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Kaf ka no Brasil: 1946-1979

Kaf ka in Brazil: 1946-1979

Denise Bot t mann *

Resumo: Est e art igo aborda t rês t emas ref erent es à presença de Kaf ka no Brasil .
Primeirament e, como algumas t raduções espanholas anônimas f oram at ribuídas a
Jorge Luis Borges e f oram ut ilizadas em diversas t raduções brasileiras. A seguir, uma
demonst ração de que a língua de int erposição ut ilizada por Torrieri Guimarães, o mais
prolíf ico t radut or de Kaf ka ent re nós, f oi o espanhol . Por f im, um levant ament o dos
t ext os de Kaf ka t raduzidos e publicados no Brasil ent re 1946 e 1979.

Pal avr as-chave: Kaf ka; hist ória da t radução no Brasil; l it erat ura de língua alemã.

Abst r act : This art icle addresses t hree aspect s of Kaf ka’ s presence in Brazil: f irst ly, how
some anonymous Spanish t ransl at ions were at t ribut ed t o Jorge Luis Borges and used in
several Brazilian t ranslat ions; secondly, a demonst rat ion t hat t he int ermediary
language used by Torrieri Guimarães, our most prolif ic t ranslat or of Kaf ka, was
Spanish; and, f inally, a survey of t ext s by Kaf ka t hat were t ranslat ed and publ ished in
Brazil bet ween 1946 and 1979.

Keywor ds: Kaf ka; hist ory of t ranslat ion in Brazil ; German-language lit erat ure.

*
Pesquisadora de hist ória da t radução no Brasil

Tr adTer m , São Paulo, v. 24, Dezembro/ 2014, pp. 213-238


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Um dos casos mais int eressant es na hist ória da t radução no Brasil é o de


Franz Kaf ka, cuj as décadas iniciais ent re nós compõem um quadro permeado
de dúvidas, incert ezas e at é hist oriet as mal cont adas. É sobre est e quadro que
nos debruçaremos para dirimir algumas dessas dúvidas e escl arecer algumas
dessas incert ezas, sem deixar de reconst it uir t ambém algumas dessas curiosas
hist oriet as.

1. Da Espanha ao Brasil, via Argent ina

Comecemos pela Espanha nos anos 1920, dest acando um episódio que,
passando pela Argent ina, ref let iu-se no Brasil nos anos 1940, desde ent ão
ganhando amplit ude e sólida permanência na kaf kiana brasileira.
Em 1925, a Revi st a de Occi dent e, célebre publicação madrilenha
dirigida por Ort ega y Gasset , lançou a primeira t radução de Di e Ver wandl ung
de que se t em not ícia no mundo, que recebeu em espanhol o t ít ul o de La
met amor f osi s. A novela saiu em duas part es, no primeiro e no segundo
semest res daquele ano. A t radução era anônima e perdeu-se a memória de
quem a t eria f eit o na época.
Em 1927, a mesma Revi st a de Occi dent e publicou, t ambém
anonimament e, a t radução de “ Ein Hungerkünst er” com o t ít ulo de “ Un art ist a
del hambre” . E, em 1932, lançou “ Erst es Leid” com o t ít ulo de “ Un art ist a del
t rapecio” , 1 t ampouco t razendo ident if icação do t radut or.
Em 1938, a edit ora Losada de Buenos Aires inaugurou sua coleção “ La
paj arit a de papel” . O aut or escol hido para est rear a col eção f oi Kaf ka, com uma
colet ânea de t ext os reunidos sob o t ít ulo de La met amor f osi s. A selet a t razia

1
Coment e-se de passagem que, se o t ít ulo “ Un art ist a del t rapecio” , t ão dist ant e do original
Er st es Lei d , parece corresponder a uma escolha da revist a para t raçar alguma linha de
cont inuidade na ment e do leit or com “ Un art ist a del hambre” publicado alguns anos ant es, por
out ro lado ele adquirirá f oros de cidadania quase permanent e ent re nós, servindo at é como
uma espécie de f io de Ariadne para a pesquisa das f ont es da t radução.

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nove cont os, a saber: “ La met amorf osis” , “ La edif icación de la Muralla China” ,
“ Un art ist a del hambre” , “ Un art ist a del t rapecio” , “ Una cruza” , “ El buit re” ,
“ El escudo de la ciudad” , “ Promet eo” e “ Una conf usión cot idiana” . Tradut or:
Jorge Luis Borges.
Porém, as t raduções de “ La met amorf osis” , “ Un art ist a del t rapecio” e
“ Un art ist a del hambre” assinadas por Borges em 1938 são réplicas
prat icament e int ocadas das t raduções anônimas publicadas em 1925-1927 pela
Revi st a de Occi dent e. Transcorreram-se quase quarent a anos at é que Jorge Luis
Borges viesse a admit ir que a t radução de “ La met amorf osis” publicada pel a
Losada não era de lavra sua.
Foi o prof essor e t radut or Fernando Sorrent ino, grande apreciador de
Kaf ka e de Borges, quem deslindou o enigma. Ao ler nos anos 1960 o volume da
Losada, La met amor f osi s, est ranhara aquela versão da novela-t ít ulo,
parecendo-lhe muit o dist ant e dos “ cost umes lexicais e sint át icos de Borges” .
Coment a ele: “ No se t r at aba de l a pr esi ón que el t ext o or i gi nal ej er ce sobr e el
t r aduct or , obl i gándol o a adecuar se, en mayor o menor medi da, a l as car act er íst i cas
del aut or t r aduci do. La di ver genci a est i l íst i ca er a abi smal : r esul t a ext r añísi mo que
nadi e se haya dado cuent a de que t al t r aducci ón no er a, ni podía ser , obr a de Bor ges”
(SORRENTINO 2000).
Em 1970, Sorrent ino t eve ocasião de realizar diversas ent revist as com
Borges, das quais result ou o livro Si et e conver saci ones con Jor ge Lui s Bor ges,
publicado em 1974. 2 Foi ent ão que pôde dirimir sua dúvida, coment ando
diret ament e com Borges:

F. S. : Me par eci ó not ar en su ver si ón de La met amorf osis, de Kaf ka,


que ust ed di f i er e de su est i l o habi t ual …

J. L. B. : Bueno: el l o se debe al hecho de que yo no soy el aut or de l a


t r aducci ón de ese t ext o. Y una pr ueba de el l o —además de mi
pal abr a— es que yo conozco al go de al emán, sé que l a obr a se t i t ul a
Die Verwandlung y no Die Met amorphose , y sé que hubi er a debi do
t r aduci r se como La t ransf ormación. (. . . ) Lo que yo sí t r aduj e f uer on

2
O volume f oi lançado no Brasil como Jor ge Luís Bor ges: set e conver sas com Fer nando
Sor r ent i no, em t radução de Ana Flores, pela Azougue Edit orial, em 2009.

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l os ot r os cuent os de Kaf ka que est án en el mi smo vol umen publ i cado


por l a edi t or i al Losada. Per o, par a si mpl i f i car —qui zá por r azones
mer ament e t i pogr áf i cas—, se pr ef i r i ó at r i bui r me a mí l a t r aducci ón
de t odo el vol umen, y se usó una t r aducci ón acaso anóni ma que
andaba por ahí. (Id. , ibid. )

Naquela ocasião Sorrent ino se deu por sat isf eit o, pois, segundo ele, o
que lhe int eressava na época era apenas comprovar que a t radução não era de
Borges, e não descobrir qual seria, de quem seria ou onde t eria sido publicada
a mist eriosa t radução. Porém, t empos depois, vindo a saber que t ampouco “ Un
art ist a del hambre” e “ Un art ist a del t rapecio” t inham sido t raduzidos por
Borges, decidiu por f im “ t r at ar de encont r ar l a ‘ t r aducci ón acaso anóni ma que
andaba por ahí’ (y que, si n duda, Bor ges si empr e supo cuál er a y dónde
est aba) ” . E f oi ent ão que suas pesquisas o levaram à Revi st a de Occi dent e e aos
3
números ant eriorment e cit ados.

