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CAPÍTULO 1 – MODERNISMO. A GERAÇÃO DE PRESENÇA.

• A geração de Orpheu – 1ª Fase Modernista

O modernismo português é marcado inicialmente pela fundação da revista


Orpheu (1915), constituindo a primeira manifestação de caráter vanguardista em
Portugal no século XX. Alguns de seus integrantes (Mario de Sá-Carneiro, Almada
Negreiros, entre outros) mantinham contato com correntes vanguardistas como o
futurismo e o cubismo e incorporaram atitudes que refletiam a intenção de minimizar
as instituições e as formas de arte que estavam ligadas à uma cultura romântica e
burguesa. Os diferentes tons, a subversão da estrutura tradicional dos textos e imagens
e a subversão da linguagem foram elementos que, sem dúvida contribuíram para a
impressão radical desta primeira geração do modernismo português. Durante esse
período, outras revistas também tiveram a sua representatividade no movimento
vanguardista, entre elas: Centauro (1916), Portugal Futurista (1917), Contemporânea
(1922-1926) e Athena (1924-1925).
Vale ainda ressaltar que, durante este período da vanguarda, o ideário da revista
Orpheu não causou uma importante impressão literária. Somente com o começo da
publicação da obra de Fernando Pessoa e com a influência do grupo Presença a
corrente modernista passa a ter o seu mérito reconhecido.1 Neste primeiro momento do
período modernista a manifestação artística propõe uma mescla entre tradição e
modernismo e consegue retomar temas da tradição portuguesa e dar-lhes uma forma
moderna. Banhados pela herança deixada pelo orphismo, a revista literária “Presença”
proporciona uma continuidade dos ideais do período anterior, propalando uma
literatura mais intimista.

1
Para maiores informações sobre a geração de Orpheu e o período presencista consultar
FERREIRA, David-Mourão. OS FICCIONISTAS DA PRESENÇA, in Presença da presença, Porto,
Brasília editora, 1977, p.45.

1
• Revista Presença – 2ª Fase Modernista

A revista Presença é o marco da segunda fase modernista da literatura portuguesa.


Esta revista foi fundada no ano de 1927, em Coimbra, por José Régio, João Gaspar
Simões, Edmundo de Bettencourt e Branquinho da Fonseca. A revista Presença (54
números, 1927-40) instaura-se como o veículo de consagração do modernismo
português e em suas premissas sustenta uma literatura viva contra uma literatura
livresca, a favor de uma livre expressão do autor e contra o academismo, o espírito de
imitação e a rotina. O Presencismo mostra interesse em promulgar quaisquer novas
correntes e é contra o exclusivismo de modelos eternos ou de uma imposição
exclusivamente direcional. Esforça-se por propagar uma visão livre e vasta e mostra-se
contra uma arte comprometida política e socialmente, desvinculando, portanto, a arte
de um suposto compromisso econômico, filosófico ou religioso.
Uma das colaborações mais destacadas do grupo Presença foi a restituição dos
colaboradores do grupo Orpheu, como também a difusão das inovadoras propensões
contemporâneas, vindas da Europa e do continente americano. Entre elas vale destacar
os seguintes autores: André Gide (1869-1951), Marcel Proust (1871-1922), Guillaume
Apollinaire (1880-1918), Jean Cocteu (1889-1963), Max Jacob (1876-1944), Paul
Valéry (1871-1945), André Salmon (1881-1969), Luigi Pirandello (1867-1936), Pierre
Reverdy (1889-1960), entre outros.
Na edição de número 27 da revista Presença, no ano de 1930, Branquinho da
Fonseca abandona a direção da revista juntamente com Miguel Torga e Edmundo de
Bettencourt e posteriormente os três integrantes redigem e enviam uma carta ao
demais diretores da revista (datada de 16 de junho de 1930) na qual afirmam que a:
“Presença que se propunha, como folha de arte e crítica, defender o direito que assiste
a cada um de seguir o seu caminho, começou a contradizer-se”, e ainda que a:

2
“Presença concebe mestres e discípulos com aquela interpretação convencional em que
os mestres fazem lições para os que se reputam alunos”. 2

• António José Branquinho da Fonseca

O autor da inquietante obra “O Barão”, que será o objeto de nossa análise,


nasceu no dia 04 de maio do ano de 1905, na cidade de Mortágua e faleceu em 16 de
maio de 1974.
Branquinho da Fonseca, que também utilizou o pseudônimo de Antônio
Madeira, foi uma figura notória durante a segunda fase do modernismo português e
destacou-se na novelística portuguesa. Foi organizador e o primeiro diretor do Serviço
de Bibliotecas Itinerantes e Fixas da Fundação Calouste Gulbenkian. Em 1925,
participou da fundação da revista literária Tríptico e em 1927, na fundação da revista
Presença. Publicou poesia (Poemas, 1926; Mar coalhado, 1932), teatro (Posição de
guerra, 1928; Teatro I, 1939), romance (Porta de minerva, 1947; Mar santo, 1952), e
conto (Zonas, 1932; Caminhos magnéticos, 1938; O barão, 1942; Rio turvo, 1945;
Bandeira preta, 1957).
Ainda que tenha se dedicado ao teatro e à poesia, é na sua produção ficcional
que Branquinho da Fonseca atinge o ápice dentro da literatura portuguesa.
Se visualizarmos a obra de Branquinho da Fonseca de modo abrangente,
veremos que o apogeu de sua produção equivale à criação dos contos. Com exceção de
“Zonas” (1932), podemos perceber a sua inclinação pelo mítico e pelo simbólico, este
ligado a um incessante apelo pela aventura literária que se concretiza na
experimentação que o nosso autor realiza na efetivação de novas estruturas e situações,
aquele visto como uma faceta ou uma espécie da dimensão do real sem que se
transponha o limite do terreno e estando ao nível da natureza humana. Portanto, as
obras de Branquinho da Fonseca envolvem o mítico e a realidade, a consciência e a

2
SARAIVA, J.A; LOPES, Oscar. História da Literatura Portuguesa. 13° edição. Porto:
Porto Editora, 1996. p.1056-1057

3
subconsciência dos personagens, persistindo em uma constante fusão entre o irreal e o
real, entre as situações cotidianas e as situações oníricas.3
Como sabemos, é ao lado de José Régio e Miguel Torga, que Branquinho da
Fonseca torna-se um dos propulsores do movimento modernista português
denominado Presencismo e que possui como alicerce o olhar voltado para a exploração
do “eu” interior que mergulha nos aspectos psicológicos dos personagens. Certo será
reconhecer que a maestria de Branquinho da Fonseca faz com que a obra “O Barão”
seja apresentada como uma mescla entre a representação da realidade, a fantasia, o
lirismo e o grotesco. Elementos que se encontram fortemente interligados por toda a
estrutura narrativa e que por vezes nos incitam a sentir como reais as fantasias e como
líricas as estruturas que isoladas inevitavelmente representariam o grotesco.
Apesar de haver estudos relacionados e específicos que têm como centro a
análise não somente da obra “O Barão”4, mas também que contemplam o período
presencista e outras obras não somente do nosso autor em questão, mas daqueles que
investiram nos pressupostos teóricos que envolvem o estilo narrativo (e não-narrativo)
da época, propõe-se neste trabalho a análise minuciosa, dentro do escopo delimitado,
dos aspectos que fazem com que esta obra seja considerada como uma obra-prima de
Branquinho da Fonseca, como vemos a explícita referência elogiosa feita por Jacinto
do Prado Coelho, em seu Dicionário de Literatura: "uma das mais notáveis espécimes
da novelística portuguesa de todos os tempos”5.

3
Adolfo Casais Monteiro descrevia que a característica essencial de Branquinho da
Fonseca consistia exatamente na “sutil fusão do concreto (um objetivismo que, com sóbria
discriminação, sabe escolher o traço expressivo) e do sonho, que banha a sua prosa de um halo, sóbrio
também, de poesia” (O ROMANCE TEORIA E PRÁTICA. Rio de Janeiro: José Olympo, 1964, p.
376)
4
FERREIRA, António Manuel. ARTE MAIOR: OS CONTOS DE BRANQUINHO DA
FONSECA. 1° edição. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2004 / FERREIRA, David-
Mourão. PARA UMA LEITURA DE “O BARÃO”. In: Branquinho da Fonseca, O Barão: Lisboa:
Portugália, 1969 / FERREIRA, António Manuel. CENTENÁRIO DE BRANQUINHO DA
FONSECA: PRESENÇA E OUTROS PERCURSOS. 1° ed. Universidade de Aveiro, 2005.
5
Dicionário de Literatura. Literatura Portuguesa, Literatura Brasileira e Literatura Galega,
Estilística Literária, 2vols, 1971; 5vols, 1973; 7ª reimp., 1983.

4
A leitura deste conto nos leva, sem dúvida, a perceber a transcendência do “eu”
que se realiza no âmago de cada personagem, proporcionando-nos uma visão múltipla
da unidade do ser. A análise que decorre desta leitura propiciará não apenas a
contemplação de estruturas narrativas, mas o entrelaçamento das mesmas, formando
uma única obra de múltiplas facetas.
Para tanto, torna-se necessário destacar alguns aspectos que são significantes
como elementos construtores desta narrativa. Quais sejam: a estruturação da narrativa
e a escolha léxica que nos direciona a um determinado percurso, caminho este
marcado pelas contradições e contraposições perceptíveis não somente no plano físico
/ material como também no plano emocional em busca do “eu” interior. Esta
composição estrutural engloba de maneira sucinta a figura do narrador que ocupa
desde um início dois momentos em sua narrativa: o papel de narrador e o papel de
protagonista, o estilo da narração em primeira pessoa, os jogos contraditórios que se
apresentam desde os primeiros parágrafos, as digressões que se mostram em situações
estratégicas, a inexatidão do local / personagem (de onde ocorre e de quem se fala),
mas que nos transmite a sensação ao mesmo tempo de universalização e de
individualização dos temas abordados.
Ressalte-se ainda a necessidade de abordar a figura feminina como elemento
chave em determinadas situações da narrativa, permitindo a quebra e a continuidade da
representatividade narracional; a análise das figuras simbólicas e metafóricas. A
oscilação entre o passado e o presente, o contraponto entre a representação da
realidade e a fantasia, o vinho e o fogo como elementos transformadores, o embate
emocional demonstrado na luta metafórica entre Deus e o Diabo, o zoomorfismo, o
ressurgir das cinzas, a purificação e o encontro com o “eu” interior.

