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FICHA DE LEITURA N.

º 7

A ELEGÂNCIA ELZEVIRIANA DA PALAVRA DE EDUARDO DE BARROS


LOBO (BELDEMÓNIO)1

Jorge Costa Lopes

1. Introdução

“Conhecem Beldemónio certamente todos os que


prezam as boas letras, embora a obra que nos
legou seja pouco e em parte dispersa, que o
mesmo é dizer perdida, em jornais e revistas.”
Júlio Brandão

“Parto para o ideal: quer alguma coisa do ideal?”,


Beldemónio

Beldemónio, pseudónimo de Eduardo de


Barros Lobo, nasceu em Gouveia, a 10 de dezembro
de 1857, e faleceu, aos 36 anos de idade, em Lisboa,
no dia 18 de dezembro de 18932. Com apenas 17 anos
(1875), fez a sua entrada no “sacerdócio da imprensa”,
no Porto e, um pouco mais tarde, aos 21 anos (1879),
editou a primeira publicação de crónicas, As Vespas,
também no Porto.
Para Eduardo de Barros Lobo, a Crónica, com maiúscula, é herdeira da tradição
oral e opõe-se à História. De facto, enquanto a última exige o retrato formal, ou seja, a
sua palavra não sai à rua sem a indumentária oficial, grave, de pose, a Crónica
escreve pelos cotovelos, sinceramente, sempre imaginando que apenas a ouvem três ou
quatro amigos a uma banca do café, na intimidade comunicativa da garrafinha cheia de
cognac; - e então, é incalculável a quantidade de apreciações justiceiras que lhe escapam
sobre acontecimentos ou sobre homens, uns e outros colhidos numa grande
despreocupação de efeitos académicos. (1890: 17-18)3.

A História não confraterniza com o burburinho, a má-língua e a alegria


despretensiosa em que prolifera a Crónica. E se ocasionalmente convive com a palavra
livre e indiferente às convenções sociais da Crónica, logo lhe lança um olhar superior
enquanto, desconfiada, vigia os seus gestos, não vá a Crónica colar-lhe um rabo-leva.

1
Cesário Verde conseguiu romper as malhas do tempo com um único e póstumo
livro de poemas publicado em sucessivas edições até ao presente. Já Beldemónio,
cronista da mesma Lisboa dos versos de Cesário4 – versos que Beldemónio certamente
leu e com os quais dialogou nas suas crónicas do Chiado5 – e uma esperança cerceada
de contista, permanece estranhamente agarrado às publicações efémeras da segunda
metade do século XIX, apenas recordado e celebrado, após a sua morte, pelo Município
de Gouveia, seu concelho natal, em 1942 e 2008.
É tempo, pois, de regressarmos à leitura deste intrépido e polémico autor e
tradutor.

2. Ourives da Palavra

“Eu não sou um cronista, meu bom e amável


camarada; sou uma espécie de ourives da Palavra,
quando muito, - com os pulsos alquebrados do
buril que nunca chega a traduzir as filigranas
sonhadas, e com o cérebro dolorido e um ideal
que nunca chega a criar corpo. E desanimo,
quando ao cabo de tanto escabujar penso que eu
sou eu, apenas... BELDEMÓNIO.” Eduardo de
Barros Lobo (Beldemónio)

Eduardo de Barros Lobo terá a sua pequena tipografia a partir de 1886. Será,
assim, escritor, jornalista, editor, administrador, compositor
e impressor. Os livrinhos e periódicos que edita refletem a
imagem de uma individualidade ferozmente ciosa da
“independência de um artista a quem contenta a sua arte
como satisfação do ideal” (1889: 3) e se sente
“decididamente bem neste viver de plumitivo que os vícios e
os preconceitos do nosso meio apenas aceitam a título de
situação anómala, irregular, ou acessória – empoleirada de
fora da razão como uma gaiola de grilos de fora de uma
janela, - e a que uma folha de alface basta” (ib.). Porque as suas publicações nascem da
pena de um
homem que não é empregado público, nem visconde, nem bacharel – as três classes em
que a sociedade portuguesa se divide –, e que não pretende ser bacharel, nem visconde,
nem empregado público. Como homem, o autor desta crónica limita-se a ser um magro, e
aspira, com uma modéstia que todos reconhecerão, a ter sempre a mesma saúde que até
aqui lhe permitiu atravessar a vida sem uma ambição, sem uma dispepsia, sem uma
inveja, e sem uma dor de dentes. Como autor desta crónica, enfim, o homem que a assina
quer simplesmente ser um artista, e repousar aqui na irreverência, na boémia, na fantasia”
(2008:143)

