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O escritor como leitor

por RICARDO PIGLIA
Pobre e desconhecido, expressando-se precariamente em castelhano, Witold
Gombrowicz fez dos anos vividos em Buenos Aires um marco secreto na história da crítica
cultural. Em seu diário e na conferência “Contra os poetas”, defende que literatura é,
antes de tudo, um modo de ler, numa das grandes provocações artísticas contra a arte

No dia 28 de agosto de 1947, Witold Gombrowicz deu uma conferência em Buenos


Aires que pode servir de ponto de partida para discutirmos algumas características do que
denominamos “leitura do escritor”. Hoje essa conferência é um texto famoso, “Contra os
poetas”;1 anos depois, Gombrowicz a incluiu em seu Diário como apêndice.
Na época, Gombrowicz era um ilustre desconhecido. Vivia pobremente, em
sombrios quartos de pensão. Chegara à Argentina quase por acaso, em 1939, e,
surpreendido pela guerra, se instalara no país. Na realidade, os anos que Gombrowicz
passou na Argentina são uma alegoria do artista, estranha como a alegoria dos manuscritos
poupados de Kafka. Transcorridos os primeiros e dificílimos meses, sobre os quais quase
nada se sabe, pouco a pouco Gombrowicz começa a se integrar ao cenário de Buenos
Aires. Seu centro de operações é a confeitaria Rex, na sobreloja de um cinema na rua
Corrientes, onde joga xadrez e vai conquistando um grupo de iniciados e adeptos, entre
eles o poeta Carlos Mastronardi e o grande Virgilio Piñera. Começa a declarar para quem
quiser ouvir que é um escritor da categoria de Kafka, só que evidentemente todos acham
que é um farsante: ninguém o conhece, ninguém o leu. Além disso, diz ser um conde, diz
que pertence a uma família de aristocratas, embora viva na indigência. Borges, com sua
malícia costumeira, haverá de cristalizá-lo, anos depois, com esta imagem:
Só encontrei esse homem, Gombrowicz, uma vez. Vivia muito
modestamente e precisava partilhar o quarto, um sótão, com outras três
pessoas; todos dividiam entre si a limpeza do cubículo. Ele convenceu os
outros de que era um conde e recorreu ao seguinte argumento: nós,
condes, somos muito sujos. Com esse artifício, conseguiu que os outros
assumissem sua parte na limpeza.

Então, em 1947, Gombrowicz sai do anonimato para o mundo. Estava a ponto de


afogar-se, mas consegue emergir e manter-se na superfície, embora depois tenha voltado a
submergir diversas vezes. Naquele ano sai a tradução para o espanhol de Ferdydurke e é
publicada, também em espanhol, sua peça O casamento. Como sabemos, porém, essas
obras não têm a menor repercussão. São edições pequenas que ninguém lê, embora os que
as leem nunca as esqueçam. A conferência está vinculada ao lançamento desses textos. É
uma tentativa de obter visibilidade, o início de uma campanha de longa duração. Quem lê
os depoimentos ou a correspondência daqueles anos vê Gombrowicz inventando
estratagemas e armando redes e conspirações microscópicas. Redes de amigos, de jovens
que se esforçam para tornar sua obra conhecida.
Não temos muitas informações sobre como ele chegou a fazer essa conferência,
quem a organizou, quantas pessoas estavam presentes. Sabemos apenas que foi na livraria
Fray Mocho, na rua Sarmiento, quase esquina da Callao, no centro de Buenos Aires. Uma
livraria pequena, muito boa. O lugar não fazia parte dos circuitos prestigiosos das palestras
daqueles anos, como o Colegio Libre de Estudios Superiores, onde Borges começou a
proferir suas conferências em 1946, ou o Centro de Amigos del Arte, onde Ortega y Gasset
dava suas conferências, assistidas por verdadeiras multidões, na mesma época.
A data, portanto, é 28 de agosto de 1947. Sete da noite foi o horário de início da
conferência, a hora do crepúsculo. Pleno inverno em Buenos Aires. Pessoas de sobretudo,
agasalhadas, talvez mulheres de casaco de pele. Gombrowicz com sua jaqueta cinza e seu
chapéu, o conde no papel de mendigo elegante.
Um primeiro detalhe nos interessa especialmente. Gombrowicz dá sua conferência
em castelhano, no seu castelhano áspero, de gramática periclitante, que sempre será a sua
marca. Não faz a conferência em francês – língua que conhecia e falava fluentemente –,
como era usual em Buenos Aires. Victoria Ocampo dava suas conferências em francês,
assim como dava as suas, com grande êxito, Roger Caillois, outro europeu em Buenos
Aires. Uma conferência em castelhano, portanto, proferida por um escritor polonês
desconhecido, numa obscura livraria de Buenos Aires.

