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Colégio Internato dos Carvalhos ANO LETIVO: 2019/2020

“Uma Escola de Futuro com Valor(es)”

ANÁLISE DO POEMA ODE TRIUNFAL DE ÁLVARO DE CAMPOS

IMPORTÂNCIA DO TÍTULO
A palavra ode, de origem grega, significa cântico laudatório ou de exaltação de uma
pessoa, instituição ou acontecimento. Com o epíteto de Triunfal, pretendeu o poeta não
só vincar, mas também hiperbolizar o significado de ode, apontando para qualquer coisa
de grandioso, não apenas no conteúdo, mas também na forma, imprimindo-lhe uma
sugestão de força ou exagero, em nítida coerência com a estética do Futurismo /
Sensacionismo. Desta forma, todo o elogio da obra incide sobre a Era Moderna e
Industrial.

ASSUNTO
Sob influência de Marinetti e Walt Whitman, a Ode Triunfal canta o triunfo da técnica,
as máquinas, os motores, a velocidade, a civilização mecânica e industrial, o comércio,
os escândalos da contemporaneidade... Sentir tudo de todas as maneiras é o ideal
esfuziantemente revelado pelo sujeito poético, sentir tudo numa histeria de sensações,
que lhe permitam identificar-se com as coisas mais aberrantes («Ah, poder exprimir-me
todo como um motor se exprime!/ Ser completo como uma máquina!»). 

DESENVOLVIMENTO DO ASSUNTO

Relativamente à estrutura interna, uma possibilidade consiste em dividir o poema em


três partes / momentos:

 Introdução (1.ª estrofe):
Localização do sujeito poético: engenheiro situado no interior de uma fábrica;
Atividade a que se dedica: escrita,  a partir da contemplação do que o rodeia ("Tenho
febre e escrevo") - v. 2;
Logo, pode afirmar-se que o estado de espírito do sujeito poético é de dor, violência e
febre, causadas por sensações contraditórias: a beleza do que o rodeia é dolorosa, isto é,
causa-lhe dor, deixa-o doente.
De seguida, surge um novo conceito de estética: novo conceito de beleza, "totalmente
desconhecida dos antigos" (v. 4).

 Desenvolvimento (2.ª - penúltima estrofe):

Associação da voz lírica do sujeito às máquinas que canta (est. 2 a 4);


Explanação entusiástica de múltiplas imagens de vida urbana e moderna (est. 5 a 12);
Erotização da relação física do «eu» com a trepidante vida das cidades (est. 13 a 15);

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Apoteose final (penúltima estrofe).

 Conclusão (último verso):

A busca desenfreada de sensações e de identificação com «tudo e todos»;


A confissão de um aparente fracasso ("Ah não ser eu..." - cf. advérbio de negação);
Tom de ambiguidade e nostalgia ("Ah").

A exaltação da civilização moderna


 

O poema começa com uma estranha iluminação de lâmpadas eléctricas. Despertando em


sobressalto e em sonhos febris, o sujeito poético reconhece-se transportado para o meio
de uma fábrica em actividade. O homem adoentado, enfraquecido pela febre, exposto a
estes barulhos, é subitamente arrebatado pelas oscilações dos motores e a sua cabeça
abrasada começa a vibrar também. Diante dos seus olhos acumula-se uma
multiplicidade de impressões e todos os seus sentidos estão despertos: «Tenho os lábios
secos, ó grandes ruídos modernos, / De vos ouvir demasiadamente perto, / E arde-me a
cabeça de vos querer cantar com um excesso / De expressão de todas as minhas
sensações...».

A fábrica aparece então como motivo inspirador para a homenagem a esta civilização
moderna, que submerge o eu poético, nevrótico e fragilizado («tenho febre»; «fúria fora
e dentro de mim», «meus nervos», «arde-me a cabeça»). É este universo de «lâmpadas
eléctricas», «rodas», «engrenagens», «máquinas», «correias de transmissão»,
«êmbolos» e «volantes» que o faz sentir-se simultaneamente incomodado e atraído pela
ruidosa dinâmica dos «maquinismos em fúria».

 
A vertigem das sensações
 

Estabelecendo com esta «flora estupenda, negra, artificial e insaciável» uma ligação
eufórica e exaltada, o sujeito poético deixa-se seduzir vertiginosamente por um excesso
de sensações que mal tem tempo de fixar na sua «mente turbulenta e encandescida».
Sente-se arrebatado por um universo, onde a velocidade, a força e o progresso têm
expressão e, por isso, confessa: «Nem sei se existo para dentro. Giro, rodeio, engenho-
me. / Eia! sou o calor mecânico e a electricidade!». A violência de sensações fá-lo
desejar «ser toda a gente e toda a parte» e limitar a si próprio e ao gozo do instante
qualquer noção de temporalidade («O Momento estridentemente ruidoso e
mecânico....»).

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A temporalidade unificada
 

O fulcro do tempo é, assim, o presente, o instante em que o sujeito poético se mostra


permeável a todos os estímulos da civilização mecânica e industrial, porque o presente é
uma síntese do passado e do futuro («Porque o presente é todo o passado e todo o
futuro...»; «Eia todo o passado dentro do presente! / Eia todo o futuro já dentro de
nós!»).