2
Na sua tipografia caseira, com um único compositor a auxiliá-lo a tempo parcial,
Beldemónio imprime os periódicos O Arauto (1886 – 45 números?), primeiro, e a Má
Língua (1889 – um único número?), bem como os seus dois livrinhos de contos, em
elzevir no pequeno tipo de corpo 6. Como nos diz Albino Forjaz de Sampaio,: “Ele
redigia, compunha, imprimia, cintava e levava ao correio [as revistas por si editadas].”
(apud 1917: 9).
A impressão em elzevir realça, igualmente, a imagem do elitista e heterodoxo
Beldemónio. Mesmo que tenha defendido os regeneradores, quando retornou ao Jornal
da Manhã, no Porto, e os republicanos, na revista Vespas (1880), no Porto, e na
qualidade de redator principal do jornal O Mandarim (1881), em Lisboa. E se, um dia, o
jovem Barros Lobo lançou, em Coimbra, a capa de estudante aos pés da rainha (vd.
1887: 200-202), tal facto não impediu a as suas vespas de picarem, com feroz ironia, o
rei D. Luís I que, ao concretizar uma muito sofrível tradução de Shakespeare (vd.
1880b: 28), ingressou, como afirma o seu detrator, no frequentado catálogo dos
produtores de mediocridades impressas. Nos últimos anos, Beldemónio aproximou-se,
porém, do rei D. Carlos I, assinante de A Cega-Rega (1891).
De qualquer modo, a violência e o quinino da prosa, a par com a traquinice dos
pequenos tipos elzevirianos, irão causar, inevitavelmente, mossa no meio literário e
jornalístico do Porto, de 1875 a 1881, e no da capital, de 1881 até à sua morte, em 1893.
Nos contos de Beldemónio e, sobretudo, nas crónicas, sobressai o cuidado com
que o Autor trabalha a palavra com “a missanga finíssima” (1890: 211) da sua caligrafia
e pensamento. Admirador confesso de Eça de Queirós6, Beldemónio é o arquiteto de um
edifício literário onde a palavra e a ideia convivem intimamente
com as cores, os sons e os aromas, tudo num turbilhão de
emoções que escancara a janela do texto à fresca aragem da
Crónica, em que domina o descritivismo e a prosa poética como
salientou Vergílio Ferreira.
Apesar da extrema modéstia da sua bolsa de escritor,
vestiu a nobre casaca do velho dandy, do cultor exímio da
palavra e da vida elegante. Segundo um neologismo de sua
lavra, pinturilava a palavra como se a passeasse pelo Chiado, em
dias de sol e de boa disposição. Mas também a vestia de traje de gala, para que as suas
obras, impressas no elegante carater romano, de fina haste, não deixassem de

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surpreender o Chiado. E se não perdoava aos confrades que não assinavam os seus
artigos e crónicas – ele, uma vítima dessa afronta nos primórdios da profissão, aquando
da passagem pelo Jornal da Manhã –, do mesmo modo não perdoava aos que, como o
amigo Fialho de Almeida, utilizavam impunemente esse vocábulo por si inventado,
pinturilar:

Num artigo recente de Fialho de Almeida (Valentim Demónio), encontro


empregada a palavra pinturilar:
(…)
Esta palavra não existe em nenhum dicionário. Donde veio ela? qual a sua filiação?
quais os seus direitos a eleger domicílio na língua? – Pareceu-me conveniente dar ao
registo os seus papéis, antes que o tempo dificultasse os confrontos necessários.
Feita por analogia com o francês vernturlurer (sic)7, a palavra aparece pela primeira
vez impressa num diário portuense, em janeiro de 1881, e pela segunda vez numa revista
lisbonense, três ou quatro meses depois. De ambas as vezes, quem assinava os artigos
onde ela aparecia era a mesma pessoa que hoje assina o Arauto todo: - era eu.
(…)
Anos volvidos, Fialho d’Almeida colhe-a dos detrictus de velhas crónicas, e põe-na
a fazer figura num canto florido do seu estilo. Reivindico-a. O talento do artista restitui
esse estafermo à minha ternura, refazendo-lhe a virgindade perdida. É minha.
Diacho! levem-me o guarda-chuva, se querem –, mas deixem-me ficar a palavra.”
(1886: 22)

