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• AULA 35 – MODERNISMO EM PORTUGAL: O

COMEÇO
• O que se convencionou como o início do Modernismo
português foi a publicação de Orpheu – revista
trimestral de literatura, em 1915, feita com a
colaboração de Fernando Pessoa, Mário de Sá-
Carneiro, do brasileiro Ronald de Carvalho, entre outros.
• O fim da monarquia e a Proclamação da República
em Portugal repercutiram contribuindo para que vários
artistas se aproximassem das ideias de retomada da
cultura portuguesa e buscassem se expressar quanto à
necessidade de reacender o espírito saudosista e
nacionalista do povo português.
• No século XX, a Literatura portuguesa viveu três
momentos bem delineados:
– Geração Orpheu
A publicação da revista Orpheu impactou a
sociedade de Lisboa. O grupo fundador da
revista fazia oposição ao academicismo e ao
saudosismo, portanto tinha como propósito
marcar a atualização da cultura portuguesa.
Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro,
Almada Negreiros, Ronald de Carvalho, entre
outros, encabeçavam esse grupo.
– Geração Presença
A revista Presença – folha de arte e crítica,
fundada em Coimbra por José Régio, João
Gaspar Simões, Edmundo de Bettencourt e
Branquinho da Fonseca, deu continuidade ao
projeto Orpheu, aprofundando as pesquisas
estéticas com o objetivo de defender uma
literatura viva, em oposição a meras imitações
acadêmicas, rotineiras e livrescas.
– Neorrealismo
O movimento começou com a obra Gaibéus, de
Alves Redol (1911-1969), e abarcou grandes
escritores, como Manuel da Fonseca, Fernando
Namora e Vergílio Ferreira. O Neorrealismo
impunha-se, buscando combater o fascismo,
atuando contra a ditadura salazarista e propondo
uma literatura de cunho social e documental,
que procurava retratar as desigualadas
sociais, denunciando a alienação social.
• Fernando Pessoa (1888) é considerado um dos
maiores poetas de Portugal. O que o difere de todos os
outros autores da tradição literária é sua capacidade de
multiplicar-se em várias outras personalidades poéticas
– os chamados heterônimos.
• A produção ortônima do autor, aquela em que
assinava os poemas com o próprio nome, é repleta de
saudosismo e nacionalismo, ainda que marcados pelo
claro desejo de rever criticamente a história e os mitos
nacionais.
A principal obra de Fernando Pessoa, ele mesmo, é o
livro Mensagem, iniciado em 1913 e publicado em
1934.
• Outro nome importante no cenário da literatura
portuguesa desse período é Mário de Sá-Carneiro
(1890-1916), cuja obra é marcada por uma profunda
angústia existencialista.
• Sua obra-prima é o romance A confissão de Lúcio.
Com uma narração em primeira pessoa, o
protagonista Lúcio começa sua “confissão” em
flashback, para provar sua inocência em um crime
que afirma não ter cometido.
• Durante a narração dos fatos, as lembranças da
personagem começam a se confundir e, assim,
paira uma forte atmosfera de ambiguidade sobre
todo o relato.
1. Faculdades Pequeno Príncipe 2016
Famosos em suas áreas de atuação, René
Descartes e Fernando Pessoa expressaram
questões humanas profundas com essas frases.
Comparando-as, é correto chegar à conclusão de
que
Penso, logo existo.
René Descartes
 
Duvido, portanto penso.
Fernando Pessoa
a) Pessoa faz uma paráfrase do texto original de Descartes.
b) Descartes argumenta que existir é a causa lógica de pensar.
c) os dois autores usam conectivos diferentes com a mesma
carga semântica.
d) há uma relação de metonímia nos sentidos de ambas as
frases.
e) as duas frases diferenciam-se apenas pelo sentido do
conectivo.
A colocação de René Descartes defende o ato de existir
como conclusão do ato de pensar; Fernando Pessoa, por
sua vez, afirma que o ato de duvidar é uma conclusão do ato
de pensar.
Nota-se, portanto, que ambos estabelecem a relação
conclusiva entre as orações, empregando conjunções
diferentes para tanto.
2. (Uespi 2012) Publicado em 1914, A Confissão de Lúcio, de Mário de
Sá-Carneiro, é uma das obras mais importantes do Modernismo
português. Sobre este romance, batizado pelo autor de “narrativa”,
podemos afirmar que:
a. o narrador inicia o romance afirmando que passou 15 anos na cadeia.
b. segundo o narrador, os jornais da época denominaram o seu
crime como “crime passional”.
c. o romance ou “narrativa” se passa todo nas cidades portuguesas de
Lisboa e Porto.
d. o nacionalismo lusitano e salazarista predomina ao longo da narrativa.
e. Lúcio, o narrador, poeta e pintor, estudou Medicina em Paris; depois,
ingressou na Faculdade de Engenharia.
a) Incorreta. O narrador afirma que passou dez anos na cadeia.
c) Incorreta. A narrativa desenvolve-se nas cidades de Paris e
Lisboa.
d) Incorreta. A afirmação é absurda, pois não existe apologia ao
nacionalismo nem ao salazarismo na obra.
e) Incorreta. O narrador personagem é um jovem escritor português,
duplicação do eu de Ricardo, o seu alter ego.
MODERNISMO PORTUGUÊS: Orfismo,
Presencismo, Neorrealismo
• Diretamente associado a um momento histórico de
profunda crise político-social.
• Num curto espaço de tempo (1910-1926), os
portugueses assistiram à derrocada da monarquia, a
instauração da república e, logo depois, a instauração
da ditadura de António de Oliveira Salazar.
• Duplo assassinato do rei D. Carlos e de D. Felipe,
herdeiro do trono (1908).
• D. Manuel assume o poder, mas a instabilidade foi
demasiada
Proclamação da República em 05.10.1910

“os primeiros anos do novo regime são, do ponto


de vista político, marcados pela luta entre as
correntes em que se dividiu o Partido
Republicano logo que este conquistou o poder”.
(José Hermano Saraiva)
Dia 5 de Outubro de 1910: A República Portuguesa é
proclamada da varanda da Câmara de Lisboa.
• Até a implantação do novo regime, o movimento republicano
dispôs de um objetivo suficientemente forte para lhe assegurar a
unidade: derrubar a monarquia.
• Mas logo que a monarquia caiu fizeram-se sentir as
consequências de um programa concreto.
• Uma corrente exigia reformas radicais impostas por métodos
igualmente radicais;
• apoiava-se num ativo setor da opinião popular,
• era agressivamente anticlerical e pretendia agir depressa.
• Uma outra se mostrava mais branda,
• defendia uma linha de transigência e conciliação com muitos
interesses criados;
• tinha o apoio dos níveis mais altos da burguesia republicana.
• A primeira destas tendências levou à formação do Partido
Democrático;
• a segunda, dos Partidos Evolucionista e Unionista”.
Gerações Modernistas em Portugal

1915------------------1927------------1940------hoje

Orfismo Presencismo Neorrealismo


Fernando Pessoa Branquinho da Fonseca Alves Redol
Mario de Sá Carneiro Adolfo Casais Monteiro Virgílio Ferreira
José Saramago
Orfismo
• 1915 - publicada a revista Orpheu que lançou
as novidades estéticas, especialmente as do
futurismo, no intuito de fazer Portugal
acompanhar o passo da arte moderna
internacional.
• Participaram de Orpheu, entre outros,
Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro e
Almada Negreiros.
• Contudo, a revista teve apenas 2 números, pois
o suicídio de Mário de Sá-Carneiro interrompeu
a publicação.
• Segundo Luís de Moltalvor, Orfeu "é um exílio de
temperamentos de arte que a querem como a um
segredo ou tormento".
• Ainda conforme Moltalvor, a pretensão dos
integrantes da Orfeu "é formar, em grupo ou
ideia, um número escolhido de revelações em
pensamento ou arte, que sobre este princípio
aristocrático tenham em Orfeu o seu ideal
esotérico e bem nosso de nos sentirmos e
conhecermos".
• Esses jovens artistas, também conhecidos
como Orfistas, foram influenciados
• pelo Futurismo de Marinetti;
• pelo Institucionalismo de Henri Bérgson,
cuja linha de pensamento só admitia o
conhecimento natural e espontâneo e dizia
não à ciência e à técnica;
• e pelos ensinamentos de Martin
Heidegger, que colocava a existência
individual como determinação do próprio
indivíduo e não como uma determinação
social.
Objetivos principais dos orfistas
• Chocar a burguesia com sua obra
irreverente (poemas sem metro, exaltando
a modernidade);
• Tirar Portugal de seu descompasso com a
vanguarda do resto da Europa.
Presencismo
• Em 1927, é publicada a revista Presença.
Seus fundadores foram José Régio,
Branquinho da Fonseca e Adolfo Casais
Monteiro, entre outros.
• A revista contou com a colaboração de
Fernando Pessoa.
Revista Presença nº 1
março de 1927
• A revista Presença foi fundada e editada por Branquinho
da Fonseca.
• Em 1930, quando a revista já estava no número 27,
Branquinho da Fonseca, por considerar haver imposição
de limites à liberdade criativa, abandona a direção da
revista, que fica a cargo de Adolfo Casais Monteiro.
• Além de dar continuidade às ideias do orphismo e de
eleger os membros desse período como "mestres", os
presencistas pregavam uma literatura mais intimista e
artística.
• Cântico Negro é um poema de José Régio,
pseudônimo de José Maria dos Reis Pereira.
Publicado em 1926 no seu primeiro livro
chamado Poemas de Deus e do Diabo.
• O "poema-manifesto" contém algumas
premissas modernistas que ditaram a obra
poética de José Régio e da geração
presencista.
Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
 
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós
responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés
sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
 
Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
 
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e
sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite
escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos
lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!
José Régio, o poeta do silêncio e do amor,
das relações humanas, da inquietação, do
inconformismo e do desapego.
É nesta relação com o mundo, a exemplo de
Régio, que nos faz ser cada vez mais fortes
naquilo que nos torna indivíduos únicos.
• Aqui o indivíduo aparece em contraposição
aos "outros", e a individualidade é afirmada de
modo incisivo com a negação do caminho
sugerido pelos outros.
• O olhar é essencial para a compreensão da
atitude do "eu", olhos cansados e irônicos
indicam a atitude em relação às outras
pessoas.
Neorrealismo
• As ideias da revista levaram à formação da
corrente chamada neorrealismo, mais preocupada
com a problematização da realidade social.
• A literatura da 3ª fase do modernismo português
firmou-se com a publicação de romance Gaibéus,
de Alves Redol, em 1940.
• Além de Alves Redol, entre os autores desta
tendência, temos Virgílio Ferreira, Ferreira de
Castro, José de Saramago e Lobo Antunes.
FERNANDO PESSOA E O FENÔMENO DA
HETERONÍMIA
I. Vida
• Nasceu em Lisboa, a 13 de junho de 1888.
• Aos cinco anos, ficou órfão de pai (tuberculose) e a
família é obrigada a leiloar parte de seus bens; dois
anos depois, sua mãe se casa com um militar que
atuava como cônsul em Durban, onde Fernando
Pessoa passou parte da infância e a adolescência. Lá
estudou em escolas britânicas.
• Em 1905, de regresso a Lisboa, matriculou-se na
Faculdade de Letras, da qual logo desistiu.
• Passou a viver como correspondente comercial em
línguas estrangeiras.
• Dedicou-se, como autodidata, ao estudo de filósofos
gregos e alemães.
• Dedicou-se, também, ao ocultismo. Foi
astrólogo, traduziu livros de teosofia,
envolveu-se com práticas esotéricas e
mediúnicas.
• Em 1912, colaboração na revista Águia.
• Em 1915, participação da fundação da
revista Orpheu, publicação que dá início ao
Modernismo em Portugal.
• Em 1934, participação em um concurso
literário patrocinado pelo Secretariado de
Propaganda Nacional, de Lisboa, com o livro
Mensagem (2º lugar).
• (30/11/1935) morre em função de uma
cirrose hepática.
MULTIPLIQUEI-ME, PARA ME SENTIR.
PARA ME SENTIR PRECISEI SENTIR TUDO,
TRANSBORDEI, NÃO FIZ SENÃO EXTRAVASAR-ME...
MULTIPLIQUEI-ME, PARA ME SENTIR.
PARA ME SENTIR PRECISEI SENTIR
TUDO,
TRANSBORDEI, NÃO FIZ SENÃO
EXTRAVASAR-ME...

