e,
cados a medir e considerar a casa, se
resolvam por fim a conhecer-lhe os 1 43 D u elos (1704-1772): moralista francês,
habitantes. autor de Considerações sobre os Costum es.
Os acadêmicos que percorreram as (N. de P. A.-B.)
partes setentrionais da Europa e meri­ 1 4 4 Barbária era, então, o nome de certas
regiões da África do Norte: a Argélia, a Tuní­
dionais da América tinham mais por sia e a regência de Tripoli; seus habitantes
objeto visitá-las como geômetras do eram piratas de renome. (N. de P. A.-B.)
que como filósofos. No entanto, como 1 4 5 Cafrária designa a região sudoeste da
eram simultaneamente tanto uma coisa África habitada pelos bantos e centralizada em
torno do Cabo. (N . de P . A.-B.)
como outra, não se pode considerar 146 Os malabares habitam a costa oeste do
como totalmente desconhecidas as re­ D ecã, no Indostão. (N . de P. A.-B.)
giões vistas e descritas pelos La Con- 147 O termo M o g o l designa o império dos
damine1 40 e M aupertuis1 41. O jo a­ M ongóis ou do Grã-M ogol, fundado por Gên-
lheiro C hardin1 42, que viajou como gis Cã, reconstruído por Tamerlão; atingiu seu
apogeu sob Aureng-Zeyg (1659-1707); com ­
Platão, nada pôde dizer sobre a Pérsia. preendia uma grande parte da China e da
índia. (N. de P. A.-B.)
1 40 L a Condam ine (1701-1774): sábio fran­ 1 4 8 p eg U: nome de um reino da Birmânia e de
cês. (N . de P. A.-B.) sua capital. (N. de P. A.-B.)
1 41 P. L. M oreau de M aupertuis (1698-175 1); 1 49 A v a : nome de outro reino da Birmânia e
geômetra e naturalista francês. (N . de P. A.-B.) de sua capital. (N . de P. A.-B.)
142 Chardin (1643-1713): viajante francês, 1 50 A Tartária representava o Turquestão,
autor de uma Viagem à Pérsia e às ín dias fazendo desem bocá-lo na Sibéria e no A fega­
Orientais. (N . de P. A.-B.) nistão. (N . de P. A.-B.)
308 ROUSSEAU

sobretudo, o Japão; depois, no outro senão as coisas que conhece e não


hemisfério, o México, o Peru, o Chile, conhecendo senão aquelas cuja posse
as Terras Magelânicas1 51, sem esque­ tem ou é fácil de adquirir, nada deve
cer os patagões1 52 verdadeiros ou fal­ ser tão tranqüilo quanto a sua alma e
sos, o Tucum ã1 53, Paraguai, se fosse nada tão limitado quanto seu espírito.
possível, o Brasil e, por fim, as Caraí­ (I) Encontro no Governo Civil, de
bas, a Flórida e todas as regiões selva­ Locke, uma objeção que me parece
gens. Seria a viagem mais importante demasiado especiosa para que possa
de todas e a que se deveria fazer com o ocultá-la:
maior cuidado. Suponhamos que esses “ O fim da sociedade entre o macho
novos Hércules, de volta das jornadas e a femea”, diz esse filósofo, “não
maravilhosas, escrevessem depois, à sendo unicamente procriar, mas conti
vontade, a história natural, a moral e a nuar a espécie, tal sociedade deve per­
política do que tivessem visto: vería­ durar até depois da procriação, pelo
mos nós mesmos sair de sua pena um menos durante o tempo necessário à
mundo novo e aprenderíamos assim a alimentação e à conservação dos pro­
conhecer o nosso. Afirmo que quando criados, isto é, até que sejam capazes
tais observadores, referindo-se a um de atender por si próprios às suas
certo animal, dissessem ser um homem necessidades. Podemos verificar que
e de um outro ser uma besta, dever-se- essa regra, estabelecida pela sabedoria
ia crer. Constitui, porém, enorme sim­ infinita do Criador para as obras de
plicidade basear-se, a esse respeito, em suas mãos, é constante e exatamente
viajantes grosseiros, em relação aos observada pelas criaturas inferiores ao
quais se é algumas vezes tentado a homem. Entre esses animais que vivem
fazer a mesma pergunta que eles .se das ervas, a sociedade entre o macho e
metem a resolver acerca de outros a fêmea não dura mais do que o tempo
animais. da copulação, pois que, sendo as
(k) Tal coisa me parece eviden- mamas da mãe suficientes para nutrir
tíssima e eu não poderia conceber de os filhotes até que sejam capazes de
onde nossos filósofos puderam tirar pastar a erva, contenta-se o macho
todas as paixões que emprestam ao com gerar e, depois disso, não se preo­
homem natural. Excetuando-se, unica­ cupa mais com a fêmea e os filhotes,
mente, a necessidade física, que a pró­ para a subsistência dos quais nada
pria natureza exige, todas as nossas pode trazer. Mas, com relação às bes­
outras necessidades são devidas ao há­ tas de presa, a sociedade dura um
bito, antés do qual não eram necessida­ tempo maior, porque, não podendo a
des, ou aos nossos desejos, e não se de­ mãe atender à própria subsistência e,
seja aquilo que não se está em ao mesmo tempo, alimentar os filhotes,
condições de conhecer. Conclui-se daí recorrendo unicamente à sua presa,
que o homem selvagem, não desejando que é uma via de se alimentar ainda
mais trabalhosa e mais perigosa do
1 51 Terras M agelânicas são as ilhas da Terra que a de se alimentar de ervas, a assis­
do Fogo, que o navegador português M aga­ tência do macho torna-se inteiramente
lhães descobriu em 1520, bem como o estreito necessária para a manutenção de sua
que tem seu nome.
152 Os Patagões habitam o Sul do Chile e da
família comum — caso se possa
Argentina. (N. de P. A.-B.) empregar tal expressão — , a qual, até
1 53 Tucumã: atualmente, província da Repú­ que possa procurar alguma presa, só
blica Argentina. (N . de P. A.-B.) poderia subsistir pelos cuidados do
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 309

macho e da fêmea. Observa-se a indústria do homem e da mulher e seus


mesma coisa entre todas as aves, exce­ interesses mais unidos, visando formar
tuando-se algumas aves domésticas provisões para seus filhos e deixar-lhes
que se encontram nos lugares em que a algum bem, nada podendo ser mais
abundância contínua de alimentação prejudicial aos filhos do que uma con­
isenta o macho do cuidado de alimen­ junção incerta e vaga ou uma dissolu­
tar os filhotes; vê-se que, enquanto os ção fácil e freqüente da sociedade
filhotes, no ninho, têm necessidade de conjugal” .
alimentos, o macho e a fêmea a eles os O mesmo amor da verdade, que me
levam, até que eles possam voar e aten­ fez expor sinceramente essa objeção,
der à sua subsistência. incita-me a acompanhá-la de algumas
“E, a meu ver, isso constitui a prin­ observações, senão para resolvê-la, ao
cipal, senão a única razão por que o menos para esclarecê-la.
macho e a fêmea no gênero humano 1. Observarei, em primeiro lugar,
são obrigados a uma sociedade mais que as provas morais não têm uma
longa do que a mantida pelas outras grande força em matéria de'físico e que
criaturas. Esse motivo consiste em ser servem, antes para dar conta dos fatos
a mulher capaz de conceber e nova­ existentes do que para verificar a exis­
mente engravidar e gerar um novo tência real desses fatos. Ora, é esse o
filho muito antes que o precedente gênero de prova que o Sr. Locke
possa dispensar o socorro de seus pais emprega no trecho que acabo de apre­
e por sua parte atender às necessida­ sentar, pois, ainda que possa mostrar-
des. Desse modo, sendo um pai obri­ se vantajoso para a espécie humana ser
gado a tomar cuidado daqueles que permanente a união entre o homem e a
gerou e a ocupar-se disso durante mulher, não se conclui que tal tenha
muito tempo, está também na obriga­ sido estabelecido pela natureza; de
ção de continuar a viver na sociedade outro modo, dever-se-ia dizer que ela
conjugal com a mesma mulher de que também instituiu a sociedade civil, as
os teve e de permanecer nessa socie­ artes, o comércio e tudo que se pre­
dade por muito mais tempo do que as tende seja útil aos homens.
outras criaturas entre as quais, poden­ 2. Ignoro onde o Sr. Locke desco­
do os filhotes subsistir por si mesmos briu que, entre os animais de presa, a
antes que chegue o tempo de uma nova sociedade entre o macho e a fêmea
procriação, o laço entre o macho e a dura mais do que entre os qüe vivem
fêmea se rompe por si mesmo e ambos de erva e que um ajuda o outro a ali­
ficam em inteira liberdade, até que a mentar os filhotes, pois não se vê o
estação que costuma solicitar os ani­ cão, o gato, o urso ou o lobo reconhe­
mais a ficarem juntos os obriga a esco­ cerem melhor sua fêmea do que o
lherem novas companhias. E aqui não cavalo, o carneiro, o touro, o veado ou
se poderia admirar suficientemente a todos os demais animais quadrúpedes
sabedoria do Criador que, tendo dado reconhecem a sua. Ao contrário, pare­
ao homem qualidades próprias para ce que, se fora necessário à mulher o
atender tanto ao futuro quanto ao pre­ socorro do macho para atender à
sente, quis e obrou de modo a que a conservação dos filhotes, o seria sobre­
sociedade do homem durasse muito tudo nas espécies que vivem de ervas,
mais tempo do que a do macho e da porque a mãe leva muito tempo para
fêmea entre as outras criaturas, a fim pastar e, durante todo esse intervalo,
de que assim fosse mais excitada a vê-se forçada a descuidar de sua ninha­
310 ROUSSEAU

da, enquanto a presa de uma ursa ou saber, como ele pretende, que no esta­
de uma loba é devorada num instante e do de natureza a mulher comumente
ela, sem sofrer fome, tem mais tempo fica novamente grávida e gera um
para aleitar seus filhotes. Esse racio­ novo filho muito antes que o prece­
cínio é confirmado por uma observa­ dente possa por si mesmo atender às
ção sobre o número relativo de tetas e suas necessidades, seriam necessárias
de filhotes que distingue as espécies experiências que certamente o Sr.
carniceiras das frugívoras, e à qual me Locke não fez e ninguém está em situa­
referi na nota h. Caso a observação ção de fazer. A coabitação contínua do
seja justa e geral, a mulher, não tendo marido e da mulher é uma ocasião tão
senão dois seios e não gerando de cada tangível de expor-se a uma nova gravi­
vez mais do que um filho, constitui dez que é bem difícil de crer que o
isso mais um motivo para duvidar que encontro fortuito ou somente o impul­
a espécie humana seja naturalmente so do temperamento produza efeitos
carniceira, parecendo pois que, para tão freqüentes no estado puro dè natu­
concluir como Locke, seria preciso reza quanto no da sociedade conjugal;
inverter inteiramente seu raciocínio. essa lentidão contribuiria talvez para
Não há maior solidez na mesma distin­ tornar as crianças mais robustas, o que
ção aplicada aos pássaros, pois quem aliás poderia ser compensado pela
poderia se convencer de ser mais durá­ faculdade de conceber, prolongada até
vel a união de macho e femea entre os uma idade mais avançada nas mulhe­
abutres e os corvos do que entre as res que abusassem menos na sua
rolas? Possuímos duas espécies de pás­ juventude. Quanto aos filhos, há mui­
saros domésticos, o pato e o pombo, tos motivos para crer que suas forças e
que nos fornecem dois exemplos dire­ órgãos se desenvolvam mais tardia­
tamente contrários ao sistema desse mente entre nós do que acontecia no
autor. O pombo, que só vive de grãos, estado primitivo de que falo. A fra­
fica junto de sua femea e ambos nu­ queza original, que devem à constitui­
trem em comum os filhotes. O pato, ção dos pais, o cuidado que se tem de
cuja voracidade é bem conhecida, não envolver e embaraçar todos os seus
reconhece nem a femea nem os filhotes membros, a frouxidão em que são edu­
e em nada ajuda sua subsistência; cados, talvez o uso de um outro leite
entre as galinhas, espécie que de modo que não o da mãe, tudo contraria e
algum é menos carniceira, vê-se que o retarda neles os primeiros progressos
galo não tem nenhum trabalho com a da natureza. A aplicação que se lhes
ninhada. Se, em outras espécies, o obriga a dar a mil coisas nas quais
macho partilha com a femea o cuidado continuamente se fixa a sua atenção,
de nutrir os filhotes, tal acontece por­ enquanto não se proporciona qualquer
que os pássaros, que a princípio não exercício às suas forças corporais,
podem voar e cuja mãe não pode alei­ pode ainda causar um desvio conside­
tar, estão muito menos em estado de rável no seu crescimento, de forma
dispensar a assistência do pai do que que, se em lugar de primeiro sobrecar­
os quadrúpedes, a quem, pelo menos regar e fatigar seus espíritos de mil
durante algum tempo, é suficiente a modos, deixássemos seus corpos se
teta da mãe. exercitarem nos movimentos contínuos
3. Há muita incerteza quanto ao que a natureza parece pedir-lhes, po
fato principal que serve de base a todo de-se crer que estariam muito mais
o raciocínio do Sr. Locke, pois para cedo em estado de andar, de agir e de
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 311

atender, por si próprios, às suas neces­ concepção do filho, torna-se ainda


sidades. maior o obstáculo de sua sociedade
4. Por fim, o Sr. Locke prova, no com o homem, pois então não tem
máximo, que bem poderia haver no mais necessidade nem do homem que a
homem um motivo para permanecer li­ fecundou, nem de qualquer outro. Não
gado à mulher quando ela tem um há, pois, no homem, motivo algum
filho, mas não prova, de modo algum, para procurar a mesma mulher, nem
que a ela se prendeu antes do parto e na mulher razão alguma para procurar
durante os noves meses de gravidez. Se o mesmo homem. O raciocínio de
tal mulher é indiferente ao homem Locke se esfacela e toda a dialética
durante esses nove meses, se até se desse filósofo não o poupou do erro
torna desconhecida para ele, por que a que Hobbes e outros cometeram. Ti­
socorreria depois do parto? Por que a nham de explicar um fato relativo ao
auxiliaria a criar um filho, que não estado de natureza, isto é, a um estado
sabe se lhe pertence unicamente e de em que os homens viviam isolados e
quem não resolveu nem previu o nasci­ no qual um homem não possuía qual­
mento? O Sr. Locke evidentemente dá quer motivo para permanecer ao lado
por suposto aquilo que está em ques­ de um tal outro, nem talvez os homens
tão, pois não se trata de saber por que de permanecerem ao lado uns dos
o homem ficaria ligado à mulher de­ outros, o que é bem pior — e não lem­
pois do parto, mas por que a ela se braram de se transportar além dos sé­
ligaria depois da concepção. Satisfeito culos de sociedade, isto é, daqueles
o apetite, o homem não tem mais tempos em que os homens sempre tive­
necessidade de tal mulher, nem a mu­ ram um motivo para permanecerem
lher de tal homem. Este, talvez, não uns perto dos outros e nos quais um
tem a menor preocupação, nem talvez homem, freqüentemente, possui um
a menor idéia das conseqüências de motivo para permanecer ao lado de
sua ação. Um vai para um lado, o outro homem ou de outra mulher.
outro para outro lugar, e não há proba­ (m) Terei o cuidado de não me
bilidades de que, ao fim de nove meses, aventurar às reflexões filosóficas que
tenham lembrança de se terem conhe­ se poderiam fazer sobre as vantagens e
cido. Essa espécie de lembrança, devi­ os inconvenientes dessa instituição das
do à qual um indivíduo dá preferência línguas; não será a mim que se torne lí­
a um outro indivíduo por causa do ato cito atacar erros vulgares, e o povo
da geração, exige, como o provo no letrado respeita demais seus precon­
texto, mais progresso e corrupção na ceitos para suportar pacientemente
compreensão humana do que se pode meus pretensos paradoxos. Deixemos,
supor existir no estado de animalidade pois, falar as pessoas nas quais não se
de que se trata aqui. Uma outra mulher considerou crime tomar algumas vezes
pode, pois, satisfazer os desejos do o partido da razão contra a opinião da
homem tão comodamente quanto a multidão.
que já conheceu e, do mesmo modo, Nec quidquam felicitati humani ge­
um outro homem contentar a mulher, rier is decederet, si, pulsa tot linguarum
supondo-se que ela sinta o mesmo ape­ peste et confusione, unam artem calle-
tite durante o estado de gravidez, do rent mortales, et signis, motibus, gesti-
que razoavelmente se pode duvidar. Se busque, licitum fo r et quidvis explicar e.
no estado de natureza, a mulher não Nunc vero ita comparatum est, ut ani-
sente mais a paixão do amor depois da malium quae vulgo bruta creduntur
312 ROUSSEAU

melior longe quam nostra hac in parte conhecido o nome dos números, é fácil
videatur conditio, utpote quae promp- explicar o seu sentido e despertar as
tius, et forsan felicius, sensus et cogi- idéias que esses nomes representam,
tationes suas sine interprete signifícent, mas, para inventá-los, foi preciso,
quam ulli queant mortales, praesertim antes de conceber essas mesmas idéias,
si peregrino utantur sermone. (Is Vos- estar-se, por assim dizer, familiarizado
sius. D e Poemat. Cant. e Viribus com as meditações filosóficas, exerci­
Rhythm i, pág. 66.1 5 4) tado na consideração dos seres unica­
(n) Platão, mostrando como as mente pela sua essência e independen­
idéias da quantidade discreta e de suas temente de qualquer outra concepção;
relações são necessárias nas menores é essa uma abstração muito penosa,
artes, zomba, com razão, dos autores muito metafísica, muito pouco natural
de seu tempo que pretendiam ter Pala- e sem a qual, no entanto, essas idéias
medes inventado os números no cerco jamais poderiam ter-se transportado de
de Tróia, como se, diz esse filósofo, uma espécie ou de um gênero para
Agamenon até então pudesse ignorar outro, nem se tornarem universais os
quantas pernas tinha1 5 5. Com efeito, números. Um selvagem poderia consi­
sente-se ser impossível que a sociedade derar, separadamente, sua perna direi­
e as artes tivessem alcançado o ponto ta e sua perna esquerda, ou olhá-las
em que já se encontravam no tempo do juntas sob a idéia indivisível de um
cerco de Tróia, sem que os homens par, sem jamais pensar que exitiram
possuíssem o uso dos números e do duas, pois uma coisa é a idéia repre­
cálculo. Mas a necessidade de conhe­ sentativa que nos dá o objeto e, a
cer os números, antes de adquirir ou­ outra, a idéia numérica que a determi­
tros conhecimentos, não facilita imagi­ na. Menos ainda poderia ele calcular
nar-lhes a invenção. Uma vez até cinco e, quando aplicasse suas
mãos uma sobre a outra e notasse que
1 5 4 “ Nada faltaria para a felicidade do gêne­ seus dedos se correspondiam exata­
ro humano se, repelindo esse fluxo e essa con­ mente, estaria bem longe de pensar na
fusão de numerosas línguas, os mortais conhe­ sua igualdade numérica; não sabia me­
cessem perfeitamente um único meio de lhor o número de seus dedos do que o
expressão e se quem quer que fosse pudesse
exprimir-se por meio de sinais, movimentos e
de seus cabelos e se, depois de fazê-lo
gestos. A liás, já se fez a seguinte comparação: compreender o que são os números,
os animais, aos quais comumente se atribui alguém lhe tivesse dito que tinha tantos
uma condição selvagem, possuem nesse parti­ dedos nas mãos quantos nos pés, tal­
cular uma muito melhor e que não parece ser a vez ficasse muito surpreso ao verificar,
nossa. É com mais rapidez e talvez com mais
prazer que eles exprimem sem intermediários comparando-os, sor verdadeira tal
suas sensações e pensamentos, como nenhum coisa.
mortal o sabe fazer, sobretudo no caso de ser­ (o) Não se deve confundir o amor-
vir-se de uma língua estrangeira.” Vossius
(1577-1649; sábio alemão): Sur la Poésie du próprio com o amor de si mesmo; são
Chant et la F orce du R yth m e. (N . de P. A.-B.) duas paixões bastante diferentes tanto
1 5 5 R epública, LL, VII, 522 d. C. Platão fala, pela sua natureza quanto pelos seus
neste ponto, com o se estivesse cansado dessa efeitos1 5 6. O amor de si mesmo é um
pretensão conferida pelos autores trágicos a
Palamedes. Sócrates e Eurípides escreveram,
sentimento natural que leva todo ani-
cada um deles, uma tragédia de Palamedes.
Górgias, na D efesa de Palam edes, dá-lhe tam­ 1 5 6 Essa distinção é um elemento funda­
bém a honra de ter descoberto a aritmética. (N. mental da moral de Malebranche, que muito
de P. A.-B.) influenciou Rousseau. (N . de P. A.-B.)
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 313

mal a velar pela própria conservação e anos em que os europeus se atormen­


que, no homem dirigido pela razão e tam para fazer com que os selvagens
modificado pela piedade, produz a das várias regiões do mundo passem a
humanidade e a virtude. O amor-pró­ viver do seu modo, não conseguiram
prio não passa de um sentimento rela­ ainda conquistar um único, nem
tivo, fictício e nascido na sociedade, mesmo à custa do cristianismo, pois os
que leva cada indivíduo a fazer mais nossos missionários algumas vezes
caso de si mesmo do que de qualquer fazem cristãos, mas jamais homens
outro, que inspira aos homens todos os civilizados. Nada pode dominar a
males que mutuamente se causam e repugnância invencível que eles têm de
que constitui a verdadeira fonte da aprender nossos costumes e viver
honra. como nós. Caso esses pobres selvagens
Uma vez isso entendido, afirmo que, sejam tão infelizes quanto se pretende,
no nosso estado primitivo, no verda­ qual será a inconcebível depravação de
deiro estado de natureza, o amor-pró­ julgamento pela qual constantemente
prio não existe, pois cada homem em recusam a policiar-se a nosso modo ou
especial olhando-se a si mesmo como o a aprender a viver felizes entre nós,
único espectador que o observa, como enquanto em. inúmeras obras se lê que
o único ser no universo que toma inte­ franceses e europeus se refugiaram
resse por si, como o único juiz de seu voluntariamente entre essas nações e aí
próprio mérito, torna-se impossível passaram a vida inteira sem mais
que um sentimento, que vai buscar sua poder renunciar a uma maneira de
fonte em comparações que ele não tem viver tão estranha, e que ainda se
capacidade para fazer, possa germinar vejam missionários sensatos lastimar,
em sua alma. Pelo mesmo motivo, esse com tristeza, os dias calmos e inocen­
homem não poderia ter nem ódio nem tes que passaram entre esses povos
desejo de vingança, paixões que só desprezados. Caso se responda não
podem nascer da opinião de alguma terem eles luzes suficientes para julgar
ofensa recebida e, como é o desprezo sadiamente o seu e o nosso estado, eu
ou a intenção de prejudicar e não o replicaria que o julgamento da felici­
mal que constitui a ofensa, homens que dade é menos uma questão de razão do
não sabem apreciar-se ou comparar-se que de sentimento. Aliás, essa resposta
podem infligir-se muitas violências pode voltar-se contra nós com mais
mútuas, quando disso lhes advém algu­ vigor ainda, pois vai maior distância
ma vantagem, sem jamais se ofende­ de nossas idéias à disposição de ânimo
rem reciprocamente. Em uma palavra, imprescindível para conceber o gosto
cada homem só vendo os seus seme­ que sentem os selvagens por seu modo
lhantes como veria animais de outra de vida, do que das idéias dos selva­
espécie, pode tomar a presa do mais gens àquelas que podem fazer com que
fraco ou ceder a sua ao mais forte, concebam o nosso. Com efeito, depois
considerando suas rapinagens como de algumas observações, é fácil de ver
acontecimentos naturais, sem o míni­ que todos os nossos trabalhos se diri­
mo movimento de insolência ou de gem para dois únicos objetos, a saber,
despeito e sem outra paixão além da alcançar para si as comodidades da
dor ou da alegria de um bom ou mau vida e a consideração dos demais. Mas
êxito. qual o meio que temos para imaginar a
(p) Constitui coisa extremamente espécie de prazer que um selvagem
notável o fato de que, depois de tantos experimenta passando a vida só, no
314 ROUSSEAU

meio dos bosques, na pesca ou a tocar tou educar e alimentar na Dinamarca e


numa flauta ruim sem jamais saber que a tristeza e o desespero fizeram
tirar um único som e sem preocupar-se com que todos morressem, seja de
com aprendê-lo? tédio, seja no mar por onde tentaram
Por diversas vezes levaram selva­ alcançar a nado seu país, contentar-
gens a Paris, a Londres e a outras cida­ me-ei em citar um único exemplo bem
des; esforçaram-se para exibir-lhes atestado e que entrego ao exame dos
nosso luxo, nossas riquezas e todas as admiradores da polícia européia.
nossas artes mais úteis e curiosas; tudo “Todos os esforços dos missionários
isso só despertou neles uma admiração holandeses do cabo da Boa Esperança
estúpida, sem o menor movimento de jamais conseguiram converter um
cobiça. Entre outras, lembro-me da único hotentote. Van der Stel, governa­
história de um chefe de alguns ameri­ dor do Cabo, tendo tomado um deles
canos setentrionais que, há uns trinta desde a infância, fez com que fosse
anos, levaram à corte da Inglaterra. educado nos princípios da religião
Passaram mil coisas diante de seus cristã e na prática dos costumes da
olhos, procurando fazer-lhe algum pre­ Europa. Foi vestido ricamente, ensina­
sente que pudesse agradar-lhe, sem ter ram-lhe inúmeras línguas e seus pro­
encontrado nada que parecesse interes­ gressos corresponderam inteiramente
sá-lo. Nossas armas pareciam-lhe pe­ aos cuidados que se tomaram com a
sadas e incômodas, nossos sapatos sua educação. O governador, espe­
feriam-lhe os pés, nossas vestes o atra­ rando bastante de seu espírito, man­
palhavam, tudo o incomodava; por dou-o às índias com um comissário
fim, viram que parecia experimentar geral que o empregou utilmente nos
algum prazer ao pegar uma coberta de negócios da companhia. Depois da
lã e envolver seus ombros com ela. morte do comissário, voltou ao Cabo.
“Concordais, pelo menos”, disseram- Poucos dias depois de sua volta, numa
lhe logo, “quanto à utilidade desse visita que fez a alguns hotentotes
objeto?” “ Sim”, respondeu ele, “isso parentes seus, resolveu despojar-se de
me parece quase tão bom quanto a pele sua vestimenta européia para vestir-se
de um animal.” Não o teria dito se com uma pele de ovelha. Assim posto,
tivesse usado uma e outra na chuva. voltou ao forte, carregando um pacote
Talvez dirão que é o hábito que, que continha suas vestes antigas e,
prendendo cada um à sua maneira de apresentando-as ao governador, fez-lhe
viver, impede os selvagens de sentirem o seguinte discurso: ‘Tende a bondade
o que existe de bom na nossa; nessas de reconhecer que renuncio para sem­
condições, deve pelo menos parecer pre a estes ornamentos; renuncio tam­
bastante extraordinário que o hábito bém, para toda a vida, à religião cristã;
tenha mais força para fazer com que os minha resolução é viver e morrer na
selvagens prefiram a sua miséria do religião, nos costumes e nos usos de
que os europeus o gozo de sua felici­ meus antepassados. A única graça que
dade. Mas, para dar a esta última obje­ vos peço é deixar-me o colar e o cutelo
ção uma resposta à qual não há uma que uso; guardá-los-ei a ambos como
única palavra para se responder, sem recordação de vós’. Em seguida, sem
citar todos os jovens selvagens que esperar a resposta de Van der Stel,
inutilmente se buscaram para civilizar, fugiu e jamais foi visto no Cabo.” H is­
sem falar dos groenlandeses e dos tória das Viagens, tomo 5, pág. 175.
habitantes da Islândia a quem se ten­ (q) Poderiam objetar-me que, numa
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 315

tal desordem, os homefis, em lugar de devem ser distinguidos e favorecidos


se degolarem obstinadamente uns aos na proporção de seus serviços. É nesse
outros, ter-se-iam dispersado, se não sentido que se deve compreender o tre­
houvesse limites para a sua dispersão. cho de Isócrates1 5 7, no qual louva os
Mas, em primeiro lugar, esses limites primeiros atenienses por terem sabido
teriam sido os do mundo. Caso se distinguir muito bem a mais vantajosa
pense na excessiva população que das duas espécies de igualdade, uma
resulta do estado de natureza, poder- das quais consistia em fazer com que
se-á concluir que a terra, nesse estado, todos os cidadãos participassem indi­
não teria demorado a cobrir-se de ho­ ferentemente das mesmas vantagens e,
mens que assim se veriam forçados a outra, em distribuí-las segundo o méri­
viver reunidos. Aliás, ter-se-iam dis­ to de cada um. Esses hábeis políticos,
persado, se o mal fosse rápido e se acrescenta o orador, banindo a injusta
fizesse uma mudança do dia para a igualdade, que não estabelece qualquer
noite. Nasciam eles, porém, sob o diferença entre os maus e os honestos,
jugo; quando sentiam seu peso, já ti­ comprometeram-se irrecorrivelmente
nham o hábito de carregá-lo e conten­ com aquela que recompensa e pune a
tavam-se com esperar ocasião de sacu­
cada um de acordo com o seu mérito.
di-lo. Por fim, já acostumados a mil
Mas, em primeiro lugar, jamais existiu
comodidades que os forçavam a per­
sociedade, seja qual for o grau de cor­
manecer reunidos, não lhes era tão
rupção a que possa ter chegado, na
fácil a dispersão quanto nos primeiros
tempos, quando, cada um tendo neces­ qual não se faça diferença entre os
sidade somente de si mesmo, tomava maus e os honestos; em matéria de
seu partido sem esperar o consenti­ costumes, na qual a Lei não pode fixar
mento de outrem. uma medida suficientemente exata
(r) O Marechal de Villars contava
para servir de regra ao magistrado, ela
que, numa de suas campanhas, tendo proíbe, muito sabiamente, para não
as excessivas trapaças de um interme­ deixar à própria discrição a sorte ou a
diário de víveres feito com que o exér­ classificação dos cidadãos, o julga­
cito sofresse e reclamasse, ele o re­ mento das pessoas, para só deixar-lhe
preendeu abertamente e o ameaçou de o das ações. Somente costumes tão
enforcá-lo. “Essa ameaça não me atin­ puros quanto os dos cidadãos romanos
ge” , respondeu-lhe acintosamente o podem suportar censores; semelhantes
velhaco, “e sinto-me muito à vontade tribunais logo teriam posto tudo em
para dizer-lhe que não se enforca um desordem entre nós. É a estima pública
homem que dispõe de cem mil escu­ que deve estabelecer a diferença entre
dos.” Não sei como isso aconteceu, os maus e os bons. O magistrado só é
acrescentou ingenuamente o marechal, juiz do direito rigoroso; mas o povo é
mas na realidade não foi enforcado 0 verdadeiro juiz dos costumes; juiz ín­
ainda que merecesse sê-lo cem vezes. tegro e até esclarecido quanto a esse
(s) A justiça distributiva opor-se-ia ponto, de quem às vezes se abusa, mas
até a essa igualdade rigorosa do estado a quem jamais se corrompe. A posição
de natureza, ainda que fosse praticável dos cidadãos deve ser, pois, regulada,
na sociedade civil e, como todos os não segundo o mérito pessoal, o que
membros do Estado lhe devem servi­
ços proporcionais a seus talentos e às 1 5 7 A reopagítica, parágrafo VIII. (N . de P.
suas forças, os cidadãos, por sua vez, A.-B.)
316 ROUSSEAU

seria deixar aos magistrados a capaci- viços reais que prestam ao Estado e
dade de uma aplicação quase arbi- que são suscetíveis de julgamento mais
trária da Lei, mas, sim segundo os ser- exato.
In t r o d u ç ã o á C a r t a
a o S e n h o r P h il o p o l is

De Paul Arbousse-Bastide

O Mercure de outubro de 1775 publicou uma carta, assinada por Philopolis.


O autor anônimo, por um lado, acusava Rousseau p o r ter dedicado seu Discurso
sobre a Desigualdade à República de Genebra, julgando-o indigno de oferecer
uma tal dedicatória, e dirigia-lhe ataques pessoais muito vivos; por outro, apre­
sentava contra sua tese um número bastante grande de objeções, extraídas da
religião cristã, da filosofia de Leibnitz e das ciências naturais. Rousseau não con­
seguiu descobrir a identidade de seu contraditor e, sobretudo, não duvidou tratar-
se de um genebrino em pessoa que pretendia impedi-lo de ligar-se novamente a
Genebra. Era Charles Bonnet, célebre metafísico e naturalista de Genebra, que se
escondia sob o pseudônimo de Philopolis, que significa “p a trio ta ” ou “defensor
do estado social” e manifestava sua oposição a Rousseau, o defensor do estado
de natureza. A palavra possuía ainda um valor tradicional: Platão emprega-a na
República, Livro VII, onde enaltece a virtude essencial dos alunos-governantes,
e fo ra retomada pelos teóricos políticos que, desde o século XV I, se inspiravam
em Platão.
A resposta de Rousseau, tratando com irônico desprezo os ataques p es­
soais, destina-se a refutar, unicamente, as objeções religiosas, filosóficas e
científicas.
I. Em primeiro lugar, responde à objeção religiosa, que é a seguinte: “Insur­
gir-se contra a sociedade humana é atacar a obra de D e u s”. A fim de responder,
Rousseau emprega um método particular e alegórico; desenvolve a comparação
que se segue. Caso se encontrasse um segredo para acelerar a velhice, os “sábios
apressar-se-iam a fa zer uso dele, para ficarem mais senhores de suas paixões e
adquirirem o repouso da alm a”; se um “homem de paradoxos” considerasse
absurda tal atitude e julgasse que, impondo-se envelhecer e morrer, mais vale
fazê-lo o mais tarde possível, os “sofistas ”, em reação, apressar-se-iam em pres­
tar homenagem aos sábios anciães, felicitando-os por terem seguido a vontade do
céu e salvaguardado sua saúde intelectual, ainda que a preço da saúde física, e
acusariam o homem de paradoxos de não saber o que é natural e desejado por
Deus, não saber que é natural envelhecer e que Deus o quer, impondo-se, para
obedecê-lo, procurar envelhecer depressa. A alegoria é clara — o segredo para
acelerar a velhice é o ocaso histórico que agita a evolução da humanidade e a
acelera pela form ação das sociedades; os sábios são os homens no mais avan­
çado estágio de civilização social, no termo fin al do progresso das artes, das
ciências, das riquezas, da desigualdade, isto é, no termo extremo da corrupção, e
sua razão artificial asfixia a voz do instinto natural e bom; o homem de parado­
318 ROUSSEAU

xos é Rousseau, que denuncia a àontradição e a corrupção das sociedades


modernas; os sofistas são os defensores cegos da sociedade que, a exemplo de
Philopolis, pretendem justificar a natureza pela razão, que é justam ente o seu
contrário, e atribuir a esta a fundação da sociedade, quando é o resultado da vida
social e de sua depravação.
O esforço de Rousseau consiste, pois, em elucidar a ambigüidade da pala­
vra “natureza ”; a sociedade, para ele, resulta do estado de natureza prim itivo,
passando p o r uma série de transições mais ou menos necessárias; nesse sentido,
a sociedade é natural; ela é, porém, “natural para a espécie humana como a
decrepitude para o indivíduo, e tornam-se necessários as artes, leis e governos
para os povos, como as muletas para os velhos ”; existe, com efeito, uma dife­
rença de natureza entre o estado de natureza e o estado social; o primeiro é
espontâneo, o segundo resulta de convenções, é artificial; desde o estado de natu­
reza, o homem possui uma tendência para aperfeiçoar-se; mas, quanto mais lento
é esse desenvolvimento, tanto mais valor tem ele; tal como a velhice, é um mal ao
qual se deve resistir o maior tempo possível.
O esforço de Rousseau visa, porém, por igual, desembaraçar a filosofia e a
ciência de um modo perigoso de raciocinar, que consiste em resguardar com a
autoridade, particularmente com a autoridade religiosa, afirmações que outros
discutem para descobrir-lhes o fundamento. Rousseau acredita firm em ente que a
natureza é boa porque Deus assim o quis; o problema, porém, está justam ente
em saber se a sociedade é natural e, conseqüentemente, se ela é, ou não, boa e
desejada p o r Deus. Philopolis, pelo contrário, supõe estar o problem a resolvido
quando afirma a seguinte conseqüência: a sociedade é desejada p o r Deus; e cai
num círculo vicioso quando afirma: sendo a sociedade desejada p o r Deus, é
natural — pois demonstra o que teve de supor resolvido para afirmar: a socie­
dade f o i desejada po r Deus. Rousseau não denuncia somente o círculo vicioso;
mostra onde está o erro de Philopolis quando este toma, como prim eira evidên­
cia, que a sociedade é natural: confundiu o hábito com a natureza; os “sábios
velhos ” da alegoria não envelheceram naturalmente, mas usaram um soro inven­
tado pelos médicos e, p o r isso, seus defensores podem pregar que é natural e bom
envelhecer, pois os velhos envelheceram artificialmente, obrigados a consentir
num processo inventado po r homens, não pela natureza. D o mesmo modo, as
sociedades não nasceram naturalmente. Tendiam a nascer, mas tratava-se de
uma tendência muito lenta e, dando sua livre adesão às prim eiras form as rudi­
mentares da sociedade, os homens aceleraram artificialmente a evolução. Satisfa­
zem-se tentando justificar agora seu erro, dizendo que era inevitável e natural,
mas nem p o r isso é menos verdade que toda associação repousa numa conven­
ção, num consentimento não-natural dos homens. Philopolis incorre, pois, no
seguinte sofisma — tudo o que existe, existe por natureza; logo, existem objetos
fabricados pelo homem. O verdadeiro postulado básico deverá ser então: tudo o
que existe, existe pela arte ou pela natureza. O fa to de ser a política o objeto de
uma arte difícil e não o resultado espontâneo de um instinto natural prova
amplamente aos olhos de Rousseau que a sociedade é artificial.
II. A seguir, Rousseau responde às objeções puramente filosóficas. Elas se
ligam todas ao problem a do mal que, entre os autores contemporâneos de Leib­
niz, passa por ser a dificuldade essencial; Rousseau abordara bastante pormeno­
rizadamente, na nota i do Discurso sobre a Desigualdade, esse problem a e esta­
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 319

belecera, contrariamente à opinião comum, que, no estado atual da civilização, a


soma dos males era superior à dos bens. A o pessim ism o de Rousseau, Philopolis
opusera o otimismo de seu mestrè Leibniz, que demonstrara, racionalmente, ser
nosso mundo o melhor dos mundos possíveis. Rousseau mostrará que essa obje­
ção não o atinge por ter colocado o problem a do mal melhor do que o fizera
Leibniz, porquanto sua teoria pode muito bem explicar-se no sistema de Leib­
niz e, finalmente, que Philopolis incide num grande contra-senso ao interpretar,
como o fe z, esse sistema.
A . O modo exato de colocar o problem a do mal não é o de Leibniz ou dos
estóicos, que também eles são otimistas, pois se, de um lado, o fazem na intenção
de justificar a Providência e mostrar não ser ela culpada dos males do mundo, e
se, de outro lado, para provar que tudo o que acontece é bom, postulam que tudo
o que acontece necessariamente decorre da razão divina, deveriam concluir, em
virtude de seus próprios princípios, que o mal advém tão necessariamente quanto
o bem e que Deus é igualmente seu autor. Ora, em prim eiro lugar, Rousseau
pensa que a Providência não tem necessidade de ser justificada por argumentos
e manifesta-se suficientemente em todas as produções da natureza, e, em segundo
lugar, acredita que os males que advêm aos homens — po r exemplo: a sociedade
— aparecem manifestamente como causados pelos próprios homens. O p ro ­
blema do mal só é, pois, bem colocado caso se reconheça um domínio próprio do
mal — o das produções artificiais e das convenções — e um seu motor próprio
— a liberdade e o consentimento humanos.
B. Aliás, o sistema de Leibniz não contradiz o de Rousseau. Com efeito,
po r um lado, Leibniz fa la do maior bem possível e não de um bem absoluto,
enquanto, por outro lado, afirma a coexistência do maior bem geral e de males
particulares; nega, simplesmente, a existência de um mal universal, mas ele pró­
prio sente-se obrigado a reconhecer que certos males particulares concorrem
para o bem geral. D o mesmo modo, Rousseau considera a natureza fundam en­
talmente boa, mas as sociedades parecem-lhe males particulares. A ssim como
Leibniz reconhece a necessidade do pecado original, verifica a corrupção dela
decorrente, deplora-a e esforça-se po r combatê-la, também Rousseau mostra ser
inevitável o processo de form ação das sociedades que corrompeu a sã natureza
humana, deplora-o e quer opor-se aos seus efeitos. O otimismo bem compreen­
dido consiste em lutar contra os males particulares, que são reais, e em conside­
rar o bem universal como um ideal.
C. Erros de interpretação de Philopolis:
Diferentemente de Leibniz, Philopolis confunde o mal universal e os males
particulares, e, desse modo, destitui estes últimos de toda a realidade. Para ele,
cada coisa particular é boa tal como é. Com efeito, é o único meio de justificar
a existência da sociedade, que se torna discutível do ponto de vista do puro bem
universal. M as Rousseau demonstra, facilm ente, que uma tal proposição se volta
contra seu autor e serve, também, para justificar seus adversários. Com efeito,
caso seja bom que cada coisa particular exista e exista em si, Philopolis po r um
lado deveria proibir-se de transformar qualquer delas e decretar que os moralis­
tas, os professores, os médicos, os ju izes são inúteis e até perigosos, pois desejam
transformar certas realidades particulares, que erradamente julgam más. Por
outro lado, o fa to de Rousseau afirmar a malignidade da sociedade é uma reali­
dade particular, existente como as outras; donde mostrar-se bom e necessário ao
320 ROUSSEAU

bem geral que Rousseau afirme o que cfvrma. Desse modo, a argumentação de
Philopolis éparadoxal e destrói-sepor si mesma.
III. Rousseau, finalmente, responde a uma série de objeções independentes,
na sua maioria de ordem científica.
A . A prim eira dessas réplicas é capital,pois implica a distinção de dois mé­
todos. Philopolis procede po r construção racional — deduz da natureza da razão
que “o homem é tal como o exigia o lugar que devera ocupar no universo ”. Rous­
seau raciocina partindo da experiência; reconhece que a natureza humana não é
idêntica através dos tempos e das regiões, depreende o universal da confrontação
entre numerosos casos particulares. O erro de Philopolis fo ra denunciado de
antemão, na passagem do Discurso sobre a Desigualdade na qual Rousseau criti­
ca os filósofos que fazem unicamente uma filosofia do homem adulto, branco e
civilizado.
B. Em conseqüência, origina-se das ciências naturais, e não da filosofia, o
problem a de saber-se se o orangotango é uma besta ou um homem.
C. N ão existe contradição em qfírmar que as sociedades e seus governantes
são, na sua maior parte, maus e que o governo de Genebra é um dos melhores
que possam existir. Uma vez que os homens são corrompidos, não se p ode voltar
atrás; não se trata de voltar a viver na solidão; trata-se de organizar do melhor
modo possível a sociedade. A associação dos amigos é, então, um passo para a
associação dos cidadãos.
D . Rousseau escreveu: “a natureza nos destinou a sermos sãos ” e não “a
sermos san tos’’(“ sains”, não “ saints”).
E. É preciso ter-se experimentado a dor para sentir piedade p o r alguém que
sofre.
F. O populacho vai ao mais cruel dos espetáculos para ter o prazer de sen­
tir piedade.
G. A afeição que as fêm eas dos animais têm pelos seus filhotes prim eiro
tem p o r objeto a mãe e, depois e p o r hábito, os filhotes.
C a r t a d e J e a n -J a cq u e s R o u sse a u
a o Sr . P h i l o p o l i s

Desejais que vos reponda, senhor, razão, esse grande veículo de todas as
posto que me fazeis algumas pergun­ nossas tolicçs, não nos faltaria para
tas. Trata-se, aliás, de uma obra dedi­ esta. Os filósofos e, sobretudo, as pes­
cada a meus concidadãos; devo, ao soas de bom senso, para sacudir o jugo
defendê-la, justificar a honra que me das paixões e gozar do precioso repou­
deram ao aceitá-la. Deixo de lado, na so da alma, alcançariam a largos pas­
vossa carta, aquilo que me diz respeito, sos a idade de Nestor1 e de boa vonta­
tanto de bem quanto de mal, porque de renunciariam aos desejos que se
aproximadamente uma parte com­ podem satisfazer, a fim de se defende­
pensa a outra, e devido ao pouco que rem daqueles que é preciso abafar;
isso me interessa e ainda menos ao pú­ sobrariam só alguns imprudentes que,
blico e também porque tudo isso em embora se envergonhando de sua fra­
nada contribui para a busca da verda­ queza, desejassem loucamente conti­
de. Começo, pois, pelo raciocínio que nuar jovens e felizes em lugar de enve­
me apresentais como essencial à ques­ lhecerem para tornar-se sábios.
tão que procurei resolver. Suponhamos que um espírito singu­
O estado de sociedade, dizeis, è lar, extravagante, numa palavra, um
resultado imediato das faculdades do homem de paradoxos, resolvesse então
homem e, conseqüentemente, de sua censurar nos demais o absurdo de suas
natureza. Querer que o homem em máximas, demonstrar que, procurando
absoluto não se tome sociável, seria a tranqüilidade, correm para a morte,
desejar, então, que não fosse mais que só desvariam à força de serem
homem, e insurgir-se contra a socie­ razoáveis e, caso seja necessário um
dade humana é atacar a obra de Deus. dia ficarem velhos, deveriam esforçar-
Permiti-me, senhor, apresentar-vos, se para que tal acontecesse o mais
por minha vez, uma objeção antes de tarde possível.
resolver a vossa. Eu vos pouparia esta Não será preciso perguntar se nos­
digressão, se conhecesse caminho mais sos sofistas, temendo o descrédito de
curto pará chegar ao fim. seu arcano, não se apressariam em
Suponhamos que alguns sábios en­ interromper esse discursador importu­
contrassem, certo dia, o segredo de no. “Sábios velhos”, diriam a seus
acelerar a velhice e a arte de fazer com
que os homens usassem essa rara 1 Nestor, rei de Pilos, o mais idoso dos prínci­
pes que presenciaram a queda de Tróia, era
descoberta. Tal persuasão não seria reputado pela sua sabedoria e pelos longos dis­
talvez tão difícil de ser realizada como cursos que pronunciava perante os chefes reu­
pode parecer à primeira vista, pois a nidos. (N . de P. A.-B.)
322 ROUSSEAU

sectários, “ agradecei aos céus as gra­ Podemos imaginar que, apostro­


ças que vos concederam e congratu­ fando depois nosso admoestador im­
lai-vos continuamente por ter seguido prudente, se dirigiriam a ele aproxima­
suas vontades. Estais decrépitos, é ver­ damente do seguinte modo:
dade, definhados, caquéticos, pois tal é “Cessai, declamador intemerato, de
o destino inevitável do homem; vosso fazer esses discursos ímpios. Ousareis,
entendimento porém está sadio2; estais com isso, contradizer a vontade daque­
com os membros estropiados, é verda­ le que criou o gênero humano? O esta­
de, mas vossa cabeça por isso se sente do de velhice não decorre da constitui­
mais livre; não poderíeis agir, mas fa­ ção do homem? Não é natural que o
lais como oráculos e, se vossas dores homem envelheça? Que fazeis, pois,
aumentam diariamente, vossa filosofia nos vossos discursos sediciosos, senão
aumenta com elas. Deplorai essa ju ­ atacar uma lei da natureza e, conse­
ventude impetuosa, cuja saúde brutal a qüentemente, a vontade de seu cria­
priva dos bens devidos à vossa fraque­ dor? Se o homem envelhece, Deus quer
za. Bem-vindas enfermidades que reú­ que ele envelheça. Os fatos serão coisa
nem em torno de vós tantos hábeis diferente da expressão de sua vontade?
farmacêuticos que possuem drogas Ficai sabendo que o homem jovem
mais numerosas do que os males que absolutamente não é aquele que Deus
tendes, tantos médicos sábios que quis fazer e, para se empenhar em obe­
conhecem a fundo vosso pulso, que decer às ordens deste, é preciso apres­
sabem em grego o nome de todos os sar-se em envelhecer” ?
vossos reumatismos, tantos zelosos Supondo-se tudo isso, eu vos per­
consoladores e herdeiros fiéis que vos gunto, senhor, se o homem de parado­
conduzem agradavelmente à vossa úl­ xos deve calar-se ou responder, e, neste
tima hora! Quanta assistência perde­ último caso, peço-vos que me indiqueis
ríeis, se não tivésseis sabido arranjar o que ele deve dizer. Esforçar-me-ei,
os males que a tom aram necessária!” então, para resolver vossa objeção.
Posto que pretendeis atacar-me por
2 Esta declaração, que Rousseau ironica­ via de meu próprio sistema, não esque­
mente põe na boca de seus adversários, assi­
nala sua definitiva hostilidade aos filósofos do
çais, peço-vos, de que na minha opi­
direito e aos enciclopedistas. Diderot, com nião a sociedade é tão natural para a
efeito, no artigo “ Direito Natural”, definira do espécie humana como a decrepitude
seguinte modo a vontade geral: “Em cada indi­ para o indivíduo e de que aos povos
víduo, um ato do entendimento que raciocina, são necessárias as artes, as leis e os
no silêncio das paixões, sobre o que pode o
homem exigir de seus semelhantes e sobre o governos, como as muletas o são para
que estes têm direito de exigir dele”. Ora, os velhos3. A diferença toda está em
Rousseau rompe justamente com uma concep­ que o estado de velhice decorre unica­
ção da moral e da política baseada numa refor­ mente da natureza do homem e o da
ma individual: só acredita numa ação coletiva.
O C ontrato Social declarará (I, VII): “A fim
sociedade decorre da natureza do gêne­
de que o pacto social não seja, pois, um formu­ ro humano, não imediatamente, como
lário vão, compreende ele tacitamente esse quereis, mas unicamente, como o pro­
comprom isso, o único que poderá dar força vei, graças ao auxílio de certas circuns­
aos outros: aquele que recusar obedecer à von­ tâncias exteriores que podem acontecer
tade geral será a tanto constrangido por todo o
corpo. Tal co isa .n ã o tem outro significado,
senão que o forçarão a ser livre. . . ” A renova­ 3 O estado de natureza é próprio à juventude,
ção moral torna-se questão de mando do Esta­ alegre e fecunda, da terra; o estado social, a
d a (N. d e P. A.-B.) seu envelhecimento. (N . de P. A.-B.)
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 323

