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prefácio

Arlt e Astier:
“amar a existência
com dentes
e unhas”

Os
ladrões

Os trabalhos
e os dias

O
títere
raivoso

Judas
Iscariotes

apêndice

O poeta
do bairro

posfácio
Roberto Arlt,
ou a garganta do bandoneon.
Voz e diccção imigrante
no sistema literário
argentino
prefácio

por Eleonora Frenkel*

ARLT
E ASTIER: “AMAR A
EXISTÊNCIA COM DENTES E
UNHAS”
Escrever mal:
traduzir mal

Aos 22 anos escrevi O brinquedo raivoso, romance.


Durante quatro anos foi recusado por todas as editoras. Depois encontrei um editor inexperiente.
Roberto Arlt1

Quando Roberto Arlt escreve a “Autobiogra a” com a qual se apresenta na


antologia de jovens contistas argentinos, reunidos por Miranda Klix (1929),2
certamente não imaginava que seu rechaçado romance encontraria não apenas
aquele primeiro “editor inexperto”, mas também tradutores audaciosos,
dispostos a enfrentar as armadilhas armadas por suas narrativas. Se Arlt é um
escritor acusado desde seus primeiros livros de “escrever mal”, como ca aquele
que se arrisca na tradução do mal escrito? É desnecessário lembrar as “palavras
do autor” que prefaciam seu terceiro romance publicado, Los lanzallamas
(1931), onde diz que é possível sim que escreva mal, mas que “não teria
di culdade em citar numerosas pessoas que escrevem bem e que são lidas
unicamente pelos corretos membros de suas famílias” (Arlt, 2000, p. 193). O
bem escrever não parece ser um valor para Roberto Arlt, pois a turbulência dos
tempos modernos lhe exige uma escritura violenta, não apenas pelos temas que
aborda, mas pela brutalidade que impinge à linguagem: a estrutura sintática se
desordena, a pontuação se desregula, o léxico pulcro se contamina. Por que a
tortuosidade da vida deveria ser dita de modo reto e correto? Para uma vida
ordinária e perversa, haveria que se encontrar um estilo de escritura contorcido,
capaz de criar a careta da dor.
O tradutor, já o disseram muitos, está fadado a fazer escolhas e minimizar as
perdas e poderá encontrar soluções muito bem sucedidas para dar novas
ressonâncias ao texto de partida. Aquele que traduz Roberto Arlt está, também,
condenado a escrever mal. Traduzir bem um romance como El juguete rabioso
(1926) seria lhe atribuir uma qualidade que não tem, se esse “bem traduzir” se
associa à correção da escrita, à colocação perfeita de pontos e vírgulas, ao
ordenamento da frase na estrutura sintática normativa, à seleção de um léxico
dito culto ou à homogeneização da língua padrão. Ao traduzir um texto de
Arlt, há que se resolver como não normatizar a linguagem, como escrever na
língua para a qual se traduz criando nela os instigantes estranhamentos que a
incorreção provocara na língua de partida.
A história que se conta sobre a peregrinação de Arlt com seu primeiro
romance debaixo do braço, realizando leituras públicas em busca de um editor
e de leitores, é que Elias Castelnuovo – então editor da coleção Los Nuevos, da
editora Claridad, de Vicente Zamora, que publicou os primeiros livros de
escritores como Alvaro Yunque e Leónidas Barletta, expoentes do Grupo de
Boedo –, recusou El juguete rabioso, então chamado La vida puerca, por ser
falho em diversos aspectos: ortogra a, redação, coesão, léxico inapropriado,
sintaxe desajustada:
El libro de cuentos 3 que me trajo, pese a su fuerza temperamental, ofrecía innumerables fallas de
diversa índole, empezando por la ortografía… siguiendo por la redacción y terminando por la
unidad y coherencia del texto. Le señalé hasta doce palabras de una sinuosidad insultante… ‘Tiene
que trabajar más. La presentación, las formas sintácticas no se ajustan a la idea que tiene esta
colección’. (Castenulovo apud Borré, 1999, p. 107)

Em compensação, Ricardo Güiraldes, autor de Don Segundo sombra (1926),


que se costuma apresentar como integrante do Grupo de Florida, decide
publicar os capítulos “El poeta parroquial” e “El Rengo” na Revista Proa, o que
acontece nos meses de março e maio de 1925. Güiraldes, entretanto, sugere
enfaticamente a Arlt que modi que o título de seu romance:
La vida puerca es un nombre demasiado escéptico, a mí me parece que podría usted colocarle el
nombre de El juguete rabioso, que en de nitiva es como la vida puerca, pero le otorga un poco más
de brillo. No es lo mismo una vida desdichada desde el principio que un juguete, como es la vida, a
la manera de Calderón de la Barca, y además, rabioso, y enojado. (Borré, 1999, p. 109)
Os motivos editoriais que podem levar a preferir um título não cético não se
discutem, porém a escolha não elide a descrença que move o enredo da
narrativa: o cidadão moderno, a sociedade do trabalho, a beleza, o bem, o
amor, a verdade, a salvação – os vagos e relativos conceitos aos quais se
pretende dar unidade – são expostos ao descrédito em La vida puerca. O
interessante é que Güiraldes nos faz ver que ambos os títulos são o mesmo, e
sua força provém do oximoro que opõe a potência (a possibilidade de ser) ao
fracasso (o não ter sido), o lúdico (o atrativo do jogo) ao con ito (a tensão do
enfrentamento). A vida é um jogo infausto no qual o bem e o mal não se
cindem ou se escolhem, mas se misturam e nos invadem.
Depois da publicação dos capítulos em Proa, El juguete rabioso venceu o
prêmio no Concurso Literário da Editora Latina e ganhou sua primeira edição
em 1926. Ao sair a público, o romance não se livra da crítica que preza o bem
escrever. Na primeira delas, publicada em Mundo Argentino, Carlos Pirán
destaca que no romance de Arlt os personagens estão admiravelmente
delineados, mas que demonstra despreocupação com a linguagem, que aparece
algumas vezes desalinhado e ocasionalmente em rinha com a sintaxe (Pirán in
Borré, 1999, p. 112).
O quiçá inesperado para alguns é que a literatura argentina que se escreve a
partir da urbanidade bonaerense se vê afetada pela escritura de Roberto Arlt,
que fere seus padrões e desestabiliza seus modos de fazer, e, ao ser perturbada,
abre-se como superfície corroída pelo ácido que o escritor destila em seus
textos. A despeito (ou justamente por) das críticas e da adversidade de El
juguete rabioso no contexto literário em que se inscreve, anos depois da
primeira edição, em 1931, ganhará publicação pela editora Claridad. A essa
altura, Arlt já publicara Los siete locos e Los lanzallamas e já assumira a coluna
de crônicas no jornal El Mundo, que caria conhecida com o título de
Aguafuertes Porteñas. Sua expansão corrosiva na literatura portenha não
eliminaria, em nenhum momento, a polêmica e a dura crítica a seu
“desalinho”.
As traduções do primeiro romance de Arlt para outras línguas se proliferam,
e é possível que seja um dos escritores mais traduzidos entre aqueles 27 jovens
narradores argentinos selecionados na antologia de Miranda Klix. El juguete
rabioso ampliou suas ressonâncias em italiano, desde a primeira tradução de
Angiolina Zucconi, em 1978, que ganhou duas novas edições ao longo das
décadas de 1990 e 2010;4 em 1994, publicou-se a tradução de Fiorenzo Toso.5
Em francês, a tradução de Isabelle e Antoine Berman teve duas edições, uma
em 1984 e outra em 2011.6 Michele Aynesworth traduziu para o inglês em
2002,7 e Maria Paula Gurgel Ribeiro, para o português em 2013.8
No Brasil, Roberto Arlt vem ganhando cada vez mais espaço editorial. Desde
a primeira tradução de Los siete locos, realizada por Janer Cristaldo em 1982,9
até a profusão que se deu em 2013, com a edição de dois volumes de Águas-
fortes portenhas,10 além da primeira tradução de O brinquedo raivoso. Ao longo
de mais de três décadas, somam-se outras cinco traduções de livros de Arlt
publicadas no Brasil, entre contos e romances.11 Com isso, as críticas em
jornais e revistas de ampla circulação dedicadas a Arlt se fazem cada vez mais
comuns e o tornam um escritor menos restrito ao ambiente universitário,12
onde antes de sua inserção mais contundente nas estantes das livrarias, já se
tomava como objeto de estudo de dissertações e teses acadêmicas.13
Silvio Astier:
inventor, poeta, bandoleiro
A vida porca não é um romance autobiográ co, mas há pontos de contato entre
as cções que Arlt cria para si como personagem-escritor e as que cria para seus
protagonistas e personagens. O escritor foi um inventor que chegou a patentear
meias femininas que não rasgam, Silvio Astier será o jovem inventor de um
sinalizador automático de estrelas cadentes, e Remo Erdosain (Los siete locos)
sonhará com a invenção da rosa de cobre.
Arlt constrói cções de autor desde as páginas do jornal El Mundo, onde
publica diariamente suas crônicas, provoca os leitores e lhes reponde de modo
intransigente, desde as “autobiogra as” que escreve para revistas e livros, desde
as declarações que faz em entrevistas e entre amigos. A imagem que se faz do
escritor temperamental e sarcástico tem em sua história de vida – lho de
imigrantes europeus de classe média baixa que encontra escassas possibilidades
de ascensão social, que se torna trabalhador no ofício das letras como poderia
ser de qualquer outro – um fundamento que o aproxima do cidadão comum
da cidade onde vive, que legitima a criação de seus personagens como pessoas
que se veem caminhando pelas ruas, que vivem experiências tão triviais quanto
aberrantes no cotidiano contraditório da modernidade.
Não seria mera coincidência a declaração que Arlt faz a Nalé Roxlo, onde diz
que “la vida es puerca y asquerosa pero vale la pena vivirla” (Borré, 1999, p.
104), e que o protagonista de seu primeiro romance, Silvio Astier, venha
experimentar “as misérias desta vida porca” (Arlt, 2014, p. 134), a sofrer “todos
os ultrajes, todas as humilhações, todas as angústias” (Arlt, 2014, p. 107) e,
potencialmente, manifeste “a necessidade de fazer algo formosamente sério,
belamente sério: adorar a Vida” (Arlt, 2014, p. 111). O escritor explica em
carta a uma de suas leitoras, E. J. Arizaga, a “vontade de potência” que Silvio
Astier encerra, a força que o move em expansão tensionada pelo mundo, a
libertação inescrupulosa das amarras de um cotidiano opressivo que ele
arrebenta pelos atos delitivos: “Silvio ama la vida, porque comprueba que
encierra en él las posibilidades de realizar lo que se le antoja. No lo detiene ningún
escrúpulo” (Arlt apud Borré, 1996, p. 173).
A falta de escrúpulos de Silvio, para de algum modo recobrar o poder em
uma sociedade do trabalho que o oprime, representa algo como um teste de
forças, desde sua força interior, a experimentação da violência que seu corpo
contém e do mal que pode provocar, até a força de resistência que pode impor
contra o outro. Astier dirá: “Eu não sou um perverso, sou um curioso desta
força enorme que está em mim” (Arlt, 2014, p. 204).
Para manter a analogia, diria que o escritor Roberto Arlt busca impor no
mundo a violência de sua literatura, não é com bordados que responde à beleza
da vida, mas com o cross na mandíbula, com o soco na cara que desperta para o
grito, pois se acredita, por um lado, que “a vida é linda” (Arlt, 2013, pp. 239-
240) 14, tem, por outro lado, a certeza dolorosa de que “jamais serão superados
o feroz servilismo e a inexorável crueldade dos homens deste século”, e que
diante do “crepúsculo da piedade” “não resta outro remédio senão escrever sem
pena alguma, para não sair pela rua jogando bombas ou instalando
prostíbulos” (Arlt, 2013, pp. 241-242). Jogar bombas, instalar prostíbulos,
criar sociedades secretas, planejar sequestros e assassinatos são atividades que o
escritor deixa a seus personagens, enquanto seu delito se faz na corrupção da
palavra, enquanto transgride impunemente as leis da língua e da literatura.
Como jornalista na coluna policial do jornal Crítica, Roberto Arlt esteve em
contato com o universo do crime na cidade de Buenos Aires, mas foi o fascínio
literário que o delito e os delinquentes exerceram sobre ele, em leituras como as
de Lord Dunsany ou Dostoiévski, que ele transferiu para sua literatura. Sejam
em crônicas, contos ou romances, as histórias de ladrões, sequestradores,
chantagistas, assassinos foram exploradas por Arlt como força potencial de
reação, como espaços de fuga da mesmice e da repetição resignada dos
desígnios da vida industriosa. Na crônica “Conversaciones de ladrones” (Arlt,
1998, pp. 156-158), o narrador conta que às vezes, quando está entediado,
lembra-se de que conhece um café onde se reúnem “senhores que trabalham de
ladrões” e se encaminha até lá para ouvir suas magní cas histórias. No conto
“As feras” (Arlt, 1996, pp. 101-114), o narrador é um deles e conta a seu
interlocutor o abismo em que se metera ao se envolver com os mais ferozes e
inescrupulosos criminosos. No romance Os sete loucos, um dos capítulos
intitula-se “Ser através do crime”; Erdosain está tão extenuado, tão exaurido de
suas forças que precisa cometer um crime para voltar a sentir o vigor de seu
corpo. E é essa potência do mal latente em diversos momentos da literatura de
Arlt que se apresenta já em seu primeiro romance, La vida puerca, quando
Silvio Astier diz:
Há momentos em nossa vida em que temos necessidade de ser canalhas, de nos emporcalhar até as
entranhas, de fazer alguma infâmia, eu sei lá... de destroçar para sempre a vida de um homem... e
após ter feito isso poderemos voltar a caminhar tranquilos. (Arlt, 2014, p. 202)

Experimentar a transgressão e a maldade está para os personagens de Arlt


como polemizar com os puristas da língua e da gramática está para o escritor,
como ridicularizar os que se escandalizam com a brutalidade de seu léxico ou
com a acidez de seus temas. Ser um escritor maldito, como o fora Charles
Baudelaire, seria um modo de expor a tensão latente entre o belo e o grotesco e
de tensionar a ponto de ruptura os padrões estéticos homogeneizantes.
Quiçá seja por isso que Silvio Astier, uma sorte de anti-herói quixotesco,
sonha ser como aqueles que leem, sonha se transformar em sua biblioteca; ser,
ao mesmo tempo, um grande poeta e um grande bandido inspirado em
romances de Ponson du Terrail: “Oh, ironia! Logo eu que havia sonhado ser
um grande bandido feito Rocambole e um poeta genial feito Baudelaire!” (Arlt,
2014, p. 81). Bandoleiro e poeta não são antagônicos, se tocam ao serem
trapaceiros, ao pregarem peças, de mais ou menos bom gosto, isso é apenas
uma questão de estilo, ao criarem artimanhas ou artifícios para surpreender e
enganar.
Notas
* Eleonora Frenkel é Doutora em Literatura pela UFSC (2011), onde desenvolveu pesquisa sobre as
crônicas de Roberto Arlt e as gravuras de Francisco de Goya. Mestre em Estudos da Tradução pela mesma
Universidade (2007), onde investigou as traduções brasileiras do romance Los siete locos (Roberto Arlt,
1929). Autora de diversos artigos sobre Roberto Arlt, publicados em revistas como Machado de Assis em
linha, Travessias, Eutomia, Scientia Traductionis, Fragmentos e integrando o livro Traducción Periodística y
Literaria (Córdoba: Comunicarte, 2007); contribuiu para a divulgação do escritor com comunicações
apresentadas em eventos sediados em Florianópolis, São Paulo, Niterói, Buenos Aires e Rosário.
Tradutora de crônicas de Arlt, publicadas no jornal Ô Catarina e na Revista Literária em Tradução. Foi
professora substituta de Teoria Literária no DLLV/UFSC (2011-2013) e atualmente é pesquisadora em
estágio pós-doutoral com bolsa CAPES/PNPD, pela UNIOESTE.
1. Tradução de Gustavo Pacheco (Arlt, 2013, pp. 241-242). No original: “A los 22 años escribí ‘El
juguete rabioso’, novela. Durante cuatro años fue rechazada por todas las editoriales. Luego encontré un
editor inexperto” (Arlt in Klix, 1929, p. 6).
2. O livro reúne 27 escritores: Roberto Arlt, Leónidas Barletta, Rolando Cartasegna, Armando Cascella,
Elías Castelnuovo, Juan Cendoya, Hector Eandi, Samuel Eichelbaum, Guillermo Estrella, González
Lanuza, Samuel Glusberg, Victoria Gucovski, Juan Guijarro, Manuel Kirs, Ilka Krupkin, Eduardo
Mallea, Roberto Mariani, Enrique Méndez Calzada, Salvadora Medina Onrubia, Miranda Klix, Arturo
Mom, Abel Rodriguez, Alberto Pinetta, José C. Picone, José Salas Subirat, Raul Scalabrini Ortiz, Alvaro
Yunque. O conto de Arlt publicado nessa edição intitula-se “El Humillado” e é um dos capítulos de seu
segundo romance, Los siete locos (1929).
3. Castelnuovo nem reconhece o livro como romance.
4. Arlt, R. Il giocattolo rabbioso. Tradução de Angiolina Zucconi. Roma: Savelli, 1978; Roma: Riuniti,
1997; Napoli: Cargo, 2012.
5. Arlt, R. Il giocattolo rabbioso. Tradução de Fiorenzo Toso. Roma: Le Mani, 1994.
6. Arlt, R. Le Jouet Enragé. Tradução de Isabelle e Antoine Berman. Grenoble: P.U.G., 1984; Grenoble:
Cent Pages, 2011.
7. Arlt, R. Mad Toy. Tradução de Michele Aynesworth. Duke University Press, 2002.
8. Arlt, R. O brinquedo raivoso. Tradução de Maria Paula G. Ribeiro. São Paulo: Iluminuras, 2013.
9. Arlt, R. Os sete loucos. Tradução de Janer Cristaldo. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982.
10. Arlt, R. Águas-fortes portenhas seguidas de Águas-fortes cariocas. Tradução de Maria Paula Gurgel
Ribeiro. São Paulo: Iluminuras, 2013.
Arlt, R. Águas-fortes cariocas. Tradução de Gustavo Pacheco. Rio de Janeiro: Rocco, 2013.
11. Arlt, R. As feras. Tradução de Sergio Molina. São Paulo: Iluminuras, 1996.
Arlt, R. Armadilha mortal. Tradução de Sergio Faraco. Posfácio e notas de Pablo Rocca. Porto Alegre,
L&PM, 1997.
Arlt, R. Viagem terrível. Tradução, introdução e cronologia de Maria Paula Gurgel Ribeiro. São Paulo:
Iluminuras, 1999.
Arlt, R. Os sete loucos & Os lança-chamas. Tradução, apresentação e cronologia de Maria Paula Gurgel
Ribeiro. São Paulo: Iluminuras, 2000.
12. Apenas para citar alguns exemplos (não exaustivos) de resenhas e críticas recentes dedicadas a Arlt e às
traduções de seus textos:
Kelvin Falcão Klein. “En m diante da obra de Roberto Arlt”. Suplemento Cultural. Pernambuco, 03 dez.
2013, Disponível em: http://www.suplementopernambuco.com.br/index.php/edicoes-anteriores/993-
en m-diante-da-obra-de-roberto-arlt.html.
Marcelo Moutinho. “O olhar portenho de Arlt sobre o Rio de Janeiro”. O Globo. Rio de Janeiro, 30 nov.
2013. Disponível em: http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2013/11/30/o-olhar-portenho-de-
roberto-arlt-sobre-rio-de-janeiro-516747.asp.
Eleonora Frenkel. “Excesso e deformação”. Revista Subtrópicos. Florianópolis, número 7, abril de 2014,
pp. 6-7. Disponível em: http://issuu.com/ayrtonsilveira/docs/subtropicos_n07.

Elias Machado. “As lições de Arlt para o jornalismo”. Revista Subtrópicos. Florianópolis, número 10, julho
de 2014, pp. 2-3. Disponível em: http://issuu.com/ayrtonsilveira/docs/subtropicos_n10.
13. Para uma relação um pouco mais detalhada, porém já desatualizada dos estudos dedicados a Arlt no
âmbito universitário brasileiro, ver: Frenkel, E. e Costa, W. (2007, pp. 33-38).
14. Publicado originalmente em Crítica Magazine, número 28, Buenos Aires, 28 de fevereiro de 1927.

Referências bibliográ cas

ARLT, Roberto. As feras. Tradução de Sérgio Molina. São Paulo: Iluminuras,


1996.
____________. Obras. Aguafuertes. Tomo II. Buenos Aires: Losada, 1998.
____________. “Palavras do autor”. Tradução de Maria P. G. Ribeiro. In: Os
sete loucos & Os lança-chamas. São Paulo: Iluminuras, 2000.
____________. “Autobiogra a 1” e “Autobiogra a 2”. Tradução de Gustavo
Pacheco. In: Águas-fortes cariocas. Rio de Janeiro: Rocco, 2013.
____________. A vida porca. Tradução de Davidson de Oliveira Diniz. Belo
Horizonte: Relicário, 2014.
BORRÉ, Omar. Arlt y la crítica (1926-1990). Buenos Aires: Ediciones América
Libre, 1996.
____________. Roberto Arlt. Su vida y su obra. Buenos Aires: Planeta, 1999.
Crítica Magazine, número 28, Buenos Aires, 28 de fevereiro de 1927.
FRENKEL, E. e COSTA, W. “Roberto Arlt, do arrabal portenho à academia
brasileira”. Revista Fragmentos. Florianópolis, v. 32, 2007, pp. 33-38.
Disponível em:
https://periodicos.ufsc.br/index.php/fragmentos/article/view/1713/7884
KLIX, Miranda. (org). Cuentistas Argentinos de Hoy (1921-1928). Buenos
Aires: Claridad, 1929.
A Ricardo Güiraldes:
Todo aquele que puder estar junto do Sr. sentirá
a imperiosa necessidade de estimá-lo.
E homenagearão o Sr. e, na falta de algo mais precioso, lhe oferecerão palavras. Por
isso eu lhe dedico este livro*.

* Epígrafe que consta na primeira edição de 1926 publicada pela editora Latina. A partir de 1931, época
em que sai a segunda edição já pela editora Claridad, a epígrafe é suprimida. Resurge apenas na edição de
1993, da editora Espasa Calpe, a cargo de Ricardo Piglia.
capítulo 1

OS
LADRÕES
Quando eu tinha catorze anos, fui iniciado nos deleites e afãs da literatura
bandoleiresca por um velho sapateiro andaluz que tinha sua loja de reparos
junto a uma casa de ferragens de fachada verde e branca, no eirado de uma casa
antiga na rua Rivadavia, entre Sud América e Bolívia.
Decoravam a frente da espelunca as policromadas capas dos livretos que
1
narravam as aventuras de Montbars, o Pirata, e de Wenongo, o Moicano. Nós,
a molecada, ao sair da escola, nos deleitávamos observando aquelas gravuras
que pendiam da porta, desbotadas pelo sol.
Às vezes entrávamos pra comprar só meio maço de cigarros mata-ratos, e o
homem praguejava por ter que deixar o banquinho e barganhar com a gente.
Era de montanhosas costas, mal-encarado e barbudo, e ainda por cima algo
coxo, um coxear estranho, o pé redondo como a pata de uma mula com o
calcanhar virado pra fora.
Cada vez que eu o via, me lembrava desse provérbio, que minha mãe
costumava dizer: “Cuidado com os marcados por Deus”.
Costumava resenhar alguns parágrafos de prosa comigo lá, e, enquanto
escolhia um irreconhecível sapato entre a pilha de formas e os rolos de couro,
me iniciava, com amarguras de fracassado, no conhecimento dos bandidos
mais famosos nas terras de Espanha, ou me fazia apologia de um cliente
assíduo mão aberta a quem lustrava o calçado e que o favorecia com vinte
centavos de lambuja.
Como era cobiçoso, sorria ao evocar o cliente, e o riso sórdido, que não
servia para encher as bochechas, enrugava o lábio sobre os seus dentes
carcomidos.
Tomou simpatia por mim apesar de ser um ranzinza e por alguns cinco
centavos de pagamento ele me alugava seus livrecos adquiridos em longas
assinaturas.
Assim, entregando a história da vida de Diego Corrientes, ele me dizia:
– Esse cabra, lho… que cabra!… era mar lindo que uma rosa e foi morto
2
pelos miguelete…
Tremia de in exões in amadas a voz do artesão:
– Mar lindo que uma rosa… se o cabra não fosse tão azarado…
Reconsiderava na sequência:
– Tome tino… dava ao pobre o que tomava ao rico… tinha mulher em
todos os pousos… se era mar lindo que uma rosa…
No barraco, empesteado com o fedor de cola e de couro, sua voz despertava
um sonho com montes viçosos. Nos des ladeiros havia festejos ciganos… todo
um país montanhoso e lascivo aparecia diante dos meus olhos chamado pela
evocação.
– Se era mar lindo que uma rosa – e o manco desafogava sua tristeza
amolecendo a sola a marteladas em cima de uma placa de ferro que apoiava nos
joelhos.
Depois, murchando os ombros como se descartasse uma ideia inoportuna,
cuspia através do canino em um canto, a ando com movimentos rápidos a
sovela na pedra.
Mais tarde acrescentava:
– Tu vai ver que parte mar linda quando chegar à dona Inezita e à birosca do
tio Pezuña – e observando que eu levava o livro, me gritava de advertência:
– Cuida dele, menino, que dinheiros custa – e retomando seus ofícios
inclinava a cabeça coberta até as orelhas por uma boina cor de rato, revirava
uma caixa com os dedos imundos de cola e, enchendo a boca com preguinhos,
continuava a fazer com o martelo toc… toc… toc…
Dita literatura, que eu devorava nas “publicações” numerosas, era a história
de José María, o Raio de Andaluzia, ou as aventuras de Dom Jaime, o
Barbudo, e outros malandros mais ou menos autênticos e pitorescos nas
gravuras que os representavam desta forma:
Cavaleiros em potros estupendamente encilhados, com escurecidas costelas
no corado rosto, coberto o rabicho de toureiro por um chapéu de sete sombras
e o trabuco na sela. Geralmente ofereciam com magnânimo gesto uma bolsa
amarela de dinheiro a uma viúva com um lho no colo, parada aos pés de uma
colina verde.
Então eu sonhava ser bandido e estrangular coronéis libidinosos; endireitaria
pau nascido torto, protegeria as viúvas e me amariam as singulares donzelas.
Precisava de um camarada nas aventuras da primeira idade, e este foi
Enrique Irzubeta.
Era o tal um pilantra de marca maior a quem eu sempre ouvi chamar pelo
edi cante apelido de “o falsi cador”.
Eis aqui como se estabelece uma reputação e como o prestígio secunda o
principiante na louvável arte de tapear o desavisado.
Enrique tinha catorze anos quando encanou o fabricante de uma fábrica de
balas, o que era uma evidente prova de que os deuses tinham traçado qual seria
no futuro o destino do amigo Enrique. Mas como os deuses são arteiros de
coração, não me surpreende ao escrever minhas memórias saber que Enrique
estaria hospedado em um desses hotéis que o Estado reserva para os audazes e
os velhacos.
A verdade é esta:
Certo fabricante, para estimular a venda de seus produtos, iniciou um
concurso com premiação destinada àqueles que apresentassem uma coleção de
bandeiras das quais se encontrava um exemplar dentro da embalagem de cada
bala.
Consistia a di culdade (dado que escasseava sobremaneira) em encontrar a
bandeira da Nicarágua.
Essas disputas absurdas, como se sabe, apaixonam a garotada que, amparada
por um ânimo comum, computa todos os dias o resultado desses trabalhos e o
progresso de suas pacientes indagações.
Então Enrique prometeu a seus companheiros de bairro, certos aprendizes
de uma carpintaria e os lhos do dono do lugar, que ele falsi caria a bandeira
da Nicarágua sempre que um deles disponibilizasse uma.
O menino duvidava… vacilava conhecendo a reputação de Irzubeta, mas
Enrique magnanimamente ofereceu como garantia dois volumes da História da
França, escrita por M. Guizot, para que não fosse posta em xeque sua
honestidade.
Assim cou fechado o trato na calçada da rua, uma rua sem saída, com
luminárias pintadas de verde nas esquinas, com poucas casas e compridos
muros de tijolos. Em cercas distantes, repousava a celeste curva do céu, e só
entristecia a viela o monótono rumor de uma serra sem m ou o mugido das
vacas no estábulo.
Mais tarde soube que Enrique, usando nanquim e sangue, reproduziu a
bandeira da Nicarágua tão habilmente que o original não se distinguia da
cópia.
Dias depois Irzubeta ostentava um novíssimo fúsil de ar comprimido, que
vendeu a um brechó da rua Reconquista. Isto acontecia no tempo em que o
esforçado Bonnot e o honradíssimo Valet aterrorizavam Paris.
Eu já tinha lido os quarenta e tantos tomos que o visconde de Ponson du
Terrail escrevera sobre o lho adotivo de mamãe Fipart, o admirável
Rocambole, e aspirava a ser um bandido da velha guarda.
Bom: num dia de estival, no sórdido armazém do bairro, conheci o Irzubeta.
A tórrida hora da sesta pesava nas ruas, e eu, sentado em um barril de mate,
discutia com Hipólito, que aproveitava os sonhos do pai para fabricar
aeroplanos armados em bambu. Hipólito queria ser aviador, “mas deveria
resolver antes o problema da estabilidade espontânea”. Em outros tempos, ele
andou preocupado com a solução do movimento contínuo e costumava me
consultar acerca do resultado possível de suas indagações.
Hipólito, com os cotovelos em um jornal manchado de toicinho, entre um
porta-queijo e as varetas vermelhas “do caixa”, escutava atentissimamente a
minha tese:
– O mecanismo de um relógio não serve para a hélice. Mete um motorzinho
elétrico e as pilhas secas na “fuselagem”.
– Então, como os submarinos…
– Que submarinos? O único risco é que a corrente pode te queimar o motor,
mas o aeroplano vai ir mais sereno, e antes de as pilhas descarregarem você vai
se divertir muito.
– Escuta: e o motor não pode funcionar com a telegra a sem os? Você teria
que estudar esse invento. Sabe que seria genial?
Naquele instante, entrou o Enrique.
– E aí, Hipólito, minha mãe perguntou se você não pode me dar meio quilo
de açúcar para pagar depois.
– Não posso, cara; o velho me disse que não até que vocês zerem a
caderneta…
Enrique franziu ligeiramente a testa.
– Não acredito, Hipólito!…
– Se fosse por mim, já sabe… mas é o velho, cara – e apontando pra mim,
satisfeito de poder mudar de assunto, agregou, dirigindo-se a Enrique:
– Cara, você não conhece o Silvio, né? É aquele do canhão.
O semblante de Irzubeta se iluminou diferente.
– Ah, é você? Parabéns. Ouvi dizer que você atirava com uma Krupp…
Enquanto ele falava, eu o observei.
Era alto e enxuto. Sobre a volumosa testa, manchada de sardas, os lustrosos
cabelos negros se ondulavam elegantemente. Tinha olhos cor de tabaco,
ligeiramente oblíquos, e vestia uma beca marrom adaptada a seu tamanho por
mãos pouco hábeis à costura.
Apoiou-se na quina do balcão, descasando a barba na palma da mão. Parecia
re etir.
Célebre aventura foi a do meu canhão, e me agrada recordá-la.
De uns peões de uma companhia de eletricidade eu comprei um tubo de
ferro e várias libras de chumbo. Com esses materiais fabriquei o que eu
chamava de “concubina” ou de morteiro. Procedi desta forma:
Em um molde hexagonal de madeira, forrado interiormente com barro,
introduzi o tubo de ferro. O espaço entre ambas as faces internas ia revestido
de chumbo fundido. Depois de romper o invólucro, desbastei o bloco com
uma lima grossa, xando o longo cano através de braçadeiras de latão em uma
coronha fabricada com tábuas mais grossas de um caixote de querosene.
Minha concubina era encantadora. Carregava projéteis de duas polegadas de
diâmetro, cuja carga eu colocava em sacos de barbante cheios de pólvora.
Acariciando meu pequeno monstro, eu pensava:
– Este canhão pode matar, este canhão pode destruir – e a convicção de ter
criado um perigo obediente e mortal me desatinava de alegria.
Admirada, a rapaziada da vizinhança o examinava, e isso evidenciou minha
superioridade intelectual, que desde então prevaleceu nas expedições
organizadas para ir roubar fruta ou descobrir tesouros enterrados nos
descampados que estavam pra lá do riacho Maldonado, no bairro de San José
de Flores.
No dia em que testamos, o canhão cou famoso. Entre um terreno
arborizado que havia em uma enorme estrebaria na rua Avellaneda, antes de
chegar a San Eduardo, zemos o experimento. Um círculo de adolescentes me
rodeava enquanto eu, cticiamente exaltado, carregava a espingarda pela boca.
Em seguida, para comprovar suas virtudes balísticas, direcionamos a pontaria
ao reservatório de zinco que, sobre o muro de uma carpintaria próxima, a
abastecia de água.
Emocionado, aproximei um fósforo do pavio; uma pequena chama escura
encabritou sob o sol, e de repente um estampido terrível nos envolveu em uma
nauseante neblina de fumaça branca. Por um instante permanecemos
embasbacados pela maravilha: parecia que naquele momento tínhamos
descoberto um novo continente, ou que, por magia, éramos convertidos em
donos da terra.
De repente alguém gritou:
– Mete o pé! Os tiras!
Não houve tempo material para fazer uma retirada honrosa. Dois vigilantes
se aproximavam a toda velocidade, duvidamos… e subitamente fugimos a
grandes saltos, abandonando a “concubina” ao inimigo.
Enrique disse por m:
– Cara, se você precisar de dados cientí cos para as suas coisas, eu tenho em
casa uma coleção de revistas que se chama “Ao redor do mundo” e posso te
emprestar.
Desde esse dia até a noite do grande perigo nossa amizade foi comparável a
de Orestes e Pílades.