O CASTELHANO COMO LÍNGUA PERDIDA


O castelhano de Gombrowicz é o idioma da despossessão. Nada a ver com o inglês
de Nabokov, aprendido em criança com as governantas inglesas. Gombrowicz aprende
castelhano em Retiro, nos bares do porto, com os rapazes, com os operários, com os
marinheiros que frequentava: uma língua próxima da circulação sexual e do intercâmbio
com desconhecidos. Retiro, com esse nome tão significativo, é a zona do bajo 2 , do
chamado Paseo de Julio, a zona onde perambula Emma Zunz, a zona das galerias com
arcadas sobre as calçadas, dos bares mal frequentados, dos inferninhos. O espanhol surge
ligado aos espaços secretos e a certas formas marginais da vida social.
Claramente, Gombrowicz vive a experiência como uma iniciação cultural, como
uma contraeducação. “Para mim, bastava unir-me espiritualmente por um instante com
Retiro para que a linguagem da Cultura começasse a parecerme falsa e imprecisa”, escreve.
E é esse o assunto da conferência: uma crítica à linguagem estereotipada, cristalizada na
poesia. Uma crítica à sociabilidade implícita nessas linguagens falsamente cultas.
Por sua vez, Gombrowicz opta pela inferioridade, pela carência, como condição de
enunciação. E a isso se refere assim que a conferência tem início. Cito a versão original
conservada por Nicolás Espino, que mais adiante não é mantida na edição do texto em seu
Diário.
Seria mais razoável da minha parte não entrar em temas drásticos porque estou em
desvantagem. Sou um forasteiro totalmente desconhecido, careço de autoridade e meu
castelhano é uma criancinha que mal sabe falar. Não consigo fazer frases potentes, ou
ágeis, ou elegantes, ou refinadas, mas quem sabe essa dieta forçada não acabe sendo boa
para a saúde? Às vezes eu gostaria de mandar todos os escritores para o estrangeiro, para
fora de seu próprio idioma e para fora de todo ornamento, de toda filigrana verbal, para ver
o que sobra deles no fim.
O escritor sempre fala numa língua estrangeira, dizia Proust, e a partir dessa afir-
mação Deleuze construiu sua admirável teoria da literatura menor que se refere ao alemão
de Kafka. Mas a posição de Gombrowicz me parece mais taxativa. O inferior, o imaturo, se
cristaliza nessa língua que ele é obrigado a falar como uma criança. Desde seu primeiro
livro, os contos que denominou Memória da imaturidade, Gombrowicz assumiu essa
posição. E a imaturidade será o centro de Ferdydurke: o adulto que aos 30 anos de idade
precisa voltar para a escola, infantilizado.
Mas uma língua menor para dizer o quê? Talvez, como escreve Gombrowicz em 30
de outubro de 1966 em seu Diário, já vivendo na Europa como escritor consagrado, “o
escândalo seja ainda não termos uma língua para expressar nossa ignorância”. Em Buenos
Aires ele encontrou essa linguagem. A língua como expressão de uma forma de vida. A
pobreza da língua replica a falta de dinheiro, a precariedade em que vive. O conde como
mendigo tem uma relação simétrica com o grande estilista que não sabe falar. A
despossessão como condição da grande literatura. A opção Beckett, Céline, Néstor
Sánchez; o escritor como clochard, o escritor à margem.
O balbucio de Gombrowicz está sempre próximo da afasia. Melhor seria dizer:
Gombrowicz trabalha sobre a afasia como condição de estilo. O afásico é um bebê crônico.
Estamos novamente em Ferdydurke.
Roman Jakobson observou que o eu é o primeiro signo perdido pelo afásico e o
último adquirido pela criança. O artista está entre o afásico e a criança. Temos aqui uma
conexão fundamental, ligada aos direitos da enunciação pessoal. Evoquemos a primeira
página do Diário de Gombrowicz. Começa assim: “Segunda-feira Eu. Quarta-feira Eu.
Quinta-feira Eu”. Ele adquire o eu. Pode sair da afasia. Antes de mais nada, precisa