Fialho de Almeida utilizou, por exemplo, este vocábulo do escritor gouveense


para criticar negativamente a narrativa breve praticada pela generalidade dos escribas
seus contemporâneos:
Nestes últimos tempos os contistas portugueses reduziram o conto a proporções
episódicas de ligeiríssimo alcance. Há uns que o cifram num descritivo frio, pinturilado
com adjetivações estridentes, ocasionais, desconexas, que rimam umas com as outras, e
vão formando no período intermináveis deixas cacofónicas.” (Almeida 1892: 164, itál.
nosso)

Devemos, deste modo, relevar a impregnação da arte plástica no autor de Viagens


no Chiado, como assinalou Vergílio Ferreira ao comentar o indicado neologismo:

Assim e a propósito do significado específico que pretende haver em pinturilar, observa


que em nenhuma língua há sinónimos, pois ‘o que há é palavras de significação
semelhante’. Do mesmo modo – e isto é igualmente uma observação notável – ‘as
palavras não valem só pelas ideias que representam, mas também pelas ideias que
sugerem’. (…) Mas a sua análise vai mais longe e detém-se na subtil correlação
sinestésica entre som e cor e emoção. Estamos agora próximos não de Gomes Leal, que
repercute a distinção em Claridades do Sul, mas de um Rimbaud, que obviamente
Beldemónio desconhecia.” (Ferreira 1987: 151)

Barros Lobo foi igualmente um brilhante tradutor de Émile Zola, Honoré de


Balzac e Guy de Maupassant. Basta ler, por exemplo, a tradução que levou a cabo de
Germinal, obra-prima de Émile Zola, para comprovarmos o aqui afirmado. E se
4
recordarmos que este romance foi editado em França, no ano de 1885 e publicado, ainda
nesse ano, em Portugal, melhor podemos aquilatar do domínio que Barros Lobo possuía
da língua francesa. Não partilhando as ideias e a arte do escritor naturalista, não
deixava, porém, de relevar alguns dos principais valores de Germinal, na realidade um
grande épico ou uma espécie de Ilíada do Naturalismo:
O Germinal pretende ter a solução da questão social, dessa questão que há milhares
de anos agira o mundo e as consciências, sempre irresoluta. É o combate do capital com o
trabalho e a promessa da vitória proletária para o século que vem. Extraordinária ilusão
num cérebro tão lúcido!
(…)
Mas este livro não é precisamente um romance; é antes a monografia do trabalho
nas minas de hulha, sob uma forma larga de epopeia.
(…)
São obras de arte as suas – como certos viadutos. Sente-se nelas – nas suas páginas,
nas suas paisagens, na sua disposição – a potência do guindaste movendo materiais
enormes, o resfolegar ofegante das máquinas a vapor fazendo uma dragagem colossal de
palavras. (1885:6)

3. Cronista de Lisboa

“Como um intruso, a crónica veio ontem


inesperadamente sentar-se no seu fuste de coluna,
e papaguear, papaguear sem tom nem som, ao
acaso da oportunidade ou da fantasia. Houve
talvez um longo e mudo espanto:
- Hein?... Pois não tinha morrido o cronista!...
pois não tinha morrido a crónica!...
Morrer? Nunca! O cronista tinha apenas vivido a
sua primavera e o seu estio, pela única maneira
razoável como se vivem estios e primaveras –
prolongando durante largos meses uma doce
embriaguez de sol e de azul” Beldemónio

