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Sagarana
3. O AUTOR.................................................................................................. 12
4. A OBRA..................................................................................................... 14
5. Exercícios............................................................................................ 28
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João Guimarães Rosa
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João Guimarães Rosa
3. O AUTOR
Bibliografia
1939 – Magma, poemas
1946 – Sagarana, contos e novelas regionalistas
1947 – Com o vaqueiro Mariano
1956 – Corpo de baile, novelas (publicado em três volumes: Manuelzão e Miguilim,
No Urubuquaquá no Pinhém e Noites do sertão)
1956 – Grande sertão: veredas, romance
1962 – Primeiras estórias, contos
1967 – Tutameia: terceiras estórias, contos
1969 – Estas estórias, contos – obra póstuma
1970 – Ave, palavra, diversos – obra póstuma
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João Guimarães Rosa
4. A OBRA
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1. O BURRINHO PEDRÊS
Era um burrinho pedrês, miúdo e resignado, vindo de Passa-Tempo, Conceição
do Serro, ou não sei onde no sertão. Chamava-se Sete-de-Ouros, e já fora tão bom, como
outro não existiu e nem pode haver igual.
Agora, porém, estava idoso, muito idoso. Tanto, que nem seria preciso abaixar-lhe
a maxila teimosa, para espiar os cantos dos dentes. Era decrépito mesmo à distância:
no algodão bruto do pelo – sementinhas escuras em rama rala e encardida; nos olhos
remelentos, cor de bismuto, com pálpebras rosadas, quase sempre oclusas, em constante
semissono; e na linha, fatigada e respeitável – uma horizontal perfeita, do começo da testa
à raiz da cauda em pêndulo amplo, para cá, para lá, tangendo as moscas.
Em virtude da fuga de algumas montarias na noite anterior, o burrinho
Sete-de-Ouros (velho e cansado) é escolhido para ajudar no transporte da boiada,
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3. SARAPALHA
A narrativa de “Sarapalha” se desenvolve em um povoado, tomado pela
maleita (sezão), às margens do rio Pará. Como consequência, uma parte das
pessoas morreu e a outra abandonou o lugar: “os primeiros para o cemitério, os
outros por aí afora, por este mundão de Deus”.
Numa fazenda em ruínas e deserta, ficaram dois caboclos (primo Argemiro
e primo Ribeiro), uma velha negra chamada Ceição e um cachorro (Jiló).
É aqui, perto do vau da Sarapalha: tem uma fazenda, denegrida e desmantelada;
uma cerca de pedra-seca, do tempo de escravos; um rego murcho, um moinho parado;
um cedro alto, na frente da casa; e, lá dentro, uma negra, já velha, que capina e cozinha o
feijão. Tudo é mato, crescendo sem regra; mas, em volta da enorme morada, pés de milho
levantam espigas, no chiqueiro, no curral e no eirado, como se a roça se tivesse encolhido,
para ficar mais ao alcance da mão.
E tem também dois homens sentados, juntinhos, num casco de cocho emborcado,
cabisbaixos, quentando-se ao sol.
(...) O sol cresce, amadurece. Mas eles estão esperando é a febre, mais o tremor.
Primo Ribeiro parece um defunto – sarro de amarelo na cara chupada, olhos sujos,
desbrilhados, e as mãos pendulando, compondo o equilíbrio, sempre a escorar dos lados
a bambeza do corpo. Mãos moles, sem firmeza, que deixam cair tudo quanto ele queira
pegar. Baba, baba, cospe, cospe, fincando o queixo no peito; e trouxe cá para fora a
caixinha de remédio, a cornicha de pó e mais o cobertor.
– O seu inchou mais, Primo Argemiro?
– Olha aqui como é que está... E o seu, Primo?
– Hoje está mais alto.
– Inda dói muito?
– Melhorou.
É da passarinha. No vão esquerdo, abaixo das costelas, os baços jamais cessam
de aumentar. E todos os dias eles verificam qual foi o que passou à frente.
À espera do avanço da doença em si mesmo, primo Ribeiro conta sua triste
e trágica história ao primo Argemiro: sua esposa (que era sua prima Luísa) fugira
com um boiadeiro, abandonando-o.