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CAPÍTULO 2 - ESTRUTURAS NARRATIVAS

O conto “O Barão”, publicado no ano de 1942, é um relato constituído por uma


reminiscência do personagem-narrador de uma determinada noite em que é hóspede no
velho solar medieval de um abastado proprietário de terras, numa região rural de
Portugal. Nesta narrativa, temos quatro personagens em destaque. São eles: o inspetor
de escolas (narrador-personagem); o Barão (personagem sobre o qual se estrutura toda
a narrativa memorialista); Idalina (uma mescla entre criada do velho solar e baronesa)
e a Bela-Adormecida (personagem feminina sobre a qual muito pouco nos é explicado,
e que surge sempre a partir das reminiscências do Barão).
O inspetor de escolas é enviado a fazer uma sindicância em uma escola de uma
aldeia portuguesa da serra do Barroso cujo nome afirma não lembrar-se. Através dessa
viagem por motivos profissionais o inspetor será recebido na pequena aldeia por uma
professora. O narrador-personagem tentará apreender a figura desta professora
primeiro lamentando o seu aspecto físico e achando-a inadaptável àquele ambiente
afastado da civilização. Contudo, após as argutas observações, o inspetor conclui que a
professora e o ambiente estão integrados e adaptados um ao outro, como se o ambiente
refletisse o “eu” da professora e vice-versa. Ainda conversando com a professora é que
o inspetor conhecerá o seu anfitrião e logo após o local onde passará a noite. Durante a
sua estadia no solar do Barão, o inspetor e seu anfitrião mergulharão pela noite
bebendo e também recordando o passado. O inspetor de escolas estabelecerá com o
Barão um misto de cumplicidade e fascinação e, no decorrer dessa noite escura, entre o
vinho, a música e as mulheres, se produzirá um ambiente que se concretiza no limiar
entre a embriaguez e a sobriedade, entre o passado e o presente.
Observemos de que forma ocorre a caracterização dos personagens aqui
apresentados (aqueles que de alguma maneira se manifestam nesta narrativa e,
portanto, excluindo, por enquanto, a referência a “Ela” – no momento devido
voltaremos a analisar este aspecto / personagem). Pode-se dizer que são personagens

6
redondos6, ou seja, são personagens complexos, que apresentam um maior
aprofundamento na sua caracterização. Relacionaremos as variedades de
características que podem ser encontradas no texto. São elas:
a) Físicas – distinção de corpo, voz, gestos, roupas.
b) Sociais – manifestação das diferenças sociais como classe social, profissão e
atividades sociais relacionadas.
c) Psicológicas – inclui-se aqui as mudanças dos estados emocionais assim
como também o aprofundamento dos processos mentais dos personagens
que culminam na sua reestruturação.
d) Ideológicas – põe-se em evidência o modo de pensar do personagem, sua
filosofia de vida, sua religião.
e) Morais – sentencia o caráter dos personagens, daquilo que é considerado
bom ou mau, honesto ou desonesto, moral ou amoral, sempre sob um
determinado ponto de vista.

Caracterização física, social e psicológica da professora que recebe o narrador-


protagonista:
“Nova mas feia. Contudo simpática e com um olhar de inteligência que a
tornava atraente. “ (FONSECA, 1973, p. 11) – Caracterização física. “Disseram-me
que havia uma hospedaria ao fundo da rua. Era uma velha casa em ruínas. Entrei e fui
ter à cozinha, uma divisão comprida e escura, ao fundo da qual estava uma fogueira
acesa. (...) Não me senti à vontade.” (Ibid., p. 10-11) – A caracterização do ambiente
nos mostra a condição social em que está imersa a professora e provoca no inspetor
uma vontade súbita de tentar alterar a situação como podemos ver em: “Pensei em não
inquirir mais nada e fazer um extenso relatório a justificar e defender a professora que,
por manifesta superioridade de interesses intelectuais, era uma pessoa inadaptável
àquele meio.” (Ibid., p. 12-13)

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JUNIOR, Benjamin Abdala. INTRODUÇÃO À ANÁLISE DA NARRATIVA. São
Paulo: Editora Scipione, 1995.

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Contudo, na seqüência, movido pela comparação uma vez mais entre o
ambiente e o personagem que nele está inserido, o inspetor de escolas caracteriza
psicologicamente a professora, percebendo através do ato de beber um mau café a
integração entre professora e o ambiente decadente: “Entretanto veio um mau café em
grandes chávenas de chá, que não consegui beber. Mas ela bebeu-o. E de repente vi
que não era tão verdade como eu supunha a inadaptação ao meio.” (Ibid., p. 13).
Caracterizações físicas do personagem Barão: “... do vão escuro surgiu um
homem de enorme estatura, que teve de curvar-se para poder passar. De ombros
largos, com um grande chapéu na cabeça e todo embrulhado, até aos pés, num capote
preto,...” (...) “... tinha um aspecto brutal, os gestos lentos, como se tudo parasse à sua
volta...” (...) “... respondeu-me no mesmo tom de gracejo...” (...) “... Atirou-me com
desprezo...” (Ibid., 13-14). Por meio desta caracterização visualizamos uma figura
misteriosa, com ares de dominador, dono de si e de todos ao seu redor.
Caracterizações sociais do personagem Barão: “Vi que estávamos num velho
solar, de certa imponência. Uma fachada de muitas janelas perdia-se na escuridão da
noite.” (Ibid., p. 21). O local onde é a residência do Barão é caracterizado como um
velho solar que mantém a imponência de outrora. A própria forma como o narrador-
personagem se refere a essa figura, chamando-o “Barão”, remete à idéia da
sobrevivência de uma certa estirpe de origem medieval, um dono de terras e
acostumado a ter a todos dobrados aos seus pés.
Caracterização psicológica do personagem Barão: “Devia ter a necessidade de
convívio e vinha agarrar-me, apanhar-me como quem, enfim, encontra alguém num
deserto.” (Ibid., p. 15) (...) “De repente compreendi que tinha caído nas mãos de um
déspota, de uma pessoa habituada a vergar os outros aos seus caprichos.” (Ibid., p. 16)
(...) “Como depois compreendi, o Barão também era um homem em que lutavam Deus
e o Diabo” (Ibid., p. 24)
Caracterização ideológica do personagem Barão: “... Conhece Coimbra? Pois
claro! Quem é que não conhece Coimbra?! Até tive um cavalo que andou em Coimbra.
Quando cheguei ao terceiro ano da Universidade compreendi que aquilo era para
cavalos.” (Ibid., p. 18)

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Prossegue, logo após a essa referência ao cavalo e à Universidade, descrevendo
em tom sarcástico, o modo como seu cavalo foi igualmente intitulado doutor. Esta é,
portanto, uma caracterização ideológica do personagem Barão que está permeada pela
sua idéia de “atual” vulgarização do estudo e da banalidade com que este assunto
estaria sendo tratado.
Caracterização moral do personagem Barão: “As taras e os desequilíbrios
inferiores tinham-no vencido, submergindo o homem inteiro.”(Ibid., p. 24) (...)
“Coitadita. Era uma criança... e estava como tinha saído da barriga da mãe. Até custa a
acreditar. No fim ajoelhei a pedir-lhe desculpa...” (Ibid., p. 37) (...) “Eu às vezes
vendia as minhas amantes a meu pai... Ou trocava-as... Quando precisava de dinheiro...
Outras coisas... Mas vou... vou regenerar-me...”. (Ibid., p. 33-34)
Ainda que a caracterização moral do Barão esteja sempre correlacionada a
aspectos brutais, a taras, desequilíbrios, disputas com o pai, o narrador-personagem
consegue durante o processo de narração criar uma atmosfera de estranheza, mas
nunca de aversão à figura do Barão e, na maioria das vezes, o sentimos como fruto de
seu meio, sem alternativas para agir, e condescendemos com esta figura que ao mesmo
tempo é arrogante, déspota, intimidador e perdido em um tempo no passado em busca
de seu verdadeiro “eu”.
Caracterização social do narrador-personagem: “Mas sou inspetor das escolas
de instrução primária e tenho obrigação de correr constantemente todo o país.” (Ibid.,
p. 7). “Ganho dois mil escudos e tenho passe nos comboios, além de ajudas de custo.”
(Ibid., p. 8). Esta caracterização, em confronto com a caracterização social do Barão,
se dá não apenas pela diferenciação de poderes aquisitivos, mas principalmente numa
alusão entre as diferenças entre passado (o tempo em que parece viver o Barão, no seu
antigo solar de imponência medieval) e o presente (inspetor de escolas como
representante da moderna civilização).
A caracterização psicológica e moral do inspetor de escolas se processa sempre
em relação àquilo que ele aponta como característica no outro, ou seja, ainda que
explicitamente não tenhamos um aprofundamento psicológico e moral no narrador-
personagem podemos perceber que ao longo da narrativa estas características se
compõem a partir do repúdio ou da aceitação das características de outrem.

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Caracterização física da personagem Idalina: “Entrou a criada. Uma mulher
alta, bem feita, de quarenta anos, com um vago ar desdenhoso e importante.” (Ibid., p.
30) (...) “... ela interrompeu-o num tom agressivo” (Id.) (...) Não era feia. Ou antes:
devia ter sido bonita.” (Ibid., p. 31)
Caracterização social da personagem Idalina: “E percebia-se facilmente que
andava ali como dona da casa, oscilando entre baronesa e serva.” (Ibid., p.31) – ainda
que este exemplo sirva para caracterizar o comportamento de Idalina, é uma mostra
clara de oscilação social entre o ser serva do Barão ou ser em si a própria baronesa,
com o tom e o ar de dominação assim como outrora fora caracterizado o Barão.
Em outro momento o narrador observará novamente a atitude de Idalina e,
portanto, a sua caracterização psicológica: “A criada mantinha-se firme, com um olhar
sereno, quase altivo; o Barão, passado o primeiro ímpeto perigoso, serenava e parecia
até hesitante. Ela já tinha tomado posse do terreno e perguntou com uma secura
arrogante: (...)”. (Ibid., p. 41)
A caracterização do ambiente se apresenta através da descrição física do
ambiente / espaço em que estão inseridos os personagens. O narrador-personagem faz
uso da descrição do ambiente para, como vimos anteriormente, identificar o ambiente
ao personagem e vice-versa, para provocar um ambiente tensional. Recordemos que,
neste conto, por meio da caracterização do ambiente é que temos a criação gradativa
do clímax do ritual dionisíaco e da purificação.
A descrição do ambiente pode ser apreciada em: “As pedras lavadas e soltas
pelos caminhos, as barreiras desmoronadas, algumas árvores com os ramos torcidos e
secos.” (Ibid., p. 10) (...) “Estes velhos palácios, quase abandonados, (...)” (Ibid., p. 21)
“Depois fomos para a sala de jantar, um enorme salão onde não apetecia estar, (...)”.
(Ibid., p. 25) Ou ainda: “Lá para os confins da noite caíam do céu badaladas de um
sino a dar horas e ouvia-se o resfolegar das corujas numa torre que eu não via, por
mais que olhasse para o céu, tentando penetrar as trevas.” (Ibid., p. 66)
Se pensarmos na questão temporal, identificaremos que o tempo narrativo é
uma mescla entre tempo cronológico e tempo psicológico. O tempo cronológico se
justifica pela linearidade do enredo das ações narradas. O tempo psicológico tem sua
base alicerçada pelos processos mentais que se confrontam, questionam e se legitimam