Fernando Pessoa, ele-mesmo


Origem da heteronímia
• Explicação na famosa carta a Adolfo Casais
Monteiro, datada de Lisboa em 13.01.1935 e
publicada pela primeira vez em 1937 na Revista
Presença, após a morte do poeta.
"Num dia em que finalmente desistira — foi em 8 de Março de 1914 — acerquei-
me de uma cómoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé“
Imagem: Casa Fernando Pessoa
Aí por 1912, salvo erro (que nunca pode ser
grande), veio-me à ideia escrever uns poemas de
índole pagã. Esbocei umas coisas em verso
irregular (não ao estilo Álvaro de Campos, mas num
estilo de meia regularidade), e abandonei o caso.
Esboçara-se-me, contudo, numa penumbra mal
urdida, um vago retrato da pessoa que estava a
fazer aquilo. (Tinha nascido, sem que eu soubesse,
o Ricardo Reis.)
Ano e meio, ou dois anos, depois lembrei-me um dia de
fazer uma partida ao Sá-Carneiro – de inventar um poeta
bucólico, de espécie complicada, e apresentar-lho, já me
não lembro como, em qualquer espécie de realidade. Levei
uns dias a elaborar o poeta, mas nada consegui. Num dia
em que finalmente desistira — foi em 8 de Março de 1914
—, acerquei-me de uma cómoda alta, e, tomando um
papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre
que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa
espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir.
Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro
assim. Abri com um título, “O Guardador de Rebanhos”. E
o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a
quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-
me o absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre.
Foi essa a sensação imediata que tive.
E tanto assim que, escritos que foram esses trinta e tantos
poemas, imediatamente peguei noutro papel e escrevi, a fio
também, os seis poemas que constituem “Chuva Oblíqua”, de
Fernando Pessoa. Imediatamente e totalmente… Foi o
regresso de Fernando Pessoa Alberto Caeiro a Fernando
Pessoa ele só. Ou melhor, foi a reacção de Fernando Pessoa
contra a sua inexistência como Alberto Caeiro.
Aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir —
instintiva e subconscientemente — uns discípulos. Arranquei
do seu falso paganismo o Ricardo Reis latente, descobri-lhe o
nome, e ajudei-o a si mesmo, porque nessa altura já o via. E,
de repente, e em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-
me impetuosamente um novo indivíduo. Num jacto, e à
maquina de escrever, sem interrupção nem emenda, surgiu a
“Ode Triunfal” de Álvaro de Campos — a Ode com esse
nome e o homem com o nome que tem.
Criei, então, uma coterie inexistente. Fixei aquilo tudo em
moldes de realidade. Graduei as influências, conheci as
amizades, ouvi dentro de mim, as discussões e as
divergências de critérios, e em tudo isto me parece que fui eu,
criador de tudo, o menos que ali houve. Parece que tudo se
passou independentemente de mim. E parece que assim
ainda se passa. Se algum dia eu puder publicar a discussão
estética entre Ricardo Reis e Álvaro de Campos, verá como
eles são diferentes e como eu não sou nada na matéria. Mais
uns apontamentos nesta matéria…

Eu vejo diante de mim, no espaço incolor mas real do sonho, as
caras, os gestos de Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos.
Construí-lhes as idades e as vidas. Ricardo Reis nasceu em
1887 (não me lembro do dia e mês, mas tenho-os algures), no
Porto, é médico e está presentemente no Brasil. Alberto Caeiro
nasceu em 1889 e morreu em 1915; nasceu em Lisboa, mas
viveu quase toda a sua vida no campo. Não teve profissão nem
educação quase alguma. Álvaro de Campos nasceu em Tavira,
no dia 15 de Outubro de 1890 (à 1.30 da tarde, diz-me o
Ferreira Gomes, e é verdade, pois, feito o horóscopo para essa
hora, está certo). Este, como sabe, é engenheiro naval (por
Glasgow), mas agora está aqui em Lisboa em inactividade.
Caeiro era de estatura média, e, embora realmente frágil
(morreu tuberculoso), não parecia tão frágil como era. Ricardo
Reis é um pouco, mas muito pouco, mais baixo, mais forte, mais
seco. Álvaro de Campos é alto (1m,75 de altura — mais 2 cm
do que eu), magro e um pouco tendente a curvar-se.
Cara rapada todos — o Caeiro louro sem cor, olhos azuis; Reis
de um vago moreno mate; Campos entre branco e moreno,
tipo vagamente de judeu português, cabelo porém liso e
normalmente apartado ao lado, monóculo. Caeiro, como disse,
não teve mais educação que quase nenhuma — só instrução
primária; morreram-lhe cedo o pai e a mãe, e deixou-se ficar
em casa, vivendo de uns pequenos rendimentos. Vivia com
uma tia velha, tia-avó. Ricardo Reis, educado num colégio de
jesuítas, é, como disse, médico; vive no Brasil desde 1919,
pois se expatriou espontaneamente por ser monárquico. É um
latinista por educação alheia, e um semi-helenista por
educação própria. Álvaro de Campos teve uma educação
vulgar de liceu; depois foi mandado para a Escócia estudar
engenharia, primeiro mecânica e depois naval. Numas férias
fez a viagem ao Oriente de onde resultou o “Opiário”. Ensinou-
lhe latim um tio beirão que era padre.
Como escrevo em nome desses três?… Caeiro por pura e inesperada
inspiração, sem saber ou sequer calcular que iria escrever. Ricardo Reis,
depois de uma deliberação abstracta, que subitamente se concretiza
numa ode. Campos, quando sinto um súbito impulso para escrever e não
sei o quê. (O meu semi-heterónimo Bernardo Soares, que aliás em
muitas coisas se parece com Álvaro de Campos, aparece sempre que
estou cansado ou sonolento, de sorte que tenha um pouco suspensas as
qualidades de raciocínio e de inibição; aquela prosa [Livro do
Desassossego] é um constante devaneio. É um semi-heterónimo porque,
não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas
simples mutilação dela. Sou eu, menos o raciocínio e a afectividade. A
prosa, salvo o que o raciocínio dá de tenue à minha, é igual a esta, e o
português perfeitamente igual; ao passo que Caeiro escrevia mal o
português, Campos razoavelmente mas com lapsos, como dizer “eu
próprio” em vez de “eu mesmo”, etc., Reis melhor do que eu, mas com
um purismo que considero exagerado. O difícil para mim, é escrever a
prosa de Reis — ainda inédita — ou de Campos. A simulação é mais
fácil, até porque é mais espontânea, em verso).
(...) “... Referi-me, como viu, ao Fernando Pessoa só. Não penso nada do
Caeiro, do Ricardo Reis ou do Álvaro de Campos. Nada disso poderei fazer, no
sentido de publicar excepto quando (ver mais acima) me for dado o Prémio
Nobel. E contudo - penso-o com tristeza - pus no Caeiro todo o meu poder de
despersonalização dramática, pus em Ricardo Reis toda a minha disciplina
mental, vestida da música que lhe é própria, pus em Álvaro de Campos toda a
emoção que não dou nem a mim nem à vida. Pensar, meu querido Casais
Monteiro, que eles todos têm que ser, na prática da publicação, preteridos pelo
Fernando Pessoa, impuro e simples...”
Fernando Pessoa - Carta a Adolfo Casais Monteiro - Escritos Íntimos, Cartas e
Páginas Autobiográficas.
Joaquim de Seabra Pessoa (Pai de
Fernando Pessoa)
(Sé, Lisboa, 28.05.1850 — Mártires,
Lisboa, 13.07.1893), crítico musical
português, era filho do general Joaquim
António de Araújo Pessoa (Santa Maria,
Tavira, 15 de Fevereiro de 1813 -
Madalena, Lisboa, 6 de Agosto de 1885
Era funcionário do Ministério da Justiça e
trabalhava à noite na redação do Diário de
Notícias. Possuía vocação para a arte e a
literatura, sendo um apaixonado pela
música.
Foi no Diário de Notícias que exerceu a
sua crítica musical, tendo publicado
também um folheto sobre O Navio
Fantasma, do compositor alemão Richard
Wagner.
• Passou a vida assombrado pelo medo de desenvolver a
loucura da avó paterna (que morava com o filho e a nora,
tinha uma demência que por vezes se manifestava com
intensa violência e, não gostava de crianças) e a tuberculose
do pai, que também vitimou seu irmão, Jorge.
• Quando pequeno, amigos quase não tinha, mas brincava
muito com os irmãos.
• Desde esta época começaram a surgir seus personagens.
“Éramos as personagens de uma história continuamente
inventada por ele”, contou Henriqueta (irmã) numa entrevista
do ano de 1985.
João Miguel Rosa(padrasto) - Maria Madalena Pinheiro Nogueira (mãe)
• Desde cedo Pessoa aprendeu a expressar sua dor, seus
desejos e vontades através da escrita.
• Seu primeiro poema conhecido, o qual dedicou à sua mãe,
foi recitado para ela mediante sua indecisão de levá-lo, ou
não, para morar com ela e o novo marido na África.
• Com isso podemos nos deparar com a sutileza do poeta
em captar os sentimentos e neste caso o medo/ódio de ser
abandonado.

À minha querida mamã


Eis-me aqui em Portugal
Nas terras onde eu nasci.
Por muito que goste delas,
Ainda gosto mais de ti.
• Do segundo casamento da mãe teve dois irmãos, Henriqueta
e Luís, com os quais mantinha uma proximidade maior, visto
que tinha muita dificuldade em fazer amizades.
• Frequentava cafés, conversava, discutia, mas não se
entregava verdadeiramente.
• A relação que mais se aproximou deste tipo de intimidade foi
com o também poeta Mario de Sá Carneiro.
• No plano afetivo teve uma única namorada, Ofélia. Na
verdade namorico. Em sua biografia não há indícios de que
Fernando Pessoa tenha tido uma única relação sexual.
• O poeta português viveu intensamente, na sua solidão, o seu
desassossego.
• Faleceu em 1935, aos 47 anos de uma provável cirrose
hepática.
Fernando Pessoa
com dez anos de
idade
Fernando Pessoa
adolescente, em Durban.
Fernando Pessoa aos
vinte anos de idade
Fernando Pessoa
nas ruas da Baixa
lisboeta.
"Viajar? Para viajar basta existir. Vou de
dia para dia, como de estação para
estação, no comboio do meu corpo, ou do
meu destino, debruçado sobre as ruas e as
praças, sobre os gestos e os rostos,
sempre iguais e sempre diferentes, como,
afinal, as paisagens são.
"Viajar? Para viajar basta
existir. Vou de dia para dia,
como de estação para
estação, no comboio do meu
corpo, ou do meu destino,
debruçado sobre as ruas e as
praças, sobre os gestos e os
rostos, sempre iguais e
sempre diferentes, como,
afinal, as paisagens são.
Se imagino, vejo. Que mais
faço eu se viajo? Só a
fraqueza extrema da
imaginação justifica que se
tenha que deslocar para
sentir"
Bernardo Soares, Livro do
Desassossego
Imagem: Miradouro de de Santa Luzia (Lisboa)
“Escrevo, triste, no meu quarto quieto, sozinho como sempre tenho
sido, sozinho como sempre serei. E penso se na minha voz,
aparentemente tão pouca coisa, não incarna a substância de
milhares de vozes, a fome de milhares de vidas, a paciência de
milhões de almas submissas como a minha no destino quotidiano,
ao sonho inútil, à esperança sem vestígios. Nestes momentos meu
coração pulsa mais alto por minha consciência dele. Vivo mais
porque vivo maior. Sinto na minha pessoa uma força religiosa, uma
espécie de oração, uma semelhança de clamor. Mas a reacção
contra mim desce-me da inteligência… Vejo-me no quarto andar
alto da Rua dos Douradores, sinto-me com sono; olho, sobre o
papel meio escrito, a vida vã sem beleza e o cigarro barato que
esquecido estendo sobre o mata-borrão velho. Aqui eu, neste
quarto, a interpelar a vida!, a dizer o que as almas sentem!, a fazer
prosa como os génios e os célebres! Aqui eu assim!…"
Rua dos Douradores – 1912 – Restaurante onde almoçava
• Embora não lhe fosse possível esquivar-se
completamente da vida em sociedade, era
na solidão do quarto alugado na Rua dos
Douradores que os pensamentos de
Pessoa corriam livres para as folhas de
papel.
• A solidão, sem dúvida, ampliou a
dimensão espacial subjetiva do proseador.
Mas o espaço concreto também tem lugar
nas suas reflexões:
‘Amo, pelas tardes demoradas de verão, o sossego da cidade baixa,
e sobretudo aquele sossego que o contraste acentua na parte que o
dia mergulha em mais bulício. A Rua do Arsenal, a Rua da
Alfândega, o prolongamento das ruas tristes que se alastram para
leste desde que a da Alfândega cessa, toda a linha separada dos
cais quedos —tudo isso me conforta de tristeza, se me insiro, por
essas tardes, na solidão do seu conjunto. [...] Por ali arrasto, até
haver noite, uma sensação de vida parecida com a dessas ruas. De
dia elas são cheias de um bulício que não quer dizer nada; de noite
são cheias de uma falta de bulício que não quer dizer nada. Eu de
dia sou nulo, e de noite sou eu. Não há diferença entre mim e as
ruas para o lado da Alfândega, salvo elas serem ruas e eu ser alma,
o que pode ser que nada valha, ante o que é a essência das coisas.
Há um destino igual, porque é abstrato, para os homens e para as
coisas —uma designação igualmente indiferente na álgebra do
mistério. “
Rua da Alfândega
Rua da
Alfândega
Igreja da
Conceição
Velha
"Desfile" de Tuk Tuk pela rua da Alfândega
• A casa onde Fernando Pessoa morou nos últimos 15 anos da
sua vida (1920-35), em Campo de Ourique, carismático bairro
lisboeta, é hoje uma casa de cultura, onde se pode visitar o
quarto do poeta, com a cômoda original sobre a qual, no
chamado "dia triunfal", Pessoa deu voz aos seus principais
heterônimos.
• Objetos pessoais como a máquina de escrever, os óculos e
blocos de apontamentos, entre outros, complementam o acervo
da Casa Fernando Pessoa que possui uma sala multimidia - o
Sonhatório - e ainda a preciosa biblioteca particular do autor,
digitalizada e disponível para consulta online.
• Neste universo polivalente realizam-se colóquios, espetáculos,
debates e conferências sobre literatura, exposições e oficinas
para o público infantil. Tem também serviço de visitas guiadas
por marcação e uma biblioteca de poesia de livre acesso.
• A Casa Fernando Pessoa dispõe igualmente de um restaurante,
o Flagrante Delitro, cujo funcionamento se estende, de segunda
a sábado.
"Num dia em que finalmente desistira — foi em 8 de Março de 1914 — acerquei-me
de uma cómoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé“
Imagem: Casa Fernando Pessoa
O prédio onde Pessoa nasceu fica em frente ao Teatro São Carlos, no
Chiado.
Biblioteca Nacional de Portugal onde Pessoa passou boa parte
de sua vida estudando
A atual Praça D. João da Câmara, local frequentado por diversos escritores e
também por sua namorada Ofélia Queiroz, foi citada em alguns versos de seus
heterônimos.
Na Praça do Comércio, está o café e restaurante Martinho da Arcada, um
dos pontos de encontro favoritos do poeta em seus últimos anos de vida. O
café ainda preserva a mesa onde ele costumava sentar e trabalhar todos
os finais de dia.
Um dos cenários mais
conhecidos da rotina
do poeta em Lisboa,
sem dúvidas, é a
Confeitaria A
Brasileira, muito
famosa pela estátua
de Pessoa e pelos
diversos viajantes que
estão sempre
dispostos a fazer
poses ao lado dela.
Caixa de rapé pertencente a Fernando Pessoa