Deixando as digressões sobre a f ort una argent ina de Kaf ka, passemos
agora ao que acont eceu no Brasil com esses t rês cont os.
Em 30 de março de 1946, a Revi st a da Semana, Ano XLVII, no. 13, publicou
aquela que parece ser a primeira t radução de Kaf ka ent re nós, a saber, “ Um
art ist a do t rapézio” , anônima e sem indicação de f ont es. À sua leit ura, vê-se
clarament e que ela se baseou na cit ada t radução em espanhol .
Em 1947, mais precisament e no dia 31 de agost o, o j ornal Di ár i o de
Not íci as, em sua coluna “ Cont o da Semana” , publica uma nova t radução de
“ Um art ist a do t rapézio” , agora por Aurélio Buarque de Holl anda, o qual
especif ica devidament e que ut ilizou como base a edição da Losada com
t radução em nome de Jorge Luis Borges.
Na década seguint e, em 1957, a edit ora Cult rix, no volume Mar avi l has
do cont o al emão, t ambém publica “ O art ist a do t rapézio” . Tradução? Anônima.

3
Para o debat e de Sorrent ino e out ros em t orno da quest ão, bem como para algumas hipót eses
sobre a ident idade do t radut or anônimo, vej a-se
<ht t p: / / naogost odeplagio. blogspot . com. br/ 2009/ 11/ kaf ka-anonimo-borgiano. ht ml >.

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A essas alt uras, o leit or j á t erá adivinhado, e corret ament e, que esse art ist a do
t rapézio t ambém é aquele mesmo publicado na Revi st a de Occi dent e.
Chegando à década de 1960, t emos o que se poderia considerar a
primeira grande alavancada na dif usão das obras de Kaf ka no Brasil ,
basicament e por iniciat iva da Livraria Exposição do Livro (L. E. L. , post erior
Hemus), com t raduções f eit as sempre por Torrieri Guimarães.
Um de seus volumes, A col ôni a penal , publicado em 1965, t raz 39 cont os,
ent re eles “ A met amorf ose” , “ Um art ist a da f ome” e “ Um art ist a do t rapézio” .
Por mais que seu t radut or, Torrieri Guimarães, af irmasse que f azia suas
t raduções de Kaf ka por int erposição do f rancês – t ema do qual t rat aremos mais
adiant e –, a verdade é que esses t rês cont os são f ielment e calcados nas
t raduções em espanhol. A est e respeit o, vale lembrar o excelent e est udo de
Celso CRUZ (2007), apont ando como era “ visível a ligação do t ext o assinado por
Torrieri com as versões hispânicas” (CRUZ, 2007: 201).
Eis uma breve comparação:

Ao desper t ar Gr egor i o Samsa una mañana, t r as un sueño i nt r anqui l o,


encont r óse en su cama conver t i do en un monst r uoso i nsect o.
Hal l ábase echado sobr e el dur o car apazón de su espal da y, al al zar
un poco l a cabeza, vi o l a f i gur a convexa de su vi ent r e oscur o, sur cado
por cur vadas cal l osi dades, cuya pr omi nenci a apenas si podía
aguant ar l a col cha, que est aba vi si bl ement e a punt o de escur r i r se
haci a el suel o. Innumer abl es pat as, l ament abl ement e escuál i das en
compar aci ón con el gr osor or di nar i o de sus pi er nas, of r ecían a sus
oj os el espect ácul o de una agi t aci ón si n consi st enci a. (“ JLB” )

Quando, cert a manhã, Gregório Samsa despert ou, depois de um sono


int ranquilo, achou-se em sua cama convert ido em um monst ruoso
inset o. Achava-se deit ado sobre a dura carapaça de suas cost as, e, ao
erguer um pouco a cabeça, viu a f igura convexa de seu vent re escuro,
sulcado por pronunciadas ondulações, cuj a proeminência a colcha
mal podia aguent ar, que est ava visivelment e a pont o de escorrer at é
o sol o. Inúmeras pat as, l ament avelment e esquálidas em comparação
com a grossura comum de suas pernas, of ereciam a seus olhos o
espet áculo de uma agit ação sem consist ência. (TG)

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Eis mais duas breves comparações ent re t rechinhos t raduzidos de,


respect ivament e, “ Ein Hungerkünst er” e “ Erst es Leid” :

Par a l os adul t os aquel l o sol ía no ser más que una br oma en l a que
t omaban par t e medi o por moda, per o l os ni ños, cogi dos de l as manos
por pr udenci a, mi r aban asombr ados y boqui abi er t os a aquel hombr e
pál i do, con cami set a oscur a, de cost i l l as sal i ent es, que, desdeñando
un asi ent o, per manecía t endi do en l a paj a espar ci da por el suel o, y
sal udaba, a veces, cor t ament e o r espondía con f or zada sonr i sa a l as
pr egunt as que se l e di r i gían o sacaba, qui zá, un br azo por ent r e l os
hi er r os par a hacer not ar su del gadez, vol vi endo después a sumi r se
en su pr opi o i nt er i or , si n pr eocupar se de nadi e ni de nada, ni si qui er a
de l a mar cha del r el oj , par a él t an i mpor t ant e, úni ca pi eza de
mobi l i ar i o que se veía en su j aul a. (“ JLB” )

Para os adult os aquilo cost umava não ser senão uma brincadeira na
qual t omavam part e meio por moda, mas as crianças, seguros [ sic]
pelas mãos por prudência, olhavam assombrados e boquiabert os
aquele homem pálido, com camiset a escura, de cost elas salient es,
que, desdenhando um assent o, permanecia est endido na palha
esparsa pel o sol o, e saudava, às vezes, cort esment e [ sic] ou respondia
com f orçado sorriso às pergunt as que dirigiam a ele, ou t irava, t alvez,
um braço por ent re os f erros para f azer not ar sua magreza, t ornando
depois a sumir-se em seu próprio int erior, sem se preocupar por
ninguém ou com nada, nem sequer pela marcha do rel ógio, para ele
t ão import ant e, única peça de mobiliário que se via em sua j aul a.
(TG)

E:
Un ar t i st a del t r apeci o - como se sabe, est e ar t e que se pr act i ca en
l o al t o de l as cúpul as de l os gr andes ci r cos es uno de l os más di f íci l es
ent r e t odos l os asequi bl es al hombr e- había or gani zado su vi da de t al
maner a - pr i mer o por af án pr of esi onal de per f ecci ón, después por
cost umbr e que se había hecho t i r âni ca - que, mi ent r as t r abaj aba en
l a mi sma empr esa, per manecía día y noche en el t r apeci o. Todas sus
necesi dades - por ot r a par t e muy pequenas - er an sat i sf echas por
cr i ados que se r el evaban a i nt er val os y vi gi l aban debaj o. Todo l o que
ar r i ba se necesi t aba l o subían y baj aban en cest i l l os const r ui dos par a
el caso. (“ JLB” )

Um art ist a do t rapézio – como se sabe, est a art e que se prat ica no
alt o das cúpulas dos grandes circos é uma das mais dif íceis ent re

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t odas as exequíveis ao homem – t inha organizado sua vida de t al


maneira – primeiro por af ã prof issional de perf eição, depois por
cost ume que se t ornara t irânico – que, enquant o t rabal hava na
mesma empresa, permanecia dia e noit e no t rapézio. Todas as suas
necessidades – por out ro lado muit o pequenas – eram sat isf eit as por
criados que se revezavam em int ervalos e vigiavam embaixo. Tudo o
de que se precisava em cima subiam-no e baixavam em cest inhos
const ruídos para o caso. (TG)