Argemiro, que amava a mulher do primo, revela seu sentimento e o desejo
de ter fugido com ela. Ribeiro expulsa-o dali e Argemiro sai perambulando à
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4. O DUELO
Turíbio Todo descobre que sua mulher o traía com o ex-militar Cassiano
Gomes. A infidelidade amorosa motivou o duelo (que não houve) entre o marido
enganado e o ex-militar.
Mas, por essa altura, Turíbio Todo teria direito de queixar-se tão-só da sua falta de
saber-viver; porque avisara à mulher que não viria dormir em casa, tencionando chegar até
ao pesqueiro das Quatorze-Cruzes e pernoitar em casa do primo Lucrécio, no Dêcámão.
Mudara de ideia, sem contra-aviso à esposa; bem feito!: veio encontrá-la em pleno (com
perdão da palavra, mas é verídica a narrativa) em pleno adultério, no mais doce, dado e
descuidoso, dos idílios fraudulentos.
Felizmente que os culpados não o pressentiram. Turíbio Todo costumava chegar
com um mínimo de turbulência; ouviu vozes e espiou por uma fisga da porta; a luz da
lamparina, lá dentro, o ajudando, viu. Mas não fez nada. E não fez, porque o outro, era o
Cassiano Gomes, ex-anspeçada do 1º pelotão da 2ª companhia do 5º Batalhão de Infantaria
da Força Pública, onde as gentes aprendiam a manejar, por música, o ZB tchecoslovaco e
até as metralhadoras pesadas Hotchkiss; e era, portanto, muito homem para lhe acertar um
balaço na testa, mesmo estando assim em sumaríssima indumentária e fosse a distância
para duzentos metros, com o alvo mal iluminado e em movimento.
Turíbio Todo vinga-se de sua humilhação, metendo uma bala na nuca de
seu desonrador. No entanto, a vítima da emboscada é o irmão (Levindo Gomes)
de Cassiano Gomes. Inicia-se, então, uma longa peleja: Turíbio fugindo e Cas-
siano perseguindo-o.
Passam-se meses. Turíbio vai para São Paulo e Cassiano retorna para sua
casa (Vista Alegre) e para a mulher do perseguido para descansar.
Recomeça uma nova perseguição e o ex-militar (adoentado do coração)
acaba por falecer em um povoado, onde, à beira da morte, contrata os serviços
de um caboclo (Timpim Vinte-e-Um) para dar fim à vida de Turíbio Todo.
Turíbio, sabendo da morte de Cassiano, retorna para o arraial acompa-
nhado pelo franzino Timpim Vinte-e-Um, que o liquida com uma garrucha de
dois canos.
5. MINHA GENTE
O conto “Minha Gente” é narrado em primeira pessoa.
O protagonista-narrador relata a temporada que vai passar na fazenda
(Saco-do-Sumidouro – interior de Minas) de seu tio Emílio.
Quando vim, nessa viagem, ficar uns tempos na fazenda do meu tio Emílio,
não era a primeira vez. Já sabia que das moitas de beira de estrada trafegam para a
roupa da gente umas bolas de centenas de carrapatinhos, de dispersão rápida, picadas
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milmalditas e difícil catação; que a fruta mal madura da cagaiteira, comida com sol
quente, tonteia como cachaça; que não valia a pena pedir e nem querer tomar beijos
às primas; que uma cilha bem apertada poupa dissabor na caminhada; que parar à
sombra da aroeirinha é ficar com o corpo empipocado de coceira vermelha; que, quan-
do um cavalo começa a parecer mais comprido, é que o arreio está saindo para trás,
com o respectivo cavaleiro; e, assim, longe outras coisas. Mas muitas mais outras eu
ainda tinha que aprender.
Ao desembarcar do trem, o narrador é esperado por Santana (inspetor es-
colar) e por José Malvino (roceiro da fazenda), que o acompanham até a fazenda
de seu tio. Durante o caminho até a fazenda, Malvino fala da vida e dos costumes
mineiros e de aspectos da natureza daquela região.
Na fazenda, reencontra seu tio Emílio (envolvido com a política) e sua
prima Maria Irma (seu amor de infância).
O narrador relata os pormenores da política de seu tio e se empenha para
conquistar o amor de Maria Irma, que se mantém reservada e misteriosa.
Numa pescaria com Bento Porfírio (empregado da fazenda e amante da
de-Lourdes), o narrador presencia o assassinato de Bento pelo marido traído
(Xandão Cabaça). Tal acontecimento não interfere na rotina da fazenda.