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nesta narrativa. E, portanto, o tempo psicológico não é um tempo linear, ao contrário
possui oscilações e não há como precisar de qual ponto partimos e para qual ponto nos
direcionamos. Ainda, a questão temporal se vê identificada por meio da caracterização
da época na qual ocorre o que está sendo exposto pelo nosso narrador-personagem.
Percebida, também, por essa insistente sensação de deslocamento, como se os
personagens estivessem vivenciando em um período que já não fazia parte do
momento narrativo, como se estivessem se nutrindo de um passado e se negassem a
abandoná-lo.
A análise da estrutura narrativa, narrador e foco narrativo tem como intuito
demonstrar de que forma a tecedura do texto, as escolhas lexicais e o foco concentrado
na figura do narrador-personagem fazem com que uma reminiscência se transforme,
aos olhos do leitor, em uma ação em tempo presente. Ressalte-se ainda a relevância
que os jogos textuais adquirem para a construção significativa do conto
proporcionando caminhos interpretativos na análise desta obra. É, sem dúvida, este
contraste inesperado entre as estruturas narrativas e especialmente o antagonismo no
interior do “eu” narrativo que justifica o papel do narrador como personagem central.
Este narrador é onisciente e nos narra (ou tenta narrar) os acontecimentos livres
de julgamentos, voltando a um estado inicial de descoberta e estupor.
Fundamentados, portanto, na delimitação definida anteriormente,
prosseguiremos a análise proposta.
A brevidade da primeira frase do conto “O Barão” nos revela uma das
principais características da personalidade de nosso narrador-personagem: “Não gosto
de viajar.” (Ibid., p. 7). Esta negativa, carregada de significação, prepara a condução
da narrativa e nos apresenta desde o início as oposições / embates que estão
começando a tecer-se.
A contraposição começa a edificar-se se pensarmos no efeito que produz esta
frase. O ponto final repentino produz um efeito de choque que em momento algum se
esvaece, ao contrário, fortalece-se não somente pelos confrontos diretos, mas também
pelas alusões que sugerem sentimentos opostos.
O tom narrativo parece estar em constante oscilação. Analisemos
detalhadamente este início de narrativa: “Não gosto de viajar. Mas sou inspetor das

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escolas de instrução primária e tenho obrigação de correr constantemente todo o país.”
(Ibid., p. 7) (...) “É uma instabilidade de eterna juventude, com perspectivas e
horizontes sempre novos. Mas não gosto de viajar. Talvez só por ser uma obrigação e
as obrigações não darem prazer.” (Id.) (...) “Entusiasmo-me com a beleza das
paisagens, ... Seja pelo que for, não gosto de viajar.” (Ibid., p. 7-8)
Nestes trechos destacados podemos verificar nitidamente a duplicidade do tom
narrativo. O tom firme, determinado, a voz altiva que repete uma e outra vez que não
gosta de viajar se reduz, como se sussurrasse para si mesmo uma justificativa
admissível, como se intimamente tentasse legitimar algo que começa a mostrar-se
como uma dualidade interior do narrador-personagem. A inquietude que o leva a
desfrutar de novas paisagens, a vitalidade retratada pela sensação de eterna juventude,
as saudades de sensações agradáveis confrontadas com as incertas causas do seu
desprazer por viajar são os contrapontos iniciais que fundamentam esse caráter duplo.
Logo em seguida, as imagens, que até então representativamente apontavam
para uma instabilidade circundante e interior, sofrem nova ruptura significativa, agora
não somente pelo vigor das palavras mas pela interrupção brusca do movimento em
direção a uma quietude absoluta como podemos ver pela justificativa que o inspetor
nos oferece ao fato de “não poder” viajar ao estrangeiro quando está de licença:
“Durante esse mês quero estar quieto, parado, preciso de estar o mais parado possível.
Acordar todas essas trinta manhãs no meu quarto! Ver durante trinta dias seguidos a
mesma rua! Ir ao mesmo café, encontrar as mesmas pessoas!... “ (Ibid., p. 9)
A seqüência acima enuncia a tranqüilidade refletida na quietude, na repetição
impensada de atos cotidianos, na preservação do espaço e do tempo de reflexão do eu
interior. Contudo a voz narrativa opta por uma enunciação que contraria a imagem
proposta, com uma asserção enérgica e uma vitalidade que contradiz o literalmente
expresso pelas palavras. É então que, após criar uma atmosfera que repudia o gosto
pela viagem, o narrador-personagem novamente rompe com a expectativa do leitor e

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nos diz: “Mas não vou filosofar; vou contar a minha viagem à Serra do Barroso.”
(Ibid., p.10)7
O leitor começa a perceber as nuances dos embates do “eu interior” deste
narrador. Embates estes expostos logo nas primeiras linhas e que percorrerão, como
veremos, durante a análise dos símbolos e da relação dos personagens no capítulo a
seguir, toda a narrativa.
A voz narrativa, neste conto, é a voz narrativa em primeira pessoa. Percebemos
que esta é a voz que conduz o leitor a revelar os caminhos da significação.
Dependendo da atuação do narrador em primeira pessoa este pode ser
classificado como narrador-personagem e obrigatoriamente participa ativamente
daquilo que está sendo contado. O nosso narrador-personagem não se mostra
onisciente em relação ao narrado, mas é por meio de sua voz, de suas escolhas e de
seus recortes que se constrói a perspectiva narracional. É através do ponto de vista do
nosso narrador-personagem e da habilidade em estruturar a narrativa que se edifica a
totalidade das impressões que o leitor abrangerá durante a leitura e interpretação desta
obra.
Ainda pensando nos aspectos fundamentais utilizados para a realização desta
narrativa, devemos salientar que:
a) Este conto está composto por uma sucessão de acontecimentos.
b) Estes acontecimentos referem-se a ocorrências de interesse humano, cujo
foco é salientar aspectos humanos que adquirem significação e se organizam
em uma sucessão temporal estruturada e ambientada em uma mesma
unidade de ação.
c) Apresenta-se como uma narrativa compacta, estruturada na tensão,
condensação e concentração dos elementos que estão sendo narrados,
proporcionando força e clareza à narrativa.

7
A serra do Barroso localiza-se ao Norte de Portugal e é composta por uma paisagem agreste e
bucólica, deixando transparecer um modo de vida rural caracterizado pela força de antigos usos e
costumes, conservados pela tradição.

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Esta voz narrativa em primeira pessoa se expõe basicamente de dois diferentes
modos e concomitantemente se produz em dois instantes nitidamente demarcados. São
eles:
1. Quando a voz do narrador se identifica como tal e manifesta as disputas interiores
do seu próprio “eu”, ou seja, se manifesta no momento presente do ato de narrar e
pode remeter-se ao seu passado ou ao ato presente (a narração).
2. Quando a voz narrativa é utilizada pelo narrador-personagem para caracterizar e
julgar os acontecimentos passados e que estão sendo contados, um tom narrativo
capaz de descrever o entorno e de revelar os entraves emocionais postos em jogo,
ou seja, a voz que será a responsável pela caracterização psicológica dos
personagens, pelo aprofundamento dos processos mentais colocados em confronto.

Vejamos como isto ocorre: ”São os meus ideais impossíveis. Um velho solar de
paredes que tenham vivido muito mais do que eu, dessas paredes que têm fantasmas, e
em volta um grande parque de velhas árvores, com recantos onde nunca vai ninguém.”
(Ibid., p. 21)
Este trecho apresenta uma interrupção daquilo que está sendo narrado e é a voz
do narrador-personagem utilizando a imagem / situação do passado narrativo para
exprimir uma sensação / sentimento que faz parte do processo de caracterização do seu
“eu” interior.
No trecho: “Pareceu-me que as suas idéias não tinham continuidade. / Talvez as
minhas também não.” (Ibid., p. 86). Percebemos que utiliza a narração do
acontecimento ocorrido para sub-repticiamente manifestar o seu parecer no presente
narracional, ou seja, a enunciação de seu parecer se dá tendo como fundamento o
contexto total do que está sendo narrado e não o contado propriamente dito. Emite
julgamento daquilo que ocorreu de forma a que haja um entrelaçamento entre o
presente e o passado, pois, como veremos, há a transformação do âmago daquele que
narra.
Nosso narrador-personagem maneja o seu saber de acordo com os efeitos que
deseja causar. Neste caso a dualidade de seu “eu” é representada pela sua dúvida

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interior, por essa incerteza que será encontrada somente e quando o narrador estiver
discorrendo sobre estados psicológicos.
No trecho que segue, podemos corroborar que também utiliza esta voz em
primeira pessoa para descrever e julgar: “_Nunca deixes de ser meu amigo... Olha que
eu sou um pobre homem! (Tremiam-lhe as mãos; o olhar tinha perdido o brilho e
ficara vago e baço. Depois de uma pausa concluiu com um sorriso amargo8): Sou
um poeta...” (Ibid., p. 50)
No trecho acima, tem-se uma descrição do estado emocional do Barão: o tremor
das mãos, a reiteração da perda da vivacidade e da expressividade do olhar, a
importância da interrupção da ação e o modo como finda a sua enunciação
sentenciando como penoso o esboço de um sorriso, a insinuação da tentativa de
camuflar um desprazer emocional. Ou ainda: “_És um simples... As mulheres de quem
a gente não tem medo, não prestam para nada. (E acrescentou com melancolia)9: Faz
de conta que estamos de acordo...” (Ibid., p. 82)
Note-se que neste trecho há dois tipos de julgamentos: o primeiro refere-se ao
“e acrescentou”, ou seja, para o narrador o enunciado que vem logo após não é
absolutamente necessário para a compreensão do dito anteriormente e, portanto,
assinala que isto pode ser considerado como um devaneio do personagem. Contudo,
este adendo é feito de uma forma peculiar ao Barão, é feito de maneira lânguida, com
uma tristeza indefinida, retratando conseqüentemente o aprofundamento do “eu”
interior do Barão, caracterizando assim o segundo julgamento.
A voz narrativa em primeira pessoa é uma técnica extensamente utilizada pelo
nosso narrador-personagem, no entanto, não podemos esquecer que intercala este
recurso com a técnica do discurso direto e o discurso indireto.