Assim, quant o a esses t rês cont os de Kaf ka, provavelment e j amais


saberemos quem f oi seu legít imo t radut or, desde sua origem anônima na
Espanha at é o f alseament o dos crédit os de t radução na Argent ina. O f at o
adquire maior relevância, sobret udo em relação a A met amor f ose, por ser,
ent re esses t rês t ext os, o mais amplament e divulgado ent re nós na t radução de
Torrieri Guimarães, com incont áveis edições ent re diversas casas publicadoras:
além da L. E. L. , a Tecnoprint em “ Clássicos de Ouro” ; o Clube do Livro; a
Ediouro em “ Bibliot eca de Babel” ; a Publif olha em “ Bibliot eca Folha” (j unt o
com “ Um art ist a da f ome” ); a Ediouro em out ro “ Clássicos de Ouro” ; a It at iaia/
Villa Rica; a Mart in Claret . 4

2. Nosso Kaf ka de origens poliglot as

Vej amos agora por meio de quais línguas Kaf ka chegou ao Brasil .
No período que aqui nos int eressa, de 1946 a 1979, t raduziu-se muit o do
espanhol , bast ant e do inglês, um pouco do f rancês e prat icament e nada do
alemão. Poderíamos caract erizá-lo esquemat icament e da seguint e maneira:
1. De 1946 a 1963, uma f ase inicial de publicações dispersas e t raduções
a part ir de f ont es e idiomas variados, incl usive as únicas duas ou t rês possíveis
ocorrências de t raduções diret as do alemão.

4
As edições de A met amor f ose pela Mart in Claret passaram anos envolvidas em irregularidades.
Vej am-se CRUZ (2007: 205-6) e VIANNA (2007).

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2. De 1964 a 1979, quando se t em prat icament e t oda a obra de Kaf ka


t raduzida e publicada ent re nós, podemos discernir duas f ases nit idament e
dist int as: nos anos 1960, o predomínio maciço de t raduções a part ir do
espanhol; nos anos 1970, o predomínio maciço de t raduções a part ir do inglês.
Tent emos agora rast rear as várias sit uações linguíst icas e os vários canais
por onde, de maneira mais sist emát ica, chegaram as obras de Kaf ka a nós.
Na seção ant erior, vimos que um desses canais f oi a colet ânea de cont os
publicada pela Losada, ut ilizando sob o nome de Jorge Luis Borges t raduções
anônimas ant eriores de “ A met amorf ose” , “ Um art ist a da f ome” e “ Um art ist a
do t rapézio” . Vimos t ambém que est e últ imo recebeu no Brasil quat ro
t raduções dist int as ent re 1946 e 1965 (anônima da R. S. , Aurélio Buarque de
Hollanda, anônima cult rixiana e Torrieri Guimarães), t odas elas part indo da
mesma t radução espanhola, e que os out ros dois cont os na pret ensa versão de
Borges f oram t raduzidos t ambém por Torrieri, sem menção à f ont e ut ilizada.
Como Torrieri Guimarães f oi por muit os anos o principal t radut or de
Kaf ka ent re nós e ainda hoj e suas t raduções cont inuam a ser reedit adas, seu
nome est á indissociavelment e int egrado à kaf kiana brasileira: daí a import ância
de examinarmos com algum vagar sua relação com a obra de Kaf ka.
Torrieri nunca pret endeu t ê-la t raduzido do alemão. Pelo menos desde
os anos 1980, em ent revist as à imprensa e a set ores universit ários, o t radut or
af irmava que se valera do f rancês como idioma de part ida. Det enho-me numa
ent revist a mais recent e, prest ada em 2003 ao pesquisador Eduardo Manoel de
BRITO (2005, “ Anexo” , p. 365-75). A hist ória é um t ant o engraçada: segundo
Torrieri, o propriet ário da edit ora L. E. L. , Eli Behar, t eria conhecido
pessoalment e Max Brod em Israel, negociando diret ament e com ele os direit os
de t radução da obra de Kaf ka no Brasil e Brod os t eria cedido a t ít ulo de cort esia
a Behar. Não que essas af irmações f açam sent ido, vist o que Brod não est aria na
menor condição de negociar e muit o menos de doar coisa alguma: j á desde o
começo dos anos 1930, ele t ransf erira t odos os direit os sobre as obras complet as
de Kaf ka em nível mundial para a Schocken, ent ão ainda sediada em Berlim.
Assim, desde 1934 a Schocken se t ornou a det ent ora exclusiva dos direit os de

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edição, t radução e publicação mundial de t odo o cor pus kaf kiano (aliás, no caso
da Alemanha, a Schocken t ransf eriu os direit os de publicação das obras de Kaf ka
para S. Fischer apenas em 1951). Max Br od j amais volt ou a det er qualquer
direit o sobre elas.
Mas, segundo Torrieri Guimarães apud BRITO (2005), f oi nessas condições
– com Max Brod cedendo gent ilment e os direit os de t radução a Eli Behar – que
se t eria iniciado seu “ int enso cont at o” com os t ext os do aut or, f icando el e “ à
f rent e do proj et o f ormal de t raduzir t oda a obra de Kaf ka para o port uguês do
Brasil” para a ref erida edit ora (125-6). Seu propriet ário, Eli Behar, ent ão t eria
f ornecido os exemplares das obras de Kaf ka em f rancês a Torrieri para usá-las
como base para suas t raduções (160).
Na verdade, é t udo bem mais simples. Cruz apont ou os inequívocos
vínculos hispânicos, cit ados mais acima. De minha part e, rast reei esses vínculos
at é Borges e, via Sorrent ino, at é a Revi st a de Occi dent e. Prosseguindo as
pesquisas das f ont es primárias, não f oi dif ícil const at ar um f at o muit o evident e:
todas as t raduções de Kaf ka f eit as por Torrieri Guimarães f oram
inequivocament e real izadas a part ir do espanhol.
Vej amos, pois. Det enhamo-nos de início no volume que reúne os t rês
t ext os que coment amos at é agora. Trat a-se de A col ôni a penal , como dissemos,
publicada pela L. E. L. Apresent a 39 t ext os, dist ribuídos em cinco seções:
I. A Sent ença, com “ Narração” e “ Aeroplanos em Bréscia” ;
II. Cont empl ação, com “ Meninos em um caminho de campo” ,
“ Desmascarament o de um embaidor” , “ O passeio repent ino” , “ Resoluções” , “ A
excursão à mont anha” , “ Inf elicidade de solt eiro” , “ O comerciant e” ,
“ Cont emplação dist raída à j anela” , “ Caminho para casa” , “ Transeunt es” ,
“ Companheiros de Viagem” , “ Vest idos” , “ A recusa” , “ Para que os cavalheiros
medit em” , “ A j anela para a rua” , “ O desej o de ser pele-vermelha” , “ As
árvores” e “ Inf elicidade” ;
III. Um Médi co Rur al – Rel at os Br eves, com “ Um novo advogado” , “ Um
médico rural” , “ Na galeria” , “ Um velho manuscrit o” , “ Diant e da lei” , “ Chacais
e árabes” , “ Uma visit a à mina” , “ O povoado mais próximo” , “ Uma mensagem

