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por RICARDO PIGLIA
Pobre e desconhecido, expressando-se precariamente em castelhano, Witold
Gombrowicz fez dos anos vividos em Buenos Aires um marco secreto na história da crítica
cultural. Em seu diário e na conferência “Contra os poetas”, defende que literatura é,
antes de tudo, um modo de ler, numa das grandes provocações artísticas contra a arte
DA POESIA
Basicamente, o que Gombrowicz diz naquele dia de agosto de 1947 é que não existe
nenhum elemento específico capaz de classificar um texto como poético. Na realidade, sua
conferência poderia ser lida como uma crítica implícita à noção de literariedade, que vem
dos formalistas russos e percorre toda a crítica do século 20, essa qualidade que
determinaria que um texto fosse um texto literário (e do qual a poesia ou a função poética
seria o ponto mais claro). Ou seja, uma crítica à teoria da linguagem poética tal como
enunciada por Jakobson, à noção de função poética da linguagem, uma função específica
que se manifestaria na atividade poética e que implica uma distância relativa ao uso
normalizado da linguagem, uma transgressão da norma e do uso comum.
É claro que, visto que trabalha com a linguagem natural, a literatura se vê obrigada
a perguntar-se quais são suas especificidades. E Gombrowicz afirma que a resposta não
pode ser uma diferença interna nem uma essência. Contesta a ideia de que exista algum
elemento na linguagem capaz de possibilitar essa função poética. No centro da conferência
está a noção de que a poesia também é uma operação que realizamos com os textos, uma
disposição, e não uma essência.
A disposição de ler poeticamente, segundo Gombrowicz, é o que instaura um texto
como poético. Na mesma época, Borges diz algo semelhante. Num texto de 1952 sobre a
metáfora, incluído em História da eternidade, escreve: “Sempre me pareceu que a distinção
radical entre poesia e prosa está na diferente expectativa daquele que lê”. Essa frase
poderia sintetizar a conferência de Gombrowicz. O texto suscita uma expectativa de leitura
de determinado tipo, e essa expectativa define a diferença e o valor. Para Gombrowicz,
quando nos apresentam um texto “poético” dispomo-nos a um momento de pura beleza, e
em decorrência disso experimentamos o esperado.
Como sabemos, Borges definiu do mesmo modo o texto clássico. “Clássico não é
um livro (repito) que necessariamente possui estes ou aqueles méritos: é um livro que as
gerações humanas, premidas por razões diversas, leem com prévio fervor e misteriosa
lealdade” (“Sobre os clássicos”, 1962).3 O prévio fervor de Borges é simétrico à
disposição poética de Gombrowicz.
A mesma concepção aparece na conferência de Borges sobre o gênero policial, de
1977. “Os gêneros literários dependem, talvez, menos dos textos que do modo como os
textos são lidos.” 4 Não existe uma essência dos textos nem dos gêneros, somente maneiras
de ler. Com efeito, Borges define assim a literatura. Num de seus textos fundamentais,
“Nota sobre (para) Bernard Shaw”, de 1951, ele afirma: “Uma literatura difere de outra,
ulterior ou anterior, menos pelo texto do que pela maneira de ser lida: se me fosse
outorgado ler qualquer página atual – esta, por exemplo – como a lerão no ano 2000, eu
saberia como será a literatura do ano 2000”.5
E agora, no ano 2000, estamos próximos do modo de ler que Borges e Gombrowicz
definiam no final da década de 1940. A literatura é uma maneira de ler, e essa maneira de
ler é histórica e social, e se modifica.
Portanto, primeira conclusão. Define-se outro modelo de história literária: o
histórico não está dado, mas se constrói a partir do presente e a partir dos embates do
presente. Pensemos em “Kafka e seus precursores”. Quando o modo de ler, a disposição e
o saber prévio se modificam, também se modificam os textos do passado.
Segunda conclusão: surge a hipótese de que o valor não é um elemento interno,
imanente; na verdade, há uma série de tramas sociais prévias sobre as quais o artista deve
intervir. E essas tramas definem o “artístico”. Por isso, muitas vezes a prática consiste em
construir o olhar artístico simultaneamente à obra. Sem dúvida foi o que fizeram Duchamp,
Macedonio Fernández, Gombrowicz: eles interferiram sobre os modos de utilizar uma obra
de arte.
O escritor como crítico lida com o que Brecht denominava “modos de produção da
glória”, modos sociais de produção que definem uma economia do valor. É preciso
combater esses regimes de propriedade e de apropriação que decorrem de relações de força
e de uma luta que impõe certos critérios e anula outros.
O debate literário como um todo já não passa pela especificidade do texto, mas por
seus usos e suas condições. O que sabemos do texto antes de lê-lo é tão importante quanto
o texto propriamente dito; trata-se, assim, de atuar sobre as condições que irão gerar a
expectativa e definir o valor da obra. A poesia é uma forma – no sentido em que
Gombrowicz entende essa expressão –, uma cristalização de convenções. A forma não se-
ria simplesmente uma característica-chave da obra de arte, mas uma categoria privilegiada
da experiência artística.