A narrativa é entrecortada por histórias: a do vaqueiro que provocara os
marimbondos e a do moleque Nicanor.
Tio Emílio (partido João-de-Barro) vence as eleições. Maria Irma fica noiva
de Ramiro Gouvêia (dos Gouvêias da fazenda da Brejaúba, no Todo-Fim-E-Bom)
e apresenta Armanda ao narrador, que acaba se casando com ela antes do casa-
mento de sua prima com Ramiro.
6. SÃO MARCOS
Narrado também em primeira pessoa, a história se passa no povoado
chamado Calango-Frito.
O narrador (Izé ou José), homem que não acredita em feitiçaria, todos
os domingos, quando se embrenha pela mata das Três Águas para caçar e
observar a natureza, ao passar pela casa de João Mangolô (feiticeiro de fama),
costuma provocá-lo.
Nhá Rita (cozinheira de Izé) sempre o adverte (“Se o senhor não aceita, é rei
no seu; mas abusar não deve-de”).
E eu abusava, todos os domingos, porque, para ir domingar no mato das Três
Águas, o melhor atalho renteava o terreirinho de frente da cafua do Mangolô, de quem
eu zombava já por prática. Com isso eu me crescia, mais mandando, e o preto até que se
ria, acho que achando mesmo graça em mim.
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Para escarmento, o melhor caso-exemplo de Sá Nhá Rita Preta minha criada era
este: “... e a lavadeira então veio entrando, para ajuntar a roupa suja. De repente, deu um
grito horrorendo e caiu sentada no chão, garrada com as duas mãos no pé (lá dela!)... A
gente acudiu, mas não viu nada: não era topada, nem estrepe, nem sapecado de tatarana,
nem ferroada de marimbondo, nem bicho-de-pé apostemado, nem mijacão, nem coisa de
se ver... Não tinha cissura nenhuma, mas a mulher não parava de gritar, e... qu’ é de
remédio?! Nem angu quente, nem fomentação, nem bálsamo, nem emplastro de folha de
fumo com azeite-doce, nem arnica, nem alcanfor!... Aí, ela se alembrou de desfeita que
tinha feito para a Cesária velha, e mandou um portador às pressas, para pedir perdão. Pois
foi o tempo do embaixador chegar lá, para a dor sarar, assim de voo... Porque a Cesária
tornou a tirar fora a agulha do pé do calunga de cera, que tinha feito, aos pouquinhos,
em sete voltas de meia-noite: “Estou fazendo fulana!... Estou fazendo fulana!...”, e depois,
com a agulha: “Estou espetando fulana!... Estou espetando fulana! . . .”
Numa domingueira, como de costume, andando pela mata, encontra Aurísio
Manquitola – conhecedor da “Oração de São Marcos”. Aurísio narra-lhe, então,
alguns casos sobre os temíveis poderes dessa oração. Casos que envolvem a Gestal
da Gaita, o compadre Silvério, o Tião Tranjão, o Cypriano, o Filipe Turco etc.
Finda a prosa, José segue caminhando pela floresta e relembra a história
dos bambus: um jogo poético travado com um anônimo chamado“Quem Será”
no qual eram deixados versos nos nós dos bambus, sem que seus autores se
encontrassem.
Envolto pelas belezas da floresta, segue caminhando e, de repente, ao
descansar debaixo de uma árvore, fica cego.
Desesperado e vagando sem rumo, resolve rezar a oração de São Marcos.
Toma certa direção orientando-se na mata pelos ruídos e pelas vibrações do vento
até chegar à cabana do feiticeiro João Mangolô.
Lá, ao tentar esganar o velho feiticeiro, volta a enxergar e descobre que o
negro velho havia-lhe “amarrado” as vistas (uma tira nos olhos de um retrato)
a fim de lhe ensinar respeito.
7. CORPO FECHADO
Enquanto bebem cerveja, o narrador (médico de Laginha) vai entrevis-
tando Manuel Fulô (“valentão manso e decorativo”) e ouvindo as histórias que
este conta sobre os ciganos que havia enganado, sobre a sua rivalidade com
o feiticeiro Antonio das Pedras e sobre os valentões daquela região: José Boi,
Desidério Cabaça, Adejalma (Dejô), Miligo e Targino. Destes, apenas resta o
temível Targino, que, com seu bando, ousou comer carne e beber cachaça na
frente da igreja numa sexta-feira da Paixão.