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imperial” , “ Preocupações de um chef e de Família” , “ Onze f ilhos” , “ Um


f rat ricídio” , “ Um sonho” , “ Inf ormação para uma academia” e “ Na colônia
penal” ;
IV. Um Ar t i st a da Fome, com “ Uma mulherzinha” , “ Um art ist a da f ome” ,
“ Um art ist a do t rapézio” , “ A met amorf ose” e “ Josef ina, a cant ora ou A cidade
dos rat os” ;
V. Apêndi ce, com “ Capít ulo primeiro do livro Ricardo e Samuel” ,
t razendo “ Not a preliminar” e “ A primeira viagem longa em t rem” , e “ Três
crít icas” , a saber, “ Uma novela da j uvent ude” , “ Sobre as anedot as de Kleist ”
e “ Hyperion” .
Ora, ainda que Torrieri af irme que a seleção dos 39 t ext os f icou a seu
cargo e “ escolheu a sequência dos cont os” (BRITO 2005: 366), o cont eúdo da
colet ânea corresponde ao do volume Er zähl ungen und kl ei ne Pr osa, ist o é, o
primeiro volume de Gesammel t e Schr i f t en , as obras reunidas a cargo de Max
Brod, que f oi publicado pela Schocken Verlag em Berlim, em 1935. A única
dif erença é a exclusão das duas conversas da “ Descrição de uma l ut a” , por uma
simples e provável razão que será avent ada adiant e.
Assim, causa cert a surpresa que o ent revist ador de Torrieri t enha
aceit ado de plano suas declarações, af irmando: “ Est a edição t raduzida e
organizada por Torrieri Guimarães corresponde a uma miscelânea de t ext os
kaf kianos, numa ordem pensada pelo tradutor , incl uindo obras de vários e
dif erent es períodos da produção do aut or t checo e de dif erent es mat izes. A
edição, portanto, não prima por uma orientação de cunho crítico-literário”
(BRITO 2005: 125, negrit os meus). Ora, mas se Er zähl ungen und kl ei ne Pr osa é
j ust ament e o volume das obras reunidas que congrega t oda a produção que
Kaf ka publ icou em vida, e f oi precisament e est e o crit ério explícit o – a
publicação em vida – que Max Brod adot ou como “ orient ação de cunho crít ico-
lit erário” para sua organização!
Esclarecido o equívoco, prossigamos.
Ent ão, em 1952, Er zähl ungen und kl ei ne Pr osa f oi publicado pela edit ora
argent ina Emecé, em sua coleção “ Grandes Novelist as” , com t radução diret a

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do alemão f eit a por Juan Rodol f o Wilcock, sob o t ít ulo geral de La condena.
Ocorre que essa edição apresent a um dado curioso: mesmo indicando
clarament e o vol ume original a que deveria corresponder La condena, a Emecé
excluiu de sua edição os t rês cont os lançados pela Losada em sua colet ânea de
1938, aqueles mesmos cuj a t radução espanhola anônima f ora at ribuída a Jorge
Luis Borges – a Met amorf ose e os dois Art ist as, o da f ome e o do t rapézio.
E aí surge uma sit uação compósit a int eressant e. A t radução de Torrieri
em A col ôni a penal se calca na t radução de Wilcock em La condena pela Emecé;
mas, t endo essa edição argent ina excluído as t rês narrat ivas cit adas, para elas
Torrieri ut ilizou como t ext o de base – conf orme apont ei mais acima – a edição
da Losada com a pret ensa t radução de Borges.
Est es t rês cont os, j á vimos demoradament e. Most remos, agora, que a
t radução de Torrieri Guimarães para os demais cont os de A col ôni a penal se
calca na t radução de Wilcock em La condena. Por problemas de limit ação de
espaço, apresent aremos apenas um breve exemplo a t ít ulo il ust rat ivo, ext raído
de “ En la colónia penit enciaria/ Na colônia penal” :

– Es un apar at o si ngul ar – di j o el of i ci al al expl or ador , y cont empl ó


con cer t a admi r aci ón el apar at o, que l e er a t an conoci do. El
expl or ador par ecía haber acept ado sól o por cor t esía l a i nvi t aci ón del
comandant e par a pr esenci ar l a ej ecuci ón de un sol dado condenado
por desobedi enci a e i nsul t o haci a sus super i or es. En l a col óni a
peni t enci ar i a no er a t ampoco muy gr ande el i nt er és susci t ado por
est a ej ecuci ón. Por l o menos, en ese pequeño val l e, pr of undo y
ar enoso, r odeado t ot al ment e por r i scos desnudos, sól o se
encont r aban, además del of i ci al y el expl or ador , el condenado, un
hombr e de boca gr ande y aspect o est úpi do, de cabel l o y r ost r o
descui dados, y un sol dado, que sost enía l a pesada cadena donde
conver gían l as cadeni t as que r et enían al condenado por l os t obi l l os
y l as muñecas, así como por el cuel l o, y que est aban uni das ent r e sí
medi ant e cadenas secundar i as. De t odos modos, el condenado t enía
un aspect o t an cani nament e sumi so, que al par ecer hubi er an podi do
per mi t i r l e cor r er en l i ber t ad por l os r i scos ci r cundant es, par a
l l amar l o com un si mpl e si l bi do cuando l l egar a el moment o de l a
ej ecuci ón. (JRW)

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- É um aparelho singular – disse o of icial ao expl orador, e cont emplou


com cert a admiração o aparel ho, que lhe era t ão conhecido. O
explorador parecia t er aceit o apenas por cort esia o convit e do
comandant e para presenciar a execução de um soldado condenado
por desobediência e insult o aos seus superiores. Na colônia penal não
era t ampouco muit o grande o int eresse suscit ado por est a execução.
Pelo menos, nesse pequeno vale, prof undo e arenoso, cercado
t ot alment e por campos nus, apenas se encont ravam, além do of icial
e do explorador, o condenado, um homem de boca grande e aspect o
est úpido, de cabelo e rost o descuidados, e um soldado, que sust inha
a pesada cadeia de onde convergiam as pequenas cadeias que
ret inham o condenado pelos t ornozelos e as munhecas, assim como
pelo pescoço, e que est avam unidas ent re si mediant e cadeias
secundárias. (TG)

Já em relação à t radução de Torrieri Guimarães de A mur al ha da Chi na,


com t rint a e seis t ext os (ent re eles “ Descrição de uma lut a” ), t emos a seguint e
sit uação: o cont eúdo corresponde ao quint o volume de Gesammel t e Schr i f t en,
na organização de Max Brod, publicado em 1936 pela H. Mercy Sohn de Praga, 5
que leva o t ít ulo de Beschr ei bung ei nes Kampf es: Novel l en, Ski zzen,
Aphor i smen aus dem Nachl ass. Esse volume, além de um apêndice com t rês
f ragment os e o cont o “ La leva” , f oi lançado em 1953 pela Emecé com o t ít ul o
de La mur al l a chi na – cuent os, r el at os, escr i t os, em t radução de Alf redo Pippig
e Alej andro Ruiz Guiñazú para a coleção “ Grandes Novelist as” . A edição
argent ina, porém, por alguma razão excl uiu o cont o “ Der Geier” (“ O abut re” ),
que t ambém saíra pela Losada em 1938. A edição brasileira da L. E. L. o inclui,
mas, por out ro lado, exclui t rês parábolas const ant es no original da Schocken e
na t radução da Emecé: “ La verdad sobre Sancho Panza” , “ El silencio de las
sirenas” e “ Promet eo” .
Diga-se de passagem que a t radução de “ O abut re” at est a que Torrieri e
a L. E. L. recorreram ao volume da Losada para além dos t rês cont os j á
exaust ivament e coment ados. Pois ela vem f ielment e baseada em “ Le buit re” ,
na t radução de lavra, est a sim ef et iva, de Jorge Luis Borges.

5
Quando o governo nazist a proibiu a publicação de obras de Kaf ka (e de Brod) na Alemanha, o
edit or Schocken t ransf eriu part e de suas operações edit oriais para Praga, com Heinrich M. Sohn.

