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LISBOA
tinta ‑da ‑china
mmxviii
índice
© 2018, Jerónimo Pizarro
e Edições Tinta‑da‑china Nota prévia 7
1. Pluralidade 9
Edições Tinta‑da‑china
Rua Francisco Ferrer, n.º 6‑A 2. Unidade 27
1500‑461 Lisboa
3. Interpretação 47
Tels.: 21 726 90 28/29
E‑mail: info@tintadachina.pt 4. Heteronimismo 63
www.tintadachina.pt
5. Alberto Caeiro 85
Título: Ler Pessoa 6. Álvaro de Campos 105
Autor: Jerónimo Pizarro
Coordenador da colecção: Jerónimo Pizarro
7. Ricardo Reis 125
Revisão: Rita Almeida Simões 8. Livro do Desassossego 141
Composição: Tinta‑da‑china (Pedro Serpa)
Capa: Tinta‑da‑china (Vera Tavares)
Bibliograia 161
1.ª edição: Maio de 2018
isbn 978‑989‑671‑438‑3
Nota biográica 175
depósito legal n.º 440392/18
no t a pr é v i a
p lu ralidade
outros. Também terei de referir a equipa toda da Tinta‑da‑ vel, em grande medida, pela atracção que desde há décadas vem
‑china e tantos amigos. Este livro ica mais do que dedicado, in desencadeando a obra pessoana, como se de um abismo se tra‑
memoriam, a uma amiga: Nandia Vlanchou. tasse, como se, por meio dela, assomássemos ao abismo do ser.
«Que Deus atrás de Deus o ardil começa»1, pergunta Jorge Luis
Borges, sugerindo a ausência de um deus original responsável
pela criação. E Pessoa, que poderia ter sido essa instância gera‑
dora no caso das suas criações, parece responder a Borges, air‑
mando que «o deus que faltava» não foi ele, mas Alberto Caeiro,
por ele próprio concebido2. Ora, se Caeiro, que foi inventado,
é o «Deus atrás de Deus», Pessoa, seu inventor, passa a ser uma
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Deste modo, aquilo a que me proponho é analisar três leitu‑ uma delas se airmou como um marco crítico no seu momento
ras possíveis da obra em questão, três formas críticas de a abor‑ histórico. Hoje, é justo recordá‑las e propor um esquema de lei‑
dar que, a meu ver, vão continuar a traçar os caminhos pelos tura com base nos seus pressupostos, que poderia até ser muito
quais os leitores chegam a essa obra. Evocando Pirandello, diria mais complexo, mas que, para os objectivos deste ensaio, não é
que Pessoa pode ser visto como um, nenhum ou cem mil5. Quem absolutamente necessário que o seja. Ao im e ao cabo, o ponto
tem construído um Pessoa mais indiviso? Quem tem militado de partida está constituído por três vectores — um, nenhum
a favor de um mais vazio? E quem defende um poeta mais e cem mil —, que deinem um conjunto de coordenadas bas‑
tante amplo. Já Antonio Tabucchi, por exemplo, referindo‑se
3 Cf. «Em torno do meu mestre Caeiro havia, como se terá deprehendido d’estas paginas, a Pessoa, costumava falar, como tantos outros críticos, através
principalmente trez pessoas – o Ricardo Reis, o Antonio Mora e eu [Álvaro de Campos]. […] de oximoros: Una sola multitudine (1979) ou Un baule pieno di
E todos nós trez devemos o melhor da alma que hoje temos ao nosso contacto com o meu
mestre Caeiro. Todos nós somos outros – isto é, somos nós mesmos a valer – desde que fomos gente (1990).
passados pelo passador d’aquella intervenção carnal dos Deuses» (Pessoa, 2012b, p. 101;
2014c, pp. 459‑460).