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– Não é raiva, não seu doutor: é gastura... Esse-um é maligno e está até exco-
mungado... Ele é de uma turma de gente sem-que-fazer, que comeram carne e bebe-
ram cachaça na frente da igreja, em sexta-feira da Paixão, só p’ra pirraçar o padre e
experimentar a paciência de Deus... Eles todos já foram castigados: o Roque se afogou
numa água rasinha de enxurrada... ele estava de chifre cheio... Gervásio sumiu no
mundo, sem deixar rasto... Laurindo, a mulher mesma torou a cabeça dele com um
machado, uma noite... foi em janeiro do ano passado... Camilo Matias acabou com
mal-de-lázaro... Só quem está sobrando mesmo é o Targino. E o castigo demora, mas
não falta...
– Mas, nesta sobrança , ele é quem vai castigando os outros, por conta própria,
Manuel Fulô...
– Deixa ele, seu doutor... P’ra cavalo ruim, Deus bambeia a rédea... Um dia ele
encontra outro mais grosso... Eu já estou vendo o diabo, com defunto na cacunda!...
Esse sujeitinho ainda vai ter de dançar de ceroula, seu doutor! Isto aqui é terra de
gente brava.
Em meio à conversa, surge no bar o valentão Targino, que avisa Manuel
Fulô que vai passar a noite antes do casamento com a noiva dele (Das Dor).
Manuel Fulô fica desesperado, pois Targino domina o lugarejo.
Surge então Antonico das Pedras-Águas (“que tinha alma de pajé” e era
“curandeiro-feiticeiro”), que propõe um trato a Manuel Fulô: ele fecharia o corpo
deste em troca de sua mula Beija-Flor.
Mané Fulô aceita e, de “corpo fechado”, mata o bandido Targino apenas
com uma faquinha.
O casamento acontece e Mané Fulô assume o posto de valentão daquelas
bandas.
8. CONVERSA DE BOIS
A história, narrada por Manuel Timborna, tem início na encruzilhada de
Ibiúva e procura demonstrar que “boi fala o tempo todo”.
Os protagonistas bovinos (Buscapé e Namorado, Capitão e Brabagato,
Dançador e Brilhante, Realejo e Canindé) formam quatro parelhas que puxam
um carro de boi carregado de rapaduras e de um defunto.
Sobre o carro de boi vão também Agenor Soronho (o carreador), Tiãozinho
(guia dos bois e filho do defunto) e a viúva (amante de Soronho).
Enquanto andam, a conversa dos oito bois intercala-se com a fala dos
humanos.
Tiãozinho é visto pelos bois como “o-bezerro-de-homem-que-caminha-
sempre-na-frente-dos-bois”; enquanto o perverso Agenor é “o-homem-do-pau-
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comprido-com-o-marimbondo-na-ponta”.
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“Nós somos bois... Bois-de-carro... Os outros, que vêm em manadas, para ficarem
um tempo-das-águas pastando na invernada, sem trabalhar, só vivendo e pastando,
e vão-se embora para deixar lugar aos novos que chegam magros, esses todos não são
como nós...”
– Eles não sabem que são bois... – apoia enfim Brabagato, acenando a Capitão
com um esticão da orelha esquerda. – Há também o homem...
– É, tem também o homem-do-pau-comprido-com-o-marimbondo-na-ponta...
– ajunta Dançador, que vem lerdo, mole-mole, negando o corpo. – O homem me chifrou
agora mesmo com o pau...
– O homem é um bicho esmochado, que não devia haver. Nem convém espiar
muito para o homem. É o único vulto que faz ficar zonzo, de se olhar muito. É comprido
demais, para cima, e não cabe todo de uma vez, dentro dos olhos da gente.
Os bois, conversando, criticam a vida do homem e relembram a história
trágica do boi Rodapião, que pensava da mesma forma que os seres humanos.
Durante a marcha, Tiãozinho segue triste, chorando a morte do pai e os
maus tratos de Soronho.
Na ladeira do Morro do Sabão, Agenor encontra o carro da Estiva (de seu
companheiro João Bala) todo espatifado na queda na subida do Morro. Após
consolar seu amigo, segue viagem.
Orgulhoso de sua vitoriosa escalada pelo morro, assume a dianteira do
carro de boi.