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Vale not ar que A mur al ha da Chi na é uma das raras edições em que a
L. E. L. est ampa na página de crédit os algum t ipo de ref erência bibliográf ica.
Temos: “ Tít ulo da obra em alemão: Beschr ei bung ei nes Kampf es” . Aqui
t ambém, e dest a vez no pref ácio do volume, Torrieri Guimarães avoca a si a
responsabil idade pela compilação e seleção dos t ext os. Af irma ele em pref ácio:
“ Aqui est á, nesta compilação que fizemos (. . . )” , “ Assim é que, nas histórias
que selecionamos aqui (. . . )” [ negrit os meus] – af irmações que, t al como no
caso de A col ôni a penal , só se poderiam considerar válidas se se admit isse que,
aqui, a exclusão das t rês breves parábolas chegaria a conf igurar algum t ipo de
recort e minimament e original na composição e organização da col et ânea.
E nest e pont o cabe a provável expl icação para a exclusão dos dois
diálogos de “ Descrição de uma lut a” do volume A col ôni a penal , como dissemos
acima, em t odo o rest ant e t ão f iel à organização de Brod via Wil cock. O crit ério
que Brod adot ou para organizar Beschr ei bung ei nes Kampf es: Novel l en,
Ski zzen, Aphor i smen aus dem Nachl ass, o quint o volume das obras reunidas, f oi
o de reunir num só vol ume as novelas, parábolas, af orismos e f ragment os ainda
inédit os. Como os dois diálogos de Beschr ei bung ei nes Kampf es publicados em
vida – “ Gespräche mit dem Bet er” e “ Gespräche mit dem Bet runkenen” – j á
t inham saído no primeiro volume, nat uralment e volt aram a sair t ambém na
narrat iva complet a, publicada post umament e no quint o. A L. E. L. , não t endo
nem de longe qual quer pret ensão de apuro edit orial, decert o considerou que
não f aria muit o sent ido repet i-los em dois volumes lançados com poucos meses
de int erval o ent re si, A mur al ha da Chi na e A col ôni a penal , e provavelment e
f oi por t al razão que excluiu os diálogos dest a segunda (aliás, l ançada pel a
L. E. L. depois d ’ A mur al ha).
Quant o ao uso da t radução de Pippig e Guiñazú em espanhol para a
t radução de Torrieri, apresent emos mais uma rápida amost ra a t ít ulo
elucidat ivo, ext raída de “ Abogados” / “ Advogados” :

Por sobr e t odas l as si ngul ar i dades, l o que más me r ecor daba a un


t r i bunal er a un r et umbar i ni nt er r ompi do que se oía a l o l ej os; no
podi a deci r se de qué di r ecci ón pr ovenía; col maba a t al punt o t odos

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l os ambi ent es, que podi a pensar se pr ocedía de t odas par t es; o, l o
que par eci a más exact o t odavía, que el si t i o donde casual ment e
est aba uno f uer a el ver dadei r o si t i o de aquel r et umbar ; per o
segur ament e aquel l o er a un er r or , pues el r umor venía de l ej os.
(P&G)

Por cima de t odas as singularidades, o que mais me lembrava um


t ribunal era um ret umbar inint errupt o que ouvia ao l onge; não se
podia dizer de que direção provinha; enchia a t al pont o t odos os
ambient es, que se podia pensar que vinha de t odos os l ados; ou, o
que ainda parecia mais exat o, que o local onde casualment e est ava
alguém f osse o verdadeiro local daquele ret umbar; mas cert ament e
aquilo era um erro, pois o rumor vinha de l onge. (TG)

Para uma últ ima demonst ração sobre o uso do espanhol como língua de
int erposição nas t raduções de Torrieri, vej amos mais dois brevíssimos t rechos,
o primeiro de El cast i l l o, em t radução de D. J. Vogelmann para a Emecé (1949)/
O cast el o, em t radução de Torrieri Guimarães para a Tema (1965); o segundo
de Car t a a mi padr e y ot r os escr i t os, em t radução de Carlos Félix Haeberl e,
pela Emecé (1955)/ Car t a a meu pai , em t radução de Torrieri Guimarães para
a L. E. L. (1965):

Ya er a de noche cuando K. l l egó. La al dea yacía hundi da en l a ni eve.


Nada se veía en l a col i na; br uma y t i ni ebl as l a r odeaban; ni el más
debi l r espl andor r evel aba el gr an cast i l l o. Lar go t i empo K. se det uvo
sobr e el puent e de mader a que del cami no r eal conducía a l a al dea,
con l os oj os al zados al apar ent e vacío. (DJV)

Era noit e j á quando K. chegou. A al deia permanecia imersa na neve.


Não se via nada da colina; bruma e t revas rodeavam-na; nem o mais
f lébil respl endor revel ava o grande cast elo. Por muit o t empo K.
det eve-se sobre a pont e de madeira que do caminho real levava à
aldeia, com os olhos erguidos para o aparent e vazio. (TG)

E:

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Quer i do padr e, una vez me pr egunt ast e por qué af i r maba yo que t e
t emía. Como de cost umbr e, no supe qué r esponder t e, en par t e
pr eci sament e por el t emor que me i nf undes (. . . ) (CFH)

Querido pai: Pergunt ast e-me cert a vez por que mot ivo eu af irmava
que t e t emia. Como de hábit o, não soube o que t e responder, em
part e exat ament e pelo t emor que me inf undes (. . . ) (TG)

Quero reit erar que nada há de ilícit o em t raduções indiret as. Se venho
me delongando sobre o t ema, é no exclusivo int uit o de desf azer com meridiana
clareza o engano corrent e de que Torrieri Guimarães t eria se val ido do f rancês
para vert er Kaf ka e, em paralelo, sepult ar def init ivament e qualquer event ual
resquício de incert eza em t orno dessa quest ão. E t al int uit o, por sua vez, só
guarda alguma relevância porque, como dissemos, f oram as t raduções de
Torrieri que compuseram a primeira grande onda de publicação de Kaf ka ent re
nós, t ornando-se assim um dos t raços const it ut ivos da kaf kiana brasileira. 6
De modo geral, port ant o, e como se depreenderá nit idament e da
cronologia apresent ada na próxima seção, podemos dizer que a kaf kiana
brasileira, no que se ref ere à língua de part ida, divide-se em t rês vert ent es
dominant es. Após a f ase inicial bast ant e salt eada e indist int a (1946-1963),
t emos a part ir de 1964 a f ase de t radução indiret a basicament e por int erposição
do espanhol (L. E. L. , com Torrieri Guimarães); nos anos 1970, a f ase de t radução
indiret a sobret udo por int erposição do inglês (Nova Época, com vários
t radut ores); a part ir dos anos 1980, num período que ul t rapassa o escopo dest e
art igo, a t radução diret a do original alemão (sobret udo por obra de Modest o
Carone, mas t ambém, em dat a mais recent e, por out ros t radut ores, como
Marcelo Backes).
O uso do f rancês como língua de int erposição f oi t ão esporádico que, a
meu ver, não chega a se conf igurar como element o de maior peso dent ro da

6
Já o exame dos mot ivos pessoais que t eriam levado Torrieri Guimarães a aliment ar t al
imprecisão e at é a encenar uma pequena f arsa perant e imprensa e academia escapa ao âmbit o
dest a pesquisa. Quiçá não passasse de mera e singela vaidade int elect ual, por t alvez considerar
o f rancês “ mais chique” , “ mais respeit ável” ou algo assim.

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kaf kiana brasileira: ent re suas poucas ocorrências, cabe menção especial
apenas ao caso de Geir Campos, com Par ábol as e f r agment os (Civilização
Brasileira, 1956), t alvez o primeiro livro de Kaf ka publicado no Brasil, como
veremos adiant e.