ou não, ou, pelo menos, acontecer mais De acordo com Leibniz e P ope7,
cedo ou mais tarde e, conseqüente­ tudo o que existe está certo. Se existem
mente, apressar ou retardar o progres­ sociedades, é por desejar o bem
so. Inúmeras dessas circunstâncias comum que existem; caso não existam,
dependem mesmo da vontade do assim o deseja o bem comum. Se
homem; vi-me obrigado, para estabe­ alguém persuadisse os homens a volta­
lecer uma paridade perfeita, a supor no rem a morar nas florestas, estaria bom
indivíduo o poder de acelerar sua que para lá voltassem. Não se deve
velhice como a espécie tem o de retar­ aplicar à natureza das coisas uma idéia
dar a sua. Tendo, pois, o estado de do bem e do mal que não seja tirada de
sociedade um termo extremo, ao qual suas relações, pois elas podem ser boas
os homens podem querer chegar mais
em relação ao todo, apesar de más em
cedo ou mais tarde, não é inútil
si mesmas. Aquilo que concorre para o
mostrar-lhes o perigo de ir tão de­
bem geral pode ser um mal particular,
pressa e as misérias de uma condição
que tomam como a perfeição da em relação ao qual há possibilidade de
espécie. libertar-se quando possível. Porquanto
Quanto à enumeração dos males de se esse mal, enquanto suportado, é útil
que estão os homens sobrecarregados e ao todo, o bem contrário, que se quer
que afirmo serem sua obra, vós me em seu lugar, não lhe será menos útil,
assegurais — Leibniz4 e vós — que desde que se estabeleça. Pela razão
tudo está bem, assim se justificando a mesma de tudo estar bem assim como
Providência. Estava longe de acreditar está, se alguém se esforça por mudar o
que ela tivesse necessidade, para justi­ estado das coisas, está bom que se
ficar-se, do auxílio da filosofia leibni- esforce por mudá-lo; e, se é bom ou
ziana ou de qualquer outra. Julgais, mau que o consiga, isso só se pode per­
vós mesmos, seriamente, que um siste­ ceber pelo acontecimento e não pela
ma de filosofia, qualquer que seja, razão. Seria bom para o todo que fôs­
possa mostrar-se mais irrepreensível semos civilizados, posto que o somos;
ao que o universo e que, para descul­ mas certamente teria sido melhor para
par a Providência, os argumentos de nós não o ser. Leibniz jamais teria ti­
um filósofo se apresentem como mais rado de seu sistema algo que pudesse
convincentes do que as obras de contraditar essa proposição e está
D eus?5 Além disso, negar que o mal claro que o otimismo bem compreen­
existe é um meio muito cômodo para dido não me favorece, nem me desfa­
desculpar o autor do mal. Os estóicos vorece.
outrora caíram no ridículo por muito Além disso, não é nem a Leibniz
menos 6. nem a Pope que devo responder, mas
somente a vós que, sem distinguir o
4 Leibniz (1646-1716): filósofo e sábio ale­ mal universal, que eles negam, do mal
mão, chefe da escola otimista. (N . de P. A.-B.)
5 A Profissão de Fé do Vigário Saboicmo particular, que não negam, pretendeis
desenvolverá essa tese. (N . de P. A.-B.) suficiente que uma coisa exista para
6 Os estóicos afirmavam que tudo o que acon­ não ser permitido que se desejasse sua
tecia pela razão, isto é, pela necessidade divina existência de outro modo. Mas, meu
ou pela providência, era, conseqüentemente,
bom, ainda que nossos sentidos nos dessem um
senhor, se tudo está bem como está,
testemunho contrário; ninguém é mais feliz,
diziam, do que o sábio submetido a torturas; 7 Alexandre Pope (1688-1744): poeta e filó­
pretendiam ignorar a dor física e as aflições sofo inglês, autor do Ensaio sobre o Homem.
morais. (N . de P. A.-B.) (N . de P. A.-B.)
324 ROUSSEAU

tudo estaria bem como esteve, antes de O homem, dizeis, é feito do modo
existirem governos e leis; pelo menos, como o exigia o lugar que deveria ocu­
teria sido supérfluo estabelecê-los. par no universo. Mas os homens dife­
Jeajn-Jacques então, segundo vosso sis­ rem de tal modo, segundo os tempos e
tema, levaria vantagem sobre Philopo­ lugares, que, com uma tal lógica, se
lis. Se tudo está bem como está, assim ficaria sujeito a estabelecer, partindo
como entendeis, de que servirá corrigir do particular para o universal, conse­
nossos vícios, curar nossos males, qüências muito contraditórias e muito
reparar nossos erros? Para que servem pouco concludentes. Bastaria um erro
nossas cátedras, nossos tribunais e de geografia para abalar toda essa pre­
nossas academias? Para que chamar tensa doutrina, que deduz do que se vê
um médico quando tiverdes febre? aquilo que deve ser. O índio dirá que é
Como podereis saber se o bem do todo próprio aos castores fugir para dentro
maior, que não conheceis, não exige de tocas e que o homem deve dormir
que tenhais a perturbação, e se a saúde numa rede pendurada nas árvores.
dos habitantes de Saturno ou de Sírius Não, não, dirá o tártaro, o homem é
não ficaria prejudicada com o restabe­ feito para dormir numa carroça. Po­
lecimento da vossa? Deixai tudo andar bres pessoas, exclamariam os nossos
como for possível, a fim de que tudo vá Philopolis, com um ar de piedade, não
sempre bem. Se tudo está do melhor vedes, que o homem é feito para cons­
modo possível, deveis censurar toda e truir cidades? Quando se trata de
qualquer ação, pois toda ação produz raciocinar sobre a natureza humana, o
necessariamente alguma mudança no verdadeiro filósofo não é nem índio,
estado em que as coisas se encontram nem tártaro, nem de Genebra, nem de
Paris, mas o homem.
no momento em que se dá; não se
Quanto a ser o macaco um animal,
pode, pois, tocar em coisa alguma sem
eu o creio e dei a razão disso; que o
fazer o mal, e a única virtude que resta
ao homem será o mais perfeito quietis- orangotango também o seja, eis o que
tivestes a bondade de ensinar-me e
mo. Finalmente, se tudo está bem
confesso que, depois dos fatos que
como está, é bom que existam lapões8,
esquimós, algonquinos, chicacas, Ca­ apresentei, parecia-me difícil a prova
raíbas que vivem sem a nossa polícia, disso. Filosofais muito bem para pro­
nunciar-vos a esse respeito tão leviana­
hotentotes que caçoam dela e um gene- mente quanto nossos viajantes, que às
brino que as aprova. O próprio Leib­ vezes se expõem, sem grande cuidado,
niz concordaria com isso. a colocar os seus semelhantes na classe
dos animais. Cativaríeis, certamente, o
8 Os lapões habitavam o Norte da Rússia e os
países escandinavos; os esquimós, a Groen­
público e até instruiríeis os cientistas,
lândia e a parte compreendida entre a baía de se nos expusésseis os meios que empre­
Hudson e o estreito de Bering; os algonquinos gastes para resolver essa questão.
são um povo índio da América do Norte; os Na minha epístola dedicatória, cum­
chicacas, indubitavelmente, são os chibchas,
povo civilizado da América do Sul, que os primentei minha pátria por possuir um
espanhóis encontraram estabelecidos na N ova dos melhores governos que possam
Granada, no século X VI. Os caraíbas habitam existir; provei, no discurso, que lá
as pequenas Antilhas, e os hotentotes, a África deveriam existir muito poucos bons
austral. Rousseau mistura, à vontade, todas as
regiões do globo e acumula os nomes mais
governadores. Não vejo onde reside a
heterogêneos, segundo um processo tradicional contradição que salientais em relação
dos Polemistas. (N . de P. A.-B.) a essa passagem. Mas, como sabeis,
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 325

senhor, que eu iria antes morar nos quase assegurar que o estado de refle­
bosques, caso minha saúde o permi­ xão é um estado contra a natureza e
tisse, do que entre meus concidadãos, que o homem que medita é um animal
em relação aos quais conheceis minha depravado.” Confesso-vos que, se eu
afeição? Longe de dizer, na minha tivesse confundido desse modo a sani­
obra, qualquer coisa semelhante, de­ dade com a santidade e se a proposi­
veis nela ter encontrado razões muito ção fosse verdadeira, acreditar-me-ia
fortes para não escolher esse gênero de muito capaz de eu próprio tornar-me
vida. No meu íntimo, sinto muito bem um grande santo no outro mundo ou
com que dificuldade poderia abster-me pelo menos de comportar-me sempre
de viver com homens tão corrompidos bem neste.
quanto eu, e mesmo um sábio, se é que Termino, senhor, respondendo a
existe, não irá, atualmente, procurar a vossas três últimas questões. Não abu­
felicidade no fundo de um deserto. É sarei do tempo que me dais para refle­
preciso, quando se pode, fixar sua tir sobre elas; este cuidado já tomara
moradia na pátria para amá-la e servi- de antemão.
la. Felizes daqueles que, privados “Um homem ou qualquer ser sensí­
dessa vantagem, podem pelo menos vel, que jamais tivesse conhecido a
viver no seio da amizade, na pátria dor, teria piedade e ficaria emocionado
comum do gênero humano, nesse asilo se visse uma criança sendo degolada?”
imenso aberto a todos os homens, onde Respondo que não.
se comprazem igualmente a sabedoria “ Por que a populaça, a quem o Sr.
austera e a juventude folgazã, onde rei­ Rousseau dispensa dose tão grande de
nam a humanidade, a hospitalidade, a piedade, se compraz com tanta avidez
doçura e todos os encantos de uma à vista do espetáculo de um infeliz
sociedade fácil, onde os pobres ainda expirando no suplício da roda?” Pela
encontram amigos, a virtude, exemplos mesma razão que ides chorar no teatro
que a incentivam, e a razão, guias que e ver Séide degolar seu pai ou Tiestes
a esclarecem! É graças a esse grande beber o sangue do filho1°. A piedade é
teatro da fortuna, do vício e, algumas um sentimento tão delicioso que não
vezes, das virtudes que se pode com constitui motivo de espanto procurar
lucro observar o espetáculo da vida; senti-la. Aliás, cada qual tem curiosi­
mas é no seu país que cada um deveria dade secreta de estudar os movimentos
em paz esperar o termo da sua. da natureza nas proximidades desse
Parece-me, senhor, que me censurais momento temível que ninguém pode
seriamente a propósito de uma reflexão evitar. Acrescentai a isso o prazer de,
que a mim me parece muito justa e durante dois meses, ser o orador do
que, justa ou não, não tem no meu tra­ bairro e de contar aos vizinhos, pateti-
balho o sentido que vos apraz dar-me,
com a adição de uma única letra. “ Se a
10 Said, escravo de M aomé, foi o primeiro a
natureza nos destinou a sermos san­ ter fé na missão do Profeta. Seu nome, afrance-
tos” 9, o senhor fez-me dizer, “ouso sado por Voltaire, numa de suas tragédias,
com o Séide, significa homem de devotamento
9 N o volume do M ercure em que foi pela pri­ cego e fanático. Tieste, da mitologia antiga, foi
meira vez impressa a carta de Bonnet-Philo­ objeto de ódio de seu irmão Atreu, que se vin­
polis, e que deu lugar à resposta de Rousseau, gou dele matando-lhe dois filhos e servindo-os
estava efetivamente saints em lugar de sains; num banquete; Grébillon pusera em cena esse
era, porém, um erro de impressão, com o o a ­ assunto. A análise da piedade na tragédia será
testam os editores de Genebra.É espantoso que retomada na C arta a d ’A lem bert. (N . de P.
Rousseau não o tenha percebido. (N . de P. A.-B.) A.-B.)
326 ROUSSEAU

camente, a bela sorte do último supli­ tringida, pois, desde que os pintos
ciado na roda11. saem do ovo, verifica-se que a galinha
“A afeição que as fêmeas dos ani­ não tem nenhuma necessidade deles,
mais demonstram pelos seus filhotes no entanto sua ternura maternal não os
tem por objeto esses filhotes ou a cede a nenhuma outra galinha.
mãe?” Primeiro, a mãe, para atender à Aí estão, senhor, minhas respostas.
sua necessidade, depois, por causa do Notai, afinal, que, neste caso como no
hábito, os filhotes. Já o disse no D is­ do primeiro discurso, eu sou sempre o
curso. “ Se por acaso fosse esta, o monstro que sustenta ser o homem
bem-estar dos filhotes só ficaria mais naturalmente bom, enquanto meus ad­
assegurado com isso.” Também sou versários são sempre as pessoas de
dessa opinião. No entanto, essa máxi­ bem que, para a edificação pública,
ma antes deve ser ampliada que res­ esforçam-se por provar que a natureza
só deu origem a celerados.
11 O suplício da roda, comum no século
XVIII, consistia em amarrar o condenado
Sou, o quanto se possa ser de
numa roda, romper seus membros e deixá-lo alguém que não se conhece, senhor,
morrer. (N . de P. A.-B.) etc.
DISCURSO SOBRE AS
CIÊNCIAS E AS ARTES
In t r o d u ç ã o
de Paul Arbousse-Bastide

1. Circunstâncias da Composição.

No Livro VIII das Confissões e na Segunda C arta ao Sr. de Malesherbes,


Rousseau narra as circunstâncias que cercaram a composição do Discurso sobre
as Ciências e as Artes. Diderot, de quem se suspeitava fosse o autor dos Pensa­
mentos Filosóficos (1746) e da C arta sobre os Cegos (1749), recebera a visita da
polícia. Em 24 de julho de 1749, f o i preso e encarcerado na Torre de Vincennes.
Rousseau, então seu melhor amigo, sentiu-se muito afetado pela desgraça do
autor da Carta sobre os Cegos. Desde que o prisioneiro pôde receber visitas,
Rousseau ia regularmente vê-lo. Ia a pé, a fim de não gastar dinheiro com o alu­
guel de um coche. Foi assim que no fim de setembro ou no começo de outubro,
com o último número do Mercure de France sob o braço, tomou o caminho de
Vincennes. Fazia, ainda, muito calor. A s árvores do caminho, desbastadas, não
davam nenhuma sombra. A fím de que o tempo parecesse menos longo, Rous­
seau abriu a revista. Leu então que a Academia de Dijon acabava de propor,
para seu prêmio de moral, o seguinte tema: “O restabelecimento das ciências e
das artes terá contribuído para aprimorar os costumes?” “No mesmo momento ”
escreve ele, “entrevi um outro universo, tomei-me um outro homem."Deixou-se
cair sob uma árovre do caminho e aíficou cerca de meia hora, banhado em lágri­
mas. Nesse curto instante, percebeu um mundo de idéias. De acordo com a nar­
rativa da Segunda C arta ao Sr. de Malesherbes (12 de janeiro de 1762), essas
idéias, entrevistas no fulgor da inspiração, teriam sido infinitamente mais ricas
não somente do que as incluídas no Discurso sobre as Ciências e as Artes, como
também do que as que se encontram esparsas no Discurso sobre a Desigualdade
e no Emílio. A crermos em Rousseau, a iluminação de Vincennes teria prefi­
gurado, no sentido exato de premonição intelectual, os temas fundamentais de
seu sistema de idéias. Provavelmente, se ele divisou, como conta, um outro uni­
verso, escaparam-lhe os pormenores de sua estrutura. No próprio local, escreveu
a Prosopopéia de Fabrício. Junto a seu amigo, em Vincennes, só pôde falar do
assunto pelo qual ainda se sentia inteiramente tomado. Diderot o teria aconse­
lhado a responder pela negativa? Já salientamos a controvérsia em nossa Intro­
dução. Em si, não tem grande importância. Rousseau, voltando para casa, redi­
giu o manuscrito o mais rapidamente que pôde, e enviou-o à Academia de Dijon.
Em 9 de julho de 1750, recebia o primeiro prêmio. Em 28 de julho, esse primeiro
prêmio materializou-se numa medalha de ouro e em trezentas libras. Diderot, em
332 INTRODUÇÃO

novembro, fe z publicar o Discurso. O Mercure de France dedicou-lhe um estudo


em janeiro de 1751.

2. Fontes do Primeiro Discurso.

O tema, do primeiro discurso é menos original do que o poderiam pensar


Rousseau e Diderot. O problema proposto liga-se à disputa entre antigos e
modernos. Podem ser encontradas idéias análogas em Fénelon (Lettre à
l’Académie), em La Bruyère (Discours sur Théophraste). Na Inglaterra, em
Nandeville. Igualmente, em Montaigne (Apologie de Raymond de Sebond). A
questão do valor moral do luxo f o i agitada durante todo o século XVIII.' A teo­
ria da virtude, de Rousseau, no primeiro discurso, comporta recordações de
Plutarco.2

3. Plano Analítico do Discurso de 1750.

Rousseau julgou o Discurso, de 1750, com certo descaso. “Essa obra cheia
de calor e de força ressente-se de uma falta absoluta de lógica e de ordem; entre
todas as obras saídas de minha pena, é a mais fraca de raciocínio e a mais pobre
em número e hprmonia ” (Confissões, VIII). Quanto à ordem, à lógica e ao racio­
cínio, Rousseau tem inteira razão. Não é também fácil encontrar-se um plano
por sob a cadeia de apóstrofes, de imperativos e de exemplos esquematizados.
Tentaremos, no entanto, seguir os principais encadeamentos.

PREFÁCIO

Neste Discurso, trata-se não de sutilezas metafísicas, mas daquelas verda­


des que se prendem à felicidade do gênero humano. O partido em que se colocou
o autor despertará contra ele a censura universal, mas escreve como alguém que
“quer viver para além de seu século

PREÂMBULO

À questão apresentada, Jean-Jacques Rousseau responderá, honestamente,


4,que nada sabe e que não se preza menos p or isso Como, porém, ousar censu­
rar as ciências perante uma Academia? É que se trata menos de maltratar a ciên­
cia do que de defender a virtude perante homens virtuosos. De qualquer modo,

1 André Morize, L ’A pologie du Luxe au X V III Siècle. (N. de P. A. = -B.)


2 Delaruelle: Les Sources Principales de Rousseau dans le Premier Discours. (Revue d ’H istoire Littéraire,
Abril, 1912.) (N. de P. A.-B.)
INTRODUÇÃO 333

tomando o partido da verdade, Jean-Jacques Rousseau encontrará prêmio e


recompensa em seu coração.

PRIM EIRA PARTE

As Induções Históricas,3 isto é, como a história confirma a tese de


Rousseau.
a) Homenagem prestada ao momento histórico do “restabelecimento ” das
ciências e das artes.
Contraste entre o movimento da Renascença, que ainda se processa, e a
“barbárie ” da Idade Média. Impunha-se uma revolução do bom senso. O “estú­
pido muçulmano” constituiu a ocasião inesperada (queda de Constantinopla em
1453, que permitiu a difusão no Ocidente das obras da antiga Grécia).
b) O desenvolvimento da cultura prossegue, porém, paralelamente com o
do poder político, do qual se fa z cúmplice, abafando o amor pela liberdade.
c) Ademais, e o que é mais grave, as artes infundem a hipocrisia entre os
homens, criando uma espécie de conformismo estético. “Essa uniformidade vil e
enganadora ” abafa a sinceridade dos indivíduos. Não mais se ousa parecer o que
se é.
d) Tal depravação é função do progresso das artes. Essa espécie de varia­
ção concomitante entre o progresso das artes e o grau de depravação moral não
representa acidente passageiro, mas verdadeira lei da história.
— Exemplo dos povos aos quais o progresso das artes (ou civilização) cor­
rompeu ou conduziu à servidão: Egito, Grécia, Roma e China.
— Exemplo de povos simples, cuja ignorância preservou-os da corrupção:
os persas, os citas, os germanos, Esparta.
— Finalmente Fabrício, evocado numa prosopopéia, opõe o passado vir­
tuoso de Roma à época da decadência, quef o i também a das letras e das artes.

SEGUNDA PARTE

As confirmações pela ordem racional. Influência dos conhecimentos sobre


os costumes.
Apesar dessa segunda parte ser mais teórica do que a primeira, não se deve
por isso esperar que nela nenhum fato histórico se invoque. A s idéias e os sentid
mentos sucedem-se de modo, p or vezes, muito confuso. É difícil, e talvez inútil,
procurar isolar uma articulação lógica.
A unidade da passagem reside no tom do autor, que, assim, inspira o con­
junto do trabalho.

3 Muito embora a expressão induções históricas aqui apareça tomada ao próprio Rousseau, impõe-se desde
já registrar que, no sentido específico que tem para nosso Autor, não se confunde com o de uma perfeita
relação causal, antes significando uma relação de interdependência entre determinados fatos em sua evolu­
ção histórica. (Cf. nota 25 ao Discurso.) Também não se podem confundir as induções históricas de Rous­
seau com o método histórico, tal como hoje o conceituamos. (Cf. ainda nota 49.) (N. de L. G. M.)
334 INTRODUÇÃO

a) A s ciências, impuras pelas suas origens (pois são oriundas de móveis que
se prendem a nossos vícios) e por seu objeto, são perigosas por seus efeitos (por­
quanto fazem perder tempo precioso que poderia ter emprego mais útil para a
sociedade).
b) Aqueles que cultivam as ciências freqüentemente não passam de ociosos
estéreis que espalham paradoxos perigosos para a moralidade e a virtude. O prin­
cipal móvel é o furor de distinguir-se.
c) A s letras e as artes apresentam-se acompanhadas pelo luxo, nascido,
como elas, da vaidade e da ociosidade.
d) O luxo provoca a dissolução dos costumes e a corrupção do gosto.
e) Impõe-se opor, à corrupção dos costumes, a simplicidade dos primeiros
tempos. “E uma bela praia, ornada unicamente pelas mãos da natureza. . . ”(Es­
boço de um quadro histórico da corrupção progressiva dos costumes sob a
influência do progresso das letras e das artes.)
f) Nefasto às qualidades guerreiras, salvaguardas da independência e da
virtude primitivas, o progresso das artes não o é menos às qualidades morais.
Digressão sobre a educação: tem-se de ensinar às crianças o que devem fazer
quando homens, e não aquilo que esquecerão. Ora, nossas artes só descrevem os
desvarios do coração.
g) Todos esses abusos são a conseqüência de um erro fundamental: agarra­
mo-nos aos talentos e subestimamos as virtudes. Além disso, entre os talentos,
preferimos os agradáveis aos úteis. Acabamos por ter especialistas em tudo, mas
não possuímos mais cidadãos.

CONCLUSÃO

Elogio das Academias e apelo ao julgamento dos monarcas. A conclusão de


Rousseau é bastante inesperada. Pode ser decomposta do seguinte modo:

a) D o próprio mal — o desenvolvimento das ciências — saiu seu remédio.


Criando as academias, os reis (homenagem a Luís X IV e a Luís X V ) quiseram
introduzir um princípio de ordem na desordem das ciências e das artes. À s aca­
demias confiou-se o duplo patrimônio dos conhecimentos humanos e dos costu­
mes. Essas sábias instituições constituirão um freio para os literatos.
b) Não existem academias demais.
c) Diatribe contra afilosofia.
d) Que pensar dos vulgarizadores, que facilitam a todos o acesso às
ciências?
e) Os grandes homens, como Descartes e Newton, não tiveram necessidade
de professores. O estudo das ciências e das artes deve ser reservado a uma elite.
Os reis devem admitir os representantes dessa elite nos seus conselhos efornecer-
lhes meios de trabalho. É indispensável à felicidade do gênero humano a união
entre a ciência e a autoridade.
Prosopopéia da Virtude: Para apreendê-la, basta “ouvir a voz da sua cons­
ciência no silêncio das paixões O bem-fazer deve sobrepor-se sempre ao dizer
bem.
INTRODUÇÃO 335

O B SER VA ÇÃO

No fim do Prefácio, Jean-Jacques Rousseau salienta que o texto, publicado


por ele depois da léturea da Academia de Dijon, comporta algumas notas e duas
adições, que não figuravam no texto original. Depois de enviar seu manuscrito a
Dijon, aumentou-o e desenvolveu-o. Tendo recebido o prêmio, só poderia voltar
ao texto que lhe valera essa distinção. Os desenvolvimentos a que Rousseau
alude serviram certamente para o segundo Discurso.
DISCURSO QUE ALCANÇOU
O PRÊMIO DA ACADEMIA DE DIJON,
EM 1750, SOBRE A SEGUINTE QUESTÃQ
PROPOSTA PELA MESMA ACADEMIA:
O RESTABELECIMENTO DAS CIÊNCIAS E DAS
ARTES1TERÁ CONTRIBUÍDO
PARA APRIMORAR OS COSTUMES?
Barbaries hic ego sum, quia non intelliger illis.
Ovídio, Tristes, v. Elegia 10,v.57.

1 O tema proposto pela Academia de Dijon é caracteristicamente setecentista. A Europa, no século dezoito,
chegava ao auge da cultura iniciada, na Renascença, pelo humanismo: o “iluminismo” dominava a vida inte­
lectual e, por igual, a política. Estamos na época dos “filósofos” e dos “déspostas esclarecidos”, isto é, da
supervalorização do conhecimento racional como o instrumento capaz de restabelecer, no seio da sociedade,
a ordem natural observável no cosmos. Os acadêmicos de Dijon, conseqüentemente, propuseram um tema
que, sem dúvida, esperavam ver respondido positivamente e, mais, utilizado para o desenvolvimento dum
elogio acalorado do “restabelecimento das letras e das artes”, ou melhor, da Renascença, que inaugurara
uma nova era.
Rousseau, contudo, vai responder pela negativa, o que chamará, para seu discurso, atenção maior do
que tinham merecido seus antecessores na acusação dos vícios do tempo. É verdade que, embora escrevendo
de maneira menos direta e ordenada, como ele próprio confessa, terá sido o primeirô a atribuir clara impor­
tância à moral, deixando a razão em segundo plano. O mundo novo, que diz ter visto na caminhada a Vin­
cennes, é o mundo de seu próprio pensamento, original e oposto às idéias dominantes em seu tempo e em seu
meio (N. L. G. M.)
A d v e r t e n c ia

Que será a celebridade? Eis a obra infeliz a que devo a minha. É certo que
essa peça, que me valeu um prêmio e me deu nome, será, no máximo, medíocre
e, ouso acrescentar, uma das menores deste repositório. Que abismo de misérias
não teria evitado o autor, se esta primeira obra tivesse sido recebida como o
merecia! Mas era preciso que um favor inicial injusto me trouxesse, aos poucos,
uma severidade que ainda é mais injusta.
P r e fá c io

Eis aqui uma das maiores e mais se quer viver para além de seu século,
belas questões jamais agitadas. Não se não se deve escrever para tais leitores 4.
trata, de modo algum, neste discurso, Mais uma palavra e concluirei. Não
dessas sutilezas metafísicas que domi­ contando com a honra que recebi, con­
naram todas as partes da literatura e fesso ter, depois de enviá-lo, refundido
das quais nem sempre são isentos os e aumentado este discurso de modo a
programas de academia, mas de uma torná-lo, de certa maneira, uma outra
daquelas verdades que importam à obra. Sinto-me hoje obrigado a resta­
felicidade2 do gênero humano. belecê-lo no estado em que foi premia­
Prevejo que dificilmente me perdoa­ do. Acrescentei-lhe somente algumas
rão o partido que ousei tomar. Ferindo notas e deixei duas adições fáceis de
de frente tudo o que constitui, atual­ serem reconhecidas e que a Academia
mente, a admiração dos homens, não talvez não tivesse aprovado. Penso que
posso esperar senão uma censura uni­ a eqüidade, o respeito e o reconheci­
versal; não será por ter sido honrado mento exigem de mim esta advertência.
pela aprovação de alguns sábios que
deverei esperar a do público. Por isso
já tomei meu partido; não me preo­ 4 Repudiando seu tempo, Rousseau repudia
os pensadores que não conseguiam esperar
cupo com agradar nem aos letrados coisa melhor no futuro. Parece-lhe que a sim ­
pretensiosos, nem às pessoas em moda. ples insistência no desenvolvimento e expan­
Em todos os tempos, haverá homens são dos conhecim entos científicos e dos princí­
destinados a serem subjugados pelas pios racionais não levará a parte nenhuma.
Essa atitude nada tinha de simplesmente teóri­
opiniões de seu século, de seu país e de ca; já ao escrever este primeiro discurso, R ous­
sua sociedade. Faz-se passar hoje por seau tinha rompido com os representantes da
espírito forte3, filósofo, quem, pelo cultura consagrada, não apenas com os ex­
mesmo motivo, ao tempo da Liga não poentes conservadores da espécie dos acadêmi­
cos, mas igualmente com aqueles que se consi­
teria passado de um fanático! Quando deravam revolucionários, mas se acomodavam
na sociedade do tempo. Voltaire, principal fi­
2 Sobre a importância da idéia de felicidade gura desses libertários que conviviam com os
no século X VIII, ver P. Haszard, L a Pensée déspotas, merece uma refutação explícita no
Européenne au X V III Siècle; de M ontesquieu próprio Discurso. Apenas Diderot constituía
à Lessing. Boibin, Paris, T. I., capítulo II, pág. uma exceção respeitada por Rousseau, que
17-33. (N . de P. A.-B.) não só ia visitá-lo na prisão, mas ainda, em
3 A expressão esprit f o r t nem sempre se enun­ algumas passagens do Discurso (p. ex., na
ciou com sentido irônico ou pejorativo. N a era segunda nota de pé de página), ao falar em
da razão, a fortaleza espiritual, isto é, intelec­ filósofos, sempre lhe abre lugar especial.
tual, tornara-se valor dominante. Rousseau A posição teórica e prática de Rousseau reser­
opõe-se a esse encarecimento da inteligência. vou-lhe posto à parte na história das idéias.
(N . de L. G. M.) (N . de L. G. M.)
D is c u r s o

Decipim ur specie recti


Horác., Da Art. Poét., v. 25

O restabelecimento 5 das ciências e absoluto a ciência que maltrato, disse


das artes contribuiu para aprimorar ou a mim mesmo, é a virtude cjue defendo
corromper os costumes? Eis o que é perante homens virtuosos. E mais cara
preciso examinar. Que partido deverei a probidade às pessoas de bem do que
tomar nessa questão? Aquele, senho­ a erudição aos doutos. Que temer,
res, que convém a um homem de bem pois? As luzes da assembléia que me
que nada sabe e que nem por isso se ouve? Confesso-o que sim, mas será
despreza. pela constituição do discurso 6 e não
pelo sentimento7 do orador. Os sobe­
Sei que será difícil acomodar o que
ranos justos jamais hesitaram em con­
tenho a dizer ao tribunal perante o
qual compareço. Como ousar censurar denar-se a si mesmos em discussões
duvidosas e a posição mais vantajosa
as ciências perante uma das mais sá­
para o justo direito é a de ter de defen­
bias companhias da Europa, louvar a
der-se contra uma parte íntegra e escla­
ignorância numa Academia célebre e
recida, juiz em causa própria.
conciliar o desprezo pelo estudo com o
A esse motivo, que me encoraja,
respeito pelos verdadeiros sábios? Re­
junta-se um outro, que me incita — é
conheci estes obstáculos e eles de
que, depois de ter sustentado, de acor­
modo algum me demoveram. Não é em
do com minhas luzes naturais, o parti­
do da verdade, seja qual for meu suces­
5 O restabelecimento. Trata-se do movimento
da Renascença. Freqüentemente esqueceram- so, há um prêmio que não poderá
se disso e Jean-Jacques Rousseau foi o pri­ faltar-me e que encontrarei no fundo
meiro a fazê-lo. Seu D iscurso não trata exata­ do coração.
mente do assunto proposto por Dijon.
C olocou-se em exame o valor moral do huma­
nismo do século XVI. Sem preocupar-se com o 6 A constituição do discurso = a com posi­
ção. (N . de P. A.-B.)
aspecto histórico do problema, Jean-Jacques
Rousseau dá um sentido muito geral ao “resta­ 7 O sentim ento = o pensamento, a opinião.
belecimento”. (N . de P. A.-B.) (N . de P. A.-B.)

P r im e ir a P a r t e

Ê um espetáculo grandioso e belo8 ver o homem sair, por seu próprio


esforço, a bem dizer do nada; dissipar,
8 Rousseau, muito habilmente, com eça por por meio das luzes de sua razão, as tre­
louvar o “restabelecimento” das ciências e das
artes. Presta às “ luzes” uma homenagem que
vas nas quais o envolveu a natureza;
julga indispensável. (N . de P. A.-B.) elevar-se acima de si mesmo; lançar-
342 ROUSSEAU

se, pelo espírito, às regiões celestes; ainda mais desprezível que a ignorân­
percorrer com passos de gigante, como cia, usurpara o nome do saber e opu­
o sol, a vasta extensão do universo; e, nha um obstáculo quase invencível à
o que é ainda maior e mais difícil, sua volta. Precisou-se de uma revolu­
penetrar em si mesmo para estudar o ção para devolver os homens ao senso
homem e conhecer sua natureza, seus comum e ela veio donde menos se
deveres e seu fim. Todas essas maravi­ esperava. Foi o estúpido muçulma­
lhas se renovaram, há poucas gera­ n o 12, foi o eterno flagelo das letras que
ções9. as fez renascer entre nós. A queda do
A Europa tinha tornado a cair na trono de Constantino trouxe à Itália os
barbárie dos primeiros tempos10. Os destroços da Grécia antiga13. A Fran­
povos dessa parte do mundo, hoje tão ça, por sua vez, enriqueceu-se com
esclarecida, viviam há alguns séculos esses destroços preciosos. Rapida­
em estado pior do que a ignorância. mente, as ciências seguiram as artes, à
Não sei que algaravia11 científica, arte de escrever juntou-se a arte de
9 Certos valores consagrados parecem mere­
pensar — gradação que pode parecer
cer tolerância de Rousseau: no discurso há um estranha e talvez não seja senão dema­
elogio da R enascença, uma explicação sobre a siado natural — e se começou então a
necessidade das academias e amáveis referên­ sentir a principal vantagem do comér­
cias ao progresso da razão, no campo das ciên­ cio das musas, que é o de tornar os ho­
cias. São, contudo, concessões aparentes. Por
meio delas, Rousseau acaba por atacar erros e
mens mais sociáveis, inspirando-lhes o
vícios. A ssim , neste parágrafo, ao lado dos desejo de se deleitarem uns aos ou­
aplausos a “todas essas maravilhas” do conhe­ tros1 4 por meio de obras dignas de sua
cimento e de seu “restabelecimento”, a simples aprovação recíproca.
indicação de que mais difícil do que conhecer
o universo é “penetrar em si mesmo para estu­
Como o corpo, o espírito tem suas
dar o homem e conhecer sua natureza, seus necessidades. Estas são o fundamento
deveres e seu fim ” assentará as bases da crítica da sociedade, aquelas constituem seu
que, em nome da moral, Rousseau desenvol­ deleite. Enquanto o Governo e as leis
verá contra as ciências e as artes. Apesar de atendem à segurança e ao bem-estar
toda a com plicada evolução do pensamento de
Rousseau neste discurso, há uma ligação dire­
dos homens reunidos, as ciências, as
ta entre a insinuação contida nessas primeiras letras e as artes, menos despóticas e
palavras do desenvolvimento e o enunciado da
conclusão final, onde se lê que “ a verdadeira
filosofia” é “voltar-se sobre si mesmo e ouvir a 12 O estúpido muçulmano. A lusão à tomada
voz da consciência no silêncio das paixões” . de Constantinopla pelos turcos em 1453. A
(N . de L. G. M.) estupidez não é a simplicidade. “É-se estúpido
10 Com o todos os de seu século, Rousseau à revelia do sentimento.” Abbé Girard: Traité
julga severamente a Idade Média, aliás, sem des Synonymes, 1742. (N . de P. A.-B.)
conhecê-la. N este ponto, compartilha dos 13 O preconceito antimedieval completava-se
preconceitos dos “filósofos”. O desprezo pela pelo preconceito favorável à retomada da cul­
Idade M édia atinge sua expressão culminante tura clássica — só assim se explicam, a rigor,
cQm Condorcet no seu Tableau des Progrès de os termos “renascença”, “renascimento”, “res­
1’E sprit Humain (1794). Ter-se-á de esperar tabelecimento”, que não encontram qualquer
pelòs pré-românticos do com eço do século base histórica. M as, repitamos, quem fala aqui
X IX , pelos doutrinadores da contra-revolução é a cultura consagrada do tempo e não R ous­
e, sobretudo, por A. Comte, para notar indí­ seau, que logo invectivará a estatuária clássica
cios de uma reabilitação da Idade Média. Será dos jardins setecéhtistas com exemplos de
ainda mais tardio o seu conhecimento real, imoralidade. . . (N . de P. A.-B.)
sobretudo no domínio das idéias filosóficas. 1 4 O desenvolvimento das artes teria por pri­
(N . de P. A.-B.) meiro móvel, segundo Rousseau, a vaidade.
11 N o texto francês: “quel jargon ” — a esco­ Essa idéia será retomada inúmeras vezes,
lástica da Idade Média. (N . de P. A.-B.) sobretudo no segundo discurso. (N . de P. A.-B)
DISCURSO SOBRE AS CIÊNCIAS E AS ARTES 343

talvez mais poderosas, estendem guir- obstante atenciosas, distanciadas


landas de flores sobre as cadeias de igualmente da rusticidade tudesca e da
ferro de que estão eles carregados, pantomima ultram ontana— eis os fru­
afogam-lhes o sentimento dessa liber­ tos do gosto, adquiridos nos bons estu­
dade original1 5 para a qual pareciam dos e aperfeiçoados no comércio do
ter nascido, fazem com que amem sua mundo.
escravidão e formam assim o que se Como seria doce viver entre nós, se
chama povos policiados1 6. A neces­ a contenção exterior sempre represen­
sidade1 7 levantou os tronos; as ciên­ tasse a imagem dos estados do cora­
cias e as artes os fortaleceram. Potên­ ção, se a decência fosse a virtude, se
cias da terra, amai os talentos e nossas máximas nos servissem de
protegei aqueles que os cultivam18. regra, se a verdadeira filosofia fosse
Povos policiados, cultivai-os; escravos inseparável do título de filósofo! Mas
felizes, vós lhes deveis esse gosto deli­ tantas qualidades dificilmente andam
cado e fino com que vos excitais, essa juntas e a virtude nem sempre se apre­
doçura de caráter e essa urbanidade de senta com tão grande pompa. A rique­
costumes, que tornam tão afável o za do vestuário pode denunciar um
comércio entre vós, em uma palavra: a homem opulento, e a elegância, um
aparência de todas as virtudes, sem homem de gosto; conhece-se o homem
que se possua nenhuma delas. são e robusto por outros sinais — é
Por essa espécie de polidez, tanto sob o traje rústico de um trabalhador e
mais amável quanto menos afeta mos­
trar-se, outrora se distinguiram Atenas 1 8 Os príncipes sempre encaram com prazer o
e Roma nos dias tão exalçados de sua gosto das artes agradáveis e das superflui-
magnificência e de seu brilho; por ela, dades, das quais não resulta exportação de
sem dúvida, nosso século e nossa dinheiro, espalhar-se entreos seus súditos,pois,
além de nutri-los assim nessa pequenez de
nação sobrepujarão todos os tempos e alma tão própria à servidão, sabem muito bem
todos os povos. Um tom filosófico sem que todas as necessidades que o povo julga ter
pedantaria, maneiras naturais e não são outras tantas cadeias com que se enleia.
Alexandre, querendo manter os ictiófagos na
sua dependência, obrigou-os a renunciar à
1 5 Desde o primeiro discurso — não se pesca e a nutrir-se com os alimentos comuns
salientou suficientemente — , a tese de Jean­ dos outros povos. Os selvagens da América,
Jacques Rousseau é tanto política quanto que andam completamente nus e que só vivem
moral, ou, caso se queira, moral porque polí­ do produto de sua caça, jam ais foram subjuga­
tica (cf. René Hubert, L a Philosophie de Jean­ dos; com efeito, que jugo se imporia a homens
Jacques Rousseau, curso inédito, lição IV). que de nada necessitam?* (N. do A.)
Rousseau, alargando a questão apresentada, * N essas observações marginais se percebe a
sobe às origens e aos princípios. Encontra-se já importância que, para Rousseau, apresentava
um primeiro esboço do homem no estado de o fundamento material da vida social. Desde
natureza. N o primeiro discurso, a bondade seus primórdios, contudo, a noção é com ple­
natural do homem não passa da ausência da tada e enriquecida pelo corolário segundo o
maldade nativa. N o fundo, porém, a natureza qual a base material sempre se projeta,
humana não era melhor. (N . de P. A.-B.) conscientemente, nos indivíduos — tais proje­
1 6 P oliciados = submetidos a uma disciplina ções, as “necessidades” , desempenharão papel
social. (N . de P.A.-B) importantíssimo no desenvolvimento do segun­
1 7 Rousseau não precisa o modo pelo qual as do discurso. Cabe sublinhar, ainda, a obsti­
necessidades tiveram de crescer e diversificar- nada resistência de Rousseau ao singular
se para provocar a reunião dos homens. Em conúbio das atividades intelectuais com a
1749, ele submete-se ao ponto de vista dos cupidez mercantilista dos monarcas, tanto ao
enciclopedistas. Ainda não são pressentidas repelir os que insinuam que as artes nada cus­
por Rousseau nem a doutrina do contrato, nem tam, quanto ao refutar o elogio do luxo feito
a da vontade geral. (N. de P. A.-B.) • por Voltaire. (N . de L. G. M.)
344 ROUSSEAU

não sob os dourados de um cortesão, perpétua, os homens que formam o


que se encontrarão a força e o vigor do rebanho chamado sociedade, nas mes­
corpo. A aparência não é menos estra­ mas circunstâncias, farão todos as
nha à virtude, que constitui a força e o mesmas coisas desde que motivos mais
vigor da alma. O homem de bem é um poderosos não os desviem. Nunca se
atleta que se compraz em combater nu; saberá, pois, com quem se trata: será
despreza todos esses ornamentos vãos, preciso, portanto,, para conhecer o
que dificultam o emprego de suas for­ amigo, esperar pelas grandes ocasiões,
ças e cuja maior parte só foi inventada isto é, esperar que não haja mais
para esconder uma deformidade qual­ tempo para tanto, porquanto para
quer. essas ocasiões é que teria sido essen­
Antes que a arte polisse nossas cial conhecê-lo.'
maneiras e ensinasse nossas paixões a Que cortejo de vícios não acompa­
falarem a linguagem apurada, nossos nha essa incerteza! Não mais amiza­
costumes eram rústicos, mas naturais, des sinceras e estima real; não mais
e a diferença dos procedimentos de­ confiança cimentada. As suspeitas, os
nunciava, à primeira vista, a dòs receios, os medos, a frieza, a reserva, o
caracteres. No fundo, a natureza hu­ ódio, a traição esconder-se-ão todo o
mana não era melhor, mas os homens tempo sob esse véu uniforme e pérfido
encontravam sua segurança na facili­ da polidez, sob essa urbanidade tão
dade para se penetrarem reciproca­ exaltada que devemos às luzes de
mente19, e essa vantagem, de cujo nosso século. Não mais se profanará
valor não temos mais noção, poupa­ com juramentos o nome do senhor do
va-lhes muitos vícios. universo, mas será ele insultado com
Atualmente, quando buscas mais blasfêmias, sem que nossos ouvidos
sutis e um gosto mais fino reduziram a suscetíveis22 se ofendam com isso.
princípios a arte de agradar, reina Não se enaltecerá o próprio mérito,
entre nossos costumes uma uniformi­ mas se rebaixará o de outrem. De
dade desprezível e enganosa20, e pare­ modo algum se ultrajará grosseira­
ce que todos os espíritos se fundiram mente o inimigo, mas jeitosamente o
num mesmo molde: incessantemente a caluniaremos. Extinguir-se-ão os ódios
polidez impõe, o decoro ordena; inces­ nacionais, mas com eles irá o amor à
santemente seguem-se os usos e nunca pátria. A ignorância desprezada será
o próprio gênio21. Não se ousa mais substituída por um pirronismo perigo­
parecer tal como se é e, sob tal coerção so. Haverá excessos proscritos, vícios
desonrados, mas outros serão honra­
19 Existe, pois, uma sociabilidade primitiva, dos com o nome de virtudes; impor-
favorável à manutenção do estado de natureza.
Baseia-se no caráter imediato das relações afe­ se-á tê-los ou afetar tê-los. Elogiará,
tivas. A intervenção das artes junta a essa quem desejar, a sobriedade dos sábios
sociabilidade sadia uma sociabilidade malsã, de hoje23, quanto a mim, não vejo
baseada na vaidade. (N . de P. A.-B.) nisso senão um rebuscamento da in­
20 Rousseau discerniu muito bem o confor­
mismo, que toda a civilização acarreta, e o
temperança, tão indigno de meu elogio
papel que “ a polidez” desempenha no processo
de “politização” . (N . de L. G. M.) 22 O sentido é irônico: os ouvidos, escrupu­
21 O próprio gênio designa aqui o caráter losos no terreno da p o l i d e z , o são muito pouco
particular de cada indivíduo, aquilo por que no das blasfêmias. (N . de P. A.-B.)
ele se distingue dos demais. O determinismo 23 Alusão a certas atitudes de austeridade
dos usos opõe-se à liberdade dos caracteres. conferidas pela tradição aos filósofos estóicos.
(N . de P. A.-B.) (N. de P. A.-B.)
DISCURSO SOBRE AS CIÊNCIAS E AS ARTES 345

quanto a simplicidade artificiosa de curiosidade2 6 são tão velhos quanto o


tais sábios2 4. mundo. A elevação e o abaixamento
Tal a pureza adquirida pelos nossos cotidianos das águas do oceano não
costumes; assim tornamo-nos pessoas foram mais regularmente submetidos
de bem. Cabe às letras, às ciências e às ao curso do astro que nos ilumina
artes reivindicarem o que lhes pertence durante a noite quanto a sorte dos cos­
numa obra tão salutar2 5. Acrescen­ tumes e da probidade aos progressos
tarei somente uma reflexão: um habi­ das ciências e das artes. Viu-se a virtu­
tante de certas paragens longínquas, de fugir à medida que sua luz se eleva­
que procurasse formar uma idéia dos va no nosso horizonte e observou-se o
costumes europeus tomando por base mesmo fenômeno em todos os tempos
o estado das ciências entre nós, a per­ e em todos os lugares.
feição de nossas artes, a decência de Vede o Egito, essa primeira escola
nossos espetáculos, a polidez de nossas do universo, esse clima tão fértil sob
maneiras, a afabilidade de nossos dis­ um céu ferrenho, essa região célebre de
cursos, as nossas demonstrações per­ onde outrora Sesóstris partiu para con­
pétuas de benevolência e esse tumul­ quistar o mundo. Torna-se ela a mão
tuoso concurso de homens de todas as da filosofia e das belas-artes e logo de­
idades e de todos os estados que pare­ pois se dá a conquista de Cambises,
cem ávidos, desde a aurora até o deitar depois a dos gregos, a dos romanos, a
do sol, de se obsequiarem reciproca­ dos árabes e, por fim, a dos turcos.
mente, descobriria a respeito de nossos Vede a Grecia, povoada outrora por
costumes exatamente o contrário do heróis que por duas vezes2 7 venceram
que são. a Ásia, uma diante de Tróia e outra
Onde não existe nenhum efeito não nos seus próprios lares. As letras nas­
há nenhuma causa a procurar; nesse centes não tinham ainda levado a cor­
ponto, porém, o efeito é certo, a depra­ rupção aos corações de seus habitan­
vação é real, e nossas almas se corrom­ tes, mas o progresso das artes, a
peram à medida que nossas ciências e dissolução dos costumes e o jugo do
nossas artes avançaram no sentido da macedoniano seguiram-se de perto e a
perfeição. Dir-se-á ser uma infelicidade Grécia sempre sábia, sempre volup­
própria de nossa época? Não, senho­ tuosa e escrava, só ganhou com suas
res; os males causados por nossa vã revoluções uma mudança de senhores.
Toda a eloqüência de Demóstenes ja ­
2 4 “G osto”, diz Montaigne, “de contestar e mais pôde reanimar um corpo que o
discutir, m as com poucos homens e em meu luxo e as artes tinham desfibrado28.
proveito. Considero ofício muito indecoroso
para um homem de honra servir de espetáculo 2 6 Rousseau confunde propositadamente o
aos grandes e causar inveja com as demonstra­ problema do “restabelecimento” das artes com
ções de seu espírito e de sua loquacidade.” o do nascimento da inteligência e do pensa­
(Livro III, capítulo 8.) Este o ofício de todos os mento. O único benefício recebido da natureza
nossos letrados, menos um.* (N . do A.) é o da ignorância. Todos os males vieram da
* N o consenso geral dos críticos, esse menos “vã curiosidade” . Há uma evidente transposi­
um refere-se a Diderot. (N . de L. G. M.) ção da tradição cristã. O orgulho do conheci­
2 5 N ova ironia. Rousseau, muito habilmente, mento é o pecado original. (N . do A. P.-B.)
não afirma existir um laço de causa e efeito 2 7 D uas vezes: quando da guerra de Tróia e
entre os progressos da depravação e o das por ocasião das guerras dos medos. (N . de P.
artes e das ciências. Registra unicamente a A.-B.)
existência de uma interdependência entre esses 28 N o texto original énervé — tomado no
dois fenômenos e que, por essa interdepen­ sentido etim ológico. A enervação era um suplí­
dência, se pode medir a decadência dos costu­ cio pelo qual queimavam os tendões. (N . de P.
mes. (N . de P. A.-B.) A.-B.)
346 ROUSSEAU