Foto retirada do livro "Fernando Pessoa na Intimidade"


Autor: Isabel Murteira França.
Publicações Dom Quixote, Lisboa 1987.
PESSOA, PESSOAS e OLHARES
• ALBERTO CAEIRO: O OLHAR NÍTIDO
• RICARDO REIS: O OLHAR RACIONAL
• ÁLVARO DE CAMPOS: O OLHAR
CALEIDOSCÓPICO
• FERNANDO PESSOA ele mesmo: O
OLHAR VELADO
ALBERTO CAEIRO
• Alberto Caeiro da Silva nasceu em Lisboa, em abril
de 1889, e na mesma cidade faleceu, tuberculose,
em 1915.
• Órfão de pai e mãe, passou quase a vida inteira
numa quinta de Ribatejo.
• Lá escreveu O Guardador de Rebanhos e uma
parte de O Pastor Amoroso, que não foi
completado.
• No mesmo local, escreveu ainda alguns poemas de
Poemas Inconjuntos, vindo este a se completar já
em Lisboa, quando lá o autor voltou, já no final da
vida. Aliás, da vida de Caeiro não há o que narrar;
sua vida e seus poemas se confundem.
• Só teve instrução primária e, por isso mesmo,
escrevia mal o português.
• Esses traços biográficos ajustam-se
perfeitamente à poesia de Caeiro, que
busca, através do “conceito direto das
coisas”, expressar a felicidade de viver
sem as preocupações políticas, sociais e
culturais que fazem a angústia do ser
humano.
• O poeta vive em contato direto com a
Natureza; daí sua lógica ser a mesma da
ordem natural.
• Considera que as coisas são o que são, sem
transcendência nenhuma.
• Por isso, despreza o que dizem as religiões
e os sistemas filosóficos.
• Segundo ele, a razão é causa de sofrimentos
inúteis, enquanto a natureza e o instinto são
suficientes para garantir uma existência plena.
• Sua poesia de realismo sensorial busca a
simplicidade máxima e expressa-se em versos
livres, de linguagem coloquial.
• A obra poética de Caeiro é formada por três
conjuntos de poemas: O guardador de
rebanhos, 49 poemas compostos em uma
única noite, O pastor amoroso e Poemas
inconjuntos.
Falso diálogo entre Pessoa e
Caeiro
[Pessoa]- a chuva me deixa
triste...
[Caeiro] - a mim me deixa
molhado.
José Paulo Paes
Caeiro
• Simples, parte do zero, quando regressa a um
primitivismo do conhecimento da natureza.
• Mestre de Ricardo Reis e Álvaro de Campos, a
eles ensinou a filosofia do não filosofar, a
aprendizagem do desaprender.
• Compôs uma poética da contemplação,
• linguagem espontânea, discursiva, e prosaica,
por extirpar do texto, ao máximo, a conotação
tradicional.
• Considerado o mais contraditório dos
heterônimos, atinge o poético pelo apoético,
ou seja, conota quando denota, já que usa o
inusitado.
• diante da possibilidade de se tornar infeliz com
o sol, os prados e as flores que contentam com
sua grandeza, procura minimizá-los,
comparando-os com eles próprios.
• Nessa redução do mundo, fica mais latente o
"nada". Daí ser ele o heterônimo que nada
quer.
• Mesmo assim, enquanto tenta provar que não
intelectualiza nada, é que mais intelectualiza
entre as personalidades pessoanas, parece
usar o raciocínio sem querer demonstrar isso.
Notas para a recordação do meu mestre Caeiro,
por Álvaro de campos
• Conheci o meu mestre Caeiro em circunstâncias
excepcionais - como todas as circunstâncias da vida, e
sobretudo as que, não sendo nada em si mesmas, hão-de
vir a ser tudo nos resultados.
• Deixei em quase três quartos o meu curso escocês de
engenharia naval; parti numa viagem ao Oriente; no
regresso, desembarcado em Marselha, e sentindo um
grande tédio de seguir, vim por terra até Lisboa. Um primo
meu levou-me um dia de passeio ao Ribatejo; conhecia um
primo de Caeiro, e tinha com ele negócios; encontrei-me
com o que havia de ser meu mestre em casa desse seu
primo. Não há mais que contar, porque isto é pequeno,
como toda a fecundação.
Vejo ainda, com claridade da alma, que as
lágrimas da lembrança não empanam, porque a
visão não é externa... vejo-o diante de mim, e vê-
lo-ei talvez eternamente como primeiro o vi.
Primeiro, os olhos azuis de criança que não tem
medo; depois, os malares já um pouco salientes, a
cor um pouco pálida, e o estranho ar grego, que
vinha de dentro e era uma calma, e não de fora,
porque não era expressão nem feições. O cabelo,
quase abundante, era louro, mas, se faltava luz,
acastanhava-se.
A estatura era média, tendendo para mais
alta, mas curvada, sem ombros altos. O
gesto era branco, o sorriso era como era, a
voz era igual, lançada num tom de quem
não procura senão dizer o que está dizendo
- nem alta nem baixa, clara, livre de
intenções, de hesitações, de temidezas. O
olhar azul não sabia deixar de fitar.
• Se a nossa observação estranhava
qualquer coisa, encontrava-a: a testa,
sem ser alta, era poderosamente branca.
Repito: era pela sua brancura, que
parecia maior que a da cara pálida, que
tinha majestade. as mãos um pouco
delgadas, mas não muito; a palma era
larga.
• A expressão da boca, a última coisa em
que se reparava - como se falar fosse,
para este homem, menos que existir - era
a de um sorriso como o que se atribui em
verso às coisas inanimadas belas, só
porque nos agradam -, flores, campos
largos, águas com sol - um sorriso de
existir, e não de nos falar.
• Meu mestre, meu mestre, perdido tão cedo! Revejo-o na
sombra que sou em mim, na memória que conservo do
que sou de morto...
• Foi durante a nossa primeira conversa... Como foi, não
sei, e ele disse: «Está aqui um rapaz Ricardo Reis que
há-de gostar de conhecer: ele é muito diferente de si.» E
depois acrescentou, «tudo é diferente de nós, e por isso
é que tudo existe».
• Esta frase, dita como se fosse um axioma da terra,
seduziu-me com um abalo, como o de todas as
primeiras posses, que me entrou nos alicerces da alma.
Mas, ao contrário da sedução material, o efeito em mim
foi de receber de repente, em todas as minhas
sensações, uma virgindade que não tinha tido.
• Referindo-se, uma vez, ao conceito directo das
coisas, que caracteriza a sensibilidade de
Caeiro, citei-lhe, com perversidade amiga, que
Wordsworth designa um insensível pela
expressão:
A primrose by the river's brim
A yellow primrose was to him,
And it was nothing more.
• E traduzi (omitindo a tradução exacta de
primrose, pois não sei nomes de flores nem de
plantas): «Uma flor à margem do rio para ele era
uma flor amarela, e não era mais nada.»
• O meu mestre Caeiro riu. «Esse simples via
bem: uma flor amarela não é realmente senão
uma flor amarela.»
• Mas, de repente, pensou.
• «Há uma diferença», acrescentou. «Depende se se considera
a flor amarela como uma das várias flores amarelas, ou como
aquela flor amarela só.»
• E depois disse:
• «O que esse seu poeta inglês queria dizer é que para o tal
homem essa flor amarela era uma experiência vulgar, ou
coisa conhecida. Ora isso é que não está bem. Toda a coisa
que vemos, devemos vê-la sempre pela primeira vez, porque
realmente é a primeira vez que a vemos. E então cada flor
amarela é uma nova flor amarela, ainda que seja o que se
chama a mesma de ontem. A gente não é já o mesmo nem a
flor a mesma. O próprio amarelo não pode ser já o mesmo. É
pena a gente não ter exactamente os olhos para saber isso,
porque então éramos todos felizes.»
• O meu mestre Caeiro não era um pagão: era o
paganismo.
• O Ricardo Reis é um pagão, o António Mora é um
pagão, o próprio Fernando Pessoa seria um pagão,
se não fosse um novelo embrulhado para o lado de
dentro.
• Mas o Ricardo Reis é um pagão por carácter, o
António Mora é um pagão por inteligência, eu sou
um pagão por revolta, isto é, por temperamento.
• Em Caeiro não havia explicação para o paganismo;
havia consubstanciação.
• Vou definir isto da maneira em que se
definem as coisas indefiníveis - pela
cobardia do exemplo. Uma das coisas que
mais nitidamente nos sacodem na
comparação de nós com os gregos é a
ausência de conceito de infinito, a
repugnância de infinito entre os gregos.
Ora o meu mestre Caeiro tinha lá mesmo
esse mesmo inconceito. Vou contar, creio
que com grande exactidão, a conversa
assombrosa em que mo revelou.
• Referia-me ele, aliás desenvolvendo o que diz num
dos poemas de «O Guardador de Rebanhos», que
não sei quem lhe tinha chamado em tempos «poeta
materialista». Sem achar a frase justa, porque o
meu mestre Caeiro não é definível com qualquer
frase justa, disse-lhe, contudo, que não era absurdo
de todo a atribuição. E expliquei-lhe, mais ou
menos bem, o que é o materialismo clássico.
Caeiro ouviu-me com uma atenção de cara
dolorosa, e depois disse-me bruscamente:
• «Mas isso o que é é muito estúpido. Isso é uma
coisa de padres sem religião, e portanto sem
desculpa nenhuma.»
• Fiquei atónito, e apontei-lhe várias semelhanças entre o
materialismo e a doutrina dele, salva a poesia desta última.
Caeiro protestou.
• «Mas isso a que V. chama poesia é que é tudo. Nem é
poesia: é ver. Essa gente materialista é cega. V. diz que eles
dizem que o espaço é infinito. Onde é que eles viram isso no
espaço?»
• E eu, desnorteado. «Mas V. não concebe o espaço
como infinito? Você não pode conceber o espaço como
infinito?»
• «Não concebo nada como infinito. Como é que eu posso
conceber qualquer coisa como infinito?»
• «Homem», disse eu, «suponha um espaço. Para além
desse espaço há mais espaço, para além desse mais, e
depois mais, e mais, e mais... Não acaba...»
ALBERTO CAEIRO
• VIVER É UMA APRENDIZAGEM
CONSTANTE:
• lidar com fases boas e com fases menos
boas, assim como momentos de felicidade
e de infelicidade.
Se eu pudesse trincar a terra toda
E sentir-lhe um paladar,
Seria mais feliz um momento ...
Mas eu nem sempre quero ser feliz.
É preciso ser de vez em quando infeliz
Para se poder ser natural...