Utilizei, por exemplo, essa ideia de forma na arte – escreve ele no Diário – com o
objetivo de demonstrar (no ensaio “Contra os poetas”) que é ingênuo acreditar que nosso
enlevo diante de uma obra de arte provém da obra propriamente dita, que esse enlevo nasce
em grande parte não dos homens, mas entre os homens, e que é como se nos obrigássemos
reciprocamente a enlevar-nos (embora ninguém esteja “pessoalmente” enlevado).
Sua preocupação com a forma (ou com a dissolução da forma) não deve ser
confundida com uma noção interna à obra, mas com uma concepção do social visto como
uma construção de atitudes e de relações. Nesse aspecto, sua noção de forma se identifica
com a noção de “formas de vida” em Wittgenstein.
Diante das formas cristalizadas, Gombrowicz defende a imaturidade, a inferioridade
como modos de vida, e usos da linguagem que permitam renovar a percepção e a
experiência.
UM BANCO POLACO
Naquele dia de agosto de 1947, portanto, Gombrowicz faz essa conferência ex-
plosiva, que produz um pequeno escândalo, segundo o testemunho dos presentes. Surpresa
geral, estupefação. Mas o mais divertido (o mais gombrowicziano) é que no meio do
público está o presidente do Banco Polaco de Buenos Aires, e disso decorrerá uma
mudança na vida de Gombrowicz. Porque o presidente do banco, tendo assistido à palestra,
oferece-lhe um emprego.
Gombrowicz realizou um gambito perfeito: viu-se livre dos poetas e conquistou um
banqueiro. A partir daí, sai da indigência em que vivia e trabalha durante sete anos no
banco. É lá que escreve, às escondidas, Transatlântico. Guardava o manuscrito numa
gaveta de sua escrivaninha para poder fechá-la em caso de presença inoportuna.
Parece-me que a relação entre a palestra contra os poetas e o banqueiro polonês é
uma alegoria (uma das tantas alegorias que Gombrowicz nos propõe) e abre uma linha de
pensamento sobre a conexão entre poesia e dinheiro, entre os escritores e os banqueiros.
Poderíamos afirmar que os banqueiros entendem os poetas: em todo caso, há um
vínculo que merece reflexão. Como sabemos, Eliot trabalhou num banco, Joyce trabalhou
num banco e, em certo sentido, Kafka também (numa companhia de seguros); o grande
poeta argentino Raúl Gustavo Aguirre também, assim como tantos outros. “Money is a
kind of poetry”, escreveu Wallace Stevens, outro bancário. Faz parte da lista, a sua
maneira, Pound, o antibancário, obcecado pela usura. Os poetas como economistas.
No caso de Gombrowicz, a teoria econômica se baseia na adição. “Foram dados
certos vícios à humanidade, e a partir desses vícios ela criou um mercado”, escreve. Nesse
ponto, ele lembra Burroughs, que também transformou a adição em chave da economia. A
droga é a mercadoria por excelência, dizia Burroughs, é a realização plena da economia
capitalista porque cria um consumidor que não consegue deixar de consumir.
O banco, então, como cenário dos poetas. A circulação, o intercâmbio, os em-
préstimos, o crédito, os juros, o caráter arbitrário do dinheiro, que é uma convenção, assim
como a poesia, diria Gombrowicz. O dinheiro como equivalente geral; o dinheiro como
máquina metafórica que sempre se transforma em outra coisa. Borges escreveu um texto
belíssimo sobre o assunto em “O zahir”: “O dinheiro é abstrato, repeti, o dinheiro é tempo
futuro. Pode ser uma tarde nos arrabaldes, pode ser música de Brahms, pode ser mapas,
pode ser xadrez, pode ser café, pode ser as palavras de Epicteto, que ensinam o desprezo
ao ouro; é um Proteu mais versátil que o da Ilha de Pharos”.6
O dinheiro funciona como a poesia, ou seja, estabelece equivalências, é um sistema
metafórico de trocas e prestações. E é assim que Gombrowicz define a poesia, uma con-
venção e um vínculo social; um sistema de crédito, ou seja, de crenças. A economia
poética, digamos, o sistema de valor, o fundo que garante a forma, se apoia numa
convenção.
A poesia circula, se desvaloriza, se entesoura; há valores, há inflação, há escassez.
Muitas vezes me pareceu que a obsessão de Pound pela usura está ligada a sua tendência a
considerar o despojamento como a chave do valor poético (nesse ponto, Hemingway foi
seu grande discípulo): a escrita deliberadamente literária como inflação da linguagem. No
mesmo sentido, Joyce estabelecia uma conexão entre sua escrita e o esbanjamento de
dinheiro. Conhecido pelas gorjetas desmesuradas que deixava (inclusive em tempos de
miséria), ao ser criticado por Nora e pelos amigos, dizia que o fluxo de dinheiro estava
secretamente ligado a sua criatividade. É preciso investigar as relações de Gombrowicz
com o dinheiro para entender melhor sua literatura.
Terreno baixo vizinho às margens do rio da Prata. A área continua sendo designada como el bajo, embora
hoje a margem do rio esteja mais afastada. [N. da T.]
Jorge Luis Borges, Outras inquisições. Trad. Davi Arrigucci Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p.
222.
Jorge Luis Borges, Borges oral & sete noites. Trad. Heloisa Jahn. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.
52.
Jorge Luis Borges, O aleph. Trad. Flávio José Cardozo. Porto Alegre: Globo, 1973, p. 84.