Foi no tempo dos Ênios e dos Terên- nem a pretensa sabedoria de suas leis,
cios que Roma, fundada por um pastor nem a multidão de habitantes desse
e ilustrada por trabalhadores, começou vasto império puderam resguardá-lo
a degenerar. Mas, depois dos Ovídios, do jugo do- tártaro ignorante e grossei­
dos Catulos, dos Marciais e dessa mul­ ro, de que lhe terão servido os sábios?
tidão de autores obscenos cujos sim­ Que fruto alcançou com as honrarias
ples nomes alarmam o pudor, Roma, de que foram estes cumulados? Por­
que outrora fora o templo da virtude, ventura, o de ser povoado por escravos
tornou-se o teatro do crime, o opróbrio e pérfidos?
das nações e o joguete dos bárbaros. Oponhamos a esse quadro o dos
Essa capital do mundo cai, finalmente, costumes de pequeno número de povos
sob o jugo que impusera a tantos que, preservados desse contágio de
povos e o dia de sua queda foi aquele conhecimentos maus, por suas virtudes
em que se deu a um de seus cidadãos o construíram a própria felicidade e
título de árbitro do bom gosto29. constituem exemplo para as demais
Que direi dessa metrópole do Impé­ nações. Tais foram os antigos per­
rio do Oriente que parecia, por sua sas30, nação singular no seio da qual
posição, dever ser a do mundo inteiro, se aprendia a virtude como entre nós se
desse asilo das ciências e das artes aprende a ciência, que com tanta facili­
proscritas do resto da Europa, talvez dade subjugou a Ásia, sendo a única a
mais por sabedoria do que por barbá­ possuir tal glória, e cuja história das
rie? Tudo que a depravação e a cor­ instituições pode ser considerada um
rupção têm de mais vergonhoso; tudo romance de filosofia. Tais os citas31,
que as traições, os assassínios e os dos quais nos restam elogios tão
venenos têm de mais negro; tudo que o magnifícos. Tais os germanos32, a
concurso de todos os crimes tem de cujo respeito uma pena, cansada de
mais atroz — eis o que forma a trama descrever os crimes e as maldades de
da história de Constantinopla. Aí está um povo instruído, opulento e volup­
a fonte pura da qual foram trazidas até tuoso, aliviou-se com descrever-lhes a
nós as luzes com as quais nosso século simplicidade, a inocência e as virtudes.
se glorifica. Tal foi, também, a própria Roma33,
Mas, por que procurar em tempos nos tempos de pobreza e de ignorân­
distantes as provas de uma verdade da cia; tal se mostrou até nossos dias esta
qual temos, sob nossos olhos, testemu­ nação rústica3 4, tão enaltecida pela
nhos subsistentes? Há na Ásia uma
região imensa na qual as letras reve­ 30 Rousseau, sem dúvida, lembrava-se de
renciadas levam às primeiras dignida- uma passagem de M ontaigne (Livro, ens. 24)
que descrevia a educação dos jovens persas
des do Estado. Se as ciências purifi­
segundo Platão e Xenofonte. (N . de P. A.-B.)
cassem os costumes, se ensinassem os 31 A retidão dos citas foi enaltecida por Justí-
homens a derramar seu sangue pela no. (N . de P. A.-B.)
pátria, se incitassem à coragem, os 32 Tácito, na sua Germânia, opôs a pureza
povos da China deveriam ser sábios, li­ dos costumes germânicos à corrupção de seu
tempo. (N . de P. A.-B.)
vres e invencíveis. No entanto, se não
33 Era tradição, no tempo do império, cele­
há um vício sequer que não os domine, brar a virtude dos velhos trabalhadores e sol­
um crime sequer que não lhes seja dados de Roma. (N . de P. A.-B.)
familiar, se nem a luz dos ministros, 3 4 Essa nação rústica: Suíça. O elogio da
Suíça é um tema caro a Rousseau e freqüente
29 Petrônio, arbiter elegantiarum. (N . de L. no século XVIII (Montesquieu, Voltaire). (N.
G. M.) de P. A.-B.)
DISCURSO SOBRE AS CIÊNCIAS E AS ARTES 347

sua coragem, que a adversidade não nidade? O h ! Esparta, eterno opróbrio


pôde abater, e pela sua fidelidade, que de uma doutrina vã! Enquanto os ví­
o exemplo não pôde corromper3 5. cios levados pelas belas-artes se intro­
Não seria absolutamente por estupi­ duziam conjugados em Atenas, en­
dez que esses povos preferiram outras quanto um tirano3 7 lá reunia, com
atividades às do espírito. Não ignora­ tanto cuidado, as obras do príncipe
vam que, em outras regiões, homens dos poetas, tu escorraçavas para fora
ociosos passavam sua vida disputando de teus muros as artes e os artistas, as
sobre o bem soberano, sobre o vício e a ciências e os sábios!
virtude, e que pensadores orgulhosos, O acontecimento marcou essa dife­
creditando-se a si mesmos os maiores rença. Atenas tornou-se a moradia da
elogios, confundiam os outros povos polidez e do bom gosto, o país dos ora­
sob o nome desprezivo de bárbaros; dores e dos filósofos; lá a elegância das
refletiram sobre seus costumes e apren­ edificações correspondia à da língua;
deram a desprezar sua doutrina3 6. viam-se, em todas as partes, o m ár­
Esquecer-me-ia de que foi no pró­ more e a tela animados pelas mãos dos
prio seio da Grécia que se viu surgir mestres mais hábeis. De Atenas saíram
essa cidade tão célebre pela sua feliz essas obras surpreendentes que servi­
ignorância quanto pela sabedoria das ram de modelo a todas as épocas
leis, essa república antes de quase- corrompidas38. O quadro da Lacede-
deuses do que de homens, tanto suas mônia é menos brilhante. “Lá”, diziam
virtudes pareciam superiores à huma- os outros povos, “os homens nascem
virtuosos e o próprio ar do país parece
3 5 Não ouso falar dessas nações felizes que inspirar a virtude.” De seus habitantes
nem sequer conhecem o nome dos vícios que só nos resta a memória de seus atos
nos dão tanto trabalho para reprimir, daqueles heróicos. Tais monumentos valerão
selvagens da América cuja polícia simples e menos, para nós, do que os mármores
natural Montaigne não trepida em preferir, não
somente às leis de Platão, porém mesmo a
interessantes que Atenas nos deixou?
tudo que a filosofia possa jam ais imaginar de E verdade que alguns sábios resisti­
m ais perfeito para o governo dos povos. Cita ram à torrente geral e resguardaram-se
ele uma quantidade de exemplos significativos do vício no trato das musas. Ouçamos,
para quem soubesse admirá-los. “M as q u a l!” ,
porém, o julgamento que o primeiro e
acrescenta, “eles não usam ca lç õ e s!” (Livro I,
capítulo 30.) (N . do A.)
3 7 Pisístrato, tirano de Atenas, no século VI
3 6 Que me digam, de boa fé, qual a opinião
que os próprios atenienses tinham de sua a. C., mandou recopiar os manuscritos de
eloqüência, se com tanto cuidado a afastaram Homero. (N . de P. A.-B.)
desse tribunal íntegro do qual nem os próprios 3 8 Evidentemente, entre “ as épocas corrompi­
deuses apelavam. Que pensavam os romanos das” está aquela em que vive Rousseau que,
da medicina, se a baniram de sua república? E, desta forma, acaba por inverter a posição que
se um resto de humanidade levou os espanhóis aparentemente consentira em assumir. Conde­
a interditarem os jurisconsultos de entrarem na
nando Atenas em nome da pureza espartana,
América, que idéia teriam da jurisprudência?
condena exatamente o que se considerava
N ão se poderia dizer que, graças a esse único
ato, ^creditavam reparar todos o s males que ti­ com o melhor fruto da cultura clássica. C onde­
nham feito àqueles infelizes índios?* (N . do nando a cultura clássica, condena, obvia­
A.) mente, seu renascimento. Ora, condenando a
* Montaigne (Liv. III, cap. X III) registrava Renascença, já não restava defesa para os
que o Rei Fernando evitara enviar para as continuadores do “restabelecimento das artes e
colônias os sabedores da jurisprudência, por das ciências” . Rousseau transforma o que se
julgar, com o Platão, que tais elementos são julgava índice de progresso supremo em sím­
perturbadores. (N . de L. G. M.) bolo de decadência. (N . de L. G. M.)
348 ROUSSEAU

o mais infeliz39 dentre eles tinha dos mens no julgamento dos deuses e o
sábios e dos artistas de seu tempo: mais sábio dos atenienses na opinião
“ Examinei” , disse, “os poetas e os de toda a Grécia, Sócrates, fazendo o
vejo como pessoas cujo talento se elogio da ignorância! 41 Seria de crer
impõe a si mesmos e aos outros, que se que, se ressuscitasse entre nós, nossos
fazem passar por sábios, que se tomam sábios e nossos artistas fariam com
como tais e que nada menos são40. que mudasse de opinião? Não, meus
“Dos poetas” , continua Sócrates, senhores, esse homem justo conti­
“passei aos artistas. Ninguém ignorava nuaria a desprezar nossas ciências vãs,
mais as artes do que eu, ninguém esta­ em absoluto ajudaria a aumentar essa
va mais convencido de possuírem os multidão de livros com que nos inum-
artistas belíssimos segredos. Verifi­ dam de todos os lados, e, como o fez,
quei, no entanto, não ser sua situação só deixaria, como único preceito a seus
discípulos e a nossos descendentes, o
melhor do que a dos poetas e que
estão, tanto uns quanto outros, no exemplo e a memória de sua virtude.
mesmo caso. Porque os mais hábeis Eis como é belo instruir os homens.
Sócrates começou em Atenas, o
dentre eles avultam em sua companhia, velho C atão 42 continuou em Roma a
consideram-se como os mais sábios deblaterar contra esses gregos artifi­
dentre os homens. Essa presunção des­ ciosos e sutis que seduziam a virtude e
lustrou completamente seu saber a afrouxavam a coragem de seus conci­
meus ólhos. Foi assim que, colocan­ dadãos. Mas continuaram a prevalecer
do-me no lugar do oráculo e pergun­ as ciências, as artes e a dialética43;
tando a mim mesmo o que eu mais Roma encheu-se de filósofos e de ora­
gostaria de ser, se o que sou ou o que dores, descuidou-se da disciplina mili­
eles são, se saber o que eles aprende­ tar, desprezou-se a agricultura, adota­
ram ou saber que nada sei, respondi a ram-se certas seitas e esqueceu-se a
mim mesmo e ao deus: quero ficar pátria. As sagradas palavras liberdade,
como sou. desinteresse, obediência às leis, sucede­
“ Não sabemos, nem os sofistas, nem ram os nomes de Epicuro, Zenão e
os poetas, nem os oradores ou os artis­ Arcesilas. “Depois que os sábios co­
tas, nem eu mesmo, o que é o verda­ meçaram a surgir entre nós”, diziam os
deiro, o bom e o belo. Há, porém, entre próprios filósofos, “eclipsaram-se 'as
nós uma diferença, qual seja, a de que, pessoas de bem” . 44 Até então os
ainda que essas pessoas nada saibam, 41 O pensamento de Sócrates, na medida em
crêem todas saber alguma coisa, en­ que podemos conhecê-lo, é interpretado estra­
quanto que eu, se nada sei, pelo menos nhamente por Rousseau. Parece que jamais
não duvido disso, de modo que toda Sócrates fez o elogio da ignorância; pretendeu
somente confundir a presunção dos sofistas,
essa superioridade de sabedoria, que salientando que o verdadeiro ponto de partida
me foi concedida pelo oráculo, reduz- de nossos conhecimentos era a confissão de
se unicamente a estar bem convencido suas limitações. (N. de P. A.-B.)
de que ignoro aquilo que não sei”. 42 É inteiramente arbitrário o paralelismo
Aí está, pois, o mais sábio dos ho­ estabelecido entre a ação de Sócrates e a de
Catão. (N. de P. A.-B.)
43 A dialética: arte de raciocinar e de discutir
39 Porque deveria morrer envenenado por usando o diálogo, que facilita a oposição dos
seus contemporâneos. (N . de P. A.-B.) conceitos e a descoberta de sua síntese. (N . de
40 É óbvio que Rousseau empresta a Sócrates P. A.-B.)
palavras inteiramente imaginárias, nas quais 4 4 Citação de Sêneca: P ostquam do.ctiprodie-
parafraseia certas passagens de Platão. (N. de runt, borti desunt — C artas a Lucílio, 95. (N.
P. A.-B.) de P. A.-B.)
DISCURSO SOBRE AS CIÊNCIAS E AS ARTES 349

romanos tinham-se contentado em pra­ qüência frívola, o estudo e o encanto


ticar a virtude; tudo se perdeu quando dos homens fúteis. Que viu, pois, Ci­
começaram a estudá-la. neas de tão majestoso? ó cidadãos!
Oh, F abrício!45 que teria pensado Ele viu um espetáculo que nem vossas
vossa grande alma, se, voltando à vida, riquezas ou todas as vossas artes ja ­
para vossa infelicidade, vísseis a face mais darão; viu o mais belo espetáculo
pomposa dessa Roma salva por vosso que já apareceu sob o céu: a assem­
braço e que vosso nome respeitável bléia de duzentos homens virtuosos,
ilustrou mais do que todas as suas dignos de dominar Roma e de gover­
conquistas? “Deuses”, teríeis dito, “em nar a terra.”
que se transformaram esses tetos de Transponhamos, porém, a distância
choupanas e esses lares rústicos nos dos lugares e dos tempos e vejamos o
quais outrora habitavam a moderação que se passou em nossas regiões e sob
e a virtude? Que esplendor funesto é nossos olhos, ou melhor, afastemos as
esse, que sucedeu à simplicidade roma­ pinturas odiosas que feririam nossa
na? Que língua estranha é essa? Que delicadeza e poupemo-nos o trabalho
costumes efeminados são esses? Que de repetir as mesmas coisas sob outros
significam essas estátuas, esses qua­ nomes. Não foi em vão que evoquei os
dros, esses edifícios? Insensatos, que manes de Fabrício, nem fiz com que
fizestes? Vós, senhores das nações, vós esse grande homem dissesse o que não
vos tornastes os escravos desses ho­ poderia pôr na boca de Luís XII ou de
mens frívolos que vencestes! São os Henrique IV? É verdade que, entre
retóricos que vos governam! Foi para nós, Sócrates absolutamente não teria
enriquecer arquitetos, poetas, estatuá­ bebido a cicuta, mas teria bebido, num
rios e histriões que regastes com vosso copo ainda mais amargo, a zombaria
sangue a Grécia e a Á sia! Os despojos insultante e o desprezo cem vezes pior
de Cartago são a presa de um tocador do que a morte.
de flauta! Romanos, apressai-vos em Eis como o luxo, a dissolução e a
destruir esses anfiteatros, em quebrar escravidão foram, em todos os tempos,
esses mármores, em queimar esses o castigo dos esforços orgulhosos que
quadros, em escorraçar esses escravos fizemos para sair da ignorância feliz
que vos subjugam e cujas artes funes­ na qual nos colocara a sabedoria eter­
tas vos corrompem. Que outras mãos na. O véu espesso4 7, com que cobriu
se ilustrem com tão vãos talentos. O todas as suas operações, parecia adver­
único talento digno de Roma é o de tir-nos suficientemente de que não nos
conquistar o mundo e de nele fazer rei­ destinou a buscas vãs. Haverá, porém,
nar a virtude. Quando C ineas4 6 tomou entre essas lições, algumas que tenha­
nosso senado por uma assembléia de mos sabido aproveitar ou de que
reis, não se deslumbrou nem por uma tenhamos descuidado impunemente?
pompa vã, nem por uma elegância Povos, sabei, pois, de uma vez por
rebuscada; nele não ouviu essa elo- todas, que a natureza vos quis preser­
var da ciência como a mãe arranca
4 5 Fabrício: cônsul e censor romano do III uma arma perigosa das mãos do filho;
século a.C. Símbolo de integridade e de auste­ que todos os segredos, que ela esconde
ridade da Roma republicana. (N . de P.A.-B.)
4 6 Anedota contada por Plutarco, na Vida de
Pirro. Cineas, embaixador de Pirro, viera a 4 7 A ciência torna-se, desse modo, um sacrilé­
R om a para discutir as condições da paz. (N . gio, pois vai de encontro às intenções da natu­
de P. A.-B.) reza. (N . de P. A.-B.)
350 ROUSSEAU
de vós, são tantos outros males de que não tiraríamos desses preconceitos?
vos defende e que vosso trabalho para Mas, para conciliar essas contradições
vos instruirdes não é o menor de seus aparentes, basta examinar de perto a
benefícios. Os homens são perver­ vaidade e o vazio desses títulos orgu­
sos 4 8; seriam piores ainda se tivessem lhosos, que nos ofuscam, e que damos,
tido a infelicidade de nascer sábios. em plena gratuidade, aos conheci­
mentos humanos. Consideremos, pois,
Como são humilhantes para a hu­
as ciências e as artes em si mesmas,
manidade tais reflexões! Como nosso
vejamos o que deve resultar de seu pro­
orgulho deve ficar mortificado com gresso e não hesitemos em concordar
elas! Como? A probidade seria filha sem restrições quando nossos raciocí­
da ignorância? Seriam incompatíveis a nios estiverem de acordo com as indu­
ciência e a virtude? Que conseqüências ções históricas49.

48 O s hom ens são perversos. Quer dizer: tor­ fazem sobretudo graças a uma interpretação
nam-se perversos. Rousseau ainda não diz bem evolutiva ou dialética, cuja rigidez se sabe
com o. (N . de P. A.-B.) maior do que a dos próprios fatos acumulados.
49 Essas induções nada têm de rigorosas ou Essa segunda linhagem faz-se notar sobretudo
de históricas. Rousseau quis somente tentar no século X IX , a partir de Saint-Simon, bifur­
mostrar que o desenvolvimento das ciências e cando-se nos dois ramos pujantes iniciados
das artes sempre se acompanhou de uma cres­ por Auguste Comte e por Proudhon, e encon­
cente depravação dos homens. Cabe acres­ trando sua mais robusta expressão no sistema
centar que, na história das idéias políticas, o de Marx, cujo rigor interpretativo lhe reservou
chamado “método histórico” só na idade posto singular na história da fundação da ciên­
contem porânea veio a assumir maior rigor e, cia social. A primeira corrente pode ser tida
ainda assim, graças à influência direta da com o constante na história do pensamento
com paração histórica praticada na sociologia, político ocidental, pois, se parece enunciar-se
sobretudo por Durkheim e sua escola. A rigor, mais claramente com Maquiavel, muito antes
não encontram os nunca, entre os teóricos polí­ já era patente, por exemplo, nos advogados da
ticos, cultores da indução histórica. Há aque­ teoria do direito divino dos reis. N a fase ilumi-
les que se servem, desde o início da idade nista, chega a um auge e Rousseau dá-lhe
moderna, duma abundante exemplificação his­ desenvolvimento inteiramente original usando
tórica para dar maior força a suas afirmações o mesmo caminho de raciocínio e exposição
de caráter empírico ou, mais raramente, que os filósofos e juristas, de cujas opiniões
dogm ático. Há, de outra parte, aqueles que se iria tão nitidamente afastar-se. (N . de L. G.
apóiam mais diretamente na história, mas o M.)

Seg u n d a P arte

Era tradição antiga, levada do Egito mentos humanos não se encontrará


paTa a Giécia, que o inventor das ciên­ origem que corresponda à idéia que se
cias fora um deus inimigo do repouso
dos hom ens50. Que opinião deveriam, 50 Identifica-se com facilidade a alegoria da
pois, ter das ciências os próprios egíp­ fábula de Prometeu, e não parece que os gre­
cios, entre os quais elas nasceram? gos, que o prenderam ao C áucaso, o julgassem
Explica-se: conheciam de perto as fon­ mais favoravelmente do que os egípcios a seu
tes que as tinham produzido. Com efei­ deus Teutus. “ O sátiro”, diz uma fábula anti­
ga, “quis beijar e abraçar o fogo, na primeira
to, quer folheando os anais do mundo, vez que o viu, mas Prometeu gritou-lhe: ‘Sáti­
quer suprindo crônicas imprecisas com ro, tu chorarás tua barba, pois o fogo queima
buscas filosóficas, para os conheci­ quando se toca nele !’ ” (N. do A.)
DISCURSO SOBRE AS CIÊNCIAS E AS ARTES 351

gosta de formar a seu respeito51. A nações e a verdade tem uma única


astronomia nasceu da superstição; a maneira de ser. Aliás, quem a procura
eloqüência, da ambição, do ódio, da sinceramente? Mesmo com a melhor
adulação, da mentira; a geometria, da boa vontade, quais os indícios que
avareza; a física, de uma curiosidade asseguram o seu reconhecimento?
infantil; todas elas, e a própria moral, Nessa multidão de sentimentos dife­
do orgulho humano. As ciências e as rentes, qual será o nosso critério5 4
artes devem, portanto, seu nascimento para julgá-los 5 5? E, o que é mais difí­
a nossos vícios: teríamos menor dúvi­ cil ainda, se por felicidade enfim o
da quanto às suas vantagens, se o encontramos, qual de nós saberá dar-
devessem a nossas virtudes 52. lhe bom uso?
O pecado de sua origem 53 marcou- Se nossas ciências são inúteis no ob­
se fartamente em seus objetos. Que jeto que se propõem, são ainda mais
faríamos das artes sem o luxo que as perigosas pelos efeitos que produzem.
nutre? Sem as injustiças dos homens, Nascidas na ociosidade, por seu turno
de que serviria a jurisprudência? Que a nutrem, e a irreparável perda de
seria da história, se não houvesse nem tempo é o primeiro prejuízo que deter­
tiranos, nem guerras ou conspira­ minam forçosamente na sociedade. Na
dores? Numa palavra, quem desejaria política, como na moral, é um grande
passar a vida em contemplações esté­ mal não se fazer de algum modo o bem
reis, se cada um, não consultando e todo cidadão inútil pode ser conside­
senão os deveres do homem e as neces­ rado um homem pernicioso. Respon­
sidades da natureza, só desse seu dei-me, pois, filósofos ilustres, vós por
tempo à pátria, aos infelizes e a seus intermédio de quem sabemos por que
amigos? Somos feitos, então, para razões os corpos se atraem no
morrer amarrados às bordas do poço vácuo 5 6; quais são, nas revoluções dos
para onde a verdade se retirou? So­ planetas, as relações entre as áreas
mente esta reflexão deveria dissuadir percorridas em tempos iguais; quais as
todo homem que procurasse seria­ curvas que têm pontos conjugados,
mente instruir-se pelo estudo da filoso­ pontos de inflexão e de retrocesso;
fia. como o homem vê tudo em Deus 5 7;
Quantos perigos e caminhos ilusó­ como, sem comunicação, se corres­
rios na investigação das ciências! Por pondem a alma e o corpo, tal como o
quantos erros, mil vezes mais perigo­ fariam dois relógios58; quais os astros
sos do que é inútil a verdade, não se que podem ser habitados; quais os
tem de passar para chegar a ela! A insetos que se reproduzem de modo
desvantagem é visível, pois o falso é extraordinário — respondei-me, repi-
suscetível de uma infinidade de combi­
5 4 Argumentação dos céticos, daqueles sofis­
51 Gostar-se-ia de pensar que as ciências pos­ tas contra os quais Sócrates se erguia. (N . de
suem uma origem pura e nobre; por exemplo: P. A.-B.)
a curiosidade desinteressada. Isso absoluta­ 5 5 Quanto menos se sabe mais se julga saber.
mente não acontece; seus móveis são interesses Os peripatéticos duvidavam de alguma coisa?
e vícios. (N. de P. A.-B.) Descartes não construiu o universo com cubos
52 Como se vê, a condenação das ciências e e torvelinhos? E não existe na própria Europa
das artes já está feita, ganhando, nessa segun­ um medíocre médico que ousadamente explica
da parte do discurso, novas confirmações. E, esse profundo mistério da eletricidade, que tal­
progressivamente, Rousseau firma o seu ponto vez causará para sempre o desespero dos
de vista moral. (N. de L. G. M.) verdadeiros filósofos? (N . do A.)
53 O Pecado de sua origem: o que na sua ori­ 5 6 A lusão a Newton. (N . de P. A.-B.)
gem é uma lacuna, uma grave imperfeição. (N. 5 7 A lusão a Malebranche. (N . de P. A.-B.)
de P. A.-B.) 58 A lusão a Leibniz. (N . de P. A.-B.)
352 ROUSSEAU

to, vós de quem recebemos tantos mal. Outros males, piores ainda, acom­
conhecimentos sublimes, se não nos panham as letras e as artes. Tal é o
tivésseis nunca ensinado tais coisas, luxo62, como elas nascido da ociosi­
seríamos com isso menos numerosos, dade e da vaidade dos homens. O luxo,
menos bem governados, menos temí­ raramente, apresenta-se sem as ciên­
veis, menos florescentes ou mais per­ cias e as artes, e estas jamais andam
versos? Reconhecei, pois, a pouca sem ele. Eu sei que nossa filosofia,
importância de vossas produções e, se sempre fecunda em máximas singula­
o trabalho dos mais esclarecidos de res, pretende, contra a experiência de
nossos sábios e de nossos melhores todos os séculos, que o luxo seja o
cidadãos nos proporciona tão parca esplendor dos Estados; depois, porém,
utilidade59, dizei-nos o que devemos de ter esquecido a necessidade das leis
pensar dessa chusma de escritores obs­ suntuárias, ousaria ela também negar
curos e de letrados ociosos que, em que sejam os bons costumes essenciais
pura perda, devoram a substância do à duração dos impérios e o luxo diame­
Estado. tralmente oposto aos bons costumes?
Que digo? Ociosos? Quisera Deus Que seja o luxo um indício certo de
que o fossem efetivamente! Os costu­ riquezas; que sirva até, caso se queira,
mes, com isso, seriam mais sãos e a para multiplicá-las; que se deveria con­
sociedade mais sossegada. Esses vãos cluir desse paradoxo tão digno de ter
e fúteis declamadores andam, porém, nascido em nossos dias? E que se tor­
por todas as partes, armados com seus nará a virtude, desde que seja preciso
funestos paradoxos, minando os funda­ enriquecer a qualquer preço? Os anti­
mentos da fé e enfraquecendo a virtu­ gos políticos falavam constantemente
de. Sorriem desdenhosamente das ve­ de costumes e de virtudes, os nossos só
lhas palavras pátria e religião60, e falam de comércio e de dinheiro. Um
dedicam seus talentos e sua filosofia a vos dirá que um homem numa determi­
destruir e aviltar quanto existe de nada região vale a soma pela qual o
sagrado entre os homens. Não que no venderiam na Argélia; outro, seguindo
fundo odeiem a virtude ou nossos dog­ esse cálculo, encontrará regiões nas
mas; é da opinião pública que são ini­ quais um homem nada vale, e outras
migos e, para tornar a trazê-los ao pé em que ele vale menos do que nada.
do altar, bastaria relegá-los ao meio Avaliam os homens como gado. Se­
dos ateus 61. ó fúria de ser diferente, gundo eles, um homem só vale para o
que poder o vosso! Estado pelo seu consumo; assim, um
O abuso do tempo constitui grande sibarita valeria bem trinta lacedemô-
nios. Adivinhe-se, pois, qual das duas
59 Seria conveniente definir a utilidade que se repúblicas — a de Esparta ou a de Sí-
deve esperar das ciências. Conferindo-lhes baris — foi subjugada por um punha­
anteriormente uma origem nos nossos vícios, do de camponeses e qual das duas fez a
Rousseau reconhece-lhes alguma utilidade. (N. Ásia tremer.
de P. A.-B.)
60 Neste ponto, Rousseau já estava separado
A monarquia de Ciro foi conquis­
dos “filósofos”. tada, com trinta mil homens, por um
61 Rousseau quer dizer que os letrados que­
rem, antes de tudo, se fazer notados, tomando 62 Aqui com eça a crítica da teoria que Vol­
o ponto de vista contrário ao da opinião públi­ taire apresentara no seu poema O M undano,
ca. Entre ateus, seriam os defensores dos alta­ escrito em Cirey, em 1736, onde justificava o
res. A s atitudes que assumem não são sinceras, luxo pelos benefícios materiais que traz ao
mas inteiramente relativas. país.
DISCURSO SOBRE AS CIÊNCIAS E AS ARTES 353

príncipe mais pobre do que o menor elogios de seus contemporâneos são a


dos sátrapas da Pérsia, e os citas, o parte mais preciosa de suas recompen­
mais miserável de todos os povos, sas. Que não fará para obtê-las, se teve
resistiram aos monarcas mais podero­ a infelicidade de nascer entre um povo
sos do universo. Duas famosas repú­ e no tempo em que os sábios, ficando
blicas disputaram entre si o império do na moda, colocaram uma juventude
mundo; uma era muito rica, a outra frívola em posição de dar o tom; onde
nada tinha e foi esta que destruiu a pri­ todos os homens sacrificaram seu
meira. O império romano, por sua vez, gosto aos tiranos de sua liberdade63;
depois de ter devorado todas as rique­ em que, não ousando um dos sexos
zas do universo, tornou-se presa de um aprovar senão o que é proporcional à
povo que nem sabia o que fosse a pusilanimidade do outro, deixam-se
riqueza. Os francos conquistaram os perder obras-primas de poesia dram á­
gauleses, e os saxões a Inglaterra, sem tica e rejeitam-se prodígios de harmo­
outros tesouros além de sua bravura e nia? O que fará ele, senhçyres? Rebai­
de sua pobreza. Um troço de monta­ xará seu gênio ao nível de seu século e
nheses pobres, cuja cupidez toda se preferirá compor obras comuns, que
limitava a algumas peles de carneiro, sejam admiradas durante sua vida, a
depois de ter dominado o orgulho maravilhas que só serão admiradas
austríaco, esmagou aquela opulenta e muito tempo depois de sua morte.
temível casa de Borgonha que fazia os Dizei-nos. célebre A rouèt64, quantas
potentados da Europa tremerem. Fi­ belezas masculinas e fortes não sacrifi­
nalmente, todo o poder e toda a sabe­ castes à nossa falsa delicadeza, e quan­
doria do herdeiro de Carlos V, susten­ to o espírito da galanteria, tão fértil em
tados por todos os tesouros das índias, pequenas coisas, não vos custou em
acabariam por derrocar no encontro grandes coisas!
com um punhado de pescadores de Desse modo, a dissolução dos costu­
arenque. Que nossos políticos se dig­ mes, conseqüência forçosa do luxo,
nem, pois, a suspender seus cálculos acarreta por sua vez a corrupção do
para refletir sobre esses exemplos e que gosto. Se, por acaso, entre os homens
aprendam, de uma vez por todas, que
com o dinheiro se tem tudo, salvo cos­ 63 Estou bem longe de pensar que essa ascen­
dência das mulheres seja um mal em si. É um
tumes e cidadãos. presente que a natureza lhes fez, visando à feli­
De que precisamente se trata, pois, cidade do gênero humano. Melhor dirigido,
nessa questão de luxo? Trata-se de poderia produzir tanto bem quanto hoje causa
saber o que é mais importante para os de mal. N ão se percebe ao certo quais as van­
tagens que surgiriam na sociedade se uma edu­
impérios — serem brilhantes e mo­ cação melhor se desse a essa metade do gênero
mentâneos, ou virtuosos e duráveis. humano que governa a outra. Os homens serão
Digo brilhantes, mas qual o seu bri­ sempre aquilo que mais agradar às mulheres.
lho? O gosto pelo fausto absoluta­ Se quiserdes, pois, que eles se tornem grandes e
virtuosos, ensinai às mulheres o que é gran­
mente não se associa, nas mesmas deza de alma e de virtude. A s reflexões que
almas, com o da honestidade. Não, esse assunto fornece, feitas outrora por Platão,
não é possível que espíritos degrada­ bem mereceriam ser melhor desenvolvidas por
dos por um mundo de preocupações uma pena digna de escrever à altura de tal
fúteis se elevem por uma vez a algo de mestre e de defender uma causa tão grandiosa.
(N . do A.)
grande e, se tivessem força, faltar- 6 4 O tom de Rousseau em relação a Voltaire
lhes-ia coragem. é ainda deferente, embora acompanhado de
Todo artista quer ser aplaudido. Os profunda crítica. (N . de P. A.-B.)
354 ROUSSEAU

extraordinários por seus talentos, en­ dos deuses não se distinguiram mais
contra-se um que possua firmeza de das casas dos cidadãos. Chegou-se
alma e se recuse a ceder ao espírito de então ao cúmulo da depravação e os
seu século e aviltar-se com produções vícios nunca foram levados mais longe
pueris, desgraçado dele! Morrerá na do que quando foram vistos, por assim
indigência e no esquecimento. Não é dizer, apoiados, na entrada do palácio
prognóstico que faço, mas experiência dos grandes, sobre colunas de már­
que relato ! C arie! P ierre! 6 5 Chegou o more e gravados sobre capitéis corínT
momento em que o pincel, destinado a tios.
aumentar a majestade de nossos tem­ Enquanto se multiplicam as comodi­
plos por meio de imagens sublimes e dades da vida, as artes se aperfeiçoam
santas, cairá de vossas mãos ou será e o luxo se espalha, a verdadeira cora­
prostituído por ter de ornar com pintu­ gem se debilita e as virtudes militares
ras lascivas os painéis de uma carrua­ desfalecem: é ainda a obra das ciências
gem. E tu, rival dos Praxíteles e dos Fí- e de todas as artes que atuam nas som­
dias, tu, cujos ancestrais usaram o bras dos gabinetes. Quando os godos
cisei para fazer deuses capazes de des­ arrasaram a Grécia, todas as biblio­
culpar a nossos olhos sua idolatria — tecas só se salvaram do fogo devido a
inimitável P igal6 6, tua mão se conten­ uma opinião espalhada entre eles e
tará em rebocar o ventre de um boneco segundo a qual se deveria deixar aos
ou então terá de ficar inativa. inimigos móveis tão próprios a des­
Não se pode refletir sobre os costu­ viá-los do exercício militar e a distraí-
mes sem se comprazer com a lem­ los com ocupações ociosas e sedentá­
brança da imagem da simplicidade dos rias. Carlos VIII viu-se senhor da
primeiros tempos. E uma bela p raia6 7, Toscana e do reino de Nápoles quase
ornada unicamente pelas mãos da sem ter desembainhado a espada e
natureza, para a qual incessantemente toda a sua corte atribuiu essa facili­
se voltam os olhos e da qual com tris­ dade inesperada a mais se divertirem o
teza se sente afastar-se. Quando os ho­ príncipe e a nobreza da Itália com
mens inocentes e virtuosos amavam ter tornarem-se engenhosos e sábios do
os deuses como testemunhas de suas que se adestrando para se tornarem
ações, moravam juntos na mesma vigorosos e aguerridos. Com efeito,
cabana, mas, assim que se tornaram disse o homem de juízo que relat'
maus, cansaram-se com esses especta­ esses dois traços, todos os exemplos
dores incômodos e os isolaram em nos ensinam que, nessa política mar­
templos magníficos. Escorraçaram-nos cial e em todas as que lhe são seme­
por fim para aí se estabelecerem eles lhantes, o estudo da ciência é muito
próprios, ou, pelo menos, os templos mais adequado a afrouxar e afeminar a
coragem do que a fortalecê-la e a
Trata-se de Carie van Loo (1705-1765) e animá-la.
de Pierre (morto em 1789), pintores célebres Os romanos confessaram que a vir­
nessa época, que trabalharam principalmente
na decoração de igrejas. (N. de P. A.-B.) tude militar se extinguira entre eles à
6 6 Trata-se de Pigalle (1714-1785), que nessa medida que começaram a se conhecer
época tinha produzido sobretudo obras de em quadros, em relevos, em vasos de
decoração religiosa. (N. de P. A.-B.) ourivesaria e a cultivar as belas-artes,
6 7 Uma das primeiras evocações do estado de
natureza. Vê-se que Rousseau não precisa
e, como se fosse eissa região famosa
com o os homens se tornaram maus. (N . de P. destinada a servir continuamente de
A.-B.) exemplo aos outros povos, a elevação
DISCURSO SOBRE AS CIÊNCIAS E AS ARTES 355

dos Médicis e o restabelecimento das oficial; no próprio soldado, um pouco


letras fizeram cair novamente, e talvez mais de força e de vigor seriam talvez
para sempre, aquela reputação guer­ mais necessários do que tanta bravura,
reira que a Itália parecia ter recupe­ que não o salva da morte. E que
rado há alguns séculos. importa ao Estado que suas tropas
As antigas repúblicas da Grécia, pereçam de febre e frio, ou pela espada
com aquela sabedoria que brilhava na do inimigo?
maioria de suas instituições, interdi­ Se a cultura das ciências é prejudi­
tavam a seus cidadãos todos os ofícios cial às qualidades guerreiras, ainda o é
tranqüilos e sedentários que, enfraque­ mais às qualidades morais. Já desde os
cendo e corrompendo o corpo, rapida­ primeiros anos, uma educação insen­
mente debilitam a alma. Com efeito, de s a ta 68 orna nosso espírito e corrompe
que maneira poderão enfrentar a fome, nosso julgamento. Vejo em todos os
a sede, as fadigas, os perigos e a morte, lugares estabelecimentos imensos onde
homens que a necessidade abate e que a alto preço se educa a juventude para
a menor pena desanima? Com que aprender todas as coisas, exceto seus
coragem os soldados suportarão traba­ deveres. Vossos filhos ignoram a pró­
lhos excessivos aos quais não estão pria língua, mas falarão outras que em
habituados? Com que ardor farão lugar algum se usam; saberão compor
marchas forçadas sob o comando de versos que dificilmente compreende­
oficiais que não têm sequer força para rão; sem saber distinguir o erro da ver­
viajar a cavalo? Que não me objetem dade, possuirão a arte de torná-los
com o valor glorificado de todos esses ambos irreconhecíveis aos outros, gra­
modernos guerreiros tão habilmente ças a argumentos especiosos; mas não
disciplinados. Enaltecem sua bravura saberão o que são as palavras magna­
num dia de batalha, mas não me dizem nimidade, eqüidade, temperança, hu­
em absoluto como suportam o excesso manidade e coragem; nunca lhes atin­
de trabalho, como resistem ao rigor girá o ouvido a doce palavra pátria e,
das estações e às intempéries do clima. se ouvem falar de Deus, será menos
Basta um pouco de sol ou de neve, a para reverenciá-lo do que para temê-
privação de algumas coisas supérfluas lo 69. Preferiria, dizia um sábio, que
para, em poucos dias, fundir e destruir meu aluno tivesse passado o tempo
o melhor de nossos exércitos. Guerrei­ jogando péla, pois pelo menos o corpo
ros intrépidos, admiti de uma vez por estaria mais bem disposto. Sei que é
todas a verdade, para vós tão difícil de preciso ocupar as crianças e que a
compreender. Sois bravos, eu o sei; ociosidade constitui para elas o maior
triunfaríeis com Aníbal em Cannes e dos perigos a evitar. Que deverão, pois,
na Trasimena; César convosco teria apreender? Eis uma questão interes­
atravessado o Rubicão e subjugado sante. Que aprendam o que devem
seu país; mas não seria convosco que o
68 Este é um dos primeiros textos e.m que
primeiro teria atravessado os Alpes e Rousseau aborda o problema da educação. Já
que o segundo teria vencido vossos tivera ocasião de refletir sobre esse problema
antepassados. quando preceptor em casa do Sr. M ably, em
Os combates nem sempre fazem o Lião, onde com pôs seu Projeto p ara a E duca­
sucesso da guerra e há para os generais ção do Sr. de Saint-M arie (1740), retocado
quando foi preceptor do filho mais novo da
uma arte superior à de ganhar bata­ Sr.a Dupin. (N . de P. A.-B.)
lhas. O que corre para o fogo com 69 P ensam entos F ilosóficos. [Título de uma
intrepidez não deixará de ser bem mau obra de Diderot. (N . de L. G. M.)|
356 ROUSSEAU
fazer sendo hom ens70 e não o que pátria? Ou aqueles homens, maiores
devem esquecer. ainda, que a enriqueceram com suas
Nossos jardins estão ornados de virtudes? Não. São imagens de todos
estátuas e nossas galerias de quadros. os desvarios do coração e da razão,
Que representam, em vossa opinião, cuidadosamente extraídos da mitologia
essas obras-primas da arte expostas à antiga e apresentados precocemente à
admiração pública? Os defensores da curiosidade dos nossos filhos, sem dú­
vida para que tenham, diante dos
70 Era essa a educação dos espartíatas, olhos, mesmo antes de saberem ler,
segundo o maior de seus reis. “E”, disse M on­ modelos de más ações.
taigne, “coisa digna de muita consideração que
nessa excelente polícia de Licurgo, na verdade De onde nascem todos esses abusos
m onstruosa pela sua perfeição e, contudo, tão senão da funesta desigualdade71 intro­
cuidadosa da nutrição das crianças como se duzida entre os homens pelo privilégio
fora obrigação principal, e no próprio seio das
musas, se mencione tão pouco a doutrina: é
dos talentos e pelo aviltamento das vir­
como se a essa juventude generosa, desde­ tudes? Aí está o efeito mais evidente de
nhando qualquer outro jugo, se tivesse de dar, todos os nossos estudos, a mais peri­
em lugar de nossos mestres de ciências, unica­ gosa de suas conseqüências. Não se
mente mestres de valentia, de prudência e de pergunta mais a um homem se ele tem
justiça.”
Vejamos, agora, com o o mesmo autor fala dos
probidade, mas se tem talento; nem de
antigos persas: Platão, diz ele, conta “que o um livro se é útil, mas se é bem escrito.
filho mais velho de sua sucessão real era assim As recompensas são prodigalizadas ao
educado: depois de seu nascimento, era entre­ engenho e fica sem glórias a virtude.
gue não a mulheres mas a eunucos, qualifi­
cados com o de primeira autoridade pelos reis,
Há mil prêmios para os belos discur­
devido à sua virtude. Esses encarregavam-se sos, nenhum para as belas ações. Que
de tornar-lhe o corpo belo e são e, depois de me digam, no entanto, se é comparável
sete anos, ensinavam-no a montar a cavalo e a a glória, conferida ao melhor dos dis­
caçar. Quando chegava aos catorze anos, cursos premiados nesta academia, ao
depunham-no nas mãos de quatro: o mais
sábio, o mais justo, o mais comedido e o mais mérito de ter instituído o prêmio.
valente da nação. O primeiro lhe ensinava a O sábio de modo algum corre atrás
religião, o segundo a ser sempre sincero, o ter­ da fortuna, mas não é insensível à gló­
ceiro a dominar a cupidez e o quarto a não ria; quando a vê tão mal distribuída,
temer nada” . Todos, acrescentaria eu, a torna­
rem-no bom, nenhum deles a fazê-lo um sábio.
sua virtude, que um pouco de emula­
“A stiages, em X enofonte, pede a Ciro que lhe ção teria animado e tornado proveitosa
dê a sua última lição: Em nossa escola, disse à sociedade, cai na indolência e se
este, um menino maior, tendo um pequeno extingue na miséria e no esquecimento.
saio, deu-o a um de menor tamanho e lhe arre­ Eis o que, com o correr do tempo e em
batou o seu que era maior. Tendo nosso pre­
ceptor feito de mim juiz dessa pendência, jul­ todos os lugares, causa a preferência
guei que se deveria deixar as coisas assim, e dos talentos agradáveis aos úteis e o
que um e outro pareciam melhor acomodados que a experiência vem confirmando, à
desse modo. Diante disso, ele me fez ver que eu saciedade, desde o renascimento das
tinha agido mal, pois me cingira a considerar a
conveniência, sendo antes preciso assegurar a
ciências e das artes. Temos físicos,
justiça, que exige que ninguém seja violentado
no que lhe pertence — e então conta que foi 71 Já se vislumbra o assunto do D iscurso
açoitado como nós o som os em nossas vilas sobre a Desigualdade. No primeiro discurso, a
por esquecer do primeiro aoristo de Ttímw. desigualdade é introduzida entre os homens
Meu preceptor me fará uma bela arenga, in ge- pela supervalorização dos talentos, em detri­
nero dem onstrativo, antes de persuadir-me de mento das virtudes. N o segundo discurso, a
que sua escola vale essa”. (Livro I, cap. 24.) desigualdade aparecerá de modo inteiramente
(N. do A.) diverso. (N . de P. A.-B.)
DISCURSO SOBRE AS CIÊNCIAS E AS ARTES 357

geômetras, químicos, astrônomos, poe­ admitidos nas academias, velarão por


tas, músicos, pintores; não temos mais si mesmos e se esforçarão por se torna­
cidadãos72 ou, se nos restam alguns rem dignos, graças a obras úteis e cos­
deles dispersos pelos nossos campos tumes irrepreensíveis. Aquelas dentre
abandonados, lá perecem indigentes e essas companhias que, pelo prêmio
desprezados. Esse o estado a que estão com que homenageiam o mérito literá­
reduzidos, esses os sentimentos que rio, fizeram uma escolha de temas
encontram, em nós, aqueles que nos capazes de reanimar nos corações dos
dão o p ã o 73 e dão o leite a nossos cidadãos o amor à virtude, demonstra­
filhos. rão que esse amor reina entre eles e
Confesso, no entanto, não ser o mal darão aos povos o prazer, tão raro e
tão grande7 4 quanto poderia ter-se tor­ tão doce, de ver as sociedades cultas se
nado. A providência eterna, colocando dedicarem a lançar sobre o gênero hu­
plantas medicinais salutares ao lado de mano não somente luzes agradáveis,
várias plantas nocivas e, na constitui­ mas também instruções saudáveis.
ção de inúmeros animais malignos, o Que não me oponham, pois, uma
remédio para seus ferimentos, ensinou objeção que para mim não passa de
aos soberanos, que são seus ministros, nova prova. Tantos cuidados só mos­
a imitarem-lhe a sabedoria. Foi se­ tram a necessidade de tomá-los e de
guindo tal exemplo que, do próprio modo algum procuram-se remédios
seio das ciências e das artes, fontes de para males inexistentes. Por que deve­
milhares de devassidões, esse grande rão estes ainda trazer, pela sua insufi­
monarca, cuja glória de época em ciência, o caráter de remédios co­
época só se tornará mais brilhante, muns? Tantas afirmações em favor dos
extraiu essas sociedades célebres, en­ sábios só servem para enganar quanto
carregadas tanto do perigoso depósito ao objeto das ciências e para desviar
dos conhecimentos humanos quanto os espíritos para sua cultura. Devido
do depósito sagrado dos costumes, às precauções que se tomam, parece
pela preocupação que têm de mantê- haver trabalhadores demais e temer-se
los, em si próprias, com toda a pureza, que faltem filósofos. Não ousarei fazer,
e de exigi-los dos membros que rece­ nesse ponto, uma comparação entre a
bem. agricultura e a filosofia: seria intolerá­
Essas sábias instituições, fortifi­ vel. Que é a filosofia? 7 5 Qual o con­
cadas pelo seu augusto sucessor e imi­ teúdo das obras dos filósofos mais
tadas por todos os reis da Europa, ser­ conhecidos? Quais são as lições desses
virão pelo menos de freio aos letrados amigos da sabedoria? Ouvindo-os, não
que, aspirando todos à glória de serem os tomaríamos por uma turba de char­
latães gritando, cada um para seu lado,
72 Esta passagem mostra nitidamente que, numa praça pública: “ Vinde a mim, só
desde o seu primeiro discurso, o ponto de vista eu não engano!” Um pretende não
em que Rousseau se coloca é o político. (N. de haver corpos e que tudo só existe como
P. A.-B.) representação; o outro, não haver
73 A pologia do homem da terra, do cam po­
nês. (N. de P. A.-B.)
outra substância senão a matéria, nem
74 A partir deste ponto, começam as reservas
de Rousseau e suas precauções relativas à 7 5 Essa diatribe contra a filosofia visa sobre­
Academ ia de Dijon. A s corporações de sábios tudo aos “filósofos”, com quem Rousseau con­
podem impedir muitos males inerentes ao vivia no círculo em que se preparava a
desenvolvimento das ciências e das artes. (N. Enciclopédia, mas suas alusões ultrapassam-
de P. A.-B.) nos. (N. de P. A.-B.)
358 ROUSSEAU
outro deus senão o mundo. Este avan­ que sejam mais insensatos do que nós,
ça não haver nem virtudes, nem vícios, levantarão as mãos aos céus e dirão,
e serem quimeras o bem e o mal com o coração amargurado: “Deus
morais; aquele, que os homens são todo-poderoso, tu, que tens nas mãos
lobos7 6 e podem, com a consciência os espíritos, livra-nos das luzes e das
tranqüila, se devorarem uns aos ou­ artes funestas de nossos pais, e resti­
tros. Oh! grandes filósofos, por que tui-nos a ignorância, a inocência e a
não reservais para vossos amigos e fi­ pobreza, os únicos bens que podem
lhos essas lições proveitosas? Teríeis fazer nossa felicidade e que são precio­
logo a recompensa e não temeríamos sos para ti”.
encontrar entre os nossos alguns de Mas, se o progresso das ciências e
vossos sectários. das artes nada acrescentou à nossa
Aí estão, pois, os homens maravi­ verdadeira felicidade, se corrompeu os
lhosos a quem foi prodigalizada duran­ costumes e se a corrupção dos costu­
te a sua vida a estima de seus contem­ mes chegou a prejudicar a pureza do
porâneos e reservada a imortalidade gosto, que pensaremos dessa multidão
depois de seu transpasse. Aí estão as de autores secundários78 que afasta­
sábias máximas que deles recebemos e ram do templo das musas as dificul­
que, de geração em geração, transmi­ dades que lhes barravam o acesso e
timos a nossos descendentes. O paga­ que a natureza tinha aí espalhado
nismo, entregue a todos os desvarios como uma prova para a força daqueles
da razão humana, teria deixado à que seriam tentados a saber? Que
posteridade alguma coisa que possa pensaríamos desses compiladores de
ser comparada aos monumentos vergo­
nhosos que lhe preparou a imprensa 7 7 Considerando-se as tremendas desordens
sob o reinado do Evangelho? Os escri­ que a imprensa já causou na Europa, julgan­
tos ímpios, de Leucipo a Diágoras, do-se o futuro pelo progresso que o mal faz de
um dia para outro, pode-se com facilidade pre­
pereceram com eles; não se tinha ainda ver que os soberanos, para banir essa arte ter­
inventado a arte de eternizar as extra­ rível de seus Estados, não tardarão a ter tanto
vagâncias do espírito humano, mas, trabalho quanto tiveram para introduzi-la. O
graças aos caracteres tipográficos7 7 e sultão Achmet, cedendo à importunação de
algumas pessoas de pretenso bom gosto, con­
à utilização que deles fazemos, ficarão sentira em instalar um prelo em C onstanti­
para sempre os perigosos sonhos dos nopla. M as, assim que a imprensa com eçou a
Hobbes e dos Spinozas. Ide, obras cé­ funcionar, viram-se obrigados a destruí-la e
lebres, das quais a ignorância e a rusti- jogar as peças num poço. Conta-se que, tendo
sido o califa Omar consultado sobre o que se
cidade de nossos pais não seriam capa­ deveria fazer da biblioteca de Alexandria, res­
zes; acompanhai, entre nossos pondeu nestes termos: “Se os livros dessa
descendentes, essas obras mais perigo­ biblioteca contêm coisas opostas ao Alcorão,
sas ainda, de que exala a corrupção são maus e é preciso queimá-los; se só contêm
a doutrina do A lcorão, queimai-os do mesmo
dos costumes de nosso século, e levai modo: são supérfluos” . Os nossos sábios citam
juntas aos séculos vindouros uma his­ esse raciocínio com o o cúmulo do absurdo.
tória fiel das vantagens de nossas ciên­ Suponde, no entanto, Gregório, o Grande, no
cias e de nossas artes. Se vos lerem, lugar de Omar e o Evangelho no lugar do
não deixareis dúvida alguma sobre a Alcorão; a biblioteca teria sido igualmente
queimada e esse seria talvez o mais belo traço
questão que discutimos hoje e, a menos da vida daquele ilustre pontífice. (N . do A.)
78 Os comentadores e os vulgarizadores de
7 6 Alusão a uma fórmula de Hobbes. (N . de segundo plano, que abundam no século XVIII.
P. A.-B.) (N . de P. A.-B.)
DISCURSO SOBRE AS CIÊNCIAS E AS ARTES 359

obras que indiscretamente forçaram a tivesse ocupado senão uma cátedra em


porta das ciências e introduziram em qualquer universidade e se mais não
seu santuário uma populaça indigna de tivesse obtido além de módica pensão
aproximar-se delas, enquanto seria de acadêmica, crer-se-ia, repito, que não
desejar-se que todos aqueles que não se ressentiriam suas obras de sua situa­
pudessem ir longe na carreira das le­ ção? Que os reis não desdenhem, pois,
tras fossem obstados desde o começo e de admitir em seus conselhos as pes­
se lançassem às artes úteis à socieda­ soas mais capazes de bem os aconse­
de? Alguém que durante toda a vida lhar; que renunciem a esse velho
será um mau versificador, um geôme- preconceito, inventado pelo orgulho
tra subalterno, ter-se-ia talvez tornado dos grandes, que diz ser a arte de con­
um grande fabricante de tecidos. Não duzir os povos mais difícil do que a de
carecem de professores aqueles a quem esclarecê-los, como se fosse mais fácil
a natureza destinou a fazer discípulos. levar os homens a agir com acerto por
Os Verulamios, os Descartes e os sua livre vontade do que obrigá-los a
Newtons, esses preceptores do gênero tanto pela força; que os sábios de pri­
humano, não tiveram preceptores, e meira ordem encontrem nas suas cor­
qual o guia que os teria conduzido até tes asilos dignos; que nelas obtenham a
onde os levou seu imenso gênio? única recompensa digna deles, que é a
Professores comuns só teriam podido de contribuir com a sua parte para a
constranger a sua compreensão, for­ felicidade dos povos a quem ensinarão
çando-os a estreitar a capacidade deles a sabedoria. Então, somente, ver-se-á o
próprios. Foi pelos primeiros obstá­ que podem a virtude, a ciência e a
culos que eles aprenderam a esforçar- autoridade animadas por uma emula­
se e que tentaram transpor o espaço ção nobre e trabalhando concordes em
imenso que percorreram. Se é preciso favor da felicidade do gênero humano.
permitir a alguns hom ens79 entrega­ Mas, enquanto o poder estiver sozinho
rem-se ao estudo das ciências e das de um lado e, de outro, sozinhas as
artes, isso só se fará com aqueles que luzes e a sabedoria, os sábios rara­
se sentirem com forças para andarem mente pensarão grandes coisas, os
sozinhos em suas sendas e ultrapassá- príncipes mais raramente farão belas
las; é a esse pequeno número que cabe coisas e os povos continuarão a ser
elevar monumentos à glória do espírito abjetos, corrompidos e infelizes.
humano. Mas, se se quiser que nada es­ Quanto a nós, homens vulgares, a
teja acima de seu gênio, impõe-se que quem o céu não concedeu talentos tão
nada esteja aquém de suas esperanças: grandes e que não fomos por ele desti­
nisso consiste o único encorajamento nados a tamanha glória, permane-
de que necessitam. A alma, insensivel­
mente, se ajusta aos seus objetos e são 80 O príncipe da eloqüência: Cícero. A idéia
as grandes ocasiões que fazem os gran­ segundo a qual os verdadeiros grandes espíri­
tos devem ser homenageados pelo Estado
des homens. O príncipe da eloqüên­ constituía uma reivindicação cara a todos os
cia80 foi cônsul de Roma, e o maior filósofos do século XVIII. Encontramo-la
talvez dos filósofos81, chanceler da principalmente nas C artas F ilosóficas de V ol­
Inglaterra. Crer-se-ia que se ele não taire (1734), que opõem o modo pelo qual
Newton foi tratado na Inglaterra ao modo pelo
qual eram tratados os literatos em França. (N .
de P. A.-B.)
79 Reserva de Rousseau em favor da elite. 81 O caso, agora, é o de Francis Bacon, que
Essa apologia da elite pode surpreender na chegou a Lorde Chanceler da Inglaterra. (N .
pena do teórico da igualdade. (N . de P. A.-B.) de L. G. M.)
360 ROUSSEAU

çamos na obscuridade. Não corramos mos contentarmo-nos com ela e, sem


atrás de uma reputação que nos esca­ invejar a glória desses homens célebres
paria e que, na situação atual das coi­ que se imortalizam na república das
sas, jamais nos devolveria o seu preço, letras, esforcemo-nos para estabelecer,
ainda que tivéssemos todos os títulos entre eles e nós, essa gloriosa distinção
para obtê-la. De que serve procurar que outrora se conhecia entre dois
nossa felicidade na opinião de outrem, grandes povos: um sabia dizer bem e o
se podemos encontrá-la em nós mes­ outro obrar bem83.
mos? Deixemos a outros o cuidado de
instruir os povos sobre os seus deveres 83 Como indicamos em sucessivas notas, ape­
sar da falta de ordem e continuidade, confes­
e limitemo-nos a bem cumprir os nos­ sada expressamente pelo próprio Rousseau, a
sos; não temos necessidade de saber linha mestra deste discurso não se perde e,
mais. repetida a cada passo, vai-se depurando das
O h ! virtude, ciência sublime das concessões iniciais e das hesitações aparentes,
para surgir, simples e explícita, ao cabo da
almas simples, serão necessários, exposição. N o século de fastígio do raciona-
então, tanta pena e tanto aparato para lismo iluminista, quando os filósofos busca­
conhecer-te? Teus princípios não estão vam demonstrar com o, pela razão, os homens
gravados em todos os corações? E não podiam e deviam corrigir seus desvios da
ordem natural universal a fim de seguramente
bastará, para aprender tuas leis, vol­ alcançarem a felicidade pessoal e, principal­
tar-se sobre si mesmo e ouvir a voz da mente, a coletiva, Rousseau faz da sã cons­
consciência no silêncio das paixões?82 ciência um guia mais seguro do que a razão, e
Aí está a verdadeira filosofia; saiba- da moral, a verdadeira ordem natural. Sem dú­
vida, dera-se a ruptura com o sistema até então
unanimemente aceito e prenunciava-se novo
82 Rousseau permanecerá fiel a essa idéia, e a teor de pensamento, que o próprio Rousseau se
retomará e a desenvolverá na Profissão de Fé incumbiu de praticar, até as últimas conse­
do Vigário Saboiano e no Emílio. (N . de P. qüências, em obras posteriores. (N . de L. G.
A.-B.) M.)
RESPOSTAS DADAS
POR
JEAN-JACQUES ROUSSEAU
ÀS OBJECÕES DIRIGIDAS A
SEU DISCURSO
In t r o d u ç ã o
de Paul Arbousse-Bastide

Histórico

O Discurso sobre o Restabelecimento das Ciências e das Artes despertou uma


certa comoção no mundo literário. Ecos imediatos dessa agitação surgiram em
artigos do Mercure de France e, pouco a pouco, transformou-se ela numa verda­
deira campanha de panfletos dirigidos contra Rousseau. Em face dessa campa­
nha, cuja maldade sua desconfiança natural logo exagerou, o autor do discurso
traçou-se uma linha de conduta precisa — só responder àquelas objeções que
denotassem uma autêntica preocupação de procurar a verdade e replicar com o
silêncio àquelas inspiradas pelo ciúme ou pela prevenção. Rousseau, porém, nem
sempre observou essa linha e chegou até a dedicar uma resposta inteira para
explicar que determinada objeção não merecia resposta, ou para suscitar novas
objeções de um mesmo refutador.
Segue-se a cronologia dessa disputa.
O Padre Raynal, redator do Mercure de France, passa a Rousseau as obser­
vações, recebidas dos leitores, relativas ao primeiro discurso. Rousseau responde
ao Padre Raynal. Sua carta é publicada no segundo volume do Mercure, de
junho de 1751. O Mercure de outubro publica, então, uma refutação, na boa e
devida forma, escrita por um certo Gautier, professor de matemática e de histó­
ria, e membro da Academia de Letras de Nancy; Grimm envia um exemplar a
Rousseau, que lhe responde em 1.° de novembro de 1751. O caso já adquirira
importância — a Gazette de Utrecht elogiava Gautier, e o rei da Polônia, que na
verdade era tão-só Duque de Lorena, recentefundador da Academia de Letras de
Nancy, tomava anonimamente a pena e consagrava uma obra inteira à refutação.
Rousseau, muito honrado com essa réplica real, cuja autoria lobrigara, res­
pondeu longamente. Soube depois, ao vê-la impressa em 1752, que Bordes
pronunciara, em 22 de junho de 1751, perante a Academia de Lião, um Discurso
sobre as Vantagens das Ciências e das Artes, em que tomava o ponto de vista
oposto à sua tese. Resolvido a não prolongar mais a discussão, Rousseau respon­
deu a Bordes mais longamente e em tom mais decidido do que ao rei da Polônia,
intitulando sua exposição de Última R e s p o sta . Na verdade, Bordes, em 1753,
decidiu publicar um Segundo Discurso. Rousseau silenciou. Não pôde, porém,
conter-se quando viu uma nova edição de seu discurso incluir uma Refutação
desse Discurso por um Acadêmico de Dijon que lhe recusou o Sufrágio. Rous­
seau protestou por meio de uma carta seca e breve, dirigida talvez ao editor. A
Academia de Dijon, porém, já publicara uma desaprovação à Refutação, o que
ofereceu ocasião a seu verdadeiro autor, Le Cat, cirurgião e acadêmico de Ruão,
364 INTRODUÇÃO

para vir a público respondendo por Observações. Por outro lado, nesse mesmo
ano de 1753, Rousseau, ao publicar a comédia Narciso, escrita em 1733, mas
representada pela primeira vez em 18 de dezembro de 1752, acrescentou-lhe um
Prefácio, no qual, pela segunda vez, passava em revista todas as objeções de seus
adversários.