Beldemónio ama o calor e a luz meridional de Lisboa, misturados com as


sombras e o frenesim noturno da cidade. A capital representa para ele, aliás e segundo
entendemos, a verdadeira terra de promissão, lugar em que, como afirma o escritor,
vem bater cada português que se julga talhado para a glória ou para a fortuna, sentindo
em si o embrião de um ministro de estado ou a crisálida de um capitalista. A capital – é
o sonho – a pasta da fazenda, o cofre Milner recheado de valores, a coroa do ator que
tem de empolgar a herança de Talma, os louros do poeta, a diretoria de um banco, ou a
consagração de um cartaz de circo. (1890:38)

O autor de Viagens no Chiado acabou, porém, vencido pelo Minotauro lisboeta,


com todos os seus sonhos perdidos numa noite sem fim como parece ter sido a sua vida
de homem das letras. O seu espírito nobre, mas heterodoxo, sincero, mas polémico,
honesto, mas mordaz apresentou-se, assim, com uma compleição frágil no frente a

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frente com a força daquele monstro que só se verga perante a bajulação, a intriga, o
suborno – tudo devidamente protegido pela invencível armadura feita de papel-moeda.
Derrotado, Beldemónio será lançado pelo “terrível bicho com uma patada ao hospital,
depois de o trazer arrastado por todos os esterquilínios dos bairros vesgos.” (1890: 38).
A presença do Minotauro lisboeta não o impedirá, porém, como afirmámos, de amar
furiosamente a cidade. Os quadros pintados ou pintulirados no descritivismo das suas
inúmeras crónicas, nomeadamente alguns dos incluídos nos seus dois livros de
referência – Viagens no Chiado e Do Chiado a S. Bento – são disso testemunho ímpar.
Sem esquecermos a Lisboa do poder político, em A Volta do Chiado, paralisada na
sonolência caturra do Parlamento e só alvoroçada, aqui e ali, pela truculência dos
brados, registados com agrado pela Crónica, do Sr. António Maria de
Carvalho.
Viagens no Chiado transmuda-se no palco por onde passam os
dandies entretanto desaparecidos – na melancolia e na decadência de
costumes que tomaram de assalto o quotidiano do velho Chiado. É
também uma ode em prosa à cidade solar, locus amoenus por
excelência para a Crónica ver e ser vista. Do seu mirante da escrita,
Beldemónio convoca imagens e episódios pretéritos do quotidiano
elitista do Chiado e, enquanto fotógrafo da moda, regista a sensualidade das carnações
femininas que pisam com altivez o macadame do centro da capital e da Crónica:
Hoje em dia, nestas alturas de civilização que inventa toilettes íntimas de cetim preto,
onde as carnes vivas e caras da mulher destacam com todo o encanto artístico de um
artístico marfim, todo o coração regularmente organizado de homem medianamente ao
facto do seu tempo, chega à vontade para quatro… por dia.” (1887:295)

No segundo volume de crónicas de Barros Lobo, Do Chiado a S. Bento, desenha-


se o mapa de uma outra Lisboa. A melancólica evocação da cidade em final de festa de
verão, cede a sua moldura, neste volume, à urbe noturna e submersa na humidade
viscosa dos saguões. Passa, então, pelas suas artérias uma procissão de crianças
famintas, de velhos maltrapilhos, cortejo expressionista que parece saído de um
romance de Dostoievski, autor que Beldemónio certamente desconhecia, mas com o
qual parece conviver fraternalmente em Do Chiado a S.Bento e no conto “O cadáver”.
Do mesmo modo, não sabemos se Raul Brandão leu alguma vez os seus livros de
crónicas, mas a realidade é que detetamos, no discurso ficcional do autor de O Pobre de
Pedir, um encontro espiritual com o escritor gouveense, idêntico àquele sentido por
Brandão em relação ao expressionismo de Fialho d’Almeida.
6
O frio! o frio! o frio!
Encontram-se ao cair da noite, à boca das vielas, uns vultos tristes que se despegam
do seu vão de porta com a andadura trôpega dos miseráveis e vêm estender a mão ao
transeunte, de braço timidamente cosido ao tronco. (…) Miseráveis, réprobos, pelintras,
párias! Ainda bem que vos encontrais na dor, e tendes fome; é para vós que esta estação
de luxo se fez, para vós que a chuva pinga do firmamento concentrado, pra vós que o frio
roça pela côdea pulvurenta das lamas, à beira dos salões iluminados em que o espírito
desabrocha num ideal de conforto, à beira dos teatros aconchegados como alcovas, dos
tépidos coupés acolchoados, dos felpudos dolmans abotoados até ao queixo; e a noite, a
noite interminável do inverno, é para vós que cada tarde despeja na atmosfera pálida a sua
fina pulverização de fumo, como que empenhada em vos alargar a miséria. (2008:183-
184)