Que novo mundo pitoresco descobri na casa da família Irzubeta!


Gente memorável! Três varões e duas moças, e a casa regida pela mãe, uma
senhora cor de sal com pimenta, de olhinhos de peixe e nariz comprido
inquisidor, e a avó encurvada, surda e enegrecida como uma árvore queimada
pelo fogo.
À exceção de um ausente, que era o o cial de polícia, naquele cubículo
taciturno todos descansavam com doce vadiagem, com ócios que iam dos
romances de Dumas ao reconfortante sono das sestas e ao amável mexerico do
entardecer.
As inquietudes sobrevinham ao começar o mês. Tratava-se então de dissuadir
aos credores, de engambelar os “galegos de merda”, de acalmar a coragem da
gente plebeia que sem tato algum vociferava ao portão reclamando o
pagamento das mercadorias, ingenuamente vendidas a crediário.
O proprietário do cubículo era um alsaciano gordo, chamado Grenuillet.
Reumático, sessentão e neurastênico, terminou por acostumar-se à
irregularidade dos Irzubeta, que pagavam os aluguéis de vez em quando. Em
outros tempos, tratou inutilmente de despejá-los da propriedade, mas os
Irzubeta eram parentes de juízes rançosos e outra gente da mesma laia do
partido conservador, por cuja razão se sabiam inamovíveis.
O alsaciano acabou por resignar-se à espera de um novo regime político, e a
viçosa sem-vergonhice daqueles picaretas chegava ao extremo de enviar o
Enrique a solicitar do proprietário cortesias para entrar no Cassino, onde o
homem tinha um lho que ocupava o cargo de porteiro.
Ah! E que saborosíssimos comentários, que cristãs re exões se podia escutar
das comadres que, em assembleia no açougue, comentavam piedosamente a
existência de seus vizinhos.
Dizia a mãe de uma menina feiíssima, referindo-se a um dos jovens Irzubeta
que tinha mostrado suas partes pudendas à donzela em um ataque de
excitação:
– Reza, senhora, pra que eu não encontre ele, porque vai ser pior do que se
ele fosse esmagado por um trem.
Dizia a mãe de Hipólito, mulher gorda, de rosto branquíssimo, e sempre
grávida, tomando por um braço o açougueiro:
– Te aconselho, seu Segundo, que não venda ado para eles nem por
brincadeira. A facada que nos meteram foi tamanha que nem queira saber da
ferida.
– Pode deixar, pode deixar – resmungava austeramente o homem massudo,
esgrimindo seu cutelo em torno de um bofe.
Ah!, e eram muito joviais os Irzubeta. Que diga o padeiro que teve a audácia
de indignar-se por conta da morosidade de seus fregueses.
Ralhava o tal com uma das moças à porta quando quis o azar que o escutasse
o o cial inspetor, casualmente de visita à casa.
Este, acostumado a dirimir toda a questão a pontapés, irritado pela
insolência que representava o fato de que o padeiro quisesse cobrar o que lhe
era devido, expulsou-o da porta a socos. Isto não deixou de ser uma saudável
lição de bons modos e muitos preferiram não cobrar. En m, a vida encarada
por aquela família era mais jocosa que ópera bufa.
As moças, já com mais de vinte e seis anos e sem noivos, se deleitavam com
Chateaubriand, se enlanguesciam com Lamartine e Cherbuliez. Isto lhes trazia
a convicção de que formavam parte de uma “elite” intelectual, e, por tal
motivo, designavam as pessoas pobres com o adjetivo de gentinha.
Gentinha cabia ao dono do armazém que pretendia cobrar seu ganha-pão,
gentinha era também a lojista de quem tinha surripiado uns metros de renda,
gentinha também o açougueiro que berrava de coragem quando entre as
espreitadeiras, a contragosto, gritavam que “no mês que vem sem falta
pagaremos”.
Os três irmãos, cabeludos e magros, vagabundos renomados, durante o dia
tomavam abundantes banhos de sol e, ao escurecer, vestiam-se com o m de ir
a granjear namoricos entre as perdidas do subúrbio.
As duas anciãs beatas e resmungonas discutiam a cada momento por
bagatelas, ou, sentadas em roda na antiquada sala com as lhas, espiavam por
trás do cortinado e teciam fuxicos; e como descendiam de um o cial que
militara no exército de Napoleão I, muitas vezes, na penumbra que idealizava
seus semblantes exangues, eu as escutei sonhando mitos imperialistas,
evocando empoeirados resplendores de nobreza, enquanto que na solitária
calçada o lanterneiro, com sua vareta coroada por uma chama violeta, acendia a
iluminação verde de gás.
Como não desfrutavam de meios para manter criada e como nenhuma
empregada tampouco poderia suportar os ânimos faunescos dos três safados
cabeludos e os maus humores das voluntariosas donzelas e os caprichos das
bruxas dentuças, Enrique era o leva e traz necessário para o bom
funcionamento daquela claudicante máquina econômica, e tão acostumado ele
estava a pedir ado que seu descaramento, nesse sentido, era inaudito e
exemplar. Em seu elogio, pode-se dizer que um bronze era mais suscetível de
vergonha que sua cara de pau.
As dilatadas horas livres, Irzubeta as entretinha desenhando, habilidade para
a qual não carecia de engenho ou delicadeza, o que não deixa de ser um bom
argumento para comprovar que sempre existiram pilantras com aptidões
estéticas. Como eu não tinha mais o que fazer, estava frequentemente em sua
casa, coisa que não agradava às dignas anciãs, para quem eu estava cagando e
andando.
Dessa união com Enrique, das prolongadas conversas sobre bandidos e
latrocínios, nasceu uma singular predisposição para executar trapaças e um
desejo in nito de nos imortalizarmos com o nome de delinquentes.
Dizia-me Enrique com o motivo de uma expulsão de trogloditas emigrados
da França para Buenos Aires, e que Soiza Reilly tinha noticiado, acrescendo à
reportagem eloquentes fotogra as:
– O presidente da República tem quatro trogloditas que são seus guarda-
costas.
Eu dava risada.
– Deixa de besteira.
– Sério, estou dizendo, e são assim – e abria os braços como um cruci cado
para dar uma ideia da capacidade torácica dos facínoras desandados.
Não me lembro por meio de que sutilezas ou despautérios chegamos a nos
convencer de que roubar era ação meritória e bela; mas, sim, sei que de mútuo
acordo foi que resolvemos organizar um clube de ladrões, do qual àquele
momento apenas nós dois éramos a liados.
Mais adiante veríamos… E para iniciarmos dignamente, decidimos começar
nossa carreira limpando casas desabitadas. Isto acontecia assim:
Depois do almoço, na hora em que as ruas estão desertas, discretamente
vestidos, nós saíamos a percorrer as ruas dos bairros Flores ou Caballito.
Nossas ferramentas de trabalho eram:
Uma pequena chave inglesa, uma chave de fenda e alguns jornais para
embrulhar o peixe.
Onde um cartaz anunciava uma propriedade em aluguel, a gente se dirigia a
solicitar referências; cheios de bons modos e rosto compungido. Parecíamos
dois coroinhas do que qualquer outra coisa.
Uma vez que nos davam as chaves, com o objetivo de conhecer as condições
de habitabilidade das casas para alugar, saíamos apressados.
Ainda não me esqueci da alegria que experimentava ao abrir as portas.
Entrávamos violentamente; ávidos de pilhagem, percorríamos as instalações
avaliando com rápidos olhares a qualidade do roubável.
Se havia instalação de luz elétrica, arrancávamos os cabos, bocais e
campainhas, as lâmpadas e os interruptores, os lustres, os abajures e as pilhas;
do banheiro, por serem niqueladas, as torneiras do chuveiro e as da pia por
serem de bronze, e não levávamos portas e janelas para não nos converter em
ajudantes de frete.
Trabalhávamos instigados por certa jovialidade dolorosa, um nó de
ansiedade preso na garganta, e com a prontidão dos transformistas de palco,
rindo sem motivo, tremendo por nada.
Os cabos pendiam em farrapos das plataformas lascadas pela brusquidão do
esforço; pedaços de gesso e argamassa manchavam os pisos empoeirados; na
cozinha, os canos de chumbo jorravam um interminável veio de água, e em
poucos segundos tínhamos a capacidade de dispor a moradia para uma onerosa
reforma.
Depois Irzubeta ou eu entregávamos as chaves e com rápidos passos
desaparecíamos.
O lugar do reencontro era sempre os fundos da loja de um encanador, uma
gura de Cacaseno com cara de lua, já de idade, ventre e cornos, porque se
sabia que tolerava com paciência franciscana as in delidades de sua esposa.
Quando indiretamente alguém o levava a reconhecer sua condição, ele
replicava com mansidão pascal que sua esposa padecia dos nervos, e diante
argumento de tal solidez cientí ca não cabia senão o silêncio.
Mas para seus interesses era uma raposa.
O perneta conferia meticulosamente nosso balaio de gatos, sopesava os
cabos, provava as lâmpadas com o objetivo de veri car se estavam queimados
os lamentos, farejava as torneiras e com paciência desesperante calculava e
descalculava, até terminar por oferecer a décima parte do que valia o roubo a
preço de custo.
Se discutíamos ou nos indignássemos, o bom homem levantava as pupilas
bovinas, sua cara redonda sorria com sarcasmo, e, sem nos deixar replicar,
dando festivos tapinhas em nossas costas, punha-nos na porta da rua com o
maior trato do mundo e o dinheiro na palma da mão.
Mas não pensem que circunscrevíamos nossas façanhas apenas às casas para
alugar. Não havia ninguém como a gente para o exercício da mão leve!
Cobiçávamos continuamente as coisas alheias. Nas mãos, tínhamos uma
destreza fabulosa, nas pupilas, a astúcia de ave de rapina. Sem pressa e com a
rapidez com que mergulha um falcão sobre a cândida pomba, caíamos em cima
do que não nos pertencia.
Se entrávamos em um café e sobre uma mesa houvesse um talher esquecido
ou um açucareiro e o garçom se distraía, furtávamos ambos; e lá nos balcões da
cozinha ou em qualquer outro canto, encontrávamos o que acreditávamos
necessário para o nosso comum benefício.
Não perdoávamos xícara nem prato, facas ou bolas de sinuca, e recordo
claramente que em uma noite de chuva, em uma cantina muito frequentada,
Enrique passou a mão em um sobretudo e eu, já em outra noite, em uma
bengala com empunhadura de ouro.
Nossos olhos giravam como bolas e se abriam como pires estendidos aos
transeuntes, e enquanto distinguíamos o apetecido, ali estávamos sorridentes,
despreocupados e falastrões, os dedos ligeiros e a mirada bem esquadrinhada
para não dar golpe em falso, como ladrões de meia tigela.
Nos comércios, exercitávamos também esta nata habilidade, e era difícil de
acreditar na maneira por meio da qual engabelávamos os vendedores que
atendiam ao balcão enquanto o patrão cochilava nos fundos.
Com um pretexto ou outro, Enrique levava o atendente à vitrine da rua,
para que orçasse o preço de certos artigos, e, se não tinha ninguém na loja, eu
prontamente abria um mostrador e enchia os bolsos de caixas de lápis, tinteiros
valiosos, e só uma vez foi possível sangrar o dinheiro de uma caixa registradora
sem o aviso sonoro, e outra vez, em uma casa de armas, conseguimos um estojo
com uma dezena de canivetes de aço dourado e cabo de nácar.
Quando durante o dia não havíamos descolado nada, estávamos cabisbaixos,
tristes de nossa torpeza, desiludidos de nosso porvir.
Então rondávamos mal-humorados, até que aparecia algo para ir à forra.
Mas quando o negócio estava no auge e a mixaria dava lugar ao saboroso
dinheiro, esperávamos uma tarde de chuva e saíamos de carro. Que
voluptuosidade era percorrer entre cortinas d’água as ruas da cidade! A gente se
refestelava nos estofamentos puídos, acendíamos um cigarrinho, deixando atrás
as pessoas apressadas debaixo da chuva, e imaginávamos que vivíamos em Paris
ou na nevoenta Londres. Sonhávamos em silêncio, o sorriso pousado no lábio
condescendente.
Depois, em uma confeitaria luxuosa, tomávamos chocolate com baunilha e,
saciados, regressávamos no trem da tarde, duplicadas as energias pela satisfação
do gozo proporcionado ao corpo voluptuoso, pelo dinamismo de todo o
entorno que com seus rumores de ferro gritava em nossa orelha:
Pra frente, pra frente!
Dizia eu pro Enrique certo dia:
– Temos de formar uma verdadeira sociedade de caras inteligentes.
– O difícil é que poucos são como a gente – arguia Enrique.
– Sim, você tem razão; mas não há de faltar.
Poucas semanas depois de falado isso, por diligência do Enrique, associou-se
a nós um tal Lucio, um mané pequeno de corpo e lívido de tanto masturbar-se,
tudo isso somado a uma cara tão sem-vergonha que provocava risada quando
olhávamos pra ele.
Vivia sob a tutela de umas tias velhas e devotas que em muito pouco ou em
nada se ocupavam dele. Este boçal tinha uma ocupação favorita orgânica, e era
comunicar as coisas mais banais adotando precauções como se tratasse de
sinistros segredos. Fazia isto olhando enviesado e movimentando os braços à
semelhança de certos artistas de cinema que atuam de malandros em bairros de
muros cinzentos.
– De pouco nos servirá este energúmeno – disse a Enrique; mas como trazia
o entusiasmo do neó to à recente confraria, sua decisão festiva, rati cada por
um gesto rocambolesco, esperançou-nos.

Como é de praxe, não podíamos carecer de local onde nos reunirmos e o


denominamos, sugestão de Lucio, que foi aceita unanimemente, o “Clube dos
Cavalheiros da Meia-Noite”.
Dito clube estava nos fundos da casa de Enrique, em frente a uma latrina de
paredes imundas e rebocos descascados, e consistia em um estreito cômodo de
madeira empoeirada de cujo teto de tábuas pendiam compridas teias de
aranha. Espalhados pelos cantos, havia montões de títeres inválidos e
desbotados, herança de um titereiro fracassado amigo dos Irzubeta, diversas
caixas com soldadinhos de chumbo atrozmente mutilados, hediondas trouxas
de roupa suja e caixotes entupidos de revistas velhas e jornais.
A porta da pocilga dava para um quintal escuro de tijolos rachados que em
dias chuvosos expeliam lama.
– Não tem ninguém, cara?
Enrique fechou a arruinada espreitadeira de cujos vidros quebrados se viam
grandes rolos de nuvens de estanho.
– Estão lá dentro conversando.
A gente se ajeitou da melhor maneira possível. Lucio ofereceu cigarros
egípcios, formidável novidade pra gente, e acendeu o fósforo na sola de seus
sapatos botando banca. Depois disse:
– Vamos ler o Livro de Atas.
Para que nada faltasse no supracitado clube, havia também um Livro de Atas
no qual se consignavam os projetos dos membros e, também, um carimbo, um
carimbo retangular que Enrique fabricou com uma rolha e no qual se podia
apreciar o emocionante espetáculo de um coração perfurado por três punhais.
Tal livro era redigido por meio de escalonamento, o nal de cada ata era
assinado e cada assinatura tinha o carimbo correspondente.
Ali podiam ler-se coisas como as que seguem:
Proposta de Lucio. – Para roubar no futuro sem necessidade de gazua é
conveniente tirar moldes em cera virgem das chaves de todas as casas visitadas.
Proposta de Enrique. – Também será feito um plano da casa da qual for feita
cópia de chaves. Ditos planos serão arquivados com os documentos secretos da
Ordem e terão de mencionar todas as particularidades do edifício para uma
maior comodidade de quem tenha que agir.
Acordo geral da Ordem. – Nomeia-se desenhista e falsário do Clube o sócio
Enrique.
Proposta de Silvio. – Para introduzir nitroglicerina em um presídio, usa-se
um ovo, retiram-se a clara e a gema e injeta-se o explosivo por meio de uma
seringa.
Se os ácidos da nitroglicerina destruírem a casca do ovo, fabrique-se uma
camisa com algodão-pólvora. Ninguém descon ará que a inofensiva camisa
seja uma carga explosiva.
Proposta de Enrique. – O Clube deve contar com uma biblioteca de obras
cientí cas para que seus confrades possam roubar e matar de acordo com os
mais modernos procedimentos da era industrial. E mais, depois de três meses
de vínculo com o Clube, cada sócio está obrigado a ter uma pistola Browning,
luvas de borracha e cem gramas de clorofórmio. O químico do Clube será o
sócio Silvio.
Proposta de Lucio. – Todas as balas deverão estar envenenadas com ácido
prússico e se testará seu poder tóxico disparando contra o rabo de um cachorro.
O cachorro tem de morrer em dez minutos.
– Aí, Silvio.
– O que foi? – disse Enrique.
Pensei uma coisa. Caberia ser organizados clubes em todo canto do país.
– Não, o principal – eu interrompi – é sermos práticos para agir amanhã.
Não há tempo agora para asneiras.
Lucio arrastou uma trouxa de roupa suja que lhe servia de almofada.
Prossegui:
– O aprendizado daqueles de mão leve tem esta vantagem: dar sangue-frio à
pessoa, que é o mais necessário ao ofício. Além do mais, a prática do perigo
contribui pra que a gente forme hábitos de prudência.
Disse Enrique: – Vamos deixar de retórica e tratar de um caso interessante.
Aqui, no fundo do açougue (a casa de Izurbeta era parede-meia com o dito
fundo), tem um gringo que todas as noites guarda o carro e vai dormir em um
quartinho alugado em um casarão na rua Zamudio. O que você acha, Silvio,
de a gente evaporar com o magneto e com a buzina dele?
– Sabe que é arriscado, né?
– Não tem perigo, cara. Pulamos a cerca. E o açougueiro dorme feito pedra.
Precisamos apenas usar luvas.
– E o cachorro?
– E pra que eu conheço o cachorro?
– Me parece que a casa pode cair pra gente.
– O que você acha, Silvio?
– Eu não gosto dessa ideia.
– Pensa bem, podemos arranjar mais de cem pratas pelo magneto.
– A parada é linda, mas é embaçada.
– E você Lucio, já se decidiu?
– Isso é uma dura?… conta comigo… visto as calças velhas, e não rasgo a
minha “beca”.
– E você, Silvio?
– Eu me mando enquanto minha velha estiver dormindo.
– E a que hora nos encontramos?
– Olha só, Enrique. A parada me desagrada.
– Por quê?
– Não gosto disso. Vão suspeitar da gente. Os fundos… O cachorro que não
late… vai que apanham algum rastro… não me pilha. Você sabe que eu não
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a no pra nada, mas me desagrada. É muito perto e os “vermes fardados” têm
olfato.
– Então vamos deixar pra lá.
Rimos como se acabássemos de descartar uma carta perigosa.
Assim vivíamos dias de emoção sem igual, gozando o dinheiro dos
latrocínios, aquele dinheiro que tinha para nós um valor especial e até parecia
falar com expressiva linguagem.
As cédulas pareciam mais signi cativas com suas imagens coloridas, as
moedas de níquel tilintavam alegremente nas mãos que faziam com elas
malabarismos. Sim, o dinheiro adquirido à força de trapaças aparentava ser
muito mais valioso e sutil, impressionava em uma representação de valor
máximo, parecia que sussurrava nas orelhas um elogio sorridente e uma
picardia incitante. Não era o metal vil e odioso o que se abomina porque se
tem de ganhá-lo com trabalhos penosos, e sim o dinheiro agilíssimo, uma
esfera de prata com duas pernas de gnomo e barba de anão, um dinheiro
voluntarioso e pé-de-valsa cujo aroma, feito o vinho generoso, atraía divinas
orgias.
Nossas pupilas estavam limpas de inquietude, ousaria dizer que irradiava de
nossa testa um halo de soberba e audácia. Soberba por saber que se nossas ações
fossem conhecidas, seríamos conduzidos a um juizado de menores.
Sentados em volta da mesa de um café, às vezes resenhávamos:
– O que você faria diante de um Juiz?
– Eu – respondia Enrique – falaria de Darwin e de Le Dantec (Enrique era
ateu).
– E você, Silvio?
– Negar sempre, mesmo se me cortassem o pescoço.
– E a borracha?
E nós olhávamos espantados. Tínhamos pavor da “borracha”, esse cassetete
que não deixa sinal visível na carne; o cassetete de borracha com que se castiga
o corpo dos ladrões na Delegacia quando demoram a confessar o delito.
Com uma ira mal reprimida, respondi:
– Eles não me catam. Teriam que me matar.
Quando pronunciávamos esta palavra os nervos ferviam, os olhos
permaneciam imóveis, xos na ilusória hecatombe distante, e as narinas
dilatavam aspirando o cheiro de pólvora e de sangue.
– Por isso é que temos de envenenar as balas – retrucou Lucio.
– E fabricar bombas – continuei –. Nada de pena. Temos de arrebentá-los,
aterrorizar os canas. Assim que derem mole, balas… Aos juízes, enviar bombas
pelo correio….
Assim conversávamos em volta da mesa do café, sombrios e deleitando de
nossa impunidade diante das pessoas, dessa gente que não sabiam que éramos
ladrões, e um espanto delicioso nos apertava o coração ao pensar com quais
olhos nos veriam as meninas que passavam se soubessem que a gente, tão
elegantes e jovens, éramos ladrões… Ladrões!