As personagens:

Padre Raynal (1713-1796): eclesiástico expulso da Igreja por simonia e que


encontrara na carreira das letras uma satisfação para sua ambição e seus gostos
mundanos. Autor de obras históricas e de repositórios de anedotas, amigo dos
“filósofos”, conseguira assumir a redação do Mercure de France. Sua celebri­
dade alcançou mais tarde o apogeu, quando publicou, em 1770, a História Filo­
sófica e Política dos Estabelecimentos e do Comércio Europeus nas índias, obra
aliás condenada e queimada, o que obrigou o autor, durante algum tempo, a refu­
giar-se no estrangeiro.
Frédéric Melchior Grimm (1723-1807): filho de um pastor luterano de
Ratisbona. Estudou em Leipzig e muito cedo dedicou-se à crítica literária. Sua
viagem a Paris, em 1748, decidiu-lhe a carreira. De um lado, começou a desem­
penhar funções diplomáticas, que durante toda a sua vida se ampliaram; por
outro, travou conhecimento com Rousseau, cujo gosto pela música partilhava e,
por meio deste, tomou-se familiar de todos os “filósofos Estreou no Mercure de
France e tornou-se célebre tomando partido, juntamente com Jean-Jacques, con­
tra a ópera francesa, na disputa que então opunha esta à música italiana. Em
1754, conseguiu obter a “correspondência literária” secreta que o Padre Raynal
mantinha com algumas cortes alemãs e, desse modo, contribuiu para a difusão
da literatura alemã na Europa. Tempos depois, em 1758, rompeu com Rousseau
por causa da Sra. dUpinay e, no Livro VIII das Confissões, Rousseau o acusa­
ria, com certo exagero, de ter retribuído com a ingratidão os serviços que lhe
prestara em 1748.
O rei da Polônia e Duque de Lorena: Estanislau I Leszczinsk (1682-1766).
Filho de um alto funcionário lituano e amigo da França, fora eleito rei da Polô­
nia na dieta de julho de 1704, graças a Carlos XII, da Suécia, seu protetor, sendo
coroado no ano seguinte. A hostilidade do czar obrigou-o, porém, a abandonar o
trono em 1712 e, depois de numerosas peripécias, em 1720 refugiou-se na Fran­
ça, em Wissembourg, e casou sua filha Maria Leszczinski com Luís X V . Em
1733, voltou à Polônia e fo i reeleito rei, mas logo os russos baniram-no. Final­
mente, quando do Tratado de Viena, de 18 de novembro de 1738, exigiram-lhe a
abdicação, mas, graças ao apoio da França, conservou o título de rei da Polônia
e obteve a posse dos ducados de Lorena e de Bar que, por ocasião de sua morte,
se reuniram à coroa de França. Instalou sua corte em Nancy e empreendeu gran­
des embelezamentos na cidade; atraiu os sábios, os literatos e os artistas, fundou
uma biblioteca, instituiu prêmios e instalou uma sociedade real de ciências e
letras. Interessou-se pela filosofia , sobretudo na medida em que interessava à
política. Manteve boas relações com Rousseau, que mais tarde escreveu para ele
as Considerações sobre o Governo da Polônia.
INTRODUÇÃO 365

Charles Borde (1711-1781), enão Bordes, como Rousseau-escrevia:literato


e acadêmico lionês, grande amigo de filósofos. Rousseau fa z seu elogio nas
Confissões, II, 7: “Revi o Sr. Bordes (em Lião, 1751), com quem há muito tempo
travara conhecimento e que me cativara com sua generosidade. Nessa ocasião,
era o mesmo de sempre A polêmica que manteve com Rousseau turvou-lhes as
relações. Borde não se contentou em refutar por duas vezes o primeiro discurso;
publicou inúmeras cartas em que punha em ridículo, de modo extremamente
jocoso, os paradoxos da conduta de Rousseau, que acreditou, então, estar sendo
perseguido por Borde. A s três principais sátiras de Borde contra Rousseau
foram, em 1761, o Prognóstico Extraído de um Velho Manuscrito e, em 1763, a
Profissão de Fé Filosófica e a C arta a J. J. Pansophe.
Claude Nicolas Le Cat (1700-1760): célebre cirurgião francês, médico-
chefe da Santa Casa de Ruão; cognominaram-no Pleisfonicus, devido a numero­
sos prêmios que regularmente lhe eram conferidos nos concursos das academias
científicas. Fundou uma academia em Ruão e f o i seu secretário na seção de ciên­
cias. Sua única obra propriamente literária é a refutação ao Discurso de
Rousseau.

Análise dos principais textos

A C arta ao Padre Raynal e a C arta a Grimm nada contêm de importante


quanto ao fundamental das idéias — restringem-se à polêmica verbal. obje-
ções levantadas, Rousseau dá respostas breves, irônicas ou nervosas; a todas as
grandes palavras que se lhe opõem, contenta-se em opor duas — virtude e verda­
de. Quando muito dá útil precisão a seu método. Opõe a sua lógica, que é uma
lógica de observação e de experiência, isto é, uma reconstrução, a menos hipoté­
tica possível, feita a partir dos fatos, à lógica de seus adversários, que é uma lógi­
ca do raciocínio puro, inconscientemente animada pela preocupação das conve­
niências e tomando os efeitos pelas causas.

A Carta ao Rei da Polônia precisa dois pontos fundamentais do Discurso e


tenta eliminar-lhe as contradições aparentes.

PRIMEIRO PONTO — O ELOGIO D A S CIÊNCIAS

A Objeção do rei baseia-se na afirmação de que Rousseau se contradiz


fazendo, no início do Discurso, o elogio das ciências e, depois, tornando-as
responsáveis pela corrupção universal.
Rousseau responde por uma argumentação geral, uma desculpa pessoal e
pelo exame de certas dificuldades de pormenor.

A. Argumentação Geral
a) “A ciência é boa em si. ” A prova pode ser encontrada no fato de que,
366 INTRODUÇÃO

sendo Deus fonte de verdades e onisciente, temos o dever de adquirir


conhecimentos.
b) A ciência é, porém, fonte de vícios monstruosos para o homem e, sobre­
tudo, para a sociedade.
c) Ela não ê, pois, feita para o homem que possui o espíritodemasiado
estreito para nela obter grandes progressos e o coração muito carregado de pai­
xões para deixar de dar-lhe mau emprego.

B. Desculpa Pessoal
a) A cultura das ciências corrompe os costumes de uma nação; porém, num
verdadeiro sábio, a virtude não é de modo algum incompatível com a ciência.
b) Rousseau não se contradiz ao exaltar a virtude e praticar a ciência,
posto que não é nem virtuoso nem sábio; ama, porém a virtude, ainda não sendo
virtuoso, e esforçou-se por tomar-se um sábio, sem tê-lo conseguido.
c) Aliás, o exemplo e a autoridade dos Padres da Igreja o justificam, uma
vez que acreditaram combater os filósofos pagãos com suas próprias armas, isto
é, com as ciências mundanas, embora desprezando-as.

C. Estudo das Dificuldades de Pormenor


a) Em vários pontos, as artes e as ciências são-nos muito cômodas: isso
não impede que nos tomem infelizes.
b) O conhecimento científico do universo não é necessário para adorar-se a
obra de Deus. Em lugar algum está prescrito que, para serfilósofo ou sábio, tem-
se de ser bom crente. Pelo contrário, o estudo desenvolve a vaidade humana
muito mais do que o amor a Deus; o filósofo é sempre levado a julgar a obra de
Deus, o camponês ignorante rende-lhe muito mais graças.
c) A curiosidade é natural no homem, mas é uma paixão, e má, como todas
as paixões.
d) A moral deve fundamentar-se na voz inata da consciência e não na expe­
riência e no conhecimento do mal.
e) Não existem leis necessárias que presidem a evolução das sociedades.
0 O estudo da religião não sucumbe necessariamente sob o golpe da conde­
nação de Jean-Jacques Rousseau. A fim de precisar seu pensamonto neste ponto,
o escritor esboça rápido histórico das relações entre a religião e a ciência. O
judaísmo e, depois, o cristianismo nos seus primórdios careciam de qualquer
ciência; f o i para se defenderem dos ataques e das zombarias dos filósofos pagãos
que os cristãos se puseram a estudar; a rivalidade no estudo começou, então, a
corromper os costumes cristãos; desde aí, o cristianismo oscila entre dois exces­
sos — o obscurantismo e o racionalismo. “Outrora possuíamos santos e não
casuístas ”; agora “todos nos tomamos doutores e cessamos de ser cristãos. ”

SEGUNDO PONTO — OS ABUSOS DA CIÊNCIA

O rei da Polônia objetou que o luxo não nasceu das ciências, mas das
riquezas.
INTRODUÇÃO 367

a) Rousseau responde, inicialmente, por uma genealogia do mal. A desigul-


dade é o seu primeiro estado; ela arrasta à riqueza, que produz o luxo e a ociosi­
dade; o luxo engendra as artes, e a ociosidade, as ciências.
b) O sábio não é virtuoso por passar sua vida na pobreza, na mediocridade,
no retiro, no trabalho; “tudo depende do intimo ”. Com efeito, “o luxo tudo cor­
rompe: tanto o rico que o frui quanto o miserável que o cobiça ”.
c) A hipocrisia é um ultraje e não uma homenagem à virtude; seria melhor
que o vício se mostrasse abertamente, pois assim a sociedade tornar-se-ia mais
segura.

d) Do mesmo modo, a polidez é um mau defeito da cultura; sem serem eles


próprios forçosamente polidos, os sábios alimentam no país uma atmosfera de
polidez.
e) A ignorância não é uma virtude em si mesma: o homem virtuoso é igno­
rante, mas não basta ser ignorante para ser virtuoso; existem duas ignorâncias
— uma feroz e brutal; outra, racional, que “consiste em limitar sua curiosidade
à extensão das faculdades que se receberam

CONCLUSÃO
A s ciências e a filosofia causam mais mal do que bem; seria, porém, inútil
suprimi-las — os homens tomar-se-iam pobres e ignorantes, mas continuariam
igualmente corruptos: seria a barbárie. Pelo contrário, impõe-se uma legislação
apropriada à cultura.

“A Carta a Bordes” consegue esclarecer uma idéia que aparecera na Carta


ao Rei da Polônia: a ciência não é realmente má para o indivíduo enquanto
implicado em relações sociais. Essa distinção desempenhará um papel importan­
tíssimo no pensamento de Rousseau. Desde então, apresentar-se-ão duas solu­
ções igualmente possíveis ao problema moral: uma se fundamenta na regenera­
ção do indivíduo pela volta à natureza sadia e pela eliminação da má influência;
a outra, considerando a impossibilidade de tal retrocesso, visa a uma reforma da
sociedade, de modo a restaurar a moralidade no indivíduo. O segundo interesse
da Carta a Bordes reside em estabelecer uma transição entre o primeiro discurso
e o segundo; ela desenvolve o tema da desigualdade que a carta a Estanislau assi­
nalara de passagem e que, mais tarde, desempenhará grande papel; daí sai toda
uma série de oposições, que serão as oposições rousseaunianas típicas.

A) Rousseau apresenta o sumário das idéias teóricas expostas por ele.


a) “A s ciências são a obra-prima do gênio e da razão ”, mas elas só convêm
a deuses ou a grandes homens. Saber significa, para o indivíduo, orgulho; para a
sociedade, corrupção dos costumes. Essa corrupção esconde-se sob a hipocrisia
da polidez, conduz ao luxo, fa z com que o agradável seja preferido ao útil.
b) Essa idéia teórica é confirmada pela observação. Rousseau esboça uma
história rápida da humanidade e traça dois quadros antitéticos: o quadro dos
antigos povos ignorantes e virtuosos, isto é, fundamentalmente inocentes; o qua­
dro dos povos sábios, corrompidos pela ciência.

B) O autor expõe a objeção de seus adversários: existe uma maldade natural


368 INTRODUÇÃO

do instinto contra a qual se desenvolve o processo moral, que é um progresso do


espírito e começou na Grécia antiga. Por outro lado, “o progresso e a decadência
das letras estão sempre em proporção com a fortuna e o aviltamento dos
impérios ”.

C) Rousseau responde a essa objeção a princípio de modo irônico, mos­


trando que oferece argumentos em favor de sua tese, depois de modo sério, discu­
tindo o âmago da questão.
a) O homem não é naturalmente mau.
b) Rousseau desenvolve longamente os exemplos da Grécia e de Roma anti­
gas, de Sócrates, Catão e Bruto; elogia Esparta em detrimento de Atenas, a repú­
blica romana em desfavor do império, as pequenas repúblicas em prejuízo dos
grandes Estados, os selvagens como superiores aos civilizados.
c) Conclui dissociando a ciência da virtude: a ciência caminha com o luxo;
a virtude, com a razão e a consciência. Todavia, não se trata de, em conse­
qüência, mudar a sociedade atual; Rousseau, até agora, descreveu o mal e procu­
rou-lhe as causas, mas ainda não refletiu sobre os remédios.

O Prefácio de Narciso retoma, num tom mais regular, de modo mais conciso
e classificando-as, as várias objeções que se dirigiram a Rousseau. Ele nada apre­
senta de novo, mas constitui um repertório prático e um resumo de toda a dou­
trina de Rousseau sobre as ciências e as artes. A exposição é agora mais sóbria
e mais precisa do que no primeiro discurso. O autor afirma nas Confissões que
esse prefácio é uma de suas boas obras.

A. A s Objeções
Rousseau condensa em dois pontos as objeções que lhefizeram:
1 ) “eles pretendem que não acredito uma palavra das verdades que
sustentei”;
2 ) “ . . . que minha conduta está em contradição com meus princípios ”.
De início, responde por uma breve desculpa pessoal: se sua conduta está em
contradição com sua doutrina, é porque se conduziu mal, como acontece a qual­
quer homem. “A razão nos mostra o objetivo, e as paixões nos afastam dele. ”
Além disso, fo i obedecendo a um preconceito de seu tempo que passou a juven­
tude estudando. Depois eleva o debate para um plano impessoal e sucessivamente
examina as verdades que estabeleceu e as conclusões que delas decorrem.

B. As Verdades Estabelecidas
Pode-se cultivar as letras e ao mesmo tempo desprezá-las e, desse modo,
Rousseau justifica a publicação da comédia Narciso. Com efeito, a ciência é boa
em si para o indivíduo em qualquer condição, mas num povo o gosto pelas letras
anuncia o começo da corrupção; tal predileção nasce do desejo de distinguir-se,
recompensa o que não depende de nós, isto é, os talentos, em detrimento das vir­
tudes, que dependem de nós; essa mesma predileção enfraquece o corpo e a alma,
relaxa os liames familiais e sociais, baseados na estima e na boa vontade mútuas,
e em seu lugar coloca laços de dependência fundamentados no interesse pessoal:
“os vícios pertencem menos ao homem do que ao homem governado ”; o selva­
gem é superior, em virtude, ao europeu.
INTRODUÇÃO 369

C. A s Conseqüências
a) O homem, com exceção de gênios sublimes, como Sócrates, não é feito
para as ciências.
b) Um povo que possui bons costumes deve defender-se cuidadosamente
das ciências.
c) Quando um povo se corrompe, nunca mais pode voltar à virtude: deve,
então, conservar todo o aparelho da cultura, pois “as mesmas causas que corrom­
peram servem para prevenir uma corrupção maior: as ciências fazem os vícios
eclodirem, mas os impedem de transformarem-se em crime ”.

Importância do conjunto das respostas de Rousseau

O Discurso sobre as Ciências e as Artes era, em essência, uma declaração


freqüentemente excessiva e mal argumentada. Seus comentadores não encontram
grande dificuldade em mostrar a fragilidade.de sua argumentação, a ingenuidade
de sua intransigência. O autor levara suas conclusões ao absurdo. A s respostas a
seus comentadores, no final de contas, só servem para renegar as conclusões.
Jean-Jacques reconhece que os males cuja gênese descreveu são incuráveis e se
acompanham de vantagens que os temperam. Não mais condena a civilização,
resigna-se a ela. Logo irá pensar em reorganizá-la, partindo não do que deveria
ser, mas do que ela é.
C a r t a A o Sr . P a d r e R a y n a l
Diretor do Mercure de France 1

Devo, senhor, agradecer àqueles que resto, como nesse ponto estamos no
vos transmitiram as observações que fundo da questão, confesso que foi bas­
tendes a bondade de comunicar-me e tante inábil de minha parte ter deixado
esforça-me-ei para delas tirar o melhor apenas parecer que tomava um parti­
proveito. Confesso, não obstante, que do.
considero os meus censores um pouco Acrescenta que o autor prefere a
severos quanto à minha lógica2 e supo­ rusticidade à polidez.
nho que se mostrariam menos escrupu­ É verdade que o autor prefere a
losos se tivesse a opinião deles. Pare­ rusticidade à polidez orgulhosa e falsa
ce-me, pelo menos, que, se tivessem um de nosso século, e diz por quê. É que
pouco dessa exatidão rigorosa que exi­ ele liquida de vez com todos os sábios
gem de mim, absolutamente não neces­ e artistas. Seja, posto que assim se quer
sitaria dos esclarecimentos que vou — consinto em suprimir todas as
pedir-lhes. distinções que nesse sentido levantei.
Parece que o autor, dizem eles, p re­ Ele deveria ainda, continuam, assi­
fere a situação em que estava a Europa nalar seu ponto de partida para desig­
antes do renascimento das ciências; es­ nar a época da decadência. Fiz mais
tado pior do que a ignorância, devido do que isso; tornei minha proposição
ao falso saber ou à algaravia 3 que geral. Assinalei esse primeiro passo da
então dominava. decadência dos costumes justamente
Parece querer o autor dessa observa­ no primeiro momento da cultura das
ção fazer-me dizer que o falso saber ou letras em todos os países do mundo e
0 jargão escolástico seja preferível à verifiquei como é sempre proporcional
ciência e, contudo, fui eu mesmo quem o progresso desses dois fatos. E, vol­
disse ser pior do que a ignorância. Mas tando a essa prim eira época, comparar
que entende ele pela palavra situação? os costumes desse tempo com os nos­
Aplica-a às luzes ou aos costumes, ou sos. É o que faria mais longamente
confunde essas coisas que tive tanto num volume in-4.°. Sem isso não vería­
trabalho para distinguir? Quanto ao mos até onde se deveria voltar, a
menos que não seja ao tempo dos
1 Extraído do número de junho de 1751, de apóstolos. Não vejo o inconveniente
M ercure, vol. II. (N . de P. A.-B.) que haveria nisso, se o fato fosse
2 Segundo Rousseau, as primeiras objeções verdadeiro. Peço, porém, justiça ao
que lhe são feitas atingem, não o cerne de suas censor: quereria ele que dissesse ser a
idéias, mas o rigor de seus raciocínios; só enta­
bula, pois, discussão sobre o método e a forma
época da mais profunda ignorância a
de sua argumentação. (N . de P. A.-B.) dos apóstolos?
3 A lusão à Idade Média. (N . de P. A.-B.) Dizem mais, em relação ao luxo,
372 ROUSSEAU

que se sabe dever ser ele, em boa políti­ um homem está morto, não se deve
ca, interditado aos pequenos Estados, chamar o médico.
mas ser totalmente diferente o caso de Nunca se faria ressaltar bastante
um reino como o de França, sendo verdades que chocam tão frontalmente
conhecidas as razões. o gosto geral e impÕe-se afastar qual­
Não terei, também aqui, motivos quer possibilidade de chicana. Não sou
para me lamentar? Tais razões são dessa opinião e acho ser preciso deixar
aquelas que me esforcei para respon­ os brinquedos às crianças.
der. Bem ou mal, respondi. Ora, em Há muitos leitores que gostariam
absoluto, não se poderia dar a um mais delas num estilo mais simples do
autor maior sinal de desprezo do que que sob essa veste de cerimônia exigi­
lhe respondendo com os mesmos argu­ da pelos discursos acadêmicos. Tenho
mentos que refutou. Mas será neces­ exatamente o gosto desses leitores. Eis
sário indicar-lhes a dificuldade que um ponto em que posso concordar
deverão resolver? É a seguinte: que com o sentimento de meus censores,
como o faço desde já.
acontecerá à virtude quando for preci­ Ignoro qual seja o adversário com o
so enriquecer-se a qualquer preço? E qual me ameaçam no pós-escrito; seja
isso que lhes perguntei e que lhes per­ quem for, não poderia resolver-me a
gunto ainda. responder uma obra antes de tê-la lido,
Quanto às duas observações seguin­ nem a me considerar vencido antes de
tes, a primeira das quais começa por ter sido atacado.
estas palavras — Por fim , eis o que eu Quanto ao mais, quer responda aos
objeto , etc., e a outra por estas — M as críticos que me são anunciados, quer
o que impressiona mais de perto, etc. me contente com publicar a obra
— , suplico ao leitor que me poupe o aumentada que me pedem, advirto os
meus censores de que, possivelmente,
trabalho de transcrevê-las. A Acade­ nela não encontrarão as modificações
mia me perguntara se o restabeleci­ que esperam. Prevejo que, quando for
mento das ciências e das artes contri­ o momento de defender-me, confor­
buíra para aprimorar os costumes. mar-me-ei, sem escrúpulos, com todas
Essa a questão que tinha para resolver; as conseqüências de meus princípios4.
no entanto, imputam-me o crime de Sei, de antemão, quais as palavras
não ter resolvido outra. Certamente grandiosas com que serei atacado:
essa crítica é pelo menos bastante sin­ luzes, conhecimentos, leis, moral,
gular. Não obstante, tenho quase de razão, decoro, consideração, doçura,
pedir perdão ao leitor por tê-la previs­ polidez, educação, etc. A tudo isso só
to, pois é o que poderá crer lendo as responderei com duas outras palavras
cinco ou seis últimas páginas de meu que soam ainda mais fortes ao meu
d\scuTso. ouvido: Virtude! Verdade / Gritarei
Ademais, se meus censores se obsti­ sem cessar: Verdade! Virtude! Se
nam ainda em querer conclusões práti­ alguém nelas só perceber palavras,
cas, prometo-as, bem claramente enun­ nada mais tenho a dizer-lhe.
ciadas, na minha primeira resposta.
Sobre a inutilidade das leis suntuá- 4 Conforme o prefácio do N arciso, no qual
rias para extirpar o luxo depois de ins­ Rousseau distinguirá as verdades que estabe­
leceu no D iscurso, das conseqüências que
talado, diz-se que o autor não ignora o delas decorrem, mas a cuja consciência só che­
que há para ser dito a esse respeito. gou depois da discussão que se seguiu. (N. de
Realmente, não ignoro que, quando P. A.-B.)
C a r t a D e J.-J. R o u s s e a u
A o S r . G rimm

sobre a refutação de seu Discurso pelo Sr. Gautier,


professor de matemática e de história, e membro da Academia
Real de Belas-Letras de Nancy.

Devolvo, senhor, o Mercure de outu­ de bem, é bom começar por ser hipó­
bro que teve a bondade de emprestar- crita, e que a falsidade é um caminho
me. Li, com muito prazer, a refutação certo para chegar à virtude. Diz, ainda,
que o Sr. Gautier teve o trabalho de que os vícios enfeitados com a polidez
fazer a meu Discurso. Não me creio, não são contagiosos como o seriam
porém, como o senhor pretende, na apresentando-se de frente, com rustici-
obrigação de respondê-la, e aqui estão dade; que a arte de penetrar os homens
minhas objeções: fez progresso idêntico à de disfarçar-
1.° Não posso convencer-me de se; que nos convencemos de não se
que, para ter-se razão, se deva obriga­ dever contar com os homens, a menos
toriamente falar por último. que lhes agrademos ou que lhes seja­
2.° Quanto mais releio a refutação, mos úteis; que se sabe avaliar as ofer­
mais me convenço de que não tenho tas sedutoras da polidez, o que, sem
necessidade de dar ao Sr. Gautier dúvida, quer dizer que, quando dois
outra resposta além do próprio dis­ homens se cumprimentam, do fundo
curso a que respondeu. Leia, peço-lhe, do coração um diz ao outro “eu vos
num e noutro trabalho, os artigos refe­ trato como um idiota e rio-me de vós” ,
rentes ao luxo, à guerra, às academias, e o outro responde-lhe do fundo do seu
à educação; leia a prosopopéia de coração “ sei que mentis despudorada­
Luís, o Grande, e a de Fabrício; leia, mente, mas vos retribuo com a maior
por fim, a conclusão do Sr. Gautier e a boa vontade” . Se eu tivesse querido
minha, e compreenderá o que quero empregar a mais amarga ironia, teria
dizer. podido dizer quase a mesma coisa.
3.° Penso, em tudo, tão diferente­ 4.° Em cada página da refutação,
mente do Sr. Gautier que, se tivesse de vê-se que o autor não entende absolu­
reforçar todos os pontos em que não tamente, ou não quer entender, a obra
estamos de acordo, seria obrigado a que refuta, o que certamente lhe é mais
combatê-lo mesmo naqueles pontos cômodo, porque, respondendo sempre
que trataria como ele, e isso me daria ao seu pensamento e nunca ao meu,
uma feição obstinada que bem gostaria tem a melhor das ocasiões para dizer
de poder evitar. Por exemplo, falando quanto lhe apraz. Por outro lado, se
da polidez, ele dá a entender, muito minha réplica se torna com isso mais
claramente, que, para tornar-se homem difícil, torna-se também menos neces­
374 ROUSSEAU

sária, pois jamais se ouviu dizer que 5.° Se quisesse responder à primeira
um pintor que expõe um quadro ao pú­ parte da refutação, seria um nunca
blico seja obrigado a examinar os acabar. O Sr. Gautier julga oportuno
olhos dos espectadores e fornecer ócu­ indicar os autores que devo citar e
los a quantos deles necessitem. aqueles que devo rejeitar. Sua escolha
Além disso, não estou muito seguro é inteiramente natural: recusa a autori­
de que me faria entender, mesmo repli­ dade daqueles que depõem em meu
cando. Sei, por exemplo — diria ao Sr. favor e quer que eu recorra aos que ele
Gautier — , que nossos soldados não crê contrários a mim. Em vão procura­
são Réaumurs e Fontenelles1 e isso é ria fazê-lo compreender que é decisiva
péssimo para eles, para nós e, sobretu­ uma única testemunha em meu favor,
do, para os inimigos. Sei que nada enquanto cem depoimentos nada pro­
sabem, que são brutais e grosseiros e, vam contra meu sentimento, porque os
contudo, disse e repito que eles são testemunhos são partes no processo;
entorpecidos pelas ciências que despre­ em vão lhe pediria para distinguir entre
zam e pelas belas-artes que ignoram. os exemplos que alega; em vão lhe
Um dos grandes inconvenientes da cul­ exporia que são duas coisas totalmente
tura das letras consiste em que, ilumi­ diferentes ser bárbaro e ser criminoso2
nando apenas alguns homens, corrom­ e que os povos verdadeiramente cor­
pem, em pura perda, toda uma nação. rompidos são menos os que têm leis
Ora, como bem pode ver, senhor, isso más do que aqueles que desprezam as
seria somente outro paradoxo enexpli- leis. É fácil prever a réplica. Como dar
cável para o Sr. Gautier, para esse Sr. fé a escritores escandalosos, que
Gautier que me pergunta orgulhosa­ ousam enaltecer bárbaros que não
mente o que as tropas possuem de sabem nem ler nem escrever? Como
comum com as academias, se os solda­ sequer supor-se pudor em gente que
dos mostrariam mais bravura estando anda completamente nua, e virtude
mal vestidos e mal nutridos; o que naqueles que comem carne crua?
quero dizer ao adiantar que, à força de Então será preciso discutir. Eis Heró-
enaltecer os talentos, se negligenciam doto, Estrabão, Pompônio Mela às tur­
as virtudes; e ainda levanta outras ras com Xenofonte, Justino, Quinto
questões semelhantes, todas demons­ Cúrcio, Tácito3; eis-nos nas buscas em
trando a impossibilidade de respondê- críticos, nas antiguidades, na erudição.
las inteligentemente dentro do critério As brochuras transformam-se em volu­
de quem as enunciou. Creio que mes, os livros se multiplicam e a ques­
concordará não valer a pena explicar- tão é esquecida. É o destino das dispu­
me uma segunda vez para não ser me­ tas de literatura, que, depois de in-
lhor entendido do que na primeira. fólios de esclarecimentos, terminam

1 Oposição entre a falsa ignorância, represen­ 2 Liga-se à distinção entre as duas ignorân-
tada pelos soldados, e a ciência, representada cias exposta no fim da C arta ao R ei da P olô­
por Réaumur e Fontenelle; somente a verda­ nia: a falsa ignorância é brutal, é a do bárbaro;
deira ignorância é virtuosa. Réaumur a ciência corrompe os costumes, ela faz crimi­
(1683-1757), médico e naturalista francês, nosos; a verdadeira ignorância, pelo contrário,
inventor do termômetro que traz seu nome. juntamente com a virtude, é própria do bom
Fontenelle (1657-1757), escritor francês, sobri­ selvagem. A barbárie e o crime são, pois, os
nho de Corneille, autor de numerosos opúscu­ dois modos de não ser virtuoso. (N . de P.
los de vulgarização científica. Am bos eram A .- B .)
bastante célebres no momento em que R ous­ 3 Enumeração dos principais historiadores
seau escrevia. (N . de P. A.-B.) gregos e latinos. (N . de P. A.-B.)
DISCURSO SOBRE AS CIÊNCIAS E AS ARTES 375

sempre por não mais saber onde se clui, daí, que não se encontra base para
está. Não vale a pena recomeçar. glorificar as ciências. Mas a que nos
Se eu quisesse replicar à segunda permitiria ele glorificar? Desde que os
parte, isso logo se faria, mas nada ensi­ homens vivem em sociedade, houve
naria a ninguém. O Sr. Gautier se con­ povos polidos e outros não. O Sr. Gau
tenta, ao refutar-me nesse ponto, em tier esqueceu-se de dar-nos o motivo
dizer sim em todos os lugares em que desta diferença.
digo não, e não em todos aqueles em O Sr. Gautier admira sempre a pure­
que digo sim; não preciso, pois, mais za de nossos costumes atuais. Essa sua
que dizer novamente não sempre que boa opinião certamente muito honra
disse não, sim em todos os lugares em aos seus costumes, mas não demonstra
que disse sim, e suprimir as provas: uma grande experiência. Dir-se-ia,
com isso responderia com toda a exati­ dado o tom em que fala, que estudou
dão. Seguindo o método do Sr. Gau­ os homens como os peripatéticos5
tier, não posso, pois, responder às duas estudavam a física, sem sair de seu
partes da refutação sem dizer demais e gabinete. Quanto a mim, fechei meus
de menos; ora, eu muito desejaria não livros e, depois de ter ouvido falar os
fazer nem uma coisa nem outra. homens, observei-os a ag ir6. Não re­
6.° Eu poderia seguir um outro mé­ presenta maravilha que, tendo seguido
todo e examinar separadamente os métodos tão diversos, concordemos
raciocínios do Sr. Gautier e o estilo da tão pouco em nosso juízos. Reconheço
refutação. que não se poderia empregar lingua­
Se examinasse os raciocínios, ser- gem mais honesta do que a de nosso
me-ia fácil mostrar que todos levam ao século, e é isso que impressiona o Sr.
erro, que o autor não compreendeu a Gautier. Mas vejo também que não se
natureza da questão e que de modo poderia ter costumes mais corrompi­
algum me entendeu. dos, e aí está o que me escandaliza.
Por exemplo, o Sr. Gautier tem o Será que pensamos termo-nos tornado
trabalho de me ensinar que há povos pessoas de bem porque, à força de dar
corruptos que não são cultos. Eu, de
minha parte, já duvidara que os calmu- 5 Os peripatéticos eram os colaboradores e
sucessores de Aristóteles na sua escola do
ques, os beduínos e os cafres4 não Liceu. Deve-se tomar a expressão física em seu
eram prodígios nem de virtude, nem de sentido etim ológico de “teoria da natureza” ;
erudição. Se o Sr. Gautier tivesse posto ela dava, então, oportunidade mais a especula­
o mesmo cuidado em apontar-me ções metafísicas do que a pesquisas científicas.
(N. de P. A.-B.)
algum povo culto que não fosse cor­
6 Importante informação sobre o método de
rupto, ter-me-ia surpreendido mais. Rousseau: ele é empírico e não apriorístico.
Faz-me sempre raciocinar como se eu [Pode-se acrescentar que a própria natureza da
tivesse dito ser a ciência a única fonte com provação histórica, de que tão abundante­
de corrupção entre os homens; se ele, mente se serviu Rousseau, encaminhou-o for­
çosamente à observação direta dos fatos vivos,
de boa fé, acreditou nisso, admiro a a fim de evitar o caminho seguido pelos teóri­
bondade que teve em responder-me. cos dogm áticos que, partindo de princípios ge­
Diz ele que o convívio com o mundo rais aceitos a priori, bastavam-se com exem ­
basta para adquirir-se aquela polidez plos históricos que parecessem dar-lhes algum
de que se preza um cavalheiro. Con­ apoio na realidade. Ora, para Rousseau, o
interesse principal estava nessa mesma realida­
de, que buscava examinar tanto em seus aspec­
4 São exemplos daqueles bárbaros de que tos já passados quanto em seu fluxo presente.
Rousseau acaba de falar. (N. de P. A.-B.) (N. de L. G. M.)|
376 ROUSSEAU

nomes decentes a nossos vícios, apren­ preferido que dissesse: Povos! sabei,
demos a não corar mais com eles? pois, de uma vez por todas, que a natu­
Diz ele, ainda, que, embora se reza não quer que vos nutrais com as
pudesse provar com fatos ter sempre produções da terra; o trabalho que exi­
reinado com as ciências a dissolução giu para a sua cultura é um aviso para
dos costumes, não se concluirá que a que a deixeis inculta. O Sr. Gautier
sorte da probidade depende do pro­ não imaginou que se tem, com um
gresso delas. Depois de haver dedicado pouco de trabalho, a certeza de fazer
a primeira parte de meu discurso a pão, mas que com muito estudo é bas­
provar terem essas coisas sempre an­ tante duvidoso que se consiga fazer um
dado juntas, destinei a segunda a mos­ homem razoável. Não pensou, ainda,
trar que, com efeito, uma se prende à que essa não passa de mais uma obser­
outra. A quem, pois, poderia imaginar vação em meu favor, pois, por que terá
que, nesse ponto, responde o Sr. a natureza nos imposto trabalhos ne­
Gautier? cessários, senão para desviar-nos das
Ele me parece sobretudo muito ocupações ociosas? Mas, dado o des­
escandalizado com a maneira por que prezo que demonstra pela agricultura,
falei da educação dos colégios. Comu­ vê-se facilmente que, se dependesse
nica-me que aí se ensina aos moços dele, todos os trabalhadores deserta­
não sei quantas coisas belas, que pode­ riam dos campos para ir argumentar
rão ser de muito auxílio para a sua dis­ nas escolas, ocupação essa, segundo o
tração quando crescerem, mas con­ Sr. Gautier e de acordo, creio, com
fesso não perceber quais as suas muitos professores, bastante impor­
relações com os deveres dos cidadãos, tante para a felicidade do Estado.
aos quais se deve começar por instruir. Raciocinando sobre um trecho de
“Perguntamo-nos geralmente: Sabe­ Platão, presumi que talvez os antigos
rá grego ou latim? Escreve em verso egípcios não concedessem às ciências a
ou em prosa? Mas o que importa é importância que se poderia crer. O
saber se tornou-se melhor ou mais pru­ autor da refutação me pergunta como
dente, eis o que fica em dúvida. Alu­ se pode fazer essa opinião concordar
dindo a alguém que passa, gritai a com a inscrição que Osimândias8 pu­
nosso povo: Oh ! que homem sábio!; e sera na sua biblioteca. Essa objeção
a respeito de outro: Oh! que bom teria cabimento quando esse príncipe
hom em ! — não deixará de dirigir os era vivo. Agora que está morto, per­
olhos e o respeito para o primeiro. gunto, por minha vez, onde está a
Deveria aparecer um terceiro gritador necessidade de fazer concordar o senti­
dizendo: O h ! cabeças-duras!” 7 mento do Rei Osimândias com o dos
Disse eu que a natureza quis nos sábios do Egito. Se ele tivesse contado
preservar da ciência, como uma mãe e, sobretudo, pesado os votos, quem
arranca uma arma perigosa das mãos me diria que a palavra “venenos” não
de seu filho, e que o trabalho que nos teria substituído a palavra “remédios”.
dá para nos instruirmos não é o menor
de seus benefícios. O Sr. Gautier teria 8 Osimândias: rei lendário do Egito antigo.
D e acordo com a tradição clássica, mandou
construir a primeira biblioteca anotada pela
7 Montaigne, Ensaios, Livro I, X X IV . Todo história e na porta colocou a seguinte inscri­
esse trecho anuncia a reforma pedagógica do ção: “Tesouro dos remédios da alma” . (N . de
Emílio. (N . de P. A.-B.) P. A.-B.)
DISCURSO SOBRE AS CIÊNCIAS E AS ARTES 377

Deixemos, porém, essa pomposa ins­ fundamenta-se no fato de que Car-


crição. Esses remédios são excelentes, néades10 se comprazia estabelecendo e
concordo, e já o repeti muitas vezes. destruindo as mesmas proposições, o
Mas será isso motivo para administrá- que não é muito pertinente acerca de
los inadvertidamente e sem levar em Catão contra a literatura dos gregos. O
consideração o temperamento dos Sr. Gautier deveria antes dizer-nos
doentes? Um certo alimento é muito qual era o país e o ofício desse
bom em si, mas num estômago enfer­ Carnéades.
mo só produzirá indigestão e mau Carnéades, sem dúvida, é o único
humor. Que se dirá de um médico c)ue, filósofo e o único sábio que se preocu­
depois de ter feito o elogio de algumas pou em sustentar o pró e o contra; de
carnes suculentas, concluir que todos outro modo, tudo o que diz o Sr. G au­
os doentes deverão fartar-se delas? tier não significaria absolutamente
Demonstrei que as ciências e as nada. Neste ponto eu recorro à sua
artes debilitam a coragem. O Sr. G au­ erudição.
tier chama a isso um modo singular de Se a refutação não é abundante de
raciocinar e não vê ligação entre a bons raciocínios, em compensação o é
coragem e a virtude. Não obstante, não de belas declamações. O autor, em
é, segundo parece, coísa tão difícil de todas as passagens, substitui pelos
compreender. Aquele que já se acostu­ ornamentos da arte a solidez das pro­
mou a preferir sua vida ao dever não vas que ele prometia ao começar e,
tardará muito em preferir também as prodigalizando pompa oratória numa
coisas que tornam a vida fácil e refutação, é que me censura por tê-la
agradável. empregado num discurso acadêmico.
Disse que a ciência convém a alguns A que tendem, pois, diz o Sr. G au­
grandes gênios, mas que é sempre tier, as eloqüentes declamações do Sr.
prejudicial aos povos que a cultivam. Rousseau? A abolir, caso fosse possí­
O Sr. Gautier diz que Sócrates e vel, as vãs declamações dos colégios.
Catão, que censuravam as ciências, Quem não se indignará ao ouvi-lo afir­
não obstante, eram eles próprios ho­ mar que temos as aparências de todas
mens muito sábios, e acha que com as virtudes e nenhuma delas? Confesso
isso me refutou. haver um pouco de lisonja ao dizer que
Disse que Sócrates era o mais sábio temos todas as aparências delas; mas o
dos atenienses e nisso baseio a autori­ Sr. Gautier, mais do que ninguém,
dade de seu testemunho, o que não im­ deveria perdoar-me isso. E p o r que não
pede o Sr. Gautier de comunicar-me temos mais virtude? É porque se culti­
ter sido Sócrates um sábio9. vam as belas-letras, as ciências e as
Ele me censura por ter afirmado que artes. Justamente por isso. Si?fôssem os
Catão desprezava os filósofos gregos: grosseiros, rústicos, ignorantes, godos,
hunos e vândalos, seríamos dignos dos
9 Já existia a ambigüidade na palavra
grega ao^óç e na latina, sapiens, que podem 1 0 Parece que Rousseau ignorava quem fosse
significar igualmente “ aquele que possui a Carnéades, filósofo grego (219-126 a.C.) fun­
sabedoria, a virtude” e “ aquele que possui a dador da escola chamada N ova Academ ia, de
ciência” . Tal ambigüidade, porém, não apre­ tendência cética; um de seus argumentos favo
sentava qualquer importância entre os antigos, ritos — o diolelo — era, realmente, que a
para os quais a ciência era condição da sabe­ razão por si mesma destrói as verdades que
doria e da vida virtuosa. (N . de P. A.-B.) prova. (N . de P. A.-B.)
378 ROUSSEAU

elogios do Sr. Rousseau. Por que não? São essas, pois, de acordo convosco,
Haverá algum desses nomes que ex­ especulações estéreis? Estéreis segun­
clua a virtude? Não se cansará de do a opinião comum, mas, a meu pare­
invectivar os homens? Não se cansa­ cer, muito férteis de coisas más. A s
rão eles de serem maus? Crer-se-á, universidades vos devem um grande
sempre, torná-los mais virtuosos dizen­ favor, por terdes lhes ensinado que a
do-lhes que não têm virtude? Crer-se-á verdade dessas ciências se retirou para
torná-los melhores persuadindo-os de o fundo de um poço. Não creio ter
que são suficientemente bons? Sob o ensinado isso a ninguém; essa afirma­
pretexto de aprimorar os costumes, ção não é de minha invenção, ela é tão
será permitido destruir-lhes as bases? antiga quanto a filosofia. Ademais, sei
Sob o pretexto de esclarecer os espíri­ que as universidades não me devem ne­
tos, dever-se-á perverter as almas? Oh! nhum reconhecimento e eu não ignora­
doces laços da sociedade, encanto dos va, ao tomar da pena, que não podia,
verdadeiros filósofos, amáveis virtu­ ao mesmo tempo, fazer a corte aos ho­
des, é por vossos próprios atrativos mens e prestar homenagem à virtude.
que reinais nos corações; não deveis Os grandes filósofos, que as possuem
vosso império nem à severidade estói­ num grau altíssimo, sem dúvida sen­
ca, nem aos clamores bárbaros, nem tem-se bastante surpresos por saberem
aos conselhos de uma rusticidade que nada sabem. Creio, com efeito, que
orgulhosa. esses grandes filósofos que possuem
De início, salientarei uma coisa todas as ciências em altíssimo grau
ficariam muito surpresos por saberem
muito divertida: de todas as seitas dos
que nada sabem, mas eu ficaria ainda
filósofos antigos atacadas por mim
mais surpreso se esses homens, que
como inúteis à virtude, os estóicos são
sabem tantas coisas, porventura sou­
os únicos que o Sr. Gautier me deixa e
que parece até querer pôr de meu lado. bessem isso12.
Ele tem razão; não ficarei por isso
11 É a divisão tradicional da filosofia, dom i­
muito mais orgulhoso. nante até o século XVIII e derivada de Aristó­
Mas, vejamos, por um instante, se teles. É tão evidente o ridículo da exclam ação
poderei apresentar exatamente em ou­ que Rousseau não a sublinha. Faz-se, desse
tros termos o sentido desta exclama­ modo, patente o contraste — já assinalado em
ção: O h! doces virtudes, épelos vossos notas ao texto do próprio Discurso — entre a
cultura da época, representada perfeitamente
próprios atrativos que reinais nas por Gautier e seu enfatuamento com as possi­
almas. Não tendes necessidade de toda bilidades dos conhecimentos de seu tempo, e a
essa grande pompa de ignorância e de posição singular de Rousseau que, no trans­
rusticidade; sabeis chegar ao coração curso de todo esse trecho, lança mão do recur­
so tradicional dos moralistas: o ridículo. Com
por vias mais simples e mais naturais. o recuo histórico de que hoje dispomos,
Basta saber a retórica, a lógica, a físi­ evidencia-se a vantagem da posição de Rous­
ca, a metafísica e a matemática11 para seau: enquanto seus opositores se apegavam a
adquirir o direito de possuir-vos. valores transitórios, ele insistia em permanecer
Outro exemplo do estilo do Sr. no âmbito dum problema universal e perma­
nente. (N. de L. G. M.)
Gautier: 12 Existe uma diferença de natureza entre o
Sabeis que as ciências das quais se saber que se relaciona com conhecimentos
ocupam os jovens filósofos nas univer­ científicos e o saber socrático, que é uma to­
sidades são a lógica, a metafísica, a mada de consciência da própria ignorância
fundamental. Descartes e Hegel distinguiram
moral, a física e a matemática elemen­ nitidamente esses dois saberes — o saber de
tar. Se já o soube, já o esqueci, como um objeto, ou verdade, e o saber de si, ou cer­
fazemos ao nos tornarmos razoáveis. teza. (N . de P. A.-B.)
DISCURSO SOBRE AS CIÊNCIAS E AS ARTES 379

Noto que o Sr. Gautier, que sempre ção à sua solidez. Sustento que todo
me trata com a maior polidez, não homem que fala desse modo deseja
poupa nenhuma ocasião de aliciar-me antes tapar a boca das pessoas do que
inimigos; a esse respeito, estende seu convencê-las.
devotamento desde os professores de Se o senhor ler atentamen te a refuta­
colégio até o poder soberano. O Sr. ção, não encontrará quase uma linha
Gautier faz muito bem em justificar os que não pareça lá estar esperando e
usos da sociedade; vê-se que não lhe indicando sua resposta. Um único
são estranhos. Mas voltemos à refuta­ exemplo bastará para me razer com­
ção. preender.
Todos esses modos de escrever e de A s vitórias que os atenienses conse­
raciocinar, que não vão bem a um guiram sobre os persas e sobre os lace-
homem de tanto espírito quanto me pa­ demônios mostram que as artes podem
rece ser o Sr. Gautier, sugeriram-me associar-se à virtude militar. Pergunto
uma conjetura, que achará ousada e se não vai nisso um estratagema para
que acredito razoável. Ele me acusa, lembrar o que disse sobre a derrota de
certamente sem nisso acreditar, de não Xerxes e para me fazer pensar no
estar completamente persuadido da desenlace da guerra do Peloponeso.
opinião que defendo. Eu suponho, com Seu governo, tornando-se venal sob
mais fundamento, estar ele secreta­ Péricles, adquiriu novo aspecto: o
mente de acordo comigo: os lugares amor pelo prazer asfixia-lhes a bravu­
que ocupa, as circunstâncias em que se ra, as mais honrosas funções são avil­
encontra colocaram-no numa espécie tadas, a impunidade multiplica os
de necessidade de tomar partido contra maus cidadãos, os fundos destinados à
mim. As conveniências de nosso sécu­ guerra são utilizados para alimentar a
lo servem para muitas coisas; ele terá, incúria e a ociosidade; que relação têm
pois, me refutado pelas conveniên­ com as ciências essas causas de cor­
cias13, mas tomou todas as precauções rupção?
e empregou toda a arte possível para Que faz, nesse ponto, o Sr. Gautier,
fazê-lo de modo a não persuadir senão lembrar a segunda parte de meu
ninguém. Discurso, onde patenteei ess;i relação?
Nesse sentido, começa por declarar, Observe a arte com que apresenta,
como causa, os efeitos da co *rupção, a
muito fora de propósito, que a causa
defendida por ele interessa à felicidade fim de levar todo homem de lx)m senso
da assembléia a que fala e à glória do a subir por si mesmo à primeira causa
dessas pretensas causas. Observe,
príncipe sob cujas leis tem o prazer de ainda, como, deixando que o leitor
viver. É precisamente como se disses­ reflita, finge ignorar o que niio se pode
se: Não podeis, senhores, sem ingrati­ supor seja de fato por ele igr orado e o
dão para com vosso protetor, deixar de que todos os historiadores dizem una­
me dar razão e, mais, é vossa própria nimemente — que a depravação dos
causa que pleiteio hoje perante vós. costumes e do Governo dos atenienses
Desse modo, de qualquer lado que foi obra dos oradores. É certo, pois,
encareis minhas provas, tenho o direito que me atacar desse modo é indicar-me
de esperar que não apresentareis obje-
muito claramente as respostas que
devo dar.
13 Essa passagem anuncia a crítica da polidez
que se encontra no fim da C arta ao- R e i da Todavia, isso não passa de conjetu­
Polônia. (N . de P. A.-B.) ra, que não pretendo afirmar. O Sr.
380 ROUSSEAU

Gautier talvez não me aprovasse, se nos empregadas por mim para servir
quisesse justificar seu saber a expensas de transição, não há uma única sobre a
de sua boa fé; mas, se com efeito qual um leitor judicioso possa ser da
expressou-se sinceramente ao refutar o opinião do Sr. Gautier.
meu D iscurso, como o Sr. Gautier, que Segundo ele, não é verdade que a
é professor de história, professor de história extraia dos vícios do homem
matemática, membro da Academia de seu interesse principal.
Nancy, não desconfiou um pouco de Poderia apresentar as provas do
todos esses títulos que possui? raciocínio e, para colocar o Sr. Gautier
Não replicarei, pois, ao Sr. Gautier: no seu campo, citar-lhe-ia algumas
é questão resolvida. Jamais poderia autoridades.
responder com seriedade e seguir
Felizes os povos cujos reis fizeram
ponto por ponto a refutação — o se­
pouco ruído na história!
nhor compreende por quê; e seria não
Se os homens algum dia se tornas­
reconhecer devidamente os elogios
sem sábios, sua história de modo
com os quais o Sr. Gautier me honra,
algum seria divertida.
empregar o ridiculum acrV 4, a ironia e
a brincadeira de mau gosto. Sinto já O Sr. Gautier diz, com razão, que
meus receios de que tenha bastante uma sociedade, mesmo que fosse com­
para lamentar-se no tom desta carta. posta unicamente de homens justos,
Pelo menos não ignorava ele, ao escre­ não poderia subsistir sem leis, e daí
ver sua refutação, que atacava um conclui não ser verdade que a jurispru­
homem que não dá à polidez a impor­ dência seria inútil sem as injustiças dos
tância bastante para aprender a disfar­ homens. Um autor tão erudito confun­
çar com ela seus sentimentos. diria a jurisprudência com as leis?1 5
Quanto ao mais, estou pronto a Poderia ainda abandonar as provas
prestar ao Sr. Gautier toda a justiça do raciocínio e, para pôr o Sr. Gautier
que lhe é devida. Seu trabalho parece- no seu terreno, citar-lhe-ia fatos.
me o de um homem de espírito que Os lacedemônios não tinham nem
possui seus conhecimentos. Outros, jurisconsultos nem advogados, suas
talvez, nele encontrarão filosofia; leis nem sequer eram escritas e, não
quanto a mim, nele percebi muita obstante, possuíam leis. Recorro à eru­
erudição. dição do Sr. Gautier para saber se as
Sou, de todo o coração, senhor, etc. leis eram menos bem observadas na
P. S. Acabo de ler, na Gazette de Lacedemônia do que nos países em
Utrecht de 22 de outubro, uma exposi­ que formigam os jurisconsultos.
ção pomposa sobre a obra do Sr. Gau­ Absolutamente não me deterei em
tier e essa exposição parece feita de todas as minúcias que servem de texto
propósito para confirmar minhas supo­
sições. Um autor, que tem alguma con­
1 5 A s leis são estabelecidas de modo muito
fiança em sua obra, deixa aos outros o geral pelo legislador. A parte correspondente à
cuidado de fazer-lhe o elogio e limita- sua aplicação e ao respeito devido a elas é
se a dela fazer um bom resumo; o da assegurada pela justiça e constitui a jurispru­
refutação é feito com tanta habilidade dência. Toda sociedade tem necessidade de
que, embora recaia em coisas de some­ possuir leis formuladas; pode-se, porém, ima­
ginar uma sociedade tão boa que não tivesse
necessidade de um aparelho judiciário para
1 4 R idiculum acri. Palavra que, pela sua viru­ fazer aplicar, precisar e respeitar suas leis. (N .
lência, provoca o riso. (N . de P. A.-B.) de P. A.-B.)
DISCURSO SOBRE AS CIÊNCIAS E AS ARTES 381

ao Sr. Gautier e que exibe na Gazette, Afastemos do trabalho do Sr. Gautier


mas terminarei com esta observação, tudo o que não se refere ao fundo da
qué submeto ao vosso exame: questão; dele não restará quase nada.
Demos em tudo razão ao Sr. G au­ Concluo sempre não ser p *eciso res­
tier e cortemos de meu Discurso todas ponder ao Sr. Gautier.
as coisas que ele ataca; minhas provas
não perderão quase nada de sua força. Paris, 1.° de novembro de 1751.
R e s p o s t a d e J.-J. R o u s s e a u
ao R ei d a P o l ô n ia ,
D uque d a Lorena,

sobre a refutação feita por esse príncipe ao seu D iscursc .