3. Kaf ka brasileiro

Passemos, por f im, à apresent ação cronológica das t raduções de Kaf ka


no Brasil, desde as primeiras que pude localizar, a part ir de 1946 at é 1979.

Primórdios, anos 1940


Nas seções cult urais de nossos principais j ornais na primeira met ade do
século XX, não se encont ram menções a Kaf ka senão a part ir de 1941.
A est reia se parece t er dado em 27 de abril de 1941, quando o carioca
Di ár i o da Manhã publica um longo art igo de Ot t o Maria Carpeaux, “ Franz Kaf ka
e o Mundo Invisível” , escrit o em f rancês e t raduzido por Carlos G. Lima
Cavalcant i, e que será publicado no ano seguint e em seu livro de ensaios A ci nza
do pur gat ór i o.
Quant o aos escrit os de Kaf ka, o primeiro t raduzido e publicado no Brasil
f oi, ao que t udo indica, “ Um art ist a do t rapézio” . Saiu na Revi st a da Semana,
ano 47, n. 13, de 30 de março de 1946, sem especif icar f ont es nem t radut or.
A seguir t emos o cont o “ Cruza” . Saiu em agost o de 1946, no número de
est reia da revist a Agor a, de Goiânia, f undada por Oscar Sabino Jr. e Af onso
Félix de Sousa.
Em 18 de agost o do mesmo ano, o j ornal carioca Cor r ei o da Manhã
publica “ A port a da lei” , em t radução de “ A. C. M. ”

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Em 25 de agost o do mesmo ano, saem duas parábolas t raduzidas por


Cláudio Tavares Barbosa, publicadas em Let r as e Ar t es, o suplement o dominical
do j ornal carioca A Manhã. São elas “ Promet eu” e “ Uma conf usão quot idiana” .
Em março de 1947, no nono número da célebre e ef êmera revist a
curit ibana Joaqui m , f undada por Dalt on Trevisan e Erasmo Pilot o, t emos um
episódio de Amér i ca vert ido por Walt ensir Dut ra, bem como “ Um cruzament o” ,
“ O vizinho” e “ Parábolas” , vert idos por Walt ensir Dut ra e Temíst ocl es
Linhares. 7
No número 10 da mesma Joaqui m , em maio de 1947, t emos “ O advogado
novat o” e “ A aldeia mais próxima” , em t radução de Temíst ocles Linhares.
No j á ref erido caderno cult ural Let r as e Ar t es, a edição de 24 de agost o
de 1947 t raz algumas parábolas e af orismos selecionados e t raduzidos por Ot t o
Maria Carpeaux.
Em 31 de agost o de 1947, o j ornal Di ár i o de Not íci as publica “ Um art ist a
do t rapézio” , em t radução de Aurélio Buarque de Hollanda, especif icando
devidament e que a f ez a part ir do espanhol , na pret ensa t radução de Jorge Luis
Borges.
Volt ando à revist a Joaqui m , seu número 14, em out ubro de 1947, t raz
“ O só em Kaf ka” , t rechos de seu diário selecionados e t raduzidos por Georges
Wilhelm.
E, por f im, um breve regist ro em paralelo: ainda na Joaqui m em seu
número 18, de maio de 1948, t emos uma t radução de Wilson Mart ins do episódio
inicial d' O pr ocesso, em sua adapt ação t eat ral em f rancês f eit a por André Gide
e Jean-Louis Barrault .
Como se vê, f oram o caderno cult ural Let r as e Ar t es e, sobret udo, a
revist a Joaqui m que mais se det iveram nesses poucos anos sobre t ext os de
Kaf ka. A t al pont o que, em 20 de f evereiro de 1949, numa breve not a, o Di ár i o
de Not íci as coment a – porém com visível exagero – que prat icament e t odos os
números da Joaqui m t raziam mat eriais de/ sobre Kaf ka. Na mesma not a, o

7
Sobre a Joaqui m e os t ext os de Kaf ka, é precioso o levant ament o de Miguel Sanches Net o
(1998), no qual me baseei para os dados acima apresent ados.

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resenhist a menciona que as recém-criadas Cr onos e Revi st a Br anca, ambas do


Rio de Janeiro, t raziam algum cont o de Kaf ka, sem especif icar. Não t ive acesso
a essas duas publicações, mas f ique regist rada a menção a el as na grande
imprensa.
Not a-se que a int rodução de Kaf ka no Brasil se deu, port ant o, em seções
cult urais de alguns j ornais da imprensa carioca e em revist as disseminadas em
alguns est ados do país (Rio de Janeiro, Paraná e Goiás), num breve surt o de
poucos anos (1946-48), a part ir de f ont es variadas e nem sempre clarament e
especif icadas.
Decorrerão quase dez anos at é t ermos o primeiro Kaf ka em livro, como
veremos a seguir.

Os anos 1950
O ano de 1956 inaugura Kaf ka em livro no Brasil. A est reia, porém, é
discret a e reservada a poucos, em edições especiais de baixa t iragem. São el as
Par ábol as e f r agment os e Met amor f ose. Det enhamo-nos brevement e sobre
elas.
Par ábol as e f r agment os consist e numa pequena colet ânea de 48 páginas,
com seleção e t radução de Geir Campos por int erposição do f rancês, que f oi
publicada na Coleção Maldoror da edit ora Civilização Brasileira, em seu selo de
edições especiais para biblióf ilos, a Philobiblion, numa t iragem rest rit a de 300
exemplares de luxo.
Met amor f ose, em t radução de Brenno Silveira por int erposição do inglês,
como vimos na seção ant erior, t ambém f oi publicada pela Civilização Brasil eira
no mesmo ano de 1956. Embora não t enha saído pel o selo para biblióf ilos, era
uma edição especial , com t iragem de apenas mil exemplares.
É dif ícil saber a qual dessas duas obras, Par ábol as e f r agment os ou
Met amor f ose, cabe a ant erioridade de publicação no ano de 1956.
Pessoalment e, inclino-me para a edição da Philobiblion, at é por ser t ão rest rit a,
sugerindo uma espécie de balão de ensaio em vist a de al guma incert eza

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edit orial quant o ao al cance comercial do aut or, at é ent ão inédit o no Brasil em
f ormat o de livro.
Ainda em 1956, t emos “ O médico rural” na ant ologia Ti t ãs da l i t er at ur a,
vol. VII da coleção “ Os t it ãs” , edit ora El At eneo do Brasil, 1956, em t radução
de A. Barbosa Rocha.
Em 1957, sai pela Cult rix o j á coment ado “ Um art ist a do t rapézio” em
Mar avi l has do cont o al emão, em t radução anônima f eit a a part ir da t radução
espanhola pret ensament e borgiana.
Em 1959, em Mar avi l has do cont o uni ver sal , úl t imo volume da coleção
de mesmo nome, a Cult rix publica “ O j ej uador” , em t radução de Ligia
Junqueira Caiuby.
Em f ormat o de livro, são est as as publicações de Kaf ka nos anos 1950 que
consegui rast rear. A t ít ulo de curiosidade, vale lembrar o cont o “ Um f aquir” ,
t raduzido por Paulo Rónai e Aurélio Buarque de Holl anda, publicado em 11 de
j aneiro de 1959 na coluna “ Cont o da Semana” do j ornal Di ár i o de Not íci as
(SPIRY, pp. 199), que virá a ser incluído nos anos 1980 no décimo volume da
ant ologia Mar de hi st ór i as, organizada por ambos.