Por volta da meia-noite, me reuni em um café com Enrique e Lucio a de nir


os detalhes de um roubo que pensávamos efetuar.
Escolhendo o canto mais solitário, ocupamos uma mesa junto à vidraça.
Uma chuva na tamborilava o cristal enquanto uma orquestra despejava o
bramido de um tango carcerário.
– Tem certeza, Lucio, de que os vigias não estão lá?
– Absoluta. Agora é época de férias e cada um enrola de um lado.
Tratávamos nada menos que de limpar a biblioteca de uma escola.
Enrique, pensativo, apoiou a bochecha em uma mão. A viseira do chapéu
sombreava seus olhos.
Eu estava inquieto.
Lucio olhava ao redor com a satisfação de um homem para quem a vida é
amável. Para me convencer de que não existia nenhum perigo, franziu os
supercílios e con dencialmente me comunicou pela décima vez:
– Eu sei o caminho. O que está te preocupando? Basta pular a grade que dá
pra rua e cruzar o pátio. Os vigias dormem em uma sala separada do terceiro
andar. A biblioteca está no segundo e do lado oposto.
– O assunto é simples, como dois e dois são quatro – disse Enrique –, o
negócio seria lindo se a gente pudesse levar o Dicionário Enciclopédico.
– E como vamos levar vinte e oito tomos? Você pirou… a menos que chame
um caminhão de mudanças.
Passaram alguns carros com a capota rebaixada e a alta claridade dos faróis,
caindo sobre as árvores, projetava na calçada compridas manchas trêmulas. O
garçom nos serviu café. Continuavam desocupadas as mesas em volta, os
músicos batiam papo no palco, e, do salão de bilhar, chegava o barulho de
tacos com que alguns entusiastas aplaudiam a saída de uma sinuca de bico
complicadíssima.
– Vamos jogar uma mão de pife?
– Sem essa de pife, rapaz.
– Parece que está chovendo.
– Ótimo – disse Enrique –. Estas noites agradavam a Montparnase e a
Tenardhier. Tenardhier dizia: Mais fez Jean-Jacques Rousseau. Esse Tenardhier
era muito sagaz, e essa parte do caô é formidável.
– Ainda tá chovendo?
Lancei o olhar para a pracinha.
A água caía obliquamente, e o vento a ondulava feito um cortinado cinza
entre duas leiras de árvores.
Olhando o verdor dos galhos e as folhagens iluminadas pela claridade de
prata dos faróis, senti, tive uma visão de parques agitados em uma noite de
verão, pelo rumor das festas plebeias e dos fogos vermelhos estourando no azul.
Essa evocação inconsciente me entristeceu.
Daquela última noite malfadada eu conservo lúcida memória.
Os músicos mandavam uma canção que na lousa tinha o nome de “Kiss-
me”.
No ambiente vulgar, a melodia ondulou em ritmo trágico e disperso. Diria
que era a voz de um coro de emigrantes pobres no porão de um transatlântico
enquanto o sol naufragava nas pesadas águas verdes.
Lembro como me chamou a atenção o per l de um violinista de cabeça
socrática e careca resplandecente. Em seu nariz cavalgavam óculos de lentes
embaçadas e se reconhecia o esforço daqueles olhos encobertos pela forçada
inclinação do pescoço sobre o suporte de partituras.
Lucio me perguntou:
– Você continua com a Eleonora?
– Não, já terminamos. Não quer mais ser minha namorada.
– Por quê?
– Porque sim.
A imagem vinculada à languidez dos violinos me penetrou com violência.
Era um chamado da minha outra voz, à vista de seu rosto sereno e doce. Oh!,
quanto me tinha extasiado de pena seu sorriso agora distante, e, da mesa, com
palavras de espírito, falei desta maneira, enquanto desfrutava uma amargura
mais saborosa que a voluptuosidade.
– Ah!, se eu tivesse podido dizer o quanto te amava, assim como na música
“Kiss-me”… te dissuadir com este choro… então talvez… mas ela me amava
também… não é verdade que você me amava, Eleonora?
– Parou de chover… Vamos.
Enrique jogou umas moedas sobre a mesa. Me perguntou:
– Tá com o revólver?
– Sim.
– Não vai falhar?
– Outro dia eu testei. A bala atravessou duas tábuas de construção.
Irzubeta emendou:
– Se a gente se der bem nessa vez eu compro uma Browning; mas pelas
dúvidas eu trouxe um soco-inglês.
– E tá com as pontas?
– Não, tem cada prego que me dá medo.
Um policial atravessou o gramado da praça na nossa direção.
Lucio exclamou em voz alta, o su ciente para ser ouvido pelo tira:
– Acontece que o professor de Geogra a tem raiva de mim, cara, ele tem
raiva de mim.
Atravessada a diagonal da pracinha, nós nos encontrávamos diante do muro
da escola, e ali notamos que começava a chover de novo.
Rodeava o edifício de esquina uma leira de robustas bananeiras, que
tornava densíssima a escuridão no triângulo. A chuva musicalizava um ruído
singular na folhagem.
Alta, a grade mostrava seus dentes agudos unindo os dois corpos do edifício,
elevados e sombrios.
Caminhando lentamente esquadrinhávamos na sombra; depois trepei pelas
barras sem pronunciar palavras, introduzi um pé no aro que agrupava duas
lanças e, feito gato, me precipitei no pátio, permanecendo alguns segundos na
posição em que caí, quer dizer, de cócoras, imóveis os olhos, tocando com a
ponta dos dedos os ladrilhos molhados.
– Não tem ninguém, parceiro. – sussurrou Enrique, que acabava de me
seguir.
– Parece que não, mas que diabos faz o Lucio que ainda não desceu?
Nas pedras da rua, escutamos a batida compassada de ferraduras, depois se
ouviu outro cavalo passando, e nas trevas o ruído foi diminuindo.
Lucio meteu a cabeça sobre as lanças de ferro. Apoiou o pé em um travessão
e se deixou cair com tal sutileza que não se ouviu mais que a sola de seu
calçado ranger sobre o ladrilho.
– Que foi que pegou, hein?
– Um inspetor e um vigilante. Eu z a de quem esperava o bonde.
– Vamos pôr as luvas, beleza?
– Certo, a adrenalina já me fazia esquecer.
– E agora, por onde vamos? Isso é mais escuro que…
– Por aqui…
Lucio fez a de guia, eu saquei o revólver, e os três nos dirigimos ao pátio
coberto pelo terraço do segundo andar.
Na escuridão se distinguia incertamente uma pilastra.
Subitamente me estremeceu a consciência de uma supremacia tal sobre meus
semelhantes, que disse espremendo fraternalmente o braço de Enrique:
– Estamos caminhando muito devagar – e imprudentemente abandonei o
passo mesurado, fazendo ressoar a sola das minhas botas.
No perímetro do edifício, os passos repercutiram multiplicados.
A certeza de uma impunidade absoluta contagiou de otimista rmeza os
meus camaradas, e rimos com tão estridentes gargalhadas que de lá da rua
escura um cachorro errante latiu três vezes.
Radiantes por abafar o perigo com bofetadas de coragem, teríamos gostado
de sonorizá-lo com a claridade de uma fanfarra e a estridente alegria de um
pandeiro, despertar os homens para demonstrar que regozijo nos engrandecia a
alma quando infringíamos a lei e entrávamos sorrindo no pecado.
Lucio, que caminhava nos encabeçando, virou-se:
– A gente devia assaltar o Banco de la Nación dentro de alguns dias.
– Você, Silvio, abre os caixas com seu sistema de arco elétrico.
– Bonnot deve tá aplaudindo a gente lá do inferno – disse Enrique.
– Viva os gatunos Lacombe e Valet – exclamei.
– Eureka – gritou Lucio.
– O que foi?
O menor respondeu:
– Pronto… não te disse, Lucio? Você merece uma estátua… pronto, sabem
o que é?
Nós nos agrupamos em volta dele.
– Não se deram conta? Imagina só, Enrique, a joalheria que está ao lado do
Cine Electra?… Sério, cara; não dá risada. A porcaria do cinema não tem
teto… me lembro de tudo; dali podíamos subir até o teto da joalheria.
Compramos uns ingressos de noite e antes do m da sessão a gente desaparece.
Injetamos clorofórmio pelo buraco da fechadura com uma bombinha de
borracha.
– Certo, e quer saber, Lucio? Será um golpe magní co!… e quem
descon ará de uns moleques. Temos de estudar o projeto.
Acendi um cigarro e, ao lume do fósforo, descobri uma escadaria de
mármore.
Nós nos lançamos escadaria acima.
Chegando ao corredor, Lucio iluminou o lugar com sua lanterna elétrica,
um paralelogramo restringido, prolongado diagonalmente pelo escuro
corredor. Parafusado sobre o marco de madeira da porta havia uma placa
esmaltada cujos caracteres rezavam: “Biblioteca”.
Nós nos aproximamos para avaliá-la. Era antiga e suas altas folhas, pintadas
de verde, deixavam um interstício de uma polegada entre o rodapé e o
pavimento.
Por meio de uma alavanca poderíamos fazer saltar das fechaduras os
parafusos.
– Vamos primeiro ao terraço – disse Enrique –. As cornijas estão cheias de
lâmpadas elétricas.
No corredor, encontramos uma porta que dava para o terraço do segundo
andar. Saímos. A água golpeava nos mosaicos do pátio, e, junto a um alto
muro alcatroado, o vívido resplendor de um relâmpago revelou uma guarita de
madeira cuja porta de tábua permanecia entreaberta.
Vez por outra, a súbita claridade de um relâmpago revelava um longínquo
céu violeta desnivelado por campanários e telhados. O alto muro alcatroado
recortava sinistramente painéis horizontais com sua fachada carcerária.
Penetramos na guarita. Lucio acendeu novamente sua lanterna.
– Nos cantos do quartinho estavam amontoados sacos de serragem, panos de
chão, escovas e vassouras novas. O centro era ocupado por uma volumosa cesta
de vime.
– O que será que tem aí dentro? – Lucio levantou a tampa.
– Lâmpadas.
– Posso ver?
Cobiçosos, nos inclinamos na direção do círculo luminoso que a lanterna
projetava. Entre a serragem, brilhavam cristalinas esfericidades de lâmpadas de
lamento.
– Será que estão queimadas?
– Não, teriam jogado no lixo – mas, para nos convencer, diligente, examinei
os lamentos na sua geometria. Estavam intactos.
Avidamente, roubávamos em silêncio, enchendo os bolsos e, não parecendo
su ciente, pegamos uma sacola de lona que também enchemos de lâmpadas.
Lucio, para evitar que tilintassem, cobriu os interstícios com serragem.
No ventre de Irzubeta, a calça marcava uma protuberância enorme. Tantas
eram as lâmpadas ocultadas ali.
– Se liga só no Enrique, está grávido.
A palhaçada nos fez sorrir.
Nós nos retiramos prudentemente. Como longínquas campainhas soavam as
peras de cristal.
Ao pararmos diante da Biblioteca, Enrique propôs:
– É melhor a gente entrar pra procurar livros.
– E com que abrimos a porta?
– Eu vi uma barra de ferro no quartinho.
– Quer saber o que vamos fazer? Empacotamos as lâmpadas, e, como a casa
de Lucio é a que está mais próxima, ele pode levar pra lá.
O malandro balbuciou:
– Merda! Eu não saio sozinho… não quero ir dormir na jaula.
A pecadora nta do malandro! O botão do seu colarinho tinha soltado, e sua
gravata verde se despencava sobre a camisa de peitilho estropiada. Some a isso
um chapéu com a viseira sobre a nuca, a cara suja e pálida, os punhos da
camisa arregaçados em volta das luvas, e vocês terão a descarada estampa desse
festivo masturbador enxertado em um congênito arrombador de apartamentos.
Enrique, que terminava de alinhar suas lâmpadas, foi buscar a barra de ferro.
Lucio resmungou:
– Que rato o Enrique, não acha?, me deixar plantado aqui sozinho.
– Sem essa. Daqui até a sua casa são só três quadras. Você bem podia ir e
voltar em cinco minutos.
– Não gosto da ideia.
– Já sei que você não gosta… não é de hoje que você é um zero à esquerda.
– E se um cana me encontrar?
– Você se manda; tem pernas pra quê?
Sacudindo como um cão molhado, entrou Enrique.
– E agora?
– Me dá aí, vai ver só.
Enrolei a extremidade da alavanca em um lenço, introduzindo-a na fresta,
mas reparei que, em vez de pressionar na direção do chão, devia ser na direção
contrária.
A porta rangeu e eu me detive.
– Aperta um pouco mais – piou Enrique.
A pressão aumentou, e renovou-se o alarmante chiado.
– Deixa comigo.
O empurrão de Enrique foi tão enérgico que o primitivo rangido estalou em
um estampido seco.
Enrique se deteve e permanecemos imóveis…, desnorteados.
– Bravo! – protestou Lucio.
Podíamos escutar ofegantes nossas respirações. Lucio involuntariamente
apagou a lanterna e isto, acrescido do primeiro espanto, nos deteve na posição
de espreita, sem o atrevimento de um gesto, com as mãos trêmulas e duras.
Os olhos perfuravam essa escuridão; pareciam escutar, captar os sons
insigni cantes e retardatários. Aguda hiperestesia parecia dilatar nossos ouvidos
e permanecíamos feito estátuas, entreabertos os lábios na expectativa.
– O que vamos fazer? – murmurou Lucio.
O medo foi rompido.
Não sei que inspiração me impulsionou a dizer ao Lucio:
– Pega o revólver e vai vigiar a entrada da escadaria, mas lá de baixo.
– E quem é que vai embrulhar as lâmpadas?
– Agora te importam as lâmpadas?… Anda, não se preocupe.
E o gentil perdulário desapareceu depois de lançar no ar o revólver e agarrá-
lo em seu voo com um cinematográ co gesto de gângster.
Enrique abriu cautelosamente a porta da Biblioteca.
A atmosfera se povoou de um cheiro de papel velho, e vimos uma aranha
fugir sob a luz da lanterna pelo piso encerado.
Altas prateleiras envernizadas de vermelho pareciam, além do forro,
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conduzir ao primeiro céu, e a cônica auréola de luz se movia nas escuras
estantes, iluminando prateleiras carregadas de livros.
Majestosas vitrines davam um decoro severo ao ambiente sombrio, e, atrás
das vidraças, nas lombadas de couro, de tecido e de capa dura, reluziam as
guardas arabescas e os títulos dourados na sobrecapa.
Irzubeta se aproximou das vitrines.
A claridade re etida o iluminava de soslaio, e seu per l era como um baixo-
relevo de faces chupadas, com a pupila imóvel e o cabelo negro rodeando
harmoniosamente o crânio até se perder em decline nos tendões da nuca.
Ao direcionar seu olhar até mim, disse sorrindo:
– Sabia que tem bons livros?
– Sim, e de venda fácil.
– Faz quanto tempo que estamos aqui?
– Mais ou menos meia-hora.
Eu me sentei no vértice de uma escrivaninha a poucos passos da porta, no
centro da Biblioteca, e Enrique me imitou. Estávamos exaustos. O silêncio do
ambiente escuro penetrava nossos espíritos, liberando-os para os grandes
espaços de lembranças e inquietude.
– Diz uma coisa, por que você terminou com a Eleonora?
– Sei lá. Você lembra? Ela me dava ores.
– E?
– Depois me escreveu umas cartas. Bem estranho. Quando duas pessoas se
amam, uma parece adivinhar o pensamento da outra. Uma tarde de domingo
ela saiu pra dar uma volta no quarteirão. Não sei por que eu z o mesmo, mas
na direção contrária, e quando nos encontramos, ela, sem olhar pra mim,
estendeu a mão e me deu uma carta. Tinha um vestido rosa chá, e lembro que
muitos pássaros cantavam no gramado.
– E o que dizia?
– Coisas tão simples. Que esperasse… percebe? Que esperasse mais algum
tempo.
– Discreta.
– E que seriedade, viu, Enrique! Se você soubesse. Eu estava ali, encostado
no ferro da grade. Anoitecia. Ela calada…. vez por outra me olhava de uma
forma… e eu tinha vontade de chorar… e não nos dizíamos nada…. o que a
gente podia dizer?
– A vida é assim – disse Enrique –, mas vamos ver os livros. E esse Lucio? Às
vezes me dá raiva. Sujeitinho folgado!
– Onde será que estão as chaves?
– Minha aposta é que estão na gaveta da mesa.
Revistamos a escrivaninha e as encontramos numa caixa de canetas.
Chiou a fechadura, e começamos a dar uma geral.
Tirando os volumes, nós os folheávamos, e Enrique, que manjava algo de
preços, dizia:
– “Não vale nada”, ou “vale”.
– As montanhas de ouro.
– É um livro esgotado. Pagam dez pesos em qualquer parte.
– Evolução da matéria, de Lebón. Tem fotogra as.
– Fico com esse pra mim – disse Enrique.
– Rouquete. Química orgânica e inorgânica.
– Coloca aqui com os outros.
– Cálculo in nitesimal.
– Isso é matemática avançada. Deve ser caro.
– E esse?
– Qual?
– Charles Baudelaire. Sua vida.
– Deixa eu ver, dá aqui.
– Parece uma biogra a. Não vale nada.
Abria o volume ao azar.
– São versos.
– O que dizem?
Li em voz alta:
Te amo como se ama a abóbada noturna,
Ó taça de tristeza, ó grande taciturna
Eleonora – pensei – Eleonora.
Ao assalto me lanço e agito-me na liça
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Como um coro de vermes junto a uma carniça
– Cara, sabia que isso é belíssimo? Vou levar pra casa.
– Bem, olha, enquanto eu empacoto os livros, você arruma as lâmpadas.
– E a luz?
– Traz pra cá.
Segui a indicação de Enrique. Cruzávamos silenciosos de lado a outro, e
nossas sombras moviam-se na abóbada e sobre o piso do lugar, desmesuradas
pela penumbra que ensombrecia os cantos. Familiarizado com a situação de
perigo, nenhuma inquietude entorpecia minha destreza.
No escritório, Enrique ajeitava os volumes e dava uma olhada nas páginas.
Eu, com cuidado, tinha terminado de embrulhar as lâmpadas, quando, no
corredor, reconhecemos os passos de Lucio.
Ele se apresentou com semblante desalinhado, grossas gotas de suor
cravejavam a sua testa.
– Tem um homem vindo aí… Acabou de entrar… apaguem.
Enrique olhou-o atônito e apagou maquinalmente a lanterna; eu, espantado,
apanhei a barra de ferro que não sei quem tinha deixado perto da escrivaninha.
Na escuridão, um cilício de neve cingia a minha testa.
O desconhecido subia a escadaria e seus passos eram incertos.
Repentinamente o espanto chegou a seu ápice e me trans gurou.
Deixava de ser o menino aventureiro; os meus nervos se petri caram, meu
corpo era uma estátua carrancuda transbordando instintos criminais, uma
estátua erguida sobre os membros tensos, acachapados na compreensão do
perigo.
– Quem será? – suspirou Enrique.
Lucio deu de ombros.
Agora o escutávamos mais próximo, e seus passos retumbavam nos meus
ouvidos, comunicando a angústia do tímpano atentíssimo ao tremor da veia.
De pé, com ambas as mãos eu segurava a alavanca em cima da minha
cabeça, pronto pra tudo, disposto a desferir o golpe… e enquanto escutava,
meus sentidos discerniam com prontidão maravilhosa a feição dos sons,
perseguindo-os desde a sua origem, de nindo o estado psicológico daquele que
os provocava.
Com vertigem inconsciente analisava:
– Está se aproximando… sem pensar… se pensasse não pisaria assim…
arrasta os pés… se suspeitasse não tocaria o chão com a sola… o corpo
acompanharia na atitude… seguindo o impulso das orelhas que procuram o
ruído e dos olhos que procuram o corpo, andaria na ponta dos pés… e ele
sabe… está calmo.
De repente, uma enrouquecida voz cantou ali, embaixo, com a melancolia
dos bêbados:
Maldito aquel día que te conocí,
ay macarena, ay macarena.
A sonolenta canção se quebrou bruscamente.
– Suspeitou… não… sim… não… vamos ver – e achei que meu coração
rachava, tanta era a força com que jogava o sangue nas veias.
Ao chegar ao corredor, o desconhecido resmungou novamente:
ay macarena, ay macarena
Enrique – sussurrei – Enrique.
Ninguém respondeu.
Com uma acre hediondez de vinho, o vento trouxe o ruído de um arroto.
– É um bebum – Enrique soprou em minha orelha. Se ele vier, a gente o
amordaça.
O intruso se distanciava arrastando os pés e desapareceu ao nal do
corredor. Parou em uma curva, e o escutamos forçar a maçaneta de uma porta
que fechou estrondosamente atrás dele.
– A gente se livrou de uma boa!
– E você, Lucio… por que está tão calado?
– De alegria, mano, de alegria.
– Como foi que você viu ele?
– Estava sentado na escadaria; vigiando. Zás, do nada sinto um ruído,
espreito e vejo a porta de ferro que se abre. Te “voglio dire”. Que emoção!
– Imagina se o sujeito parte pra cima da gente.
– Apago ele – disse Enrique.
– E agora, o que fazemos?
– O que a gente faz? Se mandar, que já é hora.
Descemos na pontinha dos pés, sorrindo. Lucio levava o pacote de
lâmpadas. Enrique e eu, dois pesados volumes de livros. Não sei por que, na
escuridão da escadaria pensei no resplendor do sol e ri devagar.
– Tá rindo de quê? – perguntou mal humorado Enrique.
– Não sei.
– Será que a gente não vai topar com nenhum cana?
– Não, daqui até em casa não tem nenhum.
– Você já disse isso.
– Além do mais, com essa chuva!
– Caramba!
– O que é que foi, Enrique?
– Esqueci de fechar a porta da biblioteca. Me dá a lanterna.
– Entreguei-a, e a passos largos Irzubeta desapareceu. Aguardando-o, nós
nos sentamos sobre o mármore de um degrau.
Eu tremia de frio na escuridão. A água se estatelava raivosamente contra os
mosaicos do pátio. Involuntariamente, minhas pálpebras fecharam, e pelo meu
espírito resvalou, em um anoitecer longínquo, o semblante de imploração da
amada menina, imóvel, junto ao álamo negro. E a voz interior, recalcitrante,
insistia:
– Eu te amei, Eleonora! Ah!, sim!, se você soubesse o quanto eu te amei.
Quando Enrique chegou, trazia uns volumes embaixo do braço.
– E isso aí?
– É a Geogra a de Malte Brun. Vou guardar pra mim.
– Fechou bem a porta?
– Sim, tanto quanto pude.
– Será que deu certo?
– Não se percebe nada.
– Ai, e aquele bebum? Será que ele se lembrou de trancar a porta da rua?
O pensamento de Enrique se concretizou. O portão estava entreaberto e
saímos.
Uma torrente de água, borbulhando, corria entre as calçadas, e, minguada a
sua fúria, a chuva caía na, compacta, obstinada.
– Grande jogada.
– Sim, grande.
– O que você acha, Lucio, a gente pode deixar isso na sua casa?
– Não diz besteira, amanhã mesmo torramos tudo.
– Foram quantas lâmpadas?
– Trinta.
– Grande jogada – repetiu Lucio – E de livros?
– Eu calculei mais ou menos 70 pesos – disse Enrique.
– Que horas são, Lucio?
– Devem ser três.
Não, não era tarde, mas a fadiga, a angústia, o breu e o silêncio, as árvores
pingando em nossas costas geladas, tudo isso fazia com que a noite parecesse
eterna, e disse Enrique com melancolia:
– Sim, é muito tarde.
Estremecidos de frio e cansaço, entramos na casa de Lucio.
– Devagar, hein, não acordem as velhas.
– E onde guardamos isso?
– Espera aí.
Lentamente, girou a porta em suas dobradiças. Lucio penetrou o quarto e
fez girar a chave do interruptor.
– Venham, parceiros, este é meu muquifo.
– O guarda-roupa em um canto, uma mesinha de madeira branca e uma
cama. Sobre a cabeceira da cama estendia seus retorcidos braços piedosos um
Cristo Negro e, em um quadro, em atitude dolorosíssima, um pôster de Lida
Borelli6 olhava o teto.
Extenuado, caímos na cama.
Nos semblantes relaxados de sono, a fadiga acrescentava escuridão a nossas
olheiras. Nossas pupilas imóveis permaneciam xas nos muros brancos, ora
próximos, ora distantes, como na ótica fantástica de uma febre.
Lucio ocultou os pacotes no guarda-roupa e, pensativo, sentou-se na beirada
da mesa, tomando um joelho entre as duas mãos.
– E a Geogra a?
– Eu levo pra mim.
O silêncio voltou a pesar sobre os espíritos molhados, sobre nossos
semblantes lívidos, sobre as entreabertas mãos roxas.
Eu me levantei sombrio, sem tirar o olhar do muro branco.
– Me dá o revólver que vou indo.
– Eu te acompanho – disse Irzubeta soerguendo-se da cama, e, na escuridão,
nós nos perdemos pelas ruas sem nada dizer, com rosto austero e costas
encurvadas.

Acabava de me despir, quando três batidas frenéticas repercutiram na porta


da rua, três batidas urgentíssimas que me deixaram de cabelo em pé.
Vertiginosamente, pensei:
A polícia me seguiu… a polícia… a polícia… ofegava minha alma.
A batida uivadora se repetiu outras três vezes, com mais ansiedade, com mais
furor, com mais urgência.
Peguei o revólver e, despido, saí à porta.
Mal terminei de abrir a anteporta e Enrique despencou em meus braços.
Alguns livros rodopiaram pelo chão.
– Fecha, fecha que estão me perseguindo; fecha, Silvio – falou com voz
enrouquecida Irzubeta.
Eu o arrastei sob o teto da sala.
– O que está acontecendo, Silvio, o que há aí? – gritou minha mãe assustada
lá do seu quarto.
– Nada, calada… um guarda que corria atrás do Enrique procurando briga.
No silêncio da noite, que o medo era cúmplice da justiça inquisidora,
ressoou o apito cortante de um guarda, e um cavalo a galope cruzou a
quebrada da rua. Outra vez o terrível apito, multiplicado, se repetiu em
distintos pontos próximos.
Feito serpentinas cruzavam à altura as clamantes chamadas dos policiais.
Um vizinho abriu a porta da rua, escutamos vozes de um diálogo, e Enrique
e eu na escuridão da sala, trêmulos, apertávamos um contra o outro. Por todas
as partes os apitos inquietantes se prolongavam ameaçadores, numerosos,
enquanto que da corrida sinistra para caçar delinquentes, nos chegava o ruído
de ferraduras de cavalos, de galopes frenéticos, as bruscas freadas sobre o
escorregadio paralelepípedo, o recuo dos tiras. E eu tinha o perseguido entre
meus braços, seu corpo trêmulo de espanto contra mim, e uma misericórdia
in nita me inclinava sobre o adolescente debilitado.
Eu o arrastei até o meu muquifo. Seus dentes mais pareciam uma
castanhola. Tilintando de medo, deixou-se cair em uma cadeira e suas
sobressaltadas pupilas enegrecidas de espanto se xaram na corada cúpula do
abajur.
Mais uma vez um cavalo atravessou a rua, porém com tanta lentidão a ponto
de achar que pararia em frente da minha casa. Depois, o guarda esporeou sua
montaria e as chamadas dos apitos, que se faziam menos frequentes, cessaram
por completo.
– Água, me dá água.
Busquei uma garrafa, e ele bebeu avidamente. A água cantava na sua
garganta. Um suspiro amplo contraiu seu peito.
Depois, sem tirar a imóvel pupila da cúpula corada, sorria com um sorriso
estranho e incerto de quem desperta de um medo alucinante.
Disse:
– Valeu, Silvio – e ainda sorria, ilimitadamente ampla era sua alma no
inesperado prodígio de sua salvação.
– Mas me conta, como é que foi?
– Veja bem. Ia pela rua. Não tinha ninguém. Ao dobrar a esquina de Sud
América, me dou conta de que, sob um poste, um guarda me observava. Parei
instintivamente, e ele gritou:
– O que você tá levando aí?
– Nem precisa dizer, saí feito um diabo. Ele corria atrás de mim, mas, como
usava capote, não podia me alcançar… já ia deixando ele pra trás… quando lá
longe vejo outro, vindo a cavalo… e o apito, o que me perseguia apitou. Então
z o que pude e cheguei até aqui.
– Viu só… Tudo por que você não quis deixar os livros na casa de Lucio!…
imagina se te catam!
– Vamos todos parar no xilindró! E os livros? Você não perdeu os livros pela
rua?
– Não, caíram aí na varanda.
Ao ir buscá-los, tive de explicar para a minha mãe:
– Não é nada. Foi só porque Enrique estava jogando sinuca com outro cara e
rasgaram sem querer o pano da mesa. O dono quis cobrar e, como ele estava
duro, armou-se um auê.

Estamos na casa de Enrique.


Um relâmpago vermelho penetra pela janelica do covil dos títeres.
Enrique re ete no seu canto, e uma ruga dilatada escava sua testa desde a
raiz dos cabelos até o cenho. Lucio fuma encostado em um monte de roupa
suja, e a fumaça do cigarro envolve seu pálido rosto em uma neblina. Por cima
da pocilga, vindo de uma casa vizinha, entra a melodia de uma valsa tirada
lentamente ao piano.
Eu estou sentado no chão. Um soldadinho sem pernas, vermelho e verde,
me olha da sua casa de papelão destroçado. As irmãs de Enrique batem boca lá
fora com uma voz desagradável.
– E então?…
Enrique levanta a nobre cabeça e olha para o Lucio.
– E então?
Eu olho para o Enrique.
– O que você acha, Silvio? – continua Lucio.
– Não tem nada pra fazer; deixa de besteira, senão a casa cai pra gente.
– Anteontem estivemos por um triz.
– Sim, a coisa não pode ser mais clara. – E Lucio, pela décima vez, relê,
complacente, o recorte de um jornal:
“Hoje, às três da madrugada, o agente Manuel Carlés, parado na esquina da
Avellaneda e Sud América, surpreendeu um sujeito em atitude suspeita que
levava um pacote debaixo do braço. Ao intimá-lo a parar, o desconhecido
disparou a correr desaparecendo em um dos terrenos baldios que existem nas
ruas imediatas ao lugar. A delegacia da 38ª seção lavrou ocorrência.”
– Quer dizer que o clube se dissolve? – disse Enrique.
– Não. Paralisa suas atividades por tempo indeterminado – replica Lucio –.
Não é bom negócio trabalhar agora que a polícia fareja algo.
– Certo; seria uma estupidez.
– E os livros?
– Quantos tomos são?
– Vinte e sete.
– Nove pra cada um… mas a gente precisa não esquecer de apagar com
cuidado os carimbos do Conselho Escolar…
– E as lâmpadas?
Rapidamente, Lucio replica:
– Olha só, parceiros, eu, das lâmpadas, não quero nem saber. Antes de sair
pra torrar elas, jogo uma por uma na sarjeta.
– É, tá certo, é um pouco perigoso agora.
Irzubeta cala.
– Ei, Enrique, você tá triste?
Um sorriso estranho entorta a sua boca; encolhe os ombros e, com
veemência, erguendo o busto, diz:
– Vocês a nam, claro, a rapadura é doce, mas não é mole, mas eu, mesmo
que vocês me deixem na mão, vou seguir.
No muro da cova dos títeres, o relâmpago vermelho ilumina o de nhado
per l do adolescente.

1 Trata-se da literatura de aventuras, de entretenimento juvenil, de caráter folhetinesco, à época


consumida massivamente em Buenos Aires, sobretudo pela população economicamente desfavorecida.
Podia ser facilmente encontrada nas bancas de revista ou em outros tipos de comércios, como aparece
acima. [N. de T.]
2 Os Migueletes, milícia mercenária que atuou como reforço das tropas regulares da região da Catalunha e
parte de Valência durante os con itos de agrados entre o rei Felipe IV e o contraduque Olivares. [N. de.
T.]
3 Yuta - no original. Arlt emprega, como em outros momentos, um termo originário do lunfardo, espécie
de idiossincrasia lexical do espanhol rio-pratense que ora lança mão de jogos anagramáticos com as
palavras, ora de encurtamentos silábicos, ou, ainda, cunhando terminologias que se apropriam de
expressões extraídas de outros idiomas, como, por exemplo, o catalão e o italiano. O étimo do termo em
questão, bem como de quase todo o vocabulário originário do lunfardo, é incerto. Diz-se derivar da
palavra ajuntamento (aYUnTAmiento). Designa, assim, a polícia de ronda daquela época, que saía em
grupos pelo subúrbio de Buenos Aires. Diz-se, também, designar pejorativamente animais que atacam em
bando, como as hienas, os abutres, etc. Escolheu-se, acima, a equivalência na expressão “vermes fardados”
que, em certas periferias brasileiras, designa uma ordem de policiais sanguinolentos, organizados em
grupos, às vezes de natureza miliciana, cuja ação é via de regra violenta, arriscando sempre a matar. [N.
de. T.]
4 No original, há uma particularidade por trás da palavra usada para designar o forro, a cobertura ou
mesmo o teto de uma construção: cielo raso (literalmente, céu liso, plano ou nivelado). Daí, conforme o
contexto da oração acima, podermos captar uma dimensão teleológica, de natureza transcendental, no
que respeita à imagem da biblioteca e o valor encontrado por Astier nos livros e na literatura. A solução
aqui foi traduzir literalmente por teto, mas enfatizando a abertura de um “além”, de um exterior a cuja
contemplação as altas prateleiras da biblioteca parecem conduzir. [N. de T.]
5 Trata-se de versos extraídos do poema XXIV de As ores do mal que, acima, aparecem conforme a
tradução de Ivan Junqueira para os seguintes versos tomados ao original: Je t’adore à l’égal de la voûte
nocturne,/O vase de tristesse, ô grande taciturne,/ (...) Je m’avance à l’attaque, et je grimpe aux assauts,/
Comme après un cadavre un chœur de vermisseaux. Arlt cita traduzindo livremente: Yo te adoro al igual de la
bóveda nocturna/ ¡oh! Vaso de tristezas, ¡oh! Blanca tacitura/ (…)/ y vamos a los asaltos, vamos,/ como frente a
un cadáver, un coro de gitanos. O crítico Muñoz Molina, a cargo do prólogo e das notas de El juguete
rabioso, publicado pela editora Espacio Literario, desaprova a referida tradução arltiana, sugerindo, nesse
sentido, tradução própria, segundo ele mais adequada à estética do poeta francês. Mas Arlt, ao optar pela
tradução altamente subjetiva, vincula uma prática tradutória ao âmago de seu projeto literário, uma
linguagem que faz livre uso dos códigos gramaticais. Além disso, Arlt arma, à maneira dos precursores
borgeanos, uma sorte de linhagem de “traduções equivocadas” na literatura argentina, cuja célebre
emergência está na epígrafe do Facundo de Sarmiento, conforme já discutiu o crítico e escritor argentino
Ricardo Piglia. [N. de T.]
6 Trata-se de Lydia Borelli (1881-1959), diva do cinema mudo. Arlt se equivoca na gra a do nome da
atriz italiana. [N. de T.]
capítulo 2

OS TRABALHOS E OS DIAS
Como o dono da casa aumentara o aluguel, trocamos de bairro, mudando
para um sinistro casarão da rua Cuenca, na saída do bairro Floresta.
Deixei de ver Lucio e Enrique, e uma acre treva de miséria se assenhoreou
dos meus dias.
Certo entardecer, quando completei quinze anos, minha mãe disse:
– Silvio, você precisa trabalhar.
Eu, que lia um livro ao lado da mesa, levantei os olhos observando-a com
rancor. Pensei: trabalhar, sempre trabalhar. Mas não respondi.
Ela estava de pé em frente da janela. Azulada claridade crepuscular incidia
nos seus cabelos embranquecidos, no rosto amarelo, rabiscado de rugas, e me
tava obliquamente, entre desgostosa e compadecida, e eu evitava encontrar
seus olhos.
Insistiu, compreendendo a gravidade do meu silêncio.
– Você precisa trabalhar, entende? Não quis estudar. Eu não posso te
sustentar. É necessário que você trabalhe.
Ao falar, ela apenas movia os lábios, delgados como duas tabuinhas.
Escondia as mãos nos plissados do xale preto que modelava seu pequeno busto
de ombros caídos.
– Tem de trabalhar, Silvio.
– Trabalhar, trabalhar de quê? Pelo amor de Deus… O que a senhora quer
que eu faça?... que invente o emprego…? Já sabe muito bem que andei
procurando trabalho.
Falava estremecido de coragem; rancor por suas palavras teimosas, ódio à
indiferença do mundo, à miséria nossa de cada dia e, ao mesmo tempo, uma
pena inominável: a certeza da própria inutilidade.
Mas ela insistia como se fossem essas suas únicas palavras.
– De quê?… deixa ver, de quê?
Maquinalmente se aproximou da janela e, com um movimento nervoso,
ajeitou as rugas da cortina. Como se lhe custasse dizer:
– Os jornais sempre anunciam vagas…
– Sim, de lavador de pratos, peão… quer que eu seja lava-pratos?
– Não, mas você tem de trabalhar. O pouco que sobrou dá só para a Lila
terminar de estudar. Mais nada. O que você quer que eu faça?
Sob a barra da saia expôs uma botina estropiada e disse:
– Olha só essas botinas. Lila, para não gastar com livros, tem de ir todos os
dias à biblioteca. O que você quer que eu faça, lho?
Agora sua voz era de tribulação. Um sulco escuro fendia a sua testa, indo do
cenho até a raiz dos cabelos e quase tremia os lábios.
– Tudo bem, mãe, vou trabalhar.
Quanta desolação. A claridade azul martelava na alma a monotonia de toda
nossa vida, implicava hedionda, taciturna.
Ouvia-se vindo lá de fora o canto triste de uma roda de crianças:
La torre en guardia.
La torre en guardia.
La quiero conquistar.
Suspirou em voz baixa.
– O que mais queria é que você pudesse estudar.
– Estudar não serve pra nada.
– No dia que Lila se formar…
A voz era mansa, com tédio de dar pena.
Tinha se sentando junto à máquina de costura, e, no per l, abaixo da na
linha de sobrancelha, o olho era uma cova sombria com um brilho branco e
triste. Suas pobres costas encurvadas, e a claridade azul na lisura dos cabelos
deixava certa claridade de iceberg.
– Quando penso… – murmurou.
– Mãe, a senhora está triste?
– Não – respondeu.
De repente:
– Quer que eu fale com o senhor Naidath? Você pode aprender a ser
decorador. Não gosta do ofício?
– É tudo igual.
– Mas isso dá dinheiro...
Eu me senti impulsionado a me levantar, a tomá-la pelos ombros e
chacoalhá-la, gritando na orelha dela:
– Não fale de dinheiro, mãe, por favor…! Não fale… ca calada…!
Estávamos ali, imóveis de angústia. Lá fora a ciranda das crianças ainda
cantava com melodia triste:
La torre en guardia.
La torre en guardia.
La quiero conquistar.
Pensei:
– E assim é a vida, e quando eu crescer e tiver um lho, direi a ele: “Você
tem que trabalhar. Eu não posso te sustentar”. Assim é a vida. Uma rajada de
frio me sacudia na cadeira.
Agora, tando-a, observando seu corpo tão mesquinho, o meu coração se
encheu de pena.
Acreditei vê-la fora do tempo e do espaço, em uma paisagem agreste, a
planície parda e o céu metálico de tão azul. Eu era tão pequeno que nem podia
caminhar, e ela, agelada pelas sombras, angustiadíssima, caminhava à margem
dos caminhos, levando-me nos seus braços, acalentando-me os joelhos com o
peito, estreitando todo meu corpinho contra seu corpo mesquinho, e
mendigava por mim, e, enquanto me dava o peito, um calor de soluço secava a
sua boca, e de sua boca faminta ela retirava o pão para dar a minha boca, e de
suas noites, o sono para atender às minhas queixas, e com os olhos
resplandecidos, com seu corpo vestido de míseras roupas, tão pequena e tão
triste, abria-se como que um véu para acolher meu sono.
Coitada da minha mãe. Teria gostado de abraçá-la, fazê-la inclinar a
embranquecida cabeça no meu peito, pedir-lhe perdão por minhas palavras
duras, e, de repente, no prolongado silêncio que guardávamos, disse com voz
vibrante:
– Sim, vou trabalhar, mãe.
Delicadamente:
– Muito bem, lho, muito bem… – e outra vez a dor profunda selou os
nossos lábios.
Lá fora, sobre a rosada crista de um muro, resplandecia na paisagem celeste
um fúlgido tetragrama de prata.