8
Grifos meus
9
Grifos meus

15
No discurso direto10 reproduz-se o registro integral da fala do personagem, da
forma particular como o personagem a emite, sem ter a intervenção do narrador que se
restringe apenas a introduzir a enunciação do personagem. Ou ainda, podemos ter o
discurso direto sem qualquer interposição do narrador.
No discurso indireto11 a voz do personagem é apresentada através da voz do
narrador, ou seja, o narrador é a ponte entre o dito pelo personagem e a narrativa em si.
Vejamos: “Disse-me que eu ficava sendo seu hóspede, e pôs termo às minhas evasivas
declarando, num tom de gracejo seco, que não admitia resposta:” (Ibid., p. 15)
No trecho acima constatamos um exemplo de discurso indireto, pois
percebemos que o enunciado é do personagem Barão permeado pela voz narrativa,
com todas as adequações gramaticais realizadas para essa concreção.
Já, na sentença: “_Quem manda aqui sou eu!”(Id.) é a realização do discurso
direto, com a voz e o tom do personagem impressos.
Cumpre-se desta forma o já previsto anteriormente, o estilo direto é utilizado
para reproduzir a tensão tal qual foi percebida no momento exato do acontecimento e o
estilo indireto banha-se da parcialidade da voz do narrador.
Saliente-se que o fato de afirmarmos que o discurso indireto está atravessado da
parcialidade da voz do narrador não exime que o mesmo ocorra com o discurso direto.
Qualquer que seja o recorte / técnica utilizada para a efetivação da narrativa é sempre
determinada pelo ponto de vista do “eu” narrador e que pode ser mais ou menos
visível dentro do texto narrado. Logo, neste conto, o processo narrativo empregado é
perpassado pela parcialidade da ótica daquele que narra: o inspetor de escolas.
Ainda, vale ressaltar que o enredo que nos é apresentado é basicamente um
enredo psicológico, seu motor é a questão do encontro com o “eu” interior dos
personagens, um encontro com os seus próprios fantasmas.

10
MALDONADO, Concepción. DISCURSO DIRECTO E INDIRECTO. Madrid: Taurus,
1991.

16
CAPÍTULO 3 - SIMBOLOGIA E SIGNIFICAÇÃO

A condução da trama narrativa, o ambiente narracional, a utilização de signos


metafóricos, o valor evocativo e mítico dos elementos que estão sendo representados
gradativamente têm relevância notória no conto “O Barão”. É através dos jogos
efetuados pelo narrador ao nos apresentar estes elementos que se produz o clima
tensional que percorre a narração.
Portanto, é por meio desse foco que prosseguiremos nossa análise contemplando o
estudo da representatividade dos elementos simbólicos e metafóricos que seguem:

• o ritual dionisíaco que nos propõe o vinho e o fogo como elementos


transformadores e capazes de orientar os personagens em direção aos percursos
do inconsciente;
• a questão edípica; o estilhaçar das taças como figuração da mistura entre a
lucidez e a obsessão;
• a representação da Tuna e a simbólica purificação.

A apreciação dos elementos relacionados anteriormente se realizará sempre


englobando a análise da representatividade do ambiente no qual os personagens se
encontram, da simbologia da figura feminina e da importância que esta imagem
alegórica possui para a construção do sentido geral do texto.

11
Id.

17
O Ritual Dionisíaco
A figura de Dionísio12, recorrente na arte ocidental, representa o deus da
natureza e da ebriedade. Sua representação tradicional vincula-o a todo um culto
religioso e, durante os séculos XIX e XX alcançou também a possibilidade de
representar a rebeldia artística contra a imposição racionalista.
O culto ao deus Dionísio está intimamente ligado à origem da tragédia. Os
rituais eram celebrados através de danças acompanhadas por música (especialmente a
flauta), orgias, máscaras (símbolo da representação teatral) e banquetes13.
Segundo a tradição, Dionísio morria a cada inverno e renascia na primavera.
Portanto, a representação deste renascimento cíclico que vem em conjunção com a
promessa de um novo florescer (a primavera) nos apresenta este deus que é ao mesmo
tempo o símbolo da ambigüidade e da renovação.
É necessário assinalar que a mitologia dionisíaca seria posteriormente
incorporada ao Cristianismo, e claramente podemos destacar alguns pontos de contato
entre as histórias difundidas sobre Dionísio e Cristo: ambos foram engendrados por
uma mulher mortal fecundada por um Deus, renasceram dentre os mortos e
transformaram a água em vinho.
Apesar de ser amplamente assinalado como o responsável pela invenção do
vinho, Dionísio leva consigo um significado mais complexo. Prova disso são os
diversos nomes pelos quais é conhecido. Além, é claro, dos dois mais populares, Baco
e Dionísio, também é chamado de Brômio (aquele que brama como as bestas
selvagens), Lysios e Eleuthereus devido à sua ação libertadora, Liknites que o
relaciona com o deus da fertilidade, Biformes por ter a capacidade de mostrar-se belo
ou horroroso conforme a necessidade, Omadio por amar a carne crua, Faleno

12
CARDONA, Francesc. Las mutaciones de Dionisio. In: MITOLOGIA GRIEGA.
Barcelona: Edicomunicación, 1996. p.16-46
13
Exatamente como descreve Eurípedes na sua obra “As Bacantes”

18
relacionado também a fertilidade, Floios como aquele que tem o espírito cortes,
Sabacio (nome alternativo de Baco no panteão).14
Tem a capacidade de causar a loucura, a mania e esse estado delirante que se
manifesta em seus adoradores por meio da dança frenética e da ingestão do vinho.
Ressalte-se, ainda, que o elemento feminino está continuamente presente no ritual
dionisíaco, a que vêm se agregar a música e o vinho, que se manifestam como
elementos de relaxamento e purificação da alma.
O ritual dionisíaco em “O Barão” tem início efetivamente no momento em que:
“... e bebeu um pequeno golo, começando de súbito a falar com entusiasmo, como se o
álcool lhe acordasse não sei que ocultas forças adormecidas.”. (Ibid., p. 25-26).
Contudo a caracterização do ambiente e da identificação do personagem Barão com o
deus Dionísio se dá desde o início da narrativa e é exatamente por meio do tom e do
ponto de vista de nosso narrador, o inspetor de escolas, que fragmentariamente
constituiremos não somente a figura do Barão / Dionísio, mas também reconstruiremos
a tensão proposta pela descrição dos ambientes, culminando na busca incessante pelo
“eu” interior e pelo clímax da purificação.
Segue, por conseguinte, a composição da narrativa tendo como fio condutor a
construção do ambiente / personagens em torno do mito do deus Dionísio.
Após o parágrafo introdutório no qual o nosso narrador-personagem nos
apresenta alguns aspectos da sua constituição psicológica, tem-se início (ainda que esta
apresentação diga muito e que seus conceitos sejam fundamentais para toda a
narrativa) a preparação do ambiente: “Foi no inverno...”. (Ibid., p. 10) É exatamente
nos três meses de inverno que os cultos dionisíacos são levados a cabo. Logo, estamos
na estação apropriada para que as forças maiores se apoderem das ações dos
personagens e permitam que eles desfrutem das inebriantes sensações que ficam entre
a lucidez e a ebriedade, porta de acesso para o inconsciente15.

14
Cardona, op.cit.
15
FREUD, Sigmund. A HISTÓRIA DO MOVIMENTO PSICOANALÍTICO. Volume
XIV. Tradução de Themira de Oliveria Brito, Paulo Henriques Britto e Christiano Monteiro
Oiticica.Rio de Janeiro: Imago Editora LTDA.

19
Constrói-se, na continuidade, a percepção das dificuldades que enfrentará o
narrador-personagem na busca e na transformação do seu “eu” interior ao lado do
Barão que personifica a imagem mítica de Dionísio: “As pedras lavadas e soltas pelos
caminhos, as barreiras desmoronadas, algumas árvores com os ramos torcidos e
secos.” (Id.)
Recordemos que a pedra16 é um símbolo do centro e da totalidade da psique
humana, representando, portanto, a realização do “eu” como consciência de
completude. Aqui, podemos interpretar a presença destas pedras como os obstáculos
que os personagens enfrentarão no percurso em busca do “eu”.
A primeira impressão que o inspetor de escolas tem da imagem do Barão é: “...
do vão escuro surgiu um homem de enorme estatura, que teve de curvar-se para
poder passar. De ombros largos, com um grande chapéu na cabeça e todo
embrulhado, até os pés, num capote preto...” (Ibid., p.13-14) (...) “... Era uma figura
que intimidava. Ainda novo, com pouco mais de quarenta anos, tinha um aspecto
brutal, os gestos lentos, como se tudo parasse à sua volta durante o tempo que fosse
preciso. O ar de dono de tudo. Avançando para mim, com passos vagarosos,
fitava-me friamente. De repente mudou de expressão, como quem deixa cair uma
máscara, e a rir perguntou-me donde eu vinha e quem era. Mas qual seria a
máscara?”17 (Ibid., p-14)
A descrição do Barão é assustadora tanto física como psicologicamente. A sua
constituição exterior pode ser notada como algo meio intimidador, dono de um poder
capaz de aniquilar e de provocar receio aos que estão à sua volta. Seus movimentos
apesar de serem descritos como lentos causam apreensão. Ele “avança” em direção ao
narrador-protagonista de uma forma agressiva, atemorizante.
Seu aspecto psicológico começa a ser desenhado e a dualidade, característica
marcante nesta narrativa, surge com a explícita menção à “máscara”. Como vimos

16
Os símbolos mencionados têm como fonte de consulta: BIEDERMANN, Hans.
DICCIONARIO DE SÍMBOLOS. Barcelona: Paidós, 1996.