Os anos 1960
A part ir dos anos 1960, t emos uma divulgação mais sist emát ica e
cont inuada da obra de Kaf ka no país, com t raduções f eit as por Torrieri
Guimarães com base nas edições em espanhol publ icadas na Argent ina. Elas
f oram publ icadas em dez volumes ao t odo, lançados em rápida sucessão ent re
1964 e 1965, pela L. E. L. e por um ef êmero e malogrado selo seu, a Tema
Edições, que t eria sido criado expressament e para publicar as obras de Kaf ka.
Os volumes não t razem o ano de edição, mas é possível sit uá-l o com razoável
precisão a part ir das not as de lançament o dadas na imprensa, sobret udo a
carioca.
O primeiro volume a sair f oi uma breve selet a com o t ít ulo Cont os
escol hi dos, com oit o t ext os: “ Bl umf eld, um solt eirão” , “ A t oupeira gigant e” ,
“ Invest igações de um cachorro” , “ Descrição de uma l ut a” , “ Sobre as quest ões

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da lei” , “ Um golpe à port a da granj a” , “ O t imoneiro” e “ Advogados” . Se alguma


vez Torrieri chegou a organizar algum volume de Kaf ka, poderíamos com alguma
boa vont ade conceder que t eria sido est e. . . 8
Logo a seguir, em quest ão de um mês ou pouco mais, sai O pr ocesso pelo
selo Tema Edições.
Assim, para 1964 t emos, por ordem de lançament o, Cont os escol hi dos, O
pr ocesso (Tema) e Di ár i o ínt i mo; em 1965, O cast el o (Tema), A mur al ha da
Chi na, Car t a a meu pai , Car t as a Mi l ena, A col ôni a penal , Amér i ca e Di ár i os,
em ordem aproximada de lançament o ao longo do ano. Foram sucesso de
público e vários deles se mant iveram por vários meses na list a dos mais
vendidos, publicada periodicament e pelo Jor nal do Br asi l , sendo que O
pr ocesso f oi incluído ent re os mais vendidos de t odo o ano de 1964.
Dando prosseguiment o às publicações de Kaf ka no Brasil na década de
1960, a edit ora Perspect iva lançou em 1967 um alent ado volume chamado Ent r e
doi s mundos – a si t uação dos j udeus vi st a por aut or es j udeus, com 45 t ext os
ent re cont os e ensaios, com seleção de Jacó Guinsburg e Anat ol Rosenf el d.
Ent re eles, há dois cont os de Kaf ka: “ Vist a da galeria” , na seção
“ Preconceit os” , e “ A const rução de uma cidade” , na seção “ O novo mundo” .
Não há ident if icação do(s) t radut or(es). Consult ada, a edit ora pôde apenas
inf ormar que a t radução f ora f eit a diret ament e do original.
Encerrando a década, em 1969 a Civilização Brasileira lança uma
colet ânea que, além de t razer a j á conhecida “ Met amorf ose” na t radução de
Brenno Sil veira, apresent a duas novas ret raduções: “ Na colônia penal” , por
Leandro Konder, e “ O art ist a da f ome” , por Eunice Duart e, ambas pela
inf requent e int erposição do f rancês.

8
Todos esses cont os f azem part e de Beschr ei bung ei nes Kampf es (e de La mur al l a chi na
argent ina), que sairá no ano seguint e pela L. E. L. com o t ít ulo de A mur al ha da Chi na. Assim, o
lançament o de Cont os escol hi dos parece indicar que t alvez se t rat asse de uma t radução em
andament o, reunindo os t ext os que j á est avam pront os.

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Os anos 1970
Em 1972, a edit ora Art enova lança uma colet ânea curiosa: A sol i dão
segundo. . . Er nest Hemi ngway, Car son McCul l er s, Fr anz Kaf ka, Ray Br adbur y,
Jor ge Lui s Bor ges, com seleção, int rodução, not as e t radução de Hermenegildo
de Sá Cavalcant i. O cont o de Kaf ka escolhido para int egrar a colet ânea f oi “ Na
colônia penal” .
Ainda em 1972, a Ant ol ogi a humaníst i ca al emã, com seleção de Wolf gang
Langenbucher, apresent a “ O j ul gament o” , excert os de “ O processo” e “ Diant e
da lei” , em volume publicado pela Globo em coedição com a alemã Horst
Erdmann Verlag. São vários t radut ores, sem especif icação das responsabilidades
individuais.
A seguir, numa empreit a de f ôl ego, a Nova Época Edit orial se lança a
uma sequência de novas t raduções das obras de Kaf ka. As edições não t razem
o ano de publicação e, ao cont rário das edições da L. E. L. , pouca ou nenhuma
at enção receberam na grande imprensa. De t odo modo, é cert o que não são
ant eriores a 1972. 9
Essa iniciat iva edit orial t raz dois element os marcant es. O primeiro deles
é que t odas as suas t raduções f oram f eit as a part ir do inglês, caract erizando a
década de 1970 como o período com predomínio desse idioma como língua de
part ida para a kaf kiana brasileira. O segundo é que, na cont racapa e nas edições
que t razem orelha, t em-se em dest aque o seguint e anúncio:

A
NOVA ÉPOCA EDITORIAL Lt da.
Avenida Angélica, 55
S. Paul o

Comunica ao públ ico em geral que adquiriu os DIREITOS


AUTORAIS DE TRADUÇÃO, para o BRASIL PORTUGAL e t odos os países
de língua port uguesa das obras de:
FRANZ KAFKA

9
A razão para t al af irmação pode parecer t rivial, mas é sólida: em t odas elas, j unt o ao endereço
da edit ora const a o número do CEP. Como o código de endereçament o post al f oi implant ado
em maio de 1971 e seu uso obrigat ório só ent rou em vigor em 1972, t al dado parece plenament e
suf icient e para est abelecer est e ano como limit e post quem .

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Ademais, na página de imprent a const a o t ít ulo original da edição


t raduzida, o copyright da Schocken Books e respect ivo ano, bem como os
direit os aut orais da edição brasileira da Nova Época. 10
Como j á sugerimos ant eriorment e, as edições de Kaf ka pela L. E. L. não
dispunham de aut orização de publicação no Brasil e daí a mirabolant e hist ória
narrada por Torrieri Guimarães sobre a supost a licença grat uit a, oralment e
concedida por Max Brod ao propriet ário da edit ora, Eli Behar. Não me
surpreenderia se f osse a essa provável “ pirat aria” que a Nova Época, com seu
comunicado ao público, t ent ava f azer f rent e.
Mesmo no caso da Nova Época, porém, not a-se que, a part ir de cert a
alt ura, abandona-se o anúncio ao público sobre a aquisição dos direit os aut orais
e renuncia-se at é mesmo a qual quer ref erência na página de imprent a sej a aos
direit os de publicação, sej a ao t ít ulo or iginal da edição usada para a t radução.
Dif ícil evit ar a impressão de que a edit ora em algum moment o decidiu
enveredar pelo caminho mais f ácil. Todavia, mesmo nesses casos, a língua de
int erposição cont inua a ser o ingl ês e, como se vê em Car t as a Mi l ena, t razendo
o pref ácio de Willy Haas, segue a edição da Schocken.
Ao t odo, a edit ora publicou dez t ít ul os de Kaf ka. Na quart a capa,
cost umava const ar uma relação de seus próximos lançament os pela casa ou,
mais t arde, de suas obras j á publicadas. No ent ant o, as inf ormações se
sobrepõem e são cont radit órias. Assim, no volume Car t a a meu pai , t êm-se
como próximos lançament os Col ôni a penal , O pr ocesso, A met amor f ose,
Amér i ca, O cast el o e A mur al ha da Chi na. Porém, no volume A col ôni a penal ,
anunciam-se Car t a a meu pai e O cast el o como dois dos próximos lançament os.
E no volume O cast el o anunciam-se ainda, ent re out ros, os l ançament os de
Car t a a meu pai e Col ôni a penal . Nesses t rês volumes – A col ôni a penal , Car t a

10
Num pequeno alert a em paralelo, se event uais leit ores, pesquisadores e int eressados em
geral f orem consult ar as edições da Nova Época pela int ernet , irão se deparar várias vezes com
algum ano de publicação de suas edições de Kaf ka. Todas essas dat as se ref erem, na verdade,
ao ano de publicação da obra em inglês, pela Schocken Books, como vem clarament e
especif icado na página de imprent a dos vários volumes da Nova Época, e não devem induzir os
consulent es a erro.