Os bois que nutrem a mesma raiva por Agenor decidem derrubá-lo, fazendo
com que a roda do carro passe sobre o seu pescoço, matando-o.
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Linguagem
Quanto à linguagem, observa-se a preocupação de Guimarães Rosa de
reproduzir a fala do homem do sertão. A retomada do regionalismo em Guima-
rães não se detém à simples incorporação de termos populares. O resgate desse
tema é enriquecido pela invenção linguística que o autor faz criando palavras,
reinventando-as e fazendo associações inesperadas.
A linguagem adotada pelo autor é a da fala de suas personagens (que
também são narradores). São elas que falam, mas é ele que escreve.
Com o intuito de imitar o falar regional e suas peculiaridades, percebe-se,
na obra do autor, uma oralidade escrita cuja leitura oferece certa dificuldade. No
entanto, vale ressalvar a existência de uma linguagem mais erudita em Sagarana,
quando o escritor narra, ou seja, quando não quer registrar as singularidades da
fala sertaneja ou a linguagem popular. É o que podemos observar, mais especi-
ficamente, no conto “São Marcos”.
Entre outros recursos linguísticos que Guimarães Rosa utiliza para expres-
sar a natureza popular da linguagem do sertão, destaca-se a metáfora: “Estou
como ovo depois de dúzia” (para dizer que está sobrando); “Durou o prazo de
se capar um gato” (para dizer que a ação foi rápida).
Há de se lembrar também o uso frequente das reticências e de frases en-
trecortadas que, além de garantir ao texto maior expressividade oral, também
expressam a interrupção do pensamento. É o que se vê, por exemplo, no conto
“A volta do marido pródigo”:
– Ah, que honra, mas que minha honra, senhor Doutor Secretário do Interior...
Entrar nesta cafua, que menos mercê e mais recebe...Esteja à vontade! Se execute! Aqui
o senhor é vós... Já jantaram, ô diacho...
Além das técnicas descritas acima, o autor utiliza ainda certos aspectos
auditivos e visuais, que acabam por dar caráter poético à sua prosa, como as
onomatopeias: “A boiada entra no beco: Tchou! Tchou! Tchou!”(para tanger o
gado); “Prrr-tic-tic-tic!” (para chamar as galinhas); o ritmo e as aliterações (repe-
tição de um dado fonema) vistos, por exemplo, no conto “O burrinho pedrês”, no
qual a narração da caminhada da boiada é intercalada por quadrinhas populares
cantadas pelos vaqueiros:
Boi bem bravo, bate baixo, bota baba, boi berrando...Dança doido, dá de duro, dá
de dentro, dá direito...Vai, vem, volta, vem na vara, vai não volta, vai varando...
‘Todo passarinh´do mato
tem seu pio diferente.
Cantiga de amor doido
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Regionalismo
O resgate do regionalismo na obra de Guimarães Rosa reflete uma das
características que mais individualizam seu trabalho.
Embora aproveite o cenário sertanejo mineiro e suas expressões típicas
populares (“Estou como ovo depois de dúzia”, “Suspiro de vaca não arranca
estaca”, “não é nas pintas da vaca que se mede o leite e a espuma”), sua obra
surpreende em virtude da originalidade da linguagem e da indagação a respeito
das questões fundamentais do homem (amor e ódio, vida e morte, violência,
ciúmes, mito e razão, a existência ou não de Deus e do diabo etc.).
Nesse sentido, os contos de Sagarana (repletos de interpretações subjetivas,
espiritualistas e filosóficas) devem ser compreendidos de forma mais profunda,
pois as histórias dos personagens, aparentemente apenas sertanejos de Minas,
ultrapassam os limites do regionalismo e alcançam as questões de valor eterno e uni-
versal. No conto “Conversa de bois”, observam-se, por exemplo, as reflexões sobre
o poder e a fraqueza; o sentimentalismo dos temas de amor e da solidão são res-
gatados em “Sarapalha” e “Minha gente”; ainda em “São Marcos”, “Minha gente”
e “Corpo fechado” evidencia-se o universo fantástico de Guimarães Rosa.
O conceito de sertão é ampliado, passando a refletir a imagem do mundo e
a contemplação metafísica que o autor tem da existência e de seus problemas.
Por esses motivos, considera-se a obra de Guimarães Rosa como a expressão
do regionalismo universalizante.
Técnica Narrativa
Com relação à técnica narrativa, Sagarana reúne contos ora narrados em
primeira pessoa ora em terceira pessoa.