17
Grifos meus.

20
anteriormente, os cultos dionisíacos eram marcados pela representação da teatralidade
através do uso das máscaras e o deus, de um modo geral, vestia-se com longos capotes
de pele que recobriam o seu corpo: “... Surpreendi-lhe então um olhar duro, logo
mudado numa expressão infantil e alegre...” (Ibid., p. 15) (...) “... compreendi que tinha
caído nas mãos de um déspota, de uma pessoa habituada a vergar os outros aos seus
caprichos.” (Ibid., p. 16) (...) “... e então ele teve um sorriso tímido e quase ingênuo,
como uma criança.” (Id.)
Nos aspectos ressaltados nos trechos acima, verificamos como a dualidade é
representada constantemente e tem a função de encenar um embate emocional dentro
do “eu” interior do personagem do qual se fala e dentro também do interior do
narrador-personagem que se põe a falar sobre estes aspectos. A relação entre inspetor e
Barão se apresenta, portanto, como uma relação de alteridade, onde a presença / atitude
do outro os fazem pensar em si próprios.
Nos excertos que seguem, constatamos que a descrição do ambiente colabora
uma vez mais para a construção das tensões que se manifestarão uma e outra vez
através das características psicológicas dos personagens. O ambiente pode ser visto
como um pseudopersonagem, sendo, por diversas vezes, priorizado em detrimento de
personagens secundários. Como se o ambiente de repente ganhasse um aspecto
antropomórfico capaz de interagir com o narrador-personagem e influenciar o Barão,
enquanto personagens figurantes não são percebidos com a mesma intensidade: “...
Olhei em volta, mas a noite estava tão escura que não vi nada e senti um cão a cheirar-
me as pernas.” (Ibid., p. 20) “... vi que estávamos num velho solar, de certa
imponência. Uma fachada de muitas janelas perdia-se na escuridão da noite.” (Ibid., p.
21)
Ou ainda, o ambiente ligado à busca do “eu” interior: “Estes velhos palácios,
quase abandonados,...” (Id.) (...) “São os meus ideais impossíveis. Um velho solar de
paredes que tenham vivido muito mais do que eu...” (Id.) (...) “Ah! Isso, sim, é que me
dava outras possibilidades de ser, de compreender e de ir pelo meu caminho.” (Ibid., p.
22)
Ou quando se fala diretamente da constituição psicológica: “... o Barão também
era um homem em que lutavam Deus e o Diabo.” (Ibid., p. 24). Há neste momento

21
uma relação de proximidade momentânea entre o inspetor de escolas e o “senhor
medieval” que é posta em questão na seqüência: “Mas não nos podíamos entender. As
taras e os desequilíbrios inferiores tinham-no vencido, submergindo o homem inteiro.”
(Id.) (...) “Parecia outra pessoa que estava afundada dentro dele próprio...” (Id.) (...)
“Era um senhor medieval, sobrevivendo á sua época, completamente inadaptado, como
um animal de outro clima.” (Id.) (...) “... havia nele qualquer coisa de animal feroz, no
olhar, nos gestos, até na fala. Porém numa fusão estranha, com não sei quê de cândido
e de afável.” (Ibid., p; 24-25)
Nestes trechos podemos identificar alguns aspectos importantes que marcam
definitivamente o conto. No momento em que o narrador-personagem se vê através do
Barão imediatamente aclara que ainda que em ambos os embates emocionais se
fizessem presentes e constantes, havia naquele senhor medieval algo que o fazia
experimentar mudanças ocasionadas pelo seu próprio “eu” , como uma certa
incapacidade de se adaptar ao mundo em que vivia, tentando de maneira ineficaz
manter-se distanciado desse novo mundo.
É neste trecho ainda que se reitera de forma mais marcada a característica
zoomórfica do Barão. Não sendo, contudo, a primeira vez na narrativa que o elemento
“animal”, seja na caracterização do personagem, seja de forma literal, surja posto em
evidência.
Anteriormente, já temos a atenção voltada para o cavalo Melro, e depois os cães
na noite escura. Pensando de uma forma generalizada, podemos afirmar que os
“animais”18 simbolizam os poderes do inconsciente e estão ligados à impulsividade
instintiva, já seja uma impulsividade agressiva ou libidinosa. O cavalo está associado
ao tema do instinto sexual, e na mitologia está relacionado às deusas-mãe e ao fluxo da
vida e da morte. O cachorro era considerado, na antiguidade, o guardião da vida eterna.
Também estava relacionado com a morte e com a fidelidade no relacionamento.
Portanto, aspectos estes que se vêem refletidos tanto no Barão como no narrador-
personagem.

18
BIDERMANN, op.cit

22
O vinho, que outrora já havia sido convocado a ser parte integrante da narrativa
e, sobretudo a ser observado como elemento transformador, terá sucessivas aparições
durante o descortinar dos encontros conflitivos em busca do “eu” mais íntimo dos
personagens.
O inspetor que em um princípio desejou o silêncio e afirmou que somente dessa
quietude rotineira poderia advir “... uma calma interior...” (Ibid., p. 9) se sentirá
deslocado e nos mostrará essa dualidade interior: “... pesava cada vez mais um silêncio
que eu nunca tinha sentido: inquietante...” (Ibid., p. 26) e “... a verdadeira fome
começava a torturar-me” (Ibid., p. 27). Esta “verdadeira fome” pode e é sentida
ambiguamente, refere-se num primeiro momento à fome relacionada a uma
necessidade de alimento, mas neste caso também entendida como a voracidade, a
avidez em encontrar o seu próprio caminho. É por causa desta avassaladora fome que
a personagem Idalina entra na narrativa. Não é a primeira figura feminina que está
representada na narrativa, mas sem dúvida é a primeira figura feminina que nos
proporciona uma quebra no tom narracional e nos proporciona a possibilidade de, por
meio de sua ação / passividade, visualizar as mudanças que se processam no interior do
“eu” dos personagens Barão e inspetor.
Note-se, de imediato, que Idalina é a única personagem que é caracterizada pelo
nome. Sua entrada nesta parte da narrativa tem dupla função. Primeiramente esta
criada foi chamada para que preparasse aquilo que saciará a fome (alimentícia) do
inspetor, e mais tarde, se verá que esse saciar terá projeções libidinosas, ainda que
sejam apenas projeções. Em um segundo plano, não menos importante, a figura de
Idalina nos é mostrada como: “Uma mulher alta, bem feita, de quarenta anos, com um
vago ar desdenhoso e importante.” (Ibid., p. 30) Ou seja, idade similar ao Barão e de
características psicológicas de mesma tendência.
De acordo com o nosso narrador-personagem temos que: “Percebia-se
facilmente que andava ali como dona da casa, oscilando entre baronesa e serva. Saiu
num passo elástico, deixando ficar atrás dela um momento de silêncio.” (Ibid., p. 31).
Nota-se, portanto, que em Idalina também havia embates interiores e, que, é a sua
representação capaz de provocar mudanças nos estados de espíritos dos que com ela
interagem.

23
É na seqüência que evidenciamos a tensão provocada pela sua presença, muito
mais do que pela sua ausência: “O Barão, contra o seu costume, bebeu vários golos,
com pequenos intervalos, sem dizer nada. Não compreendi porque é que aquela
mulher, uma simples criada, tinha deixado ali aquele silêncio difícil.” (Id.) (...) “...
naquele momento esmagava-o um desalento repentino, não tinha força de vontade,
ficara abatido e mole como um leão ferido de morte.” (Ibid., p. 33)
E, ainda: “– Esta mulher faz-me lembrar certas coisas” (Id.) (...) “Até que
serenou e começou a falar de outra mulher, uma mulher por quem tinha tido uma
paixão, e a quem se referia chamando-lhe apenas ‘Ela’ ”. (Ibid., p. 35)
Constatamos que a presença de Idalina, ainda que rápida, foi o suficiente para
afundar o Barão na divagação em busca dos seus próprios fantasmas. É através dela
que se evidencia a questão edipiana e ocorre a representação alegórica do estilhaçar de
Dionísio. E, principalmente, é motivado pelas recordações que Idalina lhe causa, que
Ela, a Bela-Adormecida, será mencionada pela primeira vez e se transformará em um
dos fios condutores deste conto.
A busca interior o fará relembrar dos momentos em que as “suas mulheres”
eram vendidas ou trocadas com o seu pai. Como se essa lembrança o fizesse sentir um
mal-estar, o Barão assume uma possível mudança comportamental: “Mas vou... vou
regenerar-me...”. ( Ibid., p. 34)
Na seqüência desta clara manifestação das disputas que se processam no
interior do Barão, o nosso narrador-personagem está atento para os nuances do
protagonista, e registra, permeando as atitudes do personagem através do seu ponto de
vista, as mudanças que ocorrem no “eu” interior do Barão e são manifestadas por meio
de nuances ou tons distintos. Essas nuances também são representadas através do tom
narrativo e não é sem razão que produz-se aqui uma quebra narracional, vejamos: “Fez
uma pausa e, como se acordasse de repente, olhou para mim, endireitou-se na cadeira,
bebeu um golo de vinho e bateu com o copo com tal força sobre a mesa que o fez em
estilhas. Então continuou noutro tom de voz completamente diferente, firme, lúcido.”
(Id.)
Através deste parágrafo podemos verificar a intencionalidade do narrador,
quando sutilmente faz esta quebra no tom narracional, reduzindo o ímpeto das

24
emoções que são postas em cena e ao mesmo tempo permitindo que o estilhaçar da
taça represente não somente a impulsividade dionisíaca como também a mudança
comportamental do personagem. É, na continuidade dessa introspecção, que o Barão
fará com que “Ela” se faça presente pela primeira vez. Vale recordar que a mudança de
tom narracional, como se houvesse simplesmente diminuído a intensidade da narrativa,
ao mesmo tempo mantém a força daquilo que é dito. O transbordar das emoções do
Barão referidas à sua relação com o pai e à sua relação com a “Única” faz-se sentir por
meio do impacto causado pela presença de Idalina.
O Barão segue a buscar em suas recordações os feitos dos quais se envergonha
e se vangloria ao mesmo tempo e mais uma vez vem a tona a disputa entre pai e filho
pela posse de uma “mulher”.
Uma espécie de louvor é entoado ao vinho e vê-se a si mesmo como um animal
“Sou um animal, uma pura besta.” (Ibid., p. 38). Explicitamente refere-se à
característica dionisíaca, o bramar das bestas, a animalização.
Após celebrar o vinho e identificar-se com o lado selvagem dos animais, o
Barão informa ao seu hóspede que vai ouvir a Tuna. Para que isto ocorra, chama-se
novamente a criada e outra vez mais a tensão é evidenciada:

E sentou-se na minha frente, de costas para a criada, como se ali se refugiasse do seu olhar duro.
Pegando no copo, ergueu-o num gesto brusco. Receei que agredisse aquela arrogante mulher,
que a esmagasse com uma cadeira na cabeça. Mas não. Dominava-se mais do que parecia por
vezes. Contudo, era preciso coragem, ou outra qualquer força qualquer, para afrontar assim as
violentas iras do fidalgo. Havia um mistério entre ambos, era evidente. (Ibid., p. 41-42)

Idalina, ainda que seja a criada, é a figura feminina que marca o embate
psicológico do Barão (e posteriormente marcará também o do inspetor de escolas).
Conseqüentemente, é por meio de sua presença, de seus atos, de sua caracterização
psicológica e inclusive pela sua ausência que visualizamos notoriamente o processo
transformador pelo qual passa o nosso protagonista. O Barão não a confronta
diretamente e dela se refugia, como que uma força emanasse de Idalina fazendo-o
recuar, como a um animal ferido. Ao mesmo tempo, a presença de Idalina vem