Na nossa perspetiva, não é o admirador de Eça de Queirós que escreve este texto,
mas sim o tradutor de Émile Zola, o naturalista que denuncia, com a sua ironia amarga,
a miséria que assola as noites de inverno lisboetas. O heterónimo de Pessoa, Álvaro de
Campos, podia perfeitamente rever-se nesta prosa de Beldemónio quando escreveu este
verso da Ode Triunfal: “Fauna maravilhosa do fundo do mar da vida!” (Campos-Pessoa
1993: 91)
Mas, contrariamente ao evidenciado por Vergílio Ferreira8, torna-se notória, na
nossa opinião, a preferência de Beldemónio pela capital do país em detrimento do Porto,
cidade onde viveu nos primórdios da sua carreira jornalística. De facto, não foi fácil a
passagem do escritor gouveense pela cidade tripeira9. Para ele, o Porto é uma cidade
abafada na tacanhez do seu provincianismo, fechado em densos nevoeiros e sem os
encantos do frenético néon noturno da capital porque, mal chega a noite, a cidade
cabeceia de sono. A crónica sintomaticamente intitulada “Noite no Porto” disso nos
convence. Aí, o autor gouveense descreve-nos uma noite passada num terceiro andar de
um hotel portuense, tendo apenas o silêncio como companhia e uma impaciente saudade
das redações lisboetas e dos trens noturnos da capital que batem, afadigados, para o
Dafundo, bem como dos “trabalhadores da noite, os tresnoitados, os noitibós”
(2008:221). A sua única esperança na amodorrada noite tripeira é que chegue a manhã
com “algum conhecido do Chiado, trazendo nas dobras do seu fato de viagem o que
quer que seja de lisboeta, o cheiro pesado e simpático da Baixa” (id.: 223) que o faça
esquecer, por momentos, a letargia tripeira, onde domina a conhecida e camiliana figura
do brasileiro de torna-viagem.
Lisboa não foi, todavia, dócil com Barros Lobo, como afirmámos. Ignorou-o
quase sempre, deixou morrer a sua tipografia, a sua biblioteca elzeviriana e, por fim,
deixou cair, exangue, o amante que a idolatrou como a uma mulher caprichosa e
inconstante. O afiadíssimo florete da sua palavra, a risada de desprezo, em campo

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aberto, para com as hierarquias de qualquer espécie, sobretudo as literárias, de um
iconoclasta por natureza, em suma, a sua visceral heterodoxia, arrastou-o para uma
espiral de ódios, de ressentimentos, de vinganças que não terminaram com a sua morte.
A Crónica de Beldemónio respira, pois, Lisboa, sôfrega do seu Chiado, das suas
ruas sórdidas, dos seus debates em S. Bento. E quando, por vezes, a modorra toma conta
dos trabalhos da câmara parlamentar, obrigando as discussões a arrastarem-se na
melancolia sem fim de uma tarde solarenga de inverno, a Crónica faz da palavra um
tímpano vibrante, captando rumores lentos e aveludados, de uma câmara subitamente
irreal. E seleciona a cor sépia da paleta da escrita para oferecer dar um tom mais vivo ao
monótono quadro parlamentar, preenchendo-o, assim, com a memória boa e
impressionista das lendárias tardes de província:
Nas vidraças do teto, flechas de sol faziam arabescos de oiro – como um pingo de laca
fina se espalha em respingos, - ou punham cintilações passageiras de pedra preciosa que
escorrega lentamente sob um raio de luz; e o sussurro embrandecido da câmara, ao pé
daquela doce iluminação, fazia lembrar certas tardinhas tranquilas de província em
casarões desguarnecidos, onde os últimos clarões de sol enfiam cilindros de oiro em que
dançam nuvens tenuíssimas de poeira, entanto que um brando trabalho de caruncho nos
velhos madeiramentos mal perturba o sossego melancólico do recinto. (1902: 46)