Nem tudo é dias de sol,


E a chuva, quando falta muito, pede-se.
Por isso tomo a infelicidade com a felicidade
Naturalmente, como quem não estranha
Que haja montanhas e planícies
E que haja rochedos e erva ...
O que é preciso é ser-se natural e calmo
Na felicidade ou na infelicidade,
Sentir como quem olha,
Pensar como quem anda,
E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia
morre,
E que o poente é belo e é bela a noite que fica...
Assim é e assim seja ...
ALBERTO CAEIRO, in "O Guardador de
Rebanhos - Poema XXI"
Há metafísica bastante em não pensar em nada. 
     O que penso eu do mundo?  
     Sei lá o que penso do mundo!  
     Se eu adoecesse pensaria nisso.

     Que idéia tenho eu das cousas?


     Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
     Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
     E sobre a criação do Mundo?
     Não sei.  Para mim pensar nisso é fechar os olhos 
     E não pensar. É correr as cortinas
     Da minha janela (mas ela não tem cortinas).
    
O mistério das cousas?  Sei lá o que é mistério!
     O único mistério é haver quem pense no
mistério.
     Quem está ao sol e fecha os olhos,
     Começa a não saber o que é o sol
     E a pensar muitas cousas cheias de calor.  
     Mas abre os olhos e vê o sol,
     E já não pode pensar em nada,
     Porque a luz do sol vale mais que os
pensamentos
     De todos os filósofos e de todos os poetas.
     A luz do sol não sabe o que faz
     E por isso não erra e é comum e boa.
Metafísica?  Que metafísica têm aquelas
árvores?
A de serem verdes e copadas e de terem ramos

E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz


pensar, 
A nós, que não sabemos dar por elas.
Mas que melhor metafísica que a delas,
Que é a de não saber para que vivem
Nem saber que o não sabem?
"Constituição íntima das cousas"...
"Sentido íntimo do Universo"...
Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada. 
É incrível que se possa pensar em cousas dessas.
É como pensar em razões e fins
Quando o começo da manhã está raiando, e pelos
lados das árvores 
Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.

Pensar no sentido íntimo das cousas 


É acrescentado, como pensar na saúde 
Ou levar um copo à água das fontes.
O único sentido íntimo das cousas
É elas não terem sentido íntimo nenhum.
Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui estou!

(Isto é talvez ridículo aos ouvidos


De quem, por não saber o que é olhar para as cousas,
Não compreende quem fala delas
Com o modo de falar que reparar para elas ensina.)

Mas se Deus é as flores e as árvores 


E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.
     Mas se Deus é as árvores e as flores 
     E os montes e o luar e o sol,
     Para que lhe chamo eu Deus?
     Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e
luar; 
     Porque, se ele se fez, para eu o ver,
     Sol e luar e flores e árvores e montes,
     Se ele me aparece como sendo árvores e
montes
     E luar e sol e flores,
     É que ele quer que eu o conheça
     Como árvores e montes e flores e luar e sol.
  
    
E por isso eu obedeço-lhe, 
     (Que mais sei eu de Deus que Deus de si
próprio?).  
     Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
     Como quem abre os olhos e vê,
     E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e
montes,
     E amo-o sem pensar nele,
     E penso-o vendo e ouvindo,
     E ando com ele a toda a hora.
A definição de Deus nesse poema
aproxima-se do panteísmo, doutrina
filosófica segundo a qual só o mundo é real
e Deus é a soma de todas as coisas e nelas
se manifesta. Assim, as flores, as árvores,
os montes, o sol e o luar são manifestações
da própria divindade. Pode-se, assim, falar
de uma verdadeira “religião da Natureza”.
Quando vier a Primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na
Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.
Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem
importância nenhuma
Se soubesse que amanhã morria
E a Primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de
amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de
vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja
certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu
não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.
Podem rezar latim sobre o meu caixão, se
quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda
dele.
Não tenho preferências para quando já não
puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é.
• Ao analisar as primeiras estrofes nota-se a temática de
Caeiro, nomeadamente à sua posição face à natureza
(“Quando vier a Primavera,/ As flores florirão da mesma
maneira”).
• A chegada da primavera descrita no 1º verso e a colocação
como, imaginariamente, já morto (Se eu já estiver morto,), o
poeta pretende transmitir uma sensação de naturalidade.
• Ele, “poeta do olhar”, usa do sensacionismo; da
comunicação com o mundo através das experiências –
homem e natureza – concreta, sem abstrações; predomínio
sensorial.
• As estrofes dizem respeito a uma natureza não pensante, que
todos os processos são conjuntos e não individuais, pois no
âmago da natureza a falta de um recurso não para a evolução
contínua dos restantes.
• Aparentemente triste – a morte – origina uma alegria
(“Sinto uma alegria enorme/ Ao pensar que a minha
morte não tem importância nenhuma”), pois se a
natureza ignora a morte é porque o ser humano faz
parte da natureza, logo é aceito por ela como parte
essencial.
• Isso quer dizer que depois da morte, a vida continua e
a natureza segue seu ciclo.
• Após a morte nada se modifica na vida.
• Tudo segue seu ritmo normal, ou seja, quando
morremos não faremos falta porque, no sentido de
que o real, que é aquilo que existe e tem vida,
continuará.
• A última estrofe denota a descrença de uma vida
espiritual após a morte; no final, a consciência de
que não adiantam preces em cima do caixão de
quem já perdeu a consciência; aceitar a realidade
tal como ela é, sem necessidades de
explicações (“Podem rezar latim sobre o meu
caixão, se quiserem./Se quiserem, podem dançar
e cantar à roda dele./Não tenho preferências para
quando já não puder ter preferências./O que for,
quando for, é que será o que é.”).
“Falas de civilização, e de não dever ser”
Falas de civilização, e de não dever ser,
Falas de civilização, e de não dever ser,
Ou de não dever ser assim.
Dizes que todos sofrem, ou a maioria de todos,
Com as coisas humanas postas desta maneira,
Dizes que se fossem diferentes, sofreriam menos.
Dizes que se fossem como tu queres, seriam melhor.
Escuto sem te ouvir.
Para que te quereria eu ouvir?
Ouvindo-te nada ficaria sabendo.
Se as coisas fossem diferentes, seriam diferentes: eis tudo.
Se as coisas fossem como tu queres, seriam só como tu queres.
Ai de ti e de todos que levam a vida
A querer inventar a máquina de fazer felicidade!
“Poemas Inconjuntos”. In Poemas de Alberto Caeiro. Fernando
Pessoa. Lisboa: Ática, 1946 (10ª ed. 1993). - 76.
RICARDO REIS – Olhar Racional
• Nasceu na cidade do Porto, a 19.09.1887. Estudou em colégio de
jesuítas, formando-se em Medicina; politicamente, defendia a
Monarquia e, por não concordar com a República, ele se auto-exilou
no Brasil.
• Versado nos clássicos greco-latinos, adotou o culto dos deuses
olímpicos e uma visão de mundo inspirada na combinação das
filosofias estoica e epicurista. Sua poesia tem como modelo as odes
de Horácio (século I a.C.), grande poeta latino que celebrou o prazer
de viver (epicurismo), na aceitação das coisas como elas são
(estoicismo).
• A poesia de Ricardo Reis, consciente da fragilidade e efemeridade do
homem, expressa o famoso tema do carpe diem (em latim, “colhe o
dia”), em meio à paisagem bucólica.
• As odes apresentam equilíbrio e rigor formal, elegância de estilo,
linguagem elevada e latinizante.
• Textos curtos, concisos, intelectualizados, tematizam a
transitoriedade da vida, a irreversibilidade do Fado (destino), a
necessidade de fruir o instante que passa.
• Percebemos, ainda, uma atitude serena e contemplativa.
RICARDO REIS

EPICURISMO
ESTOICISMO
a transitoriedade da vida, a irreversibilidade
do Fado (destino), a necessidade de fruir o
instante que passa.
Epicuro (341a.C. – 270 a. C.)
• Nasceu em Atenas.
• Seus princípios filosóficos foram conservados em três
cartas e numa coletânea de pensamentos
convenientemente chamada Pensamentos principais.
• Acreditava que o conhecimento do universo deveria ser
feito por meio dos sentimentos, desconfiando das
interpretações racionais.
• Segundo ele, o homem deveria pautar sua vida pela
procura do prazer. A sabedoria seria compreender que
o prazer físico não é o único e nem o mais importante,
pois o mais importante, segundo ele, era satisfazer os
desejos naturais e necessários, fugindo dos
excessos e exorbitâncias.
• Por esse caminho equilibrado e tranquilo, o homem
atingiria a imperturbabilidade do espírito, para ele,
sinônimo da felicidade.
Coroai-me de rosas,
Coroai-me em verdade
De rosas –
Rosas que se apagam
Em fronte a apagar-se
Tão cedo!
Coroai-me de rosas
E de folhas breves.
E basta.
Como se cada beijo
Fora de despedida,
Minha Cloe, beijemo-nos, amando.
Talvez que já nos toque
No ombro a mão, que chama
À barca que não vem senão vazia;
E que no mesmo feixe
Ata o que mútuos fomos
E a alheia soma universal da vida.
ÁLVARO DE CAMPOS - olhar
caleidoscópico
• Nasceu em Tavira, no Algarve (15.10.1890).
• Segundo o perfil traçado por Fernando Pessoa, Campos é engenheiro
mecânico e naval, formado em Glasgow e vive em inatividade por
pura opção, pois jamais poderia se sujeitar a bater o ponto ou ficar
confinado entre quatro paredes de um escritório.
• Inadaptado e vivendo à margem de qualquer conduta social, Campos
é um poeta modernista, futurista, cubista, sensacionista (uma corrente
que faz a fusão eclética das vanguardas modernistas).
• Autor de versos livres, de ritmos explosivos, de linguagem coloquial,
de referências à vida moderna, urbana e industrial.
• Poeta da crise de todos os valores, da ruptura de todas as
referências tradicionais, expressa a vertigem e o caos da
fragmentação da vida moderna, oscilando entre a excitação e o
cansaço, entre a euforia e a depressão, entre o êxtase e a
desilusão.
• Contudo, engana-se quem pensar que Campos é só emoção, sistema
nervoso, febre; ele é, principalmente, lucidez.
“(...)
Coitado do Álvaro de Campos, com quem ninguém se
importa!
Coitado dele que tem tanta pena de si mesmo!
(...)
Que bom poder-me revoltar num comício dentro da minha
alma!
Mas até nem parvo sou!
Nem tenho a defesa de poder ter opiniões sociais.
Não tenho, mesmo, defesa nenhuma: sou lúcido.
Não me queiram converter a convicção: sou lúcido.
Já disse: sou lúcido.
Nada de estéticas com coração: sou lúcido.
Merda! Sou lúcido.”
Sua obra apresenta três fases estéticas:
• Decadentismo pós-simbolista
• espírito nostálgico e mórbido;
• desprezo pela vida prosaica;
• desejo de evasão, que impulsiona uma
busca de lugares e experiências exóticas
– Oriente e o ópio, respectivamente.
• Versos isométricos decassílabos, de
musicalidade sugestiva, geralmente
agrupados em quadras.
“É antes do ópio que minh’alma é doente.
Sentir a vida convalesce e estiola
E eu vou buscar ao ópio que consola
Um Oriente ao oriente do Oriente.”
Futurismo (Ode triunfal e Ode marítima)
• Versos livres torrenciais;
• Linguagem coloquial, cheia de
entusiasmo;
• Celebra a vertigem das sensações
modernas, a velocidade, a máquina e a
energia explosiva.
Nihilismo
• Síntese das duas primeiras;
• Forma modernista (verso livre,
coloquialismo, prosaísmo), mas despida
da exaltação futurista da modernidade.
• Recupera o espírito sombrio da primeira
fase.
• O tédio, o desânimo e a abulia (supressão
da vontade) combinam-se com um
sentimento de náusea, que leva a
explosões temperamentais raivosas.
TABACARIA

Não sou nada.


Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,


Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos
homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
TABACARIA
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto


Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe
quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por debaixo das pedras e dos seres.
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos
homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.
 
Estou hoje perplexo como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa,
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de
pensar?
Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver
tantos!
Génio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que
tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que
Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de
uma parede sem porta
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistámos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordámos e ele é opaco,
Levantámo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.
(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão
chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a
confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com
que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folhas de
estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)
Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem
lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, sem rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.
(Tu, que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -,
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)
Vivi, estudei, amei, e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem
amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer
nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem
cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente.
Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e
perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha
tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.
Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia
nada.
Mas o dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, e eu deixarei versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas
como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da
superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.
Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar
tabaco?),
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o
contrário.
 
Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de
estar mal disposto.
Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei
fumando.
 
(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira
das calças?).
Ah, conheço-o: é o Esteves sem metafísica.
(O dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-
me.
Acenou-me adeus gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o
universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o dono
da Tabacaria sorriu.
 
Álvaro de Campos, in "Poemas“ - Heterónimo de
Fernando Pessoa
FERNANDO PESSOA – ORTÔNIMO – olhar
velado

• A poesia assinada por Fernando Pessoa ele-mesmo


– ou Fernando Pessoa ortônimo – escrita em língua
portuguesa (sua produção inicial foi em língua
inglesa, compilada sob o título genérico de English
poems) pode ser dividida, para fins didáticos, em
• poesia saudosista-nacionalista (Mensagem) e
• poesia lírica (Cancioneiro).
• A maior parte da produção lírica do ortônimo
encontra-se reunida sob o título Cancioneiro, em
que se notam dois estilos:
• Modernismo e Pós-Simbolismo.
• A produção lírica de Fernando Pessoa está
reunida no chamado Cancioneiro.
• Ali está presente a referência à tradição, que já
registramos como sendo comum a toda a
primeira geração modernista portuguesa, a
geração de Orpheu.
• Por isso, sua forma poética mais característica é
a medida velha, métrica tradicional da cultura
lusa.
• Versos curtos, escritos em linguagem simples e
comunicativa, que encantam pela fluência.
• O racionalismo da poesia de Pessoa
provoca uma atitude de contenção e uma
visão equilibrada do mundo, muito
diferente, por exemplo, daquela que
assumiu em um de seus heterônimos,
Álvaro de Campos.
• Além disso, a tendência racionalista revela
a introspecção do poeta, o que faz com
que ele produza poemas reflexivos, com
um fundo filosófico claro.
• Em contrapartida, essa tentativa de clareza na
percepção do mundo não impediu que Fernando
Pessoa fizesse de alguns de seus poemas
verdadeiros exercícios de interpretação de
paradoxos, obrigando o leitor a uma leitura
sempre atenta.
• Nos poemas apresentados a seguir, é possível
detectarem-se todos esses traços (versos curtos,
tom filosofante, tendência ao paradoxo e à
racionalização, além da metalinguagem =
linguagem que fala de si mesma).
Autopsicografia
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
 
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
 
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
 (Fernando Pessoa, in 'Cancioneiro‘)
Sobre a publicação de Autopsicografia

• Os consagrados versos de Fernando


Pessoa foram publicados pela primeira
vez na revista Presença número 36.
• A edição foi lançada em Coimbra, em
novembro de 1932.
• O poema original foi escrito no dia 1 de
abril de 1931.
ESTRUTURA DO POEMA
• O poema é composto por 3 estrofes, com 4
versos (quartetos) que apresentam rima
cruzada, sendo que o 1º verso rima com o
3º e o 2º rima com o 4º.
• Relativamente à escansão do poema
Autopsicografia (a sua métrica), o poema se
qualifica como um redondilha maior, o que
significa que os versos são heptassílabos,
ou seja, têm 7 sílabas.
• Uma psicografia consiste numa representação de
fenômenos psíquicos ou na descrição psicológica de
alguma pessoa.
• "Auto", por sua vez, é um termo usado para designar
quando nos referimos a nós mesmos transmitindo a noção
de si próprio.
• Desta forma, é possível dizer que com a palavra
"autopsicografia", o autor pretende abordar algumas das
suas características psicológicas.
• O poeta mencionado nesta obra poética é, portanto, o
próprio Fernando Pessoa.
• Na 1ª estrofe é possível verificar a existência de uma
metáfora que classifica o poeta como um fingidor.
• Isso não significa que o poeta seja um mentiroso ou
alguém dissimulado, mas que é capaz de se transformar
nos próprios sentimentos que estão dentro dele.
• Por essa razão, consegue se expressar de maneira única.

O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
• Se no senso comum o conceito do fingidor costuma ter um
significado pejorativo, nos versos de Fernando Pessoa
temos a noção de que o fingimento é um instrumento da
criação literária.
• Segundo o dicionário, fingir vem do latim fingere e significa
"modelar na argila, esculpir, reproduzir os traços de,
representar, imaginar, fingir, inventar".
• A capacidade de fingir de Fernando Pessoa explica a
criação dos vários heterônimos pelos quais ficou
conhecido.
• Os mais famosos heterônimos pessoanos foram Álvaro de
Campos, Alberto Caeiro e Ricardo Reis.
• Fernando Pessoa consegue abordar várias emoções e se
transformar em cada uma delas, criando assim diferentes
personagens com formas distintas de ser e de sentir.
E os que leem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
• Vemos na 2ª estrofe que a capacidade do poeta de expressar
certas emoções desperta sentimentos no leitor.
• Apesar disso, o que o leitor sente não é a dor (ou a emoção)
que o poeta sentiu nem a que "fingiu", mas a dor derivada da
interpretação da leitura do poema.
• As duas dores que são mencionadas são a dor original que o
poeta sente e a "dor fingida", que é a dor original que foi
transformada pelo poeta.
• Na 3ª e última estrofe, o coração é descrito como um
comboio (trem) de corda, que gira e que tem a função de
distrair ou divertir a razão.
• Vemos neste caso a dicotomia emoção/razão que faz
parte do cotidiano do poeta.
• Podemos então concluir que o poeta usa o seu intelecto
(razão) para transformar o sentimento (emoção) que ele
viveu. 

E assim nas calhas de roda


Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
• Autopsicografia é erguido a partir de um jogo de
repetições que cativa o leitor e o leva a querer saber
mais sobre a construção do poema e sobre a
personalidade do poeta.
• Trata-se de um metapoema: um poema que se dobra
sobre si mesmo e tematiza as suas próprias
engrenagens.
• O que transparece para o leitor são os mecanismos de
composição da obra, dando ao leitor um acesso
privilegiado aos bastidores da criação.
• O prazer é obtido justamente do fato do poema explicar-
se generosamente ao público.
Isto
Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.
 
Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.
 
Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!
• Assunto: o fingimento e a criação
artística; a racionalização dos
sentimentos (sentir com a imaginação,
não usando o coração).
• Divisão do poema: duas primeiras
quintilhas - negação de que finge ou
mente; justificação de que o que faz é a
racionalização dos sentimentos na busca
de algo mais belo mas inacessível;
• O poema "Isto" apresenta-se como uma espécie de
esclarecimento em relação à questão do fingimento
poético enunciada em "Autopsicografia" - não há mentira
no ato de criação poética; o fingimento poético resulta da
intelectualização do "sentir" da racionalização.
• Aqui, o sujeito poético vai mais longe já que, negando o
"uso do coração", aponta para a simultaneidade dos atos
de "sentir" e "imaginar", apresentando-nos a obra poética
como uma espécie de síntese na qual a sensação surge
filtrada pela imaginação criadora.
• A comparação presente na 2ª estrofe (vv.6-9) evidencia o
fato de a realidade que envolve o sujeito poético ser
apenas a "ponte" para "outra coisa": a obra poética,
expressão máxima do Belo.
• Na 3ª estrofe, introduzida pela expressão
"Por isso" de valor conclusivo/ explicativo,
o sujeito poético recusa a poesia como
expressão imediata das sensações.
• O sentir, no sentido convencional do
termo, é remetido para o leitor.
• "Fingir" não é o mesmo que "mentir" é a tese defendida.
• Não há mentira no ato de criação poética; o fingimento
poético resulta da intelectualização do "sentir", da
racionalização dos sentimentos vividos pelo sujeito
poético.
• O sujeito poético vai mais longe já que, negando o "uso
do coração", aponta para a simultaneidade dos atos de
"sentir" e "imaginar", apresentando-nos a obra poética
como uma espécie de síntese onde a sensação surge
filtrada pela imaginação criadora.
MENSAGEM
• A preocupação com o tradicionalismo, que
ocupou parte de sua produção artística, explica-
se por meio de uma certa missão histórica de
que Fernando Pessoa, como poeta, se via
encarregado.
• Acreditando, misticamente, no futuro glorioso de
Portugal, que estaria destinado a retomar a
grandeza perdida desde o século XVI, o escritor
se colocava na posição de arauto dessa
retomada.
• Por isso, uma parte de sua produção lírica se reveste de
um claro tom épico.
• Trata-se do livro Mensagem, que o poeta publicou em
1934, ainda em vida.
• O livro estabelece um diálogo com Os lusíadas, contando
poeticamente a história da nação portuguesa, desde a
fundação do reino (1ª parte: “Brasão”), passando pela
expansão marítima (2ª parte: “Mar portuguez”) até a
decadência do império e a crença em seu ressurgimento
(3ª parte: “O encoberto”).
• Em seu livro Mensagem desenvolve temas
da raça e da História de Portugal, em
atmosfera visionária, mitopoética, fundindo o
lírico e o épico, como que realizando um
destino superior:
• o de construir a grandeza da Pátria e da
Humanidade, desenvolvendo
espiritualmente a espécie humana, por meio
da criação de grande poesia.
• Esta obra contém poesia de índole épico-lírica
participando assim das características deste dois
gêneros.
• Quanto à sua matriz épica devemos destacar o
tom de exaltação heroica que percorre esta obra;
a evocação dos perigos e dos desastres bem como
a matéria histórica ali apresentada.
• Quanto à sua dimensão lírica, podemos destacar a
forma fragmentária da obra, o tom menor, a
interiorização da matéria épica, através da qual
sujeito poético se exprime.
• A 1ª parte, Brasão, que remete para um estudo heráldico
do escudo ou brasão português, corresponderá ao plano
narrativo da História de Portugal, n’ Os Lusíadas.
• No conjunto dos 18 poemas desta parte encontramos
referências a heróis míticos ou mitificados, como Ulisses,
Viriato, Conde D. Henrique, D. Tareja, D. Afonso
Henriques, D. Dinis, D. João I e D. Filipa, D. Duarte, D.
Fernando, Infante de Portugal (o poema primitivamente
intitulado “Gládio”), D. Pedro, Regente de Portugal, D.
João, Infante de Portugal, D. Sebastião, Infante D.
Henrique.
• Trata-se de heróis vencedores, em alguns casos, mas
“falhados”, na opinião geral, em muitos outros casos –
pelo menos ignorados, ou quase, por Camões.
• PRIMEIRA PARTE – BRASÃO –
referência simbólica à fundação da
nacionalidade e à consolidação de
Portugal como país de um povo eleito por
Deus
Sexto rei de Portugal (1279-1325),
nascido em Lisboa, conhecido como o
Rei Trovador ou o Rei Lavrador. Filho de
Afonso III e de sua 2ª mulher, Beatriz, e
neto de Afonso X de Castela, casou-se
com Isabel de Aragão, chamada a
Rainha Santa.
Para estimular a agricultura, distribuiu
terras a colonos, mandou construir
canais e secar pântanos e limitou os
privilégios territoriais da igreja e, por
isso, foi cognominado O Lavrador ou O
Rei-Agricultor.
Durante seu longo reinado, o comércio
também prosperou, com o aumento da
extração de metais, a proteção às feiras
e a reorganização da Marinha.
Beneficiou a literatura e mandou traduzir
livros latinos e árabes, inclusive a
Geografia de Razis.
D. DINIS
Na noite escreve um seu Cantar de Amigo
O plantador de naus a haver
E ouve um silêncio múrmuro consigo:
É o rumor dos pinhais que, como um trigo
De Império, ondulam sem se poder ver
 
Arroio, esse cantar, jovem e puro,
Busca o Oceano por achar;
E a fala dos pinhais, marulho obscuro,
É o som presente desse mar futuro,
É a voz da terra ansiando pelo mar.
 
• No nível das sonoridades merecem destaque as
assonâncias (alteração entre vogal aberta e fechada) e as
aliterações em sibilantes.
• Esta repetição de sons produz um conjunto harmónico de
versos que combinam as potencialidades do significado
com o significante.
• D. Dinis é poeta e é o criador de condições necessárias às
navegações.
• Surge assim num contexto verbal que enquadra esses
sentidos: consubstanciando matéria épica e lírica, jogando
com o tempo histórico de futuro adivinhado.
• Na primeira estrofe o sujeito lírico imagina D. Dinis a
compor um cantar de amigo.
• Eis-nos diante do rei poeta.
• Já no segundo verso é o lavrador que emerge.
• Seria dos pinhais plantados por D. Dinis que viria a
madeira com a qual se construiriam as naus para os
descobrimentos.
• D. Dinis representa a certeza adivinhada do futuro.
• A expressão “ouve um silêncio múrmuro consigo”,
contendo um oxímoro realça a atitude meditativa do
rei que, como um rei-mago, ao escrever o seu cantar
de amigo profetiza já a epopeia marítima dos
portugueses.
• Notar que o rumor dos pinhais de tal forma se insinua no
cantar profético do poeta, atribuindo a esse cantar o
mesmo efeito que à fala dos pinhais “esse cantar busca o
oceano por achar; e a fala dos pinhais é som presente
desse mar futuro”.
• Concluindo, este poema está imbuído de sensibilidade
épica.
• A grandeza dos feitos de uma nação é inseparável da sua
grandeza literária.
• Pelo que se compreende que Fernando Pessoa tenha
concebido na Mensagem um supra Portugal em que ele
seria o supra Poeta.
• A cultura parece desempenhar aqui um papel de
importância acrescentada.
• Também o Quinto império será cultural.
"D. Sebastião"
Louco, sim, louco, porque quis grandeza
Qual a Sorte a não dá.
Não coube em mim minha certeza;
Por isso onde o areal está
Ficou meu ser que houve, não o que há.
 