25
marcada sempre com um tom de agressividade. A agressividade é representante do
lado obscuro da personalidade, do instinto e da impulsividade.
Continua a narração afirmando: “Dominava-se...” e “Havia um mistério entre
ambos...”. Esta dominação refere-se uma vez mais à dualidade psicológica que se dá
no interior do personagem, ou seja, na dualidade psicológica. Contudo o fato de que o
narrador afirme que entre o Barão e Idalina há algo maior que os une, como uma força
superior, esse mistério que não é possível desvendá-lo, que não é a relação de serva
nem de baronesa, que faz com que o Barão tente redimir-se de seus atos e que lhe tema
e que lhe afronte, é esse mistério que intensifica ainda mais o clima dionisíaco.
A ingestão do vinho começa então a provocar a sensação de bem-estar em
nosso narrador: “Eu devia estar já convencido de que aquelas coisas de tão divino
perfume não faziam mal; que, pelo contrário, era absorver néctares do Paraíso.” (Ibid.,
p. 43-44) Nesta afirmação peculiar podemos verificar como o efeito do vinho já
começava a transformar o caminho pela busca do “eu” do narrador-personagem. As
palavras que utiliza para se referir ao vinho são simplesmente poéticas, é mais do que
uma simples referência, é uma reverência: divino – aquilo que vem ou pertence a
Deus, sobrenatural, sublime, encantador; néctares – a bebida dos deuses; Paraíso – o
lugar dos deuses. É desta forma que o inspetor se sente: desfrutando da bebida sagrada
tendo como companhia a personificação de Dionísio em meio de um ambiente que
outrora já havia sido descrito como: “... um sonho de conforto, de intimidade e de
bem-estar: de estabilidade na vida.”. (Ibid., p. 21) Mais do que estabilidade na vida,
significa a estabilidade emocional, a busca pelo caminho da descoberta do “eu”
interior, pela sua purificação.
Entre constantes golos de vinho novamente temos a referência às mulheres e
neste momento o Barão aponta mais uma das características que nos fazem identificá-
lo com Dionísio: “Sabe bem com a carne... Eu sou carnívoro...” (Ibid., p. 44) (vale
lembrar aqui do epíteto Omadio, também dado a Dionísio).
Lembremos que anteriormente o narrador-personagem nos havia dito que o fato
de o Barão beber constantemente não significava que estava embriagado, mas sim que
estava sob pressão, como que alimentando-se continuamente dessas forças que outrora
já foram denominadas de forças superiores ou ocultas. No entanto, é entre o momento

26
em que o Barão ordena a vinda da Tuna a Idalina que o inspetor de escolas, através da
sua narrativa, retarda as informações e inclui a tensão provocada pela
presença/ausência de Idalina, pelas recordações do anfitrião, e inclusive afirmará pela
primeira vez que: “Já estávamos ambos embriagados.” (Ibid., p. 45). Será dessa forma,
embriagados, que farão um brinde à Ela, a Única. Neste brinde ocorrerá parte do ritual
dionisíaco19 que pode ser identificado pelos aspectos que seguem: ruptura do gargalo
da garrafa que faz com que jorre por ela a espuma branca - a espuma que simboliza a
purificação; o gesto de erguer a taça que transborda – o transbordar simboliza os
embates do “eu” interior; a quebra das taças – que representa o estilhaçar de Dionísio e
simboliza também a mudança / dualidade no interior dos personagens, vejamos:
“Pareceu-me outro homem. Era, na verdade, outro homem, aquele que estava ali agora
diante de mim. Não o tinha compreendido, não o tinha visto ainda.”. (Ibid., p. 47)
Provocados por esse clima dionisíaco, serão envolvidos por uma nebulosidade, por um
ambiente tenso e impreciso, pela possível confusão entre fantasia e realidade. Segue:
“Não sei bem por onde andamos e não sei mesmo o que fizemos naquela divagação
melancólica.” (Id.) (...) “… que me lembram como um sonho fantástico.” (Ibid., p.
48). Ou ainda: “Quanto tempo isto durou, não sei.” (Id.)
Raro seria não perceber esta confusão narracional que reflete sem dúvida
alguma a confusão emocional que os personagens estão percorrendo. A narrativa nada
mais é do que o espelho do interior dos personagens e se neste momento o narrador
escolhe deixar claro esta imprecisão é porque também dentro dele e do Barão estavam
sendo processadas as mudanças no “eu” de cada personagem. E dessa mesma forma
que se sentiam, confusos e imprecisos, percorrendo caminhos obscuros, física e
emocionalmente, à procura de compreender e de ir pelo seu próprio caminho.
A ruptura no tom da narrativa novamente é provocada pela “fome” desta vez do
Barão e pela presença / ausência de Idalina. A figura de Idalina é tão forte e tão
motivadora nesta narrativa que não é necessário que haja uma manifestação verbal por
parte da criada. Apenas sua presença seguida pelo seu afastamento da cena faz com

19
Digo parte do ritual porque posteriormente se dará o ritual dionisíaco por completo.

27
que tudo seja percebido diferente. Ela é o eixo de mudança ao mais puro estilo
dionisíaco.20 Por exemplo: “Encheu um copo de vinho tinto e bebeu dos golos.
Agarrou na campainha e tocou. Veio a criada com o seu ar altivo. (...) Gritou, mas
quando ela saiu começou a rir, a rir, (...)”. (Id.)
Logo após esta cena o narrador-personagem nos indica uma mudança
comportamental e registra-a da seguinte forma: “Antes de se sentar veio ao pé de mim
e poisou a mão no meu ombro, com melancolia, tratando-me por tu. “ (Ibid., p. 50) A
forma de tratamento é ressaltada para que se possa perceber novamente a mudança que
ocorre dentro do personagem do Barão. È uma relação agora de amizade e de
confiança, uma relação de desabafo e de procura.
Recordemos então que desde que o Barão ordenou que Idalina fosse chamar a
Tuna até este momento não houve menção ao fato. Isto ocorre porque a técnica
narrativa utilizada faz com que o leitor se envolva de uma forma tal que chegue a
confundir-se entre o passado (que é exatamente o que está sendo narrado) com o
presente do narrador-personagem, motivo pelo qual o narrador utiliza a desaceleração
da narrativa provocando a tensão e repassando a sensação vivenciada pelo inspetor,
como se não soubesse o que ocorre no instante seguinte, transferindo, portanto, a
expectativa para a narração.
É com a aparição e a apresentação da Tuna que se tem o ritual dionisíaco
completo. Vejamos quais são as características que despontam e qual o significado de
cada uma delas: “... neste momento ouvimos ao fundo do corredor, ainda longe, um
barulho como o rolar de um trovão que se aproxima.”. (Ibid., p. 51) Nitidamente é uma
caracterização do ambiente que os rodeia como algo que é inesperado (ainda que tenha
sido chamada anteriormente, o nosso narrador-personagem não sabe neste momento

20
Note-se que não se exclui o plano narrativo em busca do apaziguamento do “eu” interior
em relação à Bela Adormecida, apenas estou neste momento ressaltando a importância de Idalina para
o aparecimento dos embates emocionas, das quebras narracionais e inclusive para o surgimento do
embate vinculado à “Ela”;

28
que este barulho é proveniente da Tuna, inclusive não sabe o que é a Tuna21), como
algo estrondoso e assustador. “Eu fiquei atônito e imóvel. (Id.) (...) “Não tive medo…”
(Id.) (…) ”…(assustado não estava)….” (Id.). Percebe-se pela forma com que o
inspetor descreve a situação que ocorria algo que lhe era desconhecido e intrigante.
Reitera a força daquilo que presenciava: “Parecia-me um pesadelo aquele desfile de
figuras tão estranhas, que formavam um friso diante de mim e continuavam a passar
interminavelmente, fazendo uma vênia até o chão.” (Ibid., p.53)
Há também a zoomorfismo dos integrantes da Tuna: “Os tamancos soltos nos
pés faziam-nos caminhar como ursos. (...) Eram ursos.” (Ibid., p. 54). O urso
representa a divindade mais antiga do mundo e representa o símbolo do inconsciente e
de nossos instintos. A vestimenta dos integrantes da Tuna são representações
simbólicas também de Dionísio: “A alguns mal se lhes via a cara, porque tinham a
cabeça metida dentro de enormes capuzes, como frades.” (Id.)
Em seguida temos a descrição de parte do ritual dionisíaco que pode ser
também interpretado como uma face do ritual cristão: “A criada tinha posto sobre a
mesa três grandes copos, de litro cada um, e umas três ou quatro broas. Pôs também
duas facas. Depois encheu os três copos com vinho tinto, de um garrafão que estava
debaixo da mesa e saiu. Tudo isto fora feito num silêncio absoluto como um ritual
respeitado.” (Ibid., p. 55)
Destaquemos que a Igreja utilizou no decorrer do tempo o pão e o vinho para a
celebração do banquete do Senhor, sendo que o vinho dever ser natural e puro, sem
misturas de substâncias estranhas. Para a religião cristã o pão é o símbolo básico da

21
Surgiu no ano de 1212, na Espanha, o primeiro "Studium Generale" que seria o
antecessor das atuais Universidades. Em 1285, D. Diniz manda construir os Estudos Gerais de Lisboa
que posteriormente foi transferido à Coimbra, surgindo assim primeira Universidade Portuguesa.
Jovens de todo o país acediam aos Estudos Gerais e surgiu desta forma os Sopistas (dessa forma
denominados na Espanha) que seriam os predecessores dos atuais Tunos. Os Sopistas eram estudantes
pobres que utilizavam a música para percorrer as casas nobres, conventos, ruas e praças com o intuito
de receber em troca um prato de sopa ou uma ajuda financeira para custear os estudos. Utilizavam
longas capas negras para poderem se esconder dos policiais. No século XVI formaram-se as Tunas.
Julga-se que receberam este nome, pois as atitudes dos integrantes eram semelhantes a um califa,
boêmio e mulherengo, de Tunes. As Tunas em Portugal surgiram apenas em meados do século XX.