garantir a enunciação, sua entrada pessoal na linguagem.
Gombrowicz transforma a inferioridade, o anonimato, a carência, em vantagem e
em possibilidade. Não sei falar, falo como uma criança, e por isso me refiro à mais alta
expressão da linguagem: a poesia. E sei do que estou falando porque sou um grande artista.
Segunda questão, o castelhano como língua perdida da cultura. O castelhano, uma
língua menor na circulação cultural em meados do século 20. Circuitos fracos da influência
e da difusão literárias. Gombrowicz vê claramente os efeitos retardados, a marcha lenta. E,
ao mesmo tempo, os desvios. E as surpresas. Porque Gombrowicz tem muito a agradecer
ao castelhano.
Para começar, à leitura de Ferdydurke por François Bondy, diretor da revista
Preuves, primeiro grande divulgador de Gombrowicz na França. “Em 1952 li Ferdydurke
em espanhol”, conta Bondy. Foi a partir dessa leitura que ele se interessou pelo escritor e
promoveu sua tradução para o francês. Uma leitura que mudaria a vida de Gombrowicz.
Porque, além do mais, é graças a Bondy que surge o convite para ir a Berlim em 1963,
viagem essa que permitirá a Gombrowicz voltar à Europa – e seu triunfo final. Como esse
livro em espanhol chegou às mãos de Bondy? Mistério. Um exemplar de Ferdydurke em
castelhano, publicado em Buenos Aires, chega a Paris. Quando Gombrowicz conhece
pessoalmente Bondy em 1960, em Buenos Aires, durante um congresso do Pen Club, a
primeira coisa que lhe pergunta é em que circunstâncias leu Ferdydurke em castelhano.
Os livros percorrem grandes distâncias. Há uma questão geográfica na circulação da
literatura, uma questão de mapas e fronteiras, certos trajetos de percurso demorado. E
talvez um pouco da qualidade dos textos esteja ligado a essa demora para chegar ao
destino. Por exemplo, a conferência de Gombrowicz é contemporânea ao texto de Sartre O
que é a literatura?. Ambos são de 1947. Ambos formulam a mesma pergunta, e suas
respostas são simétricas e antagônicas. E ambos têm em comum o fato de serem panfletos
contra a arte (contra certa noção consagrada da arte e de sua autonomia). Exemplos claros
do escritor como crítico que intervém numa conjuntura precisa e produz determinado
efeito. E poderíamos dizer que a conferência de Gombrowicz, como síntese de sua poética,
tem hoje tanta (ou mais) influência quanto a intervenção de Sartre. (E seria interessante
comparar as duas concepções de poesia em jogo nesses textos, porque para Sartre a poesia
não pode se comprometer.)
A leitura do escritor incide sobre o presente, é sempre datada, e sua presença no
tempo tem a força de um acontecimento, mas por outro lado ela é sempre inatual,
desajustada, fora de época.
Línguas, tempos, espaços. Pontos cegos da lógica literária, inversões. Do polonês ao
francês, passando pelo espanhol: outro circuito de difusão. Seria preciso fazer uma história
da língua espanhola e das circulações culturais. O castelhano não costuma fazer parte dessa
rede, mas Gombrowicz o inclui numa rede central.
Por isso a conferência em castelhano pronunciada por Gombrowicz em Buenos
Aires deve ser vista como um grande acontecimento, quase invisível, mas extraordinário.
Um dos grandes acontecimentos de nossa história cultural. Um grande passo à frente na
história da crítica literária: um panfleto legendário, uma das grandes provocações artísticas
contra a arte. “Lembro-me da conferência que dei há alguns anos em Fray Mocho (depois
publicada em Kultura com o título ‘Contra los poetas’)”, escreve Gombrowicz em seu
Diário. “Estava tentando demonstrar àqueles argentinos, afinal de contas tão distantes da
Europa, a necessidade de renovar nossa atitude diante da poesia.”