Quando narrados em primeira pessoa, os contos (“São Marcos”, “Minha
gente” e “Corpo fechado”) apresentam um conteúdo temático que gira em
torno de superstições e feitiçarias, fato que evidencia o misticismo e o universo
fantástico e fantasioso de Guimarães Rosa.
Nos contos em terceira pessoa (“O burrinho pedrês”, “A volta do marido
pródigo”, “Sarapalha”, “Duelo”, “Conversa de bois” e “A hora e vez de Augusto
Matraga”), observa-se a onisciência do narrador e ainda a alternância de focos
narrativos, presente, por exemplo, em “Duelo”, no qual uma clarineta fanhosa e
meio fraca e uma tuba solene e penetrante são associadas aos personagens Turíbio
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e Cassiano, respectivamente.
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Personagens
As personagens de Sagarana são os bichos, as crianças, os loucos, os bê-
bados, os homens rudes e simples que vivem situações de conflito, de superação
e de conversão. Ao longo do enredo, desenrolam-se problemas que fazem as
personagens lidar com situações que extrapolam o limite do real. Daí a possibi-
lidade de interpretarmos tais histórias como parábolas e alegorias.
Nesse sentido é que se pode entender a temática de contos como, por
exemplo, “O burrinho pedrês” e “Conversa de bois”, que tratam da superação
da fraqueza que se converte em força; a história de redenção e espiritualidade
presente no conto “A hora e vez de Augusto Matraga”; a esperteza de Maria Irma
no conto “Minha gente” e de Lalino Salãthiel (o herói gaiato) em “A volta do
marido pródigo”; o enfoque da solidão e da falta de esperança em “Sarapalha”,
entre tantos outros.
A nomeação das personagens remete ainda a outro aspecto do estilo de
Guimarães Rosa que evidencia o gosto popular de dar apelidos às pessoas.
Tal recurso permite que o autor revele, por meio de apelidos e distorções
dos nomes próprios, a personalidade e o caráter de cada personagem: Manuel
Fulô, Timpim, Turíbio Todo, Tião da Thereza, Joãozinho Bem-Bem, Lalino Sa-
lãthiel, Badu, Valo Venâncio.
Esse recurso é aproveitado também com os animais, que, por receberem
nome, adquirem identidade, diferindo-se uns dos outros: o burrinho Sete-de-
Ouros; os bois falantes de “Conversa de bois”: Rodapião, Brabagato, Buscapé,
Namorado, Capitão, Dançador, Brilhante, Realejo, Canindé; os cavalos e éguas
de “Corpo fechado”: Beija-Flor, Ventarola, Furta-Moça etc.
Os animais, metaforizados em gente, exercem grande importância nas
estórias de Sagarana e, por isso, devem ser analisados detidamente.
Paisagens e descrições
Ao descrever o sertão mineiro, Guimarães Rosa impressiona o leitor com
uma infinidade de minuciosas descrições de paisagens, pessoas, animais, fazen-
das de gado etc.
Em muitos contos de Sagarana, o tema da viagem e do deslocamento
espacial, além de ser portador de significados ligados à mudança interna do
homem, presta-se também à descrição da paisagem, à medida que o caminho
é percorrido.
A amplidão cultural de Guimarães Rosa permite que ele indique com pre-
cisão as expressões populares da região, além dos nomes de plantas e animais.
No conto “Minha gente” há, por exemplo, enumeração das criações que vivem
no galinheiro: “...havia suras , transilvânias, nanicas, topetudas, calçudas; e gui-
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Vinha triste, mas batia as alpercatinhas, porque, a dois palmos da sua cabeça,
avançavam os belfos babosos dos bois da guia – Buscapé, biamarelo, desdescendo entre
mãos a grossa barbela plissada, e Namorado, caracu sapiranga, castanho vinagre tocado
a vermelho – que, a cada momento, armavam modo de querer chifrar e pisar.
Segue-seguindo, a ativa junta do pé-da-guia: Capitão, salmilhado, mais em branco
que em amarelo, dando a direita a Brabagato, mirim-malhado de branco e de preto: meio
chitado, meio chumbado, assim cardim. Ambos maiores do que os da junta da guia.
5. Exercícios
1.