29
humanidade, é aquele que satisfaz a fome, fortalece e é o símbolo da vida. Inclusive
por ter essa representação durante o primeiro século a Eucaristia foi denominada
“fração de pão”. Já o vinho é a bebida por excelência. Humanamente o vinho fala de
amizade e de comunhão com os demais, proporciona alegria e nos dá inspiração. No
antigo testamento podemos verificar que quando se refere aos tempos messiânicos há a
referência a festas de vinhos e manjares. O vinho é considerado um símbolo do sangue
de Cristo e partilha com o rito dionisíaco a propriedade de reconciliação e comunhão.
Por meio da voz do Barão é apresentada a Tuna. Note-se aqui a demonstração
da arrogância do Barão refletida na ordem dada para a vinda da Tuna já madrugada
adentro. A primeira toada que é pedida por ele é o Verde-Gaio22 que reflete o espírito
do ritual marcado pela cantoria, pela alegria, pela isenção de responsabilidade,
demonstrando o deleite e o prazer daquele momento. Logo após a partilha de pão e
vinho, pede que se toque o Tum-Tum (ambas são toadas populares portuguesas).
Enquanto é executada a toada, a dança desperta os instintos de nossos personagens.
Vejamos quais são as impressões do inspetor e o que representam: “Eu estava
maravilhado. Ainda hoje conservo nítida essa sensação de estranheza que me deu a
sessão da Tuna.” (Ibid., p. 60)
No trecho acima, observamos que o narrador-personagem afirma o seu
assombro por todo esse espetáculo com um certo tom de admiração pelo vivenciado
naquela noite. Percebemos também que há neste discurso a opinião “atual” do narrador
(aquela que estará presente ainda no momento em que recorda aquela noite decisiva e
narra tais acontecimentos). É uma lembrança que marcou definitivamente o inspetor.
Seguem entoados pela música incessante, a dançar o Barão, a criada e o
inspetor. Aqui se descreve uma cena erótica: “A criada caiu também no meio da casa e

22
Hei-de cantar hei-de rir [bis] / hei-de ser muito alegre [bis] / hei-de mandar a tristeza
[bis] / para o demo que a leve [bis] / Verde gaio verde gaio verde guito [bis] / agora é que vai a meio /
o rapaz do casaquito / agora é que vai a meio / o rapaz do casaquito / O meu amor quer que eu tenha
[bis] / juizo capacidade [bis] / tenha ele que é mais velho [bis] / eu sou de menor idade [bis] / verde
gaio ... / Sei um saco de cantigas [bis] / e mais uma saquetinha [bis] / quando as quero cantar [bis] /
desato-lhe a baracinha [bis] O meu amor quer que eu tenha [bis] / juizo capacidade [bis] / tenha ele
que é mais velho [bis] eu sou de menor idade [bis] / verde gaio... / Sei um saco de cantigas [bis] / e
mais uma saquetinha [bis] / quando as quero cantar [bis] / /desato-lhe a baracinha [bis]

30
ficou com as saias para cima, mostrando as pernas até às coxas.” (Ibid., p. 60-61). O
erotismo desta cena está marcado pela mistura de elementos que despertam os
impulsos inconscientes. A cena é descrita com sobriedade, mas vem carregada de
vinho, música, estranheza e lentidão narracional provocando o erotismo pedido pelo
ritual proposto. Consideremos também que a dança é um símbolo ligado à sexualidade
que leva ao êxtase erótico.
É, sem dúvida, que na seqüência desta narrativa ocorrerá o clímax do conto.
Analisaremos como isso ocorre: “... começou lentamente a despejar sobre a cabeça
uma cascata de vinho branco que me fazia inveja” (Ibid., p. 61) (...) ”Mas vi-o crescer
como um gigante e reparei que ele tinha na cara e no fato uns estranhos reflexos
metálicos. Já não era o Barão, era o seu fantasma, um autômato de ferro e lata que me
fazia calafrios de terror ”. (Ibid., p. 62)
Nos excertos acima vemos claramente o processo de transformação do “eu”
interior do Barão que por assimilação pode ser estendido ao inspetor. Há aqui a
transformação física do Barão: gigante, reflexos metálicos; e também a transformação
psicológica: era o seu fantasma. Logo adiante o Barão vai confirmar essa
transformação e novamente teremos outro ponto de contato com o ritual cristão, note-
se: “-Estou purificado!...” (Ibide., p. 63) ou ainda “O baptismo purifica!...” (Id.)
O batismo é o elo de purificação com o ritual cristão. O batismo na Igreja
representa a purificação do ser humano e a sua transformação espiritual. A
transformação psicológica se dá pela liberação dos pecados compreendidos
inconscientemente. A imersão na água está relacionada simbolicamente à regressão ao
útero e representa a regeneração daquele que é submetido ao ritual. Neste trecho o
Barão reproduz, de acordo com o ritual dionisíaco, o batismo que o purifica e o
transforma. Prova dessa transformação será o ímpeto de ir em busca da Bela-
Adormecida: “_Vem!... Vou ao castelo da Bela-Adormecida...” (Id.)
A transformação também pode ser percebida no inspetor: “Do meu subconsciente
começava a comandar-me uma voz de libertação e em passo de marcha cantei a
Marselhesa”. (Ibid., p. 65) A Marselhesa foi entoada pela primeira vez em 30 de julho
de 1792. Os revolucionários franceses marcham desde Marselha a Paris entoando o
então canto de guerra. Três anos após o fato, a Marselhesa tornou-se o Hino Nacional

31
da França, uma canção revolucionária que expressa o orgulho nacional e a liberdade.
Sua menção aqui reitera o próprio sentimento de libertação do “eu” interior vivido
pelo inspetor.
Ou ainda, podemos constatar essa transformação no trecho que segue: “...
lembro-me que tentei, inutilmente, escalar um alto portão de ferro, ...” (Ibid., p. 65-66)
(...) “Como não conseguia e caí duas vezes, resolvi ir procurar outra saída, pois estava
naquela fase em que não se desiste de nada e em que os obstáculos são um desafio que
nos redobra as forças.” (Ibid., p. 66)
Na cena acima, o narrador reflete a busca incessante pelo “caminho” que deve
seguir, por essa transformação que, como todas, encontra obstáculos, considerados
elementos importantes para que a transformação se legitime. È entre os obstáculos e a
sensação de estar perdido em meio à escuridão que Idalina entra em cena como
elemento importante tanto na mudança de tom da narrativa como também no
reconhecimento de mudanças interiores. Na seqüência vemos o embate produzido pela
tensão sexual e que remonta a uma possível disputa entre Pai, Barão e mulheres, só
que agora personalizada por Barão, inspetor e Idalina. Nesta comparação podemos
associar a figura do pai com a figura atual do Barão; a figura do Barão (passado) com
a figura do Inspetor e as mulheres com Idalina: “Falei-lhe como se estivesse
apaixonado por ela, com as suas mãos outra vez agarradas nas minhas, ajoelhado na
terra, implorando seu amor. Ela apenas se defendia por palavras. (...)” (Ibid., p. 68)
“_Está doido... O Barão matava-o. Cale-se com isso! Venha. Vá... Está doido... O
Barão matava-o... Vá...” (Id.)
Na continuação a esta cena temos a transformação pelo fogo. O fogo é um
símbolo da libido. O calor que o fogo irradia desperta a mesma sensação que
acompanha o estado de excitação sexual e não é sem motivo que logo após a conversa
entre o inspetor e Idalina o quarto em que repousava o inspetor pega fogo. A
constatação dessa transformação e dessa renovação faz parte também do ritual e
define-se em: “Na verdade tinha escapado de morrer queimado, graças ao barulho que
ele fizera a bater na porta. Devia-lhe talvez a vida. / _Deves-me a vida!” (Ibid., p. 74)
Constitui-se, conseqüentemente o renascimento de um novo homem. Após as
duas transformações terem sido processadas o Barão irá em busca de flores para a

32
“Única”. No diálogo tecido entre o inspetor e o Barão, o primeiro questiona: “_São
para a “Madona do Campo Santo”?” (Ibid., p. 79) em uma explícita intertextualidade
com o conto Madona do Campo Santo, de Fialho D’Almeida. Conforme podemos
verificar na análise realizada por José Maria Rodrigues Filho23, o conto Madona do
Campo Santo, foi escrito e publicado no ano de 1882, onde encontramos o personagem
de nome Artur. Artur se apaixona por uma mulher idealizada (Judite) que o observa
desde a janela e que se alimenta de rosas brancas. Retomemos, ligeiramente, as
características que são postas em paralelo através da análise citada. São elas: o amor
cortês banhado pela idealização da mulher, que remonta aos tempos medievais de um
amor distante, inalcançável; a explicita menção do título do conto de Fialho
D’Almeida: “São para a <<Madona do Campo Santo>>?”, lembrando que não
somente o cita, mas o destaca entre aspas; os recursos retóricos utilizados em ambos
contos para se referirem à amada: frescura, ligeireza, graça, criancice, casta e
virgindade (Madona do Campo Santo) e Ela, Única, Outra e Bela Adormecida (O
Barão), circundando-as de lugares inatingíveis, soberanos e inexpugnáveis. Ainda,
podemos ressaltar que em ambos textos têm a referência ao hino francês (A
Marselhesa), posto em momentos estratégicos da narrativa e carregados de
significação distinta. Na época do autor Fialho D’Almeida o hino era um símbolo para
os republicanos e para a época de Branquinho da Fonseca o mesmo hino refletia os
ideais da resistência à ditadura salazarista.24 Além da intertextualidade percebemos
também que o campo é um local caracterizado por representar o oposto ao Inferno,
podendo ser visto como um símbolo do Paraíso.
O Barão colheu uma rosa para ir deixá-la na janela da sua Bela-Adormecida. A
flor é a representação simbólica da virgindade e também da alma. A rosa
especificamente representa a mulher amada e o amor puro. Enquanto o caminho era
percorrido podemos evidenciar alguns caminhos trilhados pelo inconsciente: “Íamos

23
Para maiores explicações em relação a esta intertextualidade ver: FERREIRA, António
Manuel. CENTENÁRIO DE BRANQUINHO DA FONSECA: PRESENÇA E OUTROS
PERCURSOS. 1° edição. Universidade de Aveiro, 2005. p. 19-41.

24
Id.

33
calados, marchando ao lado um do outro, agora apressando o passo, sem eu estranhar,
como se soubesse o que íamos fazer.” (Ibid., p. 82)
A cena acima caracteriza a cumplicidade entre os dois personagens, como se a
presença de um permitisse a aceitação do outro, numa comunhão de atitudes e
sentimentos. O fato de que essa caminhada seja qualificada como uma “marcha”
remete à Marselhesa invocando uma vez mais a libertação do fluxo de consciência em
direção ao mais profundo “eu” interior.
Mais tarde, após a separação de percursos dos dois personagens, o inspetor de
escolas depois de muitas divagações sobre o ocorrido naquela noite escura, consegue
voltar ao amanhecer para a casa do Barão. Quando chega à casa contam-lhe o ocorrido
com o Barão. Contudo, o inspetor somente sabe que o Barão havia sofrido um desastre
e que para compreender melhor o que sucedera deveria ter com Idalina. Vê-se
novamente que Idalina é sim o meio pelo qual ocorrem as transformações no interior
do Barão e por isso um elemento fundamental na narrativa. Sem ela não seria possível
o surgimento de toda a trama e da realização dos percursos do inconsciente nos
personagens. O Barão está ferido por um tiro e sua cabeça foi atingida ocasionando-lhe
fratura de crânio. Vejamos o que representa essa cena simbolicamente.
Temos aqui o Barão ferido por um tiro. O revólver ou o efeito proveniente de
seu poder representa o aspecto sexual ou o conflito erótico pelo qual o personagem
passa. Já o problema relatado com a sua cabeça é o símbolo que corresponde à
separação entre a compreensão e o sofrimento que a alma padece.
O inspetor de escolas, contrariamente à caracterização do seu “eu” interior no início da
narrativa, encerra a narração de sua viagem à Serra do Barroso com um tom saudosista e
confirmador das transformações manifestadas em busca do caminho do seu próprio “eu”:
“Sim, Barão!... Hei de voltar, um dia. E havemos de tornar a perder-nos pelos caminhos
sombrios do nosso sonho e da nossa loucura; e mais uma vez havemos de cantar às estrelas, e
dar a vida para ires depor outro botão de rosa lá na alta janela da tua Bela-Adormecida!...”
(Ibid., p. 103-104)

34
CAPÍTULO 4 - CONCLUSÃO

No decorrer desta análise constatamos que é através do narrador-personagem e


por causa deste narrador que se produz a narração da viagem à Serra do Barroso e os
seus desdobramentos.
Há visivelmente dois planos inter-relacionados que são:

1 - a busca pelo verdadeiro caminho do “eu” interior e a mudança do “eu” que ocorre
nos personagens Barão e inspetor de escolas;

2 – os embates com a presença da figura feminina, que aparece como uma das
motivações dessa vontade de mudança e da própria mudança em si.