DA POESIA
Basicamente, o que Gombrowicz diz naquele dia de agosto de 1947 é que não existe
nenhum elemento específico capaz de classificar um texto como poético. Na realidade, sua
conferência poderia ser lida como uma crítica implícita à noção de literariedade, que vem
dos formalistas russos e percorre toda a crítica do século 20, essa qualidade que
determinaria que um texto fosse um texto literário (e do qual a poesia ou a função poética
seria o ponto mais claro). Ou seja, uma crítica à teoria da linguagem poética tal como
enunciada por Jakobson, à noção de função poética da linguagem, uma função específica
que se manifestaria na atividade poética e que implica uma distância relativa ao uso
normalizado da linguagem, uma transgressão da norma e do uso comum.
É claro que, visto que trabalha com a linguagem natural, a literatura se vê obrigada
a perguntar-se quais são suas especificidades. E Gombrowicz afirma que a resposta não
pode ser uma diferença interna nem uma essência. Contesta a ideia de que exista algum
elemento na linguagem capaz de possibilitar essa função poética. No centro da conferência
está a noção de que a poesia também é uma operação que realizamos com os textos, uma
disposição, e não uma essência.
A disposição de ler poeticamente, segundo Gombrowicz, é o que instaura um texto
como poético. Na mesma época, Borges diz algo semelhante. Num texto de 1952 sobre a
metáfora, incluído em História da eternidade, escreve: “Sempre me pareceu que a distinção
radical entre poesia e prosa está na diferente expectativa daquele que lê”. Essa frase
poderia sintetizar a conferência de Gombrowicz. O texto suscita uma expectativa de leitura
de determinado tipo, e essa expectativa define a diferença e o valor. Para Gombrowicz,
quando nos apresentam um texto “poético” dispomo-nos a um momento de pura beleza, e
em decorrência disso experimentamos o esperado.
Como sabemos, Borges definiu do mesmo modo o texto clássico. “Clássico não é
um livro (repito) que necessariamente possui estes ou aqueles méritos: é um livro que as
gerações humanas, premidas por razões diversas, leem com prévio fervor e misteriosa
lealdade” (“Sobre os clássicos”, 1962).3 O prévio fervor de Borges é simétrico à
disposição poética de Gombrowicz.
A mesma concepção aparece na conferência de Borges sobre o gênero policial, de
1977. “Os gêneros literários dependem, talvez, menos dos textos que do modo como os
textos são lidos.” 4 Não existe uma essência dos textos nem dos gêneros, somente maneiras
de ler. Com efeito, Borges define assim a literatura. Num de seus textos fundamentais,
“Nota sobre (para) Bernard Shaw”, de 1951, ele afirma: “Uma literatura difere de outra,
ulterior ou anterior, menos pelo texto do que pela maneira de ser lida: se me fosse
outorgado ler qualquer página atual – esta, por exemplo – como a lerão no ano 2000, eu