Devo antes um agradecimento do pais todas as proposições oferecidas


que uma réplica ao autor anônimo1 pelo meu adversário: um compreende
que acaba de honrar meu Discurso o elogio das ciências, o oui:ro trata de
com uma resposta; mas o que devo ao seu abuso. Examiná-los-ei separada­
reconhecimento não me fará esquecer mente.
0 que devo à verdade, nem esquecerei Parece, pelo tom da resposta, que
também que, todas as vezes que se agradaria bastante se eu tivesse dito
trata da razão, os homens entram no das ciências muito mais mal do que
direito da natureza e retomam sua an­ com efeito o fiz. Supõe-se ter-me custa­
tiga igualdade2. do muito seu elogio, que se encontra
O discurso a que tenho de replicar no começo de meu Discurso; é, segun­
está cheio de coisas muito reais e do o autor, uma confissão arrancada à
verdade e que não tardei em desdizer.
muito bem provadas, às quais não
cabe qualquer resposta, pois, embora
2 A solução encontrada para tratar com um
seja nele qualificado de doutor, ficaria príncipe — que alguns “filósofos não trepida­
muito aborrecido de ser incluído no riam em cortejar” — é arrancada à firmeza
número daqueles que sabem responder ideológica de Rousseau por uma acom odação
doutrinária, bem pouco conforme aos usos do
a tudo. tempo e muito coerente com o posterior desen­
Minha defesa não será por isso volvim ento da obra política de nosso autor:
menos fácil: limitar-se-á a comparar as cada vez que se trate de problemas da razão,
verdades com que me objetaram minha restabelece-se a igualdade natural entre os
homens, malgrado todas as distinções criadas
opinião, pois, se provar que aquelas pela sociedade. Com o verdade filosófica, a
não impugnam a esta, já será, creio, afirmação deveria passar quase com o um
tê-la defendido o bastante. truísmo num século dominado pela crença no
Posso reduzir a dois pontos princi­ direito natural e no racionalismo iluminista,
mas certamente encontrava sérios obstáculos
na hierarquia social então em vigor. O autor
1 A obra do rei da Polônia, sendo a princípio da resposta ao D iscurso, permitindo que se
anônima e não reconhecida pelo autor, obriga­ rompesse seu anonimato, muito concorrera
va-me a respeitar o incógnito que adotara, para estabelecer uma igualdade intelectual
m as, tendo esse príncipe reconhecido depois entre ele e Rousseau, mas nãc deixa de ser
publicamente essa mesma obra, dispensou-me curioso que este apelasse para o princípio de
de silenciar por mais tempo sobre a honra que que tanto se serviria no segundo discurso e,
me deu. (N . do A.) sobretudo, no C ontrato S ocial.(N • de L. G. M.)
384 ROUSSEAU

Se essa confissão é um elogio arran­ sistemas absurdos, tantas contrarie­


cado pela verdade, precisa-se, portan­ dades, tantas inépcias, tantas sátiras
to, crer que eu pensasse das ciências o amargas, tantos romances miseráveis,
bem que delas disse; o bem que o pró­ tantos versos licenciosos, tantos livros
prio autor da resposta delas diz não é, obscenos e, naqueles que as cultivam,
pois, contrário ao meu sentimento. a tanto orgulho, tanta avareza, tanta
Essa confissão, dizem, é arrancada à malignidade, tanta intriga, tanto
força; tanto melhor para a minha ciúme, tanta mentira, tanta torpeza,
causa, porquanto isso mostra que em tantas calúnias, tantas adulações co­
mim a verdade é mais forte do que a vardes e vergonhosas? 4 Eu diria que a
inclinação. Mas com que base se pode ciência, apesar de muitíssimo bela e
dizer que esse elogio é forçado? Por muitíssimo sublime, não é feita para o
ser malfeito? Isso seria iniciar um pro­ homem; que lhe basta estudar seus
cesso terrível contra a sinceridade dos deveres e que cada um recebeu todas
autores, julgando-os por esse novo as luzes necessárias a esse estudo. Meu
princípio. Por muito curto? Parece-me adversário confessa, de sua parte,
que eu poderia facilmente dizer menos tornarem-se as ciências prejudiciais
coisas num número maior de páginas. quando se abusa delas, e que muitos
É, diz-se, porque me retratei. Ignoro delas efetivamente abusam; eu ajunto,
em que lugar cometi tal falta e quanto é certo, que delas se abusa muito, que
posso responder é que não tive essa delas se abusa sempre, e não me parece
intenção. que se afirme o contrário na resposta.
A ciência é muito boa em si mesmo, Posso, pois, assegurar que nossos
eis o que é evidente, e seria preciso ter princípios e, conseqüentemente, todas
renunciado ao bom senso para dizer o as proposições que se podem deduzir,
contrário. O autor de todas as coisas3 nada têm de opostos, e isso é que tinha
é a fonte da verdade; tudo conhecer é de provar. Todavia, quando chegamos
um de seus atributos divinos: adquirir a concluir, nossas conclusões mos­
conhecimentos e espalhar luzes equiva­ tram-se contrárias. A minha afirmava
le, pois, a participar, de certo modo, da que, posto que as ciências fazem mais
inteligência suprema. Nesse sentido mal aos costumes do que bem à socie­
louvei o saber e nesse sentido louvo dade, seria desejável que os homens se
meu adversário. Ele se estende ainda dedicassem a ela com menor ardor. A
acerca dos vários gêneros de utilidade de meu adversário diz que, embora as
que o homem pode tirar das artes e das ciências causem grande mal, não se
ciências e eu teria de boa bontade feito deve deixar de cultivá-las pelo bem que
o mesmo, se isso pertencesse ao meu trazem. Recorro não ao público, mas
assunto. Estamos, assim, perfeitamente ao pequeno número de verdadeiros
de acordo nesse ponto.
filósofos, para saber qual das conclu­
Mas como pode ser que as ciências, sões deve ser preferida.
cuja fonte é tão pura e o fim tão louvá­
Restam-me ainda ligeiras observa­
vel, dêem origem a tantas impiedades,
ções a fazer sobre certas passagens
a tantas heresias, tantos erros, tantos
dessa resposta, que me pareceram algo
faltas da justeza que, de bom grado,
3 O autor de todas as coisas: D eus, ou
melhor, o ser supremo. N o argumento encon­
tra-se um eco da filosofia cartesiana: D eus não 4 Tais acumulações excessivas são caracte^
pode ser enganador; o filósofo, pois, só pode rísticas do estilo enfático e do caráter passio­
ser sincero. (N . de P. A.-B.) nal de Rousseau. (N . de P. A.-B.)
DISCURSO SOBRE AS CIÊNCIAS E AS ARTES 385

admirei nas outras e, por isso, pude­ Diz ainda estar surpreendido por vê-lo
ram contribuir para o erro da conclu­ premiado; entretanto, não é um prodí­
são que o autor delas tira. gio ver premiadas obras medíocres.
A obra começa com algumas mor- Em qualquer outro sentido, tal sur­
dacidades que só salientarei na medida presa seria tão honrosa à Academia de
em que tocam à questão. O autor me Dijon quanto injuriosa à integridade
honra com inúmeros elogios, e, certa­ dos acadêmicos em geral; é fácil de ver
mente, isso vale por abrir-me uma bela como disso tiraria vantagem para
carreira. Mas há bem pouca proporção minha tese.
entre essas coisas; um silêncio respei­ Acusam-me, com frases rnuito agra­
toso sobre os objetivos de nossa admi­ davelmente compostas, de contradi­
ração freqüentemente convém mais do ções entre minha conduta e minha dou­
que louvores indiscretos 5. trina. Censuram-me por ter eu mesmo
Diz o autor que meu discurso tem cultivado os estudos que condeno7.
muita coisa que surpreende6. Parece- Como a ciência e a virtude são incom­
me que se impõe um esclarecimento. patíveis, coisa que me esforço por pro­
var, segundo pretendem, perguntam-
5 Todos os príncipes, bons e maus, serão me em tom instante como ouso servir-
sempre baixa e indiferentemente louvados me de uma, declarando-me cm favor de
enquanto houver cortesãos e letrados. Quanto outra.
aos príncipes que são grandes homens, exigem
Há muita habilidade em fazer com
elogios mais moderados e melhor escolhidos.
A adulação ofende-lhes a virtude e o próprio que eu mesmo me comprometa na
elogio pode prejudicar-lhes a glória. Tenho questão; essa mordacidade rião deixará
certeza, pelo menos, de que Trajano seria a de causar embaraços à minha resposta,
meus olhos muito maior, se Plínio não tivesse ou, antes, às minhas respostas, pois
escrito sobre ele. Se Alexandre tivesse sido
efetivamente aquilo que afetava, não teria pen­ infelizmente tenho de dar mais de uma.
sado em seu retrato e em sua estátua, mas, Esforcemo-nos, pelo menos, para que
quanto a seu panegírico, só permitiu a um nelas a exatidão substitua o agrado.
lacedemônio que o fizesse, ainda que fosse 1.° Que a cultura das ciências cor­
para não o ter. O único elogio digno deífrri rei
é aquele que se faz ouvir não da boca merce­
rompe os costumes de uma nação, eis
nária de um orador, mas da voz de um povo o que ousei sustentar e ouso crer ter
livre. “Para que experimentasse prazer com provado. Como poderia, porém, ter
vossos elogios”, dizia o Imperador Juliano a dito que em cada homem ern particular
seus cortesãos que lhe enalteciam a justiça, são incompatíveis a ciência e a virtude,
“ seria preciso que ousásseis dizer o contrário,
se fosse verdade.”* (N . do A.) eu que exortei os príncipes a chama­
* Tom ado a Montaigne, Ensaios, I, XLII. rem para a sua corte os verdadeiros sá­
(N . de P. A.-B.) bios e emprestar-lhes sua confiança a
6 É com a própria questão que se poderia fim de que, pelo menos por uma vez, se
ficar surpreso; grande e bela questão, se é que
algum dia houve outra assim, e que possivel­
mente poderá não ser tão logo renovada. A 7 N ão poderia justificar-me, com o muitos
Academ ia Francesa acaba de propor, para o outros, dizendo que nossa educação não
prêmio de eloqüência de 1752, um assunto depende de nós e que não som es consultados
muito semelhante a esse. Trata-se de sustentar para sermos envenenados. F oi de muito bom
que “o amor às letras inspira o am or à virtu­ grado que me lancei ao estudo e ainda de me­
de”. A Academ ia não julgou oportuno deixar lhor vontade que o abandonei, ao perceber a
um tal assunto com o problema em aberto e, perturbação que lançava em minha a Ima sem
nesta oportunidade, a douta companhia dupli­ qualquer proveito para minha ra;:ão. N ão mais
cou o tempo que até então concedia aos auto­ quero uma ocupação enganosa na qual se crê
res, mesmo para assuntos mais difíceis. (N . do trabalhar para a sabedoria, mas tudo se faz
A.) pela vaidade. (N . do A.)
386 ROUSSEAU

veja o que podem, a ciência e a virtude Quem sabe se não chegariam até a reu­
reunidas, dar à felicidade do gênero ni-las, se me apressasse a condenar
humano? Esses verdadeiros sábios for­ uma delas, por pouco justa que fosse?
mam um pequeno número, confesso, 3.° Poderia citar, a esse respeito, o
pois para fazer bom uso da ciência é que dizem os padres da Igreja sobre as
preciso reunir grandes talentos e gran­ ciências mundanas que desprezam e às
des virtudes. Isso só se pode esperar de quais, todavia, recorrem para comba­
algumas almas privilegiadas, e não se ter os filósofos pagãos. Poderia citar a
pode esperar de um povo em seu comparação que fazem delas com os
todo8. Não se poderia, pois, concluir, vasos roubados, aos egípcios, pelos
de meus princípios, que um homem israelitas10. Contentar-me-ei, porém,
não consiga ser, ao mesmo tempo, como última resposta, em levantar esta
sábio e virtuoso. questão: se alguém viesse para matar­
2.° Mesmo que essa pretensa con­ me e eu tivesse a felicidade de tomar-
tradição realmente existisse, menos lhe a arma, ser-me-ia proibido, antes
legítimo seria constranger-me pessoal­ de jogá-la fora, aproveitá-la para ex­
mente por sua causa. Adoro a virtude; pulsá-lo de minha casa?
meu coração é testemunha disso e diz- Se a contradição de que me acusam
me também, claramente, como é dis­ não existe, desnecessário será supor
tante esse amor da prática que torna o que tenha querido somente distrair-me
homem virtuoso9. Aliás, estou bem com um paradoxo frívolo e isso pare­
longe de possuir a ciência e, mais ce-me tanto menos cabível quanto o
ainda, de afetar possuí-la. Acreditei tom que usei, por inepto que seja, ao
defender-me dessa imputação com a menos não é aquele que se emprega
confissão ingênua que fiz no começo nos jogos de espírito.
de meu discurso. Temia, antes, que me É tempo de deixar de falar sobre o
acusassem de julgar coisas desconhe­ que me toca; nunca se ganha nada
cidas por mim. Facilmente se com­ falando de si mesmo, indiscrição que o
preende ser-me impossível evitar, ao público dificilmente perdoa, mesmo
mesmo tempo, essas duas reprimendas. quando se é forçado a fazê-lo. A verda­
de é tão independente daqueles que a
8 Essa distinção, que Rousseau aqui faz pela atacam e a defendem que os autores
primeira vez, será capital para a evolução de que discutem a seu respeito deveriam
seu pensamento; com efeito renunciará, pouco
a pouco, às soluções, queridas dos enciclope­ ignorar-se reciprocamente. Isso poupa­
distas, de regeneração individual, pois elas só ria muito papel e tinta. Mas essa regra
se mostram válidas para indivíduos isolados e tão fácil, para mim, de ser praticada,
excepcionalm ente dotados; Rousseau prefirirá absolutamente não o é para meu adver­
soluções coletivas que transformam uma socie­
dade inteira. Vista de outro ângulo, a questão
sário, e tal diferença não facilita a
demonstra que Rousseau não mais crê exeqüí­ minha réplica.
vel, na sociedade moderna, a perfeita coesão O autor, observando que ataco as
entre sabedoria e virtude da tradição socrática, ciências e as artes pelos efeitos que
que nem em todos os antigos (homens ou
povos) ele próprio reconhece. Povos bárbaros, determinam nos costumes, lança mão,
sem filósofos, são mais sábios, coletivamente, para me responder, da enumeração das
do que povos que contam com grande número
de eruditos e pensadores. Impõe-se salvar, ' 0 Antes de abandonar o Egito arrasado pelas
pois, a sabedoria coletiva. (N . de L. G. M.) pragas, M oisés e os israelitas “pediram aos
9 Essa frase é um primeiro prenúncio das egípcios objetos de prata, objetos de ouro e
Confissões. (N. de P. A.-B.) roupas”. (Êxodo, X II.) (N. de P. A.-B.)
DISCURSO SOBRE AS CIÊNCIAS E AS ARTES 387

aplicações proveitosas que delas se penetrar nos segredos de Deus ousa


praticam em todos os Estados. É como asSociar sua pretensa sabedoria à sabe­
se, para defender um acusado, alguém doria eterna. Aprova, censura, corrige,
se contentasse em provar que ele passa prescreve leis à natureza e limites à
bem de saúde, que tem grande habili­ divindade, e enquanto, por preocupar-
dade ou é muito rico. Desde que con­ se com seus vãos sistemas, tem traba­
cordem comigo quanto às artes e às lhos infindos para arranjar a máquina
ciências tornarem as pessoas infelizes, do mundo, o trabalhador, que vê o sol
não discordarei quanto a serem elas, e a chuva sucessivamente fertilizarem
sem embargo, muito cômodas — será seus campos, admira, louva e bendiz a
mais uma conformidade entre elas e a mão de que recebe essas graças, sem se
maioria dos vícios. preocupar com a maneira pela qual
O autor vai mais longe e pretende elas lhe chegam. Não procura justifi­
ser-nos ainda necessário o estudo para car sua ignorância ou seus vícios pela
admirar as belezas do universo. Afir­ incredulidade. Não censura as obras
ma que o próprio espetáculo da nature­ de Deus e não se agarra a seu senhor
za, exposto, ao que parece, aos olhos
para fazer brilhar sua suficiência. Ja­
de todos para a instrução dos simples,
mais o dito ímpio de Afonso X 12
exige muita instrução nos seus obser­
encontraria abrigo no espírito de um
vadores para ser percebido. Confesso homem vulgar; tal blasfêmia estava
que essa afirmação me surpreende. reservada a uma boca sábiE.. Enquanto
Ter-se-ia ordenado a todos os homens a sábia Grécia estava cheia de ateus,
que fossem filósofos ou ordenou-se que
Elieno observa13 que nunca um bár­
somente os filósofos cressem em
baro duvidara da existência da divin­
Deus? Em inúmeras passagens, a Es­ dade. Podemos notar, do mesmo
critura nos exorta a adorar a grandeza modo, que em toda a Ásia só há um
e a bondade de Deus nas maravilhas
único povo letrado, que mais da meta­
de suas obras; não julgo que em qual­ de desse povo é ateu, sendo a única
quer passagem ela nos mande estudar nação da Ásia onde se conhece o
a física, nem que o autor da natureza ateísmo1 4.
seja menos bem adorado por mim, que
nada sei, do que por aquele que conhe­ A curiosidade natural do homem,
ce o cedro e o hissopo, a tromba da continua a escrever, inspira-lhe o dese­
mosca e a do elefante. Non enim nos jo de aprender. Ele deveria, pois, esfor­
Deus ista scire, sed tantumodo uti çar-se por contê-la, como a todas as
voluiO 1. ^
Crê-se sempre dizer o que as ciên­ 12 A fonso X , rei de Leão e de Castela, cogno­
minado “o astrônomo”, recebera antes de
cias fazem, quando se diz o que deve­ subir ao trono, em 1252, o cognom e de sábio.
riam fazer. Eis o que, contudo, me pa­ Tinha por hábito dizer: “ Se D eus me tivesse
rece bem diferente. O estudo do chamado para seu conselho no momento da
universo deveria elevar o homem a seu criação, o mundo teria sido mais simples e
mais bem ordenado”. Essas palavras fizeram
criador, eu o sei, mas só eleva à vaida­ com que se tornasse suspeito de ateísmo; mui­
de humana. O filósofo que se jacta de tos historiadores consideram-nas antes com o
uma zombaria dirigida contra a incoerência e
11 “ D eus, com efeito, não quis que conhecês­ a contradição dos vários sistemas de astrono­
sem os essas coisas, mas que delas nos utilizás­ mia então aceitos.
sem os.” Cícero, D e Divinatione, I, XVIII, ci­ 13 Var. Hist. Lib. II, cap. 31. (N . do A.)
tado por Montaigne, Ensaios, II, XII. (N . de P. 1 4 A lusão ao povo chinês, que >erá precisada
A.-B.) numa sua nota subseqüente. (N . de P. A.-B.)
388 ROUSSEAU

inclinações naturais. Suas privações entender que só se pode ter segurança


fazem -no sentir suas necessidades. Os da virtude depois de tê-la posto à
conhecimentos são úteis em muitos prova. Essas máximas são, pelo
aspectos; no entanto, os selvagens são menos, duvidosas e passíveis de dis­
homens e não sentem essa necessidade. cussão. Não é certo que se esteja obri­
Suas utilizações impõem sua obriga­ gado, para aprender a bçm agir, a
ção. Muito mais freqüentemente, im­ saber por quantos modos se pode fazer
põem-lhe a de renunciar ao estudo 0 mal. Temos um guia interior muito
para ocupar-se com seus deveres1 5. mais infalível do que todos os livros e
Seus progressos fazem -no experi­ que jamais nos abandona no momento
mentar prazer. É por isso mesmo que da necessidade1 6. Se quiséssemos ou­
deveria desconfiar deles. Suas prim ei­ vi-lo, sempre bastaria para conduzir-
ras descobertas aumentam-lhe a sede nos inocentemente. E como estar-se
de saber. Isso, com efeito, acontece aos obrigado a experimentar as forças para
que têm talento. Quanto mais ele assegurar-se de sua virtude, se um dos
conhece, mais sente que existem co­ exercícios da virtude consiste em fugir
nhecimentos a adquirir. Isto é, o efeito às ocasiões do vício?
de todo o tempo perdido por ele é exci­ O homem sábio está continuamente
tá-lo a perder mais ainda. Mas há atento e sempre desconfia de suas pró­
somente um pequeno número de ho­ prias forças, reserva toda a coragem
mens de gênio para os quais a noção para quando tiver necessidade e jamais
de sua ignorância se desenvolve en­ se expõe sem propósito. O fanfarrão é
quanto adquirem conhecimentos e só a quem continuamente se vangloria da­
eles o estudo pode beneficiar. Os espí­ quilo que não pode fazer e, depois de
ritos tacanhos, nem bem aprendem ter desafiado e insultado todo mundo,
uma coisa, crêem tudo saber e não há deixa-se bater no primeiro encontro.
espécie de tolice que tal persuasão não Pergunto qual desses dois retratos se
os leve a realizar. Quanto mais conhe­ parece mais com um filósofo tomado
cimentos adquiridos, mais facilidade por suas paixões1 7.
existe para bem agir. Vê-se que, falan­ Censuraram-me por ter afetado
do assim, o autor mais consultou seu tomar os meus exemplos de virtude aos
coração do que observou os homens. antigos. É bem possível que eu encon­
Ele adianta ainda ser bom conhecer trasse outros mais, se tivesse podido
0 mal para aprender a fugir dele, e dá a reportar-me ainda mais alto. Citei tam­
bém um povo moderno e não tenho
1 5 Tanta falta de ciência nos que conduzem a culpa por só ter encontrado um.
sociedade é um mau sinal para ela. Se os ho­ Censuram-me ainda, numa máxima
mens fossem o que devem ser, quase não te­ geral, de paralelos odiosos, nos quais
riam necessidade de aprender as coisas que entram, ao que se diz, menos zelo e
devem fazer. D e resto, o próprio Cícero, que,
com o diz M ontaigne, “devia ao saber todo o
eqüidade do que a inveja aos meus
seu cabedal, repreende alguns de seus amigos
por se terem acostumado a consagrar à astro­ 16 É “ a consciência, instinto divino” , cujo
logia, ao direito, à dialética e à geometria mais papel será desenvolvido na Profissão de Fé do
tempo do que essas artes mereciam e porque Vigário Saboiano. Rousseau já está, pois, de
isso os desviava dos deveres da vida, mais posse de sua doutrina sobre o inatismo e a
úteis e mais honestos” . (Livro II, cap. 12.) infalibilidade da consciência moral, e jam ais
Parece-me que, nessa causa comum, os sábios mudará neste ponto. (N . de P. A.-B.)
deveriam entender-se melhor entre si e, pelo 1 1 Um retrato com o esse já fora desenvolvido
menos, apresentar as razões sobre as quais eles por Montaigne e Pascal. Rousseau neles se ins­
próprios estivessem de acordo. (N . do A.) pira. (N . de P. A.-B.)
DISCURSO SOBRE AS CIÊNCIAS E AS ARTES 389

compatriotas e animosidade contra Quanto mais o cristão examina a


meus contemporâneos. Entretanto, autenticidade de seus títulos , mais ele
ninguém mais do que eu ama sua pá­ se tranqüiliza na posse de sua crença,
tria e seus compatriotas. Finalmente, mais estuda a revelação, mais se fo rti­
só tenho mais uma palavra de respos­ fica na fé. É nas Escrituras divinas que
ta. Apresentei minhas razoes e são elas descobre sua origem e excelência; é
que é preciso levar em consideração; nos doutos escritos dos padres na Igre­
quanto às minhas intenções, deve-se ja que segue, de século em século, seu
deixar o seu julgamento somente a desenvolvimento; é nos livro? de moral
quem pertencem. e nos santos anais que encontra os
Não posso deixar passar em silêncio exemplos e tira sua aplicação.
uma objeção considerável que já me Como? A ignorância privará a reli­
foi feita por um filósofo18. Não será, gião e a virtude de luzes tão puras, de
dizem-me aqui, ao clima, ao tempera­ apoios tão poderosos? E ensinaria
mento, à falta de oportunidade, à atrevidamente um doutor de Genebra
imperfeição do objeto, à economia do que a elas se deve a irregularidade dos
Governo, aos costumes, às leis, a outra costumes? Ficar-se-ia mais espantado
causa qualquer, senão às ciências, que ainda de ouvir tão estranho paradoxo,
se deva atribuir essa diferença que às se não se soubesse que a singularidade
vezes se nota nos costumes em vários de um sistema, po r perigoso que seja,
países e em épocas diferentes? não constitui senão uma razão a mais
Essa questão compreende noções para quem só tem como regra o espí­
amplas e exigiria esclarecimentos rito particular.
muito extensos, que não conviriam a Ouso perguntar ao autor: Como
este trabalho. Ter-se-ia, aliás, de exa­ pôde dar tal interpretação 2.os princí­
minar as relações, muito ocultas mas pios que estabeleci? Como pôde acu­
muito reais, que se encontram entre a sar-me de censurar o estudo da reli­
natureza do Governo e o gênio, os cos­ gião, eu que censuro sobretudo o
tumes e os conhecimentos dos cida­ estudo de nossas ciências, vas por nos
dãos, e tal coisa me lançaria em desviarem do estudo de nossos deve­
discussões delicadas, capazes de leva­ res? E que é o estudo dos deveres do
rem-me bem longe. Além disso, ser- cristão, senão o de sua própria reli­
me-ia muito difícil falar do Governo gião?
sem entregar ótimos trunfos a meu Eu deveria, sem dúvida, ter censu­
adversário e, pesando bem, estas são rado expressamente todas essas sutile­
pesquisas que se deveriam fazer em zas pueris da escolástica com as quais,
Genebra e em outras circunstâncias. sob pretexto de esclarecer os princípios
Passo a uma acusação muito mais da religião, se enfraquece o espírito,
grave do que a objeção precedente. substituindo a humildade cristã pelo
Transcreve-la-ei em seus próprios ter­ orgulho científico. Deveria ter-me le­
mos, pois é importante apresentá-la vantado com maior ímpeto contra
fielmente aos olhos do leitor. esses ministros indiscretos que pri­
meiro ousaram tocar a arca, para forti­
1 8 Prefácio da Enciclopédia*. (N . do A.) ficar, com seu fraco saber, um edifício
*D ’Alembert, no Discurso Preliminar da Enci­ sustentado pela mão de Deus. Deveria
clopédia. A objeção é inspirada por M ontes­ ter-me indignado contra essss homens
quieu, para quem existe uma natureza social e
leis necessárias próprias da sociedade. (N . de frívolos que, com suas miseráveis dis­
P. A.-B.) putas, aviltaram a simplicidade subli­
390 ROUSSEAU

me do Evangelho e reduziram a dou­ sua ciência ao estudo da lei, faziam tal


trina de Jesus Cristo a silogismos. estudo com todo o fausto e toda a sufi­
Mas, trata-se, hoje, de defender-me e ciência dogmáticos. Observavam tam­
não de atacar. bém, com extremo cuidado, todas as
Vejo que esta disputa deverá termi­ práticas da religião, mas o Evangelho
nar pela história e pelos fatos. Se eu nos ensina o espírito dessa exatidão e a
soubesse expor em poucas palavras o importância que se deve dar-lhe. Final­
que as ciências e a religião tiveram de mente, todos eles tinham pouquíssima
comum desde o começo, talvez isso ciência e muito orgulho e não era nisso
pudesse decidir a questão quanto a este que mais diferiam de nossos doutores
ponto. de hoje.
O povo que Deus tinha escolhido Na instalação da nova lei, não foi a
para si jam ais cultivou as ciências e ja ­ sábios que Jesus Cristo quis confiar
mais se lhe aconselhou seu estudo; no sua doutrina e seu ministério. Seguiu,
entanto, se esse estudo fosse bom para em sua escolha, a predileção que
demonstrou em todas as ocasiões pelos
alguma coisa, ele, mais do que qual­
pequenos e pelos simples, e nas instru­
quer outro, teria sentido sua necessi­
ções que dava a seus discípulos não se
dade. Seus chefes, pelo contrário, sem­
encontra qualquer palavra de estudo
pre se esforçaram para conservá-lo
ou de ciência, a não ser para assinalar
separado, tanto quanto possível, das o desprezo que ele tinha por tudo isso.
nações idólatras e sábias que o circun­ Depois da morte de Jesus Cristo,
davam; precaução necessária menos doze pobres pescadores e artesãos qui­
em relação a um do que a outro grupo, seram instruir e converter o mundo.
pois esse povo fraco e grosseiro era Seu método era simples; pregavam
muito mais fácil de seduzir-se pelas sem arte, mas com o coração comovi­
trapaças dos padres de Baal do que do, e, de todos os milagres com os
pelos sofismas dos filósofos. quais Deus honrava sua fé, o mais
Depois de dispersões freqüentes impressionante era a santidade de sua
entre.os egípcios e os gregos, a ciência vida22; seus discípulos seguiram esse
teve ainda inúmeras dificuldades para exemplo e o sucesso foi prodigioso. Os
germinar na cabeça dos hebreus. Jose- padres pagãos, alarmados, fizeram
fo e F ilão19, que em qualquer outro
lugar não teriam passado de dois ho­ 21 Via-se reinar, entre os dois partidos, esse
mens medíocres, foram entre eles con­ ódio e esse desprezo recíprocos que, em todos
siderados como prodígios. Os sadu- os tempos, reinaram entre os doutores e os filó­
sofos, isto é, entre aqueles que fazem de sua
ceus, identificáveis pela sua irreligião, cabeça um repertório da ciência alheia e aque­
foram os filósofos de Jerusalém; os les que se prezam de ter uma própria. Jogai um
fariseus, grandes hipócritas, foram os contra o outro, o mestre de música e o mestre
doutores2 0 dessa cidade21. Estes, de dança do Burguês Gentil-homem, e teremos
o antiquário e o espirituoso, o químico e o
ainda que limitassem quase que toda a homem de letras, o jurisconsulto e o médico, o
geômetra e o versificador, o teólogo e o filóso­
19 Josefo: historiador judeu, autor das A n ti­ fo. Para bem julgar todas essas pessoas, basta
guidades Judaicas. — Filão, o Judeu: nascido voltar a elas mesmas e ouvir o que cada uma
em A lexandria,c. 20 d. C.; grande filósofo. (N . delas vos diz, não de si, mas das outras. (N . do
de P. A.-B.) A .) _
20 Os saduceus eram uma seita judia, favorá­ 22 Essa descrição dos primeiros tempos do
vel ao helenismo e recrutada entre os ricos. Os cristianismo é inspirada pelo protestantismo.
fariseus formavam a seita oposta; afetavam O Evangelho deve ser suficiente ao cristão que,
distinguir-se pela santidade exterior de sua caso saiba ler com os olhos do coração, pode
vida; condenaram Jesus à crucificação porque viver sem qualquer igreja. V. Profissão de Fé
ele os desmascarara. (N . de P. A.-B.) do Vigário. (N . de P. A.-B.)
DISCURSO SOBRE AS CIÊNCIAS E AS ARTES 391

com que os príncipes compreendessem puseram-se a caluniá-los. Juntaram-se


estar o Estado perdido porque as ofe­ aos padres os filósofos que r ão conse­
rendas diminuíam. Surgiram as perse­ guiram vantagens numa religião que
guições e os perseguidores só conse­ pregava a humildade. É verdade que os
guiram acelerar os progressos dessa simples tornaram-se cristãos, mas os
religião que queriam sufocar. Todos os sábios caçoavam deles e sa^e-se com
cristãos corriam para o martírio, todos que desprezo o próprio São Paulo foi
os povos queriam ir para o batismo; a recebido pelos atenienses. Choviam de
história desses primeiros tempos cons­ todas as partes os motejos e as injúrias
titui um prodígio contínuo. sobre a nova seita. Foi preciso tomar a
No entanto, os padres dos ídolos, pena para defender-se. São íustino23,
não contentes em perseguir os cristãos, o m ártir2 4, escreveu a primeira apolo-

23 São Justino: autor de uma Apologia da seus discípulos depois de longas provas e com
Religião Cristã, mártir aproximadamente em o maior mistério. Dava-lhes secretamente
165. (N . de P. A.-B.) lições de ateísmo e oferecia solenemente heca­
2 4 Esses primeiros escritores que selavam tombes a Júpiter. Os filósofos acoinodaram-se
com o sangue o testemunho de sua pena se­ tão bem a esse método, que ele rapidamente se
riam hoje autores muito escandalosos, pois espalhou na Grécia e em Roma, como se pode
sustentariam precisamente o mesmo senti­ ver pelas obras de Cícero que, coin seus ami­
mento que eu. São Justino, nas suas conversas gos, :ombava dos deuses imortais f, na tribuna
com Trifão, passa em revista as várias seitas e nas pregações, os sustentava com tanta
que outrora tentara e as torna tão ridículas que ênfase.
se creria ler um diálogo de Luciano; vê-se, A doutrina interior não foi levad i da Europa
também, na apologia de Tertuliano, com o os para a China, mas surgiu também lá com a
primeiros cristãos se sentiam ofendidos ao filosofia. A ela os chineses devem essa multi­
serem tom ados por filósofos. dão de ateus ou de filósofos que x>ssuem. A
Seria, com efeito, um detalhe muito humi­ história dessa doutrina fatal, feita por um
lhante para a filosofia a exposição das máxi­ homem instruído e sincero, seria um golpe ter­
mas perniciosas e dos dogm as ímpios das vá­ rível dado à filosofia antiga e moderna. A filo­
rias seitas. Os epicuristas negavam qualquer sofia, porém, sempre desafiará a razão, a ver­
providência, os acadêmicos duvidavam da dade e o próprio tempo, porque tem sua fonte
existência da divindade e os estóicos da imor­ no orgulho humano, mais forte do que todas
talidade da alma. A s seitas m enos célebres não essas coisas. (N . do A.)
tinham melhores sentimentos. Eis um dos frag­ * “ Ele admitiu a amizade, porque ela não está
m entos de Teodoro, chefe de um dos ramos presente nem entre os insensatos, riem entre os
dos cirenaicos, relatado por D iógenes Laércio: prudentes. . . Afirmava haver graride probabi­
“Sustulit amicitiam, quod ea neque insipien- lidade de que um homem prudente não se
tibus neque sapientibus adsit. . . Probabile arriscasse, por si mesmo, em favor de seu país.
dicebat prudentem virum non seipsum pro pa- Com efeito, a prudência não devia ser abando­
tria periculis exponere, neque enim pro insi- nada em proveito dos insensatos. O sábio,
pientium commodis amittendam esse pruden- dizia também, podia abandonar-se ao roubo,
tiam. Furto quoque et adultério et sacrilégio, ao adultério e ao sacrilégio desde o momento
cum tempestivum erit, daturum operam sa- oportuno, porquanto nenhuma dessas coisas
pientem. Nihil quippe horum turpe natura esse. era, pela sua natureza, imoral. D í tais fatos é
Sed auferatur de hisce vulgaris opinio, quae que se deve deduzir a opinião corrente, que foi
stultorum imperitorumque plebecula conflata suscitada pela populaça de loucos e de igno­
e s t. . . sapientem publice absque uílo pudere rantes, e segundo a qual o prudeite vai, sem
ac suspicione scortis congressurum qualquer pudor ou discrição, encontrar-se com
Essas opiniões são particulares,eu sei; mas as cortesãs.” D iógenes Laércio viveu, aproxi­
haveria uma só de todas as seitas que não madamente, em 270 d.C. Escrevia em grego e,
tenha caído em algum erro perigoso? E que por com odidade, Rousseau, não ousando tra­
diremos da distinção entre duas doutrinas, tão duzi-lo para o francês, o cita em latim. Era um
avidamente recebidas por todos os filósofos, e doxógrafo. Redigiu a vida de todos os filósofos
pela qual eles em segredo professavam senti­ célebres. Essa passagem é extraída da Vida de
mentos contrários àqueles que publicamente Aristipo de Cirene, filósofo do prt zer dos sen­
ensinavam? Pitágoras foi o primeiro a fazer tidos e fundador da escola cirenaica, no século
uso da doutrina interior; só a com unicava a IV a. C. (N . de P. A.-B.)
392 ROUSSEAU

gia de sua fé. Atacou-se, agora, os no altar ao lado de Jesus Cristo2 ®.


pagãos; atacá-los era vencê-los. Os pri­ A Igreja, por mais de uma vez,
meiros sucessos encorajaram outros insurgiu-se contra esses abusos. Seus
escritores. Lançaram-se na mitologia e defensores mais ilustres freqüente­
na erudição, a pretexto de exporem a mente os deploraram em termos cheios
torpeza do paganismo2 5 ; quiseram de força e de energia; freqüentemente
aparentar ciência e erudição: os livros tentaram banir toda essa ciência mun­
apareceram aos milhões e os costumes dana que lhe maculava a pureza. Um
começaram a relaxar-se. dos papas mais ilustres chegou mesmo
Logo não se contentaram mais com ao excessivo zelo de sustentar ser coisa
a simplicidade do Evangelho e da fé vergonhosa submeter a palavra de
dos apóstolos; tinha-se de ter cada vez Deus às regras da gramática.
mais espírito do que os predecessores. Mas, por mais que gritassem, leva­
Sutilizaram-se sobretudo os dogmas; dos pela correnteza, foram eles pró­
cada um quis sustentar sua opinião, prios constrangidos a conformar-se
ninguém quis ceder. Apareceu a ambi­ com a prática que condenavam e foi
ção de ser chefe de seita, em todas as com muita erudição que a maioria
partes pulularam as heresias. deles discursou contra o progresso das
O arrebatamento e a violência não ciências.
demoraram a juntar-se à disputa. Esses Depois de longas agitações, as coi­
cristãos, tão doces que só sabiam sas tomaram por fim posição mais
estender o pescoço ao cutelo, torna­ definida. Por volta do século dez, a
ram-se perseguidores furiosos, piores chama das ciências deixou de iluminar
que os idólatras; todos se atolaram nos a terra; o clero permaneceu submerso
mesmos excessos e o partido da verda­ numa ignorância que não quero defen­
de não foi sustentado com maior der, posto que não dizia menos às coi­
moderação do que o do erro. Outro sas que devia saber do que àquelas que
mal ainda mais perigoso nasceu da lhe eram inúteis, mas com ela a Igreja
mesma fonte: a introdução da antiga ganhou ao menos um pouco mais de
filosofia na doutrina cristã. À força de repouso do que até então experimen­
estudar os filósofos gregos, acreditou- tara.
se neles encontrar relações com o cris­ Após o renascimento das letras, não
tianismo. Ousou-se crer que a religião tardaram a recomeçar as divisões,
se tornaria mais respeitável se reves­ mais terríveis do que nunca. Homens
tida pela autoridade da filosofia. sábios suscitaram a disputa, homens
sábios a sustentaram e os mais capazes
Houve tempo em que era preciso ser
platônico para ser ortodoxo e pouco mostraram-se sempre os mais obstina­
faltou para que, a princípio Platão, e dos. Foi em vão que se reuniram con­
depois Aristóteles, fossem colocados claves dos doutores dos vários parti­
dos; nenhum deles para aí levou o
amor à reconciliação, nem, talvez, à
2 5 Fizeram-se censuras justas a Clemente de
Alexandria por ter afetado, nos seus escritos, 2 6 São Gregório de N isse (330-400), um dos
uma erudição profana, pouco conveniente a padres da Igreja grega, fez a síntese entre a teo ­
um cristão. Parece, no entanto, ser então justi­ logia cristã e a filosofia platônica. Santo Tomás
ficável instruir-se sobre uma doutrina contra a de Aquino (1226-1272), um dos maiores teólo­
qual tinha de defender-se. M as, quem poderá gos da Igreja do Ocidente, por sua vez, cons­
ver, sem rir, todos os trabalhos que hoje têm truiu a síntese entre o cristianismo e o aristote-
nossos sábios para esclarecer os sonhos da lismo. (N. de P. A .-B .).
mitologia? (N . de P. A.-B.)
PISCURSO SOBRE AS CIÊNCIAS E AS ARTES 393

verdade; todos só levaram o desejo de Padres, diante de meus olhos, essa


brilhar a expensas de seu adversário; ciência orgulhosa, nem es:>e fausto
cada qual quis vencer, nenhum quis indecoroso que vos desonra e me revol­
instruir-se; o mais forte impunha silên­ ta; sede, vós mesmos, tocados pela
cio ao mais fraco; a disputa sempre graça se quiserdes que eu o seja e,
terminava por injúrias e a perseguição sobretudo, mostrai-me, na vossa con­
foi seu fruto constante. Só Deus sabe duta, a prática dessa lei, cujo conteúdo
quando terminarão todos esses males. pretendeis ensinar-me. Não tendes ne­
As ciências estão florescentes hoje; cessidade de melhor sabê-la, nem de
a literatura e as artes brilham entre mais ensiná-la a mim; vosso ministério
nós. Que lucro tirou disso a religião? cumpriu-se. Nisso tudo não cabem
Perguntemo-lo a essa multidão de filó­ belas-letras ou filosofia. Assim convém
sofos que se orgulham de não possuí- seguir ou pregar o Evangelho, e assim
la. Nossas bibliotecas regurgitam de li­ seus primeiros defensores fizeram-no
vros de teologia e formigam entre nós triunfar sobre todas as na<?ões; non
os casuístas. Outrora possuíamos san­ aristotelico more28, diziam os Padres
tos e nenhum casuísta. A ciência se da Igreja, sedpiscatorio2 9.
expande e a fé enfraquece; todo mundo Sei que estou me estendendo muito,
quer ensinar a bem agir e ninguém mas acreditei não poder dispensar-me
quer aprendê-lo. Tomando-nos todos de fazer-me ouvir sobre um tema da
doutores, deixamos de ser cristãos. importância deste. Além disso, os lei­
Não, não foi com tanta arte e tam a­ tores impacientes precisam perceber
nho fausto que o Evangelho se esten­ quanto é cômoda a crítica, pois, no
deu por todo o universo e sua beleza ponto em que se ataca com uma pala­
arrebatadora penetrou nos corações.
vra, são necessárias páginas para nos
Esse livro divino, o único necessário
defendermos.
ao cristão e o mais útil de todos,
mesmo para os que não o forem, só Passo à segunda parte da resposta,
precisa ser meditado para levar à alma na qual me esforçarei para ser mais
o amor de seu autor e a vontade de rea­ breve, apesar de não encontrar nela
lizar seus preceitos. Jamais a virtude menos observações a fazer.
falou linguagem tão doce; jamais a
sabedoria mais profunda exprimiu-se 28 “N ão pelo método aristotélicc, mas com o
com tanta energia e simplicidade. Não um pescador.” (N . de P. A.-B.)
se abandona sua leitura sem se sentir 29 “ N ossa fé”, diz M ontaigne, “não é con­
melhor do que antes27. Oh! vós, quista nossa, é puro presente da liberdade de
outrem. N ão foi graças a nosso discurso ou a
ministros da lei, que nele me é anuncia­ nosso entendimento que recebemos nossa reli­
da, tende menos trabalho com ins­ gião, mas sim por autoridade e determinação
truir-me em tantas coisas inúteis. Dei­ estranha. A fraqueza de nosso julgamento,
xai todos esses livros sábios, que não mais do que a força, ajuda-nos a isso e tam ­
podem convencer-me nem impressio­ bém para tanto contribui mais a nossa
cegueira do que o nosso esclarecimento. É
nar-me. Prostrai-vos aos pés desse antes por intermédio de nossa ignorância do
Deus de misericórdia que vos encarre­ que de nossa ciência que som os uábios desse
gastes de fazer-me conhecer e amar, divino saber. N ão espanta que nossos meios
pedi para vós essa humildade profunda naturais e terrestres não possam conceber esse
conhecim ento sobrenatural e celeste. D em os-
que me deveis pregar. Não ostentai, lhe somente nossa obediência e nousa sujeição,
pois, com o está escrito: ‘Eu destruirei a sapiên­
2 7 D eclaração tom ada ao protestantismo. (N . cia dos sábios e abaterei a prudência dos
de P. A.-B.) prudentes’.” (Livro II, cap. 12.) (N. do A.)
394 ROUSSEAU