A leitura de uma das crónicas insertas em Do Chiado a S. Bento pede mesmo, na


nossa opinião, o acompanhamento das 4 Estações de Vivaldi, em especial o concerto
dedicado ao inverno, como verificamos, desde logo, nas suas linhas iniciais:
Meu belo inverno! Decididamente, o bom-senso britânico mais uma vez foi
justo, quando lhe deu as honras de season, – a estação por excelência. Na primavera,
certamente, esse trabalho lento da natureza que se enfeita é adorável; no estio, as
madrugadas que rompem como explosões de luz são cheias de encantos; no outono, os
poentes melancólicos do sol banham o espírito de uma serenidade ideal; mas no
inverno, os artifícios complicadíssimos da civilização triunfam em todo o seu
esplendor, e os estranhos requintes do luxo moderno acham-se naturalmente engastados
na sua mais favorável atmosfera.
Chove. Às vezes, mesmo, faz vento. De tempos a tempos, não o esqueçamos
também, um frio diabólico faz tiritar as carnes. E o céu dá-se às vezes o luxo de reboar
como um campo de batalha em plena ação, pelas salvas formidolosas da sua artilharia
de nuvens. É a época em que o prazer, concentrado pela invernia que o força a
localizar-se, ganha em intensidade o que perdeu em extensão. (2008: 176).

4. Conclusão

“Farewell, happy fields, / Where joy for ever


dwells! Hail, horrors! hail, / Infernal World”,
John Milton

8
Desde muito cedo, Beldemónio alimentou um sonho. Viver na escrita e para a
escrita. E tudo sacrificou em prol desse desejo. Família, bem-estar, tudo. Porque fora da
literatura estiolava. Deste modo, ao imiscuir-se na oficina tipográfica ou na redação dos
jornais que ali se imprimiam, com a perversa ansiedade dos transgressores que aspiram
os odores das tintas de impressão como uma droga, Beldemónio alimenta o vício de
uma vida inteira. As chamas da tipografia infernal de William Blake acabaram,
contudo, por consumir, de forma inexorável, como vimos, a existência deste cronista
excessivo, intoxicado de palavras, polémico, emocional até às cinzas da escrita e da
vida.
Ora, como salientou Vergílio Ferreira, “é injusto esquecer nele o estilista notável,
o contista de mérito, o cronista brilhante e sobretudo talvez a expressão sintética ou
paradigmática de um modo de ser ou de estar no mundo.” (1987:
150). Na realidade, Barros Lobo foi, desde a sua entrada no
“sacerdócio da imprensa”, um ourives da palavra e um devoto das
letras que acalentou sempre o desejo de ser resgatado, de tempos em
tempos, pelos seus leitores, presentes ou futuros:
vós tendes ainda no fundo da memória qualquer coisa de bom que
vos recorda o cronista com os seus velhos caprichos, com as suas
desenvolturas doidas de boémio, e com o seu próprio pseudónimo
satânico que é a sua armadura de guerra, talhada no fino metal de
uma bela palavra italiana (…) e é por isso que o cronista, depois de ter estado arrumado
para o canto como uma velha clavina de fecharias enferrujadas, volta ao meio de vós, a
dizer-vos o seu bom-dia matinal, e a abraçar-vos todos num só abraço nostálgico de quem
quisesse sofregamente matar num minuto saudades de um século, ou de quem
imaginasse, num repente de comoção panteísta, poder abraçar quanto os seus olhos
abraçam, beijando num só beijo as próprias árvores dos campos e as próprias pedras dos
caminhos.” (2008:113)

Em conclusão, podemos chamar de novo Beldemónio, pseudónimo de Eduardo


de Barros Lobo, para o meio de nós, e lermos o melhor da sua obra fragmentada, repleta
do “som e da fúria” do seu tempo.

Bibliografia ativa:

As Vespas (1880) nº 1, Porto, janeiro.


As Vespas (1880a) nº 2, Porto, fevereiro.
As Vespas (1880b) nº 3, Porto, s.d.
O Mandarim (1883), nº I, Lisboa, Empresa Literária Luso-Brasileira – Editora.
“Zola” in A Ilustração Portuguesa n.º 18, 16.11.: 4-7.
O Arauto (1886), n.º 14 de 8 de abril.