O conjunto de contos de João Guimarães Rosa
publicado em 1946 aparece sob o título:
a) Corpo de baile.
b) Sagarana.
c) Primeiras estórias.
d) Estas estórias.
e) Grande sertão: veredas.
2. Fuvest-SP
João Guimarães Rosa, em Sagarana, permite ao leitor observar que:
a) explora o folclórico do sertão.
b) em episódios muitas vezes palpitantes, surpreende a realidade nos mais leves
pormenores e trabalha a linguagem com esmero.
c) limita-se ao quadro do regionalismo brasileiro.
d) é muito sutil na apresentação do cotidiano banal do jagunço.
e) é intimista hermético.
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E desse modo ele se doeu no enxergão, muitos meses, porque os ossos tomavam
tempo para se ajuntar, e a fratura exposta criara bicheira. Mas os pretos cuidavam muito
dele, não arrefecendo na dedicação.
– Se eu pudesse ao menos ter absolvição dos meus pecados!...
Então eles trouxeram, uma noite, muito à escondida, o padre que o confessou e
conversou com ele, muito tempo, dando-lhe conselhos que o faziam chorar.
– Mas, será que Deus vai ter pena de mim, com tanta ruindade que fiz, e tendo
nas costas tanto pecado mortal?
– Tem, meu filho. Deus mede a espora pela rédea, e não tira o estribo do pé de
arrependimento nenhum...
E por aí afora foi, com um sermão comprido, que acabou depondo o doente num
desvencido torpor.
3. PUCCamp-SP
O trecho mostrado representa a seguinte possibilidade entre os caminhos da
literatura contemporânea:
a) ficção regionalista, em que se reelabora o gênero e se revaloriza um universo
cultural localizado.
b) narrativa de cunho jornalístico, em que a linguagem comunicativa retoma e
reinterpreta fatos da história recente.
c) ficção de natureza politizante, em que se dramatizam as condições de classes
entre os protagonistas.
d) prosa intimista, psicologizante, em que o narrador expõe e analisa os movi-
mentos da consciência reflexiva.
e) prosa de experimentação formal, em que a pesquisa linguística torna secun-
dária a trama narrativa.
4. PUCCamp-SP
Liga-se a esse trecho de Guimarães Rosa a seguinte afirmação:
a) É um exemplo de crise da fala narrativa, dissolvendo-se a história num estilo
indagador e metafísico.
b) É uma arte marcada pelo grotesco, pela deformação, que coloca em cena tipos
humanos refinadamente exóticos.
c) O autor recolheu lendas de interesse folclórico e as reconta de modo docu-
mental, isento e objetivo.
d) Um universo rude e um plano místico se cruzam com frequência em sua obra,
fundindo-se um no outro.
e) A miséria arrasta as personagens para a desesperança, revelando-se ainda na
pobreza de sua expressão verbal.
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5. PUCCamp-SP
Sobre “A hora e vez de Augusto Matraga”, é incorreto afirmar:
a) Depois de apanhar até quase morrer, Nhô Augusto passa a viver uma vida de
penitências e duros trabalhos, na tentativa de, pelo esforço do corpo, purificar
a alma, comportamento típico de mártires e santos.
b) Nhô Augusto volta a sentir a sedução da violência quando se depara com o
bando de Seu Joãozinho Bem-Bem, mas resiste, ainda que a duras penas, para
não comprometer seu plano de salvação.
c) No duelo final com Seu Joãozinho Bem-Bem, percebe-se como, em determi-
nados momentos, as intenções e desejos mais egoístas podem se transformar
em instrumentos de redenção do egoísmo e doação de si mesmo: Nhô Au-
gusto faz o bem (ao salvar a família do velho da vingança de Seu Joãozinho
Bem-Bem) – o que garantiria a salvação de sua alma – por meio da violência
destruidora que sempre o fascinou.
d) Os jagunços no conto de Guimarães Rosa são irracionais, arbitrários e praticam a
violência única e exclusivamente para satisfazer seus impulsos sanguinários.
e) A transformação de Nhô Augusto depois da surra pode ser interpretada como
uma morte para a vida de maldades e um renascimento para a vida devota e
contrita. Neste sentido, pode ser compreendida simbolicamente como parte
de um rito de passagem, como o batismo cristão.
6. UEL-PR
Assinale a alternativa correta sobre o conto “O burrinho pedrês”.
a) O burrinho era corajoso e ousado.
b) O burrinho era esperto e prudente.
c) O burrinho era teimoso e valente.
d) O burrinho era decidido e ousado.
e) O burrinho era experiente e tranquilo.