Não é das ciências, dizem-me, é do Concordo que não tenham a oportuni­


seio das riquezas que, em todos os tem­ dade. A m am o estudo. Aquele que não
pos, nasceram o ócio e o luxo. Não amasse o seu ofício seria homem bem
afirmei tampouco ter o luxo nascido tolo ou muito miserável. Vivem na
das ciências, mas que nasceram juntos mediocridade. É preciso simpatizar
e quase nunca um anda sem o outro. muito com eles, para nisso encontrar
Eis como apresentaria essa genealogia. um mérito. Uma vida laboriosa e
A primeira fonte do mal é a desigual­ moderada, vivida no silêncio da soli­
dade30: da desigualdade saíram as dão, ocupada pela leitura e pelo traba­
riquezas, uma vez que as palavras rico lho, certamente não constitui uma vida
e pobre são relativas e em todas as par­ voluptuosa e criminosa. Não, pelo
tes em que os homens forem iguais não menos, aos olhos dos homens; tudo
haverá ricos nem pobres. Das riquezas depende do íntimo. Um homem pode
nasceram o luxo e a ociosidade; do ser obrigado a levar uma tal vida e,
luxo nasceram as belas-artes e, da todavia, ter a alma bastante corrom­
ociosidade, as ciências. Em tempo pida. Aliás, que importa seja, ele pró­
algum as riquezas foram o apanágio prio, virtuoso e modesto, se os traba­
dos sábios. Por isso mesmo, o mal se lhos de que se ocupa alimentam a
torna maior. Os ricos e os sábios só ociosidade e corrompem o espirito de
servem para corromper-se mutua­ seus concidadãos? Sendo as com odi­
mente. Se os ricos fossem mais sábios dades da vida, freqüentemente, o fruto
ou se os sábios fossem mais ricos, uns das artes, nem p o r isso constituem o
seriam menos covardemente adulado­ quinhão dos artistas. Não me parece,
res, os outros gostariam menos da adu­ exatamente, que eles sejam pessoas que
lação baixa e todos, com i&so, valeriam as recusem, sobretudo aqueles que têm
mais. É o que se pode verificar pelo mais oportunidade de obter quanto
pequeno número daqueles que têm a desejam. Só trabalham para os ricos.
felicidade de ser ao mesmo tempo sá­ Segundo o rumo que as coisas vão
bios e ricos. Para um Platão na tomando, não me admirarei de ver,
opulência, para um Aristipo acredi­ qualquer dia, os ricos trabalhando
tado na corte, quantos filósofos reduzi­ para eles. E são os ricos ociosos que
dos a um capote e à miséria, agasa­ aproveitam e abusam dos fru tos de sua
lhados pela própria virtude e ignorados indústria. Ainda uma vez, não vejo
em sua solidão! Não discordo quanto como nossos artistas possam ser pes­
a haver um grande número de filósofos soas tão .simples e modestas. O luxo
muito pobres e, seguramente, muito não poderia reinar no seio duma classe
aborrecidos de o serem. Não duvido, de cidadãos sem logo imiscuir-se em
ainda, que não seja somente à pobreza todas as outras, sob várias modifica­
que a maioria deles deve sua filosofia; ções, e em todas elas determinando as
mas, se desejasse supô-los virtuosos, mesmas devastações.
seria segundo os seus costumes, que o O luxo tudo corrompe, quer o rico
povo não conhece, que esse mesmo que goza dele, quer o pobre que o cobi­
povo aprenderia a reformar os seus? ça. Não se pode dizer que constitua um
Os sábios não têm nem o prazer, nem a mal em si mesmo usar punhos de
oportunidade de reunir grandes bens. renda, uma roupa bordada e estojo
esmaltado. Mas grande mal é fazer
30 Prenúncio do Discurso sobre a Desigual­ caso dessas bagatelas, considerar feliz
dade. (N . de P. A.-B.) quem as possui e consagrar o tempo e
DISCURSO SOBRE AS CIÊNCIAS E AS ARTES 395

o trabalho, que todo homem deve a larápio que veste a libré de; uma casa
objetivos mais nobres, para pôr-se em para poder agir melhor estar prestando
situação de adquirir outros semelhan­ homenagem ao senhor da casa que
tes. Não tenho necessidade de saber rouba? Não; cobrir sua maldade com
qual o ofício daquele que se ocupa com o manto perigoso da hipocrisia não é
tais idéias para saber o julgamento que honrar a virtude, é ultrajá-la profa­
devo fazer dele. nando seus ensinamentos, é acres­
Mostrei o belo retrato que se faz dos centar a covardia e o embu ste a todos
sábios a tal propósito, e creio poder os outros vícios e impossibilitar a si
transformar em merecimento meu tal próprio toda e qualquer volta à probi­
complacência. Meu adversário é dade. Há caracteres superiores que até
menos indulgente: não somente não me no crime apresentam um ião-sei-quê
concede nada do que possa me recusar de altivo e de generoso que ainda per­
e, em lugar de condenar o mal que mite ver, no íntimo, uma centelha
acuso em nossa vã e falsa polidez, pre­ desse fogo celeste feito para animar as
fere desculpar a hipocrisia. Pergunta- almas belas. Mas a alma vil e rasteira
me se eu desejaria que o vício se mos­ da hipocrisia assemelha-se a um cadá­
trasse abertamente. Certamente eu o ver, no qual não se encontra mais nem
desejaria, pois a confiança e a estima ímpeto, nem calor, nem esperança de
renasceriam entre os bons, aprender- vida. Recorro à experiência. Viram-se
se-ia a desconfiar dos maus e a socie­ grandes celerados recolherem-se em si
dade com isso se sentiria mais segura. mesmos, acabar santamente sua car­
Prefiro que meu inimigo me ataque reira e morrer como predestinados,
frente a frente, do que me venha ferir mas ninguém até hoje viu um hipócrita
traiçoeiramente pelas costas. C o m o ! tornar-se homem de bem. Poder-se-ia,
Seria preciso juntar o escândalo ao racionalmente, tentar a conversão de
crime? Não sei; mas bem desejaria que Cartouche, mas nunca um homem pru­
não lhe juntasse a mentira. São muito dente tentaria a de Cromwel i 3 2 .
boas para os corruptos todas essas má­ Atribuí ao restabelecimento das le­
ximas que, há tanto tempo, nos prezam tras e das artes a elegância s a polidez
sobre o escândalo. Querendo-se segui- que dominam nossas mineiras. O
las rigorosamente, seria preciso dei­ autor da resposta diverge: de mim
quanto a essa afirmação, o que me
xar-se pilhar, trair, matar impune­
admira, porquanto, se ele dá tanta
mente e jamais punir alguém, pois
importância à polidez e faz tanto caso
constitui assunto bastante escandaloso
um ceierado na prisão. A hipocrisia é das ciências, não percebo qual a vanta­
gem de privar uma dessas coisas da
uma homenagem que o vício rende à honra de produzir a outra Examine­
virtude, homenagem da espécie daque­ mos, porém, as provas que apresenta;
la dos assassinos de César que se pros­ reduzem-se elas à que se segue: Em
traram a seus pés para degolá-lo com absoluto se verifica que os sábios
mais precisão. Por mais brilhante que sejam mais polidos do que os outros
seja esse pensamento, por mais autori­
dade que lhe dê o nome célebre de seu 32 Cartouche, cujo verdadeiro nome era
autor31, nem por isso é mais justo. Bourguignon, foi o célebre chefe de um bando
Poder-se-á porventura dizer de um de ladrões. Morreu na roda. C ron w ell, Prote­
tor da República da Inglaterra, a partir de
1653, foi o chefe da revolução que fez com que
31 O Duque de La Rochefoucauld. (Máximas, o Rei Carlos I perecesse no cadjifalso. (N . de
223.) (N . do A.) P. A.-B.)
396 ROUSSEAU

homens; pelo contrário, freqüente­ linguagem e as maneiras acompa­


mente o são menos; conclui-se, pois, nharem sempre, não os sábios e os
que nossa polidez não é obra das artistas, mas as ciências e as belas-ar­
ciências. tes.
Salientarei inicialmente que aqui se O autor ataca, depois, os louvores
trata menos das ciências do que da lite­ que entoei à ignorância e, acusando-
ratura, das belas-artes e das obras de me de ter falado mais como orador do
gosto; nossos letrados, ainda que se que como filósofo, descreve por sua
diga serem pouco sábios, mas tão poli­ vez a ignorância, e pode-se suspeitar
dos, tão conhecidos, tão brilhantes e de atribuir-lhe belas cores.
pretensiosos, dificilmente se reconhe­ Não lhe nego razão, mas não creio
cerão no ar aborrecido e pedante que o ter errado. Bastará uma distinção bem
autor da resposta quer que tenham. justa e verdadeira para fazer com que
Mas concedamos-lhe essa preliminar; concordemos.
concordemos, se necessário, em que os Há uma ignorância feroz3 4 e brutal
sábios, os poetas e os letrados são
todos igualmente ridículos; que os 33 Quando se trata de coisas tão gerais quan­
senhores da Academia de Belas-Artes, to os costumes e as maneiras de um povo, é
preciso tomar cuidado para não resumir-se a
os da Academia de Ciências, os da
visão a exemplos particulares. Seria um meio
Academia Francesa são pessoas gros­ de nunca descobrir as fontes das coisas. Para
seiras que não conhecem o bom-tom saber se tenho razão de atribuir a polidez à
nem os costumes da sociedade, excluí­ cultura das letras, não é preciso procurar se
das por seu ofício da companhia de este ou aquele sábio são pessoas polidas, mas
sim examinar as relações que podem existir
escol. O autor pouco ganhará com entre a literatura e a polidez, e depois ver no
isso, e nem por isso terám ais direito a seio de que povos essas coisas apareceram reu­
negar que a polidez e a urbanidade rei­ nidas ou separadas. D igo o mesmo do luxo, da
nantes entre nós sejam resultantes do liberdade e de todas as outras coisas que
bom gosto, a princípio baldeadas dos influem sobre os costumes de uma nação e
relativamente aos quais ouço, todos os dias,
antigos e espalhadas entre os povos da tantos julgamentos desprezíveis. Examinar
Europa, graças aos livros agradáveis tudo isso em ponto pequeno e em relação a al­
que são publicados em toda parte33. guns indivíduos não é filosofar, mas perder seu
Como os melhores mestres de dança tempo e suas reflexões, pois pode-se conhecer
a fundo Pedro ou Paulo e ter-se feito pequeno,
nem sempre são aqueles que melhor se progresso no conhecimento dos homens. (N.
apresentam, podemos dar ótimas li­ do A.)
ções de polidez sem querermos ou sem 3 4 Eu ficaria bastante admirado se um de
podermos ser muito polidos. Esses meus críticos, com base no elogio que faço a
comentadores enfadonhos que, segun­ muitos povos ignorantes e virtuosos, deixasse
do nos dizem, conhecem tudo dos anti­ de opor-me a lista de todos os grupos de
salteadores que infestaram a terra e que, comu-
gos, afora a graça e a finura, não dei­ mente, não eram homens sábios. D e antemão,
xaram, por via de suas obras úteis, exorto-os a não se fatigarem com essa busca, a
ainda que desprezadas, de ensinar-nos menos que a considerem necessária com o
a reconhecer as belezas que não sen­ demonstração de erudição. Se eu tivesse dito
bastar ser ignorante para ser virtuoso, não
tiam. Acontece o mesmo com esse valeria a pena responder-me e, pela mesma
deleite do comércio e com essa elegân­ razão, acreditar-me-ia inteiramente dispensado
cia dos costumes que se substituem à de responder eu mesmo àqueles que perdessem
sua pureza e que se fizeram notar em seu tempo sustentando-me o contrário. Vede o
todos os povos no meio dos quais as Timão do Sr. de Voltaire*. (N . do A.)
* O Timão do Sr. de Voltaire: panfleto de qua­
letras se consideravam como uma tro páginas, impresso pela primeira vez sob o
honra; em Atenas, Roma e na China, título: Sobre o Paradoxo de que as Ciências
em todos os lugares viu-se a polidez, a Prejudicaram os Costumes. (N . de P. A.-B.)
DISCURSO SOBRE AS CIÊNCIAS E AS ARTES 397

que nasce de um coração mau e de um tempo for, como poderá a guerra ser
espírito falso; uma ignorância crimi­ mais justa para um dos partidos sem o
nosa que alcança até os deveres da ser mais injusta para o outro? Não
humanidade, que multiplica os vícios, poderia concebê-lo. Ações menos ad­
que degrada a razão, avilta a alma e miráveis, porém mais heróicas. Certa­
torna os homens semelhantes aos ani­ mente ninguém negará a meu adver­
mais — essa a ignorância que o autor sário o direito de julgar o heroísmo,
ataca e da qual apresenta um retrato mas não pensará ele que aquilo que
bastante odioso e bastante parecido. não lhe parece admirável poderá sê-lo
Há uma outra espécie de ignorância para nós? Vitórias menos sangrentas,
razoável que consiste em limitar sua porém gloriosas; conquistas menos rá­
curiosidade à extensão das faculdades pidas, porém mais firm es; guerreiros
que se recebeu ao nascer3 5; uma igno­ menos violentos, porém mais temíveis,
rância modesta que nasce de um vivo sabendo vencer com moderação, tra­
amor pela virtude e só inspira indife­ tando os vencidos com humanidade; a
rença por todas as coisas que não honra é seu guia, a glória sua recom­
sejam dignas de encher o coração do pensa. Não nego ao autor haver gran­
homem e que não contribuam para tor­ des homens entre nós — ser-lhe-ia bem
ná-lo melhor; uma doce e preciosa fácil fornecer a prova; isso não impe­
ignorância, tesouro de uma alma pura de, porém, que os povos sejam assaz
e satisfeita consigo mesma, que põe corrompidos. Além do mais, tais coi­
toda a sua felicidade em voltar-se sas são tão imprecisas que se poderiam
sobre si mesma, tornar-se testemunha quase dizer de todas as épocas; a res­
de sua inocência e que não sente neces­ posta é impossível porque se tornaria
sidade de procurar uma falsa e vã feli­ necessário folhear bibliotecas e fazer
cidade na opinião que possam fazer de in-fólios a fim de estabelecer provas
suas luzes — essa a ignorância que pró ou contra.
louvei e que peço ao céu como punição Quando Sócrates maltratou as ciên­
do escândalo que causei aos doutos cias, não poderia, parece me, ter em
pelo desprezo que declarei dedicar às vista nem o orgulho dos estóicos, nem
ciências humanas. o ócio dos epicuristas,- nem o jargão
Que se comparem, diz o autor, a tais absurdo dos pirrônicos, porque nenhu­
tempos de ignorância e de barbárie ma dessas pessoas exisda em seu
esses séculos felizes nos quais as ciên­ tempo. Mas esse leve anacronismo não
cias difundiram p o r todas as partes a constitui desonestidade de meu adver­
ordem e a justiça. Será difícil encon­ sário ; ele empregou melhor sua vida do
trar esses séculos felizes; encontra­ que verificando datas e níío está mais
remos, com mais facilidade, outros, obrigado a saber de cor seu Diógenes
nos quais, porém, graças às ciências, a Laércio do que eu a saber o que acon­
ordem e a justiça não passaram de tece nos combates.
palavras vãs, feitas para serem impos­ Concordo, pois, que Sócrates só
tas ao povo, e nos quais a sua aparên­ pensou em salientar os vícios dos filó­
cia terá sido conservada com tanto sofos de seu tempo; mas não vejo
mais cuidado, para que tanto mais se como concluir senão dizendo que nesse
pudesse impunemente destruí-las. tempo os vícios pululavam com os filó­
Vemos, atualmente, guerras menos sofos. Respondem-me que isso se deve
freqüentes, porém mais justas. Em que ao abuso da filosofia e penso não ter
afirmado o contrário. Como! Será,
35 É já um prenúncio do relativismo kantia­ pois, preciso suprimir todas as coisas
no. (N ..de P. A.-B.) de que se abusa? Sim, sem dúvida —
398 ROUSSEAU

responderia sem hesitar — , todas as estupidez; elas pelo menos tornam-no


que são inúteis, todas aquelas cujo mais circunspecto relativamente ao
abuso mais determina o mal do que o mal que ele poderia causar, por conhe­
bem, o seu uso. cer o dano que ele próprio sofreria.
Detenhamo-nos, um instante, nesta Louvei as academias e seus ilustres
última conseqüência e evitemos con­ fundadores e com prazer repetiria o
cluir ser hoje preciso queimar todas as elogio. Quando o mal é incurável, o
bibliotecas e destruir as universidades médico aplica paliativos e proporciona
e as academias. Não faríamos senão remédios menos às necessidades do
mergulhar a Europa na barbárie e os que ao temperamento do doente. Cabe
costumes nada ganhariam com isso3 6. aos sábios legisladores imitarem sua
É com dor que pronunciarei uma gran­ prudência e, não podendo aplicar aos
de e fatal verdade. Só vai um passo do povos doentes a melhor das polícias,
saber à ignorância e, freqüentemente, dar-lhes ao menos, como Sólon, a me­
as nações estão em alternativa entre lhor polícia que eles possâm supor­
um e outro; nunca se viu, porém, um tar38.
povo que tenha se corrompido voltar à
Há, na Europa, um grande prínci­
virtude. Em vão pretenderíeis destruir
pe39 e, o que é mais importante, um
as fontes do mal; em vão subtraríeis os
cidadão virtuoso que, na pátria que
alimentos da vaidade, do ócio e do
adotou e que faz feliz, acaba de consti­
luxo; em vão, ainda, reconduziríeis os
tuir inúmeras instituições em prol das
homens a essa primeira igualdade
letras. Fez com isso coisa bem digna
conservadora da ignorância e fonte de
toda a virtude; seus corações, uma vez de sua sabedoria e de sua virtude.
corrompidos, o serão para sempre; não Quando se trata de esclarecimentos
há mais remédio, a não ser uma grande políticos, o tempo e o lugar de tudo
revolução quase tão temível quanto o decidem. Impõe-se que, em seu próprio
mal que possa curar, e que é censu­ interesse, os príncipes sempre favore­
rável desejar e impossível prever 3 7. çam as ciências e as artes. Já dei a
Deixemos, pois, as ciências e as razão disso e, no estado atual das coi­
artes adoçarem, de qualquer modo, a sas, é preciso que eles ainda as favore­
ferocidade dos homens que corrompe­ çam visando ao próprio interesse dos
ram; procuremos disfarçar prudente­ povos. Se houvesse, atualmente, entre
mente e esforcemo-nos por mudar suas nós, um monarca suficientemente limi­
paixões. Ofereçamos algum alimento a tado para pensar e agir diferentemente,
esses tigres, para que não devorem seus súditos permaneceriam pobres e
nossos filhos. As luzes do mau são ignorantes e não seriam, por isso,
menos temíveis do que a sua brutal menos corruptos. Meu adversário des­
cuidou de tirar vantagem de um exem­
3 6 “Os vícios ficariam con osco”, disse o filó­ plo aparentemente tão frisante e tão
sofo que citei, “e teríamos, além disso, a favorável à sua causa; talvez seja o
ignorância.” Nas poucas linhas escritas por tal
autor sobre esse grande assunto, vê-se que ele
voltou os olhos para esse lado, e viu longe. (N . 3 8 D essa diretriz podemos partir para toda a
do A.) futura obra política de Rousseau — não só
3 7 A irreversibilidade do processo social fir­ para o segundo Discurso, mas também para o
ma-se entre as convicções de Rousseau. N o Contrato Social. (N . de L. G. M.)
segundo Discurso, o homem corrompido pela 39 Trata-se, evidentemente, do próprio Rei
sociedade não pode voltar atrás. (N. de L. G. Estanislau, de quem Rousseau se despede com
M.) um cumprimento. (N. de L. G. M.)
DISCURSO SOBRE AS CIÊNCIAS E AS ARTES 399

único a ignorá-lo ou a não lembrar-se elogios devidos; e que, assim como


dele. Que consinta, pois, ser lembrado, nós, as admire e não se obstine mais
Que não recuse às grandes coisas os contra as verdades que ateca.
Ú l t im a R e s p o s t a
AO SR. BORDES
Ne, dum tacemus, non verecundiae sed diffidmtiae
causa tacerevideamur. — Cipriano, Contra Dernetr''.

É com extrema repugnância que me gênio e da razão. O espírito de imita­


ocupo de minhas disputas com leitores ção produziu as belas-arte:s, e a expe­
ociosos, bem pouco preocupados com riência as aperfeiçoou. Devemos às
a verdade; a maneira, porém, pela qual artes mecânicas um grande número de
acabam de atacá-la, força-me a, mais invenções úteis que aumentaram os
uma vez, tomar sua defesa, para que encantos e as comodidades da vida.
meu silêncio não seja tomado pela Eis verdades com as quais de bom
multidão como uma confissão, nem grado concordo. Mas consideremos,
pelos filósofos como desprezo.
É preciso que me repita, bem o sei, e
2 Há verdades muito exatas que, à primeira
0 público não me perdoará. Mas os sá­ vista, parecem absurdos e que sempre passarão
bios dirão: Este homem não tem neces­ por tal para a maioria das pessoas. D izei a um
sidade de procurar incessantemente homem do povo que o sol no inverno está mais
novas razões, é uma prova da solidez perto de nós do que no verão ou que se deita
antes que deixem os de vê-lo, e ele mofará de
daquelas que apresenta2. vós. A mesma coisa acontece com a opinião
Como aqueles que me atacam nunca que sustento. Os homens mais superficiais
deixam de fugir à questão e de supri­ sempre foram os mais prontos ;i tomarem par­
mir as distinções essenciais que a esse tido contra mim. Os verdadeiros filósofos
apressam-se menos e, se eu tiver tido a glória
propósito estabeleci, impõe-se sempre de fazer alguns prosélitos, isso só aconteceu no
começar por reconduzi-los até lá. Aqui seu meio. Antes de explicar-me, meditei pro­
está, pois, um sumário das proposições funda e longamente sobre meu nssunto e esfor­
que sustentei e sustentarei, enquanto cei-me por considerá-lo em todos os seus
não consultar outro interesse além da aspectos. Duvido que alguns dc meus adversá­
rios possam dizer o mesmo; pelo menos, não
verdade. observei nos que escreveram essas verdades
As ciências são a obra-prima do lum inosas, que não impressionam menos pela
sua evidência do que pela sua novidade, e que
1 “ Para que, quando nos calam os, tenhamos sempre são prova de uma meditação satisfa­
o ar de fazê-lo não por medo, mas por arrogân­ tória. Ouso dizer que jam ais me fizeram uma
cia.” São Cipriano foi bispo de Cartago, no III objeção razoável que não tivesse previsto e,
século d. C. por isso estou reduzido a redizer sempre as
(N . de P. A.-B.) m esmas coisas. (N . do A.)
402 ROUSSEAU

agora, todos esses conhecimentos em muito tiram das coisas prejudiciais e


relação aos costumes3. os bons delas obtêm pouca vantagem.
Se inteligências celestiais culti­ Se ninguém além de Sócrates tivesse
vassem as ciências, disso só resultaria feito filosofia em Atenas, o sangue de
o bem 4; digo o mesmo dos grandes ho­ um justo não teria pedido vingança
mens que são feitos para guiar os outros. contra a pátria das ciências e das
Sócrates, sábio e virtuoso, honrou a artes5.
humanidade, mas os vícios dos ho­ É problema a ser examinado, se
mens vulgares envenenam os conheci­ representaria vantagem para os ho­
mentos mais sublimes e os tornam mens possuírem a ciência, supondo-se
perniciosos às nações; os corruptos que aquilo a que eles dão esse nome o
merecesse efetivamente. Mas é uma
3 “ Os conhecim entos tornam os homens afá­ loucura pretender que as quimeras da
veis”, disse ilustre filósofo* em cuja obra sem­ filosofia, os erros e as mentiras dos
pre profunda e algumas, vezes sublime trans­
pira em todos os trechos o amor pela
filósofos possam jamais servir para al­
humanidade. Escreveu nessas poucas palavras guma coisa. Seremos sempre engana­
e, o que é raro, sem declam ação, o que jam ais dos pelas palavras? Nunca compreen­
se escreveu de tão sólido em favor das letras. É deremos que estudos, conhecimentos,
verdade: os conhecim entos tornam os homens saber e filosofia não passam de vãos
afáveis, mas a afabilidade, que é a mais agra­
dável das virtudes, é às vezes também uma fra­ simulacros erguidos pelo orgulho hu­
queza da alma. A virtude nem sempre é afável, mano e indignos dos nomes pomposos
ela sabe amar-se com severidade contra o vício que lhes dá?
e se inflama de indignação contra o crime. À medida que se difunde numa
E o Justo ao Mau Não Sabe Perdoar nação o gosto dessas frioleiras, ela
perde o amor pelas virtudes sólidas,
Um rei da Lacedemônia deu esta resposta pois é mais fácil distinguir-se pelo
bastante sábia àqueles que em sua presença lou­
vavam a extrema bondade de seu colega Carilo:
palavrório do que pelos bons costu­
“E com o poderia ele ser bom, se não sabe ser mes, posto que se está dispensado de
terrível para com os m aus?” Quod maios boni ser um homem de bem desde que se
oderint, bonos oportet esse**. Brutus absoluta­ seja um homem agradável.
mente não era um homem afável; quem ousará
dizer que não era virtuoso? Pelo contrário, há Quanto mais o interior se corrompe,
almas covardes e pusilânimes que não têm mais o exterior se resigna6. Assim,
nem fogo nem calor e que só são afáveis devi­ insensivelmente, a cultura das letras
do à indiferença que têm pelo bem e pelo mal. engendra a polidez. O gosto ainda
É essa a afabilidade que o gosto pelas letras
inspira aos povos. (N . do A.) nasce da mesma fonte. Sendo a apro­
* Este ilustre filósofo é Montesquieu. (N . de P. vação pública o primeiro prêmio dos
A. - B.) trabalhos literários, é natural que
** Montaigne, que Rousseau cita inexata­
mente, de memória, tem bem noção da ambi­
güidade da frase latina: “ Ele não poderia ser 5 Sócrates perdeu a vida por ter dito
bom, uma vez que não é mau para com os precisamente as mesmas coisas que eu. No
maus”. Ou então deste outro modo, pois Plu- processo que foi inventado contra ele, um de
tarco apresenta-o nas duas formas: “Ele tem seus acusadores pleiteou pelos artistas, o outro
de ser bom, pois que ele o é até para os maus” . pelos oradores, o terceiro pelos poetas, todos
(Ensaios, III, VII, fim.) (N . de P. A. - B.) pela pretensa causa dos deuses. Triunfaram os
4 Comparar com o Contrato Social, III, IV: poetas, os artistas, os fanáticos, os retóricos, e
“C aso houvesse um povo de deuses, ele se Sócrates pereceu. Temo ter honrado demais
governaria democraticamente. Um governo meu século ao dizer que nele Sócrates não teria
tão perfeito não convém a homens”. (N . de P. bebido cicuta. Ê preciso que se observe que eu
A.-B.) dizia isso em 1750. (N. do A.)
DISCURSO SOBRE AS CIÊNCIAS E AS ARTES 403

aqueles que deles se ocupam imaginem coisas sempre representam, umas para
meios de agradar e tais cálculos paula­ as outras, mui fiel companhia, porque
tinamente formam o estilo, aprimoram são obra dos mesmos vícios.
o gosto e difundem por todas as partes Se a experiência não concordasse
a delicadeza e a urbanidade. Todas com as proposições demonstradas, de­
essas coisas valerão, se quiserem, ver-se-iam procurar as causas particu­
como suplemento da virtude, porém ja ­ lares dessa contradição. A primeira
mais se poderá dizer que constituam a idéia dessas contradições, porém, nas­
virtude e raramente a ela se associam. ceu, ela própria, de uma loiga medita­
Haverá sempre esta diferença: aquele ção sobre a experiência8 e, para ver-se
que se torna útil, trabalha para os até que ponto as confirma, basta abrir
outros, e aquele que só pensa em tor­ os anais do mundo.
nar-se agradável, só trabalha para si. Os primeiros homens foram muito
O adulador, por exemplo, não se pre­ ignorantes. Como se ousaria dizê-los
corrompidos em épocas em que ainda
serva de nenhum trabalho para agra­
não se tinham aberto as fontes da
dar e, no entanto, só faz mal.
corrupção?
A vaidade e a ociosidade, que Na obscuridade dos antigos tempos
engendram nossas ciências, também e na rusticidade dos antigos povos,
engendraram o luxo. O gosto pelo luxo percebem-se, em inúmeros deles, virtu­
sempre acompanha o das letras e este des assaz grandes, sobretudo uma
freqüentemente àquele7. Todas essas severidade de costumes que é marca
infalível de sua pureza, a boa-fé, a
6 Jamais assisto à representação de uma
com édia de Molière sem admirar a delicadeza
hospitalidade, a justiça e, o que é
dos espectadores*. Um a palavra algo livre, muito importante, um marcado horror
uma expressão antes grosseira do que obscena, pela depravação9, mãe fecunda de
tudo fere seus castos ouvidos e não duvido de
modo algum que os mais corrompidos sejam
os mais escandalizados. N o entanto, se com pa­ 8 Importância do método empírico em RoTis-
rarmos os costumes do século de Molière com seau. Num momento em que, tocando-se a
os nossos, poder-se-ia crer que levaríamos van­ excogitação filosófica e a investigação cientí­
tagem? Quando a imaginação se macula uma fica, apenas se esboça o problema, Rousseau
vez, tudo se torna para ela objeto de escândalo. já busca uma distinção entre a experimentação
Quando não se tem nada mais de bom a não objetiva e a experiência vivida. (Cf. nota11).
ser o exterior, redobram-se os cuidados para Daí o interesse renovado que pelo nosso autor
conservá-lo. (N. do A.) vêm demonstrando alguns críticos que valori­
•Prenúncio da Carta a D ’A lem bert sobre os zam o pensamento existencialista, com o, por
Espetáculos. (N. de P. A.-B.) exemplo, Pierre Burgelin em “ La Philosophie
7 Num certo trecho, argumentaram contra de 1’Existence de J.- J. Rousse.iu”, Paris, P.
mim com o luxo dos asiáticos, graças a esse. U. F., 1952. (N . de L. G. M.)
mesmo modo de raciocinar que usam para 9 Não tenho nenhuma intenção de fazer corte
opor-me o vício dos povos ignorantes. M as, às mulheres; consinto que elas me honrem com
devido a uma infelicidade que persegue meus o epíteto de pedante, tão temidc por todos os
adversários, enganam-se até nos fatos, que nossos galantes filósofos. Sou grosseiro, abor­
nada provam contra mim. Sei, e muito bem, recido, incivil, de modo algum desejo bajula­
que os povos do Oriente não são mais igno­ dores e por isso direi a verdade bem à vontade.
rantes do que nós, mas isso não impede que O homem e a mulher são feitos, para se ama­
sejam também ocos e que escrevam quase tan­ rem e se unirem mas, a não ser essa união legí­
tos livros quanto nós. Os turcos, que entre tima, qualquer comércio de amor entre eles é
todos são os que menos cultivam as letras, uma tremenda fonte de desordens na sociedade
contavam entre eles, por volta do meio do sé­ e nos costumes. É certo que só as mulheres
culo passado, quinhentos e oitenta poetas clás­ poderiam tornar a trazer para o nosso meio a
sicos. (N . do A.) honra e a probidade. M as rejeitam das m ãos
404 ROUSSEAU

todos os outros vícios. A virtude não é, incluir um número muito grande de


pois, incompatível com a ignorância. objetos, como sempre lhes falta exati­
Ela também não é sempre sua dão em algum aspecto, estar-se-á
companheira, pois inúmeros povos muito mais seguro do que se faz
bastante ignorantes eram muito vicia­ seguindo continuamente a história de
dos. A ignorância não representa obs­ um mesmo povo e estabelecendo uma
táculo nem ao bem nem ao mal; é uni­ comparação entre os progressos de
camente o estado natural do homem1°. seus conhecimentos e as revoluções
Não se poderá dizer a mesma coisa dos seus costumes. Ora, o resultado
da ciência. Todos os povos sábios desse exame mostra que a grande
foram corrompidos e nisso já vai um época, a época da virtude, foi, para
tremendo preconceito contra ela. Mas, cada povo, a de sua ignorância e que, à
como é difícil fazer comparações de medida em que se tornou sábio, artista
povo a povo, como nelas se precisa e filósofo, perdeu seus costumes e sua
probidade, e tornou a descer, a tal res­
peito, ao nível das nações ignorantes e
da virtude um império que só querem dever a corruptas que são a vergonha da
seus encantos e só fazem o mal e, freqüente­ humanidade. Desejando-se insistir em
mente, recebem, elas mesmas, a punição dessa
encontrar diferenças, posso reconhecer
preferência. Tem-se dificuldade em conceber
com o, numa religião tão pura, a castidade uma: todos os povos bárbaros, mesmo
pôde tornar-se uma virtude baixa e monacal, aqueles que não possuem virtude, sem­
capaz de tornar ridículo todo homem e, quase pre cultuam, no entanto, a virtude,
diria, toda mulher que ousasse ostentá-la,
enquanto que, entre os pagãos, essa mesma
enquanto que, por progredirem, os
virtude era universalmente respeitada, conside­ povos sábios e filósofos chegam afinal
rada com o cabível aos grandes homens e a colocá-la em ridículo e a desprezá-la.
admirada nos seus mais ilustres heróis. Posso Quando uma nação alcança por fim
citar, entre eles, três que não ficariam atrás de
qualquer outro e que, sem imiscuir-se nisso a
esse ponto, pode-se dizer que a corrup­
religião, deram todos memoráveis exemplos de ção está no auge e que não se deve
continência: Ciro, Alexandre e o jovem Ci- mais ter esperança de remédio.
pião. Entre todas as curiosidades guardadas no
gabinete do rei, não desejaria ver senão o escu­
Esse, o sumário das coisas que afir­
do de prata que lhe foi dado pelos povos de mei e das quais creio ter apresentado
Espanha e no qual fizeram gravar o triunfo de provas. Vejamos, agora, o sumário da
sua virtude. F oi assim que tocou aos romanos doutrina que me é oposta.
submeterem os povos, tanto pela veneração de­
vida aos seus costumes* quanto pelo esforço “Os homens são naturalmente
de suas armas, e foi assim que a cidade de maus; assim o foram antes da forma­
F aliscos foi subjugada, e expulso da Itália o ção da sociedade e em todos os lugares
vencedor Pirro. aos quais as ciências não levaram sua
Recordo-me de ter lido em algum lugar uma
muito boa resposta do poeta Dryden a um
jovem senhor inglês que lhe censurava porque, 10 Não posso deixar de rir ao ver não sei
numa de suas tragédias, Cleômenes distraía-se quantos homens muito sábios, que me honram
conversando intimamente com sua amante em com sua crítica, argumentarem sempre com os
lugar de empreender alguma coisa digna de seu vícios de uma multidão de povos ignorantes,
amor. “Quando estou perto de uma beldade” , com o se isso influísse de algum modo na ques­
dizia-lhe o jovem lorde, “ sei utilizar melhor o tão. Engendrando, a ciência, necessariamente
tem po.” “Eu o creio”, respondeu-lhe Dryden, o vício, segue-se que a ignorância engendra
“mas tereis de confessar-me que não sois um necessariamente a virtude? Esses m odos de
herói.” (N . do A.) argumentar podem ser bons para retóricos ou
* Comparar com a análise e o histórico do para crianças, pelas quais se fez minha refuta­
amor sentimental, na segunda parte do D is­ ção em meu país, mas os filósofos devem
curso sobre a Desigualdade. (N . de P. A.-B.) raciocinar de outro modo. (N . do A.)
DISCURSO SOBRE AS CIÊNCIAS E AS ARTES 405

flama; os povos, abandonados somente isso e pode-se, pelo contrário, observar


às faculdades do instinto , reduzidos, que o progresso e a decadência das le­
juntamente com os leões e os ursos, a tras sempre é proporcional á fortuna e
uma vida puramente animal, permane­ ao declínio dos impérios.
ceram mergulhados na barbárie e na “ Essa verdade é confirmada pela
miséria. experiência dos últimos tempos, segun­
“ Somente a Grécia, nos antigos tem­ do a qual, numa monarquia vasta e
pos, pensou e se elevou pelo espírito 11 poderosa, a prosperidade do Estado, a
a quanto recomenda um povo. Filóso­ cultura das ciências e das artes e a vir­
fos formaram seus costumes e deram- tude guerreira concorrem ao mesmo
lhe leis. tempo para a glória e a grandeza do
“ Na verdade, Esparta foi pobre e império.
ignorante por instituição e por escolha, “ Nossos costumes são os melhores
mas suas leis apresentavam grandes que se possam ter; proscreveram-se
defeitos, seus cidadãos uma tendência inúmeros vícios de nosso meio; os que
considerável para se corromperem, sua nos restam, pertencem à humanidade,
glória foi pouco sólida, e logo perdeu sem qualquer interferência das ciên­
suas instituições, suas leis e seus cias.
costumes. “Também o luxo nada tem de
“Atenas e Roma também degenera­ comum com elas, não devendo assim
ram. Uma cedeu ao destino da Mace- ser-lhes atribuídas as desordens que
dônia; a outra sucumbiu à sua própria possa causar. Aliás, o luxo é neces­
grandeza, porque as leis de uma vilazi- sário nos grandes Estados; neles deter­
nha não podiam governar o mundo. Se mina mais bem do que mal. É útil para
aconteceu não ter por vezes a glória ocupar os cidadãos ociosos e dar pão
dos grandes impérios durado tanto aos pobres.
tempo quanto a das letras, foi por esta­ “A polidez deve ser antes computa­
rem no auge quando as letras neles se da, entre as virtudes do que entre os ví­
cultivaram e por não permanecer o cios, pois impede que os homens se
destino das coisas humanas, durante mostrem tais como são, uma precau­
muito tempo, no mesmo estado. Con­ ção bem necessária para torná-los
cordando, pois, quanto a ter influído a suportáveis uns aos outros.
alteração das leis e dos costumes nes­ “As ciências raramente atingiram o
ses grandes acontecimentos, não se objetivo que se propõem, mas, pelo
estará obrigado a convir em que as menos, o têm em mira. Avança-se a
ciências e as artes contribuíram para passos lentos no conhecimento da ver­
dade, o que não impede se façam al­
11 Rousseau manda imprimir em itálico as guns progressos nesse sentido.
duas palavras fundamentais da objeção: o ins­ “Finalmente, ainda que fosse verda­
tinto e o espirito. Desde Descartes, a tradição de que as ciências e as artes enfraque­
filosófica francesa fundamenta-se, com efeito, cessem a coragem, não seriam ainda
na distinção entre a alma e o corpo, sendo a
alma ou o espírito constituída de duas faculda­
preferíveis a essa virtude bárbara e
des, o entendimenío e a vontade; os senti­ feroz os bens infinitos que elas nos
mentos ficam compreendidos no domínio do proporcionam?” Dispenso-rne de repe­
corpo. Contra essa corrente racionalista, tir a lista inútil e pomposa desses bens,
Rousseau inaugura a reação que, separando a
afetividade do corpo, deseja fazer dela uma
e, para começar, a propósito deste últi­
terceira faculdade própria do espírito — é a mo ponto, por uma declaração ten­
ela que Rousseau dá o nome de consciência ou dente a prevenir palavras inúteis, afir­
coração. (N , de P. A.-B.) mo, de uma vez por todas, «que se algo
406 ROUSSEAU

pode compensar a ruína dos costumes, as leis da Esparta por terem tido mui­
estou pronto a convir em que as ciên­ tos defeitos, de modo que, para retor­
cias determinam mais bem do que mal. quir às-censuras que faço aos povos sá­
Voltemos agora ao que falta. bios por sempre terem sido
Eu poderia, sem grande risco, supor corrompidos, censuram-se os povos
provado quanto disse, pois, entre tan­ ignorantes por não terem atingido a
tas asserções tão afoitamente levanta­ perfeição.
das, muito poucas há que atinjam a 6.° — O progresso das letras está
questão em seu âmago e, menos ainda, sempre em proporção com a grandeza
outras de que se pudesse tirar alguma dos impérios. Seja. Constato que sem­
conclusão valiosa contra a minha opi­ pre me falam de fortuna e de grandeza.
nião, sendo que algumas dentre elas, se Eu, por mim, aludi a costumes e
porventura minha causa disso necessi­ virtudes.
tasse, até forneceriam novos argumen­ 7.° — Nossos costumes são os me­
tos em meu favor. lhores que homens maus, como nós,
Com efeito: 1.° — Se os homens são podem ter. Talvez. Proscrevemos inú­
naturalmente maus, pode suceder, caso meros vícios, não contesto. Não acuso
se queira, que as ciências produzam os homens deste século de terem todos
algum bem quando em suas mãos, mas os vícios; eles só têm aqueles próprios
é bem certo que elas então determinem às almas covardes, são apenas velha­
mais mal do que bem, pois não se deve cos e negligentes. Quanto aos vícios
fornecer armas a loucos furiosos. que exigem coragem e firmeza, consi­
2.° — Se as ciências raramente dero-os incapazes de tê-los.
atingem seu objetivo, sempre haverá 8.° — O luxo pode ser necessário
mais tempo perdido do que bem para dar pão aos pobres13, mas, se não
empregado. E, mesmo se fosse verda­ houvesse luxo, não haveria pobres1 4.
deiro que tivéssemos encontrado os Ele ocupa os cidadãos ociosos. Mas,
melhores métodos, a maioria de nossos por que existem cidadãos ociosos?
trabalhos seria ainda tão ridícula Quando a agricultura era considerada
quanto aqueles de um homem que, uma honra, não havia nem miséria
certo de seguir exatamente a linha de nem ociosidade e havia muito menos
prumo, quisesse levar um poço até o vícios.
centro da terra. 9.° — Vejo que se toma a peito
3.° — Não devemos absoluta­ essa questão de luxo e, não obstante,
mente ter tanto medo da vida pura­ finge-se querer separá-la da questão
mente animal, nem considerá-la o pior das ciências e das artes. Concordarei,
dos estados em que possamos cair,
pois ainda valeria muito mais parecer 12 Cf. Contrato Social, II, VII ; D o legislador:
com uma ovelha do que com um anjo O legislador deve ser “ uma inteligência supe­
mau. rior”, um “deus” ; não deve possuir qualquer
4.° — A Grécia deveu seus costu­ poder legislativo ou executivo; é ele que faz
nascer no povo “o espírito social” . I, II, VI:
mes e suas leis a filósofos e legislado­ “ Os particulares vêem o bem que rejeitam; o
res. Concordo. Já repeti centenas de público quer o bem que não vê. Todos pos­
vezes que é bom existirem filósofos, suem igualmente necessidade de g u ia s. . . Daí
contanto que o povo não se proponha vem a necessidade de um legislador” . (N . de P.
A.-B.)
a sê-lo12. 13 Cf. a tese de M orize, L ’A pologie du Luxe
5.° — Não ousando afirmar que au X V Ile Siècle, Paris, Didier, 1909. (N . de
Esparta não tinha boas leis, censuram P.A.-B
DISCURSO SOBRE AS CIÊNCIAS E AS ARTES 407

pois, uma vez que se deseja tão insis­ contestá-la. Os anais de todos os
tentemente, que o luxo contribui para a povos, que se ousa citar como prova,
manutenção dos estados, como as são muito mais favoráveis a uma supo­
cariátides servem para sustentar os sição contrária e seriam precisos mui­
palácios que decoram ou, então, como tos testemunhos para obrigar-me a crer
essas vigas com as quais se esteiam num absurdo. Antes que essas tremen­
construções abaladas e que, freqüente­ das palavras teu e meu tivessem sido
mente, acabam por derrubá-las. Ho­ inventadas1 7, antes que existisse essa
mens sábios e prudentes, saí das casas espécie de homens cruéis e brutais cha­
que se esteiam1 5. mados senhores, e essa oui:ra espécie
Isso pode mostrar como seria fácil de homens madraços e mem irosos que
desviar em meu favor a maioria das se chamam escravos, antes que hou­
coisas que pretendem opor-me; falan­ vesse homens suficientemente abomi­
do francamente, não as considero, náveis para ousar ter o supérfluo
porém, suficientemente contestadas enquanto outros morrem de fome,
para sentir a coragem de prevalecer-me antes que uma dependência mútua
disso. tivesse forçado todos a se tornarem
mentirosos, ciumentos e traidores —
Afirma-se que os primeiros homens gostaria bastante que me explicassem
foram maus, donde se segue que o no que poderiam consistir o:> vícios, os
homem é naturalmente m au1 6. Eis o crimes que, com tanta ênfase, lhes são
que não constitui afirmação de peque­
na monta; parece que valeria a pena 1 6 Esta nota é especial para ds filósofos;
aconselho aos demais que não a leiam. Se o
1 4 O luxo nutre cem pobres nas cidades e faz homem é naturalmente mau, por certo as ciên­
com que pereçam nos campos cem mil deles. O cias só o tornarão pior; assim, só por essa
dinheiro, que circula entre as mãos dos ricos e suposição, sua causa estará perdida. M as é
dos artistas para atender às suas superflui- preciso prestar muita atenção, pois, ainda que
dades, está perdido para a subsistência do 0 homem seja naturalmente bom, com o eu o
trabalhador; este não tem nenhuma roupa, creio e com o tenho a felicidade de pensar, não
precisamente porque os senhores precisam de se conclui daí que as ciências lhe :jejam saluta­
galões. Só o desperdício dos elementos que en­ res, pois qualquer conjuntura qus coloca um
tram na nutrição dos homens já é suficiente povo em situação de cultivá-las denuncia
para tornar o luxo odioso à humanidade. Meus necessariamente um com eço dt corrupção,
adversários devem considerar-se muito felizes rapidamente acelerado por elas. É então que o
por impedir-me, a culpável delicadeza de nossa vício da corrupção determina todo o mal que
língua, de entrar, a tal propósito, em particula­ poderia determinar o da natureza, e os maus
ridades que fariam com que ficassem envergo­ preconceitos ocupam o lugar das más tendên­
nhados com a causa que ousam defender. Pre­ cias.* (N . do A.)
cisa-se de suco na nossa cozinha e, por isso, * N ova ruptura: não se trata de alinhar argu­
falta caldo para tantos doentes. Precisa-se de mentos para refutar a afirmação de Hobbes
licores nas nossas mesas e, por isso, o cam po­ sobre a maldade natural do homem, nem tam ­
nês só bebe água. Precisa-se de pó para nossas pouco para sustentar que o homem é natural­
cabeleiras e, por isso, tantos pobres não têm mente bom, mas, sim, de desenvolver o tema
pão. (N . do A.) da corrupção do homem natural pela vida em
1 5 Nítida ruptura com o pensamento corrente sociedade. Novamente, ao segundo Discurso
das elites intelectuais do tempo: não se discute, incumbirá desenvolver tal idéia. (N . de L. G.
com o o desejariam os filósofos, se o luxo é M.)
bom ou mau, mas se formula a franca e direta 1 7 Cf. Discurso sobre a Desigualdade. “O pri­
acusação do luxo com o causa de desigualdade. meiro que, tendo cercado um terreno, pensou
E, acrescentemos, desigualdade material, ex­ em dizer — isto me pertence, e encontrou pes­
plicada em termos de apropriação, com o de­ soas bastante simples para acre<litá-lo, foi o
pois se descreverá no segundo Discurso. (N . de verdadeiro fundador da sociedade civil.” (N .
L. G. M.) de P. A.-B.)
408 ROUSSEAU

censurados. Asseguram-me que, há tes20. Ao lado, se quiserem — pois


muito tempo, já se desenganaram da que importância tem isso para mim?
quimera da idade de ouro. Por que não No entanto, Milcíades, Aristides, Te­
acrescentam, ainda, que há muito místocles, que eram heróis, viveram
tempo já se desenganaram da quimera numa determinada época, e Sócrates e
da virtude? Platão, que eram filósofos, viveram
Afirmei terem sido virtuosos os pri­ noutra. Quando se começaram a abrir
meiros gregos, antes que a ciência os escolas públicas de filosofia, a Grécia
tivesse corrompido, e não quero retra­ aviltada e degenerada já tinha renun­
tar-me nesse ponto, apesar de, obser­ ciado à sua virtude e vendido sua
vando-os mais de perto, não deixar de liberdade.
ter minhas desconfianças quanto à A soberba A sia viu suas forças
solidez das virtudes de um povo tão inumeráveis derrotadas p o r um punha­
palrador, ou da justiça dos elogios que do de homens que a filosofia conduzia
sentia tanto prazer em prodigalizar-se até a glória. É verdade, a filosofia da
e que não vejo confirmados por qual­ alma conduz à verdadeira glória, mas
quer outra testemunha. Que objetam a não é aprendida nos livros. É esse o
isso? Que os primeiros gregos, cuja efeito infalível dos conhecimentos do
virtude louvei, eram esclarecidos e sá­ espírito. Peço ao leitor que atente para
bios, pois foram filósofos que molda­ essa conclusão. Os costumes e as leis
ram seus costumes e lhes deram as leis. são a única fon te do verdadeiro heroís­
Mas, com esse modo de raciocinar, mo. As ciências aí nada têm, pois, a
quem me impedirá de dizer a mesma fazer. Em uma palavra, a Grécia tudo
coisa de todas as outras nações? Os deveu às ciências e o resto do mundo
persas não tiveram seus magos, os tudo deveu à Grécia. Nem a Grécia
assíriçs seus caldeus, os hindus seus nem o mundo nada deveram, pois, às
ginosofistas, os celtas seus druidas18? leis ou aos costumes. Peço perdão aos
Ocus não brilhou entre os fenícios, Atlas meus adversários, mas não há meio de
entre os líbios, Zoroastro entre os per­ fazer com que seus sofismas sejam
sas, Zamolxis entre os trácios19? E até aceitos.
não pretenderam muitos que a filosofia Examinemos ainda, por um momen­
to, essa preferência que se pretende dar
tivesse nascido entre os bárbaros?
à Grécia em relação a todos os outros
Seriam, pois, todos esses povos, sábios
povos e da qual parece que se fez
por esse motivo? A o lado dos Milcía-
ponto capital. Admirarei, caso se quei­
des e dos Temístocles, encontravam-se,
ra, povos que passam a vida na guerra
dizem-me, os Aristides e os Sócra-
ou nos bosques, que dormem deitados
na terra e vivem de legumes. Essa
1 8 M ago: astrólogo e sacerdote da religião de admiração, com efeito, é bem digna de
Zoroastro. G inosofism o: seita filosófica e reli­
giosa da índia. D ruida: sacerdote dos gauleses.
Os caldeus eram conhecidos por seus conheci­ 20 M ilcíades: general ateniense, vencedor dos
mentos astrológicos. (N. de P. A.-B.) persas em Maratona, no ano 490 &.C.\ Temís­
19 Ocus: cognome pessoal de certos membros tocles: general ateniense, vencedor dos persas
da dinastia fundada por Aquemens, entre os em Salam ina,em 4 8 6 a .C. ; Atenas sofreu muito
quais Artaxerxes III e Dario II. A tla s: rei fabu­ com suas rivalidades e suas concessões. A risti­
loso da Mauritânia, filho de Júpiter, transfor­ des: general ateniense que, devido à sua inte­
mado em montanha. Zoroastro ou Zaratustra: gridade, foi cognominado “o Justo” ; por inspi­
fundador do masdeísmo. Zam olxis: nome de ração de Temístocles, seu rival, foi condenado
um filósofo da Trácia. (N . de P. A.-B.) ao ostracismo. (N . de P. A.-B.)
DISCURSO SOBRE AS CIÊNCIAS E AS ARTES 409

um verdadeiro filósofo; só a um povo só se humilha e fenece. DiriE., sem difi­


cego e estúpido caberia admirar os que culdade, percorrendo as pomposas elu­
passam sua vida não defendendo sua cubrações de todas as nossas acade­
liberdade, mas roubando-se e traindo­ mias: “ Não vejo aí senão sutilezas
se mutuamente a fim de satisfazer a engenhosas, pouco conformes à digni­
sua fraqueza ou a sua ambição e que dade de nosso ser. O espírito é exerci­
ousam nutrir sua ociosidade com o tado, mas a alma escrava só se humi­
suor, o sangue e os trabalhos de um lha e fenece. Afastai as artes do
milhão de infelizes. M as será entre mundo, dizem-me noutro lugar, e que
essas pessoas grosseiras que se irá p ro ­ restará? Os exercícios do corpo e as
curar a felicidade? Com muito mais paixões? Vede, eu vos peço, como são
razão seria ela procurada aí, do que a sempre esquecidas a razão e a virtude!
virtude entre os demais. Que espetá­ A s artes deram nascimento aos praze-
culo não nos apresentaria o gênero hu­ res da alma, os únicos dignos ainda de
mano composto somente de trabalha­ nós. Ou seja, substituíram outros,
dores, de soldados, de caçadores e de muito mais dignos de nós. Acompa­
pastores? Um espetáculo infinitamente nhando-se o espírito de i:udo isso,
mais belo do que aquele do gênero hu­ encontrar-se-á, como nos raciocínios
mano composto de cozinheiros, poe­ da maioria de meus adversários, um
tas, impressores, ourives, pintores e entusiasmo tão marcado pelas maravi­
músicos. Do primeiro quadro só se lhas do entendimento, que aquela outra
deve excluir a palavra soldado. A guer­ faculdade, infinitamente mais sublime
ra, eventualmente, é um dever e não e mais capaz de elevar e de enobrecer a
deve ser considerada uma profissão. alma, nunca é levada em cor sideração.
Todo homem deve ser soldado para a Aí está o efeito infalível da cultura das
defesa da liberdade, nenhum deverá letras. Estou certo de que atualmente
sê-lo para imiscuir-se na liberdade não há um único sábio que não estime
alheia, e morrer servindo a pátria é muito mais a eloqüência de Cícero do
encargo demasiado belo para confiá-lo que seu zelo, e que não aprec ie infinita­
a mercenários. Será preciso, pois, para mente mais ter ele composto as Catili-
ser digno do nome de homens, viver nárias do que ter salvado seu país.
como leões ou como ursos? Se eu tiver É visível o embaraço de m eus adver­
a felicidade de encontrar um único lei­ sários todas as vezes que se impõe
tor imparcial e amigo da verdade, falar de Esparta. O que n lo dariam
peço-lhe que lance um olhar sobre a para que essa fatal Esparta jamais
sociedade atual e nela observe quais os tivesse existido! E eles, que pretendem
que convivem como leões e ursos, só servirem as grandes ações para
como tigres e crocodilos. Seriam erigi­ serem celebradas, a que preço não
das em virtudes as faculdades do ins­ desejariam que as de Esparta jamais o
tinto relativas à nutrição, à perpetua­ fossem. É terrível que, no meio dessa
ção e à defesa? São elas virtudes, não famosa Grécia, que não deveu como se
duvidamos, quando guiadas pela razão diz, sua virtude senão à filosofia, o Es­
e dirigidas sabiamente; são, sobretudo, tado onde a virtude foi mais pura e
virtudes, quando empregadas na assis­ durou mais longo tempo i:enha sido
tência a nossos semelhantes. Nisso não precisamente aquele em que absoluta­
vejo senão virtudes animais, pouco mente não existiram filósofos. Os cos­
conformes à dignidade de nosso ser. O tumes de Esparta sempre foram apre­
corpo é exercitado, mas a alma escrava sentados como um exemplo a toda a
410 ROUSSEAU