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a meu pai e O cast el o –, um dos próximos lançament os anunciados é A


met amor f ose. No ent ant o, na quart a capa de A met amor f ose, lá const am
aqueles mesmos t rês t ít ulos na relação de próximos l ançament os, e por aí vai.
Em suma, pelos dados const ant es nos vol umes publicados, é prat icament e
impossível saber não só o ano de edição, mas at é mesmo uma ordem
aproximada na sequência das publicações.
Por out ro lado, na cont racapa do volume A mur al ha da Chi na o que t emos
é uma relação das obras j á edit adas. São el as: Col ôni a penal , O pr ocesso, Car t as
[ sic] a meu pai , Amér i ca, O cast el o e A met amor f ose. No volume seguint e,
Car t as a Mi l ena, t emos a mesma relação, acrescida de A mur al ha da Chi na. A
única coisa que podemos inf erir disso é que Car t as aos meus ami gos e O di ár i o
ínt i mo de Kaf ka, os dois out ros t ít ulos de Kaf ka publ icados pela Nova Época,
saíram depois de Car t as a Mi l ena e f oram os úl t imos escrit os kaf kianos a ser
lançados pela casa. Apesar de t ant as imprecisões, há cert os indícios que
permit em supor que Car t a a meu pai f oi, se não o primeiro, um dos primeiros
t ít ulos publicados pela Nova Época.
Segue-se abaixo a rel ação dos volumes de Kaf ka e respect ivos t radut ores
publicados pela Nova Época Edit orial, por sequência alf abét ica e sem qualquer
pret ensão de ordenament o cronológico. O cont eúdo, no geral, segue o das
edições da Schocken americana. A principal exceção é “ Met amorphosis” , que
int egrava The Penal Col ony: St or i es and Shor t Pr ose, na t radução de Wil la e
Edwin Muir, que f oi excluída da edição brasileira de A col ôni a penal para ser
lançada em volume à part e.

A col ôni a penal , Syomara Caj ado


A met amor f ose, Syomara Caj ado
A mur al ha da Chi na: cont os e máxi mas, sem crédit os de t radução
Amér i ca, D. P. Skroski
Car t a a meu pai , Osvaldo da Purif icação
Car t as a Mi l ena, sem crédit os de t radução
Car t as aos meus ami gos, Osvaldo da Purif icação

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O cast el o, D. P. Skroski
O di ár i o ínt i mo de Kaf ka, Osvaldo da Purif icação
O pr ocesso, Syomara Caj ado

Foram est es os t ít ulos publicados pela Nova Época. À exceção de um ou


out ro t ít ulo licenciado para t erceiros (em part icular O pr ocesso para o Círcul o
do Livro), a dif usão dessas t raduções não será nem remot ament e comparável à
dif usão das de Torrieri Guimarães e, como dissemos, t ampouco receberão
grande divulgação na imprensa.
Ainda nos anos 1970, A met amor f ose e O pr ocesso saem pela Tecnoprint
com “ t ext o em port uguês” por Marques Rebelo. Aqui cabe um esclareciment o:
“ t ext o em port uguês por/ de Ful ano” é a expressão ut ilizada pel a edit ora para
designar adapt ações f eit as a part ir de t raduções previament e exist ent es.
Parece-me necessário elucidar o signif icado de “ t ext o em port uguês” nas
edições da Tecnoprint / Ediouro, em suas coleções volt adas para o público
j uvenil, t ant o mais porque pesquisadores sérios como CRUZ, SANTOS e BRITO se
sent iram t ent ados a considerar t ais adapt ações como t raduções de direit o
próprio, o que, a meu ver, não é o caso. 11
Por f im, uma dif icul dade adicional nesse t ipo de pesquisa bibliográf ica
consist e em rast rear escrit os publicados em ant ologias gerais. Assim, não é
absolut ament e de se descart ar que t enham saído out ros cont os, parábolas ou

11
Ainda a propósit o de A met amor f ose, Marques Rebelo e Tecnoprint (f ut ura Ediouro), embora
escapando ao nosso quadro t emporal, cabe aqui t ent ar elucidar out ro provável equívoco. Cit o:
“ Chama-nos a at enção o f at o de que, nest e ano de 1985, são publicadas out ras duas t raduções
de A met amor f ose. Uma reedição da t radução f eit a a part ir do inglês por Brenno Silveira,
publicada pela Civilização Brasileira, e uma nova t radução realizada t ambém a part ir do inglês
por Enio Silveira e Marques Ribeiro Calouro, cuj a publicação f ica a encargo da edit ora
Tecnoprint ” (CELESTE, BRITO e SANTOS, p. 239).
Com ef eit o, exist e um volume de escrit os de Kaf ka selecionados e t raduzidos do inglês por Ênio
Silveira, propriet ário e edit or chef e da Civilização Brasileira: chama-se Cont os, f ábul as e
af or i smos e saiu por sua edit ora em 1983. Tradut or bissext o, Ênio j amais, at é onde sei, t raduziu
Met amor f ose – obra que, aliás, est ava at iva no cat álogo de sua edit ora desde 1956, na t radução
f eit a por seu irmão Brenno Silveira. Por out ro lado, sua concorrent e Tecnoprint ut ilizava com
f requência os prést imos de Marques Rebelo como adapt ador para suas coleções, uma delas
chamada j ust ament e Calouro. Tendo a crer que a inf ormação acima cit ada result ou de alguma
event ual conf usão dos pesquisadores ent re pessoas, coleções e edit oras.

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excert os de Kaf ka em ant ologias publicadas nessas décadas, e que est ão


ausent es dest e levant ament o.

4. Conclusão

Podemos resumir os dados acima apresent ados da seguint e maneira:


Kaf ka aport ou no Brasil após o f inal da Segunda Guerra Mundial, de início em
revist as e j ornais, e apenas a part ir de 1956 em livros. Sua ancoragem em
t ermos mais signif icat ivos se dá em duas f ases sucessivas nos anos 60 e 70, por
vias maciças do espanhol e do inglês, respect ivament e, em edições nem sempre
muit o primorosas. A despeit o de f alhas e irregularidades edit oriais de maior ou
menor mont a, desde os anos 1960 prat icament e t odo o cânone kaf kiano se
encont ra disponível em t radução brasileira, o que vem a se ref orçar na grande
onda de ret raduções dos anos 1970. Nas décadas seguint es, a part ir dos anos
1980, o que t eremos é o ef et ivo amadureciment o de um processo de dif usão de
Kaf ka no Brasil que j á vinha em f ranco, ainda que um t ant o desigual ,
andament o. Iniciado t ardiament e e de maneira esporádica, esse processo t eve
um f enomenal salt o quant it at ivo nos anos 1960 que, mesmo a meio século de
dist ância, ainda guarda f ort es marcas na f ort una da kaf kiana brasileira.

5. Bibliograf ia

BRITO, E. M. de. Quando a f i cção se conf unde com a r eal i dade. São Paulo: Serviço
de Comunicação Social, FFCHL/ USP, 2008. Aqui seguimos o t ext o de sua t ese
de dout orado. FFCHL/ USP, São Paulo, 2005.
CRUZ, C. Met amor f oses de Kaf ka. São Paulo: Annablume; Fapesp, 2007.
SANCHES NETO, M. A r ei nvenção da pr ovínci a. Tese de dout orado. IEL/ UNICAMP,
Campinas, 1998.

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