saberia como será a literatura do ano 2000”.5
E agora, no ano 2000, estamos próximos do modo de ler que Borges e Gombrowicz
definiam no final da década de 1940. A literatura é uma maneira de ler, e essa maneira de
ler é histórica e social, e se modifica.
Portanto, primeira conclusão. Define-se outro modelo de história literária: o
histórico não está dado, mas se constrói a partir do presente e a partir dos embates do
presente. Pensemos em “Kafka e seus precursores”. Quando o modo de ler, a disposição e
o saber prévio se modificam, também se modificam os textos do passado.
Segunda conclusão: surge a hipótese de que o valor não é um elemento interno,
imanente; na verdade, há uma série de tramas sociais prévias sobre as quais o artista deve
intervir. E essas tramas definem o “artístico”. Por isso, muitas vezes a prática consiste em
construir o olhar artístico simultaneamente à obra. Sem dúvida foi o que fizeram Duchamp,
Macedonio Fernández, Gombrowicz: eles interferiram sobre os modos de utilizar uma obra
de arte.
O escritor como crítico lida com o que Brecht denominava “modos de produção da
glória”, modos sociais de produção que definem uma economia do valor. É preciso
combater esses regimes de propriedade e de apropriação que decorrem de relações de força
e de uma luta que impõe certos critérios e anula outros.
O debate literário como um todo já não passa pela especificidade do texto, mas por
seus usos e suas condições. O que sabemos do texto antes de lê-lo é tão importante quanto
o texto propriamente dito; trata-se, assim, de atuar sobre as condições que irão gerar a
expectativa e definir o valor da obra. A poesia é uma forma – no sentido em que
Gombrowicz entende essa expressão –, uma cristalização de convenções. A forma não se-
ria simplesmente uma característica-chave da obra de arte, mas uma categoria privilegiada
da experiência artística.
Utilizei, por exemplo, essa ideia de forma na arte – escreve ele no Diário – com o
objetivo de demonstrar (no ensaio “Contra os poetas”) que é ingênuo acreditar que nosso
enlevo diante de uma obra de arte provém da obra propriamente dita, que esse enlevo nasce
em grande parte não dos homens, mas entre os homens, e que é como se nos obrigássemos
reciprocamente a enlevar-nos (embora ninguém esteja “pessoalmente” enlevado).
Sua preocupação com a forma (ou com a dissolução da forma) não deve ser
confundida com uma noção interna à obra, mas com uma concepção do social visto como
uma construção de atitudes e de relações. Nesse aspecto, sua noção de forma se identifica
com a noção de “formas de vida” em Wittgenstein.
Diante das formas cristalizadas, Gombrowicz defende a imaturidade, a inferioridade
como modos de vida, e usos da linguagem que permitam renovar a percepção e a
experiência.