 
A atração erótica pelas máquinas
 

Esta visão excessiva e intensa do real provoca no sujeito poético um estado de quase
alucinação, marcadamente sensual: «Fazendo-me um excesso de carícias ao corpo numa
só carícia à alma.»; «Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto,/ Rasgar-me
todo, abrir-me completamente...»; «Amo-vos carnivoramente,/
Pervertidamente...»; «Possuo-vos como a uma mulher bela...». Esta paixão quase erótica
pelas máquinas e este entusiasmo pela civilização moderna assume aspectos de um certo
masoquismo sádico, que inspira no sujeito poético sensações novas e violentas,
experimentadas até ao histerismo: «Atirem-me para dentro das fornalhas! / Metam-me
debaixo dos comboios! / Espanquem-me a bordo de navios! / Masoquismo através de
maquinismos!». Logo, não é estranha, por isso, não só a tendência do sujeito poético
para humanizar as máquinas («Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!»;
«Grandes trópicos humanos de ferro e fogo e força...»), como também a tentativa de ele
próprio se materializar, ou tornar-se parte delas: «Ah, poder exprimir-me todo como um
motor se exprime! / Ser completo como uma máquina!»; «Rugindo, rangendo, ciciando,
estrugindo, ferreando...».

 
A denúncia social
 

Em relação a este tópico, convém registar ainda que a força e a agressividade do sujeito
poético são permanentemente quebradas pela evocação irónica do reverso da medalha
da civilização industrial: a desumanização («Progressos dos armamentos gloriosamente
mortíferos!»; «...injustiças, violências...»), a hipocrisia e a futilidade («...ó grandes,
banais, úteis, inúteis, / Ó coisas todas modernas...»), a corrupção, os escândalos
políticos e financeiros («Orçamentos falsificados!»; «Deliciosos escândalos financeiros
e diplomáticos...»), os falhanços da técnica («Eh-lá grandes desastres de comboios! /
Eh-lá desabamentos de galerias de minas!»), a miséria e a devassidão das multidões
(«Maravilhosa gente humana que vive como cães, / Que está abaixo de todos os
sistemas morais...»).

Para além disso, a aguda sensibilidade do sujeito poético revelada na denúncia do lado
negativo e desumano da civilização moderna é uma atitude literária, em que a perfeição
e a força das máquinas parecem ser, afinal, compensações para os seus próprios

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fracassos e para a sua inadaptação, que irão marcar a última fase poética de Álvaro de
Campos.

Recursos expressivos

O estilo vagabundo, paradoxal e vertiginoso deste heterónimo traduz a expressão


desmedida de sensações desmedidas. À convulsa avalanche do pensamento
sensacionista, corresponde a vertigem de um estilo caudaloso, torrencial e
aparentemente caótico. O poema constitui, por isso, uma ruptura com a lírica
tradicional, como o confirmam os seguintes aspectos:
 a irregularidade estrófica, métrica e rimática, que resulta num ritmo irregular e
nervoso;
 a presença de alguns desvios sintácticos («..fera para a beleza disto...»; «Por
todos os meus nervos dissecados fora...»);
 a frequência das expressões exclamativas que sublinham a emoção do sujeito
perante os fenómenos da vida moderna;
 as repetições, as enumerações e as onomatopeias que constituem um processo
retórico aparentemente caótico que se destina a esgotar a expressão, num estilo
torrencial, em catadupa;
 o recurso a palavras desprovidas de carga poética e de índole técnica;
 
As metáforas e as imagens deste texto evidenciam a íntima relação do sujeito poético
com o mundo mecânico e industrial, permitindo até a sua plena integração na
civilização moderna («E arde-me a cabeça...»; «...Natureza tropical...»;
«Pervertidamente enroscando a minha vista...»; «Grandes trópicos humanos de ferro e
fogo e força...»; «E há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes eléctricas...»);

As enumerações traduzem o frenético desejo do sujeito poético de sentir tudo de todas


as maneiras, registando de forma aparentemente caótica as sensações que experimenta
(«Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável!»; «Eh, cimento armado, betão de
cimento, novos processos!»).

As anáforas expressam a sucessão caótica dos fenómenos da civilização industrial,


permitindo ao sujeito poético acompanhar o seu ritmo alucinante e vigoroso («Por todos
os meus nervos (...) Por todas as papilas...»; «Poder ir na vida triunfante (...) Poder ao
menos penetrar-me...»; «Ó coisas todas modernas, / Ó minhas contemporâneas...» );

Os neologismos («parte-agente»; «quase-silêncio») e os estrangeirismos («music-halls»;


«Luna-Parks»; «rails») traduzem a ligação do sujeito poético às inovações da
modernidade e à universalidade do progresso técnico, assim como o vocabulário de
carácter técnico («motores»; «fornalhas»; «guindastes»; «êmbolos»);

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A adjectivação traduz o excesso de sensações que dominam o sujeito perante a


modernidade («flora estupenda, negra, artificial e insaciável»; «promíscua fúria»;
«rodar férreo e cosmopolita»; «giro lúbrico e lento»; «quase-silêncio ciciante e
monótono»);

Os advérbios de modo evidenciam a atracção erótica e carnal do sujeito pelas máquinas


e pela modernidade («demasiadamente»; «carnivoramente»; «pervertidamente»);

As interjeições confirmam o louvor do sujeito poético à civilização mecânica e a sua


contínua agitação («Ó fábricas, ó laboratórios...»; «Eh-lá hô fachadas das grandes
lojas!»; «Eia túneis...»; «Ah, poder exprimir-me...);

As onomatopeias sugerem a tentativa do sujeito poético de imitar os sons ruidosos das


máquinas, exprimindo assim o barulho e a velocidade estonteantes da vida moderna («r-
r-rr»; «Hup-lá, hup-lá, hup-lá-hô»; «z-z-z-z-z-z-z»);

As apóstrofes confirmam o estilo laudatório do poema e a exaltação da civilização


industrial («Ó rodas, ó engrenagens...»; «Ó fazendas nas montras! Ó manequins!»), tal
como as exclamações («Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!; «Ser
completo como uma máquina!»).

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