Dom Gaetano tinha sua livraria, melhor dito, sua casa de compra e venda de
livros usados, na rua Lavalle 800, uma loja imensa, entupida de volumes até o
teto.
O lugar era mais comprido e tenebroso que o antro de Trofônio.
Seja lá aonde fosse o olhar, existiam livros: livros em mesas formadas por
tábuas em cima de cavaletes, livros nos mostradores, nos cantos, embaixo da
mesa e no porão.
Uma extensa fachada mostrava aos transeuntes o conteúdo da caverna, e nos
muros da rua pendiam volumes de histórias para imaginações vulgares, o
romance de Genoveva de Barbante e As aventuras de Mussolini. Em frente, como
em um enxame, as pessoas alvoroçavam pelo átrio de um cinema, com sua
sineta repicando incessantemente.
No mostrador, junto à porta, atendia a esposa de dom Gaetano, uma mulher
gorda e branca, de cabelo castanho e olhos admiráveis por sua expressão de
crueldade verde.
– Dom Gaetano não está?
A mulher me apontou um grandalhão que em mangas de camisa olhava lá
da porta o vai e vem das pessoas. Atava uma gravata preta ao pescoço nu, e o
cabelo encrespado sobre a testa tumultuosa deixava ver por entre seus cachos a
ponta das orelhas. Era um belo tipo, com seu vigor e sua pele morena, mas, sob
as pestanas hirsutas, os olhos grandes e de ressaca causavam descon ança.
O homem apanhou a carta na qual me recomendavam, leu-a; depois,
entregando-a para a sua esposa, cou me examinando.
Uma grande ruga fendia sua testa, e, pela atitude cautelosa e prazenteira,
adivinhava-se homem descon ado por natureza e trapaceiro, ao mesmo tempo
que meloso, de açucarada bondade ngida e de falsa indulgência em suas
cavernosas gargalhadas.
– Quer dizer que antes você trabalhou em uma livraria?
– Sim, patrão.
– E trabalhava muito, o outro?
– Bastante.
– Mas não tem tanto livro como aqui, hein?
– Ah, claro, nem a décima parte.
Depois, falou à esposa:
– E o Mosiú, ele não vem mais trabalhar?
A mulher, com tom áspero, disse:
– Assim são todos esses piolhentos. Quando matam a fome e aprendem a
trabalhar, se vão.
Disse, e apoiou o queixo na palma da mão, mostrando entre a manga da
blusa verde um pedaço do braço nu. Seus olhos cruéis se imobilizaram na rua
transitadíssima. Incessantemente, repicava a campainha do cinema, e um raio
de sol, perpassando entre os altos muros, iluminava a fachada do edifício da
Dardo Rocha.
– Quanto você quer ganhar?
– Eu não sei… o senhor que sabe.
– Bem, olha… Vou te pagar um peso e meio mais casa e comida; vai viver
melhor que um príncipe, isso sim – e o homem inclinava sua grenhuda cabeça
– aqui não tem horário… a hora de mais trabalho é das oito às onze…
– O que, às onze da noite?
– E o que mais um rapaz como você poderia querer senão estar até às onze
da noite olhando lindas moças? Mas pela manhã a gente se levanta às dez.
Recordando o conceito que Dom Gaetano merecia daquele que me
recomendara, disse:
– Tudo bem, mas, como preciso do dinheiro, vocês me pagarão todas as
semanas.
– O que, não con a na gente?
– Não, senhora, mas como em minha casa necessitam e somos pobres… a
senhora compreenderá…
A mulher voltou seu olhar ultrajante para a rua.
– Bom – prosseguiu dom Gaetano –, vem amanhã às dez ao apartamento;
vivemos na rua Esmeralda – e anotando a direção em um pedaço de papel, me
entregou.
A mulher não respondeu a minha despedida. Imóvel, a bochecha repousada
na palma da mão e o braço despido apoiado na lombada dos livros, os olhos
xos na frente da casa da Dardo Rocha, parecia o oráculo tenebroso da caverna
dos livros.

Às nove da manhã eu esperei na casa onde vivia o livreiro. Depois de


chamar, abrigando-me da chuva, eu me refugiei no saguão.
Um velho barbudo, de pescoço enrolado em um cachecol verde e gorro
en ado até as orelhas, saiu para me receber.
– O que você quer?
– Eu sou o novo empregado.
– Suba.
Eu me lancei pelo vão da escadaria de degraus sujos.
Quando chegamos ao corredor, o homem disse:
– Espere aqui.
Detrás dos vidros da janela que dava para a rua, diante da sequência de
varandas, via-se o achocolatado cartaz de ferro de uma loja. A garoa resvalava
lentamente pela convexidade envernizada. Lá longe, uma chaminé entre dois
tanques lançava grandes lenços de fumaça ao espaço pespontado por agulhas de
água.
Repetiam-se as nervosas batidas de campainha dos bondes, e entre o “trolley”
e os cabos vibravam faíscas violentas; o cacarejo de um galo afônico vinha não
sei de onde.
Uma súbita tristeza me sobreveio ao me defrontar com o abandono daquela
casa.
Os vidros das portas estavam sem cortinas, as espreitadeiras, fechadas.
Em um canto da sala, no chão coberto de poeira, havia um pedaço de pão
duro esquecido, e na atmosfera utuava um cheiro de cola azeda: certa carniça
de sujeira há muito tempo úmida.
– Miguel – gritou a mulher lá de dentro, com voz desagradável.
– Já vai, senhora.
– O café já está pronto?
O velho levantou os braços no ar e, fechando os punhos, dirigiu-se para a
cozinha cruzando uma área molhada.
– Miguel.
– Senhora.
– Onde está a camisa que a Eusebia trouxe?
– No baú pequeno, senhora.
– Dom Miguel – falou debochadamente o homem.
– Diga, dom Gaetano.
O velho moveu a cabeça a torto e a direito, levantando desconsoladamente
os olhos ao céu.
Era magro, alto, carrancudo, com barba de três dias nas ácidas bochechas e
expressão desolada de cachorro perdido nos olhos remelentos.
– Dom Miguel.
– Diga, dom Gaetano.
– Vá me comprar um Avanti.
O velho se apressava.
– Miguel.
– Senhora.
– Traz meio quilo de açúcar em torrão, e que seja bem pesado.
Uma porta se abriu, e saiu dom Gaetano segurando a braguilha com as duas
mãos e um pedaço de pente dependurado no cabelo crespo sobre a testa.
– Que horas são?
– Não sei.
– Olhou para a área aberta.
– Tempo porco – murmurou, e depois começou a pentear-se.
Ao chegar dom Miguel com o açúcar e as cigarrilhas toscanas, dom Gaetano
disse:
– Traz o cesto, depois você leva o café pra loja – e encasquetando-se em um
ensebado chapéu de feltro, pegou o cesto que o velho lhe entregara e, dando-o
para mim, disse:
– Um conselho, viu Silvio. Não gosto de dizer duas vezes as coisas. Além
disso, comprando no mercado a gente sabe o que come.
Entristecido, saí atrás dele com o cesto, um cesto impudicamente enorme
que, batendo nos meus joelhos com os seus chiados, tornava mais grotesco,
mais profundo o fardo de ser pobre.
– O mercado é longe?
– Não, homem, aqui na Carlos Pellegrini – e observando-me consternado,
disse:
– Parece que você tem vergonha de levar um cesto. Mas o homem honesto
não deve ter vergonha de nada, desde que seja trabalho.
Um dândi em quem esbarrei com a cesta me lançou um olhar furioso; um
rancoroso porteiro uniformizado desde cedo com magní ca libré e galões de
ouro, observou-me irônico, e um pilantrinha que passou, como quem o faz
inadvertidamente, deu um pontapé no traseiro da cesta, e o cesto pintado de
vermelho-rabanete, impudicamente grande, realçava-me o ridículo.
– Oh!, ironia, logo eu que havia sonhado ser um grande bandido feito
Rocambole e um poeta genial feito Baudelaire!
Pensava:
– E pra viver é preciso sofrer tanto…? Isso tudo… ter que passar com um
cesto ao lado de esplêndidas vitrines…
Perdemos quase toda a manhã vagando pelo Mercado del Plata.
Bela pessoa era dom Gaetano!
Para comprar um repolho, ou uma fatia de moranga, ou um maço de
alfaces, percorria as bancas disputando, em discussões chulas, moedas de cinco
centavos com os verdureiros, com os quais revessava insultos em um dialeto
que eu não entendia.
Que homem! Tinha atitudes de caipira astuto, de roceiro que se faz de tonto
e responde com uma piadinha quando compreende que não pode enganar.
Farejando pechinchas, metia-se entre faxineiras e diaristas para fuçar coisas
que não lhe deviam interessar, fazendo cumprimentos arlequinescos e,
aproximando-se das bancas de estanho dos pescadores, examinava guelras de
merluzas e peixes-reis, comia camarões e, sem comprar um marisco sequer,
passava à banca das vendedoras de miúdos, dali à das vendedoras de galinhas e,
antes de barganhar qualquer coisa, cheirava os frangos descon adamente. Se os
comerciantes se irritavam, ele gritava que não queria ser enganado, que bem
sabia que eles eram uns ladrões, e que se equivocavam se lhe tomavam por
bobo só porque era tão simples.
Sua simplicidade era grosseria, sua ignorância, vivíssima pilantragem.
Assim procedia:
Selecionava com paciência exasperante um repolho ou uma couve- or.
Estava de acordo, posto que pedia preço, mas logo descobria outro que lhe
parecia mais fresco ou maior, e isso era o motivo da disputa entre o verdureiro
e dom Gaetano, ambos empenhados em se roubar, em prejudicar o próximo,
ainda que fosse em mísero centavo.
Sua má fé era estupenda. Jamais pagava o estipulado, e sim o que oferecia
antes de fechar o trato. Uma vez que eu havia guardado os frangos no cesto,
dom Gaetano se retirava do mostrador, mergulhava os polegares no bolso do
jaleco, tirava e contava, tornava a recontar o dinheiro e, desrespeitosamente, o
jogava em cima do balcão como se zesse um favor ao comerciante, afastando-
se depressa depois.
Se o comerciante gritasse, ele respondia:
– Estate buono.
Tinha o demônio do movimento, era uma pantagruélico visual, entrava em
êxtase diante da mercadoria pelo dinheiro que representava.
Aproximava-se dos vendedores de porco para perguntar o preço dos
embutidos, examinava com cobiça as rosadas cabeças de porco, fazia-as girar
devagar sob o impassível olhar dos pançudos comerciantes de avental branco,
coçava-se atrás da orelha, olhava com voluptuosidade as costelas enganchadas
aos ferros, as pilastras de toicinho em fatias e, como se resolvesse um problema
que dava nó em seus miolos, dirigia-se a outra banca, para beliscar uma lua de
queijo, ou para contar quantos espargos tem um maço, para sujar as mãos entre
alcachofras e nabos, e para comer sementes de abóbora, ou para observar os
ovos à contraluz, e para se deleitar nos pilões de manteiga úmida, sólida,
amarela e ainda cheirando a soro.
Aproximadamente às duas da tarde almoçamos. Dom Miguel apoiando o
prato em um caixote de querosene, eu em um canto de uma mesa cheia de
livros, a mulher gorda na cozinha e dom Gaetano no mostrador.

Às onze da noite abandonamos a caverna.


Dom Miguel e a mulher gorda caminhavam no centro da rua lustrosa, com
o cesto onde chacoalhavam os cacarecos de fazer café; dom Gaetano, as mãos
sepultadas nos bolso, o chapéu no cocuruto e uma mecha de cabelos caída
sobre os olhos, e eu, atrás deles, pensava o quão longa havia sido a minha
jornada.
– Você trouxe colchão?
– Eu não. Por quê?
– Aqui tem uma caminha, mas sem colchão.
– E não tem nada com que se cobrir?
Dom Gaetano olhou em volta, logo abriu a porta da sala de jantar; em cima
da mesa havia uma capa verde, pesada e peluda.
Dona Maria já entrava no dormitório quando dom Gaetano pegou a capa
por uma ponta e, jogando-a sobre meu ombro, mal-humorado, disse:
– Estate buono – e sem responder ao meu boa-noite fechou a porta na minha
cara.
Fiquei desconcertado diante do velho, que testemunhou sua indignação com
esta surda blasfêmia: “Ah!, Dío Fetente!”; depois começou a andar, e eu o segui.
O antro onde morava o ancião famélico, a quem desde então batizei com o
nome de Dío Fetente, era um triângulo absurdo, inclinado junto ao teto, com
uma janelinha de nada, redonda, que dava para a rua Esmeralda e pela qual se
via a lâmpada de arco voltaico que iluminava a calçada. O vidro da claraboia
estava quebrado, e por ali metiam rajadas de vento que faziam dançar a língua
amarela de uma vela pregada em um castiçal na parede.
Encostada na parede havia uma cama desmontável, dois paus em cruz com
uma lona cravada na armação.
Dío Fetente saiu para urinar no terraço, depois se sentou em um caixote,
tirou o gorro e as botas, ajeitando prolixamente o cachecol em torno do
cangote e preparando-se para enfrentar o frio da noite, entrou prudentemente
no catre, cobrindo-se até a barba com as mantas, uns sacos de aniagem
recheado de trapos sem serventia.
A mortiça claridade da vela iluminava o per l de seu rosto, de um comprido
nariz vermelho, achatada testa estriada de rugas, e crânio limpo, com vestígios
de os cinzas nas orelhas. Como o vento que entrava lhe incomodava, Dío
Fetente esticou o braço, apanhou o gorro e o afundou sobre as orelhas, depois
tirou do bolso uma bituca de charuto toscano, acendeu, lançou longas
baforadas de fumaça e, juntando as mãos sob a nuca, cou me olhando
sombrio.
Eu comecei a examinar minha cama. Muitos deviam ter padecido nela, de
tão deteriorada que estava. Tendo a ponta das molas rasgado a malha, estas
cavam no ar como fantásticos cacheados, e os grampos das alças tinham sido
substituídos por ligaduras de arame.
Seja como for, não ia passar a noite em êxtase, e após comprovar sua
estabilidade, imitando Dío Fetente, tirei as botinas que, enroladas em um
jornal, me serviram de travesseiro, eu me enrolei na capa verde e, deixando-me
cair no fementido leito, resolvi dormir.
Indiscutivelmente, era cama de um fodido, um refugo de gueto, o sepulcro
mais tacanho que jamais conheci.
As molas me penetravam as costas; parecia que suas pontas queriam perfurar
a carne entre as costelas, a malha de aço rígida em uma zona penetrava
impiedosamente em um ponto, enquanto que outro, por maravilhas da
elasticidade, elevava promontórios, e a cada movimento que eu fazia o leito
grunhia, rangia com ruídos estupendos, à semelhança de um jogo de
engrenagens sem óleo. Além disso, eu não encontrava posição cômoda, a rígida
pelúcia da capa irritava a minha garganta, a ponta das botinas me intumescia a
nuca, as espirais das molas dobradas me beliscavam a carne.
– Diga lá, Dío Fetente!
Como uma tartaruga, o ancião lançou sua pequena cabeça no ar por entre a
carapaça de aniagens.
– Diga, dom Silvio!
– Que diabo de gente é essa que ainda não jogou esse catre no lixo?
O venerável ancião, esbugalhando os olhos, me respondeu com um suspiro
profundo, tomando assim Deus por testemunha de todas as iniquidades dos
homens.
– Diz aí, Dío Fetente, não tem outra cama?… Não posso dormir nisso...
– Esta casa é o inferno, dom Silvio… o inferno – baixando a voz, temeroso
de ser ouvido:
– Isto é… a mulher… a comida… Ah, Dío Fetente, que casa esta!
O velho apagou a luz, e eu pensei:
– Decididamente, vou de mal a pior.
Agora escutava o barulho da chuva caindo sobre o zinco da calha.
De repente, um soluço sufocado me perturbou. Era o velho que chorava,
que chorava de desgosto e fome. E este foi meu primeiro dia de trabalho.
Algumas vezes, na noite, há rostos de donzelas que ferem com espada de
doçura. Nós nos afastamos, e a alma ca entenebrecida e solitária, como depois
de uma festa.
Realizações excepcionais… foram-se, e não sabemos mais delas e, no
entanto, elas nos acompanharam uma noite, tendo o olhar xo em nossos
olhos imóveis… e nós, feridos com espadas de doçuras, pensamos como seria o
amor dessas mulheres com esses semblantes que cortam na carne.
A itiva aridez do espírito, peregrina voluptuosidade áspera e autoritária.
Pensamos como inclinariam a cabeça até nós para deixar em direção ao céu
seus lábios entreabertos, como se deixariam desmaiar de desejo sem desmentir
com a beleza do semblante um momento ideal; pensamos como suas próprias
mãos despedaçariam os laços do espartilho…
Rostos… rostos de donzelas maduras para os desesperos do júbilo, rostos
que subitamente acrescentam nas entranhas um desfalecimento ardente, rostos
nos quais o desejo não desmente a idealidade de um momento. Como eles vêm
ocupar nossas noites?
Eu estive horas contínuas perseguindo com os olhos a forma de uma donzela
que durante o dia me deixou nos ossos ansiedade de amor.
Devagar, considerava seus encantos envergonhados de ser tão adoráveis, sua
boca feita tão só para os grandes beijos; via seu corpo submisso grudar na carne
chamativa de seu desengano, e insistindo na delícia de seu abandono, na
magní ca pequenez de suas partes quebradiças, a vista ocupada pelo semblante,
pelo corpo jovem para o tormento e para uma maternidade, estendia um braço
na direção da minha podre carne; fustigando-a, deixava-a se aproximar do
deleite.

Naquele momento, dom Gaetano voltava da rua e foi para a cozinha.


Olhou-me carrancudo, mas não disse nada, e eu me inclinei sobre o pote de
cola ao mesmo tempo em que reparava um livro, pensando: o tempo vai fechar.
Certamente, com breves intervalos, o casal brigava.
A mulher branca, imóvel, apoiada com os cotovelos no mostrador, as mãos
enroladas nas dobras do lencinho verde, seguia os passos do marido com olhos
cruéis.
Dom Miguel, na apertada cozinha, lavava pratos em uma bacia
engordurada. As pontas do seu cachecol roçavam os bordes do tacho, e um
avental em xadrez azul e vermelho amarrado na cintura com um cordão o
protegia dos respingos de água.
– Mas que casa, Dío Fetente!
Tenho de advertir que a cozinha, lugar de nossos estouros, dava de frente
para uma latrina putrefata, era um dos cantos da caverna, fechado com
tapumes detrás das estantes.
Em cima de uma tábua suja, cobertos com sobras de verduras, havia
pequenos pedaços de carne e batatas, com os quais dom Miguel confeccionava
o magro jabá do meio-dia. O que resistia à nossa voracidade era servido à
noite, sob a forma de guisado estrambótico. E era Dío Fetente o gênio e mago
desse antro hediondo. Ali maldizíamos a nossa sorte; ali dom Gaetano se
refugiava às vezes para meditar sombrio nos dissabores que traz consigo o
matrimônio.
O ódio que fermentava no peito da mulher terminava por estourar.
Bastava um motivo insigni cante, uma ninharia qualquer.
Subitamente, a mulher, encarnada em um furor sombrio, abandonava o
mostrador e, arrastando as sandálias pelo piso, as mãos enroladas no seu
lencinho, os lábios apertados e as pálpebras imóveis, procurava o marido.
Lembro a cena desse dia:
Como de costume, nessa manhã dom Gaetano ngiu não vê-la, embora ela
se encontrasse a três passos dele. Eu vi que o homem inclinou a cabeça na
direção de certo livro, simulando ler o título.
Parada, a mulher branca cou imóvel. Apenas seus lábios tremiam como
tremem as folhas.
Depois, ela disse com uma voz que tornava grave certa monotonia terrível.
– Eu era linda. O que você fez da minha vida?
Sobre a sua testa os cabelos tremeram como se passara vento.
Um sobressalto sacudiu o corpo de dom Gaetano.
Com exaltação que lhe inchava a garganta, ela lhe atirou estas palavras
pesadas, salitrosas:
1
– Eu te reergui… Quem era sua mãe… senão uma “bagazza” que andava
com todos os homens? O que você fez da minha vida…?
– Maria, cala essa boca! – respondeu com voz cavernosa dom Gaetano.
2
– Sim, quem matou a sua fome e te vestiu…? Eu, “strunzo”… eu te dei de
comer – e a mão da mulher se levantou como se quisesse castigar o rosto do
homem.
Dom Gaetano esquivou-se, trêmulo.
Ela disse com amargura, soltando um soluço, um soluço pesado de salitre:
– O que você fez da minha vida… seu porco? Eu estava na minha casa, na
or da idade, e não tinha necessidade de casar com você, “strunzo”…
Os lábios da mulher se retorceram convulsivamente, como se mastigasse um
ódio pegajoso, terrível.
Eu saí para dispersar os curiosos do umbral da loja.
– Deixa eles, Silvio – gritou pra mim, imperiosa –, que escute quem quiser
esta vergonha – e escancarados os olhos verdes, dando a sensação de que seu
rosto fosse enquadrado, como no fundo de um tela, prosseguiu mais pálida:
– Se eu fosse diferente, se andasse solta por aí, viveria melhor… estaria longe
de um porcalhão como você.
Calou-se e relaxou.
Agora dom Gaetano atendia a um senhor de sobretudo, com grandes óculos
de ouro cavalgando no no nariz avermelhado pelo frio.
Exaltada por sua indiferença, pois o homem devia estar habituado a essas
cenas e preferia ser insultado a perder seus benefícios, a mulher vociferou:
– Não repare, senhor, não está vendo que é um napolitano ladrão?
O senhor de idade voltando-se assombrado para olhar a fúria, e ela:
– Pede vinte pesos por um livro que custou quatro – e, como dom Gaetano
não virava as costas, ela gritou até que o seu rosto se congestionou:
– Sim, você é um ladrão, um ladrão! – e cuspiu seu despeito, seu asco.
O senhor de idade disse, colocando os óculos:
– Voltarei outro dia – e saiu indignado.
Então dona Maria pegou um livro e, bruscamente, arremessou-o na cabeça
de dom Gaetano, depois outro e outro.
Dom Gaetano pareceu afogar-se de furor. De repente, arrancou-se o
colarinho, a gravata preta, e atirou-a ao rosto de sua mulher; depois aquietou-se
por um momento como se tivesse recebido um golpe na fronte e depois
disparou a correr, saiu até a rua, os olhos saltando das órbitas, e parando no
meio do passeio, movendo a cabeça nua, raspada, mostrando-a como um louco
aos transeuntes, os braços esticados, gritou com voz arti cial pela coragem:
– Vaca… sua vaca… enormíssima vaca!
Satisfeita, ela achegou-se a mim:
– Viu só como ele é? Não vale nada… canalha! Juro que às vezes me dá
vontade de deixá-lo – e retornando ao mostrador, cruzou os braços,
permanecendo abstraída, o cruel olhar xo na rua.
De repente:
– Silvio.
– Senhora.
– Quantos dias ele te deve?
– Três, contando hoje, senhora.
– Toma – e, entregando-me o dinheiro, emendou: – Não con e nele,
porque é um trapaceiro… Deu o golpe em uma Companhia de Seguros; se eu
quisesse, ele estaria na prisão.
Eu fui para cozinha.
– O que você acha disso, Miguel…?
– Um inferno, dom Silvio. Que vida, Dío Fetente!
E o velho, ameaçando aos céus com o punho, exalou um longo suspiro,
depois baixou a cabeça sobre o tacho e seguiu descascando batatas.
– A troco do que fazem essa zona?
– Não sei… não têm lhos… ele não dá no couro…
– Miguel.
– Diga, senhora.
A voz estridente ordenou:
– Não faça comida; hoje não se come. E quem não gostar que se mude.
– Foi o golpe de misericórdia. Algumas lágrimas caíram pelo arruinado
semblante do velho famélico.
Passaram uns instantes.
– Silvio.
– Senhora.
– Toma, são cinquenta centavos. Compra algo de comer pra você – e
enrolando os braços nas dobras do lencinho verde, recobrou sua feroz posição
habitual. Nas faces lívidas, duas lágrimas brancas resvalaram lentamente até a
comissura da boca.
Comovido, murmurei:
– Senhora…
Ela me tou, e sem mover o rosto, sorrindo com um sorriso convulsivo de
tão estranho, disse:
– Vai e volta às cinco.

Aproveitando a tarde livre, resolvi ir ver o senhor Vicente Timoteo Souza, a


quem eu havia sido recomendado por um desconhecido, que se dedicava às
ciências ocultas e demais artes teosó cas.
Apertei o botão da campainha e permaneci olhando a escadaria de mármore,
cujo tapete vermelho, xo por barras de bronze, era banhado pelo sol através
dos vidros da pesada porta de ferro.
Preguiçosamente desceu o porteiro, fardado de preto.
– O que você deseja?
– O senhor Souza está?
– Quem é o senhor?
– Astier.
– As…
– Sim, Astier. Silvio Astier.
– Aguarde, vou ver – e após examinar-me dos pés à cabeça, desapareceu atrás
da porta do saguão, forrado por longas cortinas de um branco amarelado.
Eu esperava afobado, com angústia, sabendo que uma resolução daquele
grande senhor chamado Vicente Timoteo Souza podia mudar o destino da
minha juventude desafortunada.
Novamente a pesada porta se entreabriu e, solene, o porteiro me comunicou:
– O senhor Souza disse para você voltar dentro de meia-hora.
– Obrigado… obrigado… até logo – e eu me retirei pálido.
Entrei em uma lanchonete próxima da casa e, sentando-me junto a uma
mesa, pedi ao garçom um café.
“Indubitavelmente – pensei –, se o senhor Souza vai me receber é para me
dar o emprego prometido”.
“Não – continuei –, não havia razão para pensar mal do Souza… Vai saber
de todas as ocupações que ele tinha para não me receber…”
Ah, o senhor Timoteo Souza!
Fui apresentado a ele em uma manhã de inverno pelo teósofo Demétrio, que
tratava de remediar minha situação.
Sentados no hall, ao redor de uma mesa talhada, de ondulantes contornos, o
senhor Souza, brilhantes as escanhoadas faces e as vivazes pupilas detrás das
espelhadas lentes de seu pincenê, conversava. Recordo que vestia um felpudo
déshabilé com galões de madrepérola e punhos lontra, destacando sua pinta de
rastaquera que, para distrair-se, pode se permitir a liberdade de conversar com
um pobre diabo.
Conversávamos e, referindo-se à minha possível linhagem psicológica, dizia:
– Redemoinhos de cabelo, caráter indócil…; crânio achatado no occipício,
temperamento re exivo… pulso trêmulo, índole romântica…
O senhor Souza, voltando-se para o teósofo impassível, disse:
– Vou fazer este pobre diabo estudar para ser médico. O que você acha,
Demétrio?
– De acordo… embora todo homem possa ser útil para a humanidade, por
mais insigni cante que seja sua posição social.
– He, he; o senhor sempre losofando – e o senhor Souza, virando para
mim, disse:
– Vamos ver… amigo Astier, escreva o que lhe vem à cabeça neste momento.
Vacilei; depois anotei com uma preciosa lapiseira de ouro que, deferente, o
homem me entregou:
“A cal ferve quando molhada”.
– Meio anarquista, hein? Cuide do seu cérebro, amiguinho… cuide dele,
que entre os 20 e 22 anos você vai sofrer um surmenage.
Como ignorava, perguntei:
– O que quer dizer surmenage?
Empalideci. Ainda agora, quando relembro, me dá vergonha.
– É um dito – reparou –. Todos nossos sentimentos é conveniente que sejam
dominados. – E prosseguiu:
– O amigo Demétrio me disse que o senhor já inventou não sei quantas
coisas.
Pelos vidros do biombo penetrava grande claridade solar, e uma súbita
recordação de miséria me entristeceu de tal forma que vacilei em responder,
porém o z, com voz amarga.
– Sim – algumas coisinhas… um projétil sinalizador, um contador
automático de estrelas…
– Teorias… sonhos... – interrompeu-me, esfregando-se as mãos –. Eu
conheço o Ricaldoni, e, apesar de todos seus inventos, nunca passou de um
simples professor de física. Aquele que quer enriquecer tem de inventar coisas
práticas, simples.
Eu me senti laminado de angústia.
Continuou:
– Quem patenteou aquele brinquedo, o diabolô, você sabe quem foi?… Um
estudante suíço, entediado com o inverno em seu quarto. Ganhou uma
fortuna, igual a este outro norte-americano que inventou o lápis com
borrachinha em uma ponta.
Calou-se, e tirando uma cigarreira de ouro com um orão de rubis no dorso,
ofereceu-nos cigarros de fumo suave.
O teósofo recusou inclinando a cabeça, eu aceitei. O senhor Souza
continuou:
– Mudando de assunto. Segundo me comunicou o amigo aqui presente, o
senhor precisa de um emprego.
– Sim, senhor, um emprego onde eu possa progredir, porque onde estou…
– Sim… sim… já sei, a casa do napolitano… já sei… que sujeito. Muito
bem, muito bem… creio que não haverá inconvenientes. Redija-me uma carta
detalhando todas as particularidades do seu caráter, com franqueza, e não tenha
dúvidas de que eu posso ajudá-lo. Quando eu prometo, cumpro.
Levantou-se da poltrona com negligência.
– Amigo Demétrio… grande gosto… venha ver-me logo, que quero
apontar-lhe uns quadros. Jovem Astier, espero sua carta – e sorrindo, agregou:
– Cuidadinho, não vai me enganar…
Uma vez na rua, eu disse entusiasmado ao teósofo:
– Que bondoso é o senhor Souza… e tudo graças ao senhor… muito
obrigado.
– Vamos ver… vamos ver.
Deixei de evocar para perguntar que hora era ao garçom da lanchonete.
– Dez pras duas.

– O que terá decidido o senhor Souza?


No intervalo de dois meses havia lhe escrito frequentemente, encarecendo-
lhe a minha precária situação, e depois de longos silêncios, de breves bilhetes
que não assinava e escritos à máquina, o homem endinheirado se dignava a me
receber.
– Sim, há de ser para me dar um emprego, talvez na administração
municipal ou no governo. Se for assim, que surpresa pra minha mãe! – e ao me
lembrar dela, nessa leiteria com exames de moscas voando em volta de
pirâmides de alfajores e pão de leite, uma ternura súbita me umedeceu os
olhos.
Joguei fora o cigarro e, pagando o consumido, dirigi-me à casa do Souza.
Minhas veias latejavam com violência quando toquei.
Retirei imediatamente o dedo do botão da campainha, pensando:
– Ele não pode supor que estou impaciente pra ser recebido e isso o
desagrade.
Quanta timidez houve no circunspecto chamado! Parecia que o fato de
apertar o botão da campainha queria dizer:
– Perdoe se incomodo, senhor Souza… mas tenho necessidade de um
emprego…
A porta se abriu.
– O senhor… – balbuciei.
– Entre.
Na pontinha dos pés eu subi a escadaria atrás do fâmulo. Embora as ruas
estivessem secas, havia esfregado a sola das minhas botinas no capacho de ferro
do umbral para não suar nada ali.
Na entrada, paramos. Estava escuro.
O criado, junto à mesa, ajeitou uns caules de ores em seu púcaro de cristal.
Abriu-se uma porta, e o senhor Souza compareceu em traje de passeio, de
olhar cintilante atrás das lentes do seu pincenê.
– Quem é você? – gritou com dureza.
Desconcertado, repliquei:
– Mas, senhor, eu sou Astier…
– Não o conheço, senhor; não me amole mais com suas cartas
impertinentes. Juan, acompanhe esse senhor.
Depois, virando-se, fechou fortemente a porta nas minhas costas.
E outra vez, mais triste, sob o sol, empreendi o caminho em direção à
caverna.