Grécia; toda a Grécia estava corrom­ Envergonho-me, na verdade, de saber


pida e ainda havia virtude em Esparta; essas coisas e de ver-me forçado a
toda a Grécia era escrava e somente dizê-las.
Esparta ainda era livre — é desolador. Não será menos importante a outra
Mas, por fim, a orgulhosa Esparta per­ observação. Segue-se o texto que penso
deu seus costumes e sua liberdade, dever apresentar ao leitor.
como a tinha perdido a sábia Atenas; Supondo-se que todos os Estados
Esparta acabou. Que poderei respon­ que compunham a Grécia tivessem
der a isso? seguido as mesmas leis que Esparta,
Ainda duas observações relativas a que nos teria restado dessa terra tão
Esparta e passarei a outro assunto. Eis célebre? Seu nome, apenas, teria che­
a primeira: Depois de ter estado inú­ gado até nós. Deixaria de form ar histo­
meras vezes a ponto de vencer, Atenas riadores para transmitir sua glória à
f o i vencida, é verdade, sendo surpreen­ posteridade; o espetáculo de suas tre­
dente que não o tenha sido antes, p o r­ mendas virtudes estaria perdido para
quanto a Á tica era uma região dema­ nós; po r conseguinte, ser-nos-ia indife­
siadamente aberta e que só poderia rente que tivessem existido ou não. Os
defender-se pela superioridade da numerosos sistemas de filosofia, que
sorte . Atenas deveria ter vencido por esgotaram todas as combinações p o s­
inúmeros motivos. Era muito maior e síveis de nossas idéias e que, se não
mais povoada do que a Lacedemônia. estenderam bastante os limites de
Tinha grandes rendas e muitos povos nosso espírito, ensinaram-nos pelo
eram seus tributários. Esparta não menos onde se fixavam eles; essas
tinha nada disso. Atenas, sobretudo obras-primas de eloqüência e de poesia
pela sua posição, possuía uma vanta­ que nos ensinaram todos os caminhos
gem da qual Esparta estava privada, e do coração; as artes úteis ou agradá­
que a colocava em situação de destruir veis que conservam ou embelezam a
inúmeras vezes o Peloponeso, sendo vida; enfim, a inestimável tradição dos
que só isso lhe assegurava todo o pensamentos e das ações de quantos
império da Grécia. Era um porto vasto grandes homens contribuíram para a
e cômodo, era uma marinha formi­ glória e a felicidade de seus seme­
dável devida à previdência daquele lhantes — todas essas preciosas rique­
rústico Temístocles que não sabia zas do espírito perder-se-iam para sem­
tocar flauta. Poder-se-á, pois, sur­ pre. Os séculos ter-se-iam acumulado,
preender-se com ter Atenas, possuindo as gerações ter-se-iam sucedido como
tantas vantagens, afinal sucumbido. as dos animais, sem nenhum fru to para
Mas, embora a guerra do Peloponeso, a posteridade, e não teriam deixado
que arruinou a Grécia, não tenha dado atrás de si senão uma recordação con­
glória nem a uma nem a outra das fusa de sua existência. O mundo teria
repúblicas e tenha sido, sobretudo por envelhecido e os homens teriam per­
parte dos lacedemônios, uma infração manecido numa infância eterna.
às máximas de seu sábio legislador, Suponhamos, de nossa parte, que
não deve contudo espantar que, com o um lacedemônio, impelido pelo vigor
decorrer dos tempos, a verdadeira dessas razões, tivesse querido expô-las
coragem tenha prevalecido sobre os a seus compatriotas e tentemos imagi­
recursos, nem mesmo que a reputação nar o discurso que ele poderia fazer na
de Esparta lhe tenha fornecido inúme­ praça pública de Esparta.
ros deles, que lhe facilitaram a vitória. “Cidadãos, abri os olhos e saí de
DISCURSO SOBRE AS CIÊNCIAS E AS ARTES 411

vossa cegueira. Vejo, com tristeza, que que, se não se celebrassem os grandes
só trabalhais para adquirir a virtude, homens, inútil, seria sê-lo.”
para exercitar vossa coragem e manter Aí está, creio, aproximadamente o
vossa liberdade e, no entanto, esque­ que teria podido dizer esse homem, se
ceis o dever, mais importante, de dis­ os éforos23 o tivessem deixz.do acabar.
trair os ociosos das raças futuras. Não é somente nessa pa:;sagem que
Dizei-me: para que serve a virtude, nos advertem quanto a só s:ervir a vir­
senão para causar sensação no tude para fazer com que falem daque­
mundo? Que vos terá valido ser pes­ les que a possuem. Em outro ponto,
soas de bem, quando ninguém falar de enaltecem-nos ainda os pensamentos
vós? Que importará aos séculos futu­ do filósofo, por imortais e csnsagrados
ros que vos désseis à morte nas à admiração de todos os séculos,
Termópilas21 para a salvação dos enquanto os outros vêem dusiparem-se
atenienses, se não deixais, como eles, suas idéias junto com o dia, a circuns­
nem sistema de filosofia, nem versos, tância ou o momento que as viu nas­
comédias ou estátuas?22 Apressai-vos, cer. Para três quartos dos homens, o
pois, em abandonar leis que só servem novo dia apaga a véspera sem que dela
para tornar-vos felizes; pensai somente reste o menor traço. Ah! resta dela
em fazer muito falar de vós quando pelo menos alguma coisa no testemu­
não mais existirdes e nunca esqueçais nho de uma boa consciência, nos infe­
lizes que se aliviou, nas boas ações que
21 Termópilas: célebre desfiladeiro da T essá­
lia, cujo nome significa “portas quentes”. Leô-
se praticou e na memória desse Deus
nidas, com trezentos espartanos, sacrificando- benfazejo que se serviu em silêncio.
se, conseguiu retardar a invansão de dois “M orto ou vivo ”, dizia o l>om Sócra­
milhões de persas de Xerxes e permitiu que tes, “o homem de bem jam ais esqueceu
Atenas reorganizasse sua defesa. (N . de P.
os deuses2 4.” Responder-me-ao talvez,
A.-B.)
22 Péricles possuía grandes talentos, muita
que não se quis falar dessa espécie de
eloqüencia, magnificência e gosto; embelezou pensamentos, e eu respondo que não
Atenas com excelentes trabalhos de escultura, vale a pena falar de todos os demais.
com edifícios suntuosos e obras-primas em É fácil compreender que, fazendo
todas as artes. Também, sabe D eus com o foi
elogiado pela turba de escritores. Resta, no
tão pouco caso de Esparta, não se
entanto, ainda por saber, se Péricles foi um chega talvez a mostrar maior estima
bom magistrado, pois na direção dos Estados pelos antigos romanos. Concorda-se
não se trata de erigir estátuas, mas de governar em tê-los como grandes hcmens, ape­
bem os homens. Não me divertirei expondo os sar de não fazerem senão pequenas
m otivos secretos da guerra do Peloponeso, que
determinou a ruína da república. Não verifi­ coisas. Nesse sentido, confesso que há
carei se o conselho de Alcibíades era mal ou muito tempo não se fazem senão gran­
bem fundado, se Péricles foi justa ou injusta­ des coisas. Censura-se não terem sido
mente acusado de m alversação; perguntarei verdadeiras virtudes, mas qualidades
unicamente se os atenienses se tornaram
melhores ou piores sob o seu governo; pedirei
que nomeiem alguém, entre os cidadãos, entre 23 Éforos: nome dado em Esparta a cinco
os escravos ou até entre as crianças, que, gra­ magistrados eleitos pelos cidadãos, e que
ças a seus cuidâdos, se tenha tornado um contrabalançavam a autoridade dos reis e do
homem de bem. Aí está, parece-me, a primeira senado. (N . de P. A.-B.)
função do magistrado e do soberano, uma vez
2 4 Citação da Apologia de Sócrates, de Pla­
que o meio mais rápido e certo de tornar os ho­
mens felizes não é ornamentar suas cidades tão, de acordo com a paráfrase que M ontaigne
nem mesmo enriquecè-las, mas sim torná-los dela oferece. (Ensaios, III, XII.) (N . de P.
bons. (N . do A.) A.-B.)
412 ROUSSEAU

forçadas, a sua temperança e a sua querer forçar um homem fo rte e robus­


coragem2 5. Algumas páginas depois, to a balbuciar num berço. Eis uma
confessa-se que Fabrício desprezava o frase que não deve ser nova nas cortes.
ouro de Pirro e não se pode ignorar Teria ela sido muito digna de Tibério
estar a história romana cheia de exem­ ou de Catarina de Médicis2 7 e não du­
plos da facilidade de enriquecer que vido que um e outra não tenham
tiveram aqueles magistrados, aqueles empregado algo semelhante.
veneráveis guerreiros que faziam tanto Seria difícil imaginar-se necessário
caso de sua pobreza2 6. Quanto à cora­ medir a moral com um instrumento de
gem, não sabemos que a covardia não agrimensor. Não se poderia, no entan­
pode compreender a razão e que um to, dizer que a extensão dos Estados
poltrão não deixa de fugir, mesmo seja totalmente indiferente aos costu­
certo de ser morto ao fugir? Querer mes dos cidadãos. Existe, certamente,
fa ze r com que os grandes Estados ve­ alguma proporção entre essas coisas,
nham a ter as pequenas virtudes das mas não sei se essa proporção não
pequenas repúblicas, dizem, é como seria inversa28. Aí está uma questão
importante que merece ser meditada29
2 5 “Vejo a maioria dos espíritos de meu e creio poder ela ser considerada como
tempo fazerem-se de argutos para obscurecer a ainda indecisa, malgrado o tom mais
glória das belas e generosas ações antigas, desdenhoso do que filosófico com o
dando-lhes uma certa interpretação aviltante e
inventando-lhes ocasiões e causa vãs. Que alta
qual é resolvida, neste ponto, com duas
sutileza! Dêem -m e a ação mais excelente e palavras.
pura, e provavelmente poderei encontrar para Era esta, continuam, a loucura de
sla cinqüenta intenções más. D eus sabe que
Catão; com o mau humor e os precon­
diversidade de imagens sofre, para quem dese­
ja ampliá-las, nossa vontade íntima! Os enge­ ceitos hereditários em sua fam ília, dis­
nhosos, em sua maledicência, não são mais cursou durante toda a vida, combateu
m aliciosos que asnáticos e grosseiros. O e morreu sem nada ter feito de útil para
mesmo trabalho que têm para detrair esses sua pátria. Não sei se nada fez pela pá­
grandes nom es e a mesma licença, eu os assu­
miria de boa vontade para dar-lhes um empur­
tria, mas sei que muito fez pelo gênero
rão a fim de enaltecê-los. Essas figuras raras,
escolhidas pela opinião dos sábios para o 2 7 Exemplo de dois soberanos autoritários:
exemplo do mundo, não fingiria cumulá-las de Tibério (14-37), segundo imperador romarlo,
glória — quanto permitisse minha imaginação difamado por Tácito devido a suas crueldades;
— pela interpretação e circunstância favorá­ Catarina de M édicis (1519-1589), mulher de
vel; é preciso crer que os esforços de nossa Henrique II, regente de França durante a
concepção ficam bem abaixo de seus méritos. menoridade de Carlos IX , principal respon­
O ofício dos homens de bem é pintar a virtude sável pelo massacre de São Bartolomeu. (N . de
a mais bela possível. Nem isso nos seria incon­ P. A. -B.)
veniente desde que a paixão nos arrebataria a 28 Se eu continuasse a disputar com meus
admirar tão santas formas.” N ão é Rousseau adversários, a arrogância deles me levaria por
que diz tudo isso, mas Montaigne. (Livro I, fim à indiscrição. Julgam impressionar-me
capítulo 36.) (N . do A.) com o seu desprezo pelos pequenos Estados.
2 6 Cúrio, recusando o presente dos samnitas, N ão temem que eu lhes pergunte afinal se con­
dizia preferir mandar naqueles que possuíam vém que haja Estados grandes? (N . do A.)
ouro do que possuí-lo ele próprio. Cúrio tinha 29 Rousseau dará sua resposta no Contrato
razão. Aqueles que amam as riquezas são fei­ Social, Livro III: a democracia supõe “um Es­
tos para servir e os que as desprezam para tado muito pequeno, no qual se possa reunir
mandar. Não é a força do ouro que submete os com facilidade o povo e onde cada cidadão
pobres aos ricos, mas, sim, porque, por sua facilmente conheça todos os outros” (cap. IV);
vez, eles também querem enriquecer; sem isso, “ a monarquia só é conveniente para os gran­
seriam necessariamente senhores. (N. do A.) des Estados” (cap. VI). (N . de P. A.-B.)
DISCURSO SOBRE AS CIÊNCIAS E AS ARTES 413

humano, oferecendo-lhe o espetáculo e Virgínios, os Cévolas32. Já é alguma


o modelo da mais pura virtude que ja ­ coisa, neste século em que vivemos.
mais existiu. Ensinou aqueles que Porém mais admiraria um Estado
amam sinceramente a verdadeira potente e bem governado! Um Estado
honra a saber resistir aos vícios de seu potente e bem governado! Eu também,
século e a detestar essa horrível máxi­ certamente. N o qual os cidadãos não
ma das pessoas na moda que dizem ser fossem condenados a virtudes tão
preciso fa zer como os demais. Com tal cruéis. Compreendo; é mais cômodo
máxima iriam, sem dúvida, longe, se viver numa situação em que: cada um
tivessem a infelicidade de cair em seja dispensado de ser homem de
algum bando de ladrões30. Nossos bem33. Mas, se os cidadãos desse Es­
descendentes aprenderão um dia que, tado que se admira, por qualquer infe­
nesse século de sábios e de filósofos, o licidade se vissem obrigados a renun­
mais virtuoso dos homens foi atirado ciar à virtude ou a praticar tais
ao ridículo e tratado como louco, por virtudes cruéis, e tivessem coragem
não ter querido macular sua grande para cumprir seu dever, isso consti­
alma com os crimes de seus contempo­ tuiria uma razão para admirá-los
râneos, por não ter querido ser um menos?
celerado com César e os outros bandi­ Tomemos o exemplo que n a is revol­
dos de seu tempo. ta nosso século e examinemos a condu­
Acabamos de ver como os nossos ta de Bruto, magistrado soberano,
filósofos falam de Catão. Vamos ver mandando matar seus filhos que ti­
como falavam dele os antigos filóso­ nham conspirado contra o Estado num
fos. Ecce spectaculum dignum ad quod momento crítico, quando pouco se pre­
respiciat intentus operi suo Deus. Ecce cisava para subvertê-lo. É ce*to que, se
par Deo dignum, vir fo rtis cum mala lhes tivesse concedido graçà, seu cole-
fortuna compositus. Non video, in-
quam, quid habeat in terris Júpiterpul- 32 Bruto instituiu em Roma a República,
chrius, si convertere animum velit, expulsando os Tarqiiínios: tendo seus filhos
conspirado para restabelecer estes últimos no
quam ut spectet Catonem, ja m parti­ poder, Bruto, na qualidade de cônsul, conde­
bus non semel fractis, nihilominus nou-os à morte e presidiu à sua execução. Um
inter ruinas publicas erectum 31. de seus descendentes tornou-se célebre na luta
Aqui está o que, noutro ponto, nos contra César, tendo participado du seu assassi­
nato. D écio: nome de três romanos que se
dizem dos primeiros romanos: Adm iro devotaram aos deuses infernais para assegurar
os Brutos, os Décios, as Lucrécias, os a vitória dos exércitos romanos. Lucrécia
matou-se de desespero por ter sido violada por
30 No texto francês, Cartouchiens: bando­ um filho de Tarqüínio, o Soberbo: esse aconte­
leiros célebres do fim do século XVII, assim cimento determinou o estabelecimento da
chamados devido ao nome de seu chefe, Car­ república em Roma (50 a.C.). Virgínio: centu-
touche. (N . de P. A.-B.) rião que matou a filha para subtra-la às inves­
31 “ Eis um espetáculo que merece ser con­ tidas de um decênviro, o que ceterminou a
templado por D eus, quando ele se voltar para queda deste. M úcio C évola, isto é, o canhoto,
sua obra. Eis o igual de Deus: um homem tendo malogrado no atentado contra o rei
corajoso, preparado para a luta contra o desti­ etrusco que cercava Roma, co lo c o u 'a mão
no mau. Não conheço nada de mais belo, digo, direita num braseiro ardente a fim de puni-la
para Júpiter, nesta terra, caso queira voltar sua por ter-se enganado. (N. de P. A.-B.)
atenção para ela, do que olhar Catão que, ape­ 33 O C ontrato Social basear-se-á nessa idéia
sar de seu partido ter sido inúmeras vezes de que a regeneração do indivíduc corrompido
despedaçado, continua de pé no meio das ruí­ só pode processar-se por uma estreita obe­
nas públicas.” (Sêneca, D a P rovidência, II.) diência à vontade gerai: a vida sccial impõe a
(N . de P. A.-B.) moralidade interior. (N. de P. A .-E .)
414 ROUSSEAU

ga infalivelmente teria salvado todos a república de Atenas era bastante rica


os outros cúmplices e a república esta­ para dispensar somas imensas com
ria perdida. Que importa? — dir-me- seus espetáculos e para pagar muito
ão. Se é indiferente, suponhamos, pois, bem autores, comediantes e até espec­
que tivesse acontecido'e, tendo Bruto tadores. Foi nesse tempo que não se
condenado à morte algum malfeitor, o teve dinheiro para defender o Estado
culpado lhe falasse assim: “Cônsul, contra os empreendimentos de Filipe.
por que me fazes morrer? Terei feito Chegam, por fim, aos povos moder­
pior do que trair minha pátria? e não nos e não me darei ao trabalho de se­
sou também teu filho?” Gostaria que guir os raciocínios que julgam opor­
se dessem ao trabalho de dizer-me o tuno fazer sobre esse assunto.
que Bruto poderia ter respondido. Observarei unicamente que constitui
Bruto, dir-me-ão, deveria ter abdi­ vantagem pouco honrosa a que se
cado do consulado em lugar de fazer obtém sem refutar as razões do adver­
seus filhos perecerem. E eu digo que sário mas, sim, impedindo-o de dizê-
todo magistrado que, em circunstância las.
tão perigosa, esquece o zelo pela pátria Não acompanharei também as refle­
e abdica da magistratura, é um traidor xões que se dão ao trabalho de fazer,
que merece a morte. sobre o luxo, a polidez, a admirável
Não há meio-termo: era preciso que educação de nossos filhos3 5; sobre os
Bruto fosse um infame ou que as cabe­ melhores métodos para ampliar nossos
ças de Tito e de Tibério tombassem, conhecimentos, a utilidade das ciên­
por sua ordem, sob os machados dos cias e o deleite das belas-artes, e sobre
litores. Com isso não quero dizer que outros pontos, a maioria dos quais
muita gente se decidisse como ele. nenhuma relação tem comigo, sendo
Embora não se decidam aberta­ que alguns chegam até a refutar-se
mente pelos últimos tempos de Roma,
deixam entender que os preferem aos 3 4 Se Tito não tivesse sido imperador, nunca
primeiros e têm tanto trabalho para teríamos ouvido falar dele, pois teria conti­
perceber os grandes homens, através nuado a viver como os demais. Só se tornou
da simplicidade desses, quanto o tenho homem de bem quando, deixando de receber o
exemplo de seu século, teve oportunidade de
eu próprio para perceber pessoas de
dar um outro melhor. P rivatus atque etiam sub
bem na pompa dos outros. OpÕem Tito patre príncipe, ne odio quidem , nedum vitupe-
a Fabrício; omitem, porém, a diferença ratione publica, caruit. (Suetônio, Vida de
de que no tempo de Pirro todos os Tito, cap. I.) A t illi ea fa m a p ro bono cessit,
romanos eram Fabrícios, enquanto conversaque est in m axim as laudes. (Id., cap.
VII.)* (N. do A.)
que, sob o reinado de Tito, somente ele * “Como mero particular, enquanto seu pai
era homem de bem3 4. Esquecerei, caso era imperador, não deixou de atrair sobre si o
queiram, as ações heróicas dos primei­ ódio e, com muito mais razão, a reprovação
ros romanos e os crimes dos últimos, pública.” (Suetônio, Vida de Tito, cap. I.)
mas o que não poderia esquecer é ser a “Mas perdeu tal reputação e passou a ter a de
um homem de bem, suscitando os maiores elo­
virtude glorificada por uns e despre­ gios.” (Id., cap. VII.) Tito, filho de Vespasiano,
zada por outros, e que, enquanto havia imperador romano de 79 a 81 d. C., tinha por
coroas para os vencedores dos jogos hábito dizer: “Perdi meu dia”, quando passava
do circo, não existia nenhuma para um dia sem encontrar ocasião de fazer o bem
ou de conceder uma graça. Fabrício, cônsul
aquele que salvava a vida de um cida­ em 282 a. C., celebrizou-se pela simplicidade
dão. Não se creia, contudo, que tal seja de seus costumes, pela sua probidade e desinte­
peculiar a Roma. Tempo houve em que resse. (N. de P. A.-B.)
DISCURSO SOBRE AS CIÊNCIAS E AS ARTES 415

entre si. Contentar-me-ei ainda com povos da Nigrícia3 6, asseguro que


citar alguns trechos tomados ao acaso levantaria, na fronteira do país, um
e que me pareceram necessitar de patíbulo no qual mataria sem miseri­
esclarecimentos. Será preciso que eu córdia o primeiro europeu que ousasse
me limite a frases, na impossibilidade penetrar nele e o primeiro c idadão que
de seguir raciocínios cujo fio não pude tentasse de lá sair3 7. A américa não
apreender. nos oferece espetáculos menos vergo­
Pretende-se que as nações ignoran­ nhosos para a espécie humana. Sobre­
tes que tiveram idéias de glória e de tudo depois que os europeus aí estão.
virtude são exceções singulares, que Entre cem p o vo s bárbaro .? ou selva­
não podem contribuir para qualquer gens em ignorância, encontraremos um
preconceito contra as ciências. Muito único virtuoso. É verdade: encontra­
bem, mas todas as nações sábias, com remos pelo menos um, mas jamais se
suas belas idéias de glória e de virtude, viram povos virtuosos cultivadores das
perderam sempre o amor por elas e a ciências. A terra deixada inculta não é
sua prática. Tal coisa acontece sem inútil; produz venenos e nutre mons­
exceções. Passemos a prová-lo. Para tros. Aí está o que ela começa a dar
nos convencermos disso, lancemos os naqueles lugares em que o gosto das
olhos sobre o imenso continente da artes frívolas fez com que se abando­
A /rica, no qual nenhum m ortal é nasse o gosto pela agricultura. Nossa
suficientemente afoito para penetrar ou alma, poder-se-á também clizer, não é
suficientemente afortunado para ter de modo algum inútil quando a virtude
feito tal tentativa impunemente. Assim, a abandona; produz ficções, romances,
por não termos podido penetrar no sátiras, versos, nutre vícios.
continente da África, por ignorarmos o Se os bárbaros realizaram conquis­
que lá se passa, levam-nos a concluir tas, é porque eram muito injustos. Que
que seus povos são carregados de ví­ éramos nós, então, pergunto-vos, quan­
cios. Mas, se tivéssemos encontrado o do conquistamos a América, feito que
meio de levar nossos vícios até lá, é tanto admiram? Mas, a que: ponto pes­
soas que possuem canhões, cartas
que deveríamos concluir desse modo.
marinhas e bússolas podem cometer
Se eu fosse chefe de qualquer um dos
injustiças! Dir-me-ão que o aconteci­
mento assinala o valor dos conquista­
3 5 Não se deve perguntar se os pais e os
professores não terão o cuidado de afastar dos
dores? Assinala somente a sua astúcia
olhos de seus filhos e de seus alunos minhas e habilidade, mostra que um homem
obras perigosas. Que indecência não seria se esperto e sutil pode obter, com seu
essas crianças tão bem-educadas passassem a engenho, o sucesso que um homem
desprezar coisas tão belas e a preferir prazero­ bravo só atinge com seu valor. Fale­
samente a virtude ao sab er! Tal coisa me lem­
bra a resposta de um preceptor lacedemônio, a
mos sem parcialidade. Quem julga-
quem, por caçoada, perguntaram o que ensi­
nava a seu aluno: “ Ensino-o”, disse ele, “ a 3 6 Nigrícia: o Níger e, por extensão, o con­
amar as coisas honestas*”. Se eu encontrasse junto de todos os povos negros da África. (N .
entre nós um homem tal dir-lhe-ia no ouvido: de P. A.-B.)
“Tende cuidado de não fàlar assim, pois ja ­ 37 Perguntar-me-ão, talvez, q u il o mal que
mais teríeis discípulos; dizei, pelo contrário, pode fazer ao Estado um cidadão que de lá sai
que o ensinais a palrar agradavelmente e asse­ para não tornar a voltar. Faz rral aos outros
guro-vos a fortuna” . (N. do A.) pelo mau exemplo que dá, e a si mesmo pelos
* Citação de Plutarco. Essa nota inteira anun­ vícios que vai procurar. De qualquer modo, é a
cia a reforma pedagógica que será instituída Lei que deve prevenir tal coisa; é preferível que
no Emílio. (N. de P. A.-B.) seja enforcado a ser mau. (N. do A.)
416 ROUSSEAU

ríamos mais corajoso: o odioso Cortez cidades39. Em verdade, tais como peço
subjugando o México à força de pólvo­ que sejam, assemelhar-se-ão bastante
ra, perfídia e traições, ou o infortunado aos animais e, tais como são, asseme­
Guatemozin38, estendido sobre car­ lham-se bastante aos homens.
vões ardentes por honestos europeus O estado de ignorância é um estado
desejosos de obter seus tesouros, ex­ de medo e de necessidade; tudo é,
probrando um de seus funcionários de então, perigo para nossa fragilidade. A
quem o mesmo tratamento arrancava morte ronda sobre nossas cabeças,
alguns queixumes e dizendo-lhe orgu­ esconde-se na erva que calcamos com
lhosamente: “ E eu, estou sobre rosas?” os pés. Quando tudo se teme e se tem
D izer que as ciências nasceram da necessidade de tudo, qual a disposição
ociosidade é, visivelmente, abusar dos mais razoável do que querer tudo
termos; elas nascem do lazer, mas pre­ conhecer? Basta considerar as inquie­
servam da ociosidade. Assim um tações contínuas dos médicos e dos
homem que, à borda de uma grande anatomistas sobre a sua vida e sua
estrada, se distraísse atirando em ca­ saúde para verificar se os conheci­
minhantes, poderia dizer que ele em­ mentos servem para tranqüilizar-nos
pregava o seu lazer garantindo-se con­ quanto a nossos perigos. Como os
tra a ociosidade. Não compreendo essa conhecimentos descobrem sempre
distinção entre o lazer e a ociosidade, muito mais perigos do que meios para
mas estou bem certo de que nenhum nos garantirem contra eles, não é de
homem honesto jamais poderá gabar- espantar que só contribuam para au­
se de ter lazer enquanto tiver alguma mentar nossos alarmas e tornar-nos
coisa de bem para fazer, uma pátria pusilânimes. Os animais, a esse respei­
para servir e infelizes para socorrer; to, vivem em profunda segurança e não
desafio, ainda, que me mostrem, em se sentem pior por isso. Uma vitela
meus princípios, qualquer sentido ho­ não tem necessidade de estudar botâ­
nesto a que possa ser aplicada a pala­ nica para aprender a escolher o seu
vra lazer. O cidadão cujas necessi­ feno e o lobo devora a presa sem pen­
dades o prendem à charrua não está sar em indigestão40. Para responder a
mais ocupado do que o geômetra ou o isso, ousar-se-á tomar o partido do ins­
anatomista. Não mais do que a,criança tinto contra a razão? É precisamente o
que constrói um castelo de cartas, que eu desejo.
porém, mais utilmente. A pretexto de Parece, dizem-nos, que há um núme­
ser o pão necessário, impor-se-á que ro excessivo de trabalhadores e que se
todo o mundo passe a trabalhar a teme que faltem filósofos. Perguntarei,
terra? Por que não? Que passem
mesmo, caso necessário; gostaria mais 39 Rousseau ultrapassa seu pensamento,
de ver os homens comerem ervas nos com o, aliás, sói freqüentemente acontecer num
tal assunto. A expressão empregada por ele,
campos do que se entredevorarem nas neste ponto, espalhoq-se rapidamente e foi
vivamente criticada. Rousseau mudará de opi­
38 Cortez (1485-1547), capitão espanhol, nião na Carta a Philopolis.
conquistou o M éxico. Guatemozin, último 40 Esse argumento, que tende a opor o auto­
imperador indígena do M éxico, enforcado em matismo, a inconsciência e o finalismo do ins­
1522 por ordem de Cortez; antes da execução, tinto à liberdade e à inteligência da consciên­
infligiram-lhe o suplício reiatado por Rous1 cia, tornara-se tradicional desde a Procura da
seau. Verdade de Malebranche (1674).
DISCURSO SOBRE AS CIÊNCIAS E AS ARTES 417

de minha parte, se temem que faltem têm o espírito ambíguo ou a cons­


indivíduos para exercer as profissões ciência empedernida, nunca a leitura
lucrativas. Como se conhece mal o poderá servir-lhes para alguma coisa.
império da cupidez! Tudo, desde nossa Enfim, quaisquer que sejam os ho­
infância, nos força a condições úteis. E mens, só lhes são necessários os livros
que preconceitos não se terão de ven­ de religião, os únicos que nunca
cer, de que coragem não se carecerá, condenei.
para não ser mais do que um D escar­ Pretendem fazer-nos lastimar a edu­
tes, um Newton, um L o c k e ! cação dos persas. Notai que é Platão
Leibniz e Newton morreram cheios que pretende isso. Acreditei proteger-
de bens e de honrarias, e mereceriam me com a autoridade desse filósofo,
ainda muitas outras. Poderíamos dizer mas vejo que nada poderá defender-me
que foi por moderação que não se ele­ contra a animosidade de meus adver­
varam até o arado? Conheço suficien­ sários. Tros Rutulusve f u a t 42, prefe­
temente o império da cupidez para rem eles estraçalhar-se uns aos outros
saber que tudo nos leva às profissões do que me dar o menor quartel, e cau­
lucrativas; eis por que digo que tudo sam mais mal uns aos outros do que a
nos distancia das profissões úteis. Um m im 43. Essa educação era, dizem,
Hébert, um Lafrenaye, um Dulac, um fundam entada em princípios bárbaros;
M artin41 ganham, num dia, mais porque se dava um professor para o
dinheiro do que todos os trabalhadores exercício de cada virtude, cinda que a
de uma província poderiam ganhar virtude seja indivisível, porque se trata­
num mês. Poderia propor um pro­ va de inspirá-la e não de ensiná-la, de
blema muito curioso sobre este trecho fa ze r com que se gostasse de sua pátria
de que ora me ocupo. Seria, separando e não de demonstrar sua teoria. Quan­
as duas primeiras linhas e lendo-as iso­ tas coisas não teria que responder!
ladas, adivinhar se são extraídas de Mas não se deve fazer ao leitor a injú­
meus escritos ou dos de meus adversá­ ria de tudo dizer-lhe. Contentar-me-ei
rios. com duas observações. A primeira
Os bons livros são a única defesa dizendo que quem deseja educar uma
dos espíritos fracos, isto é, das três criança não começa por dizer-lhe que
quartas partes dos homens, contra o se deve praticar a virtude, pois não
contágio do exemplo. Em primeiro seria compreendido; ensina-o a ser ver­
lugar, os sábios jamais escreverão tan­ dadeiro e, depois, a ser sóbrio e,
tos livros quantos são os maus exem­ depois, a ser corajoso, etc. e enfim,
plos dados por eles. Segundo, haverá ensina-lhe que se dá o nome de virtude
sempre mais livros maus do que bons. ao conjunto de todas essas coisas. A
Terceiro, os melhores guias que as pes­
soas de bem possam ter são a razão e a 42 “Que ele seja troiano ou rútulo.” (Virgílio,
consciência. Paucis est opus litteris ad Eneida.)
43 Passa pela minha mente um novo projeto
mentem bonam. Quanto àqueles que de defesa e não prometo que não tenha a fra­
queza de um dia executá-lo. Essa defesa
41 Indubitavelmente trata-se de intendentes compor-se-á somente de razões extraídas de
gerais. O rei conferia-lhes a coleta dos im pos­ filósofos; seguir-se-á daí que, se acharem más
tos indiretos; alcançavam proveitos conside­ as razões, é porque foram uns tagarelas com o
ráveis e mostravam-se de uma impiedade é minha opinião, e, se forem consideradas
rigorosa. boas, ganharei a causa. (N. do A.)
418 ROUSSEAU

segunda diz que somos nós que nos ciências não têm, pois, suas fon tes nos
contentamos com demonstrar a teoria, nossos vícios. Nossas ciências têm,
mas que os persas ensinam a prática. pois, fontes em nossos vícios. Não são,
Vede meu Discurso, página 15, nota 2. pois, todas elas nascidas do orgulho
Todas as censuras que fazem à filo ­ humano. Já dei, atrás, minha opinião a
sofia atingem o espírito hum ano. . . esse respeito. Declamação vã que não
Concordo. Ou, antes, ao autor da natu­ pode iludir senão espíritos prevenidos.
reza, que nos f e z tal como somos. Se Não sei responder a isso.
ele nos fez filósofos, para que tanto Falando-se dos limites do luxo, pre­
trabalho a fim de nos transformarmos tendem que, nesse assunto, não se deve
em filósofos? Os filósofos eram ho­ raciocinar partindo-se do passado para
mens e se enganaram; dever-se-á sur­ chegar ao presente. Quando os homens
preender-se com isso? Deveremos sur­ andavam completamente nus, aquele
preender-nos quando eles não se que primeiro resolveu calçar uns ta­
enganarem mais. Lastimemo-los, apro­ mancos passou por voluptuoso; de sé­
veitemo-nos de seus erros e corrijamo- culo a século não se deixou de gritar
nos. Sim, corrijamo-nos e não filoso­ contra a corrupção, sem compreender
femos mais. M il caminhos conduzem o que se desejava dizer.
ao erro, um único à verdade. . . Aí É verdade que, até nosso tempo, o
está precisamente o que eu dizia. Será luxo, ainda que reinando sempre, fora
preciso fic a r surpreso, p o r tantas vezes pelo menos considerado, em todas as
ter-se escarnecido dela e que ela tenha épocas, como a fonte funesta de uma
sido descoberta tão tarde? A h ! final­ infinidade de males. Ficava reservado
mente a encontramos. ao Sr. M elon44 o ser o primeiro a
Citam-nos um julgamento de Sócra­ publicar essa doutrina envenenada,
tes que trata não dos sábios mas dos cuja novidade granjeou-lhe mais sectá­
sofistas, não das ciências, mas do rios do que a solidez de suas razões.
abuso que se pode fa zer delas. Que Não temo ser o único a combater,
mais pedir àquele que sustenta que neste meu século, essas odiosas máxi­
todas as ciências não passam de abu­ mas que só tendem a destruir e aviltar
sos e que todos os nossos sábios são a virtude e a fazer ricos e miseráveis,
verdadeiros sofistas? Sócrates era isto é, a sempre fazer maus.
chefe de uma seita que ensinava a Crêem embaraçar-me terrivelmente
duvidar. Eu diminuiria de muito minha perguntando-me até onde se deve limi­
admiração por Sócrates se acreditasse tar o luxo. Minha opinião é que abso­
ter ele tido a tola vaidade de ser chefe lutamente não se precisa dele. Para
de seita. E ele, com justiça, censurava além da necessidade física, tudo é fonte
o orgulho daqueles que pretendem do mal. A natureza já nos dá muitas
tudo saber. Isto é, o orgulho de todos necessidades e, no mínimo, represen­
os sábios. A verdadeira ciência está tará enorme imprudência multiplicá-
bem longe de ser afetação. É verdade, las sem necessidade e colocar, dessa
mas é da nossa que falo. Sócrates é maneira, a alma em dependência ainda
nesse ponto, testemunho contra si maior. Não é sem razão que Sócrates,
mesmo. Isso me parece difícil de enten­ olhando a exposição de uma loja, feli­
der. O mais sábio dos gregos não cora­ citava-se de nada ter a ver com tudo
ria po r sua ignorância. O mais sábio
dos gregos nada sabia de sua própria 44 Ensaio político sobre o com ércio, 1736.
opinião; concluí quanto aos outros. A s (N . do P. A. - B.)
DISCURSO SOBRE AS CIÊNCIAS E AS ARTES 419

aquilo. Apostamos cem contra um mento que, de modo algum, devesse à


quanto à culpabilidade do primeiro arte sua força e solidez, somente a ver­
homem que calçou tamancos, a menos dade, a quem o consagrei, tem o direito
que ele sofresse dos pés. Quanto a nós, de torná-lo forte e, se mais uma vez re­
já nos vemos demasiadamente cons­ vido os golpes que lhe desferem, defen­
trangidos a usar sapatos, para não ser­ do-o mais por respeito próprio do que
mos dispensados de ter virtude. para prestar-lhe socorro de que não
Já afirmei, em outro lugar, que não necessita.
me propunha a abalar a sociedade Que me seja permitido, ao terminar,
atual, a queimar as bibliotecas e todos protestar dizendo ter sido somente o
os livros, a destruir os colégios e as amor à humanidade e à virtude que me
academias, e devo acrescentar, aqui, fez romper o silêncio, e que a amar­
que não pretendo também reduzir os gura de minhas invectivas contra os ví­
homens a se contentarem unicamente cios, dos quais sou testemunha, não
com o necessário. Sei, muito bem, que nasce senão da dor que me inspiram e
não se deve acariciar o projeto quimé­ do ardente desejo que tenhD de ver os
rico de fazer com isso pessoas de bem, homens mais felizes e, sobretudo, mais
mas achei-me na obrigação de dizer, dignos de ser felizes.
sem rebuços, a verdade que me pergun­
taram. Vi o mal e procurei encontrar 4 6 Asseguram-me que o Sr. Gaatier deu-me a
as suas causas; outros mais espertos honra de replicar-me, embora eu não lhe tives­
ou mais insensatos poderão achar o se respondido e até explicado as razões pelas
remédio. quais não o fazia. Parece que o Sr. Gautier não
achou essas razões boas, uma vez que se dá ao
Estou cansado, e descanso a pena trabalho de refutá-las. Bem vejo que é preciso
para não mais retomá-la nesta disputa ceder ao Sr. Gautier e convenhc sinceramente
demasiado longa. Sei que um número que errei ao não lhe responder; eis-nos, pois,
muito grande de autores45 aplicou-se de acordo. Sinto não poder reparar minha
falta, pois, por infelicidade, não' é mais tempo
em refutar-me; estou muito aborrecido disso e ninguém saberia do que estaria eu tra­
por não poder responder a todos, mas tando*. (N . do A.)
acredito ter mostrado, por intermédio * Borde, que provocou esta “ Fesposta” com
daqueles que escolhi4 6 para isso, que um discurso pronunciádo perante a Academ ia
não é o medo que me detém em relação de Lião em 175 1, e impresso em 1752, voltaria
aos demais. à carga no ano seguinte com novo discurso
cuja novidade, segundo Petitain, é nula, pois
Esforcei-me por erigir um monu- apenas repisa o que já dissera. Não obstante, a
nota de Rousseau parece antes referir-se a
4 5 Há até pequenos escritos críticos feitos qualquer intriga miúda e gratuita do que à
para o divertimento dos jovens, nos quais me nova investida de Borde. Assim , esta réplica
dão a honra de lembrarem-se de mim. Não os que se chamou “última” , porque Rousseau não
li e seguramente não os lerei, mas nada me im­ desejava mais voltar ao assunto — o que,
pede de dar-lhes a importância que merecem e aliás, não conseguiu fazer — , acabou por ser,
não duvido, de modo algum, que tudo isso seja em verdade, a última (e única) resposta a
muito divertido. (N . do A.) Borde. (N . de L. G. M.)
C a rta d e J e a n -Ja cq u es R o u ssea u

sobre uma nova refutação de seu Discurso por um Acadêmico de Dijon

Acabo de ver, senhor, uma brochura eqüidade de meus juizes, confesso que
intitulada Discurso que recebeu o prê­ não o estou menos com a indiscrição
mio da Academ ia de Dijon em 1750, de meus adversários: como ousam
etc., acompanhado po r uma refutação demonstrar tão de público o mau
a esse discurso, feita po r um A cadê­ humor causado pela honra que recebi?
mico de Dijon que lhe recusou o seu Como não percebem o dano irrepa­
su frágio\ e pensava, percorrendo esse rável que, com isso, fazem à sua pró­
trabalho, que, em lugar de baixar ao pria causa? Que não se iluc.am pen­
ponto de fazer-se editor de meu D is­ sando que alguém se vai enganar
curso, o acadêmico, que lhe recusou o quanto ao motivo de sua mágoa; se
seu sufrágio, deveria antes ter publi­ estão aborrecidos por ter sido meu
cado a obra a que teria concedido o Discurso laureado, não é por ser mal­
prêmio — tal seria uma excelente feito, pois todos os dias são premiados
maneira de refutar o meu. outros tão maus quanto esse e eles
Aí está, pois, um de meus juizes que nada dizem, mas sim por outro motivo,
não se recusa a tornar-se meu adver­ que atinge mais de perto a sua profis­
sário e que acha bastante mau terem- são e não é difícil de perceber. Bem
me honrado seus colegas com o prê­ sabia que as ciências corrompiam os
mio. Confesso que eu mesmo me costumes, tornavam os homens injus­
surpreendi com o prêmio; esforcei-me tos e ciumentos, e levavam-ncs a sacri­
por merecê-lo, mas nada fiz para obtê- ficar tudo ao seu interesse e à sua gló­
lo. Aliás, embora eu soubesse não ado­ ria vã; acreditei, porém, que tal coisa
tarem os acadêmicos as opiniões dos se fazia com um pouco mais de decên­
autores que premiam, e que o prêmio cia e de habilidade. Via que os letrados
não é conferido àquele que se crê ter aludiam incessantemente à eqüidade, à
sustentado a melhor causa, mas àquele moderação, à virtude e, sob a salva­
que falou melhor, mesmo supondo-me guarda sagrada dessas belas palavras,
nesse caso, estava bem longe de espe­ se entregavam impunemente às suas
rar de uma academia essa imparcia­ paixões e vícios; jamais acreditei,
lidade da qual nem sempre os sábios porém, que tivessem a audácia de cen­
fazem uso nas ocasiões em que se trata surar publicamente a imparcialidade
de seus interesses. de seus confrades. Em todos os luga­
Mas, se fiquei surpreendido com a res, a glória dos julgadores consiste em
se pronunciarem de acordo com a
1 Esse acadêmico era Le Cat, secretário per­
pétuo da Academia de Rudo. Rousseau sabia-
eqüidade e contra seu próprio interes­
o, com o se verifica pela nota em que satirizou se; só as ciências podem transformar,
o grego dos médicos. (N. de L. G. M.) naqueles que as cultivam, a integridade
422 ROUSSEAU

em crime — belo privilégio, o seu ! Percorri a nova Refutação. É mais


Ouso dizer que a Academia de uma, porém não sei por que fatalidade
Dijon, fazendo muito pela minha gló­ as obras de meus adversários, que tra­
ria, fez muito pela sua; dia virá em que zem esse título tão decisivo, são sem­
os adversários de minha causa apro- pre aquelas em que sou pior refutado.
veitar-se-ão desse julgamento para pro­ Percorri, pois, essa refutação sem ter o
var que a cultura das letras pode asso­ menor arrependimento da resolução
ciar-se com a eqüidade e o que tomei de não mais responder a nin­
desinteresse. Os partidários da verdade guém: contentar-me-ei com citar uma
responderão, então, a eles: “Aí está um única passagem, pois, baseando-se
exemplo particular que parece depor nela, o leitor poderá julgar se tenho
contra nós; lembrai-vos, porém, do razão ou não. E a seguinte:
escândalo que esse julgamento causou Concordaria com que se pode ser
na época, na multidão dos letrados, e um homem honesto sem talento; mas
da maneira pela qual se lamentaram; só se estará obrigado, na sociedade, a
extraí disso uma conseqüência exata ser um homem honesto ? E que será um
de suas máximas.” homem honesto, ignorante e sem talen­
Não é, a meu ver, imprudência to? Um fardo inútil, uma carga no
desprezível o queixar-se de ter pro­ mundo, etc. Certamente não respon­
posto a Academia seu assunto como derei a um autor capaz de escrever
problema. Deixo de parte a pequena dessa maneira e acho que pode agrade­
possibilidade que haveria de ter al­ cer-me por isso.
guém, no entusiasmo universal que Não haveria também meios, a
hoje reina, a coragem de renunciar menos que se quisesse ser tão difuso
voluntariamente ao prêmio, decidin­ quanto o autor, de responder à nume­
do-se pela negativa, mas não sei como rosa coleção de passagens latinas, ver­
há filósofos que ousem desgostar-se sos de La Fontaine, de Boileau, de
com oferecer-se-lhes vias de discussão: Molière, de Voltaire, de Regnard, do
belo amor pela verdade, esse, que vaci­ Sr. Gresset, nem à história de Nemrod,
la quando se examina o pró e o contra. nem à dos camponeses picardos, pois o
Nas pesquisas de filosofia, o melhor que se poderá dizer a um filósofo que
meio de tornar uma opinião suspçita é nos assegura querer mal aos ignorantes
excluir a opinião contrária. Aquele que porque seu rendeiro da Picardia, que
assim age, dá a impressão de má fé e não é um doutor, lhe paga com exati­
de desconfiar da excelência de sua dão — para ser verídico — mas não
causa. A França toda está à espera da lhe dá bastante dinheiro de sua terra?
peça que este ano receberá o prêmio da O autor se ocupa tanto com suas
Academia Francesa; não somente, propriedades, que fala até da minha.
com toda a certeza, superará meu D is­ Uma propriedade minha! A proprie­
curso, o que não será difícil, mas não
dade de Jean-Jacques Rousseau! Na
se poderia mesmo duvidar que será verdade, eu o aconselho a me caluniar2
uma obra-prima. No entanto, em que com mais habilidade.
influirá isso para a solução da ques­
tão? Absolutamente nada, pois cada 2 Se o autor me der a honra de refutar esta
um, depois de tê-la lido, dirá: Esse dis­ carta, procurará, sem dúvida, provar-me em
curso é belíssimo; mas, se o autor bela e douta demonstração, apoiada em autori­
dades bastante graves, que absolutamente não
tivesse tido a ousadia de tomar o parti­ constitui crime possuir uma propriedade. Com
do contrário, teria talvez feito outro efeito, pode ser que não constitua um crime
ainda mais belo para outros, mas para mim o seria. (N . do A.)
DISCURSO SOBRE AS CIÊNCIAS E AS ARTES 423

Se eu tivesse de responder a qual­ tão excessivamente seu zelo, que se


quer parte da Refutação, seria às esqueçam de consultar suas forças e
mordacidades de que está cheia essa quid valeant hum eri5. Dir-me-ão, sem
crítica, mas, como elas nada têm com dúvida, que eu deveria tomar esse con­
o caso, não me afastarei da máxima selho para mim mesmo, o que pode ser
constante, que sempre segui, de encer­ verdadeiro. Haveria, porém, pelo
rar-me no assunto de que trato sem menos uma diferença: eu estaria sozi-
nele nada pôr de pessoal: o verdadeiro
respeito que se deve aó público con­ 4 Se eu dissesse que uma citação tão bizarra
siste em poupar-lhe não verdades tris­ certamente provém de alguém a quem o M éto ­
tes, que lhe podem ser úteis, mas sim do Grego de Clenard é. mais familiar do que os
Ofícios de Cícero e que, conseqüentemente,
todas as disputazinhas entre autores3, parece comportar-se gratuitamente na defesa
com as quais se enchem as obras de das boas letras; se eu acrescentasse que exis­
polêmica e que só servem para satisfa­ tem profissões com o, por exemplo, a cirurgia,
zer uma animosidade vergonhosa. na qual se empregam tantos termo ; derivados
Querem que eu tenha tomado em do grego, obrigando as pessoas que a exercem
à contingência de aprenderem algumas noções
C lenard4 um dito de Cícero — seja; elementares dessa língua — seria adotar o tom
que cometi solecismos — admito; que do novo adversário e responder corno ele teria
cultivo as belas letras e a música, ape­ feito em meu lugar. Quanto a mim posso, res­
sar do mal que penso delas — caso se ponder que, quando arrisquei a palavra investi­
gação, quis prestar um serviço à língua, ten­
queira, concordarei com isso, devendo tando introduzir nela uma palavra doce,
sofrer numa idade mais razoável a harmoniosa, cujo sentido já é conh ícido e que
pena dos divertimentos de minha ju ­ não tem nenhum sinônimo em francês. Tais
ventude, Mas, finalmente, que importa são, segundo creio, todas as condições neces­
tudo isso, tanto para o público quanto sárias que se exigem para autorizai essa liber­
dade salutar.
para a causa das ciências? Rousseau
pode falar francês com dificuldade e a Ego cur, adquierere pouca
S i possum , invideor, com lingua C atonis et
gramática não será com isso mais útil Enni
à virtude. Jean-Jacques pode ter uma Serm onem patrium ditaveri'?*
má conduta e a dos sábios não será
melhor. Aí estão todas as respostas D esejei, sobretudo, transmitir exatamente
meu pensamento. Sei, é verdade, que a pri­
que darei e, creio, todas as que devo meira regra de nossos escritores é a de escrever
dar a essa nova refutação. corretamente e, com o dizem eles, f ilar francês:
Terminarei esta carta e o que tenho isso resulta de terem pretensões e cie desejarem
a dizer sobre um assunto debatido por parecer que possuem correção e clegância. A
primeira regra para mim, que ni.o me preo­
tão longo tempo, dando a meus adver­ cupo de modo algum com o que possam pen­
sários um conselho que certamente sar de meu estilo, consiste e n fazer-me
desprezarão e, todavia, seria preferível compreender. Não hesitarei, sempre que, com
que pensassem no partido que dele o auxílio de dez solecism os, puder explicar-me
poderiam tirar: é o de não consultar com maior vigor e clareza. Contanto que eu
seja mais compreendido pelos filósofos, de boa
vontade deixo os puristas correrem atrás d as
3 Pode-se ver, no D iscurso de Lião, um m ode­ palavras. (N . do A.)
lo belíssimo da maneira como convém aos filó­ * “Se eu pudesse acrescentar alguma coisa, por
sofos atacarem e combaterem sem mordaci­ que haveria de ser invejado, uma vez que a lín­
dade e invectivas. Orgulho-me também de gua de Catão e de Ênio enriqueceu o idioma
poderem encontrar em minha resposta, que se pátrio?”
está imprimindo, um exemplo de com o se pode (H orácio, A rte Poética, v. 55-57.) (N. de P. A.
defender aquilo que se crê verdadeiro, com -B.)
toda a força de que se é capaz, sem aspereza 5 “ O que os ombros agüentam.” (Ibidem, v.
contra aqueles que o atacam. (N . do A.) 40.) (N . de P. A. - B.)
424 ROUSSEAU

nho do meu lado, enquanto que, sendo esse belo raciocínio. Pergunto-lhes,
deles o da multidão, pareceriam os agora, o que preferem que eu acuse: o
recém-vindos dispensados de enfileira­ seu espírito, por não terem podido
rem-se ou obrigados a fazer melhor do penetrar no sentido claríssimo desse
que os outros. trecho, ou a sua má fé, por fingirem
Temendo que tal conselho pareça não entendê-lo? São letrados e, por
temerário ou presunçoso, junto aqui isso, a escolha não será duvidosa. Mas
uma amostra dos raciocínios de meus o que diremos das interpretações diver­
adversários pela qual se poderá aquila­ tidas que esse último adversário tem o
tar a exatidão e o valor de suas críti­ prazer de emprestar ao desenho do
cas. Os p o vo s da Europa, dissera eu, frontispício de meu livro? Acreditaria
viviam há alguns séculos num estado ter magoado meus leitores, tratando-os
pior do que a ignorância. Não sei que como crianças, ao interpretar-lhes uma
algaravia científica, ainda mais despre­ alegoria tão clara, ao dizer-lhes que o
zível do que a ignorância, usurpara o facho de Prometeu é o das ciências,
nome do saber e opunha um obstáculo feito para incentivar os grandes gênios,
quase invencível à sua volta. Precisou- que o sátiro que, vendo o fogo pela pri­
se de uma revolução para devolver os meira vez, corre a ele e quer agarrá-lo,
homens ao senso comum. Os povos ti­ representa os homens vulgares que,
nham perdido o bom senso não porque seduzidos pelo brilho das letras, se
fossem ignorantes, mas por possuírem entregam temerariamente ao estudo, e
a tolice de crer saber alguma coisa que o Prometeu, que grita e o adverte
com os grandes ditos de Aristóteles e a do perigo, é o cidadão de Genebra.
doutrina impertinente de Raymond Essa alegoria é justa e bela, ouso
L ulle6; seria necessária uma revolução considerá-la sublime. Que se deve pen­
para ensinar-lhes que eles nada sabem sar de um escritor que meditou sobre
e nós teríamos muita necessidade de ela e não conseguiu entendê-la? Pode-
uma outra para ensinar-nos a mesma se pensar que um tal homem não teria
verdade. Segue-se o argumento de sido um grande doutor entre os egíp­
mèus adversários: Deve-se essa revolu­ cios, seus amigos.
ção às letras, elas devolveram o bom Tomo, pois, a liberdade de oferecer
senso, de acordo com a opinião do a meus adversários e, sobretudo, ao úl­
autor, mas, também segundo ele, cor­ timo, esta sábia lição de um filósofo
romperam os costumes; será preciso, sobre um outro assunto: Sabei que não
pois, que um p ovo renuncie ao bom há nenhuma objeção que possa fazer
senso para ter bons costumes. Três maior mal a vosso partido do que as
escritores subseqüentemente repetiram más respostas. Sabei que se não tiver­
des dito nada de valia, aviltarão vossa
causa ao dar-vos a honra de crer que
6 Raymond Lulle (1235-1315): filósofo e
alquimista catalão, denominado “o Ilumina­ nada nela se continha de melhor para
do”, autor da A rs Magna, um dos livros mais ser dito.
curiosos da escolástica. (N . de P. A. -B.) Sou, etc.
P r e f á c io d e
N a r c is o ou O A m a n t e d e s i m e s m o

Comédia escrita em 1733 e levada à cena em 1752.