Minha loucura, outros que me a tomem
Com o que nela ia.
Sem a loucura que é o homem
Mais que a besta sadia,
Cadáver adiado que procria?
• Trata-se de um poema da 1ª parte – o Brasão – de Mensagem. Dentro
desta integra-se As Quinas.
• Nesta 1ª parte da obra aborda-se a origem, a fundação o princípio de
Portugal.
• O título D. Sebastião remete-nos para um momento importante da
nação, assumindo D. Sebastião um papel importante na decisão tomada
de avançar para a conquista de África.
• Em termos formais, constatamos que o poema é constituído por 2
estrofes, de 5 versos (quintilhas).
• Quanto ao metro e ao ritmo os versos são irregulares. Os versos variam
entre as 6 sílabas métricas, as 8 e as 10.
• Predomina o ritmo binário, aparecendo também o ternário.
• A rima varia também entre consoante, que predomina e toante, variando
ainda entre rica e pobre, predominando não obstante a pobre e obedece
ao seguinte esquema rimático: ababb, com rimas cruzadas e
emparelhadas, portanto.
• A alternância de ritmo possibilita a emissão de uma reflexão do próprio
rei e o incitamento que dirige aos destinatários.
• O poema pode dividir-se em 2 partes: a 1ª
correspondendo à primeira estrofe e a segunda parte à
segunda estrofe.
• Na 1ª o sujeito poético faz uma autocaracterização como
“louco”;
• na 2ª faz uma apologia da loucura, um elogio, exortando a
que outros deem continuidade ao seu sonho.
• Na primeira estrofe o sujeito lírico encontra a base da
loucura na grandeza (a febre do além, o sonho, o ideal)
que o sujeito lírico assume com orgulho.
• Em consequência dessa loucura, o herói encontrou a
morte em Alcácer Quibir (perífrase).
• Apesar disto a loucura tem neste poema uma
conotação positiva, já que se liga ao desejo de
grandeza, à capacidade realizadora, sem a qual o
homem não passa de um animal.
• Veja-se ainda na 1ª estrofe a referência ao ser
histórico “ser que houve” que ficou na batalha de
Alcácer Quibir, onde encontrou a destruição física, e
a distinção deste com o ser mítico “não o que há”,
que sobreviveu pois é imortal, é a ideia-símbolo, o
sonho que fecunda a realidade.
• Este perdura na memória coletiva como exemplo.
• Na 2ª parte, o sujeito poético lança um repto aos
destinatários, fazendo um apelo à loucura e à
valorização do sonho.
• Deve portanto dar-se asas à loucura como força
motora da ação.
• Trata-se de um apelo de alcance nacional e universal.
Este mesmo elogio será repetido várias vezes ao
longo da obra.
• É a referência ao mito sebastianista, força criadora,
capaz de impelir a nação para a sua última fase que
está aqui em questão.
• O desafio permite aos destinatários considerarem a
grandeza do rei suficiente para todos.
• A utopia foi e será sempre a força criadora de novos
mundos quer no nível individual quer no nível coletivo.
• Sem ideal cai-se no viver materialista.
• A interrogação retórica com que termina o poema aponta
precisamente para a loucura como força criativa que
poderá ser canalizada para a reconstrução nacional.
• Sem o sonho “a loucura” o homem não se distingue do
animal.
• É através do sonho que o homem é capaz de seguir em
frente sem temer a própria morte.
• Assim o homem deixará de ser um animal sadio ou
reprodutor com a morte adivinhada.
• SEGUNDA PARTE – MAR PORTUGUÊS POSSESSIO
MARIS (Posse do mar)
• Constituída por 12 partes, procura simbolizar a essência do
ideal de ser português vocacionado para o mar e para o
sonho.
• Inicia-se com o poema “Infante”, no qual o poeta exprime a
sua concepção messiânica da História, mostrando que o
sopro criador do sonho resulta de uma lógica que implica
Deus, o homem como agente intermediário e a obra como
efeito.
• Nos outros poemas evoca a epopeia dos Descobrimentos
com as glórias e as tormentas, considerando que valeu a
pena.
• O último poema desta parte é “Prece”, no qual renova o
sonho.
• A 2ª parte corresponde ao tempo da ação épica – à ação
central n’ Os Lusíadas.
• As 12 partes / poemas são dedicados à conquista, à posse
dos mares, com destaque para as figuras históricas do
Infante, de Diogo Cão (“Padrão”), de Bartolomeu Dias, dos
Colombos, de Fernão de Magalhães, de Vasco da Gama e,
novamente, D. Sebastião–com destaque, igualmente, para
a ilha de sonho figurada em “Horizonte” – e para o mar,
local de todos os medos, dores e coragens, figurados em
“O Mostrengo” e “Mar Português”.
• Esta parte termina com um poema que abre para a 3ª parte
– “Prece”.
Nesta 2ª parte da obra abordam-se o esforço heroico na luta contra o
Mar e a ânsia do Desconhecido.
Aqui merecem especial atenção os navegadores que percorreram o mar
em busca da imortalidade, cumprindo um dever individual e pátrio
(realização terrestre de uma missão transcendente)
Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
FERNANDO PESSOA - MAR PORTUGUEZ
Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
 
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.
• Em termos formais, constatamos que o poema é
constituído por duas estrofes, de 6 versos (sextilhas).
• Quanto ao metro os versos são irregulares.
• Os versos são decassilábicos, octossílabos.
• Predomina o ritmo binário, ritmo largo, adequado, é
meditação lírica, embora sobre um tema épico.
• A rima é emparelhada, segundo o esquema aabbcc.
• As palavras que rimam são, na sua maioria, palavras
importantes no universo do poema (sal, Portugal,
choraram, rezaram, Bojador, dor, céu, realçando a sua
expressividade em conjugação com a posição final de
verso ocupada.
• O tema desta composição poética pode dizer-se que é a
apresentação dos perigos e das glórias que o mar
comporta ao povo português.
• Este tema desenvolve-se em 2 partes.
• A 1ª parte é constituída pela 1ª estrofe, na qual o sujeito
poético apresenta uma realidade épica – é a síntese da
história de um povo e dos sacrifícios que suportou para
poder conquistar o mar;
• a 2ª estrofe é de carácter mais reflexivo, fazendo o sujeito
poético um balanço dos referidos sacrifícios.
• A conclusão é que valeu a pena, pois em resultado desse
sofrimento o povo português conquistou o absoluto.
• As aspirações infinitas dos homens conduzem-nos até este
ponto. A recompensa das grandes dores são as grandes
glórias.
• A 1ª parte inicia-se com uma apóstrofe ao mar
encerrando com outra desta feita não adjetivando o
mar como salgado (veja-se a expressividade deste
adjetivo, enfatizando o sabor amargo do sal, mas mais
amargo ainda o sofrimento que causa as lágrimas já
de si também salgadas – perspectiva simbólica deste
elemento), mas conferindo à estrofe e de certo modo
ao poema uma espécie de circularidade.
• A aliteração na labial poderá sugerir a relação
necessária e fatal entre o mar e o sofrimento.
• Tudo começa e termina no mar.
• A metáfora associada à hipérbole nestes 2 versos iniciais
(Quanto do teu sal são lágrimas de Portugal), acentuam o
sofrimento causado pelo mar no povo português.
• Note-se ainda a metonímia em Portugal.
• As frases exclamativas conferem o tom épico a esta 1ª
estrofe e patenteiam as vítimas que o mar fazia em terra:
as mães, as noivas e os filhos são os atingidos pelo
sofrimento causado pelo elemento marinho.
• A repetição do determinante interrogativo, em posição
anafórica, nos 2 últimos versos acentua o dramatismo das
situações narradas.
• Foi sobretudo nos núcleos familiares que se fizeram sentir
os malefícios do mar.
• Ressalte-se o valor expressivo da metáfora inicial “Por
te cruzarmos”, apontando para a cruz símbolo de
sofrimento.
• Os verbos choraram, rezaram, e ficaram por casar
ainda por cima reforçado pela expressão “em vão”
denotam a dor, o sofrimento e o choro aflito
provocados pela destruição do amor maternal, filial e
de namorados.
• Tudo isto porque almejamos a posse do mar “para que
fosses nosso, ó mar!”
• A 2ª parte inicia-se com dois versos de teor axiomático,
possibilitando um balanço que para o sujeito poético é
positivo, apesar de todos os sacrifícios.
• Basta para tal que o objetivo que esteja na base da
empresa seja nobre.
• Note-se a reiteração de valeu...vale e mais adiante
passar...passar... reforçando a relação necessária entre o
sofrimento e o heroísmo.
• A própria interrogação retórica funciona como uma
chamada de atenção para as contrapartidas que o povo
português alcançara do destino.
• A resposta à questão que levantou o sujeito poético obtém a
resposta nele mesmo, através de 3 frases, todas elas
carregadas de grande simbolismo.
• A 1ª resposta “Tudo vale a pena se a alma não é pequena”
sugere a grandeza da alma humana, sempre pronta a
desejar o impossível, o que pode proporcionar a glória, a
heroicidade.
• Tudo vale a pena para alcançar o ideal sonhado.
• Na 2ª frase “ Quem quer passar além do Bojador / tem que
passar além da dor”, deve entender-se Bojador na sua
dimensão simbólica, de ultrapassar o medo, ultrapassar o
desconhecido, conseguir a glória e a heroicidade desejada.
Não obstante é necessário ultrapassar também em 1º lugar
a dor.
• Finalmente a 3ª frase “ Deus ao mar o perigo e o
abismo deu / mas nele é que espelhou o céu”.
• O perigo e o abismo do mar são a causa de
sofrimentos, mas no sentido metafórico e
simbólico que está para lá do denotativo de o céu
se refletir no mar, está a ideia de que o céu é
símbolo do sonho realizado, da glória.
• Daqui poderemos deduzir que quem vencer os
perigos do mar e o sofrimento alcançará a glória
suprema.
• Nas frases enunciadas constatamos sempre a
existência de dois elementos antitéticos “ pena”,
“dor”, “perigo” e “tudo vale a pena”, “passar além
da dor”, “passar além do Bojador” e “céu”.
• É interessante verificarmos que não existem
conjunções a ligar estas frases e que a 1ª tem
sentido universal, sendo que a 2ª particulariza o
sentido ao caso português, e por último,
parecendo a frase de sentido universal, ela liga-se
à exclamação que introduz o poema, é para o mar
português que se aponta, para a tragédia e glória
de Portugal.
• Daqui resulta sobretudo a dimensão épica do
poema.
• Este texto aproxima-se do episódio de Camões
“O Velho do Restelo”, mas desaparece a crítica
aos Descobrimentos acentuando-se sobretudo o
tom de louvor em Pessoa.
• Ao longo do poema predominam os tempos do
perfeito para evocar acontecimentos passados
trágicos e o presente que situa o sujeito poético
num tempo presente, considerando os valores
morais fundamentais à construção de heróis,
bravura, tenacidade e desejo de vencer.
Jardim do Alto de Santa Catarina (Jardim do Adamastor)
“O Mostrengo”
O mostrengo que está no fim do mar
Na noite de breu ergueu-se a voar;
À roda da nau voou três vezes,
Voou três vezes a chiar,
E disse: “Quem é que ousou entrar
Nas minhas cavernas que não desvendo,
Meus tectos negros do fim do mundo?”
E o homem do leme disse, tremendo:
“El-Rei D. João Segundo!”
 
“De quem são as velas onde me roço?
De quem as quilhas que vejo e ouço?”
Disse o mostrengo, e rodou três vezes,
Três vezes rodou imundo e grosso,
“Quem vem poder o que eu só posso,
Que moro onde nunca ninguém me visse
E escorro os medos do mar sem fundo?”
E o homem do leme tremeu e disse:
“El-Rei D. João Segundo!”
 