UM BANCO POLACO
Naquele dia de agosto de 1947, portanto, Gombrowicz faz essa conferência ex-
plosiva, que produz um pequeno escândalo, segundo o testemunho dos presentes. Surpresa
geral, estupefação. Mas o mais divertido (o mais gombrowicziano) é que no meio do
público está o presidente do Banco Polaco de Buenos Aires, e disso decorrerá uma
mudança na vida de Gombrowicz. Porque o presidente do banco, tendo assistido à palestra,
oferece-lhe um emprego.
Gombrowicz realizou um gambito perfeito: viu-se livre dos poetas e conquistou um
banqueiro. A partir daí, sai da indigência em que vivia e trabalha durante sete anos no
banco. É lá que escreve, às escondidas, Transatlântico. Guardava o manuscrito numa
gaveta de sua escrivaninha para poder fechá-la em caso de presença inoportuna.
Parece-me que a relação entre a palestra contra os poetas e o banqueiro polonês é
uma alegoria (uma das tantas alegorias que Gombrowicz nos propõe) e abre uma linha de
pensamento sobre a conexão entre poesia e dinheiro, entre os escritores e os banqueiros.
Poderíamos afirmar que os banqueiros entendem os poetas: em todo caso, há um
vínculo que merece reflexão. Como sabemos, Eliot trabalhou num banco, Joyce trabalhou
num banco e, em certo sentido, Kafka também (numa companhia de seguros); o grande
poeta argentino Raúl Gustavo Aguirre também, assim como tantos outros. “Money is a
kind of poetry”, escreveu Wallace Stevens, outro bancário. Faz parte da lista, a sua
maneira, Pound, o antibancário, obcecado pela usura. Os poetas como economistas.
No caso de Gombrowicz, a teoria econômica se baseia na adição. “Foram dados
certos vícios à humanidade, e a partir desses vícios ela criou um mercado”, escreve. Nesse
ponto, ele lembra Burroughs, que também transformou a adição em chave da economia. A
droga é a mercadoria por excelência, dizia Burroughs, é a realização plena da economia
capitalista porque cria um consumidor que não consegue deixar de consumir.
O banco, então, como cenário dos poetas. A circulação, o intercâmbio, os em-
préstimos, o crédito, os juros, o caráter arbitrário do dinheiro, que é uma convenção, assim
como a poesia, diria Gombrowicz. O dinheiro como equivalente geral; o dinheiro como
máquina metafórica que sempre se transforma em outra coisa. Borges escreveu um texto
belíssimo sobre o assunto em “O zahir”: “O dinheiro é abstrato, repeti, o dinheiro é tempo
futuro. Pode ser uma tarde nos arrabaldes, pode ser música de Brahms, pode ser mapas,
pode ser xadrez, pode ser café, pode ser as palavras de Epicteto, que ensinam o desprezo
ao ouro; é um Proteu mais versátil que o da Ilha de Pharos”.6
O dinheiro funciona como a poesia, ou seja, estabelece equivalências, é um sistema
metafórico de trocas e prestações. E é assim que Gombrowicz define a poesia, uma con-
venção e um vínculo social; um sistema de crédito, ou seja, de crenças. A economia
poética, digamos, o sistema de valor, o fundo que garante a forma, se apoia numa
convenção.
A poesia circula, se desvaloriza, se entesoura; há valores, há inflação, há escassez.
Muitas vezes me pareceu que a obsessão de Pound pela usura está ligada a sua tendência a
considerar o despojamento como a chave do valor poético (nesse ponto, Hemingway foi
seu grande discípulo): a escrita deliberadamente literária como inflação da linguagem. No
mesmo sentido, Joyce estabelecia uma conexão entre sua escrita e o esbanjamento de
dinheiro. Conhecido pelas gorjetas desmesuradas que deixava (inclusive em tempos de
miséria), ao ser criticado por Nora e pelos amigos, dizia que o fluxo de dinheiro estava
secretamente ligado a sua criatividade. É preciso investigar as relações de Gombrowicz
com o dinheiro para entender melhor sua literatura.