Uma tarde, depois que se insultaram até enrouquecer, a mulher de dom


Gaetano, compreendendo que este não abandonaria a loja como das outras
vezes, resolveu ir embora.
Saiu até a rua Esmeralda e voltou ao apartamento com uma trouxa branca.
Depois, para prejudicar o marido que tagarelava ofensivamente um couplet na
porta da caverna, dirigiu-se à cozinha e chamou a Dío Fetente e a mim. Pálida
de raiva deu a ordem para mim:
– Tira essa mesa, Silvio. – Tinha os olhos mais verdes que nunca e duas
manchas de ruge nas bochechas. Sem se importar com que a barra de sua saia
sujasse na umidade do chiqueiro, curvava-se separando os utensílios que
levaria.
Eu, tratando de não me manchar de gordura, retirei a mesa, uma tábua
pegajosa com quatro pés podres. Ali preparava suas gororobas o dilacerado do
Dío Fetente.
Disse a mulher:
– Vire as pernas pra cima.
Compreendi seu pensamento. Queria transformar o cacareco em um
carrinho de mão.
Não me enganei.
Dío Fetente varreu com vassoura muitas teias de aranha do fundo da mesa.
E após cobri-la com um pano de prato, a mulher despejou nas tábuas um
volume branco, as panelas cheias de pratos, facas e garfos, com um cordão
amarrou o aquecedor Primus em um dos pés da mesa e, paralisada de tanto ir
de um lado a outro, disse, vendo quase tudo terminado:
– Que vá comer num copo-sujo, esse cachorro.
Acabando de arrumar os pacotes, Dío Fetente, debruçado sobre a mesa,
parecia um quadrúmano com gorro, e eu, com as mãos em forma de jarra,
elucubrava pensando onde dom Gaetano nos proporcionaria nossa magra boia.
– Você segura aí na frente.
Dío Fetente, resignado, segurou o bordo do tabuleiro e eu também.
– Caminha devagar – gritou a mulher, cruel.
Derrubando uma pilha de livros, passamos diante de dom Gaetano.
– Vai, sua porca… vai embora – vociferou ele.
Ela trincou os dentes com furor.
– Ladrão!… Amanhã vai vir o Juiz – e entre dois gestos de ameaça, nós nos
distanciamos.
Eram sete da tarde e a rua Lavalle estava em seu mais babilônico esplendor.
Os cafés, através das vitrines, viam-se abarrotados de consumidores; nos átrios
dos teatros e cinemas aguardavam desocupados elegantes, e os manequins das
lojas de roupa com suas pernas calçadas com nas meias, e suspensos por
suportes niquelados, as vitrines ortopédicas e joalherias mostravam opulência à
astúcia de todos esses comerciantes que adulavam com artigos de malícia a
voluptuosidade das pessoas de poder aquisitivo.
Os transeuntes se desviavam de nosso caminho por pensar que podíamos
manchá-los com a imundice que levávamos conosco.
Envergonhado, pensava no ridículo semblante de pícaro que eu devia ter; e,
para aumentar ainda mais o infortúnio, como que apregoando sua ignomínia,
os talheres e pratos tilintavam escandalosamente. As pessoas paravam para
olhar a gente passar, regozijadas do espetáculo. Eu não mantinha os olhos em
ninguém, tão humilhado me sentia, e suportava, como a mulher gorda e cruel
que rompia a marcha, as pilhérias que nossa aparição provocava.
Vários carregadores nos escoltavam, oferecendo-nos seus serviços de
carroceiros, mas dona Maria, surda a todos, caminhava adiante da mesa, cujos
pés se iluminavam ao passar na frente das vitrines. Por m, os carroceiros
desistiram da perseguição.
Vez por outra, Dío Fetente virava para mim seu rosto barbudo sobre o
cachecol verde. Grossas gotas de suor corriam por suas faces sujas, e em seus
olhos lastimosos brilhava uma perfeita desesperação canina.
Na praça Lavalle, descansamos. Dona Maria nos fez depositar a padiola no
chão e, examinando escrupulosamente a carga, conferiu o fardo e acomodou as
panelas, cujas tampas ela reatou com as quatro pontas de pano de prato.
Engraxates e vendedores de jornal tinham feito um círculo à nossa volta. A
prudente presença de um policial evitou possíveis complicações, e novamente
empreendemos caminho. Dona Maria ia à casa de uma irmã que vivia na
esquina de Callao com Viamonte.
De vez em quando, virava seu rosto pálido, me olhava, um sorriso leve lhe
franzia o lábio descolorido, e dizia:
– Você está cansado, Silvio? – e um sorriso dispersava a minha vergonha; era
quase uma carícia que aliviava o coração do espetáculo de crueldade –. Você
está cansado, Silvio?
– Não, senhora – e ela, voltando a sorrir com um sorriso estranho que
lembrava o de Enrique Irzubeta quando escapou dos agentes de polícia,
deliberadamente avançava no caminho.
Agora íamos por ruas solitárias, discretamente iluminadas, com bananeiras
vigorosas na beira das calçadas, elevadas construções de fachadas lindas e vitrais
cobertos de amplos cortinados.
Passamos junto a uma sacada iluminada.
Um adolescente e uma menina conversavam na penumbra; da sala
alaranjada partia a melodia de um piano.
Todo o meu coração se apequenou de inveja e de a ição.
Pensei.
Pensei que eu nunca seria como eles… nunca viveria em uma casa linda e
tampouco teria uma namorada da aristocracia.
Todo o meu coração se apequenou de inveja e de a ição.
– Já estamos quase lá – disse a mulher.
Um amplo suspiro dilatou nossos peitos.

Quando dom Gaetano nos viu entrar na caverna, levantando os braços ao


céu, gritou alegremente:
– Vamos comer no hotel, rapazes!… Ei, dom Miguel, você gostou? Depois
vamos sair por aí. Fecha, fecha a porta, porcaria.
Um sorriso maravilhosamente infantil demudou a cara suja de Dío Fetente.
Algumas vezes, à noite, eu pensava na beleza com que os poetas
estremeceram o mundo, e todo o coração me transbordava de pena como uma
boca com um grito.
Pensava nas festas a que eles assistiam, as festas das cidades, as festas nos
sítios arborizados com tochas de sol nos jardins orescidos, e de entre as mãos
escorria a minha pobreza.
Já não tenho nem encontro palavras com que pedir misericórdia.
Baldia e feia como um joelho a nu é minha alma.
Procuro um poema que não encontro, o poema de um corpo a quem o
desespero povoou subitamente em sua carne, de mil bocas grandiosas, de dois
mil lábios gritadores.
Aos meus ouvidos chegam vozes distantes, resplendores pirotécnicos, porém
estou aqui, sozinho, condenado à minha terra de miséria, preso por nove
cravos.

Terceiro andar, apartamento 4, Charcas 1600. Tal era o endereço no qual


deveria entregar o pacote de livros.
Estranhos e singulares são esses luxuosos lares de apartamentos.
Por fora, com suas harmoniosas linhas de métopas que realçam a
suntuosidade das cornijas virtuosas e soberbas, e com suas amplas janelas
protegidas por vidros ondulados, fazem os pobres-diabos sonhar com
verossímeis re namentos de luxo e poderio; mas, por dentro, a escuridão polar
dos saguões profundos e solitários espanta o espírito do admirador dos grandes
céus adornados de Walhallas de nuvens.
Parei junto ao porteiro, um sujeito atlético que, metido em sua beca azul, lia
com ar de prepotência um jornal.
Como um Cérbero, ele me examinou dos pés à cabeça; depois, satisfeito por
comprovar hipoteticamente que eu não era um ladrãozinho, com uma
indulgência que unicamente podia nascer do soberbo quepe azul com
trancinha de ouro sobre a viseira, deu a permissão para entrar, dando-me uma
única indicação:
– O elevador, à esquerda.
Quando saí da jaula de ferro eu me encontrei em um corredor escuro, de pé
direito baixo.
Uma lâmpada esmerilhada difundia sua claridade fúnebre pelo piso lustroso.
A porta do apartamento indicado era de uma só folha, sem vidros, e parecia,
por sua pequena fechadura de bronze, a porta de uma monumental caixa de
aço.
Bati, e a criada de saias pretas e avental branco me fez entrar em uma salinha
forrada de papel azul, sulcada de lívidas e enormes ores douradas.
Através de vidros cobertos de tafetá penetrava uma azulada claridade de
hospital. Piano, bibelôs, peças de bronze, oreiras, tudo eu observava. De
repente um delicadíssimo perfume anunciou sua presença; a porta lateral se
abriu e me encontrei diante de uma mulher de rosto pueril, leves melenas
cacheadas junto às faces e amplo decote. Um felpudo chambre cor de cereja
não chegava a cobrir suas pequenas sandálias brancas e douradas.
– Qu’y a t-il, Fanny?
– Quelques livres pour Monsieur…
– Precisam ser pagos?
– Já estão pagos.
– Qui…
– C’est bien. Donne le pourboire au garçon.
De uma bandeja, a criada apanhou algumas moedas para me entregar, e
então respondi:
– Eu não recebo gorjeta de ninguém.
Com dureza, a criada retraiu a mão, e explicou meu gesto à cortesã, assim
acho, porque ela disse:
– Très bien, très bien, et tu ne reçois pas ceci?
E antes que eu evitasse, melhor dito, que eu aceitasse em toda sua plenitude,
a mulher, rindo, beijou a minha boca, e ainda a vi quando desaparecia rindo
como uma pirralha pela porta entreaberta.
Dío Fetente acorda e começa a se vestir, quer dizer, a calçar as botinas.
Sentado na beirada do estrado, sujo e barbudo, ele olha ao redor com ar
entediado. Estica o braço e apanha o gorro, en ando-o da cabeça até as orelhas;
logo olha os seus pés, os pés encobertos por grossas meias vermelhas e, depois,
metendo o dedo mindinho na orelha, saracoteia-o rapidamente produzindo
um barulho desagradável. Cria ânimo e calça as botinas; depois, encurvado,
caminha até a porta do quartinho, vira-se, olha para o chão, e achando uma
guimba de cigarro a apanha, sopra a poeira grudada e a acende. Sai.
Nas lajotas do terraço escuto como arrasta os pés. Eu me permito car.
Penso, não, não penso, melhor dito, recebo do meu âmago uma nostalgia doce,
um sofrimento mais doce que uma incerteza de amor. E me lembro da mulher
que me deu um beijo de gorjeta.
Estou cheio de imprecisos desejos, de uma vaguidade que é como neblina, e
penetrando-se em todo meu ser, o torna quase aéreo, impessoal e alado. De vez
em quando, a lembrança de uma fragrância, da brancura de um peito, me
atravessa unânime, e sei que desfaleceria de amor se me encontrasse outra vez
com ela; penso que não me importaria pensar que foi possuída por outros
homens e que se me encontrasse outra vez junto a ela, nessa mesma sala azul,
eu me ajoelharia no carpete e colocaria a cabeça sobre seu regaço, e pelo júbilo
de possuí-la e amá-la faria as coisas mais ignominiosas e as coisas mais doces.
E à medida que se destrança meu desejo, eu reconstruo os vestidos com que
a cortesã se embelezará, os chapéus harmoniosos com que se cobrirá para ser
mais sedutora, e a imagino junto a seu leito, em uma seminudez mais terrível
que a nudez.
E embora o desejo por mulher me surja lentamente, eu desdobro os atos e
prevejo que felicidade seria para mim um amor dessa índole, com riquezas e
com glória; imagino quais sensações se propagariam em meu organismo se da
noite para o dia, riquíssimo, despertasse nesse dormitório com minha jovem
querida calçando-se seminua junto ao leito, como vi nas imagens dos livros
viciosos!
E de repente, todo meu corpo, meu pobre corpo humano clama ao senhor
dos Céus.
– E eu, eu, Senhor, não terei nunca uma amada tão linda como essa amada
que reluz na impressão dos livros viciosos!

Uma sensação de nojo começou a enervar minha vida dentro daquele antro,
rodeado dessa gente que não vomitava mais que palavras de ganância ou
ferocidade. Fui contagiado pelo ódio que lhes crispava as fuças e momentos
houve em que percebi dentro do meu crânio uma neblina vermelha que se
movia com lentidão.
Certo cansaço terrível me prostrava os braços. Vezes houve em que eu quis
dormir dois dias com suas duas noites. Tinha a sensação de que meu espírito
estava se sujando, de que a lepra dessa gente me cindia a pele do espírito, para
escavar ali suas cavernas escuras. Deitava-me raivoso, levantava taciturno. O
desespero me dilatava as veias, e sentia entre meus ossos e minha pele o
crescimento de uma força antes desconhecida de meus nervos sensórios. Assim
eu permanecia horas escornado, em uma abstração dolorosa. Uma noite, dona
Maria, encolerizada, ordenou que eu limpasse a latrina porque estava
asquerosa. E obedeci sem dizer palavra. Creio que eu buscava motivos para
multiplicar em meu âmago uma nalidade obscura.
Outra noite, dom Gaetano, rindo, eu querendo sair, pôs uma mão sobre
meu estômago e outra sobre meu peito para certi car-se de que não lhe
roubasse livros, levando-os escondidos nesses lugares. Não consegui indignar-
me nem sorrir. Era necessário isso, sim, isso; era necessário que minha vida, a
vida que durante nove meses um ventre de mulher havia nutrido penosamente,
sofresse todos os ultrajes, todas as humilhações, todas as angústias.
Ali comecei a car surdo. Durante alguns meses perdi a percepção dos sons.
Um silêncio a ado, porque o silêncio pode adquirir até a forma de uma
navalha, cortava as vozes em meus ouvidos.
Não pensava. Meu entendimento se embotou em um rancor côncavo, cuja
concavidade dia a dia fazia-se mais ampla e encouraçada. Assim ia se
incubando meu rancor.
Eles me deram um sino, um chocalho. E era divertido, Deus é Pai!, ver um
pilantra da minha estatura dedicado a tão baixa tarefa. Eu me estacionava na
porta da caverna nas horas de maior trânsito na rua, e sacudia a sineta para
chamar as pessoas, para atrair a atenção das pessoas, para que as pessoas
soubessem que ali se vendiam livros, belos livros… e que as nobres histórias e
as altas belezas deviam ser negociadas com o homem dissimulado ou com a
mulher gorda e pálida. E eu sacudia o chocalho.
Muitos olhos me despiram lentamente. Vi rostos de mulheres que não
esquecerei jamais. Vi sorrisos que ainda me gritam troça nos olhos…
Ah!, é verdade que eu estava cansado… mas não está escrito: “ganharás o
pão com o suor do teu rosto”?
E esfreguei o chão, pedindo licença a deliciosas donzelas para poder passar o
trapo no lugar que elas ocupavam com seus pezinhos, e fui à compra de um
cesto enorme; levei recados… Possivelmente, se me tivessem cuspido na cara,
eu me limparia tranquilo com as costas da mão.
Caiu sobre mim uma escuridão cujo tecido se tornava espesso lentamente.
Perdi na memória os contornos dos rostos que eu havia amado com
recolhimento choroso; tive a noção de que meus dias estavam distanciados
entre longos espaços de tempo… e meus olhos se secaram para o choro.
Então repeti palavras que antes tiveram um sentido pálido em minha
experiência.
– Sofrerás – dizia para mim, sofrerás… sofrerás… sofrerás…
– Sofrerás… sofrerás…
– Sofrerás… – e a palavra caía dos meus lábios.
Assim amadureci ao longo de todo o inverno infernal.

Uma noite, foi no mês de julho, precisamente no momento em que dom


Gaetano fechava a portinhola da cortina metálica, dona Maria lembrou que
tinha esquecido na cozinha uma trouxa de roupa que a lavadeira trouxera essa
tarde. Então disse:
– Ei, Silvio, vem cá, vamos lá pegar.
Enquanto dom Gaetano acendia a luz, eu a acompanhei. Lembro com
exatidão.
A trouxa estava no centro da cozinha, sobre uma cadeira. Dona Maria, de
costas para mim, agarrou a orelha de pano da trouxa. Eu, ao virar os olhos, vi
uns carvões acessos no braseiro. E, naquele brevíssimo intervalo, pensei:
– É isso… – e sem vacilar, apanhando uma brasa, eu a atirei em um monte
de papéis que estava na beirada de uma prateleira apinhada de livros, enquanto
dona Maria se punha a caminhar.
Depois dom Gaetano desligou a chave do interruptor, e estávamos na rua.
Dona Maria olhou o céu estrelado.
– Linda noite… vai gear… – Eu também olhei ao alto.
– Sim, está linda a noite.

Enquanto Dío Fetente dormia, eu, incorporado no meu sepulcro, olhava o


círculo branco de luz que pela claraboia vinha a estampar a parede a partir da
rua.
Na escuridão, eu sorria liberto… livre… de nitivamente livre, pela
consciência de hombridade que me dava minha ação anterior. Pensava, melhor
dito, não pensava, entrelaçava delícias.
– Esta é a hora das cocottes.
Uma cordialidade fresca como um copinho de vinho fazia-me fraternizar
com todas as coisas do mundo a estas horas da madrugada. Dizia:
– Esta é a hora das mocinhas… e dos poetas… mas que ridículo que sou…
e, apesar disso, eu te beijaria os pés.
– Vida, Vida, que linda que você é, Vida… ah!, mas você não sabe? Eu sou o
rapaz… o empregado… sim, de dom Gaetano… e, apesar disso, eu amo todas
as coisas mais belas da Terra… gostaria de ser lindo e genial… vestir uniformes
resplandecentes… e ser taciturno… Vida, que linda que você é. Vida… que
linda… Meu Deus, que linda que você é.
Encontrava prazer em sorrir devagar. Passei os dedos em forquilha pelas
maçãs do meu rosto. E o grasnido das buzinas dos automóveis se prolongavam
lá em baixo, na rua Esmerado, como um rouco pregão de alegrias.
Depois tombei a cabeça sobre meu ombro e fechei os olhos, pensando:
– Qual pintor fará o quadro do empregado dormindo que, em seus sonhos,
sorri porque incendiou a ladroeira do amo?
Depois, lentamente, se dissipou a embriaguez. Veio uma seriedade sem tom
nem som, uma dessas seriedades que é de bom gosto ostentá-la em paragens
povoadas. E eu sentia vontade de rir da minha seriedade intempestiva,
paternal. Mas como a seriedade é hipócrita, foi preciso fazer comédia da
“consciência” no quartinho, e me disse:
– Acusado… O senhor é um canalha… um incendiário. O senhor tem
bagagem de remorso para toda a vida. O senhor vai ser interrogado pela
polícia, pelos juízes e pelo diabo… ponha-se sério, acusado… O senhor não
compreende que é necessário ser sério… porque vai ser plantado em uma cela.
Minha seriedade, porém, não me convencia. Era pura cara de tacho da
minha parte. Não, eu não podia levar a sério essa misti cação. Eu agora era um
homem livre, e o que tem a ver a sociedade com a liberdade? Eu agora era livre,
podia fazer o que me desse na telha… me matar, se quisesse… mas isso era algo
ridículo… e eu… eu tinha a necessidade de fazer algo formosamente sério,
belamente sério: adorar a Vida. E repeti:
– Sim, Vida… você é uma linda, Vida… sabia? Daqui por diante adorarei
todas as coisas belas da Terra… verdade… adorarei as árvores, e as casas, e os
céus… adorarei tudo o que está em você… aliás… diga, Vida, não é verdade
que eu sou um rapaz inteligente? Você conheceu alguém que fosse como eu?
Depois eu peguei no sono.

O primeiro a entrar na livraria essa manhã foi dom Gaetano. Eu o segui.


Tudo estava como havíamos deixado. A atmosfera com um relento de mofo e,
lá no fundo, na lombada de coro dos livros, uma mancha de sol que se
in ltrava pela claraboia.
Eu me dirigi à cozinha. A brasa tinha se extinguido, ainda úmida de água,
com a qual Dío Fetente zera uma poça ao lavar os pratos.
E foi o último dia que trabalhei ali.

1 Expressão que tem origem no dialeto genovês e que poderia ser traduzida como bagaceira, rameira,
mulher moralmente rebaixada. [N. de T.]
2 Expressão que tem origem no dialeto genovês e que poderia ser traduzida como seu bosta, borra botas
ou cagão. [N. de T.]
capítulo 3

O
TÍTERE RAIVOSO
Depois de lavar os pratos, de fechar as portas e abrir as espreitadeiras, eu me
recostei na cama, porque fazia frio.
Sobre a cerca, o sol avermelhava obliquamente os tijolos.
Minha mãe cosia em outro quarto, e minha irmã fazia a lição de casa. Eu
decidi ler. Sobre uma cadeira, junto à cabeceira da cama, tinha as seguintes
obras:
Virgem e mãe, de Luis de Val, Eletrotécnica, de Bahia, e um Anticristo, de
Nietzsche. A Virgem e mãe, quatro volumes de mil e oitocentas páginas cada
um, eu tomara emprestado a uma vizinha passadeira.
Já comodamente deitado, observei com displicência Virgem e mãe.
Evidentemente, hoje não me encontrava disposto à leitura do dramalhão
truculento e então, decidido, apanhei a Eletrotécnica e me pus a estudar a teoria
do campo magnético giratório.
Eu lia devagar e com satisfação. Pensava já interiorizado da complicada
explicação acerca das correntes polifásicas.
– É um sintoma de uma inteligência universal poder presentear-se com
distintas belezas, e os nomes de Ferranti e Siemens Halscke ressoavam em meus
ouvidos harmoniosamente.
Pensava:
– Eu também, algum dia, poderei dizer perante um congresso de
engenheiros: “Sim, senhores… as correntes eletromagnéticas que geram o sol
podem ser utilizadas e condensadas”. Genial, primeiro condensadas, depois
utilizadas! – diabo, como poderiam ser condensadas as correntes magnéticas do
sol?
Eu sabia, por notícias cientí cas que aparecem em distintos periódicos, que
Tesla, o mago da eletricidade, havia idealizado um condensador de raio.
Assim sonhava até o anoitecer, quando, no quarto ao lado, eu escutei a voz
da senhora Rebeca Naidath, amiga da minha mãe.
– Olá!, como vai, frau Drodman? Como vai minha lhinha?
Levantei a cabeça do livro para escutar.
A senhora Rebeca pertencia ao rito judaico. Sua alma era ruim, porque seu
corpo era pequeno. Caminhava como uma foca e esquadrinhava como uma
águia… Eu a detestava por certas rapinagens que me havia feito.
– Silvio não está aqui? Preciso falar com ele. – Em um piscar de olhos ela
estava no outro quarto.
– Olá!, como tem passado, frau, e as novidades?
– Você entende de mecânica?
– Claro… Sei umas coisas. Você não mostrou pra ela, mãe, a carta de
Ricaldoni?
Efetivamente, Ricaldoni tinha me felicitado por algumas combinações
mecânicas absurdas que eu havia idealizado em minhas horas de
vagabundagem.
A senhora Rebeca disse:
– Sim, eu a vi. Toma – passando-me um jornal em cuja página seu dedo
ornado de sujeira apontava um anúncio, comentou:
– Meu marido disse que eu viesse e te avisasse. Leia.
Com os punhos nos quadris, lançava o busto até mim. Levava um
chapeuzinho preto cujas penas des adas pendiam lamentáveis. Suas pupilas
pretas inspecionavam ironicamente o meu rosto e, vez por outra, afastando as
mãos dos quadris, coçava o nariz encurvado com os dedos.
Eu li:
“Precisa-se de aprendizes de mecânicos de aviação. Dirigir-se à Escolar Militar
de Aviação. Palomar Caseros”.
– Caramba, que linda notícia, frau, muito obrigado… Será que dá tempo de
ir hoje?
– Sim, você pega um trem pra La Paternal, diga ao guarda que vai descer em
La Paternal, toma o 88. Te deixa na porta.
– Sim, ainda hoje, Silvio, é melhor – recomendou minha mãe sorrindo
esperançosa. Coloque a gravata azul. Já está passada e eu costurei o forro.
De um salto eu me plantei no meu quarto e, enquanto me vestia, escutei a
judia que narrava com voz lamentosa uma briga com seu marido.
– Que coisa, frau Drodman! Veio bêbado, bem bêbado. Maximito não
estava, tinha ido a Quilmes pra ver um trabalho de pintura. Eu estava na
cozinha, saio lá fora, e ele me diz, punho em riste, assim:
“A comida, rápido… E o canalha do teu lho, por que não apareceu na
obra?” Que vida, frau, que vida… Vou à cozinha e rapidinho abro o gás.
Achava que se o Maximito chegasse ia acontecer um fuzuê, e eu tremia, frau.
Meu Deus. Rapidinho trago a frigideira com bife de fígado e ovos fritos na
manteiga. Porque ele não gosta de óleo. Você tinha que ver, frau, de olhos
arregalados, o nariz franzido e me diz:
“Cachorra, isto está podre”, e eram ovos frescos. Que vida, frau, que vida…!
A cama toda era ovos e manteiga. Eu corri até a porta e ele se levantou, pegou
os pratos e os jogava contra o chão. Que vida. Até a linda sopeira, lembra frau?,
até a linda sopeira se quebrou. Eu estava com medo e, como me fui, ele veio e
pum, pum, dava tremendos murros no peito… Que coisa horrível!, e me
gritou coisas que nunca, frau, tinha gritado pra mim: “Porca, quero lavar as
minhas mãos no seu sangue!”
Ouvia-se a senhora Naidath suspirar profundamente.
Os percalços da mulher me divertiam. Enquanto fazia o laço da minha
gravata, eu me imaginava sorrindo para o grandalhão do seu marido, um
polaco grisalho, com nariz de papagaio, vociferando atrás da dona Rebeca.
O senhor Josias Naidath era um hebreu mais generoso que um cossaco do
século dos Sobieski. Homem estranho. Detestava os judeus até a exasperação, e
seu antissemitismo grotesco se exteriorizava em um léxico fabuloso pelo
obsceno. Natural, seu ódio era coletivo.
Amigos especuladores o tinham enganado muitas vezes, porém não queria
convencer-se disso e, na sua casa, para desespero da senhora Rebeca, sempre se
podiam encontrar imigrantes alemães gordos e aventureiros de miserável
linhagem, que se fartavam ao redor da mesa com chucrute e salsichão, e que
riam com grossas gargalhadas, movimentando os inexpressivos olhos.
O judeu os protegia até que encontrassem trabalho, valendo-se das relações
que tinha como pintor e maçom. Alguns o roubaram; teve um calhorda que do
dia para noite desapareceu de uma casa em reforma levando consigo escadas,
tábuas e tintas.
Quando o senhor Naidath soube que o vigilante, seu protegido, tinha se
despachado dessa forma, esbravejou tanto que o ouviriam lá do céu. Parecia o
deus or enfurecido… mas não fez nada.
Sua esposa era o protótipo da judia avara e sórdida.
Recordo que quando minha irmã era menor, foi visitá-la em sua casa um
dia. Com candidez, admirava uma linda ameixeira cheia de fruta madura e,
como é lógico, a fruta apetecia e lhe pedia com palavras tímidas.
Então a senhora Rebeca a repreendeu:
– Filhinha… Se você está com vontade de comer ameixa, pode comprar
todas que quiser no mercado.
– Sirva-se o chá, senhora Naidath.
A judia continuava narrando lamentosamente:
– Depois gritava comigo, e todos os vizinhos ouviam, frau; gritava comigo:
“Filha de açougueiro judeu, judia porca, protetora do teu lho”. Como se ele
não fosse judeu, como se Maximito não fosse seu lho.
Efetivamente, a senhora Naidath e o bruto do Maximito se entendiam
admiravelmente para enganar o maçom e lhe surrupiar dinheiro que gastavam
com besteiras, cumplicidade da qual tinha conhecimento o senhor Naidath, e
que de imaginá-la apenas servia para tirá-lo dos eixos.
Maximito, origem de tantas desavenças, era um mané de vinte e oito anos,
que se envergonhava de ser judeu e ter a pro ssão de pintor.
Para dissimular sua condição de peão de obra, vestia-se como um senhor,
ostentava óculos, e à noite, antes de deitar-se, untava as mãos com glicerina.
De suas presepadas, eu conhecia algumas saborosíssimas.
Certa vez recebeu clandestinamente um dinheiro devido por um hoteleiro a
seu pai. Tinha à época vinte anos e, sentindo-se com aptidões de músico,
investiu o montante em uma harpa magní ca e dourada. Maximito explicou,
por sugestão de sua mãe, que havia ganhado uns pesos na quina da loteria, e o
senhor Naidath não disse nada, mas, cismado, olhou com o rabo do olho a
harpa, e os culpados tremeram como Adão e Eva no paraíso quando
observados por Jeová.
Passaram-se os dias. Enquanto isso, Maximito tangia a harpa, e a velha judia
se regozijava. Estas coisas costumam acontecer. A senhora Rebeca dizia a suas
amizades que Maximito tinha grandes condições de ser harpista, e as pessoas,
depois de admirar a harpa em um canto na sala, diziam que sim.
Mas o senhor Josias, pese a sua generosidade, era um homem muitas vezes
prudente e entendeu, de repente, por meio de que trapaça era dono da harpa o
magnânimo Maximito.
Nesta conjuntura, o senhor Naidath, que tinha uma força espantosa, esteve à
altura das circunstâncias, e como recomenda o salmista, falou pouco e fez
muito.
Era sábado, mas o senhor Josias, que dava a mínima para o preceito
mosaico, a título de prólogo, meteu dois pontapés no traseiro da sua mulher,
agarrou Maximito pelo pescoço e, depois de tirar-lhe o couro, conduziu-o até a
porta da rua, e aos vizinhos que, em mangas de camisa, se divertiam
imensamente com o barraco, arremessou-lhes a harpa através da janela na
direção das cabeças.
Isso ameniza a vida, e por isso as pessoas diziam do judeu:
– Ah!, o senhor Naidath… é uma ótima pessoa.
Terminando de me arrumar, saí.
– Bem, até logo, frau, lembranças minhas a seu esposo e a Maximito.
– Não vai agradecer a ela? – interrompeu minha mãe.
– Já agradeci antes.
A hebreia levantou seus olhinhos invejosos das rabanadas de pão untadas
como manteiga e com frouxidão me estendeu as mãos. Já reagiam nela os
desejos de me ver fracassado em minhas gestões.
Entrada a noite, cheguei a Palomar.
Ao perguntar por ele, um velho que fumava sentando em um embrulho, sob
o farol da estação, com um gasto mínimo de gestos, indicou-me o caminho
entre as trevas.
Compreendi que me dava com um indiferente; não quis abusar de sua
parcimônia, sabendo quase tanto quanto antes de interrogá-lo, agradeci e
empreendi caminho.
Então o velho me gritou:
– Diz aí, menino, você não tem dez centavos?
Pensei em não bene ciá-lo, mas, re etindo rapidamente, disse a mim
mesmo que se Deus existisse poderia ajudar-me em minha empresa como eu
fazia com o velho e, não sem secreta pena, me aproximei para lhe entregar uma
moeda.
Então o maltrapilho foi mais explícito. Abandonou o pacote e, com um
braço trêmulo estendido na direção da escuridão, apontou:
– Veja, menino… siga retinho, retinho e à esquerda está o cassino dos
o ciais.
Caminhava.
O vento remexia as folhagens ressecadas dos eucaliptos e, perpassando os
troncos e os altos os do telégrafo, assoviava ululante.
Atravessando o caminho lodoso, apalpando os arames das cercas, e indo
mais rápido quando permitia a dureza do terreno, cheguei ao edifício que o
velho descrevera à esquerda, com o nome de Cassino.
Indeciso, parei. Deveria chamar? Atrás das varandas do sobrado, diante da
porta, não havia nenhum soldado de guarda.
Subi três degraus, e audazmente – assim pensava então – me meti em um
estreito corredor de madeira, material de que estava construído todo o edifício,
e me detive em frente à porta de uma oblonga sala, cujo centro ocupava uma
mesa.
Ao redor dela, três o ciais, um escornado em um sofá junto ao trinchante,
outro de cotovelos na mesa, e um terceiro com os pés no ar, pois apoiava as
costas da cadeira na parede, conversavam com displicência em frente a cinco
garrafas de cores distintas.
– O que o senhor deseja?
–Vim apresentar-me, senhor, pelo edital.
– Já se preencheram as vagas.
Objetei sumamente tranquilo, com uma serenidade que me nascia da pouca
sorte:
– Caramba, é uma pena, porque eu sou meio inventor, teria me encontrado
em meu ambiente.
– E o que o senhor já inventou? Vá entrando, sente-se – falou um capitão
aprumando-se no sofá.
Respondi sem mudar de rosto:
– Um sinalizador automático de estrelas cadentes, e uma máquina de
escrever em caracteres de imprensa aquilo que a ela é ditado. Tenho aqui uma
carta de felicitação a mim dirigida pelo físico Ricaldoni.
Isso não deixava de ser curioso para os três o ciais entediados, e de repente
compreendi que lhes tinha interessado.
– Vamos ver, sente-se – indicou para mim um dos tenentes examinando
minha catadura dos pés a cabeça –. Explique para nós seus famosos inventos.
Como se chamava?
– Sinalizador automático de estrelas cadentes, senhor o cial.
Apoiei meus braços na mesa e olhei, com olhar que parecia investigador, os
semblantes de linhas duras e olhos inquisidores, três rostos curtidos de homens
dominadores, que me observavam entre curiosos e irônicos. E naquele instante,
antes de falar, pensei nos heróis das minhas leituras prediletas e a catadura de
Rocambole, do Rocambole com chapéu de viseira de tule e sorriso canalha na
boca torta, passou pelos meus olhos me incitando à atitude heroica.
Reconfortado, certíssimo de não incorrer em erros, eu disse:
– Senhores o ciais: os senhores saberão que o selênio conduz a corrente
elétrica quando iluminado; na escuridão se comporta como isolante. O
sinalizador não consistia nada mais que em uma célula de selênio, conectada
com um eletroímã. A passagem de uma estrela pelo retículo de selênio seria
marcada por um sinal, já que a claridade do meteoro, concentrada por uma
lente côncava, poria o selênio em condições de condutor.
– Muito bem. E a máquina de escrever?
– A teoria é a seguinte. No telefone, o som é convertido em uma onda
eletromagnética.
“Se medirmos com um galvanômetro de tangente a intensidade elétrica
produzida por cada vogal e consoante, podemos calcular o número de amperes-
volta necessário para fabricar um teclado magnético, que responderá à
intensidade da corrente de cada vogal”.
O cenho do tenente se acentuou.
– A ideia não é ruim, porém o senhor não leva em conta a di culdade de
criar eletroímãs que respondam a alterações elétricas tão ín mas, e isso sem
contar as variações do timbre de voz, o magnetismo remanescente; outro
problema muito sério e, talvez, pior, é que as correntes se distribuam por si
mesmas nos eletroímãs correspondentes. Mas o senhor tem aí a carta de
Ricaldoni?
O tenente se inclinou sobre ela; depois, entregando-a a outro dos o ciais,
me disse:
– O senhor percebe? Os inconvenientes que eu lhe postulo também são
assinalados por Ricaldoni. Sua ideia, em princípio, é muito interessante. Eu
conheço o Ricaldoni. Foi meu professor. O homem é um sábio.
– Sim, baixinho, gordo, bastante gordo.
– Aceitaria um vermute? – ofereceu para mim o capitão sorrindo.
– Muito obrigado, senhor. Não bebo.
– E de mecânica, o senhor sabe algo?
– Alguma coisa. Cinemática… Dinâmica… Motores a vapor e a explosão;
também conheço os motores a óleo cru. Além disso, estudei química e
explosivos, que são coisas interessantes.
– Também. E o que o senhor sabe de explosivos?
– Pergunte-me o senhor – repliquei sorrindo.
– Bem, vejamos, o que são fulminatos?
Aquilo adquiria ares de um exame, e bancando uma de erudito, respondi:
– O Capitão Cundill, em seu Dicionário de explosivos, diz que os fulminatos
são sais metálicos de um ácido hipotético chamado fulminato de hidrogênio. E
são simples ou duplos.
– Vamos ver, vamos ver: um fulminato duplo.
– O de cobre, que são cristais verdes e produzidos fazendo ferver o
fulminato de mercúrio, que é simples, com água e cobre.
– É notável o que sabe esse rapaz. Qual a sua idade?
– Dezesseis anos, senhor.
– Dezesseis anos?
– Percebe, capitão? Este jovem tem um grande futuro. O que você acha de
falarmos com o capitão Márquez? Seria uma pena se ele não pudesse ingressar.
– Indiscutivelmente – e o o cial do corpo de engenheiros se dirigiu a mim.
– Mas onde diabos o senhor estudou todas essas coisas?
– Em todas as partes, senhor. Por exemplo: estou andando pelas ruas e vejo
em uma casa de mecânica uma máquina que não conheço. Eu paro, e digo pra
mim estudando as diferentes partes do que olho: isto deve funcionar assim e
assim e deve servir pra tal coisa. Depois que z minhas deduções, entro na loja
e pergunto, e acredite em mim, senhor, raramente me equivoco. Além do mais,
tenho uma biblioteca regular e, se não estudo mecânica, estudo literatura.
– O quê? – interrompeu o capitão –, também literatura?
– Sim, senhor, e tenho os melhores autores: Baudelaire, Dostoievski, Baroja.
– Ei, não será um anarquista este aí?
– Não, senhor capitão. Não sou anarquista. Mas eu gosto de estudar, de ler.
– E o que seu pai pensa de tudo isso?
– Meu pai se matou quando eu era muito pequeno.
Subitamente, calaram-se. Olhando-me, os três o ciais se taram.
Lá fora assoviava o vento, e em meu rosto se acentuou ainda mais o sinal de
atenção.
O capitão se levantou e eu o imitei.
– Olhe, amiguinho, eu o felicito, venha amanhã. Esta noite tratarei de ver o
capitão Márquez, porque o senhor merece. É disso que necessita o exército
argentino. Jovens que queiram estudar.
– Obrigado, senhor.
– Amanhã, se quiser me ver, vou atendê-lo com o maior gosto. Pergunte
pelo capitão Bossi.
Explodindo de imensa alegria, me despedi.
Agora atravessava as trevas, saltava os alambrados, estremecido de uma
coragem sonora.
Mais que nunca se a rmava a convicção do destino grandioso a cumprir-se
em minha existência. Eu poderia ser um engenheiro como Edison, um general
como Napoleão, um poeta como Baudelaire, um demônio como Rocambole.
Eu me sentia no sétimo céu. Pelo elogio dos homens, eu gozei noites
estupendas, que o sangue, em uma multidão de alegrias, atropelava o meu
coração, e eu acreditava, semelhante a um símbolo de juventude, cruzar os
caminhos da terra sobre as costas de meu povo de alegrias.