Não devemos esquecer que esses dois planos estão marcadamente perpassados
pelo ritual dionisíaco e por todos os elementos simbólicos utilizados na realização do
ritual, inclusive a identificação do Barão com Dionísio como foi estudado
anteriormente. O ritual dionisíaco, ainda que não o tenhamos classificado como um
dos planos narrativos, o que pode vir a soar estranho uma vez que vimos como esses
elementos são importantes para a compreensão do que está sendo narrado, inclui aqui a
identificação do leitor com este conto aceitando como verossímil uma história
incrementada por elementos míticos e que beiram o fantástico.
Em relação ao primeiro plano narrativo mencionado, podemos afirmar que,
tanto o Barão como o narrador-personagem, sofrerão gradualmente a mudança no “eu”
interior e ativamente procurarão os verdadeiros caminhos que devem percorrer.
Vejamos como o inspetor expõe de forma direta ao leitor a sua angústia e a sua
necessidade de encontrar o “verdadeiro” caminho: “Quantas pessoas, porém, tenho
encontrado que são como eu, quase como eu: negadas a si próprias, paradas no
encontro das forças contrárias, afinal sem a decisão de quem simplesmente caminha
para algum sitio onde pensou chegar.” (Ibid., p. 23)

35
Ou ainda, podemos perceber a vontade de busca do personagem Barão nas
palavras do inspetor:

Era-lhe talvez indiferente que eu o ouvisse: contava para si, ouvia as suas próprias palavras e
relembrava aqueles dias como um sonho realizado. Eu era só o pretexto, só para não falar
sozinho, como um doido. Senti quanto aquilo era para ele um prazer vivo mas doloroso. A
princípio falava com um ar desprendido e irônico, mas, pouco a pouco, foi tomado de uma
emoção profunda, que já não podia disfarçar. Era uma espécie de saudade de si próprio. (Ibid.,
p. 27)

É por meio das intervenções das mulheres, do vinho, da dança, da simbólica


purificação e dos demais símbolos já expostos que se realiza a mudança no “eu”
interior dos personagens. A seguir temos dois exemplos da mudança dos percursos da
consciência: “No meu estado de meia-inconsciência pareceu-me ter compreendido o
que ele dissera, ou antes, pareceu-me compreender o que ia fazer, como se, na
verdade, me tivesse dito naquelas poucas palavras mais alguma coisa do que apenas
aquilo que elas disseram. Mas de repente, como se abrisse os olhos, vi que não me
tinha dito o que ia fazer, e isso pareceu-me injustificável. Agora reconheço que o
não era.” (Ibid., p. 64)
Neste trecho é importante ressaltar dois aspectos fundamentais que se
concretizam na explícita afirmação da mudança de percepção / eu interior: “Agora
reconheço que o não era.”. E é exatamente por marcar essa mudança temporalmente
que temos novamente a referência ao passado e ao presente concomitantemente sem
que haja quebra narracional.
Ou ainda, a transformação simbólica do inspetor, o regresso do Inferno através
do ressurgimento por entre o fogo que lhe havia ameaçado a vida: “Fomos dar outra
vez à sala de jantar e o Barão quis festejar o meu regresso do Inferno com mais
champanhe.” (Ibid., p. 74)
Em relação à real mudança do Barão podemos confirmá-la com o fato de que
após todos os percursos que foram desenhados neste conto, durante essa noite escura e

36
nebulosa, regada pelos efeitos do vinho, permeada pela fantasia e por elementos
míticos, o personagem consegue ir depor a rosa no beiral da janela de sua Bela-
Adormecida. Ou seja, consegue finalizar aquilo que durante o processo de mudança
lhe é despertado novamente, como a concretização dos ideais do passado. Para que isto
ocorra, não somente é necessário que se faça todo o ritual, mas que também esteja
totalmente purificado para poder receber a benção de tal ação. Contudo é uma ação
que o faz sofrer emocionalmente, o que se explicita na condição física em que se
encontra ao terminar a narrativa com “... um tiro num ombro e fratura de crânio.”
(Ibid., p.103) , mas ainda lúcido o suficiente para que confirmasse o término do
processo iniciado, pelo menos do processo interior que neste momento estava sendo
narrado.
Ainda pensado no processo de transformação é importante ressaltar o que
segue:

E o champanhe continuava a transbordar das taças e a erguer-se em brindes a tudo o que nos
lembrou, a todos os nossos desejos, sonhos, ambições, a todas as nossas saudades, desilusões,
a todos os nossos amigos, a tudo quanto nos ocorreu naquele momento de sinceridade. Esses
brindes foram verdadeiras confissões, como o abrir das nossas almas.
E, na verdade, a quem podemos falar com mais franqueza do que a um desconhecido que
nunca mais veremos? (Ibid., p. 74-75)

É importante perceber que no excerto acima se realiza a purificação simbólica,


com o champanhe que transborda e é erguido em brinde, a enumeração ao que se
brinda, que são processos que se desenvolvem no interior e no inconsciente do “eu”
dos dois personagens. A possibilidade de contar as histórias do passado, como já
afirmara: “O passado!... mas o que somos, senão o passado?” (Ibid., p. 28) e ver nessas
histórias a purificação de suas almas.
Portanto, podemos afirmar que o narrador-personagem está neste momento (no
momento em que escreve o conto e este entra em contato com o leitor) fazendo a
mesma coisa que nessa noite escura num velho solar medieval fizera anteriormente,

37
falando com franqueza a alguém desconhecido, que não poderá julgá-lo, livre de
repressões, purificando-se e sentindo saudades de si mesmo.
Em relação à figura feminina podemos concluir que são figuras extremamente
importantes, em especial Idalina e a Bela-Adormecida, que permitem que o ritual
dionisíaco e a transformação no interior do “eu” do Barão e do narrador-personagem
se realizem. Ainda que as duas personagens femininas que mais relevância têm para o
progresso da narrativa sejam as já citadas, sentimos que todas sem exceção causam
repercussão dentro do conto.
Vemos qual é a impressão do inspetor de escolas em relação à professora que
veio recepcioná-lo quando da sua chegada a uma aldeia, cujo nome não soube revelar:

Falou-se da sindicância e da vida na aldeia. Ela entristeceu. Mas reagiu no mesmo instante.
Vi que estava ali uma mulher forte, otimista e infeliz. Compreendi o drama daquela pobre
rapariga. Ela tinha razão, sob o seu ponto de vista pessoal tinha razão.
Pensei em não inquirir mais nada e fazer um extenso relatório a justificar e defender a
professora que, por manifesta superioridade de interesses intelectuais era uma pessoa
inadaptável àquele meio. Entretanto veio um mau café em grandes chávenas de chá, que não
consegui beber. Mas ela bebeu-o. E de repente vi que não era tão verdade como eu supunha a
inadaptação ao meio. (Ibid., p. 12-13)

Esta observação a respeito da professora diz muito do próprio “eu” do narrador-


personagem, e revela a sua própria inadaptação ao seu meio, à sua minuciosa
observação do comportamento dos que o rodeiam e a percepção da dualidade tanto no
interior da professora como a sua dualidade.
A próxima menção às mulheres será feita por parte da voz do Barão em que diz:
“Eu às vezes vendia as minhas amantes a meu pai... Ou trocava-as...” (Ibid., p. 33-34)
É precisamente essa frase que faz com que o Barão expresse pela primeira vez o seu
desejo de regeneração, de purificação, portanto, há a constatação da dualidade
enfrentada.
Idalina, como apontamos anteriormente, é a personagem feminina dionisíaca
por excelência. Ela é a representante da sensualidade e da sexualidade durante a dança

38
da Tuna. É por meio de sua presença / ausência que se evidenciam as quebras das
tensões narrativas. E é ela quem provoca o instinto sexual no narrador-personagem. É
com a intenção de possuí-la que o inspetor irá realmente purificar-se e renascer após o
episódio do fogo. É por ela, Idalina, que todas as outras mulheres (com exceção da
professora) serão lembradas. È por meio de suas idas e vindas no salão que fará
despertar os fantasmas do Barão e de seu hóspede, trazendo à tona uma gama de
dualidades e de caminhos desconhecidos. Inclusive a atmosfera criada em torno à
Bela-Adormecida, com todos os significados apontados no decorrer deste estudo,
torna-se efetiva pelas lembranças provocadas por Idalina que se constitui numa espécie
oscilante entre baronesa e criada, com a sua própria dualidade de comportamento.
A Bela-Adormecida é sem dúvida a representação dos ideários medievais, da
donzela que se percebe distante, em um lugar soberano e fora do alcance do poder do
Barão. É a sua “presença” que, ao mesmo tempo, provoca o contraste com a figura de
Idalina e proporciona o equilíbrio do triângulo apresentado Idalina – Barão – Bela-
Adormecida. Destacamos aqui a palavra presença, pois efetivamente não se pode
sentir a figura da Bela-Adormecida como um personagem totalmente real e cabe,
portanto, a dúvida de que seja um fruto da imaginação do Barão, como uma referência
a um passado não resolvido que se eterniza no objeto de desejo, o amor ideal e
idealizado.
Recordemos ainda que o término da narrativa se dá com a confirmação do
desejo do narrador-personagem em voltar ao solar medieval e mais uma vez perder-se
em meio dos sonhos e das loucuras em busca de seus verdadeiros caminhos.
É um final que nos permite pensar em um processo cíclico, não somente em
relação aos sucessos ocorridos, mas principalmente se pensarmos em um processo de
transformação do “eu” como algo continuo e oscilante.

39
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