O DIÁRIO COMO LABORATÓRIO


A situação de Gombrowicz começa lentamente a melhorar, e em 1952 a economia e
a literatura se cruzam de outra maneira. O escritor começa a colaborar com a revista
Kultura, publicação em francês dos exilados poloneses em Paris, depois em Preuves.
Convidam-no para fazer colaborações periódicas e ele tem uma ideia luminosa. Envia seus
artigos sob a forma de diário. Assim, pode sair do banco para dedicar-se exclusivamente a
escrever. Mas, além disso, o Diário passa a ser o grande laboratório de Gombrowicz, que
descobre uma forma ampla e existencial, como ele a denomina.
O Diário de Gombrowicz (assim como o de Kafka ou o de Musil) é um exemplo da
leitura dos escritores. “Uma pessoa que não escreve um diário não é capaz de valorizar
corretamente um diário’, escreveu Kafka.
Foi a leitura do Diário de Gide, publicado naqueles anos, que convenceu
Gombrowicz a adotar essa forma. Obviamente, queria ser o anti-Gide e, portanto, usar seus
escritos íntimos para fazer intervenções públicas. O de Gombrowicz é um diário em
público, como disse Vittorini. Ele escreve suas leituras, suas opiniões, intervém, polemiza,
fala de sua vida em Buenos Aires.
Como é óbvio, nessa obra única, nessas páginas que o revelarão, registra o acaso e a
pobreza que definem suas leituras.
Estou condenado a ler exclusivamente os livros que me caem nas mãos, já que não
tenho como permitir-me o luxo de comprá-los; meus dentes rangem quando vejo in-
dustriais e comerciantes comprando bibliotecas inteiras para decorar seus escritórios, ao
passo que eu não tenho acesso às obras de que faria um uso bem diferente.
Isso me fez pensar em Auerbach, nas condições precárias que ocasionaram
Mimesis, o grande texto de crítica do século 20, escrito no exílio. Auerbach, o erudito sem
bibliotecas; o crítico sem livros, que talvez por isso pôde escrever a obra-prima que
escreveu.
O Diário de Gombrowicz está relacionado ao exílio, à privação. O Diário é o
resultado dessa privação: o anti-Gide, o anti-Bioy Casares. Nenhum rendimento, nenhuma
propriedade territorial. O diário define sua poética. “Meu diário quer ser o oposto da
literatura comprometida, quer ser literatura privada.”
Em Gombrowicz, o privado é o centro de sua poética – e ao mesmo tempo não há
nada menos privado que esse Diário. Em Gombrowicz, o privado é um espaço de tensão
com o mundo, centrado numa ideia antissentimental da vida pessoal. Permanecer sempre à
distância, ser o observador de si mesmo e dos outros, nunca permitir que outra pessoa se
aproxime demais. Aquilo que Gombrowicz denomina “sentimentos entre aspas”.
Há alguns anos circulava em Buenos Aires uma história que sempre contávamos e
que havíamos transformado num lema, uma história que nos permitirá, parece-me, apro-
ximar-nos da relação entre escrita e vida cotidiana em Gombrowicz. Todas as semanas,
encontrava o poeta Carlos Mastronardi num bar de Buenos Aires chamado El Querandí.
Carlos Mastronardi, um dos grandes poetas argentinos, muito amigo de Gombrowicz,
homem muito discreto, muito sutil; um notívago, um admirador de Valéry. Quando
Mastronardi chegava ao bar, Gombrowicz já estava tomando seu chá, e Mastronardi, muito
calmo, muito tranquilo – não é possível imaginá-lo de outro modo – , lhe dizia: “Boa tarde,
Gombrowicz”. Então Gombrowicz lhe respondia: “Calma, Mastronardi”, porque dizer-lhe
“boa tarde” parecia-lhe um excesso de sentimentalismo latino-americano. Toda vez que
Mastronardi lhe dizia “Como vão as coisas, Gombrowicz?”, ele respondia “Calma,
Mastronardi!”. E nós usávamos essa expressão, “Calma, Mastronardi!”, como um
programa político, como uma espécie de antídoto contra as paixões desatadas da
Argentina.
Pequenos experimentos com a forma e com a experiência que vão e vêm de sua
obra para sua vida. O Diário é isso, uma espécie de experimentação contínua com a
experiência, com a forma, com a escrita. E caberá ao Diário, basicamente, revelar
Gombrowicz. Ao mesmo tempo, ele é um dos grandes documentos do que podemos
chamar de escritor como leitor. Porque é, ao mesmo tempo, a história de suas leituras,
desses poucos livros que obtinha por acaso, dos quais faz um uso extraordinário, e nesse
sentido é, eu diria, uma obra única, talvez sua obra mais importante.
Só agora, finalmente, o Diário completo foi publicado em castelhano. Estava
disponível, integralmente, em inglês, em francês, em italiano e, claro, em polonês, mas não