Acho que fomos escolhidos trinta aprendizes de mecânica de aeroplanos,


entre duzentos solicitantes.
Era uma manhã cinza. O campo se estendia ao longe, áspero. De sua
continuidade verde cinzenta se desprendia um castigo sem nome.
Acompanhados por um sargento, passamos junto aos hangares fechados, e
na estrebaria nos vestimos com roupa de faxina.
Chuviscava, e apesar disso um cabo nos conduziu para fazer ginástica em um
potreiro situado atrás da cantina.
Não era difícil. Obedecendo as vozes de comando, eu deixava entrar em
mim a indiferente extensão dos pampas. Isso hipnotizava o organismo,
deixando independentes os trabalhos penosos.
Pensava:
– Se ela me visse agora, o que diria?
Docemente, como uma sombra em uma parede embranquecida pela lua,
passou toda ela, e em certo anoitecer longínquo, vi o semblante de imploração
da menina imóvel junto ao álamo negro.
– Meia-volta, volver, recruta – gritou comigo o cabo.
Na hora do rancho, chafurdando no barro, nós nos aproximamos das
panelas imundas de comida. Sob os tachos fumegavam lenhas verdes.
Espremendo-nos, estendíamos ao cozinheiro os pratos de latão.
O homem afogava sua concha naquela lavagem, e um tridente em outra
panela, depois nós nos afastávamos para devorar.
Enquanto comia, me lembrei de dom Gaetano e da mulher cruel. E embora
não tivesse transcorrido, eu percebia imensos espaços de tempo entre meu
ontem taciturno e meu hoje vacilante.
Pensei:
– Agora que tudo mudou, quem sou eu dentro do folgado uniforme?
Sentado próximo à estribaria, observava a chuva que caía intermitentemente,
e com o prato em cima dos joelhos eu não podia tirar os olhos do arco de
horizonte, tumultuoso em alguns pedaços, liso como um lete de metal em
outros e leoninamente tão impiedoso que o frio de sua altura, na queda,
penetrava até os ossos.
Alguns aprendizes amontoados na cancela riam, e outros, inclinados em um
tanque para abeberar cavalos, lavavam os pés.
Disse comigo mesmo:
– E assim é a vida, queixar-se sempre do que passou. Com quanta lentidão
caíam os os de água. E assim era a vida. Deixei o prato na terra para aguçar
meus solilóquios com estas ansiedades.
Sairia eu alguma vez de minha ín ma condição social, poderia converter-me
algum dia em um senhor, deixar de ser o rapaz que se oferece para qualquer
trabalho?
Passou um tenente e adotei posição militar… Depois me deixei cair em um
canto, e a pena me cravou mais fundo.
No futuro, não seria eu um desses homens que usam colarinhos sujos,
camisas cerzidas, terno cor vinho e botinas enormes, porque lhes saíram calos e
joanetes nos pés de tanto caminhar, de tanto caminhar solicitando de porta em
porta trabalho para ganhar a vida?
Minha alma tremeu. O que fazer, o que poderia fazer para triunfar, para ter
dinheiro, muito dinheiro? Seguramente não ia encontrar na rua uma maleta
com dez mil pesos. O que fazer então? E não sabendo se poderia assassinar
alguém, se ao menos tivesse algum parente rico, a quem assassinar e dar o
golpe, eu compreendi que nunca me resignaria à vida de penúria que suporta
naturalmente a maioria dos homens.
De repente se fez tão evidente em minha consciência a certeza de que esse
anseio de distinção me acompanharia pelo mundo, que me disse:
– Não importa não ter terno, nem grana, nem nada – e quase com vergonha
eu me confessei: o que eu quero é ser admirado pelos demais, elogiado pelos
demais. O que me importa ser um perdulário! Isso não importa… Mas esta
vida medíocre… Ser esquecido quando morrer, isto sim seria horrível. Ah, se
meus inventos dessem resultado! No entanto, algum dia eu morrerei, e a banda
continuará tocando, e as pessoas irão ao teatro como sempre, e eu estarei
morto, bem morto… morto para toda a vida.
Um calafrio eriçou os pelos dos meus braços. Frente ao horizonte percorrido
por navios de nuvens, a convicção de uma morte eterna espantava minha
carne. Apressado, apanhando o prato, fui para o tanque.
Ah, se eu pudesse descobrir algo para não morrer nunca, viver nem que fosse
uns quinhentos anos!
O cabo que dirigia os exercícios de instrução me chamou:
– Dispensado, meu primeiro cabo.
Durante o exercício, por intermédio do sargento, eu tinha solicitado
permissão ao capitão Márquez, com o objetivo de pedir-lhe conselho sobre um
morteiro de trincheira que eu havia idealizado, para lançar projéteis que
permitissem destruir a maior quantidade de homens que os schrapnells com
seus explosivos.
A par da minha vocação, o capitão Márquez costumava me escutar, e,
enquanto eu falava esquematizando na lousa, ele, detrás de seus óculos
reluzentes, olhava para mim sorrindo com um sorriso de curiosidade, de
deboche e de indulgência.
Deixei o prato na mochila de serviço e rapidamente me dirigi ao clube de
o ciais.
Agora estava em seu dormitório. Junto à parede, um leito de campanha,
uma estante com revistas e cursos de ciências militares, e, dependurado na
parede, um quadro negro com sua caixinha cheia de bastões de giz pregada em
um canto.
O capitão me disse:
– Vamos ver, vamos ver como é esse canhão de trincheira. Desenhe-o.
Apanhei um giz e z um croqui.
Comecei.
– O senhor sabe, meu capitão, que o inconveniente dos grandes calibres são
o peso e o tamanho da peça.
– Pois bem, e…
– Eu venho imaginando um canhão desta forma: o projétil de grosso calibre
estaria perfurado no centro e, em vez de estar colocado em um tubo que é o
canhão, seria introduzido na barra de ferro, como um anel no dedo, a ser
encaixado na câmara onde explodiria o cartucho. A vantagem do meu sistema é
que, sem aumentar o peso do canhão, seria aumentado enormemente o calibre
do projétil e a carga explosiva que ele pode gerar.
– Entendo… Muito bem… Mas o senhor deve considerar isto: de acordo
com o calibre dos projéteis, seu peso e o tipo de grão de pólvora, calculam-se a
espessura, o diâmetro e a longitude do canhão. Quer dizer, à medida que a
pólvora vai se in amando, o projétil avança no canhão por pressão dos gazes,
de forma que quando chega à boca deste, o explosivo já rendeu seu máximo de
energia. No seu invento ocorre o contrário. Efetua-se a explosão e o projétil
desliza pela barra, e os gases, em vez de seguir pressionando aquele, perdem-se
no ar, ou seja, se a explosão tem de seguir atuando durante um segundo tempo,
o senhor a reduz a um décimo ou a um milésimo. É o contrário. Ao maior
diâmetro, menos uniformidade, mais resistência, a menos que o senhor tenha
descoberto uma nova balística, o que é meio difícil.
E nalizou acrescentando:
– O senhor precisa estudar, estudar muito, se quiser ser alguém na vida.
Eu pensava, sem me atrever a dizê-lo:
– Estudar como, se tenho que apreender um ofício pra ganhar a vida.
Prosseguia:
– Estude muito matemática; o que falta ao senhor é a base, discipline o
pensamento, aplique-o ao estudo das pequenas coisas práticas, e então poderá
ter êxitos em suas iniciativas.
– O senhor acha, meu capitão?
– Sim, Astier. O senhor tem condições inegáveis, mas estude, o senhor
acredita que porque pensa já é o su ciente, e pensar não é nada mais que um
princípio.
E eu saía dali estremecido de gratidão para com esse homem conhecido por
ser sério e melancólico e que, apesar da disciplina, tinha a misericórdia de
atender-me.

Eram duas da tarde do quarto dia de meu ingresso na Escola Militar de


Aviação.
Eu estava tomando chá na companhia de um ruivo chamado Walter que,
com entusiasmo comovedor, falava de uma chácara que seu pai, um alemão,
tinha nas redondezas do Azul.
Dizia o ruivo com a boca cheia de pão.
– Todos os invernos, destrinchamos três porcos pra casa. Os demais são
vendidos. Assim, à tarde, quando fazia frio, eu entrava e cortava um pedaço de
pão, depois, com o Ford, ia dar umas voltas…
– Drodman, venha – gritou o sargento.
Parado em frente à estrebaria, ele me observava com seriedade inusitada.
– Às suas ordens, meu sargento.
– Vista-se de civil e me entregue seu uniforme, porque o senhor está de
baixa.
Olhei para ele atento.
– De baixa?
– Sim, de baixa.
– De baixa, meu sargento? – eu tremia todo ao lhe falar.
O subo cial me observou, com piedade. Era um provinciano de
procedimentos corretos e, fazia poucos dias, tinha recebido o brevê de aviador.
– Mas se eu não cometi nenhuma falta, meu sargento, o senhor bem sabe.
– Claro que sei… Mas o que posso fazer… a ordem foi dada pelo capitão
Márquez.
– O capitão Márquez? Mas isso é absurdo… O capitão Márquez não pode
dar essa ordem… Não será um engano?
– É isso mesmo, foi dito precisamente Silvio Drodman Astier… Aqui não há
outro Drodman Astier além do senhor, creio eu, não? De modo que é o senhor,
e isso é página virada.
– Mas isso é uma injustiça, meu sargento.
O homem franziu o cenho e, em voz baixa, confessou:
– O que você quer que eu faça? É claro que não é certo… acredito… não,
não sei… parece que o capitão tem um recomendado… assim me disseram,
não sei se é verdade, e como o senhor não assinou contrato ainda, óbvio, tiram
e põem quem eles querem. Se tivesse contrato assinado não tinha história, mas
como não está assinado, é preciso aguentar.
Eu disse suplicante:
– E o senhor, meu sargento, não pode fazer nada?
– E o que você quer que eu faça, amigo? O que espera você que eu faça, se
sou igual ao senhor; a gente vê cada coisa.
O homem me tinha pena.
Agradeci-lhe, e me retirei com lágrimas nos olhos.
– A ordem é do capitão Márquez.
– E não pode vê-lo?
– O capitão não está.
– E o capitão Bossi?
– O capitão Bossi não está.
No caminho, o sol de inverno pintava de um lúgubre tom afogueado o
tronco dos eucaliptos.
Eu caminhava em direção à estação.
Inesperadamente, vi no caminho o Diretor da Escola.
Era um homem rechonchudo, de cara bochechuda e rosada como a de um
lavrador. O vento movia a capa sobre as suas costas e, folheando um livro de
atas, respondia brevemente ao grupo de o ciais que o rodeava em círculo.
Alguém deve ter lhe comunicado o ocorrido, pois o tenente coronel
levantou a cabeça dos papéis, procurou por mim com o olhar e, encontrando-
me, gritou com voz destemperada:
– Olha, amigo, o capitão Márquez me falou do senhor. Seu lugar é em uma
escola industrial. Aqui não necessitamos de pessoas inteligentes senão de brutos
para o trabalho.

Agora eu atravessava as ruas de Buenos Aires com esses gritos internalizados


na alma.
– Quando mãe souber! – Involuntariamente, eu a imaginava dizendo com o
tom cansado:
– Silvio… mas você não tem pena de nós… não trabalha… você não quer
fazer nada. Olha as botinas que eu uso, olha os vestidos de Lila, todos
remendados, o que você pensa, Silvio, para não querer trabalhar?
Um calor febril me subia pelas têmporas; fedia a suor, tinha a sensação de
que meu rosto tinha se convulsionado de pena, uma pena profundíssima, toda
ela clamorosa.
Vagava absorto, à deriva. Vez por outra os ímpetos de cólera me entorpeciam
os nervos, eu queria gritar, lutar a duros golpes com a cidade espantosamente
surda… e subitamente tudo se despedaçava dentro de mim, tudo pregava a
meus ouvidos a minha absoluta inutilidade.
– O que será de mim?
Nesse instante, sobre a alma, o corpo me pesava como um traje demasiado
grande e molhado.
Agora, quando eu for para casa, minha mãe talvez não me diga nada. Com
gesto de atribulação, ela abrirá o baú amarelo, tirará o colchão, colocará os
lençóis limpos na cama e não dirá nada. Lila, em silêncio, olhará para mim
como que me renegando.
– O que você fez, Silvio? – e não acrescentará nada.
– O que será de mim?
Ah!, é preciso saber as misérias desta vida porca, comer do fígado que no
açougue se pede para o gato e deitar-se cedo para não gastar o querosene da
lamparina.
Outra vez me sobreveio o semblante de minha mãe, ácido e enrugado por
sua velha dor; pensei na minha irmã que jamais proferia uma queixa de
desgosto e, submissa ao destino amargo, empalidecia sobre seus livros de
estudo, e a alma me caiu por entre as mãos. Eu me sentia arrastado a parar os
transeuntes, a agarrar as mangas do paletó das pessoas que passavam e dizer-
lhes: fui expulso do exército sem mais nem menos, vocês podem entender? Eu
acreditei que poderia trabalhar… trabalhar nos motores, fabricar aviões… e me
expulsaram assim… sem mais nem menos.
Dizia comigo mesmo:
– Lila, ah!, vocês não a conhecem, Lila é minha irmã; eu pensava, sabia que
poderíamos ir algum dia ao cinema; em vez de comer fígado, comeríamos sopa
com verduras, sairíamos aos domingos, eu a levaria a Palermo. Mas agora…
– Não é uma injustiça, digam vocês, não é uma injustiça?…
Eu não sou um moleque. Tenho dezesseis anos. Por que me expulsam? Ia
trabalhar como qualquer um, e agora… O que dirá minha mãe? O que dirá
Lila? Ah, se vocês a conhecessem. Moça séria: na escola Normal tira as
melhores notas. Com o que eu ganharia comeríamos melhor em minha casa. E
agora, o que eu vou fazer?…

Já de noite, na rua Lavalle, perto do Palácio da Justiça eu me parei diante de


um cartaz:
QUARTOS MOBILIADOS POR UM PESO
Entrei no saguão iluminado debilmente por uma lâmpada elétrica e, em
uma recepção de madeira, eu paguei o valor. O dono, homem gordo, em
mangas de camisa apesar do frio, me conduziu ao pátio cheio de vasos pintados
de verde e, apontando para o empregado, gritou:
– Félix, esse aqui vai car no 24.
Olhei para cima. Aquele pátio era o fundo de um cubo, cujas laterais eram
formadas por muros de cinco andares de quartos com janelas cobertas de
cortinas. Através de alguns vidros, viam-se as paredes iluminadas, outras
estavam escuras e não sei de onde partiam um rebu de mulheres, risos
reprimidos e barulhos de panelas.
Subimos por uma escada em caracol. O empregado, um vigarista salpicado
pela varíola com um avental azul, me precedia, arrastando o espanador, cujas
penas des adas varriam o chão.
Finalmente chegamos. O corredor, como o saguão, estava debilmente
iluminado.
O empregado abriu a porta e acendeu a luz. Eu lhe disse:
– Amanhã você me desperta às cinco, não se esqueça.
– Beleza, até amanhã.
Extenuado pela tristeza e pelas ruminações, eu desabei em um leito.
O quarto: duas camas de ferro cobertas por colchas azuis, com curtas borlas
brancas, um lavabo de ferro esmaltado e uma mesinha imitando mogno. Em
um canto, o espelho do guarda-roupa re etia o painel da porta.
Um perfume acre pairava no ar con nado entre as quatro paredes brancas.
Virei o rosto em direção à parede. Com lápis, algum pernoitador tinha
desenhado um desenho obsceno.
Pensei:
– Amanhã irei para a Europa talvez… e cobrindo a cabeça com o travesseiro,
vencido pelo cansaço, dormi. Foi um sono densíssimo, através de cuja
escuridão se desenlaçou essa alucinação:
Em uma reta de asfalto, manchas de óleo violeta brilhavam tristemente sob
um céu grená. No zênite, outro pedaço das alturas era de um azul puríssimo.
Dispersos sem ordem, elevavam-se por todas as partes cubos de concreto.
Uns eram pequenos como dados; outros, altos e volumosos como arranha-
céus. Do nada, na direção do horizonte para o zênite, estendeu-se um braço
horrivelmente magro. Era amarelo como um cabo de vassoura, os dedos
quadrados se esticavam juntos.
Eu me afastei espantado, mas o braço horrivelmente magro se esticava, e eu,
esquivando-me, diminuía, tropeçava nos cubos de concreto e me escondia atrás
deles; espiando, metia o rosto por uma aresta e o braço delgado, como o cabo
de uma vassoura, com dedos esquálidos, estava ali, sobre minha cabeça,
tocando o zênite.
A claridade tinha minguado no horizonte, restando na como o o de uma
espada.
Ali despontou o rosto.
Era um pedaço de testa avultada, uma sobrancelha hirsuta e, depois, um
pedaço de mandíbula. Sob a pálpebra enrugada gurava o olho, um olho de
louco. A córnea imensa, a pupila redonda e de águas convulsas. A pálpebra deu
uma piscadela triste…
– Senhor, ei, diga, senhor…
Eu me aprumei sobressaltado.
– Dormiu vestido, senhor.
Com dureza, tei o meu interlocutor.
– Verdade, tem razão.
O rapaz se afastou uns passos.
– Como vamos ser companheiros de quarto esta noite, me permiti acordá-lo.
Está contrariado?
– Não, por quê? – e depois de esfregar os olhos, aprumando o corpo, me
sentei na beira da cama. Observei-o:
A aba de um chapéu-coco, preto, ensombrava-lhe a testa e os olhos. Seu
olhar era falso, e o resplendor aveludado dele parecia tocar a própria epiderme.
Tinha uma cicatriz junto ao lábio, perto do queixo, e seus lábios intumescidos,
vermelhos demais, sorriam em sua cara branca. O sobretudo exageradamente
apertado modelava as formas de seu corpo pequeno.
Bruscamente, eu lhe perguntei:
– Que horas são?
Com urgência consultou seu relógio de ouro.
– Quinze pras onze.
Sonolento, eu vacilava ali. Agora olhava com desalento minhas botinas
opacas, onde os os de um remendo tinham arrebentado, deixando ver um
pedaço de meia pela fenda.
Enquanto isso, o adolescente pendurou seu chapéu no cabideiro e, com um
gesto de cansaço, jogou as luvas de couro em cima de uma cadeira. Voltei a
olhá-lo de relance, afastando a vista dele porque vi que ele me observava.
Vestia-se irrepreensivelmente e, desde o seu rígido colarinho engomado, até
as botinas de verniz com polainas cor de creme, reconhecia-se nele o tipo
abundante em dinheiro.
No entanto, não sei por que me ocorreu:
– Deve ter os pés sujos.
Sorrindo com um sorriso mentiroso, virou o rosto e uma mecha de sua
cabeleira se esparramou pela face até encobrir o lóbulo da orelha. Com voz
suave e me examinando ao soslaio com seu olhar pesado, disse:
– Parece que o senhor está cansado, não?
– Sim, um pouco.
Tirou o sobretudo cujo forro de seda brilhou nas dobras. Certa fragrância
pegajosa se soltava de sua roupa preta, e repentinamente inquieto, eu o avaliei;
depois, sem consciência do que dizia, eu perguntei:
– A sua roupa não está suja?
O outro me manjou no ato, mas atinou a resposta:
– Fiz mal em te despertar assim?
– Não, por que teria feito mal?
– Nunca se sabe, jovem. A alguns pode vir mal. No internato tinha um
amiguinho que quando era acordado bruscamente tinha um ataque de
epilepsia.
– Um excesso de sensibilidade.
– Sensibilidade de mulher, pode dizer, você não acha, jovem?
– Então seu amiguinho era um hiperestésico? Mas veja bem, faça-me o favor,
abra essa porta, porque eu me as xio. Que entre um pouco de ar. Tem cheiro
de roupa suja isso aqui.
O intruso franziu ligeiramente o cenho… Dirigiu-se à porta, mas antes de
chegar a ela uns cartões caíram do bolso do seu paletó, no chão.
Apressado, agachou-se para apanhá-los, e eu me aproximei dele.
Então vi: eram todas fotogra as de homem e de mulher, nas distintas formas
de cópula.
O rosto do desconhecido estava púrpuro. Balbuciou:
– Não sei como vieram parar aqui, eram de um amigo.
Não lhe respondi.
De pé, junto dele, olhava com obstinação certo número. Ele disse não sei
que coisas. Eu não o escutava. Eu olhava alucinado uma fotogra a terrível.
Uma mulher prostrada diante de um estivador ignóbil, com chapéu de viseira
de tule e elástico preto enrolado sobre o ventre.
Virei o rosto para rapaz.
Agora ele estava pálido, as pupilas vorazes dilatadíssimas, e, nas pálpebras
enegrecidas, uma reluzente lágrima. Sua mão caiu sobre meu braço.
– Me deixe car aqui, não me expulse.
– Então o senhor… você é…
Arrastando-me, ele me empurrou para a beira da cama e se sentou a meus
pés.
– Sim, sou assim, como em um lance de dados.
Sua mão se apoiava no meu joelho.
– Como em um lance de dados.
Era profunda e amarga a voz do adolescente.
– Sim, eu sou assim… um lance de dados. – Uma pena receosa tremia em
sua voz. Depois, sua mão agarrou a minha mão e a pôs de lado sobre sua
garganta para apertá-la contra o queixo. Falou em voz muito baixa, quase um
sopro.
– Ah!, se eu tivesse nascido mulher. Por que será que esta vida é assim?
As veias latejavam terrivelmente nas minhas têmporas.
Ele me perguntou:
– Como você se chama?
– Silvio.
– Me diga, Silvio, você não me despreza?… mas não… você não tem cara…
quantos anos você tem?
Enrouquecido, eu respondi:
– Dezesseis… mas você está tremendo?…
– Sim… se quiser… vamos…

De repente eu vi, sim, eu vi… No rosto congestionado, os seus lábios


sorriam… seus olhos também sorriam com loucura… e subitamente, na
precipitada queda de suas roupas, vi ondular a pontinha de uma camisa suja
sobre a cinta cor de pele que deixava livre longas meias de mulher, nas coxas.
Lentamente, como em uma parede embranquecida pela lua, passou pelos
meus olhos o semblante de imploração de uma menina imóvel junto ao talho
negro de um confessionário. Uma ideia fria – se ela soubesse o que faço nesse
momento – me cruzou a vida.
Mais tarde, eu me lembraria sempre daquele instante.
Recuei sério e, tando-o, disse devagar:
– Cai fora.
– O quê?
Mais baixo ainda, repeti:
– Cai fora.
– Mas…
– Caia fora, sua besta. O que você fez da sua vida?… da sua vida?
– Não… não faz assim…
– Besta… O que você fez da sua vida? – e eu não atinava a lhe dizer nesse
instante todas as coisas superiores, belas e nobres que estavam em mim, e que
instintivamente recriminavam sua chaga.
O jovem se afastou. Encolhia os lábios mostrando os caninos, depois se
afogou na cama, e enquanto eu, vestido, entrava na minha cama, ele, com os
braços apoiados debaixo da nuca, começou a cantar:
Arroz com leite,
Quero me casar.
Eu o olhei obliquamente, em seguida, sem cólera, com uma serenidade que
me assombrava, disse:
– Se você não se calar, arrebento o seu nariz.
– O quê?
– Isso mesmo, eu arrebento o seu nariz.
Então ele virou o rosto para a parede. Uma angústia horrível pesou sobre o
ar con nado. Eu sentia a rmeza com que seu pensamento espantoso
atravessava o silêncio. E dele eu só via o triângulo de cabelo preto recortando a
nuca, e depois o pescoço branco, redondo, sem denunciar tentações.
Ele não se mexia, porém a rmeza de seu pensamento me esmagava… se
modelava em mim… e eu, atarantado, permanecia rígido, caído no fundo de
uma angústia que ia se solidi cando em conformidade. E vez por outra eu o
espiava com o rabo do olho.
Do nada, sua colcha se moveu e caram a descoberto seus ombros, seus
ombros leitosos que surgiam do arco de ló que, sobre as suas clavículas, lhe
fazia a camisa de batista…
Um grito suplicante de mulher estourou no corredor ao que dava o meu
quarto:
– Não… não… por favor… – e o surdo choque de um corpo sobre a
parede, primeiro me envergou a alma de espanto, depois eu saltei da cama e
abri a porta no preciso momento em que a porta do quarto em frente se
fechava.
Eu me apoiei no marco. Do quarto vizinho não surgia nada. Eu me virei e,
deixando a porta aberta, sem olhar para o outro, apaguei a luz e me deitei…
Havia em mim uma potente segurança agora. Acendi um cigarro e disse a
meu companheiro de albergue:
– Aí, quem te ensinou essas porcarias?
– Não quero falar com você… você é mau…
Disparei a rir, e depois, grave, continuei:
– Sério, cara, sabia que você é um sujeito esquisito? Que peça rara que você
é. Na sua família, o que dizem de você? E esta casa? Você prestou atenção nesta
casa?
– Você é mau.
– E você é um santo, não?
– Não, mas sigo meu destino… porque eu não era assim antes, sabe, eu não
era assim…
– E quem fez você ser assim então?
– Meu professor, porque meu pai é rico. Depois que eu passei no quarto
ano, procuraram um professor para que eu me preparasse para o primeiro ano
do Colégio Nacional. Parecia um homem sério. Usava barba, uma barba loira
pontiaguda e óculos. Tinha olhos quase verdes de tão azuis. Te conto tudo isso
porque…
– E daí?…
– Eu não era assim antes… mas ele me fez ser assim… Depois, quando ele
se ia, eu saía para procurá-lo em sua casa. Eu tinha então quatorze anos. Ele
vivia em um apartamento na rua Juncal. Era talentoso. Imagine você que ele
tinha uma biblioteca grande como estas quatro paredes juntas. Também era
um demônio, mas como ele gostava de mim! Eu ia à sua casa, o empregado me
fazia entrar no dormitório… imagine você que ele tinha comprado pra mim
todas as roupas de seda e perfumadas a baunilha. Eu me fantasiava de mulher.
– Como ele se chamava?
– Para que você quer saber o nome?… Tinha duas cátedras no Nacional e se
matou se enforcando…
– Se enforcando?…
– É, se enforcou no mictório de um café…. Mas como você é sonso!… ha…
ha… não acredite em mim… é mentira… Mas é uma história bonita, não é
verdade?
Irritado, disse a ele:
– Olha, parceiro, me deixe em paz; vou dormir.
– Não seja mau, me escuta… que voluntarioso você… não vá acreditando
no de agorinha… te dizia a pura verdade… juro … o professor se chamava
Próspero.
– E você permaneceu assim até agora?
– E o que mais ia fazer?
– Como o que mais ia fazer? Por que não vai ver algum médico… algum
especialista em doenças nervosas? Além do mais, por que você é tão sujo?
– É a moda, muita gente gosta de roupa suja.
– Você é um degenerado.
– É, tem razão… sou biruta… mas o que você queria?… olha… às vezes
estou no meu quarto, anoitece, pode acreditar, é como um turbilhão… sinto o
cheiro dos quartos de albergue… vejo a luz acesa e então não posso… é como
se um vento me arrastasse e saio… vejo os donos de quarto mobiliados.
– Os donos, pra quê?
– Naturalmente, isso de ir procurar é triste: todas nós nos acertamos com
dois ou três proprietários e, quando um moço que vale a pena cai no quarto,
somos avisadas por telefone.
Após um longo silêncio, sua voz se fez mais a nada e séria. Eu diria que
falava consigo mesmo, com toda sua tribulação:
– Por que será que não nasci mulher?… em vez de ser um degenerado…,
sim, um degenerado…, teria sido mocinha da minha casa, teria me casado com
algum homem bom e eu teria cuidado dele… e eu teria gostado dele… em
vez… assim… de rodar de cama em cama, e os desgostos… esses vadios de
casaco branco e sapatos de verniz que te conhecem e te seguem… e te roubam
até as meias. Ah, se encontrasse algum que me quisesse para sempre, sempre!
– Mas você está louco! Ainda tem essas ilusões?
– Você não sabe de nada! Tenho um amiguinho que vive há três anos com
um empregado do Banco Hipotecário… e como gosta dele…
– Mas isso é uma asneira…
– Você não sabe de nada… se eu pudesse, daria toda minha grana pra ser
mulher… uma mulherzinha pobre… e não me importaria de car grávida e
lavar a roupa, desde que ele me amasse… trabalhasse pra mim.
Escutando-o, estava atônito.
Quem era esse pobre ser humano que pronunciava palavras tão terríveis e
novas?… que não pedia nada mais que um pouco de amor?
Eu me levantei para acariciar seu rosto.
– Não me toque – vociferou – não me toque. Meu coração está
despedaçado. Vai embora.
Agora eu estava no meu leito, imóvel, temeroso de que um barulho o
despertasse para a morte.
O tempo transcorria com lentidão, e minha consciência descentrada de
estranheza e fadiga apanhava no espaço a silenciosa dor da espécie.
Ainda acreditava o som de suas palavras… no breu, sua carinha contraída de
pena desenhava uma carranca de angústia e, com a boca ressecada de febre,
exclamava às escuras:
– E não me importaria car “grávida” e lavar a roupa, desde que ele me
quisesse e trabalhasse pra mim.
Ficar “grávida”. Quão suave se fazia essa palavra em seus lábios!
– Ficar grávida.
Então todo seu mísero corpo se deformaria, porém “ela”, gloriosa daquele
amor tão profundo, caminharia entre as pessoas e não as veria, vendo o
semblante daquele a quem se submetia tão submissa.
Tribulação humana! Quantas palavras tristes estavam ainda escondidas na
entranha do homem!
O barulho de uma porta fechada violentamente me acordou. Acendi
apressadamente a lâmpada. O adolescente tinha desaparecido, e sua cama não
conservava a marca de nenhuma desordem.
Sobre o canto da mesa, estendidas, havia duas notas de cinco pesos. Eu os
apanhei com avidez. Re etia-se no espelho o meu semblante empalidecido, a
córnea sulcada de linhas de sangue, e as mechas de cabelo caídas na testa.
Sussurrante, uma voz de mulher implorou no corredor.
– Rápido, pelo amor de Deus… vai que descobrem.
Distintamente, ressoou o toque de uma campainha elétrica.
Abri a janela que dava para o pátio. Uma lufada de ar molhado me
estremeceu. Ainda era de noite, mas lá em baixo, no pátio, dois empregados se
mexiam em torno de uma porta iluminada.
Saí.
Já na rua, meu enervamento se dissipou. Entrei em uma padaria e tomei um
café. Todas as mesas estavam ocupadas por vendedores de jornais e condutores.
No relógio dependurado sobre uma pueril cena bucólica, soaram cinco
badaladas.
De repente lembrei que toda essa gente tinha lar, vi o semblante da minha
irmã e, desesperado, saí para a rua.
Outra vez se amontoavam em meu espírito as tribulações da vida, as
imagens que não queria ver nem recordar e ruas de comércios protegidos por
portas metálicas e tapumes de madeiras.
Atrás dessas portas havia dinheiro, os donos desses comércios deviam dormir
tranquilamente em seus luxuosos dormitórios, e eu, como um cão, andava ao
léu pela cidade.
Estremecido de ódio, acendi um cigarro e, malignamente, atirei a bituca
acesa em cima de um vulto humano que dormia encolhido em um pórtico;
uma pequena chama amejou nos farrapos, de repente o miserável se ergueu
disforme como uma treva e eu disparei a correr ameaçado por seu enorme
punho.