7. UEL-PR
Assinale a alternativa correta.
“A hora e vez de Augusto Matraga” é:
a) um romance de José Lins do Rego, de fundo autobiográfico, no qual é narrada
a decadência de um engenho de açúcar no século XIX.
b) um conto de Graciliano Ramos em que se narram as aventuras de um buro-
crata em busca de afirmação social.
c) um romance de Guimarães Rosa, narrado em primeira pessoa, no qual o
narrador-personagem relata a sua vida aventurosa de cangaceiro.
d) um conto de Guimarães Rosa, narrado em terceira pessoa, que relata a queda
e a redenção de um fazendeiro. As componentes básicas do mundo sertanejo
são a violência e o misticismo. É a união desses dois elementos que permite
a redenção de Matraga.
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Sagarana
8. UEL-PR
Assinale a alternativa correta.
a) A obra de João Guimarães Rosa Sagarana é uma forma interiorizada de re-
presentação ficcional, privilegiada pela vivência psicológica e, pelo fluxo de
consciência desencadeado por um acontecimento fictício.
b) É uma obra modernista, que critica e denuncia o preconceito racial e a minoria
excluída.
c) A obra não apresenta situações de conflito entre seus personagens.
d) A obra Sagarana é do gênero “conto”. Guimarães Rosa, com esta obra, abriu
uma nova perspectiva para o regionalismo, revalorizando a linguagem e a
universalização do regional.
e) A obra retrata fielmente o ciclo da cana-de-açúcar.
9. UEL-PR
Assinale a alternativa correta.
a) Augusto Matraga é um fazendeiro valentão, extremamente prepotente, que
nunca trabalhou e é decadente nas finanças e na política, desrespeitando a
todos, inclusive esposa e filhos.
b) A trajetória de Augusto Matraga é marcada pela bondade, pelo amor ao pró-
ximo e pela solidariedade que o acompanha até o fim da vida.
c) A hora e a vez de Augusto Matraga foram consagradas quando ele escapou
com vida das mãos do major Consilva.
d) João Guimarães Rosa, em Sagarana, não registra detalhes do sertão nem focaliza
o homem com seus fragmentos e valores, deixando transparecer somente a
crítica social e de costumes.
e) Dionóra, esposa de Augusto Matraga, suporta sua opressão, submetendo-se
a ele como esposa fiel até o fim de sua vida.
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João Guimarães Rosa
11. UEL-PR
Assinale a alternativa incorreta.
a) Em “Sarapalha”, a epidemia de malária faz o povo tremer e delirar numa
fragilidade dolorosa.
b) Os delírios da febre em suas alucinações não afetam primo Ribeiro, que tem
o corpo fechado pela negra Ceição.
c) Argemiro, em sua pureza, depois de muito se punir, resolve confessar que
também sentira-se atraído por Luísa, mas era um amor platônico, sem um
mínimo de manifestação.
d) Primo Ribeiro está derrotado pela doença física e morre de forma lenta, psicolo-
gicamente abalado com a partida da esposa, que preferiu um boiadeiro a ele.
e) Argemiro é expulso pelo primo Ribeiro e parte com extremo pesar, pagando
caro por sua honestidade e sinceridade.
12. Fuvest-SP
O romance é narrado na primeira pessoa, em monólogo ininterrupto, por Riobaldo, velho
fazendeiro do norte de Minas, antigo jagunço, que conta a sua vida e a sua angústia.
A. Candido e J. A. Castello
O autor do romance a que se refere o texto acima é também o de:
a) Chapadão do Bugre.
b) O garimpeiro.
c) Vila dos Confins.
d) Sagarana.
e) O coronel e o lobisomem.
13.
Sobre Guimarães Rosa, podemos afirmar que:
a) foi autor regionalista, seguindo a linha do regionalismo romântico.
b) inovou sobretudo nos temas, explorando tipos inéditos.
c) escreveu obra política de contestação à sociedade de consumo.
d) sua obra se revela intimista com raízes surrealistas.
e) inovou sobretudo o aspecto linguístico, revelando trabalho criativo na explo-
ração do potencial da língua.
GABARITO
1. B 6. E 11. B
2. B 7. D 12. D
3. A 8. D 13. E
4. D 9. A
5. D 10. D
32