Comecemos por analisar o livro de Jacinto do Prado Coelho,
4 «A dentro do meu mester, que é o litterario, sou um proissional, no sentido superior que que inicialmente foi publicado sob a forma de um suplemento da
o termo tem; isto é, sou um trabalhador scientiico, que a si não permitte que tenha opiniões
extranhas á especialização litteraria, a que se entrega. E o ter nem esta, nem aquella, opinião revista Ocidente, em 1949, e que, todavia, em princípios da década
philosophica a proposito da confecção d’estas pessoas‑livros, tampouco deve induzir a crer de 1980, foi ainda considerado por Leyla Perrone‑Moisés como
que sou um sceptico» (Pessoa, 2010, tomo 1, p. 447).
5 Recordemos uma das suas novelas mais famosas: Uno, nessuno e centomila (1926). «a melhor introdução à leitura de Pessoa» (1982, p. 6).
Em Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa, escrito entre verídicas algumas airmações de Pessoa, o «insincero verídico»
1947 e 1949, Prado Coelho traça um retrato das seis individua‑ (Monteiro, 1954), em que o escritor procurou distinguir de si
lidades poéticas de Fernando Pessoa (Alberto Caeiro, Ricardo mesmo as suas iguras sonhadas. Enquanto Leyla Perrone‑
Reis, Fernando Pessoa lírico, Fernando Pessoa autor de Mensa‑ ‑Moisés, como veremos, se deixou levar pela corrente de algu‑
gem, Álvaro de Campos e Bernardo Soares), propõe cinco temas mas imagens pessoanas que iam ao encontro das investigações
ou motivos centrais a essas seis individualidades e procura sobre o sujeito poético na década de 1970, Prado Coelho resis‑
«surpreender a unidade essencial implícita na diversidade das tia a aceitar a icção das icções pessoanas e, ainda que Pessoa
obras ortónimas e heterónimas» ([1949] 1991, p. 11), tendo em tenha dito que era o menos existente da sua criação, o crítico
conta, fundamentalmente, questões estilísticas e a existência aferrava‑se ao porto seguro ou à terra irme de «uma unidade
de um drama total, caracterizado pelo desejo de absoluto e o psíquica básica» ([1949] 1991, p. 73), à qualidade misteriosa de
cepticismo inexorável que, a seu ver, convergem em Fernando um mundo único e original, próprio do génio, e aos «rasgos lin‑
Pessoa. Prado Coelho imagina um eixo e descreve cada indi‑ guísticos comuns» ([1949] 1991, p. 152) da obra pessoana, que,
vidualidade como uma linha axial, que, temática e estilistica‑ inclusive, foram corroborados num ensaio de estilística lexical,
12 mente, estaria unida a esse eixo. O Pessoa de Prado Coelho é um em 1969, através de uma análise computacional. 13
Pessoa radiante, pleno, luminoso como um corpo celeste. Não é Confesso que compreendo bem a atitude de Jacinto do Prado
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um astro entre astros, nem um planeta isolado, mas o próprio Coelho, ainda que a considere excessiva. Por vezes, parece‑nos
sol de um determinado universo; daí que o crítico português que Fernando Pessoa é algo volátil, ou algo que muitos críticos
possa corroborar, em modo de conclusão, «a existência de uma volatizam, e é como se tudo o que é sólido se dissolvesse no ar,
personalidade única, verdadeiramente inconfundível» ([1949] para glosar Marshall Berman (1982). Pessoa deixa de ser Pes‑
1991, p. 12), e tornar patente a sua genialidade.6 soa, alguém que existiu — vou abster‑me de dizer «realmente
Prado Coelho pretendeu, em suma, «descobrir a unidade existiu» — entre 1888 e 1935, e converte‑se numa miríade de
psíquica na polimoria» ([1949] 1991, p. 73), insistiu, num acto iguras, numa grande encenação e no nome de uma nova galá‑
de fé, na existência de «um núcleo de personalidade una», «um xia. Como poeta proteico ou possuído, Pessoa deixa de ser o
denominador estilístico insoismável» ([1949] 1991, p. 122), paciente artesão de uma obra, para dar lugar ao medium de igu‑
opondo‑se às invectivas de Campos contra o dogma da persona‑ ras não por inteiro suas, que o usavam como via de acesso ao
lidade em Ultimatum (1917) e, inalmente, não aceitando como mundo. Prado Coelho, com alguma irritação (cf. «Pessoa teria
gerado Campos como as fêmeas dão à luz os ilhos», [1949]
1991, p. 159), insiste numa visão diferente da poesia e do poeta,
6 É interessante notar que Prado Coelho desdobrou Pessoa em Fernando Pessoa lírico e
Fernando Pessoa autor de Mensagem, o que nos permite suspeitar que poderia tê‑lo desdo‑ não como inspiração e arrebatamento de um ser excepcional,
brado também, para lá da lírica e da épica, em Fernando Pessoa autor de Fausto, por exemplo, de origem platónica, mas como artíice de um ser uno e único.