em espanhol até este ano, e parece-me que era uma dívida de nossa língua para com esse
livro. Porque para voltar à relação de Gombrowicz com o castelhano, que está na origem
dessa conferência, e para concluir estas anotações, há uma cena que eu gostaria de evocar.
É, novamente, uma cena secundária, menor, que apesar disso condensa múltiplas redes da
cultura argentina, e não apenas da cultura argentina.
Em 1960, Gombrowicz se encontra com Jacobo Muchnik, um dos grandes editores
da Argentina, diretor da Fabril Editora, que publicou o que havia de mais interessante na li-
teratura europeia e norte-americana daqueles anos, por exemplo O apanhador no campo de
centeio, de Salinger, La modification, de Butor, e ainda O estaleiro, de Onetti. Então, por
recomendação de Ernesto Sabato, que estava em vésperas de publicar Sobre heróis e
tumbas naquela editora, Muchnik recebe Gombrowicz e lhe propõe a publicação de
Ferdydurke, que não era reimpresso desde 1947, nos Libros del Mirasol, uma das primeiras
coleções de livros de bolso da América Latina, uma coleção popular muito boa, em que
saíram, entre outras coisas, O som e a fúria, de Faulkner, e O longo adeus, de Chandler.
Muchnik, que conta essa história com muita sinceridade em suas memórias de
Gombrowicz, propõe ao escritor fazer uma edição de dez mil exemplares e lhe oferece
como adiantamento um terço dos direitos. “Isso é o de menos”, responde Gombrowicz.
“Estou disposto a autorizá-lo a fazer essa edição se o senhor se comprometer a publicar
outro livro muito importante que estou escrevendo. Os senhores me fazem um contrato de
edição do Diário argentino e eu os autorizo a publicar Ferdydurke.” Muchnik responde que
não pode se comprometer sem ter lido o livro. E então, conta Muchnik, “sem desviar os
olhos de mim, Gombrowicz enfiou a mão no bolso do casaco e extraiu duas páginas
datilografadas, que me estendeu por cima de minha escrivaninha”. Muchnik sugere que as
deixe com ele, para que as leia. “Não”, insiste Gombrowicz em tom cortante. “Dá para ler
duas páginas num instante. Leia agora. Eu espero.” Então Muchnik começa a ler na frente
de Gombrowicz, e “aquele texto”, diz Muchnik, me fisgou desde a primeira frase. Mas
quando terminei de lê-lo eu disse a ele, bom, é extraordinário, mas não posso me
comprometer a publicar sem antes conhecer o livro inteiro. Gombrowicz não me
respondeu, levantou-se. Por cima da escrivaninha recolheu suas duas páginas, murmurou
alguma coisa que não sei se foi um insulto ou uma despedida, e sem mais girou sobre os
calcanhares e saiu.
Preferiu não reimprimir Ferdydurke, não receber o dinheiro do adiantamento, de
que sem dúvida estava precisando, porque queria ver o Diário argentino publicado. E há a
questão daquelas duas páginas escritas em castelhano. Um pequeno enigma: que páginas
eram, quem as traduzira? Ou Gombrowicz as escrevera diretamente em castelhano?…
Algo que diz respeito à ética de nossa literatura está presente nessa cena. E a
história da relação de Gombrowicz com a língua argentina contém algo que diz respeito a
todos nós e a nossa tradição literária.
Tradução de HELOISA JAHN
No chamado “círculo de Tandil”, grupo de jovens artistas que gravitaram em torno de Gombrowicz
nas temporadas que ele passou nessa cidade próxima a Buenos Aires, o desenhista MARIANO BETELÚ
(1937-1997) foi o seu amigo mais íntimo e longevo – a correspondência dos dois estende-se até a morte do
escritor polonês, em 1969. Estes desenhos são parte de longas séries dedicadas ao universo de Gombrowicz,
incluindo algumas de suas mais conhecidas caricaturas.
Notas:

Publicado na serrote #12. [N. do E.]

Terreno baixo vizinho às margens do rio da Prata. A área continua sendo designada como el bajo, embora
hoje a margem do rio esteja mais afastada. [N. da T.]

Jorge Luis Borges, Outras inquisições. Trad. Davi Arrigucci Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p.
222.

Jorge Luis Borges, Borges oral & sete noites. Trad. Heloisa Jahn. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.
52.

Jorge Luis Borges. Outras inquisições. Op. cit., p. 183.

Jorge Luis Borges, O aleph. Trad. Flávio José Cardozo. Porto Alegre: Globo, 1973, p. 84.

In: ___. https://www.revistaserrote.com.br/2017/01/o-escritor-como-leitor-por-ricardo-piglia/, último acesso


em 02/11/2018, às 2h04

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