Três vezes do leme as mãos ergueu,
Três vezes ao leme as reprendeu,
E disse no fim de tremer três vezes:
“Aqui ao leme sou mais do que eu:
Sou um povo que quer o mar que é teu;
E mais que o mostrengo, que me a alma teme
E roda nas trevas do fim do mundo,
Manda a vontade, que me ata ao leme,
De El-Rei D. João Segundo!”
• Trata-se de um poema da 2ª parte – “Mar
Português” – de Mensagem- coletânea de
poemas de Fernando Pessoa, escrita entre 1913
e 1934, data da sua publicação.
• Nesta 2ª parte da obra abordam-se o esforço
heroico na luta contra o Mar e a ânsia do
Desconhecido.
• Aqui merecem especial atenção os navegadores
que percorreram o mar em busca da imortalidade,
cumprindo um dever individual e pátrio (realização
terrestre de uma missão transcendente)
• Em termos formais, constatamos que o poema é constituído
por três estrofes, de nove versos (nonas).
• Quanto ao metro os versos são irregulares.
• Os versos predominantes são decassilábicos, havendo, no
entanto, também a presença de hexassílabos, octossílabos
e eneassílabos.
• Predomina o ritmo ternário, conferindo ao poema o tom alto
e sublimado próprio do poema épico.
• A rima é emparelhada e cruzada, segundo o esquema
aabaacdcd.
• Verifica-se a presença de um verso solto, que é aquele que
transporta em si um grande simbolismo pela referência às
três vezes.
• Merecem ainda destaque neste campo as sonoridades
que na sua maioria são onomatopaicas, possibilitando a
existência de grande harmonia imitativa.
• As consoantes fricativas /v/, /z/ e /ch/, imitam o som do
voar do mostrengo.
• Além disso a abundância de sons nasais e fechados,
bem como da consoante vibrante /r/ contribuem para o
estilo característico da epopeia.
• Esta predominância dá ao poema uma ressonância
sombria e pesada, confirmando o tom dramático que o
caracteriza.
• O tema desta composição poética pode dizer-se que é a
coragem do povo português diante das adversidades
do mar.
• Chegados ao cabo das Tormentas, os portugueses
encontram o Mostrengo destinado a atemorizá-los para
que desistam da sua viagem.
• Porém, o homem do leme faz-lhe frente, neutralizando-o
pela imposição da vontade de um povo que não abdica da
sua missão.
• O título do poema Mostrengo é uma palavra derivada por
sufixação: monstro + sufixo de valor lexical pejorativo
(mulherengo). Significa, portanto pessoa muito feia;
pessoa desajeitada, ociosa ou inútil; estafermo.
• O sujeito poético começa por nos apresentar o mostrengo numa
espécie de introdução.
• O mostrengo surge assim logo rodeado de mistério, pois localiza-se
“no fim do mar” (noite escura). O mistério está também na expressão
“três vezes” (que se repete 7 vezes ao longo do poema).
• O número três está relacionado com as ciências ocultas, é um
número cabalístico, é um triângulo sagrado, presente em muitas
religiões, como a tríade da religião egípcia, a tríade capitolina (em
Roma), a tríade dos cristãos (Santíssima Trindade).
• Optamos pela versão que considera o número 3 como símbolo da
perfeição, da unidade, da totalidade a que nada pode ser
acrescentado.
• A simbologia deste e de outros números contribui para lhe conferir
um sentido oculto e esotérico.
• Notamos que a expressão referida aparece 3 vezes em lugar de
destaque, no fim do 3º verso de cada estrofe, que são 3 e que têm
cada uma 9 versos (múltiplo de 3 e aparece 3 vezes o refrão “El Rei
D. João Segundo” que tem 6 sílabas (múltiplo de 3).
• O mostrengo é caracterizado de forma indireta nesta 1ª
estrofe.
• São as suas ações que se descrevem: realiza movimentos
circulares intimidadores e sitiantes à volta da nau, e as suas
palavras são ameaçadoras – vive numa “cavernas” que
ninguém conhece de “tectos negros do fim do mundo” e
“escorre” “os medos do mar sem fundo”.
• Estas últimas expressões estão também carregadas de
mistério-terror.
• A dinâmica agressiva do texto é ainda sugerida pela
abundância de formas verbais que traduzem movimentos
incontroláveis, violentos, de terror: “ergueu-se a voar”, “voou
três vezes a chiar”, “ousou”, “tremendo”.
• Para que a descrição deste ambiente de terror contribui a
linguagem visualista, fazendo apelo às sensações visuais
e auditivas sobretudo. “noite de breu”, “tectos negros”.
• É também impressionista a linguagem que nos dá a
localização espaco-temporal da situação “à roda da nau”,
“no fim do mar”, “nas minhas cavernas”, “meus tectos
negros do fim do mundo”.
• A emoção dramática está patente nesta primeira estrofe
através não apenas dos aspectos já mencionados, mas
também através da expressividade das metáforas e até
imagens contidas em “nas minhas cavernas”, “meus
tectos negros do fim do mundo”.
• Estas traduzem o mistério impenetrável de qualquer
coisa medonha.
• A emotividade desta primeira estrofe é transmitida quer
pela interrogativa do mostrengo quer pela exclamativa do
marinheiro.
• É interessante notar a fusão de várias funções da
linguagem na interrogação do mostrengo (emotiva, fática e
imperativa).
• O refrão que aparece repetido em todas as estrofes e que
aparece no último verso de cada uma delas acentua a
ligação do marinheiro à vontade de El Rei, constitui
além disso uma espécie de coro, de voz secreta do
destino a incitar o marinheiro a cumprir a sua missão.
• Nesta primeira estrofe o Mostrengo aparece personificado
(voa, chia, ameaça) funciona como símbolo dos perigos e
ameaças do mar tenebroso.
• Esta 1ª estrofe é um discurso a 3 vozes: a do sujeito
poético que introduz a figura do Mostrengo, a do próprio
Mostrengo e a do marinheiro.
• Nesta estrofe a reação deste marinheiro caracteriza-se
pelo medo “tremendo”.
• Assustado e intimidado quer pelas palavras do mostrengo,
quer pelo ambiente sinistro que o circunda, responde
apenas com uma frase invocando a autoridade de que foi
investido.
• Na segunda estrofe o discurso narrativo do sujeito de
enunciação é relegado, aparecendo intercalado no
discurso direto do mostrengo.
• A irascibilidade do Mostrengo vai crescendo. A
emotividade agressiva acentua-se nesta estrofe pelas
interrogativas.
• Mais uma vez se deve salientar a linguagem visualista “as
quilhas que vejo e ouço” “nas trevas do fim do mundo”.
• A agressividade continua a ser traduzida por formas
verbais que traduzem movimentos incontroláveis,
violentos e de terror “roço”, “rodou”, “tremeu”.
• Mais uma vez também a localização espaço-temporal
recorre a uma linguagem impressionista “onde nunca
ninguém me visse” e “mar sem fundo”.
• Também aqui o ambiente de emoção e terror se centra nas
atitudes do mostrengo “rodou três vezes”, “três vezes rodou
imundo e grosso, e “escorro os medos do mar sem fundo.”
• Este verso contém também uma metáfora imagem bastante
expressiva que aponta para a permanência do terror, uma espécie
de fonte inesgotável de medo (note-se o aspecto durativo do
verbo escorro.
• Outro recurso estilístico que merece destaque no nível
morfossintático é a anáfora nos dois primeiros versos, acentua a
procura do mostrengo do responsável pelo seu desassossego.
• À gradação crescente da irascibilidade do mostrengo corresponde
a resposta do marinheiro que já treme primeiro e depois fala. Há
um crescendo na coragem e valentia do homem do leme.
• Nesta estrofe aparecem 2 dos 3 adjetivos que aparecem no
poema com o objetivo de caracterizarem o mostrengo “imundo e
grosso”.
• Na 3ª estrofe esta coragem atingirá o seu clímax
neutralizando o mostrengo.
• O drama da divisão entre o medo e a coragem vive-se no
íntimo do marinheiro.
• Com efeito, as atitudes contraditórias de prender e
desprender as mãos do leme, tremer e deixar de tremer
revelam ainda alguma insegurança e um estado de dúvida
que lhe provoca a divisão entre a coragem e o terror.
• O terror advinha do mostrengo a coragem da missão que lhe
fora confiada e lhe vinha do alto.
• Chega finalmente a resposta segura e inabalável.
• Ele representa o povo português e nele manda mais a
vontade de El Rei do que o terror incutido pelo
Mostrengo.
• A forma verbal “ata” de aspecto durativo sugere a
missão inabalável do marinheiro, ligado fatalmente à
vontade de D. João II.
• A evolução que se verificou em relação ao homem do
leme é ascendente, prevendo-se a evolução contrária
do mostrengo que é neutralizado pela última resposta
do homem do leme.
• O predomínio do presente do indicativo nas falas do
homem do leme por oposição ao pretérito perfeito da
narração confere às falas do marinheiro e do
mostrengo maior vivacidade e força, até para o
valor universal e para o tom épico da última fala
daquele.
• Volta a aparecer nesta última estrofe nos dois
primeiros versos a anáfora associada ao
simbolismo do número três.
• Também o Mostrengo e o homem do leme são
figuras simbólicas, como já nos apercebemos.
• Em síntese o Mostrengo simboliza os medos dos
navegadores que enfrentam o desconhecido e o
homem do leme é a figura do herói mítico,
símbolo de um povo, e que, portanto, passa de
herói individual a coletivo, com uma missão a
cumprir.
• TERCEIRA PARTE – O ENCOBERTO PAX IN EXCELSIS
(Paz nos céus)
• Tripartida em “Os Símbolos”, “Os Avisos” e “Os
Tempos”
• Com os primeiros (cinco poemas), manifesta a esperança e
o “sonho português”, pois o atual império encontra-se
moribundo. Mostra a fé de que a morte contenha em si o
gérmen da ressurreição.
• Nos três avisos define os espaços de Portugal.
• Com os cinco tempos traduz a ânsia e a saudade daquele
Salvador / O Encoberto que, na Hora, deverá chegar, para
edificar o Quinto Império, cujo espírito será moral e
civilizacional.
• OBS.: Os quatro impérios já vividos foram, segundo Pessoa,
“Grécia, Roma, Cristandade e Europa”
• A 3ª parte de Mensagem é a mais assumidamente
messiânica e sebastianista – o Rei sonhador é agora o Rei
Encoberto, aquele que virá, segundo as profecias de Bandarra
e a visão do Padre António Vieira, numa manhã de nevoeiro,
fazer, de novo, a Hora.
• Os quatro impérios já vividos foram, segundo Pessoa, “Grécia,
Roma, Cristandade e Europa”
• Assim, pode falar-se no confronto que faz com Os Lusíadas, de
corresponder esta parte ao plano das profecias, existentes,
sobretudo, no Canto X.
• Mensagem deve ser lida como a epopeia da era que há de vir,
a do sonho feito realização, a da loucura, divina, porque
assumida conscientemente, e interrompida, de D. Sebastião,
de D. Fernando, do Infante e dos outros heróis expectantes
evocados por Pessoa.
3ª parte: O ENCOBERTO
• Os símbolos: “D. Sebastião”, “O Quinto
Império”, “O Desejado”, “As ilhas
afortunadas” e “O Encoberto”;
• Os avisos: “O Bandarra”, “António Vieira”
e “[‘Screvo meu livro à beira-mágoa]
• Os tempos: “Noite”, “Tormenta”, “Calma”,
“Antemanhã” e “Nevoeiro”.
Navegar é preciso
Viver não é preciso...
Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa:
"Navegar é preciso; viver não é preciso".
 
Quero para mim o espírito desta frase,
transformada a forma para a casar como eu sou:
 
Viver não é necessário; o que é necessário é criar.
Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso.
Só quero torná-la grande,
ainda que para isso tenha de ser o meu corpo
e a (minha alma) a lenha desse fogo.
 
Só quero torná-la de toda a humanidade;
ainda que para isso tenha de a perder como minha.
Cada vez mais assim penso.
 
Cada vez mais ponho da essência anímica do meu sangue
o propósito impessoal de engrandecer a pátria e contribuir
para a evolução da humanidade.
 
É a forma que em mim tomou o misticismo da nossa Raça.
Fernando Pessoa Pessoa, F. Obra Essencial de Fernando Pessoa: Prosa Íntima e de
Autoconhecimento. Edição Richard Zenith, Assírio & Alvim. 2007.
 
“Os Argonautas” (Caetano Veloso)
O Barco!
Meu coração não aguenta
Tanta tormenta, alegria
Meu coração não contenta
O dia, o marco, meu coração
O porto, não!...
 
Navegar é preciso
Viver não é preciso...
O Barco!
Noite no teu, tão bonito
Sorriso solto perdido
Horizonte, madrugada
O riso, o arco da madrugada
O porto, nada!...
 