Em uma casa de compra e venda do Paseo de Julio, comprei um revólver,


carreguei-o com cinco projéteis e depois, saltando de um bonde, eu me dirigi
aos diques.
Tratando de realizar meu desejo de ir para a Europa, subi apressado pelas
escadinhas de corda dos transatlânticos e me ofereci aos o ciais que podia ver
para qualquer trabalho durante a travessia. Atravessava corredores, entrava em
estreitos camarotes entupidos de bagagem, com sextantes pendurados nas
paredes, trocava palavras com homens uniformizados que, virando-se
bruscamente quando eu lhes falava, logo que compreendiam minha solicitação,
me despediam com um gesto mal-humorado.
Por cima das passarelas se viam o mar de águas tocando o declive do céu e os
velames das barcas afastadíssimas.
Caminhava alucinado, aturdido pelo incessante vaivém, pelo ranger das
gruas, os assovios e as vozes dos estivadores descarregando grandes volumes.
Experimentava a sensação de me encontrar muito afastado de casa, tão
distante que, mesmo que me contradissesse em minha a rmação, já não mais
poderia voltar até ela.
Então eu parava para conversar com os pilotos das balsas que faziam troça
dos meus oferecimentos, às vezes apareciam para me responder saídos das
cozinhas fumegantes, rostos de expressões tão brutais que, temeroso, eu me
afastava sem responder, e eu caminhava pelas bordas dos diques, os olhos xos
nas águas violetas e gordurosas que, com ruído gutural, lambiam o granito. Eu
estava esgotado. A visão das enormes chaminés oblíquas, o desencadear das
correntes nas maromas, os gritos das manobras, a solidão dos esbeltos mastros,
a atenção já dividida em um semblante que emergia de uma escotilha e um
tubo suspenso por um guindaste sobre a minha cabeça, esse movimento
barulhento composto do entrecruzamento de todas as vozes, assovios e batidas,
me revelava tão pequeno frente à vida que eu não atinava a escolher uma
esperança.
Uma trepidação metálica estremecia o ar da ribeira.
Das ruas de sombras formadas pelos altos muros dos galpões passava a
terrível claridade do sol, de vez em quando um empurrão me lançava para um
canto, as âmulas multicoloridas dos navios se ondulavam com o vento; mais
abaixo, entre a muralha negra e o casco vermelho de um transatlântico,
martelavam incessantemente os calafetadores, e aquela demonstração
gigantesca de poder e riqueza, de mercadorias apinhadas e de animais de carga
esperneando no ar, transbordava-me de angústia.
E cheguei à inevitável conclusão.
– É inútil, tenho é que me matar.
Eu tinha previsto isso vagamente.
Já em outras circunstâncias, a teatralidade que secunda com luto o cadafalso
de um suicida tinha me seduzido com seu prestígio.
Invejava os cadáveres em torno de cujos féretros soluçavam as mulheres
belas, e, ao vê-las debruçadas à beira dos ataúdes, a minha masculinidade
minguava dolorosamente.
Então teria gostado de ocupar o suntuoso leito dos mortos, como eles ser
adornado de ores e embelezado pelo suave resplendor dos círios, acolher em
meus olhos e na face as lágrimas que vertem enlutadas donzelas.
Não era a primeira vez que eu dava com este pensamento, mas, nesse
instante, ele me contagiou desta certeza.
– Eu não hei de morrer… mas tenho que me matar – e antes que pudesse
reagir, a singularidade desta ideia absurda se apoderou vorazmente da minha
vontade.
– Não hei de morrer, não…, eu não posso morrer…, mas tenho que me
matar.
De onde provinha esta certeza ilógica que depois guiou todos os atos da
minha vida?
Minha mente se desanuviou de sensações secundárias; eu era só um pulsar
de coração, um olho lúcido e aberto ao sereníssimo interior.
– Não hei de morrer, mas tenho de me matar.
Eu me aproximei de um galpão de zinco. Não muito longe um bando de
peões descarregava sacas de um vagão, e naquele lugar o paralelepípedo estava
coberto por um tapete amarelo de milho.
Pensei:
– Tem que ser aqui – e ao sacar o revólver do bolso, eu discerni subitamente:
– não nas têmporas, porque me enfearia o rosto, e sim no coração.
Uma con ança inquebrantável guiava os movimentos do meu braço.
Eu me perguntei:
– Onde estará o coração?
As opacas batidas internas me indicaram sua posição.
Examinei o tambor. Carregava cinco projéteis. Depois apoiei o cano do
revólver no casaco.
Um ligeiro desvanecimento me fez vacilar sobre minhas pernas e me apoiei
no muro do galpão.
Meus olhos se detiveram no ladrilhado amarelo de milho, e apertei o gatilho,
lentamente, pensando.
– Não hei de morrer – e o percussor caiu… Mas nesse brevíssimo intervalo
que separava o percussor do fulminante, eu senti que meu espírito se dilatava
em um espaço de trevas.
Caí por terra.

Quando despertei na cama do meu quarto, um raio de sol desenhava na


parede branca os contornos do cortinado, de modo que, do quarto, não se via
além dos vidros.
Sentada na beira do leito, estava minha mãe.
Inclinava a cabeça até mim. Tinhas cílios molhados, e seu rosto de
bochechas chupadas parecia esculpido em um enrugado mármore de tormento.
Sua voz tremia:
– Por que você fez isso?… ah, por que não me contou tudo? Por que você
fez isso, Silvio?
Eu olhei para ela. Uma terrível expressão de misericórdia e remorso contraía
o meu semblante.
– Por que você não veio pra casa?… Eu não teria dito nada. Se é o destino,
Silvio. O que seria de mim se o revólver tivesse disparado? Você não estaria
aqui agora, com sua pobre carinha fria… Ah!, Silvio, Silvio! – e pela olheira
acarminada descia uma lágrima pesada.
Senti que anoitecia em meu espírito e apoiei o rosto no seu regaço, enquanto
que acreditava acordar em uma delegacia, para distinguir, entre a neblina da
rememoração, um círculo de homens uniformizados que agitavam os braços a
meu redor.
capítulo 4

JUDAS ISCARIOTES
Monti era um homem ativo e nobre, excitável como um espadachim, enxuto
como um dalgo. Seu olhar penetrante não desmentia o irônico sorriso do
lábio, no, sombreado por sedosos os de bigode negro. Quando se
encolerizava, as maçãs do seu rosto avermelhavam, e seu lábio tremia até o
queixo escavado.
O escritório e depósito de papel do seu negócio eram três cômodos que
alugava de um judeu peleteiro, e separado dos fétidos fundos da loja do hebreu
por um corredor sempre cheio de pirralhos ruivos e amundiçados.
O primeiro cômodo era algo assim como um escritório e mostruário de
papel no. Suas janelas davam para a rua Rivadavia, e os transeuntes, ao passar
desde a calçada, viam corretamente alinhadas em um ambiente de madeira
resmas de papel salmão, verde, azul e vermelho, rolos de papel impermeável,
rajado e duro, blocos de papel de seda e do assim chamado papel-manteiga,
cubos de etiquetas com ores policromadas, maços de papel oreado, de
superfície rugosa e estampas de vasos decorados.
Na parede azulada, uma estampa do golfo de Nápoles realçava o esmalte azul
do mar imóvel na costa parda, semeada de quadrinhos brancos: as casas.
Ali, quando Monti estava de bom humor, cantava com limpa e entoada voz.
“A maré chiaro che se de una puesta”.
Eu gostava de escutá-lo. Ele o fazia com sentimento; compreendia-se que,
cantando, evocava os recantos e os momentos de devaneio transcorridos em sua
pátria.
Quando Monti me aceitou como vendedor por comissão, entregando-me
um mostruário de papéis classi cados por sua qualidade e preço, disse:
– Bom, agora vá vender. Cada quilo de papel são três centavos de comissão.
Princípio duro! Recordo que durante uma semana eu caminhei seis horas
por dia inutilmente. Aquilo era inverossímil. Não vendi um quilo de papel em
um trajeto de quarenta e cinco léguas. Desesperado, eu entrava em hortifrútis,
quitandas e armazéns, rodava os mercados, fazia antessala a farmacêuticos e
açougueiros, mas inutilmente.
Alguns me mandavam o mais cortesmente possível para o diabo, outros
diziam para voltar na semana que vem, outros arguiam: “Eu já tenho
fornecedor que há tempos me serve”, outros não me atendiam, alguns
argumentavam que a minha mercadoria era excessivamente cara, vários, que era
ordinária demais, e, alguns raros, na demais.
Ao meio-dia, de volta ao escritório do Monti, eu me deixava cair em uma
pilastra formada de resmas de papel e permanecia em silêncio, estonteado de
cansaço e desalento.
Mario, outro vendedor, um folgado de dezesseis anos, sorte de varapau, todo
ele pernas e braços, debochava das minhas estéreis diligências.
Era um trapalhão o tal do Mario! Parecia um poste de telégrafo rematado em
uma cabeça pequena, coberta de uma fabulosa mata de cabelos crespos.
Caminhava a trancos enormes, com uma pasta de couro vermelho embaixo do
braço. Quando chegava ao escritório, jogava a pasta em um canto e tirava o
chapéu, um chapéu-coco tão untado de gordura que com ele se poderia
lubri car o eixo de um carro. Vendia endiabradamente e sempre estava alegre.
Folheando uma caderneta ensebada ele lia em voz alta a longa lista de
pedidos recolhidos e, dilatando sua boca de baleote, ria-se até mostrar o fundo
vermelho da garganta e duas leiras de dentes salientes.
Para simular que a alegria fazia doer seu estômago, acolhia-o com ambas as
mãos.
Por cima do gaveteiro da escrivaninha, Monti nos observava sorrindo,
irônico. Abarcava sua ampla testa com a mão, esfregava-se nos olhos como que
dissipando preocupações e nos dizia depois:
– Não é pra desanimar, diávolo. Quer ser inventor e não sabe vender um
quilo de papel. – Depois indicava: – É preciso ser perseverante. Todo tipo de
comércio é assim. Até que fulano não te conheça não tem trato. Em um
negócio te dizem que já tem. Não importa. É preciso voltar até que o
comerciante se acostume a te ver e acabe por comprar. E sempre “gentile”,
porque é assim, – e mudando de conversa, acrescentava: – Venha tomar café
esta tarde. Conversaremos um pouco.

Certa noite, na rua Rojas, entrei em uma farmácia. O farmacêutico, sujeito


bilioso, chapiscado de varíola, examinou minha mercadoria, depois falou e me
pareceu um anjo pelo que disse:
– Manda pra mim cinco quilos de papel de seda sortido, vinte quilos de
papel liso especial e me faça vinte mil envelopes, cada cinco mil com esta
impressão: “Ácido bórico”, “Magnésia calcinada”, “Cremor tártaro”, “Sabão de
campeche”. E não se esqueça, o papel tem que estar aqui na segunda bem cedo.
Estremecido de alegria, anotei o pedido, cumprimentei com uma reverência
o será co farmacêutico e me perdi pelas ruas. Era a primeira venda. Havia
ganhado quinze pesos de comissão.
Entrei no mercado do bairro Caballito, esse mercado que sempre me
lembrava dos mercados dos romances de Carolina Invernizio. Um obeso
salsicheiro com cara de vaca, a quem eu tinha molestado inutilmente outras
vezes, gritou comigo ao mesmo tempo em que erguia sua faca sobre um bloco
de toicinho:
– Ei, manda pra mim duzentos quilos de corte especial, mas amanhã bem
cedo, sem falta, e a trinta e um.
Eu tinha ganhado quatro pesos, apesar de abater um centavo por quilo.
Uma in nita alegria, dionisíaca alegria inverossímil, in ava o meu espírito
até as esferas celestes… e então, comparando minha embriaguez com a
daqueles heróis danunzianos que meu patrão criticava por suas magní cas
empá as, pensei:
– Monti é um idiota.
De repente senti que apertavam meu braço; eu me virei bruscamente e me
encontrei diante do Lucio, aquele insigne Lucio que formava parte do “Clube
dos Cavaleiros da Meia-Noite”.
Nós nos cumprimentamos efusivamente. Depois da noite azarada eu não
tinha voltado a vê-lo, e agora ele estava na minha frente sorrindo e olhando,
como de costume, para todos os lados. Reparei que ele estava bem vestido, bem
calçado e cheio de joias, luzindo nos dedos anéis de ouro falso e uma pedra
pálida na gravata.
Ele tinha crescido; era um robusto trapaceiro disfarçado de dândi.
Complemento dessa gura de fanfarrão decente era um chapéu de feltro, abas
fartas, cravado comicamente sobre a testa até as sobrancelhas. Fumava em
piteira de âmbar e como homem que sabe tratar os amigos, depois dos
primeiros cumprimentos, me convidou para tomar chope em uma cervejaria
próxima.
Já sentados, e tendo sorvido sua cerveja de um só trago, o amigo Lucio disse
com voz enrouquecida:
– E você, trabalha com quê?
– E você?... Te vejo como um dândi, uma gura.
Um sorriso contorceu a sua boca.
– Eu… eu entrei nos eixos.
– Então você está bem… progrediu enormemente…, mas como eu não
tenho a sua sorte, sou papeleiro… vendo papel.
– Ah! Você vende papel pra alguma casa?
– Sim, pra um tal de Monti que mora em Flores.
– E você ganha muito?
– Muito não, mas dá pra viver.
– Então você se regenerou?
– Claro.
– Eu também trabalho.
– Ah, você está trabalhando!
– Sim, trabalho, e você não faz ideia de quê?
– Não, não sei.
– Sou agente de investigação.
– Você… agente de investigação? Logo você!
– É, por quê?
– Não, por nada. Quer dizer que você é agente de investigações?
– Por que te surpreende?
– Não… de nenhuma maneira… você sempre levou jeito… desde
pequeno…
– Seu abelhudo… mas olha, Silvio, cara, é preciso se regenerar; a vida é
assim, a struggle for life de Darwin…
– Você se tornou erudito! Como posso engolir isso?
1
– Eu me entendo, cara, essa é a terminologia ácrata ; quer dizer então que
você se regenerou, trabalha, e vai indo bem.
– Arregular, como se diz em basco; vendo papel.
– Você se regenerou, então?
– Parece.
– Muito bem; mais um chope, garçom… dois, quer dizer, desculpa, cara.
– E como é esse trabalho de investigações?
– Ora, Silvio, não me pergunte isso; são segredos pro ssionais. Mas virando
o disco, você se lembra do Enrique?
– Enrique Irzubeta?
– Sim.
– De Irzubeta só sei que depois que a gente se separou, você lembra?…
– Como não vou lembrar!
– Depois que a gente se separou eu soube que o Grenuillet conseguiu
despejá-los e que foram viver em Villa del Parque, mas eu não vi mais o
Enrique.
– Certo; o Enrique foi trabalhar em uma agência de carros em Azul.
– E você sabe onde ele está agora?
– Deve estar em Azul, ora essa!
– Não, não está em Azul; está na cadeia.
– Na cadeia?
– Assim como eu estou aqui, ele está na cadeia…
– O que ele aprontou?
– Nada, cara: a struggle for life…, a luta pela vida, quer dizer, é um termo
que aprendi de um padeiro gringo que gostava de fabricar explosivos. Você não
fabricava explosivos? Não que chateado; como você era tão alucinado pelas
bombas de dinamite…
Irritado com as suas perguntas insidiosas, eu o olhei com rmeza.
– Você vai me prender?
– Não, homem, por quê? Não se pode brincar com você?
– É que parece que você quer me enquadrar em algo.
– Puxa vida… que gura encantadora você, já não se regenerou?
– Bem, o que você dizia do Enrique?
– Bem, vou te contar: uma façanha gloriosa, cá entre nós, uma coisa notável.
“Acontece, agora não me lembro se era na agência da Chevrolet ou do
Buick, onde Enrique estava empregado, que tinham con ança nele… bom, pra
trapacear esse aí foi sempre um malandro. Ele trabalhava no escritório, não sei
como, o caso é que do talão de cheques acabou roubando um e preencheu em
seguida a quantia de cinco mil e novecentos e cinquenta e três pesos. Como são
as coisas!
Na manhã em que ele pensava em ir descontar, o dono da agência dá dois
mil e cem pesos pra depositar no mesmo banco. Este louco embolsa a grana,
vai pra garagem da agência, retira um carro e, tranquilamente, segue até o
banco, apresentando o cheque, e agora o mais absurdo, descontam o cheque
falsi cado no banco.”
– Descontaram!
– É incrível, imagino a falsi cação! Bom, ele sempre levou jeito. Você lembra
quando ele falsi cou a bandeira da Nicarágua?
– Sim, desde pequeno que levava jeito… mas continua.
– Bem, descontaram… agora imagina se o Enrique estava nervoso: sai com o
carro, a duas quadras do mercado, em um cruzamento, bate contra uma
carroça… e teve sorte, a única coisa que a vara fez foi quebrar o seu braço, se o
acerta um pouco mais ao meio, atravessa o peito. Ficou desmaiado. Levam ele
pra um hospital, deixa a casualidade que o dono da agência saiba em seguida
do acidente, e vai ao sanatório como gato ao bofe. O homem pede pro médico
as roupas do Enrique, porque devia de ter dinheiro ou um comprovante de
depósito… imagina a surpresa do sujeito… em vez de um comprovante de
depósito, encontra oito mil e quinhentos e três pesos. Nisso o Enrique reage, o
homem pergunta de onde é essa dinheirama, e ele não sabe responder; vão ao
banco e ali, em seguida, cam sabendo de tudo.
– É sensacional.
– Incrível. Eu li toda a crônica disso no El ciudadano, um jornal dali.
– E agora está preso?
– Na sombra, como ele dizia… mas vai saber quanto tempo ele pegou.
Tem a vantagem de ser menor de idade, e, além do mais, a família conhece
pessoas de in uência.
– É curioso: vai ter um grande futuro, o amigo Enrique.
– Invejável. Com razão que chamavam ele de O Falsi cador.
Depois, calamos. Eu me lembrava do Enrique. Parecia que eu voltava a estar
com ele, no covil dos títeres. Na parede vermelha o raio de sol iluminava seu
acentuado per l de adolescente soberbo.
Com voz rouca, Lucio comentou:
– A struggle for life, cara, uns se regeneram e outros caem; assim é a vida…
mas eu vou indo, tenho que pegar serviço… se você me quiser ver, aqui está o
meu endereço – e me entregou um cartão.
Logo depois de uma espalhafatosa despedida, eu me encontrei distante,
sozinho nas ruas iluminadas, ainda soava em meus ouvidos a sua enrouquecida
voz:
– A struggle for life, cara… uns se regeneram, outros caem… assim é a vida!

Agora eu me dirigia aos comerciantes com o aprumo de um vendedor


experiente, e com a certeza de que não deviam ser em vão as minhas correrias,
porque já “tinha vendido”, me assegurei em breve tempo uma clientela
medíocre, composta de feirantes, farmacêuticos a quem eu falava de ácido
pícrico e de outras ninharias, livreiros e dois ou três donos de armazéns, pessoas
mais sem serventia e mais matreiras para mercar.
Com o objetivo de não perder tempo, eu tinha dividido as freguesias de
Caballito, Flores, Vélez Sars eld e Villa Crespo em zonas que recorria
sistematicamente uma vez por semana.
Bem cedo deixava o leito e, a passos largos, eu me dirigia aos bairros
pre xados. Daqueles dias, conservo a lembrança de um imenso céu
resplandecente sobre horizontes de casas pequenas e caiadas, de fábricas de
muros vermelhos, e adornando os con ns: mares de verdura, ciprestes e
arvoredos em torno das cúpulas brancas da necrópole.
Pelas ruas achatadas da periferia, miseráveis e sujas, inundadas de sol, com
caixotes de lixo pelas portas, com mulheres buchudas, despenteadas e
esquálidas falando nos umbrais e chamando a seus cachorros e lhos, sob o
arco do céu mais límpido e diáfano, conservo a lembrança fresca, alta e
esplendorosa.
Meus olhos bebiam avidamente a serenidade in nita, extática no espaço
celeste.
Chamas ardentes de esperança e de devaneio me envolviam o espírito e de
mim brotava uma inspiração tão feliz por ser cândida que conseguia dizê-la
com palavras.
E mais e mais me embevecia com a cúpula celeste, quanto mais vis eram as
paragens onde eu trafegava. 2 Recordo…
Aqueles armazéns, aqueles açougues de subúrbio!
Um raio de sol iluminava no escuro os animais de carne rubro-negra
dependurados nos ganchos e nas cordas junto aos mostradores de estanho. O
piso estava coberto de serragem, no ar pairava um fedor de sebo, enxames
negros de moscas ferviam nos pedaços de gordura amarela, e o impassível
açougueiro serrava os ossos, machadava com o dorso da faca as chuletas… e lá
fora… lá fora estava o céu do amanhecer, quieto e primoroso, deixando cair de
sua azul-cintilância a in nita doçura da primavera.
Nada me preocupava no caminho a não ser o espaço, terso como uma
porcelana celeste nos con ns azuis, com a profundidade de golfo em zênite,
um prodigioso mar alto e quietíssimo, onde meus olhos acreditavam ver
ilhotas, portos de mar, cidades de mármore rodeadas de bosques verdes e
navios de mastros desabrochados, deslizando-se entre harmonias de sereias em
direção às homéricas cidades da alegria.
Caminhava assim, estremecido de saborosa violência.
Parecia-me escutar os rumores de uma festa noturna; no alto, os fogos
derramavam verdes cascatas de estrelas, embaixo riam os pançudos gênios do
mundo, e os símios faziam malabarismos enquanto riam as deusas escutando a
auta de um sapo.
Com festivos rumores cantando nas orelhas, com aquelas visões navegando
ante os olhos, eu encurtava as distâncias sem perceber.
Entrava nos mercados, conversava com “barraqueiros”, vendia ou discutia
com os clientes inconformados com as mercadorias recebidas. Costumavam me
dizer, retirando de debaixo do balcão umas aparas de papel que poderiam servir
para fabricar serpentina:
– E com essas tiras de papel, o que o senhor pretende embrulhar?
Eu explicava:
– Oh, o “corte” não vai ser grande como um mural. Há de tudo um pouco
na tenda do Senhor.
Estas razões especiosas não satisfaziam aos mercadores que, tomando a seus
confrades os testemunhos, juravam não comprar de mim nem mais um quilo
de papel.
Eu então ngia me indignar, dizia algumas palavras não evangélicas e, com
desfaçatez, entrava atrás do balcão e começava a remexer o pacote e a extrair
dobras que com um pouco de boa vontade podiam servir para amortalhar uma
rês.
– E isto?… Por que não mostravam isto? Os senhores acham que o corte sou
eu que vou escolher. Por que não compram corte especial?
Assim eram as disputas com aqueles indivíduos açougueiros e cidadãos
vendedores de peixe, gente rude, esquentada e amiga de confusões.
Também me agradava, nas manhãs de primavera, bater perna pelas ruas
percorridas por bondes, vestidas com toldos de comércio. Comprazia-me o
espetáculo dos grandes armazéns interiormente assombrosos, as queijarias
frescas como granjas com enormes pilhas de manteiga nas prateleiras, as tendas
com vidraças multicoloridas e senhoras sentadas junto aos mostradores diante
de leves rolos de tecidos; e o cheiro de tinta nos depósitos de construção e o
aroma de petróleo nas dispensas se confundiam nas minhas sensações como a
fragrância de uma extraordinária alegria, de uma festa universal e perfumada,
cujo futuro relator seria eu.
Nas gloriosas manhãs de outubro eu me sentia poderoso, me sentia
compreensivo como um deus.
Se cansado, eu entrava em uma leiteria para tomar um refresco, o assombro
do lugar, à semelhança da decoração, me fazia sonhar com uma Alhambra
inefável, e via as chácaras da distante Andaluzia, via os terrenos empinados ao
pé da serra e, no fundo dos socavões, a ta prateada dos arroiozinhos. Uma voz
adamada era acompanhada por um violão, e, na minha memória, o velho
sapateiro andaluz reaparecia dizendo:
– José, se era mar lindo que uma rosa.
Amor, piedade, gratidão à vida, aos livros e ao mundo me galvanizavam o
nervo azul da alma.
Não era eu, mas sim o deus que estava dentro de mim, um deus feito com
pedaços de montanhas, de bosques, de céu e de recordação.
Quando tinha vendido uma quantidade su ciente de papel, empreendia o
retorno, e como os quilômetros se faziam longos para percorrer a pé,
comprazia-me sonhar com coisas absurdas, verbigrácia, que eu tinha herdado
setenta milhões de pesos ou em coisas dessa natureza. Evaporavam-se minhas
quimeras quando, ao entrar no escritório, Monti me comunicava, indignado:
– O açougueiro da rua Remedios devolveu o corte.
– Por quê?
– Sei lá!… Disse que não lhe agradava.
– Raios o partam, a esse cara.
É indescritível o sentimento de fracasso que produzia o monte de papel sujo,
abandonado no pátio escuro, com os cordões novos, cheio de barro nos cantos,
manchado de sangue e de gordura, graças ao fato de o carniceiro tê-lo revolvido
impiedosamente com as mãos pegajosas.
Devoluções dessa ordem se repetiam com demasiada frequência.
Prevenindo-me de posteriores incidentes, eu tratava de advertir o
comprador:
– Veja: o corte são as sobras de papel liso. Se você quiser, eu mando corte
especial, são oito centavos a mais por quilo, mas se aproveita tudo.
– Não importa, amigo – dizia o magarefe –, manda o corte.
Mas quando o papel lhe era entregue, pretendia que fosse descontado alguns
centavos por quilo ou, então, devolver os pedaços muito rasgados que,
somando dois ou três quilos, faziam perder a comissão; ou não pagar, que era
perder tudo…
Aconteciam percalços divertidíssimos, pelos quais Monti e eu acabávamos
por disparar a rir para não chorar de raiva.
Tínhamos entre os clientes um criador de porcos que exigia que os fardos de
papel fossem entregues em sua casa em dia determinado e hora pre xada por
ele, o que era impossível; outro que devolvia a carga insultando o carregador,
caso não se emitisse o recibo na forma estipulada pela lei, o que era supér uo;
outro não pagava o papel a não ser uma semana depois que começasse a
consumi-lo.
Sem falar da ralé dos feirantes turcos.
Se eu lhes pedia notícias de Al Motamid, não me compreendiam ou se
encolhiam os ombros, cortando um pedaço de bofe para o gato de uma
comadre descarada.
Depois, para lhes vender, tinha que perder uma manhã, e isso com o
objetivo de entregar em distâncias inverossímeis, em ruas de subúrbios
desconhecidos, um mísero pacote de vinte e cinco quilos, em que se ganhavam
setenta e cinco centavos.
O entregador, um homem taciturno de cara suja, ao entardecer, quando
regressava com seu cavalo cansado e o papel que não tinha entregado, dizia:
– Este não foi entregue – e lançava o fardo no chão com gesto mal-
humorado – porque o açougueiro estava nos matadouros, e a mulher disse que
não sabia nada e não quis receber. Este outro não mora mais no endereço,
porque ali é uma fábrica de alpargatas. Desta rua ninguém soube me dizer o
rumo.
Nós soltávamos a língua renegando o populacho que não reconhecia
formalidades nem compromissos de nenhum gênero.
Outras vezes calhava que o Mario e eu recolhíamos um pedido do mesmo
indivíduo e, quando era enviado, o encarregado o recusava, porque dizia que já
tinha comprado a mercadoria de um terceiro que tinha oferecido mais barata.
Alguns tinham o despudor de dizer que não tinham encomendado nada, e, em
geral, se não as tivessem, inventavam as razões.
Quando acreditava ter ganhado sessenta pesos em uma semana, recebia só
vinte e cinco ou trinta.
Mas e a gentalha! Os comerciantes a varejo, os lojistas e os farmacêuticos!
Quanto capricho, por que tantas informações e exames prévios!
Para comprar a insigni cância de mil envelopes com o impresso de
Magnésia ou Ácido Bórico, não o faziam a não ser depois de vê-los
frequentemente, e exigiam de antemão que fossem entregues mostra de papel,
tipos de imprensa e, ao m, diziam:
– Veremos, passe na próxima semana.
Pensei muitas vezes que poderia escrever uma logenia e psicologia do
comerciante do varejo, do homem que usa gorro atrás do mostrador e que tem
o rosto pálido e os olhos frios como lâminas de aço.
Ah, por que não é su ciente expor a mercadoria!
3
Para vender é preciso se empapar de uma sutileza “mercurial” , escolher as
palavras e cuidar dos conceitos, adular com circunspecção, conversando do que
não se pensa nem crê, entusiasmar-se com uma bagatela, acertar com um gesto
compungido, interessar-se vivamente pelo que maldito é se nos interessa, ser
múltiplo, exível e engraçado, agradecer com donaire uma insigni cância, não
se desconcertar nem se dar por aludido ao escutar uma grosseria, e sofrer, sofrer
pacientemente o tempo, os semblantes avinagrados ou mal-humorados, as
respostas rudes e irritantes, sofrer para poder ganhar alguns centavos, porque
“assim é a vida”.
Se na dedicação se estivesse sozinho… mas é preciso compreender que vários
já passaram oferecendo a mesma mercadoria, em distintas condições, cada qual
mais vantajosa para o comerciante, no mesmo lugar onde dissertamos sobre a
vantagem de entabular negócio conosco.
Como se explica que um homem escolha outro entre muitos, para se
bene ciar bene ciando-o?
Não parecerá então exagerado dizer que entre um indivíduo e o comerciante
se estabeleceram vínculos materiais e espirituais, relação inconsciente ou
simulada de ideias econômicas, políticas, religiosas e até sociais, e que uma
operação de venda, ainda que seja a de um pacote de agulhas, salvo
peremptória necessidade, encadeia em si mais di culdades que a solução do
binômio de Newton.
Mas se fosse só isso!
Para mais, é preciso aprender a se dominar, para suportar todas as insolências
dos pequeno-burgueses.
Em geral, os comerciantes são néscios astutos, indivíduos de baixa extração,
e que se enriqueceram à custa de sacrifícios penosíssimos, de furtos que a lei
não pode apenar, de adulterações que ninguém descobre ou todos toleram.
O hábito da mentira enraíza nessa canalha acostumada ao manejo de
grandes ou pequenos capitais, e enobrecidos pelos créditos que lhes concedem
uma patente de honorabilidade, eles têm por isso espírito de militares, quer
dizer, habituados a tratar pejorativamente a seus inferiores, assim fazendo com
estranhos que têm a necessidade de se aproximar deles para poder medrar.
Ah, e como ferem os gestos despóticos desses farsistas enriquecidos, que,
inexoráveis detrás das janelinhas dos caixas, anotam seus lucros; como crispam
em ímpetos assassinos essas fuças ignóbeis que respondem:
– Deixa de foder, homem, que nós compramos das principais casas.
No entanto, se tolera e se sorri e se cumprimenta… porque “assim é a vida”.
Às vezes, terminado meu percurso, e se cava pelo caminho, eu ia dar um
dedinho de prosa com o guardador de carruagens e carroças da feira de Flores.
Ela era como tantas outras.
Ao fundo da rua de casas com fachadas caiadas, coberta por um oceano de
sol, esta se apresentava inopinadamente.
O vento trazia um azedo cheiro de verduras, e os toldos das bancas
sombreavam os mostradores de estanho, dispostos paralelamente à sarjeta, no
centro das calçadas.
Ainda tenho o quadro diante dos olhos.
É composto por duas leiras.
Uma formada por açougueiros, vendedores de porcos, de ovos e queijos, e
outra de verdureiros. A coluna se prolonga com gritante policromia, rebuscada
de tintas, com seus homens barbudos em mangas de camisa junto aos cestos
cheios de hortaliças.
A leira começa nas bancas de pescadores, com os cestos ocres manchados
pelo vermelho dos lagostins, o azul dos peixes-rei, o achocolatado dos mariscos,
a lividez achumbada dos caracóis e o branco-zinco das merluzas.
Os cães rondam arrebatando a tripagem do descarte, e os feirantes, com os
peludos braços descobertos e um avental que lhes cobre o peito, apanham, a
pedido das compradoras, o peixe pelo rabo, abrem o ventre de uma só facada,
com as unhas remexem até o espinhaço, destripando-o, e depois, de um só
golpe seco, os dividem em dois.
Mais adiante, as tripeiras raspam as amarelentas buchadas no estanho de seus
mostradores ou penduram nos ganchos imensos fígados vermelhos.
Dez gritos monótonos repetem:
– Peixe-rei fresco… fresco, senhora.
Outra voz grita:
– Aqui… aqui está o melhor. Venham ver.
Pedaços de gelo cobertos de serragem vermelha se derretem lentamente à
sombra, por cima do lombo dos peixes encaixotados.
Entrando, eu perguntava na primeira banca:
– Sabe do Manco?
Com as mãos apoiadas na cadeira, estofado o avental sobre o ventre, os
feirantes gritavam com vozes fanhosas ou estridentes:
– Manco, vem cá, Manco – e porque o estimava, ao chamá-lo, riam com
estrondosas gargalhadas, mas o Manco, me reconhecendo lá de longe, para
gozar de sua popularidade, caminhava devagar, manquitolando ligeiramente.
Quando encontrava alguma doméstica conhecida frente a alguma banca,
tocava a aba do chapéu com o cabo do chicote.
Parado, conversava, conversava sorrindo, mostrando os dentes tortos com
um perene sorriso picaresco; de repente se mandava, piscando o olho de soslaio
aos peões de açougueiros que, com os dedos das mãos, respondiam com
obscenos gestos.
– Manco… ei, Manco… “vem cá” – gritavam do outro lado.
O pelintra virava a sua cara angulosa para um lado, dizendo que
aguardássemos, e a braçadas abria passagem entre as mulheres amontoadas
diante das bancas, e as fêmeas que não o conheciam, as velhas gananciosas e
rabugentas, as jovens biliosas e avaras, as mocinhas linfáticas e pretensiosas,
tava com azeda descon ança, com fastio mal dissimulado, essa cara triangular
avermelhada pelo sol, bronzeada pela sem-vergonhice.
Era um tremendo de um abusado, a quem agradava tocar o traseiro das
mulheres apinhadas.
– Manco… Vem cá, Manco.
O Manco gozava de popularidade. Além disso, como todos os personagens
da história, lhe agradava ter amigas, cumprimentar as vizinhas, banhar-se nessa
atmosfera de troças e grosseria que de imediato se estabelece entre comerciante
vulgar e comadre pegajosa.
Quando falava de coisas sujas, sua cara vermelha resplandecia como se a
tivesse besuntado com toicinho, e a roda de tripeiras, verdureiros e vendedores
de ovos se regozijavam da imundice com que as salpicavam as picardias do
trapalhão.
Chamavam:
– Manco, vem cá, Manco – e os fornidos carniceiros, os robustos lhos de
napolitanos, toda a barbuda sujidade que ganha a vida negociando
miseravelmente, toda a gentalha magra e gorda, avessa e astuta, os vendedores
de peixe e de fruta, os açougueiros e as manteigueiras, toda a canalha cobiçosa
de dinheiro se comprazia com a malandragem do Manco, com a sem-
4
vergonhice do Manco, e o Manco olímpico, descarado e milongueiro,
semelhante ao símbolo da feira franca, na passagem semeada de talos de
verduras, couves e cascas de laranja, avançava gingando e com esta canção
obscena presa nos lábios:
5
Y es lindo gozar de garrón
Era um zé pelintra digno de todo apreço. Tinha acolhido a nobre pro ssão
de guardador de carroças, desde o dia em que cou com uma entorse em uma
perna por consequência da queda de um cavalo. Vestia sempre o mesmo traje,
quer dizer, uma calça de felpa verde e um casaquinho que parecia de toureiro.
Enfeitava o colarinho, que deixava livre seu elástico preto, com um lenço
vermelho. Um ensebado chapéu de alas fartas sombreava a sua testa e, em vez
de botinas, calçava alpargatas de tecido violeta e enfeitadas com arabescos
rosados.
Com um chicote que nunca abandonava, ele percorria manquitolando de
um lado a outro a la de carroças, para manter a compostura dos cavalos que,
para matar o tédio, mordiscavam-se ferozmente.
O Manco, além de guardador, tinha seus serpenteios de ladrão, e sendo
“ca fa” por devoção, não podia deixar de ser jogador entranhado.
Substancialmente, era um pícaro afabilíssimo, do qual se podia esperar
qualquer favor e também alguma presepada.
Ele dizia ter estudado para jóquei e ter cado com essa entorse na perna,
porque, de inveja, os companheiros espantaram o cavalo em um dia de prova,
mas eu acredito que ele não tinha sido mais do que catador de bosta em
alguma cavalariça.
Mas verdade seja dita, conhecia mais nomes e virtudes de cavalos que uma
6
beata de santos do martirológio. Sua memória era um Almanaque de Gotha da
nobreza animal. Quando falava de minutos e segundos, acreditava-se escutar
um astrônomo, quando falava de si mesmo e da perda de que o país sofrera ao
perder um jóquei como ele, era de sentir-se tentado a chorar.
– Que vagabundo!
Se eu ia vê-lo, abandonava as bancas onde conferenciava com certas amantes
e, me pegando de um braço, dizia por via de introito:
– Me dá um cigarrinho, que… – e nos encaminhando para a la de carroças,
subíamos na que estava melhor encapotada para sentarmos e conversar
longamente.
Dizia:
– Sabe, passei a perna no turco Salomão. Deixou esquecida na carroça uma
coxa de carneiro, eu chamei o Menor (um protegido) e disse: Se manda com
isso pro quarto.
Dizia:
– Outro dia vem uma velha. Era uma mudança, uma bagagenzinha de
nada… E eu andava duro, duro… Um mango, digo pra ela, e agarro a carroça
do pescador.
Que correria, irmão! Quando voltei era nove e quinze, e o pangaré suado
que dava medo. Pego ele e seco bem, mas o galego deve ter sacado, porque hoje
e ontem ele veio um monte de vezes na la, e tudo pra ver se a carroça estava
aqui. Agora quando tiver outra viagem eu me arranjo com o da tripeira – e
observando meu sorriso, emendou:
– É preciso viver, cara, se liga: o quarto, dez mangos; no domingo jogo uma
redobrona no Sua Majestade, Vasquito e no Adorada… e o Sua Majestade
passou pra trás – mas reparando nos dois vagabundos que estavam rondando
com dissimulação em torno da carroça na ponta da la, armou um escarcéu:
– Ei, lhos de uma grandíssima puta, que estão tramando aí? – e hasteando
o chicote foi correndo na direção da carroça. Depois de conferir
cuidadosamente os arreios, virou-se resmungando:
– Estou frito se me roubam um tirante ou umas rédeas.
Nos dias chuvosos eu costumava passar as manhãs em sua companhia.
Sob a capota de uma carroça, o Manco improvisava estupendas poltronas
com sacolas e caixotes. Sabia-se onde estava porque sob o arco do toldo
escapavam nuvens de fumaça. Para se entreter, o Manco pegava o cabo de um
chicote como se fosse um violão, fechava os olhos, tragava com mais energia o
cigarrinho e, com voz arrastada, às vezes inchada de coragem, outras, dolente
de voluptuosidade, cantava:
Tengo un bulín más, “so ca”
que da las once antes de hora
y que yo se lo alquilé;
y que yo se lo alquile;
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para que a le ella sola.

