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de-viajar-%C3%A9-sentir-de-%C3%A1lvaro-de-campos-1c52718bc363

Álvaro de Campos, o heterônimo mais existencialista de Fernando


Pessoa, é conhecido, sobretudo, pelos seus traços de modernismo e
futurismo e suas poesias profundamente filosóficas. Rico em
referências à cultura clássica e à tradição filosófica, faz-se necessário
analisá-lo por partes. Em seu “A final, a melhor maneira de viajar é
sentir”, temos a defesa do “sensacionismo”, uma corrente literária
modernista criada por Fernando Pessoa e seu amigo Mário de Sá-
Carneiro, que consiste na hipervalorização do sentir e no ser
enquanto união do indivíduo com o exterior. Analisaremos trechos
do poema, explicando algumas referências filosóficas e comentando
aspectos variados.

Já no começo, em que o poeta diz “Sentir tudo


excessivamente,/Porque todas as coisas são, em verdade,
excessivas”, poderíamos interpretar a partir duma perspectiva
ontológica, pois o ser excede, devido à complexidade de sua
essência, qualquer esforço da inteligência humana em compreendê-
lo. Como disse São Tomás de Aquino “nenhum filósofo jamais
conseguiu esgotar a essência sequer de uma mosca.¹ Nos versos
seguintes, em que a realidade é definida como uma alucinação e uma
violência, aquilo que se exaure com tais estímulos são, justamente,
os sentidos. “Quanto mais unificadamente diverso, dispersadamente
atento,/Estiver, sentir, viver, for,/Mais possuirei a existência total
do universo”. Ora, além da antítese – figura de linguagem bastante
comum em Álvaro de Campos –, vê-se que o poeta tem a
necessidade de ser, ele mesmo, uma conjugação do verbo ser – posto
que o ser é central na realidade das coisas, na língua portuguesa e
nas questões filosóficas.² Quanto mais ele for, diz então, mais
análogo será a Deus. Evidente, já que “Deus é o Ser divino, do qual
os entes são partícipes”.³ Sendo a alma uma escada para Deus, um
corredor que Nele termina, a imagem proposta pelo poeta fica mais
clara.

A frase “Sursum corda” será repetida muitas vezes. De início, a


proposta de que toda matéria é espírito, e que tais nomes
confundem, devido à “grande sombra que ensopa o Exterior em
sonho/E funde em Noite e Mistério o Universo Excessivo”. Para o
poeta, o simples sentir do mundo exterior deve bastar, e o ortónimo
explica, num texto chamado O sensacionismo (prolegómena).⁴ Ao
defender tal posição, ele claramente entra em choque com a tradição
filosófica, que distingue muito bem os sentidos do intelecto. Ora,
Aristóteles, em sua Metafísica, diz “[…] não encaramos quaisquer
dos sentidos como sabedoria. Embora sejam realmente nossas
principais fontes de conhecimento, não nos indicam a razão de coisa
alguma, como, por exemplo, o porquê o fogo é quente, mas somente
que é quente”.⁵ E, contrariamente aos sentidos, o intelecto atinge a
essência das coisas, “porque a consciência nos atesta que, enquanto
as faculdades sensitivas param na superfície externa dos objetos e só
percebem as qualidades sensíveis, há em nós uma energia superior
que penetra até o íntimo desses objetos, e descobre notas e
caracteres, que escapam ao alcance dos sentidos”.⁶ A energia a que
se refere o padre Thiago Sinibaldi é a inteligência, ou melhor, a
razão.
A grande questão, entretanto, é que Álvaro de Campos desdenha da
razão. Seja em “Lisbon Revisited (1923)”, quando diz “tirem-me
daqui a metafísica”, ou na “Tabacaria”, onde se lê “E gozo, num
momento sensitivo e competente,/A libertação de todas as
especulações/E a consciência de que a metafísica é uma
conseqüência de estar mal disposto”. Campos se satisfaz no sentir,
porque, por ser mais imediato, talvez, creia-o mais verdadeiro. Ou
talvez porque a reflexão e o pensamento lhe são muito penosos.
Aliás, as semelhanças entre este heterônimo e o filósofo argelino
Albert Camus são muitas. Uma delas é resumida na frase do livro O
Mito de Sísifo “começar a pensar é começar a ser atormentado”.⁷

Após isto, o poeta enobrece a Terra como “berço/Que embala a Alma


dispersa da humanidade sucessiva!”. Chama-a de “Grande bacante
ébria do Movimento e da Mudança”. Ora, “a substância sensível é
suscetível de mudança”.[8] Eis o ponto central do sansacionismo
neste poema, já que Campos identifica-se com a Terra através do
sensível. Ambos são, apenas, “um monte confuso de forças cheias de
infinito”. Claro, já que, quanto mais material/sensível, mais o ente é
potência. Por isso o poeta se vê como um hino ao planeta, um
“satélite da tua dinâmica íntima”. Ao dizer “Dentro de mim estão
presos e atados ao chão/Todos os movimentos que compõem o
universo,/A fúria minuciosa e dos átomos,/A fúria de todas as
chamas, a raiva de todos os ventos,/A espuma furiosa de todos os
rios, que se precipitam”, nota-se, mais uma vez, a identificação com
a natureza, que é, quase totalmente, um constante mudar-se para o
mesmo, uma harmonia entre elementos muito distintos, como a
água e o fogo, que se chocam para renovar. Por isso o verso “Sou um
formidável dinamismo obrigado ao equilíbrio”. Ser tudo isso. Ser
exaustivamente. Confundir-se com o universo e com a vida. Este é o
fim, é sobreviver em si e “em todas as direções”.

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