“Só se vê bem com o coração. O essencial é invisível para os olhos.”
SAINT-EXUPÉRY
O aparecimento, nos últimos anos, de uma série de obras literárias que
fazem apelo a uma compreensão por empatia ou sentimento análogo, mais do que a um exame crítico meramente racional ou intelectual, levanta uma série de interrogações e alguma perplexidade bem expressa na conhecida frase de Saint- Exupéry, ele próprio um precursor deste género literário. Alguns exemplos recentes de escritores cujo sucesso ultrapassou as barreiras linguísticas e culturais, extravasando do seu país para o mundo, são o brasileiro Paulo Coelho ou a italiana Susanna Tamaro, em cujas obras a identificação da(s) experiência(s) do leitor com a(s) do autor – correspondendo à feliz definição de “ler é viajar na alma de alguém” – é muito forte e essencial para a sua plena compreensão. Mas por que razão são estes livros melhor compreendidos com o “coração” do que com a “mente” ou o “raciocínio”? Em primeiro lugar, devemos clarificar o que é que se entende por “coração”. O dicionário define “coração”, em sentido figurado, como “sensibilidade moral; consciência; coragem; ânimo; valor; amor; piedade; parte mais central”. Nesta acepção, poderia igualmente considerar-se que o coração corresponde à definição clássica da alma, no sentido, também figurado, de “fundamento; entusiasmo; coragem; sentimento muito íntimo; generosidade; alento”. Assim, ver bem com o coração equivaleria a ver bem com a consciência ou a sensibilidade ou o mais íntimo do nosso ser. A este respeito, e uma vez que parte da inspiração dos autores referidos bebe nas referências místicas do oriente, citamos esta maravilhosa passagem dos Upanishades hindus: “Que é a alma? É a consciência da vida. É a luz do coração. O pequeno espaço no interior do coração é tão grande como este vasto universo. Lá estão os céus, e a Terra, e o Sol, e a Lua, e as estrelas; o fogo, e o relâmpago, e os ventos estão lá; e mais tudo o que agora é e tudo o que não é: pois o universo inteiro está n’Ele, e Ele habita dentro do nosso coração.” É a este “coração” sublime, que os Upanishades identificam com a “consciência da vida”, que se dirigem obras como O Alquimista ou A Alma do Mundo ou ainda o precursor Fernão Capelo Gaivota. E a mensagem subliminar nelas contida só pode ser plenamente apercebida por quem conhece ou, pelo menos, anseia conhecer, esse “pequeno escrínio em forma de flor de lótus” onde se oculta a mais preciosa jóia do nosso verdadeiro Ser. Assim, a compreensão deste tipo de literatura é indissociável da profundidade ou intensidade da experiência pessoal de cada um, no que respeita ao seu próprio “coração”, “alma” ou “consciência”, ou seja, da descoberta de si próprio. A frequente e vulgar associação do vocábulo “coração” a “sentimento” é incompleta e redutora. “Coração”, no sentido que Saint-Exupéry lhe atribui, tem muito mais a ver com “consciência de si” e, na frase em questão, com a visão interior da alma. Esta consciência de si ultrapassa as possibilidades racionais da mente, porque entra num campo muito para além do raciocínio ou do discurso. É por isso que o sentimento, isto é, “a intuição mais ou menos confusa que não sabemos justificar racionalmente”, que este tipo de leitura pode despertar entra facilmente em contradição com a percepção normal da nossa comezinha rotina diária. Daí, a necessidade que muitos sentem de “racionalizar” esta experiência perturbadora que põe em causa o ramerrão cultural ou ideológico em que os seus conceitos da vida e do mundo assentam. A verdadeira mensagem está muitas vezes mais nas entrelinhas do que no texto literário em si, mas só pode ser plenamente compreendida por quem tem essa empatia a que Goethe se refere quando compara os livros às relações interpessoais, confessando que “sentimos um enorme prazer se nos achamos concordantes com o outro em coisas de ordem geral, ou se nos sentimos tocados num dos pontos sensíveis da nossa experiência.” E é este o busílis da questão: experiência, vivência prática e concreta. O curioso e interessante, é que a experiência da transcendência pode mesmo dar-se “ao rés das coisas”, no simples dia-a-dia, porque ela provém de um foco de consciência interior, o famoso “centro da alma humana” assim tão belamente descrito na poética linguagem dos Upanishades: “No centro do castelo de Brahman, o nosso próprio corpo, há um pequeno escrínio em forma de flor de lótus, e dentro pode encontrar-se um pequeno espaço. Deveríamos descobrir quem aí habita, e deveríamos querer conhecê-Lo.” É óbvio que também eu adopto o ponto de vista de Susanna Tamaro ao interrogar-se sobre o ostracismo a que parece votado o coração: “A mente é moderna, o coração é antigo. Por isso se pensa que aqueles que dão importância ao coração estão próximos do mundo animal, do incontrolado, e que aqueles que dão importância à razão se dedicam às reflexões mais elevadas. E se as coisas não fossem assim, se fosse exactamente o contrário? Se fosse esse excesso de razão que subalimenta a vida?” Mas é claro que é inútil teorizar ou entrar em polémicas a este respeito. Parafraseando o anúncio, “uns têm e outros não têm...” a experiência directa, real e concreta dessa íntima transcendência. Simplesmente apelidar esta vivência de “mitologia pessoal, feita das fantasias e dos feitos extraordinários sonhados em privado pelo leitor”, como fazem alguns, é ignorar que estamos no plano de uma realidade que, pelo mero facto de não ser exteriormente palpável (é-o nas suas consequências!), não deixa de ser ainda mais real do que a rotineira vida diária de cada um de nós. É, contudo, altamente desejável que “a leitura destes romances abra o espírito para outros voos”, porque nenhum livro, por muito maravilhoso que seja, jamais poderá substituir a experiência pessoal de quem possa ser tocado pela sua leitura. Só que esses voos não são intelectuais, mas têm a mesma génese da ânsia de divina perfeição que levou Fernão Capelo a abandonar o seu bando, ou o pequeno pastor a demandar as Pirâmides em busca do tesouro oculto na sua própria morada. A literatura de Bach, Coelho, Tamaro e tantos outros, tem mais uma função de despertar ou confirmar do que de pacificar ou narcotizar. Eles avivam a fome e a sede de uma revivência muito concreta, simples e prática. Claro que nem todos, apenas uma minoria provavelmente, terão a motivação e a coragem para ouvirem – mais do que a voz – o grito, o apelo, o pedido urgente do coração, e muito menos deixar-se levar por ele. Mas, os que o realizam, compreendem e sabem que é apenas isso que têm de fazer. Porque é esse Coração Universal – e é Ele unicamente – que conhece a secreta maravilha que nós somos e deseja desvendar todo o potencial divino que, como Ser Humano, cada indivíduo à face desta Terra possui, pelo mero facto de existir e estar vivo.
Rui Vaz da Fonseca, in “Correio da Feira” (02-04-1999)