9
Viagens no Chiado – Apontamentos de Jornada de um Lisboeta através de Lisboa
(1887), Porto, Barros & Filha, Editores.
A Má Língua (1889) nº 1, 7 de maio.
Do Chiado a S. Bento – Continuação de Viagens no Chiado (1890), Porto, Livraria
Portuense de Lopes & Cª.
A Musa Loira / Contos Immoraes (1917), 2ª edição, com prefácio de Albino Forjaz de
Sampaio, Lisboa, Guimarães & Cª.
Jornal de um Artista (2008), org. de Jorge Costa Lopes, Câmara Municipal de Gouveia.

Bibliografia passiva:

Almeida, Fialho d’ (1892), Vida Irónica, ed. ut. Lisboa, Livraria Clássica Editora, s.d.
Campos, Álvaro de (1993), Livro de Versos, ed. ut. 3.ª ed., Referência / Editorial
Estampa, 1997.
Ferreira, Vergílio, “Espaço do Invisível (IV)” (1987), ed. ut. 2ª ed., Venda Nova,
Bertrand Editora, 1995.
Lopes, Jorge Costa, “Encontros com Cesário Verde – No ano do 150º aniversário do seu
nascimento (1855-2005)” (2005) in ‘das Artes das Letras’, suplemento d’ O Primeiro de
Janeiro, de 13.06.:16-17; 20.06.:20-21);e 27.06: 12.
Sombrio, Carlos (1942), Beldemónio, Figueira da Foz, Livraria Moderna.

1
Esta ficha de leitura é uma versão muito refundida do nosso ensaio “A elegância elzeviriana da palavra
de Beldemónio” publicado na revista Praça Velha n.º 19 de junho de 2006:123-148.
2
Cumpriram-se, portanto, em 18 de dezembro de 2018, 125 anos do falecimento de Barros Lobo, como
noticiado no blogue da Comunidade de Leitores de Gouveia.
3
Atualizamos a ortografia nas citações de todos os textos de Beldemónio.
4
Como assinalámos em “Encontros com Cesário Verde – No ano do 150º aniversário do seu nascimento
(1855-2005)”.
5
Embora não tendo, até ao momento, qualquer informação nesse sentido, não duvidamos de que
Beldemónio terá sido contemplado com um dos exemplares da edição princeps de O Livro de Cesário
Verde, publicada em 1887 pelo seu grande amigo, Silva Pinto. Discordamos, desta forma, de Vergílio
Ferreira quando afirma que Beldemónio “decerto desconhecia.” (1987: 153) a “poesia prosaica” (ibidem)
de Cesário Verde.
6
Do Autor d’ Os Maias afirmou Beldemónio, a 30 de outubro de 1884: “Art et monocle. L’ homme qui
sait mieux tenir une plume. Ont est aisément orgueilleux, lorsqu’on ne peut atteindre l’impossible : - je
voudrais être lui, si je n’étais moi. ” (1890: 291).
7
O vocábulo francês correto é “peinturlurer”.
8
“No clássico confronto e despique entre o Porto e Lisboa, Beldemónio diminui Lisboa e dá a palma ao
Porto.” (1987: 157).
9
Vida inóspita descrita, com todos os detalhes, n’ O Arauto, nº 18, de 6 de maio de 1886: “Jornal da
Manhã, Porto. Eis a minha iniciação na imprensa. Tenho a esse tempo dezassete anos – há onze, portanto.
(…) / Ao cabo de dois meses, parti. Eu precisava de tomar ar…/ Passados três anos – três anos de vida
airada – eis-me outra vez no Jornal da Manhã. Condições: - encher o jornal todo, rever o jornal todo, um
quartinho por dia: menos aos domingos e dias santos. Nesses dias, nem trabalho, nem dinheiro. Imagine-
se: - no mês do S. João… uma espiga! Entrar às nove, sair às quatro: voltar às seis, o mais tarde, e sair às
duas ou três da madrugada, pela hora mortífera desses frios nevoeiros do Douro, que fazem tiritar a
própria alma” (op. cit.: 17).

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