Navegar é preciso
Viver não é preciso
O Barco!
O automóvel brilhante
O trilho solto, o barulho
Do meu dente em tua veia
O sangue, o charco,
barulho lento
O porto, silêncio!...
 
Navegar é preciso
Viver não é preciso...
CRIAR É PRECISO
MENSAGEM X OS LUSÍADAS
• Os Lusíadas e Mensagem cantam, em perspectivas diferentes, a
grandeza de Portugal e o sentimento português.
• Nas 2 primeiras partes da Mensagem é possível um diálogo com Os
Lusíadas; em O Encoberto, Pessoa situa-se no momento em que o
Império Português parece desmoronar-se por completo e, assume,
então, o cargo de anunciador de um novo ciclo que se anuncia, o
Quinto Império, que não precisa de ser material, mas civilizacional.
• Os Lusíadas são uma narrativa épica, que faz uma leitura mítica da
História de Portugal. Em estilo elevado, canta uma ação heroica
passada e analisa os acontecimentos futuros, cuja visão os deuses
são capazes de antecipar.
• Fernando Pessoa, no poema épico-lírico, canta, de forma fragmentária
e numa atitude introspectiva, o império territorial, mas retrata o
Portugal que “falta cumprir-se”, que se encontra em declínio a
necessitar de uma nova força anímica.
• Em Os Lusíadas, Camões conseguiu fazer a
síntese entre o mundo pagão e o mundo cristão;
• Em Mensagem, Pessoa procura a harmonia entre
o mundo pagão, o mundo cristão e o mundo
esotérico (do ocultismo).
• Fernando Pessoa, em Mensagem, procura
anunciar um novo império civilizacional.
• O “intenso sofrimento patriótico” leva-o a antever
um império que se encontra para além do material.
• Mensagem recorre ao ocultismo para criar o herói — O
Encoberto — que se apresenta como D. Sebastião. Note-se
que o ocultismo remete para um sentimento de mistério,
indecifrável para a maioria dos mortais.
• Daí que só o detentor do privilégio esotérico (=
oculto/secreto) se encontra legitimado para realizar o sonho
do Quinto Império.
• Ocultismo:
• Três espaços, o histórico, o mítico e o místico;
• “A ordem espiritual no homem, no universo e em Deus”;
• Poder, inteligência e amor na figura de D. Sebastião.
• A conquista do mar não foi suficiente (o império material
desfez-se, ou seja, a missão ainda não foi cumprida): falta
concretizar este novo sonho— um império espiritual...
• Em Mensagem surgem diversos mitos, como o do
Sebastianismo e o do Quinto Império.
• É possível também perceber outros mitos como o do
Santo Graal (“Galaaz com pátria” era o Desejado, capaz
de permitir o retorno do Graal, o símbolo da união e
harmonia entre os povos), o das Ilhas Afortunadas (de
“terras sem ter lugar”, como o Quinto Império), e o do
Encoberto (dentro da mística rosacruciana em cujos
princípios se deveria basear o Quinto Império).
• A concepção mítica leva, também, Pessoa a usar figuras
como Ulisses e o Mostrengo, que o ajudam a explicar o
passado dos Portugueses e a fazer a apologia da sua
missão profética.
Interseccionismo
• caracteriza-se pelo entrecruzamento de
planos que se cortam:
• intersecção de percepções ou sensações.
“Chuva Oblíqua”
• Em observaremos um Fernando Pessoa que traz um
exarcebado culto ao vago, ao sutil e ao complexo,
principalmente em relação à influência que sofrera do
futurismo e do cubismo, em especial do segundo, pois “O
cubismo, preconizando a geometrização da arte pictória”
oferece uma nova ótica, “nova ótica real, caracterizada pela
fragmentação do espaço” (MOISÉS, Massaud, 1998, p. 95).
• Há no poema um ser fragmentado, que não sabe quem é
realmente. Pode-se explicar tal fato, porque “foi porque
sentia com extrema intensidade que pôde aperfeiçoar, a um
grau da loucura, sua faculdade de pensar” (MOISÉS,
Massaud, 1998, p. 26).
• Iniciemos pelo nome do poema:
• Uma chuva que é oblíqua, é uma chuva inclinada e
que incomoda por não ter como fugir dela; ela
atinge as pessoas por mais que tentem se
esquivar.
• Nesta chuva há uma intersecção, um cruzamento
de elementos bons e ruins, desejáveis e
indesejáveis, do real com o imaginário; elementos
estes, que aos poços vão transpassando pela
cabeça e pelo imaginário daqueles que são
atingidos por tal chuva.
ATRAVESSA esta paisagem o meu sonho dum porto infinito
E a cor das flores é transparente de as velas de grandes
navios
Que largam do cais arrastando nas águas por sombra
Os vultos ao sol daquelas árvores antigas...

O porto que sonho é sombrio e pálido


E esta paisagem é cheia de sol deste lado...
Mas no meu espírito o sol deste dia é porto sombrio
E os navios que saem do porto são estas árvores ao sol...

Liberto em duplo, abandonei-me da paisagem abaixo...


O vulto do cais é a estrada nítida e calma
Que se levanta e se ergue como um muro,
E os navios passam por dentro dos troncos das árvores
Com uma horizontalidade vertical,
E deixam cair amarras na água pelas folhas uma a uma
dentro...
Não sei quem me sonho...
Súbito toda a água do mar do porto é transparente
e vejo no fundo, como uma estampa enorme que lá
estivesse desdobrada,
Esta paisagem toda, renque de árvore, estrada a arder em
aquele porto,
E a sombra duma nau mais antiga que o porto que passa
Entre o meu sonho do porto e o meu ver esta paisagem
E chega ao pé de mim, e entra por mim dentro,
E passa para o outro lado da minha alma...
Miradouro de Santa Luzia
• Neste poema temos a intersecção do real (o porto)
com o irreal (uma paisagem vivenciada, cheia de
árvores).
• E a nau que entra pela alma do poeta nada mais
representa do que o duplo pelo qual o eu - lírico
está passando, pela intersecção do real com o
irreal. 
• Por fim o próprio eu- lírico não sabe o que se passa
realmente ao seu redor, toda essa intersecção de
ideias parece enlouquecê-lo de tal forma que seu
pensamento se mostra repleto de contradições a
todo o momento.
A criança que fui chora na estrada.
A CRIANÇA QUE FUI CHORA NA ESTRADA
A criança que fui chora na estrada.
Deixei-a ali quando vim ser quem sou;
Mas hoje, vendo que o que sou é nada,
Quero ir buscar quem fui onde ficou.

Ah, como hei-de encontrá-lo? Quem errou


A vinda tem a regressão errada.
Já não sei de onde vim nem onde estou.
De o não saber, minha alma está parada.

Se ao menos atingir neste lugar


Um alto monte, de onde possa enfim
O que esqueci, olhando-o, relembrar,
Na ausência, ao menos, saberei de mim,

E, ao ver-me tal qual fui ao longe, achar


Em mim um pouco de quando era assim.
Fernando Pessoa in Novas Poesias Inéditas.
Os teus olhos azuis são cor do céu
E são por isso cor do paraíso.
Vejo-os e passa no coração meu
Como uma saudade o seu sorriso.

Estrelas matutinas no acordar


Do meu amor, azul do céu distante…
E eu, se os olho, fico sempre a olhar,
E a olhar esqueço minha dor constante...

Olhos azuis cuja alegria é a flor


Da minha dor tornada comoção...
Flori de aurora a minha negra dor…
Só com olhar-me abri-me o coração…

Pessoa Inédito. Fernando Pessoa. (Orientação, coordenação


e prefácio de Teresa Rita Lopes). Lisboa: Livros Horizonte,
1993. - 4.
Estátua de Fernando
Pessoa, no Chiado,
Lisboa
curiosidades
• Fernando Pessoa tinha o hábito de fazer constantes consultas
astrológicas para si mesmo (de acordo com a sua certidão de
nascimento, nasceu às 15h20; tinha ascendente Escorpião e o Sol em
Gémeos).
• Para sobreviver, o poeta trabalhava como correspondente comercial,
num sistema que hoje denominamos “free lancer”. Assim, podia
trabalhar dois dias por semana, deixando os demais apenas para
dedicar-se à sua grande paixão: a literatura.
• Cecília Meireles foi a Portugal (1934) para proferir conferências nas
Universidades de Coimbra e Lisboa. Um grande desejo seu era
conhecer o poeta de quem tinha se tornado admiradora. Através de um
dos escritórios para o qual trabalhava o poeta, conseguiu comunicar-se
com ele e marcar um encontro. Esse encontro ficou fixado para o meio-
dia, mas ela esperou inutilmente até as duas da tarde, sem que
Fernando Pessoa desse o ar de sua presença. Cansada de esperar,
Cecília voltou ao hotel e teve a surpresa de encontrar um exemplar do
livro Mensagem e um recado do misterioso poeta, justificando que não
comparecera porque consultara os astros e, segundo seu horóscopo,
“os dois não eram para se encontrar”. Realmente, não se encontraram,
nem houve mais muita oportunidade para isso, já que no ano seguinte
Fernando Pessoa faleceu.
• Fernando Pessoa media 1,73 m de altura (bilhete de identidade).
Álvaro de Campos, Pessoa e a genialidade na evolução dos seus heterônimos.
I
Quando olho para mim não me percebo.
Tenho tanto a mania de sentir
Que me extravio às vezes ao sair
Das próprias sensações que eu recebo.
O ar que respiro, este licor que bebo
Pertencem ao meu modo de existir,
E eu nunca sei como hei-de concluir
As sensações que a meu pesar concebo.
Nem nunca, propriamente, reparei
Se na verdade sinto o que sinto. Eu
Serei tal qual pareço em mim? serei
Tal qual me julgo verdadeiramente?
Mesmo ante às sensações sou um pouco ateu,
Nem sei bem se sou eu quem em mim sente.
(uns seis a sete meses antes do Opiário) Agosto 1913
1915,
“Três Sonetos” Álvaro de Campos - Livro de Versos . Fernando Pessoa.
(Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita
Lopes.)
“Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que
confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o
que sinto.”
Livro do Desassossego por Bernardo Soares.Vol.I. Fernando Pessoa.
(...) “... Transeuntes
eternos por nós mesmos,
não há paisagens senão
o que somos. Nada
possuímos, porque nem
a nós possuímos. Nada
temos por que nada
somos. Que mãos
estenderei para que
universo? O universo não
é meu: sou eu...”
Bernardo Soares - Livro
do Desassossego - Vol.
II.
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EXERCÍCIOS
01.. (PUCSP-07)
O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.
O Tejo tem grandes navios
E navega nele ainda,
Para aqueles que vêem em tudo o que lá não está,
A memória das naus.
O Tejo desce de Espanha
E o Tejo entra no mar em Portugal.
Toda a gente sabe isso.
Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
E para onde ele vai
E donde ele vem.
E por isso, porque pertence a menos gente,
É mais livre e maior o rio da minha aldeia.
Pelo Tejo vai-se para o mundo.
Para além do Tejo há a América
E a fortuna daqueles que a encontram.
Ninguém nunca pensou no que há para além
Do rio da minha aldeia.
O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.
Quem está ao pé dele está só ao pé dele.
O poema anterior, do heterônimo de Fernando Pessoa, Alberto Caeiro,
integra o livro "O Guardador de Rebanhos". Indique a alternativa que
NEGA a adequada leitura do poema em questão.
a) O elemento fundamental do poema é a busca da objetividade,
sintetizada no verso: "Quem está ao pé dele está só ao pé dele".
b) O poema propõe um contraste a partir do mesmo motivo e opõe um
sentido geral a um sentido particular.
c) O texto sugere um conceito de beleza que implica proximidade e
posse e, por isso, valoriza o que é humilde, ignorado e despretensioso.
d) O rio que provoca a real sensação de se estar à beira de um rio é o
Tejo, que guarda a "memória das naus", marca do passado grandioso
do país.
e) O poema se fundamenta numa argumentação dialética em que o
conjunto das justificativas deixa clara a posição do poeta.
02. (FAAP-96)
O autor escreveu usando, além do próprio nome, os heterônimos:
ALBERTO CAEIRO é rude, simples, humilde, expansivo, satisfeito com
o mundo, dando muito valor às coisas concretas: árvores, campos,
casas, vales. Nada tem de filósofo ou metafísico. RICARDO REIS
retoma o período greco-romano, é o poeta da temática clássica.
ÁLVARO DE CAMPOS é o poeta da temática futura, "poeta
sensacionalista e escandaloso". As poesias que aparecem com a
assinatura de Fernando Pessoa têm uma temática de dor, ceticismo,
idealismo, melancolia e tédio. Então este poema Tejo - tem a assinatura
de:
a) Alberto Caeiro
b) Ricardo Reis
c) Álvaro de Campos
d) Fernando Pessoa (ele mesmo)
e) o poema não apresenta dados para conclusão

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