Escrevi esta comédia aos dezoito cupo com persuadi-los. Esforçando-me


anós e abstive me de mostrá-la en­ por merecer minha própria estima,
quanto senti alguma consideração pela aprendi a viver sem a dos outros que,
reputação do autor. Por fim ganhei a em geral, vivem muito bem sem a
coragem de publicá-la, porém nunca minha. Se tanto me faz que pensem
teria a de dizer algo a seu respeito. bem ou mal de mim, interessa-me no
Não é, pois, de minha peça, mas de entanto que ninguém tenha o direito de
mim mesmo que aqui se trata. formar de mim um mau juízo e impor­
Impõe-se, apesar de meu desagrado, ta à verdade, sustentada por mim, que
que eu fale de mim; impõe-se que con­ jamais se acuse injustamente seu de­
fesse os erros que me atribuem ou que fensor de a ter socorrido por capricho
os justifique. Sei que as armas não ou vaidade, sem amá-la e connecê-la.
serão iguais, pois atacar-me-ão com O partido que tomei, na questão que
gracejos e eu defender-me-ei com ra­ há alguns anos examinei, não deixou
zões, mas,, contanto que convença de conquistar-me uma multidão de
meus adversários, bem pouco me preo­ adversários1 mais atentos talvez ao

1 Asseguram-me que a muitos desgosto, cha­ humildade, nossas limões logo perderia conos­
mando de adversários a meus adversários, e co essa ignorância da qual tão justamente se
isso me parece bem possível num século em lamentava” . Li tudo isso e não dsi mais que
que não se ousa mais nada chamar pelo nome. umas poucas respostas; talvez ainda assim fiz
Sei, também, que cada um de meus adversários demais, mas creio firmemente que ísses senho­
se lamenta, quando respondo a outras objeçoes res as tenham considerado bastante agradáveis
que não as suas, por perder meu tempo lutando para se enciumarem com a preferência. Quan­
contra quimeras. Isso prova uma coisa, da to às pessoas que se chocam c o n a palavra
qual já sentia minhas suspeitas: eles não per­ adversários, de boa vontade concordo em
dem seu tempo lendo-se ou ouvindo-se uns aos abandoná-la, conquanto queiram indicar-me
outros. Quanto a mim, este foi um trabalho uma outra pela qual possa designar, não
que acreditei de meu dever; li os numerosos somente todos aqueles que combateram m i­
escritos que contra mim publicaram, desde a nhas convicções, seja por escrito, seja, mais
primeira resposta com que me honraram até os prudente e mais à vontade, nas rodas de senho­
quatro sermões alemães, um dos quais com eça ras e talentos, onde tinham certeza de que não
mais ou menos assim: “ Meus irmãos, se Sócra­ iria defender-me, mas ainda aqueles que, fin­
tes voltasse para o nosso convívio e se visse o gindo crer não possuir eu atualmente adversá­
estado florescente em que estão as ciências na rios, acharam a princípio irrespondíveis as res­
Europa — que digo? na Europa, não; na A le­ postas de meus adversários e, depois, quando
manha — que digo? na Alemanha, não; em repliquei, censuraram-me, pois, sejundo eles,
Saxe — que digo? Em Saxe. não; em Leipzig não me tinham atacado. Esperando, permitir-
— que digo? em Leipzig, não; nesta universi­ me-ão que continue a chamar de ac versários a
dade — tomado então de surpresa e penetrado meus adversários, pois, apesar da polidez de
de respeito, Sócrates sentar-se-ia respeitosa­ meu século, sou grosseiro como os macedônios
mente entre nossos escolares e recebendo, com de Filipe. (N . do A.)
426 ROUSSEAU

interesse dos literatos do que à honra resposta, de refutar as demonstrações


da literatura. Eu previra e suspeitara até de Euclides, e tudo o que existe de
que sua conduta, nessa ocasião, faria demonstrado no universo. Parece-me
mais por mim do que todos os meus que aqueles que, tão temerariamente,
discursos. Com efeito, não disfarçaram me acusam de declarar-me contra meu
a sua surpresa ou tristeza por ver uma pensamento não têm muito escrúpulo
academia mostrar-se íntegra tão fora de falar contra o seu, pois certamente
de oportunidade. A fim de conse­ não encontraram nada em meus escri­
guirem desmerecer o peso de seu julga­ tos ou em minha conduta que pudesse
mento, não lhe pouparam nem as ter-lhes inspirado essa idéia, como
invectivas indiretas, nem mesmo falsi­ logo o provarei. Não têm o direito de
dades*. Também não fui esquecido nas ignorar que, desde que um homem fale
suas declamações. Alguns resolveram seriamente, se deve supor que creia no
refutar-me às claras: os sábios pude­ que diz, a menos que suas ações ou
ram ver com que força, e o público, discursos o desmintam, jamais e
com que sucesso o fizeram. Outros, mesmo isso não bastará para assegurar
mais espertos, conhecendo o perigo de que não acredita em nada.
combaterem diretamente as verdades Podem, pois, gritar quanto desejem
demonstradas, habilmente desviaram que, ao declarar-me contra as ciências,
para a minha pessoa uma atenção que o fiz contra minhas convicções. A uma
só se deveria dar às minhas razões, e o afirmação tão temerária, destituída
exame das acusações que contra mim tanto de comprovação quanto de ve­
intentaram os levou a esquecerem as rossimilhança, só disponho de uma
acusações mais graves que eu próprio resposta — é curta e enérgica, e rogo-
contra eles levantei. Será, pois, a estes- lhes que a considerem como dada.
que, mais uma vez, tenho de responder. Pretendem ainda estar minha condu­
Pretendem que eu não acredite uma ta em contradição com meus princí­
palavra das verdades que sustentei e pios e não se deve duvidar de que
que, ao demonstrar uma proposição, recorrem a essa segunda instância para
não deixo de crer o contrário, isto é, firmar a primeira, pois há muita gente
que provei coisas tão extravagantes que sabe encontrar provas onde não as
que só à guisa de diversão se podem há. Dirão, pois, que, compondo eu mú­
sustentar. Eis uma bela homenagem sica e versos, será deselegante deprimir
que prestam àquela ciência que serve as belas-artes e que nas belas-artes,
de fundamento a todas as outras, e que afeto desprezar, existem inúmeras
deve-se crer que a arte de raciocinar ocupações mais louváveis do que es­
bem serve à descoberta da verdade, crever comédias. Terei de responder
quando a vemos empregada com su­ também a esta acusação.
cesso para demonstrar loucuras. Em primeiro lugar, mesmo que fosse
Pretendem que não acredito numa admitida com todo o rigor, provaria
palavra das verdades que sustentei. É, que me conduzo mal, porém não que
sem dúvida, uma maneira nova e cô­ falo de boa fé. Se se pudesse extrair das
moda de responder a argumentos sem ações dos homens a prova de seus
sentimentos, ter-se-ia de concluir que o
2 Pode-se ler, no número de agosto de 1752
do Mercure, o desmentido da Academia de
amor pela justiça está banido de todos
Dijon, relativo a não sei que escrito falsamente os corações e que não existe um único
atribuído pelo autor a um de seus membros. cristão sobre a terra. Que me exibam
(N. do A.) homens que sempre agem conseqüen-
DISCURSO SOBRE AS CIÊNCIAS E AS ARTES 427

temente com suas máximas e eu aceita­ qualidade de autor, algumas vezes


rei a condenação das minhas. Esse, o tenha aspirado a obtê-la eu mesmo.
destino da humanidade — a razão Foi então que compus os versos e a
mostra-nos o objetivo e as paixões maior parte das obras que saíram de
desviam-nos dele. Se fosse, pois, verda­ minha pena e, entre outras, ^sta come-
de que eu não ajo segundo meus princí­ diazinha. Seria talvez duro censura­
pios, não se teria motivo para, somente rem-me hoje estes divertimentos de
com base nisso, acusarem-me de falar minha juventude e errariam pelo
contra minhas convicções ou acusarem menos por me acusarem de. com isso,
meus princípios de falsidade. ter contraditado princípios que ainda
Se eu quisesse, porém, aceitar a não eram os meus. Há muito tempo já
condenação nesse ponto, bastar-me-ia que não alimento a menor pretensão a
comparar os tempos para conciliar as tais coisas, e arriscar, nessas circuns­
coisas. Nem sempre tive a felicidade de tâncias, a apresentá-las ao público, de­
pensar como agora. Seduzido, durante pois de ter por tanto tempo a prudên­
muito tempo, pelos preconceitos de cia de guardá-las, quer dizer que
meu século, considerava o estudo a desprezo igualmente tanto o louvor
única ocupação digna de um sábio e quanto a censura que possam desper­
encarava as ciências com respeito e os tar, pois não penso mais como autor
sábios, com admiração3. Não com­ delas. São filhos ilegítimos que se aca­
preendia haver possibilidade de extra­ ricia com prazer, mas corando por ser
viar-se desenvolvendo continuamente seu pai, a quem se dizem os últimos
demonstrações, ou de agir mal falando adeuses, e aos quais se manda fazerem
continuamente de sabedoria. Somente fortuna sem inquietar-se muito com o
depois de ter visto as coisas de perto é que lhes acontecerá. .
que aprendi a pesar-lhes o valor e, em­ Mas é raciocinar demais, baseando-
bora nas minhas pesquisas sempre se em suposições quiméricas. Se me
encontrasse satis eloquentiae, sapien- acusam, sem razão, de cultivar as le­
tiae paru m 4, foram-me necessárias tras que desprezo, defendo-me sem
muitas reflexões, observações e muito necessidade, pois, mesmo que o fato
tempo para destruir-se em mim a ilu­ fosse verdadeiro, não havsria nisso
são de toda essa inútil pompa cientí­ inconsequência alguma, e é o que resta
fica. Não é de admirar que, durante provar.
esses tempos de preconceitos e de Seguirei, segundo meu hábito, o mé­
erros, nos quais tanto considerava a todo simples e fácil que convém à ver­
dade. Descreverei novamente a situa­
3 Todas as vezes que me lembro de minha an­
ção da questão, exporei mais uma vez
tiga simplicidade, não posso deixar de rir-me minha convicção e esperarei que, se­
dela. N ão lia um só livro de moral ou de polí­ gundo essa exposição, queiram mos­
tica que não acreditasse nele encontrar a alma trar-me no que minhas açõe s desmen­
e os princípios do autor. Encarava todos esses tem meu discurso. Meus adversários,
graves escritores com o pessoas modestas, sá­
bias, virtuosas, irrepreensíveis. Tinha, em rela­ por seu lado, não precisarãc ficar sem
ção ao seu comércio, idéias angélicas, e só me responder, eles que possuem a maravi­
teria aproximado da casa de um deles com o de lhosa arte de disputar pró e contra
um santuário. Por fim, os vi. Dissipou-se esse todos os assuntos. Começarão, como é
preconceito pueril e esse o único erro de que
me curaram. (N . do A.)
de seu hábito, por estabelecer uma
4 “ Bastante eloqüência, mas pouca sabedo­ outra questão de acordo com sua fan­
ria.” (N . de P. A. - B.) tasia; far-me-ão resolvê-la como lhes
428 ROUSSEAU
convier; para me atacarem mais como­ os costumes dos povos. Este o ponto,
damente, far-me-ão raciocinar, não a do qual o primeiro não passa de conse­
meu modo, mas ao seu; habilmente qüência, que me propunha examinar
desviarão os olhos do leitor do objeto com cuidado.
essencial para fixá-los à direita e à Comecei pelos fatos e mostrei que
esquerda; combaterão um fantasma e os costumes degeneraram entre todos
pretenderão tê-lo vencido. Mas eu terei os povos do mundo na medida em que
feito o que devo fazer e, portanto, se espalhou em seu seio o gosto pelo
começo. estudo e pelas letras.
“A ciência não serve para nada e Isso não bastava, pois, sem poder
sempre causa tão-spmente o mai, pois negar que essas coisas sempre tivessem
é má de natureza. É tão inseparável do caminhado juntas, poder-se-ia negar
vício quanto a ignorância da virtude. que uma tivesse trazido a outra. Esfor-
Todos os povos letrados sempre foram
corrompidos; todos os povos ignoran­ 5 Quando afirmei terem-se corrompido nos­
tes sempre foram virtuosos; numa sos costumes, não pretendi com isso dizer que
palavra, só existem vícios entre os sá­ os costumes de nossos ancestrais eram bons,
mas apenas que os nossos eram ainda piores.
bios, e homens virtuosos, entre aqueles
Entre os homens, existem inúmeras fontes de
que nada sabem. Existe, pois, para nós, corrupção e. ainda que as ciências sejam talvez
um meio de nos tornarmos pessoas de a mais abundante e rápida, isso não quer dizer
bem — será apressarmo-nos a proscre que sejam a única. A ruína do império roma­
ver a ciência e os sábios, queimar nos­ no, as invasões de uma multidão de bárbaros
determinaram uma mistura de todos os povos
sas bibliotecas, fechar nossas acade­ que destruiu, necessariamente, os costumes e
mias, colégios e universidades, e os usos de cada um. A s cruzadas, o comércio,
tornarmos a mergulhar em plena bar­ a descoberta das índias, a navegação, as via­
bárie dos primeiros séculos.” gens longas e outras coisas mais, que não
quero citar, alimentaram e aumentaram a
Eis o que meus adversários refuta­ desordem'. Tudo o que facilita a comunicação
ram tão bem; ademais, nunca disse ou entre as várias nações leva a uma delas, não as
pensei uma única palavra de tudo isso, virtudes das outras, mas seus crimes e, em
todas, altera os costumes próprios de seu
e não se poderia imaginar nada de ambiente e da constituição de seu governo. As
mais oposto ao meu sistema do que ciências não fizeram, pois, todo o mal; toca-
essa absurda doutrina que tiveram a lhes, nisso, somente a maior parte. O que
gentileza de atri‘buir-me. Aqui está, sobretudo verdadeiramente lhes pertence é
terem dado a nossos vícios um aspecto agradá­
porém, o que eu disse e que, de modo vel, um certo ar de honestidade que nos impede
algum, refutaram. de distinguir-lhes o horror. Quando, pela pri­
Tratava-se de saber se o restabeleci­ meira vez, foi levada à cena a com édia Le Mê-
mento das ciências e das artes contri­ chant*, lembro-me que não acharam corres­
ponder o papel principal ao título. Cléon
buíra para aprimorar os costumes. pareceu um mero homem comum; ele era,
Mostrando, como o fiz, que nossos diziam, com o todo o mundo. Esse abominável
costumes não se aprim oraram 5 de celerado, cujo caráter, tão bem exposto, deve­
modo algum, a questão estava quase ria ter feito fremir contra si mesmo todos aque­
les que tivessem a desdita de parecer-se com
resolvida. ele, pareceu um caráter inteiramente mal com ­
Ela compreendia implicitamente, posto, e suas torpezas passaram por gentilezas,
porém, uma outra, mais geral e mais porque alguém, que se considerava um corre­
importante, que diz respeito à in­ tíssimo homem de bem, se reconheceu nele,
traço por traço. (N . do A.)
fluência que a cultura das ciências * Le Méchant, comédia de Gresset
deve exercer, em qualquer época, sobre (1709-1777). (N. de P.A. - B.)
DISCURSO SOBRE AS CIÊNCIAS E AS ARTES 429

cei-me, em conseqüência, por mostrar admiração. A louca ciência dos ho­


essa ligação necessária. Demonstrei mens é digna unicamente de escárnio e
que a fonte de nossos erros, nesse de desprezo.
ponto, resulta de confundirmos nossos O gosto pelas letras anuncia sempre,
conhecimentos vãos e enganadores num povo, um começo de corrupção
com a inteligência soberana que, num que rapidamente se acelera, porquanto
só golpe de vista, discerne a verdade de um tal gosto só pode nascer, no seio
todas as coisas. A ciência, tomada de duma nação, de duas fontes más, que o
modo abstrato 6, merece nossa inteira estudo de sua parte entretém e man­
tém: a ociosidade e o desejo de distin­
guir-se. Num Estado bem constituído,
6 Essa expressão é de grande importância.
Neste trecho, Rousseau faz abstração da socie­
cada cidadão tem seus. deveres a
dade, das paixões corruptoras que suscita entre desempenhar e esses cuidados muito
os indivíduos. (N . de P. A.-B.) [Rousseau afir­ importantes são-lhe demasiado caros
mava que o Discurso era mal escrito e, nessa para deixar-lhe o lazer de vaguear por
presunção, sempre se teve o Prefácio do Narci­ especulações frívolas. Num Estado
so como uma espécie de revisão geral daquela
peça. Mas tal interpretação deve referir-se tam­
bem constituído, todos os cidadãos são
bém, senão principalmente, às próprias idéias tão iguais, que nenhum deles pode ser
do Autor. O que, de início, surgira com impe­ preferido aos demais como o mais
tuosidade instintiva, num momento de inspira­ sábio ou mesmo como o mais hábil,
ção reveladora, fora sofrendo um processo mas, no máximo, como o melhor. Esta
vivo de apuramento dialético até chegar às
afirmações finais, precisas e essenciais. D ois última distinção pode, freqüentemente,
anos exigiu tal processo, contudo rapidíssimo ser perigosa, dado que forma imposto­
se considerarmos que serviu para lançar os ali­ res e hipócritas7.
cerces da filosofia social e política do Autor. O gosto pelas letras, na scido do de­
D e fato, Rousseau agora distingue, perfeita­
mente, todos os valores com que jogará de
sejo de distinguir-se, procluz, necessa­
futuro: 1) os valores absolutos dos princípios riamente, males de perigo infinita­
considerados em si mesmos (além dessa “ciên­ mente maior do que a utilidade do bem
cia tomada de modo abstrato”, logo encontra­ que causa, porque, afinal, torna aque­
remos outros conceitos puros, com o, principal­ les que se entregam a ele muito pouco
mente, o de liberdade); 2) os valores
historicamente compreendidos e observáveis escrupulosos quanto aos meios de ven­
nas concreções, menos perfeitas porém tangí­ cer. Os primeiros filósofos granjearam
veis, daqueles mesmos conceitos tais com o se grande reputação ensinando aos ho­
realizaram através da evolução das sociedades
(a ciência, boa em si mesma, transforma-se em
perigo quando entrosada em determinados se, em todas as análises, por um rigoroso
çom plexos sociais; da liberdade, será preciso exame dos liames sociais, tal como os deno­
ter julgamentos de natureza não muito diversa; mina em nota a este Prefácio. D essa orienta­
etc.); 3) os valores contingentes consagrados ção dependerão todas as suas obras principais.
em seu meio e em seu tempo. A estes últimos, (N. de L. G. M.)|
Rousseau sempre se oporá com obstinação e, 7 Positivando agora a distinjão entre uma
não raro, com violência; assim se definirá, afi­ sociedade regida por “costum es” e aquela em
nal, sua posição, que estará em reconhecer a que há “polícia”, Rousseau deixa entrever qual
perda definitiva dos valores absolutos, mas o conteúdo desse policiamento: 1) impor deve­
também em empregar um reajuste dos valores res tais ao cidadão, que este tem toda a sua ati­
realizados historicamente a fim de evitar que vidade orientada num sentido superior aos
se agrave a decadência anunciada pelos valo­ impulsos egoístas; 2) manter os cidadãos em
res que lhe eram contemporâneos. Rousseau igualdade tal, que desapareça qualquer vanta­
alude mesmo, explicitamente, à passagem gem em distinguir-se dos demais, salvo pela
duma fase, já ultrapassada, em que domina­ virtude. A melhor compreensão desse pro­
vam os “costum es”, para outra em que a cone­ blema e sua cabal solução prática passarão,
xão e, sobretudo, o equilíbrio das forças daí por diante, a constituir o principal objetivo
sociais se torna obra de “polícia”, inclinando- do pensamento de Rousseau. (N . de L. G. M.)
430 ROUSSEAU

mens a prática de seus dieveres e os tos nascem conosco e só as virtudes


princípios da virtude. Mas, logo tor­ nos pertencem.
nando-se comuns seus preceitos, tor­ Os primeiros e quase os únicos cui­
nou-se também necessário distinguir-se dados que se dispensam à nossa educa­
trilhando caminhos contrários. Essa lei ção são os frutos e as sementes desses
foi a origem dos sistemas absurdos dos preconceitos ridículos. Atormentam
Leucipos, dos Diógenes, dos Pirros, nossa miserável juventude para ensi­
dos Protágoras, dos Lucrécios. Do nar-nos as letras; conhecemos todas as
mesmo modo, os Hobbes, os Mande- regras da gramática antes de ouvir
villes8 e mil outros fingiram assim falar dos deveres do homem; sabemos
distinguir-se entre nós, e sua perigosa tudo o que se fez até o presente, antes
doutrina frutificou de tal modo, que, que nos tenham dito uma palavra
apesar de nos restarem verdadeiros sobre o que devemos fazer, e, desde
filósofos fervorosos no lembrarem aos que usemos nosso palavrório, ninguém
nossos corações as leis da humanidade se preocupa com que saibamos agir ou
e da virtude, espantamo-nos ao ver a pensar. Em uma palavra, só se deve ser
que ponto nosso século raciocinante sábio nas coisas que não nos servem
introduziu, nas suas máximas, o des­ para nada e nossos filhos são educados
prezo pelos deveres do homem e do exatamente como os antigos atletas
cidadão. dos jogos públicos que, destinando
O gosto pelas letras, pela filosofia e seus robustos membros a um exercício
pelas belas-artes enfraquece o amor inútil e supérfluo, sempre se abstinham
pelos nossos primeiros deveres e pela de empregá-los em qualquer trabalho
verdadeira glória. Quando os talentos proveitoso.
conseguem usurpar as honras devidas
O gosto pelas letras, pela filosofia e
à virtude, cada qual quer ser um
pelas belas-artes desfibra os corpos e
homem agradável e ninguém se preo­
as almas. O trabalho de gabinete torna
cupa com ser um homem de bem.
os homens delicados, enfraquece-lhes o
Nasce daí ainda essa outra inconse­
temperamento e dificilmente a alma
quência que faz com que só se recom­
guarda vigor quando o corpo perdeu o
pensem nos homens as qualidades que
seu. O estudo usa a máquina, esgota os
não dependem deles, pois nossos talen­
espíritos, destrói a força, enfraquece a
coragem, e apenas isso já demonstra
8 Rousseau enumera os principais filósofos
autores de sistem as empíricos, cépticos epicu- que não é feito para nós, sendo assim
ristas e sensualistas; todos esses sistemas têm que nos tornamos covardes e pusilâni­
com o ponto comum negar a existência de um mes, incapazes de resistir tanto à pena
sentido moral autônomo e relegar a moral a
um cálculo de prazeres ou a um jogo entre pai­
quanto às paixões. Todos sabem como
xões. Leucipo é o primeiro filósofo materia­ os habitantes das cidades são pouco
lista, mestre de Epicuro, de quem Lucrécio, capazes de suportarem os labores da
autor do D a Natureza, será o discípulo. Pirro é guerra e não se ignora a reputação que
pai do cepticism o, assim com o Protágoras, têm os letrados quanto à bravura9.
cuja fórmula célebre — “ O homem é a medida
de todas as coisas” — foi discutida por Platão.
Diógenes é um cínico, célebre na Antiguidade 9 Aqui fica um exemplo moderno para aque­
pela sua hostilidade ao conformismo social. les que me censuram por só citar antigos. A
Hobbes (1588-1679) e Mandeville (1670-1733) república de Gênova, procurando subjugar
são dois célebres filósofos ingleses, um conhe­ com mais facilidade os corsos, não achou meio
cido pela sua apologia do direito do mais forte, mais seguro do que fundar entre eles uma aca­
e o segundo devido à sua teoria de que os ví­ demia. Ser-me-ia fácil alongar esta nota, mas
cios são proveitosos à sociedade (A Fábula isso seria desmerecer a inteligência dos únicos
das Abelhas, 1714). (N . de P. A.-B.) leitores com que me preocupo. (N . do A.)
DISCURSO SOBRE AS CIÊNCIAS E AS ARTES 431

Ora, com justiça, nada é mais suspeito igual prejuízo para a v rtude. Todo
do que a honra de um poltrão. homem que se preocupa com os talen­
Tantas reflexões sobre a fraqueza de tos deleitáveis quer agradar, ser admi­
nossa natureza só servem freqüente­ rado e quer ser admirado mais do que
mente para desviar-nos dos empreendi­ um outro; os aplausos públicos perten­
mentos generosos. De tanto meditar cem somente a ele — diria que tudo
sobre as misérias da humanidade, faz para obtê-los, caso não fizesse mais
nossa imaginação sobrecarrega-nos ainda para deles privar seus concorren­
com o seu peso e a previdência dema­ tes. Daí nascem, de um lado, os rebus-
siada tira-nos a coragem ao tirar-nos a camentos do gosto e da polidez, a adu­
segurança. Inutilmente pretendemos lação vil e baixa, cs cuidados
munir-nos contra os acidentes impre­ sedutores, insidiosos, pueris, que, com
vistos, “ se a ciência, buscando armar­ o decorrer do tempo, aviltam a alma e
nos com novas defesas contra os corrompem o coração, por outro
inconvenientes naturais, ainda mais lado, os ciúmes, as rivalidades, os
impressionou-nos a fantasia com a ódios entre artistas tão renomados, a
grandeza e o peso desses inconve­ calúnia pérfida, a fraude, a traição e
nientes de modo a ultrapassar todas as tudo o que o vício possui de mais frou­
razões e sutilezas vãs que possuía para xo e de mais odioso. Se o filósofo des­
defender-nos deles” 1°. preza os homens, o artista logo se
O gosto pela filosofia afrouxa todos torna desprezível para eles, e ambos
os laços de estima e de afeto que ligam concorrem, afinal, para torná-los des­
os homens à sociedade e talvez seja prezíveis.
esse o mais perigoso dos males por ela Ainda há mais e esta é a mais
concebidos; O encanto do estudo logo impressionante e cruel de todas as ver­
torna insípido qualquer outro pendor. dades que propus à consideração dos
Além disso, de tanto refletir sobre a sábios. Nossos escritores consideram
humanidade, de tanto observar os tudo como se fosse uma obra-prima da
homens, o filósofo aprende a apreciá- política de nosso século — as ciências,
los de acordo com seu valor e é bem as artes, o luxo, o comércio, as leis e os
difícil consagrar afeição a quem se des­ outros laços que, estreitando entre os
preza. Em breve, resume em sua pes­ homens os liames da sociedade11 pelo
soa todo o interesse que os homens vir­
interesse pessoal, colocam todos numa
tuosos compartilham com seus
dependência mútua, dão-lhes necessi­
semelhantes. Seu desprezo pelos outros
dades recíprocas e interesses comuns, e
passa a favorecer seu orgulho, e seu
obrigam cada qual a concorrer para a
amor-próprio aumenta na mesma pro­
felicidade dos outros a fim de poder
porção que sua indiferença pelo resto
alcançar a sua. Certamente essas
do universo. Tornam-se para ele pala­
idéias são belas e apresentadas com
vras desprovidas de sentido, a família e
uma feição favorável, mas, ao exami-
a pátria; não é pai, cidadão ou homem
— é filósofo.
11 Lastimo que a filosofia enfraqueça os laços
Ao mesmo tempo que a cultura das da sociedade, que são formados pela estima e
ciências, de certo modo, desafoga o pela boa vontade mútuas. Lastimo que as ciên­
coração do filósofo, sujeita num outro cias, as artes e todos os ouiros objetos de
comércio fortaleçam pelo interesse pessoal os
sentido o do letrado, e sempre còm laços da sociedade. Isso resulte do fato de não
se poder, com efeito, fortalecer um desses laços
10 Montaigne, Ensaios, III, X II. (N . de P. sem que o outro com isso se enfraqueça. Não
A.-B.) há, pois, contradição. (N . do A.)
432 ROUSSEAU
ná-las com atenção e sem parcialidade, eu descubro as suas causas e saliento
nas vantagens que elas a princípio sobretudo uma coisa muito consola-
parecem apresentar, encontra-se muito dora e útil ao mostrar que todos esses
a ser refutado. víciõs não pertencem tanto ao homem,
É, pois, coisa maravilhosa terem-se quanto ao homem mal governado12.
colocado os homens na impossibi­ Essas são as verdades que desen­
lidade de viver entre si sem se suspeita­ volvi e que me esforcei por comprovar
rem, suplantarem, enganarem, traírem nos vários trabalhos que publiquei
e destruírem mutuamente. Importa, sobre o assunto. Seguem-se as conclu­
daqui por diante, abster-nos de um dia sões que delas tirei.
deixar de nos vermos como somos,
pois, para dois homens cujos interesses
concordam, talvez cem mil possuem- 12 Noto que, atualmente, reina no miindo
nos opostos, e não existe outro meio uma multidão de pequenas máximas que sedu­
para vencer senão enganar ou perder zem os simples por apresentarem um falso ar
de filosofia e que, além disso, são muito côm o­
toda essa gente. Eis a fonte funesta das das para terminar as disputas com um tom
violências, das traições, das perfídias e importante e decisivo, sem se ter necessidade
de todos os horrores que necessaria­ de examinar a questão. Um exemplo. “Os
mente exigem um estado de coisas no homens, em todos os lugares, possuem as mes­
mas paixões, em todos os lugares são guiados
qual cada um, fingindo trabalhar para pelo amor-próprio e pelo interesse, concluin­
a fortuna ou a reputação dos demais, do-se, pois, que são sempre os m esm os.”
só procura elevar a sua acima e às Quando o s geômetras fazem uma suposição
expensas deles. que, de raciocínio em raciocínio, os conduz a
um absurdo, voltam sobre seus passos e, desse
Que ganhamos com isso? Muito modo, demonstram com o a suposição é falsa.
palavrório, os ricos e os arrazoadores, A aplicar-se o mesmo método à máxima em
isto é, inimigos da virtude e do bom questão, facilmente mostrar-se-á o absurdo.
senso. Em compensação, perdemos a Raciocinem os, porém, de outro modo. Um sel­
inocência e os costumes. A multidão vagem é um homem e um europeu é um
homem. O m eio-filósofo conclui logo que um
rasteja na miséria, todos são escravos não vale mais do que o outro. M as o filósofo
do vício. Os crimes não cometidos já diz: na Europa, o governo, as leis, o s costu­
estão no fundo dos corações e, para mes, o interesse, tudo coloca os particulares na
serem executados, só lhes falta a segu­ necessidade de se enganarem mútua e inces­
santemente, tudo faz com que o vício seja um
rança da impunidade. dever; impõe-se que sejam maus para seram
Estranha e funesta constituição, na sábios, pois não há maior loucura do que fazer
qual as riquezas acumuladas sempre a felicidade dos marotos às expensas da sua.
facilitam os meios para acumular ou­ Entre os selvagens, o interesse pessoal faia tão
tras maiores ainda; na qual é impossí­ fortemente quanto entre nós, mas não diz as
vel, para aquele que nada possui, mesmas coisas; os únicos laços que os unem
são o amor pela sociedade e o cuidado com a
adquirir qualquer coisa; na qual o defesa comum; a palavra propriedade, que aos
homem de bem não conta com qual­ nossos homens de bem custa tantos crimes,
quer meio de sair da miséria; na qual quase não tem sentido entre eles; não têm entre
os mais desavergonhados são mais si nenhuma discussão de interesse que ós divi­
da; nada os leva a se enganarem mutuamente;
dignificados e na qual se tem necessa­ o único bem a que cada um aspira é a estima
riamente de renunciar à virtude para pública, e todos a merecem. E bem possível
tornar-se um homem honesto! Sei que que um selvagem faça uma má ação, mas não
os declamadores já repetiram cem é possível que adquira o hábito de agir mal,
pois isso não lhe serviria para nada. Creio
vezes tudo isso, mas o diziam decla­ poder-se fazer uma avaliação bastante exata
mando e eu o digo baseando-me em dos costumes dos homens baseando-se no
razões; eles se aperceberam do mal, e grande número de negócios que têm entre si —
DISCURSO SOBRE AS CIÊNCIAS E AS ARTES 433
A ciência de modo algum é feita refletir. A reflexão só serve para tor­
para o homem em geral. Incessante­ ná-lo infeliz, sem fazê-lo melhor ou
mente, ele, ao procurá-la, se perde e, mais sábio; faz com que lamente os
caso por vezes a alcance, quase sempre bens passados e o impede de gozar do
é em prejuízo próprio. O homem nas­ presente; apresenta-lhe o 1'uturo feliz a
ceu para agir e pensar, e não para fim de, pela imaginação, seduzi-lo e
atormentá-lo pelos desejos, e apresen­
ta-lhe também o futuro infeliz a fim de,
quanto mais comerciam juntos, tanto mais antecipadamente, fazê-lo sentir. O es­
admiram seus talentos e indústrias, mais se
enganam decente e habilidosamente e mais tudo corrompe seus costumes, altera
dignos são de desprezo. Lastimo dizer: o sua saúde, destrói o temperamento e
homem de bem é aquele que não tem necessi­ freqüentemente destrói sua razão;
dade de enganar a ninguém, e o selvagem é mesmo que lhe ensinasse alguma coisa,
esse homem.
eu o consideraria muito mal recompen­
lllum non populi fasces, non pur- sado.
[pura regum Concedo que existem alguns gênios
Flexit, et infidos agitans discor- sublimes que sabem penetrar através
[diafratres;
Non res Romanae, perituraque . dos véus com os quais se cobre a ver­
[ regna: neque ille dade, algumas almas privilegiadas ca­
A ut doluit miserans inopem, aut pazes de resistir à idiotice da vaidade,
[ invidit habenti. ao ciúme baixo e às outras paixões
Virgílio, Geórgicas, II, 495.* (N . do A.) geradas no gosto pelas letras. Constitui
a luz e a honra do gênero humano o
* “ Um tal homem, nem os feixes lictórios do
povo o dobraram, nem a púrpura dos reis, nem
pequeno número daqueles que têm a
a discórdia que antagoniza os irmãos desleais, felicidade de reunir essa:; qualidades.
nem a república romana, nem os reinos que Somente a eles convém, para o bem de
vão perecer; jam ais um tal homem teve pieda­ todos, trabalhar no estudo e essa
de de um povo e o lamentou, nunca teve inveja mesma exceção confirma a regra, pois,
de um rico.” Essa nota, na sua totalidade, é um
anúncio do Discurso sobre a Desigualdade.
se todos os homens fossem Sócrates, a
(N . de P. A. B.) [À medida que se firma no ciência não lhes seria então danosa,
espírito de Rousseau a noção das causas mas também não teriam nenhuma
sociais da decadência, melhor se precisa seu necessidade dela.
objeto de pesquisa: sempre afirmando a corre­
lação forçosa entre as ciências e a decadência,
Todo povo que possui costumes e
vai-se mais e mais interessando pelo conjunto que, conseqüentemente, respeita suas
dos valores e liames sociais, até que um deles, leis e não quer requintar-í;e em relação
agora apenas enunciado, assumirá impor­ aos seus antigos usos deve cuidadosa­
tância principal: a ligação entre a liberdade e a mente defender-se das ciências e, so­
igualdade, problema que logo a seguir será ata­
cado. Rousseau já se compenetrou de que “vir­
bretudo, dos sábios, cujas máximas
tude e vício são noções coletivas que só nas­ sentenciosas e dogmáticas logo ensina­
cem do convívio humano” e, dessa forma, a rão a desprezar seus usos e leis, o que
penetrante visão ética, que sempre caracte­ uma nação nunca poderá fazer sem
rizou^ suas afirmações, conduz a uma com ­ corromper-se. A menor mudança nos
preensão nitidamente social dos problemas de
que cuida. Também o método aprimorou-se, costumes, mesmo que em certos aspec­
pois de geniais interpretações intuitivas, socor­ tos seja vantajosa, sempre resulta em
ridas por verificações empíricas mais ou prejuízo dos costumes. Porque os cos­
m enos concatenadas, com eça a alçar-se à tumes são a moral do povo e, desde
indução, ao menos formalmente completa, fun­
dada na observação dos fatos — nesse
que este cesse de respeitá-los, só res­
momento, Rousseau não hesita em apelar para tam, como regra, suas paixões e, como
o exemplo do geôm etra. . . (N . de L. G. M.)] freio, as leis que algumas vezes podem
434 ROUSSEAU

deter os maus, porém jamais torná-los de remédios, vê-se forçado a recorrer


bons. Aliás, quandò a filosofia conse­ ainda aos médicos para conservar-se
gue ensinar o povò a desprezar seus com vida. Desse modo, as artes e as
costumes, logo encontra o segredo de ciências, depois de terem feito os vícios
enganar as leis. Digo, pois, que os cos­ brotarem, são necessárias para impe­
tumes de um povo são como a honra di-los de se tornarem crimes, cobrin­
de um homem: é um tesouro que se do-os de um verniz que não permite
tem de conservar, mas que nunca mais que o veneno se evapore tão livre­
se recupera quando se perde13. mente. Destroem a virtude, mas preser­
Mas, quando um povo já se corrom­ vam o seu simulacro público1 4, que
peu até um certo ponto, quer as ciên­ sempre é uma bela coisa; em seu lugar
cias tenham, quer não, contribuído introduzem a polidez e a decência, e
para tanto, será preciso bani-las ou se substituem o temor de parecer mau
preservar delas para torná-lo melhor pelo de parecer ridículo.
ou impedi-lo de tornar-se ainda pior? Minha opinião é, pois, e já o afirmei
Esta é outra questão, em relação à qual mais de uma vez, deixar subsistir e
me declarei positivamente pela negati­ mesmo manter as academias, os colé­
va. Pois, em primeiro lugar, uma vez gios, as universidades, as bibliotecas,
que um povo corrupto nunca mais os espetáculos1 5 e todas as outras
volta à virtude, não se trata mais de distrações que podem de certo modo
divertir a maldade dos homens e impe­
tornar bons aqueles que não o são, mas
di-los de ocupar a ociosidade em coi­
de conservar assim aqueles que têm a
sas mais perigosas, pois, numa região
felicidade de sê-lo. Em segundo lugar,
as mesmas causas que corromperam na qual não se fizesse mais questão
nem de pessoas de bem nem de bons
os povos servem algumas vezes para costumes, seria ainda melhor viver
prevenir uma corrupção ainda maior; com velhacos do que com salteadores.
assim, aquele que estragou o seu
temperamento com um uso imprudente Pergunto, agora, onde está a contra­
dição em cultivar eu próprio os gostos
13 Encontro na história um exemplo único,
cujo progresso aprovo. Não se trata
mas impressionante, que parece contradizer mais de levar os povos a agirem bem,
essa m áxima — é o da fundação de Roma, basta distraí-los de fazerem o mal.
feita por um grupo de bandidos, cujos descen­
dentes, em poucas gerações, se tornaram o
1 4 Esse simulacro consiste nurrja certa doçura
povo mais virtuoso que já existira. Não me fur­
de costumes, que algumas vezes substitui a sua
taria ao trabalho de explicar esse fato, caso o
pureza, uma certa aparência de ordem que pre­
lugar o com portasse; contentar-me-ei com
vine a tremenda confusão, uma certa admira­
assinalar que os fundadores de Roma eram
ção pelas belas coisas que impede as boas de
menos homens cujos costumes se tinham
caírem inteiramente no esquecimento. É o
corrompido, do que homens cujos costumes
vício que toma a máscara da virtude, não
não se tinham formado. Não desprezavam a
com o a hipocrisia para enganar e trair, mas
virtude; apenas não a conheciam ainda, pois as
palavras virtude e vício são noções coletivas para, sob essa efígie amável e sagrada, afastar
0 horror que tem de si mesmo quando se con­
que só nascem do convívio dos homens. Quan­
templa nu. (N. do A.)
do muito, poder-se-ia extrair dessa objeção um
argumento desfavorável em relação às ciên­ 1 5 Sobre o assunto “espetáculos” Rousseau
cias, pois dos dois primeiros reis de Roma, que sustentará, no entanto, uma opinião diversa e
deram forma à república e instituíram seus nitidamente hostil. Cf. a Carta a d ’A lembert. É
uso-' e costumes, um se ocupava de guerras e o verdade que, aqui, Rousseau tem necessidade
outro de ritos sagrados, que são as duas coisas de justificar uma peça de teatro de sua autoria.
mais distanciadas da filosofia. (N . do A.) (N. de P . A. -B.)
DISCURSO SOBRE AS CIÊNCIAS E AS ARTES 435

Impõe-se ocupá-los com bagatelas mim mesmo, faltava-me ainda uma


para desviá-los das más ações; em prova e a fiz sem titubear. Depois de
lugar de pregar-lhes, deve-se distraí- ter reconhecido a situação de minha
los. Se meus escritos edificaram o alma nos sucessos literários, faltava-
pequeno grupo dos bons, eu lhes fiz me examiná-la na infelicidade. Sei,
todo o bem que dependia de mim e agora, o que pensar disso e posso dei­
será talvez servi-los ainda mais util­ xar o pior para o público. Minha peça
mente oferecer aos outros objetos de teve a sorte que merecia e que eu previ­
distração que os impeçam de pensar ra, mas, no quase desgosto que me
em si. Muito me agradaria ter sempre causou, saí da representação muito
uma peça para ser vaiada, se a esse mais contente comigo mesmo e com
preço pudesse, durante duas horas, muito mais motivo do que se ela obti­
conter os maus desígnios de um único vera êxito.
espectador, salvar a honra da esposa Aconselho, pois, àqueles que com
ou da filha de seu amigo, o segredo de tanto ardor procuram reprimendas
seu confidente ou a fortuna de seu cre­ para fazer-me, estudarem meus princí­
dor. Quando não existem mais costu­ pios e observarem melhor minha con­
mes, tem-se de pensar unicamente na duta antes de acusarem-me de contra­
polícia, e sabe-se muito bem que a mú­ dição e inconseqüência. Se:, algum dia,
sica e os espetáculos constituem um de perceberem que começo a ambicionar
seus mais importantes objetivos. os sufrágios do público, que me envai­
deço de ter feito lindas c:anções, que
Caso exista alguma dúvida sobre
me envergonho de ter escrito más
minha justificação — arrisco-me a
comédias, que procuro deslustrar a
dizê-lo tão ousadamente — , não será
glória de meus concorrentes, que afeto
nem em relação ao meu público, nem a
falar mal dos grandes homens de meu
meus adversários, mas somente a mim século a fim de, rebaixando-os ao meu
mesmo, pois somente observando a nível, conseguir elevar-rre ao deles,
mim mesmo é que posso julgar se devo que aspiro a lugares da academia, que
incluir-me naquele pequeno grupo e se tenha feito a corte às senhoras que dão
minha alma está em situação de sus­ o tom, que incenso a idiotice dos gran­
tentar o fardo das atividades literárias. des, que, deixando de querer viver do
Mais de uma vez tive consciência do trabalho de minhas mãos, lanço na
perigo delas, mais de uma vez abando­ ignomínia o ofício que escolhi e faço
nei-as no firme propósito de nunca esforços no sentido de conseguir fortu­
mais voltar atrás; renunciando a seu na, se, numa palavra, notarem que o
encanto sedutor, sacrifiquei à paz de amor da reputação me faz esquecer o
meu coração os únicos prazeres que da virtude, peço-lhes que me advirtam
ainda poderiam satisfazer-me. Se, nas disso, publicamente, e eu prometo dei­
aflições que me oprimem, se, no fim de tar, no mesmo instante, fogo aos meus
uma carreira penosa e dolorosa, ousei escritos e aos meus livros, e concordar
retomá-las ainda por alguns momen­ com todos os erros que lhes aprouver
tos, a fim de encantar meus males, censurar-me.
creio não ter posto nisso demasiado Esperando, escreverei livros, com­
interesse e pretensão para, a tal respei­ porei versos e música, caso tenha para
to, merecer as justas reprimendas que isso talento, tempo, força e vontade, e
faço aos literatos. continuarei a dizer, com toda a fran­
Para completar o conhecimento de queza, todo o mal que penso das letras
436 ROUSSEAU

e daqueles que as cultivam1 6, tendo cias e das artes, todayia, fez e publicou
certeza de não valer menos por isso. É peças de teatro” , e tal discurso consti­
verdade que um dia poderão dizer: tuirá, confesso, uma sátira muito
“Esse inimigo tão declarado das ciên- amarga;, não a mim, mas a meu século.

1 6 Admiro-me com o a maioria dos literatos possa sustentar pela sua conduta o exame do
mudou de partido nesta questão. Quando artigo precedente, não possa dizer, em seu
viram as ciências e as artes atacadas, acredita­ favor, o que digo de mim, e esse modo de
ram-se atingidos pessoalmente, quando, sem se
raciocinar parece-me convir-lhe tanto mais
contradizer, poderiam todos eles, com o eu.
pensar que, embora essas coisas tenham feito quanto, entre nós, eles se preocupam muito
muito mal à sociedade, é essencial hoje servir- pouco com as ciências, conquanto continuem
se delas, com o de um remédio para o mal que elas a conferir dignidade aos sábios. Lem­
causaram ou com o um desses animais maléfi­ bram-nos os padres do paganismo, que só esti­
cos que é preciso esmagar sobre a mordida. mavam a religião na medida em que ela os tor­
Numa palavra, não existe um literato que, caso nava respeitados. (N . do A.)
Ín d ic e

D o C ontrato Social ou P rincípios do D ireito P olítico ................. 7


Introdução ........................................................................................................... 9
1. Circunstâncias da com p osição.................................................................... 9
2. Fontes e influências ..................................................................................... 12
3. Resenha analítica .......................................................................................... 14
Livro I .............................................................................................................. 14
Livro II ........................................................................................................... 16
Livro III ........................................................................................................... 18
Livro IV ........................................................................................................... 19
4. Observações sobre o texto ......................................................................... 20

Livro Primeiro

C apítulo I — Objeto deste primeiro livro ................................................. 28


C apítulo II — Das primeiras sociedades ................................................... 29
C apítulo III — D o direito do mais forte ................................................... 31
C apítulo IV — D a escravidão ....................................................................... 32
C apítulo V — De como é sempre preciso remontar a uma convenção
anterior ................................................................................... ............................ 36
C apítulo VI — D o pacto social .................................................................... 37
C apítulo VII — D o soberano ....................................................................... 40
C apítulo VIII — D o estado civil .................................................................. 42
C apítulo IX — D o domínio real .................................................................. 43

Livro Segundo

C apítulo I — A soberania é inalienável ............................................ .. 49


C apítulo II — Das primeiras sociedades ............................................ 50
C apítulo III — Se pode errar a vontade geral .......................................... 52
C apítulo IV — D os limites do poder soberano ............................. . . . 54
C apítulo V — D o direito de vida e de morte ............................................ 57
C apítulo VI — D a lei ...................................................................................... 59
C apítulo VII — D o legislador ....................................................................... 62
438 ÍNDICE

C apítulo VIII — D o povo ............................. -............................................ 66


C apítulo IX — Continuação ....................................................................... 68
C apítulo X — Continuação ......................................................................... 70
C apítulo XI — D os vários sistemas de legislação .................................. 72
C apítulo XII — Divisão das leis .................................................................. 74

Livro Terceiro

C apítulo I — D o governo em geral ............................................................. 79


C apítulo II — D o princípio que constitui as várias formas de governo . 85
C apítulo III — Divisão dos governos ........................................................ 88
C apítulo IV — D a democracia .................................................................... 89
C apítulo V — D a aristocracia .................................................................... 92
C apítulo VI — D a monarquia .................................................................... 94
C apítulo VII — Dos governos mistos ........................................................... 99
C apítulo VIII — Que qualquer forma de governo não convém a qual­
quer país .............................................................................................................. 100
C apítulo IX — Indícios de um bom governo ............................................ 104
C apítulo X — D os abusos do governo e de sua tendência a degenerar. 105
C apítulo X I — D a morte do corpo político ............................................... 108
C apítulo XII — Como se mantém a autoridade soberanal .................... 109
C apítulo XIII — Continuação .................................................................... 110
C apítulo XIV — Continuação .................................................................... 111
C apítulo XV — D os deputados ou representantes .................................. 112
C apítulo XVI — De como a instituição do governo não é de modo
algum um contrato .......................................................................................... 116
C apítulo XVII — D a instituição do governo ............................................ 118
C apítulo XVIII — Meio de prevenir as usurpações do governo .......... 119

Livro Quarto

C apítulo I — D e como a vontade geral é indestrutível ........................... 123


C apítulo II — D os sufrágios ......................................................................... 125
C apítulo III — Das eleições ......................................................................... 128
C apítulo IV — D os comícios romanos ...................................................... 130
C apítulo V — D o tribunato ......................................................................... 137
C apítulo VI — D a ditadura ......................................................................... 139
C apítulo VII — D a censura ......................................................................... 141
C apítulo VIII — D a religião civil ............................................................... 143
C apítulo IX — Conclusão ........................................................................... 151
ÍNDICE 439

Ensaio sobre a Origem das Línguas ............................................................. 153


Introdução ........................................................................................................... 155
1. Circunstância da composição .................................................................... 155
2. Fontes e influências ..................................................................................... 156
3. Resenha analítica .......................................................................................... 158
A . Origem da linguagem ............................................................................ 158
B. Diferenciação das línguas .................................................................... 160
C. A questão da música .............................................................................. 161
D. O capítulo final ........................................................................................ 161

Ensaio sobre a Origem das Línguas


no qual se fala da Melodia e da Imitação Musical

C apítulo I — D os vários meios de comunicar nossos pensamentos . . 164


C apítulo II — De como a primeira invenção das palavras não vem das
necessidades, mas das paixões ....................................................................... 169
C apítulo III — De como a primeira linguagem teve de ser figurada . . 170
C apítulo IV — D os caracteres distintivos da primeira língua e das
mudanças que teve de sofrer ............................................................................ 171
C apítulo V — Da escrita .............................................................................. 173
C apítulo VI — Se é provável que Homero soubesse escrever ............... 176
C apítulo VII — D a prosódia moderna ...................................................... 177
C apítulo VIII — Diferenças gerais e locais na origem das línguas . , . 180
C apítulo IX — Formação das línguas meridionais ................................ 180
C apítulo X — Formação das línguas do norte .......................................... 190
C apítulo XI — Reflexões sobre essas diferenças ..................................... 191
C apítulo XII — Origem e relações da música .......................................... 192
C apítulo XIII — D a melodia ............................................................. . . . 194
C apítulo XIV — D a harmonia ........................................................... . . . 195
C apítulo XV — De como nossas mais vivas sensações freqüentemente
agem por meio de impressões morais ................................................... . . . 197
C apítulo XVI — Falsa analogia entre as cores e os sons ............ .. 198
C apítulo XVII — Erro dos músicos, prejudicial à sua arte .......... . . . 200
C apítulo XVIII — D e como o sistema musical dos gregos não possuía
relação alguma com o nosso ............................................................................ 201
C apítulo X IX — Como degenerou a música ............................................ 202
C apítulo X X — Relação entre as línguas e o governo ........................... 204

D is c u r s o so b re a O r ig e m e os F u n d a m e n to s d a D e s ig u a ld a d e
e n tr e os H om ens .......................................................................................................................... 207
440 ÍNDICE

Introdução ..........................................................................................................209
Advertência ........................................................................................................222
À República de Genebra ................................... *..............................................223
Prefácio ...............................................................................................................233
Discurso ...............................................................................................................239
Introdução às Notas de Rousseau ...................................................................289
Notas de Rousseau ................ .......................................................................... 291
Introdução à Carta ao Sr. Philopolis ............................................................. 317
C arta ao Sr. Philopolis ....................... ............................................................ 321

D is c u r s o s o b r e a s C iê n c ia s e a s A r t e s .......................................................329
Introdução de Paul Arbousse-Bastide .............................................................. 331
Advertência ........................................................................................................ ... 338
Prefácio ................................................................................................................... 339
Discurso ................................................................................................................... 341

Respostas dadas por J.-J. Rousseau às


objeções dirigidas a seu Discurso

Introdução de Paul Arbousse-Bastide .................................. ........................... 363


Carta ao Sr. Padre Raynal ............................................................................. ... 371
Carta ao Sr. Grimm ............................................................................................. 373
Resposta ao Rei da P o lô n ia .............................................................................. ... 383
Última resposta ao Sr. Bordes ........................ ................................................ ... 401
Carta de Rousseau sobre uma nova refutação de seu discurso por um
Acadêmico de Dijon ......................................................................................... ... 421
Prefácio de “Narciso” ........................................................................................... 425
Este livro integra a coleção
OS P EN SAD O R ES — HISTÓRIA D A S G R A N D E S IDÉIAS D O M U N D O OCIDENTAL
Composto e impresso nas oficinas da
A bril Su4. Cultural e Industrial, caixa postal 2372, São Paulo

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