se o Fausto tivesse sido publicado antes de 1949. Veja‑se a edição do Fausto preparada por
Carlos Pittella (Pessoa, 2018). Proteger Pessoa da desagregação foi a fórmula de Prado Coelho
para amuralhar o génio pessoano, génio mais pela sua unidade
do que pela sua capacidade de despersonalização, considerando
o crítico que esta seria «muito relativa» ([1949] 1991, p. 165).
Como airmei, compreendo a postura de Prado Coelho, apesar
de esta raiar, por vezes, o essencialismo (cf. «ainidades que dei‑
xam adivinhar uma unidade essencial», [1949] 1991, p. 165) e
já albergar a sua antítese, que, de certa forma, foi proposta mais
por quem defendeu um Pessoa nulo do que pelos partidários
do poeta múltiplo. Passemos ao segundo livro, aquele de 1982.
(Parêntesis: pensemos no chamado disco de Newton, que
descobriu que a luz branca do Sol é composta pelas cores do arco‑
‑íris e, para demonstrá‑lo, fez girar velozmente um disco com
essas cores, que, passados uns segundos, formaram, juntas, a cor fig. 1. dispersão óptica (ou cromática); esta imagem foi a capa do álbum
the dark side of the moon (1973), dos pink floyd.
14 branca. Enquanto a cor negra é a ausência de todas as cores quando 15
não há luz, o branco contém todas as cores que conseguimos ver,
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pois é constituído por todos os comprimentos de onda do espec‑ de «La mort de Pessoa» — e o seu livro é, paradoxalmente, uma
tro visível. Uma dupla possibilidade: podemos ver Pessoa dividido das melhores introduções ao Livro do Desassossego, ainda que
em muitas cores ou indivisamente branco, dependendo se o disco a autora conhecesse apenas alguns dos fragmentos dessa obra
está ixo ou em rotação. Mas trata‑se de uma ilusão. Outra possi‑ (como o texto que propõe uma estética da abdicação, por exem‑
bilidade: podemos imaginar Pessoa como um prisma que refracta, plo, e faz parte das Páginas Íntimas e de Auto‑Interpretação, 1966,
relecte e decompõe a luz nas cores do arco‑íris. Mas, nesse caso, p. 63). Interessa salientar que tudo teve origem entre 1973 e
ele seria não a fonte de luz, mas um meio transparente.) 1974, quando Perrone‑Moisés, obcecada pelas suas leituras da
Leyla Perrone‑Moisés, que foi aluna de Roland Barthes e obra pessoana e jogando com a negação que resulta do vocábulo
que se tornou, com o tempo, coordenadora da colecção «Roland francês «personne», lançou uma provocação na revista dirigida
Barthes» da editora brasileira WMF Martins Fontes, publicou por Philippe Sollers: «Pessoa é ninguém» (1982, p. 3), com e
em 1974 um ensaio na revista Tel Quel, «Pessoa Personne?», sem ponto de interrogação, num gesto desaiador, que se repe‑
ensaio que serviria de base ao seu livro Fernando Pessoa, Aquém do tiria na bibliograia pessoana, no ano de 2012: Pessoa Existe?
Eu, Além do Outro (1982), publicado no mesmo ano da primeira (Lisboa, Ática).
edição do Livro do Desassossego (1982). O seu ensaio pode ser O objectivo de Leyla Perrone‑Moisés era «estudar porque e
considerado como equivalente a «La mort de l’auteur» (1968), como Pessoa é um ninguém; mas, principalmente, mostrar como
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ISBN 978-989-671-438-3