Com o chapéu sobre a orelha, o cigarro esfumaçando sob as narinas, e a


camisa entreaberta sobre o peito esturricado, o Manco parecia um ladrão, e às
vezes costumava me dizer:
– Não é verdade, hein, Loirinho, que eu tenho pinta de gatuno?
Se não, contava em voz baixa, entre as longas baforadas de seu cigarro,
histórias do subúrbio, recordações de sua infância transcorrida em Caballito.
Eram memórias de assaltos e rapinagem, roubos à luz do dia, e os nomes de
Cabecinha de Alho, o Inglês, e dos dois irmãos Arévalo estavam continuamente
alinhados nestes relatos.
Dizia o Manco com melancolia:
– Como eu me lembro! Eu era um garoto. Sempre estavam na esquina de
Méndez de Andés e Bella Vista, encostados na vitrine do armazém de um
galego. O galego era um mané. A mulher dormia com outros e tinha duas
lhas na vida. Como eu me lembro! Sempre estavam ali, tomando sol e
gozando dos que passavam. Passava algum tipo com chapéu de palha e não
faltava quem gritasse:
– Quem comeu a pata do leitão?
– O jeca – respondia o outro –. Sim, eram uns bocós. Assim que você se
enfezava, te escamavam. Eu me lembro. Era uma hora. Vinha um turco. Eu
estava com um pangaré na ferraria de um francês que cava de frente para o
botequim.
Foi num piscar de olhos. O chapéu de palha do turco voou pro meio da rua,
quis tirar o revólver, e zás, o Inglês o fez girar de uma só pancada. O Arévalo
catou o cesto, e o Cabecinha de Alho, o caixote. Quando veio o cana só estava
o chapéu de palha e o turco, que chorava com o nariz revirado. O mais
desalmado foi Arévalo. Era comprido, moreno e caolho. Tinha uma pá de
mulheres. A última que fez foi a de um Cabo. Já estava com a captura
recomendada. Grampearam ele uma noite com outros muitos da vida, num
copo-sujo que existia antes de chegar a San Eduardo. Revistaram, e ele não
tinha armas. Um cabo põe a algema e leva ele. Antes de chegar a rua Bogotá,
no escuro, o Arévalo saca uma faca que tinha escondida no peito, sob a
camiseta, enrolada em papel de seda, e a enterrou até o cabo, no coração. O
outro caiu duro, e o Arévalo virou um peido; foi se esconder na casa de uma
irmã que era passadeira, mas no outro dia cataram ele. Dizem que morreu
tísico da surra que lhe deram com a borracha.
Assim eram as narrativas do Manco. Monótonas, obscuras e sanguinolentas.
Terminadas suas histórias, antes que fosse a hora regulamentar para desarmar a
feira, o Manco me convidava:
– Vem, Loirinho, vamos pegar a xepa?
– Vamos.
Com a sacola no ombro, o Manco percorria as bancas e os feirantes, sem
necessidade de que ele pedisse, gritavam:
– Vem cá, Manco, toma – e ele pegava gordura, ossos carnudos; dos
verdureiros, quem não lhe dava um repolho dava batatas ou cebolas, as
vendedoras de ovos, um pouco de manteiga, as tripeiras, um talho de fígado, e
o Manco jovial, com o chapéu inclinado sobre a orelha, o chicote nas costas e a
sacola na mão, atravessava soberbo como um rei ante os mercadores, e até os
mais avaros e até os mais vis não se atreviam a lhe negar uma sobra, porque
sabiam que ele podia prejudicá-los de distintas formas.
Terminado, dizia:
– Vem comer comigo.
– Não, que estão me esperando em casa.
– Vem, não seja otário, fazemos um bife e batatas fritas. Depois eu mando
ver na viola, e tem vinho, um vinhozinho San Juan que está tinindo. Comprei
um garrafão, porque grana que não se gasta se joga.
Eu bem sabia por que o Manco insistia para que eu almoçasse com ele.
Devia precisar de me consultar a propósito de seus inventos – porque sim –, o
Manco, com toda sua vadiagem, tinha queda para inventor; o Manco, que
segundo suas próprias palavras, tinha se criado “entre as patas dos cavalos”, em
suas horas de sesta compaginava dispositivos e invenções para despojar o
dinheiro do próximo. Lembro que um dia, explicando-lhe os prodígios da
galvanoplastia, o Manco cou tão admirado que, durante vários dias, tratou de
persuadir-me para que instalássemos em sociedade uma fábrica de moedas
falsas. Quando eu perguntei de onde tiraríamos o dinheiro, retrucou:
– Eu conheço um tipo que tem dinheiro. Se você quiser, te apresento e a
gente se ajeita. E… vamos ou não vamos?
– Vamos.
Subitamente o Manco dirigia um olhar investigador em volta, para gritar
depois com voz desagradável:
– Menor!
O Menor, que estava brigando com outros vadios de sua laia, reaparecia:
Não tinha nem dez anos de idade, e menos de quatro pés de estatura, mas
em seu rosto romboidal como o de um mongol, a miséria e toda a experiência
da vadiagem tinham lapidado rugas indeléveis.
Tinha o nariz chato, os lábios belfos e, além disso, era tremendamente
cabeludo, de uma lã ondulada e espessa entre cujos cachos desapareciam as
orelhas. Toda essa gura aborígene e suja se ataviava com uma calça que
chegava às canelas, e a blusa preta de leiteiro basco.
O Manco lhe ordenou imperativamente:
– Pega isso.
O garoto jogou a sacola nas costas e marchou rapidamente.
Era criado, cozinheiro, faxineiro e ajudante do Manco. Este o recolheu como
se recolhe um cachorro, e em troca de seus serviços o vestia e o alimentava; e o
Menor era delíssimo servidor de seu amo.
– Escuta essa – me contava –, outro dia, uma mulher abrindo a bolsa em
uma banca, deixou cair cinco pesos. O Menor tapa eles com o pé e depois cata.
Vamos pra casa e não sobrava nem sinal de carvão. – Vai ver se consegue algo
ado. – Não precisa – me respondeu o louco, e descasca os cinco mangos.
– Caramba, não é nada mal.
– E daí pra “sangria”. E você não sabe o que mais ele faz?
– Conta aí.
– Mas veja bem!… Uma tarde, vejo que está de saída. Aonde você vai? –
digo pra ele.
– Na igreja.
– Um cazzo, na igreja?
– “Manja essa”, e começa a me contar que da caixa que está metida na
parede da entrada, pro donativo, tinha visto aparecer o rabicó de um peso.
Acontece que tinha entrado apertado, e ele, com um al nete, sgou a piaba. E
tinha feito um ganchinho com um al nete para ir pescar dentro da caixa todos
os pesos que lá estivessem. Você pode com isso?…
O Manco ri, e se eu duvido que o Menor tenha inventado o anzol, por
outro lado, não duvido que seja o pescador, mas não digo e, dando um tapinha
nas suas costas, exclamo:
– Ah, Manco, Manco!
E o Manco ri com uma risada que entorta seus lábios, descobrindo os
dentes.

Algumas vezes na noite. – Piedade, quem terá piedade de nós?


Sobre esta terra quem terá piedade de nós. Míseros, não temos um Deus
diante de quem nos prostrar, e toda nossa pobre vida chora.
Diante de quem eu me prostrarei, a quem falarei de meus espinhos e de
minhas duras sarças, desta dor que surgiu na tarde ardente e que ainda é por
mim?
Quão pequeninos somos, e a mãe terra não nos quis em seus braços e hei-
nos aqui acerbos, desmantelados de impotência.
Por que não sabemos de nosso Deus?
Oh! Se Ele viesse em um entardecer e, suavemente, abarcasse com suas mãos
as nossas duas têmporas.
O que mais lhe poderíamos pedir? Passaríamos a andar com seu sorriso
aberto na pupila e com lágrimas suspensas nos cílios.

Uma quinta-feira, às duas da tarde, minha irmã me avisou que um


indivíduo estava me esperando à porta.
Saí e, com a conseguinte surpresa, encontrei o Manco, mais decentemente
vestido do que de costume, pois tinha substituído seu lenço vermelho por um
modesto colarinho de tecido, e as oridas alpargatas davam lugar a um
amejante par de botinas.
– Olá! Você por aqui?
– Você está desocupado, Loirinho?
– Sim, por quê?
– Então vem, a gente tem que conversar.
– Claro, espera um pouco – e entrando rapidamente, eu pus o colarinho,
apanhei o chapéu e saí. Basta dizer que imediatamente suspeitei de algo e,
embora não pudesse imaginar o objetivo da visita do Manco, resolvi manter a
guarda.
Uma vez na rua, examinando seu semblante, reparei que tinha algo
importante para me comunicar, pois me observava às furtadelas, mas eu me
retive na curiosidade, limitando-me a pronunciar um signi cativo:
– E aí?…
– Faz tempo que você não aparece na feira – comentou.
– Verdade… estava ocupado… e você?
O Manco voltou a me encarar. Como caminhávamos por uma calçada
sombreada, desatou a fazer comentários sobre a temperatura; depois falou da
pobreza, dos transtornos que lhe traziam os trabalhos cotidianos; também me
disse que na última semana tinham lhe roubado um par de rédeas, e quando
esgotou o assunto, detendo-me no meio da calçada, e tomando-me do braço,
soltou isso ex abrupto:
– Diz pra mim, hein Loirinho, você é de con ança ou não é?
– Foi pra me perguntar isso que você me trouxe até aqui?
– Mas você é ou não é?
– Olha, Manco, me diz, você bota fé em mim?
– Sim, eu boto fé em você… mas diz, se pode falar às claras com você?
– Claro, homem.
– Olha, então vamos entrar ali, vamos tomar algo – e o Manco,
encaminhando-se ao balcão de bebidas de um armazém, pediu uma garrafa de
cerveja ao lavador de copos, nos sentamos em uma mesa no canto mais escuro,
e depois de beber, o Manco disse, como quem descarrega um grande peso:
– Tenho que te pedir um conselho, Loirinho. Você é muito “cientí co”. Mas
por favor, irmão… pianíssimo, Loirinho…
Eu o interrompi:
– Olha, Manco, um momento. Eu não sei o que você tem pra me dizer, mas
vou avisando desde já que eu sei guardar segredos. Não pergunto nem muito
menos digo nada.
O Manco colocou seu chapéu em cima da cadeira. Meditava ainda, e em seu
per l de gavião a irresolução mental movia, ligeiramente, por re exo, os
músculos sobre suas mandíbulas.
Nas suas pupilas ardia um fogo de coragem, depois, me olhando
rispidamente, se explicou:
– É um golpe de mestre, Loirinho. Dez mil mangos, pelo menos.
Eu o encarei com frieza, essa frieza que provém de ter descoberto algo que
nos pode bene ciar imensamente, e repliquei para lhe inspirar con ança:
– Não sei do que se trata, mas é pouco.
A boca do Manco se abriu lentamente:
– Te pa-re-ce pou-co. Dez mil mangos pelo menos, Loirinho… pelo menos.
– Somos dois – insisti.
– Três – replicou.
– Pior que antes.
– Mas a terceira é minha mulher – e de repente, sem que me explicasse sua
atitude, tirou uma chave, uma pequena chave achatada e, pondo em cima da
mesa, deixou-a ali abandonada. Eu não a toquei.
Concentrado, tava-o nos olhos, ele sorria como se a loucura de um regozijo
dilatara sua alma, de vez em quando empalidecia; bebeu dois copos de cerveja,
um atrás do outro, enxugando-se os lábios com o dorso da mão e disse com
uma voz que não parecia sua:
– É linda a vida!
– Sim, a vida é linda, Manco. É linda. Imagina os grandes campos, imagina
as cidades do outro lado do mar. As fêmeas que seguiriam a gente;
atravessaríamos como grandes bacanas as cidades do outro lado do mar.
– Você sabe dançar, Loirinho?
– Não, não sei.
– Dizem que lá os que sabem dançar tango se casam com milionárias… eu
vou me mandar, Loirinho, vou embora daqui.
– Tem gaita pra isso?
Ele me olhou com dureza, depois uma alegria demoveu seu semblante, e em
seu rosto de gavião se dilatou uma grande bondade.
– Se soubesse como venho “labutando”, Loirinho. Está vendo essa chave? É
de um cofre. – Meteu a mão em um bolso, e tirando outra chave mais longa,
continuou:
– Essa é a da porta do quarto onde está o cofre. Eu z ela em uma noite,
Loirinho, metendo a lima. “Labutei” feito um negro.
– Foi sua mulher que trouxe?
– Sim, a primeira faz um mês que já esta pronta, a outra eu z anteontem.
Estive te esperando na feira, e você que não vinha.
– E agora?
– Quer me ajudar? Meio a meio. São dez mil mangos, Loirinho. Ontem
foram colocados no cofre.
– Como você sabe?
– O patrão foi ao banco. Trouxe um maço fabuloso. Ela viu e me disse que
todas as notas eram coloradas, de cem.
– E você me dá a metade?
– Sim, meio a meio, você anima?
Eu me aprumei bruscamente na cadeira, ngindo estar possuído pelo
entusiasmo.
– Parabéns, Manco, o que você pensou é maravilhoso.
– Você acha mesmo, Loirinho?
– Nem um mestre teria planejado como você fez esse plano. Nada de
arrombamento. Tudo limpo.
– Certeiro, né?
– Limpo, irmão. A mulher, a gente esconde ela.
– Nem precisa, já tenho um quarto alugado que tem porão; nos primeiros
dias eu entoco ela ali. Depois, vestida de homem, levo ela pro Norte.
– Você quer que a gente saia, Manco?
– Sim, vamos…
A copa das bananeiras nos protegia dos ardores do sol. O Manco,
meditando, deixava fumegar seu cigarrinho entre os lábios.
– Quem é o dono da casa? – eu perguntei.
– Um engenheiro.
– Ah, é engenheiro?
– É, mas abre o jogo, Loirinho, você anima?
– Por que não… sim, homem… já estou farto de caminhar vendendo papel.
Sempre a mesma vida: car se acabando por nada. Diz pra mim, Manco, tem
sentido essa vida? Trabalhamos pra comer e comemos pra trabalhar. “Míngua”
de alegria, “míngua” de festas, e todos os dias o mesmo, Manco. Isso deu no
saco já.
– Certo, Loirinho, você tem razão… Então você topa?
– Sim.
– Então esta noite damos o golpe.
– Mas já?
– Sim, ele sai todas as noites. Vai ao clube.
– É casado?
– Não, mora sozinho.
– Longe daqui?
– Não, um quarteirão antes da avenida Nazca. Na rua Bogotá. Se você
quiser, vamos ver a casa.
– É de planta alta?
– Não, é planta baixa, tem um jardim na entrada. Todas as portas dão pra
galeria. Tem uma faixa de terra ao longo dela.
– E ela?
– É empregada.
– E quem cozinha?
– A cozinheira.
– Então tem dinheiro.
– Precisa ver a casa! Tem cada móvel dentro!
– E a que horas vamos esta noite?
– Às onze.
– E ela vai estar sozinha?
– Sim, a cozinheira logo que termina vai pra casa.
– Mas é seguro isso?
– Certeza. O poste está a meio quarteirão, ela vai deixar a porta aberta, a
gente entra e vai direto pro escritório, retiramos a grana, ali mesmo dividimos e
eu levo ela pro esconderijo.
– E a “cana”?
– A “cana”… a “cana” “grampeia” aos que têm a cha suja. Eu trabalho de
guardador de carroças, além do mais, a gente põe luvas.
– Você quer um conselho, Manco?
– Dois.
– Bem, presta atenção. A primeira coisa que temos que fazer é não deixar
que vejam a gente hoje por lá. Algum vizinho pode nos reconhecer e a “casa
cai” pra gente. Além do mais, não tem por que, se você conhece a casa.
Perfeitamente. Dois: A que horas o engenheiro sai?
– Por volta das nove e meia, dez, mas podemos espiar.
– Abrir o cofre é questão de dez minutos.
– Nem isso, a chave já foi testada.
– Parabéns pela precaução… Assim sendo, podemos ir às nove.
– Sim.
– E onde a gente se encontra?
– Em qualquer lugar.
– Não, é preciso ser precavido. Eu vou estar no “Las Orquídeas” às dez e
meia. Você entra, mas não me cumprimenta nem nada. Senta em outra mesa, e
às onze saímos, eu te sigo, você entra na casa e logo entro eu, depois cada um
que se vire.
– Dessa forma evitamos suspeitas. Está bem pensado… Você tem revólver?
– Não.
De repente a arma luziu em sua mão, e antes que eu evitasse, ele a
introduziu no meu bolso.
– Eu tenho outro.
– Não precisa.
– Nunca se sabe o que pode acontecer.
– E você seria capaz de matar?
– Eu… que pergunta, claro!
– Ei!
Algumas pessoas que passaram nos zeram calar. Do céu celeste descia uma
alegria que se ltrava em tristeza dentro da minha alma culpada. Recordando
uma pergunta que não lhe z, disse:
– E como ela vai saber que a gente vai esta noite?
– Vou dar um sinal por telefone.
– E o engenheiro não está na casa de dia?
– Não, se você quiser, eu falo com ela agora.
– De onde?
– Dessa farmácia aqui.
O Manco entrou para comprar uma aspirina e saiu pouco depois. Já tinha se
comunicado com a mulher.
Descon ei da trama e, esclarecendo, retruquei:
– Você contava comigo pra esse assunto, não é?
– Sim, Loirinho.
– Por quê?
– Porque sim.
– Agora já está tudo pronto.
– Tudo.
– Você tem luvas?
– Tenho.
– Eu ponho umas meias, dá no mesmo.
Depois, calamos.
Caminhamos ao azar durante toda a tarde, o pensamento perdido,
surpreendidos ambos por ideias desiguais.
Recordo que entramos em uma quadra de bocha.
Ali bebemos, mas a vida girava em torno de nós como a paisagem nos olhos
de um ébrio.
Imagens adormecidas há muito tempo se levantavam em minha consciência
à semelhança de nuvens, o resplendor solar de ferir as pupilas, um grande
sonho se apoderava dos meus sentidos e, vez por outra, eu falava
precipitadamente, sem tom nem som.
O Manco me escutava distraído.
De repente, uma ideia sutil se bifurcou em meu espírito, eu a senti penetrar
na cálida entranha, era fria como um o de água e tocou meu coração.
– E se eu o delatasse?
Temeroso de que meu pensamento tivesse surpreendido, eu olhei
sobressaltado para o Manco, que, à sombra da árvore, com os olhos
adormecidos, olhava a quadra, onde as bochas estavam espalhadas.
Aquele era um lugar sombrio, propício para elaborar ideias ferozes.
A avenida Nazca, larga, se perdia nos con ns. Junto ao muro alcatroado de
um alto edifício, o bodegueiro tinha rmado seu quartinho de madeira pintado
de verde, e no resto do terreno se estendiam paralelas faixas de terra arenosa.
Várias mesas de ferro se achavam em diferentes pontos.
Novamente, pensei:
– E se eu o delatasse?
Com o queixo apoiado no peito e o chapéu tombado sobre a testa, o Manco
tinha dormido. Um raio de sol caía sobre uma de suas pernas, com a calça
manchada de nódoas de gordura.
Então um grande desprezo empalou o meu espírito, e agarrando-lhe
bruscamente de um braço, eu gritei:
– Manco.
– Ei… ei… o que foi?
– Vamos, Manco.
– Aonde?
– Pra casa. Tenho que preparar a roupa. Esta noite damos o golpe e amanhã
sumimos no mundo.
– Certo, vamos.
Uma vez sozinho, vários temores se levantaram em meu entendimento. Eu
vi a minha existência prolongada entre todos os homens. A infâmia estirava
minha vida entre eles, e cada um deles podia me tocar com um dedo. E eu, eu
já não pertencia a mim mesmo para nunca mais.
Dizia comigo mesmo:
– Porque se faço isso, destruirei a vida do homem mais nobre que conheci.
Se faço isso, eu me condeno pra sempre.
E estarei sozinho, e serei como Judas Iscariotes.
Carregarei essa pena por toda a vida.
Todos os dias eu carregarei essa pena!… – e me vi prolongado dentro dos
espaços de vida interior, como uma angústia, vergonhosa até para mim.
Então seria inútil que tratasse de me confundir com os desconhecidos. A
lembrança, semelhante a um dente podre, estaria em mim, e seu fedor me
turvaria todas as fragrâncias da terra, mas à medida que situava o fato na
distância, minha perversidade achava interessante a infâmia.
– Por que não?… Então eu guardarei um segredo, um segredo salgado, um
segredo repugnante, que me impulsionará a investigar qual é a origem de
minhas raízes obscuras. E quando já não haja mais o que fazer, e estiver triste
pensando no Manco, eu me perguntarei: Por que fui tão canalha?, e não saberei
me responder, e nesta rebusca sentirei como se abrem em mim curiosos
horizontes espirituais.
Além do mais, esse negócio aí pode ser proveitoso.
Na realidade – não pude me dizer menos que isso – sou um maluquete com
uma mistura de picareta; mas Rocambole não era menos: assassinava… eu não
sou assassino. Por uns quantos vinténs levantou falso testemunho a “papai”
Nicolo e o condenou à guilhotina. Estrangulou e matou a velha Fipart, que
gostava dele como uma mãe… matou o capitão Williams, a quem devia seus
milhões e seu marquesado. E quem ele não traiu?
De repente, lembrei com nitidez assombrosa esta passagem da obra:
“Rocambole esqueceu por um momento suas dores físicas. O preso, cujas
costas estavam pinceladas pela vara do Capataz, o deixou fascinado: parecia-lhe
ver des lar diante de seus olhos, como um torvelinho embriagador, Paris, o
Champs-Élysées, o Boulevard dos Italianos, todo aquele mundo deslumbrante
de luz e barulho em cujo seio havia vivido antes”.
Pensei:
– E eu?… eu seria assim…? não chegarei a levar uma vida faustosa como a
de Rocambole? – E as palavras que antes tinha dito ao Manco soaram outra vez
em meus ouvidos, mas como se as pronunciasse outra boca:
– “Sim, a vida é linda, Manco… É linda. Imagina os grandes campos,
imagina as cidades do outro lado do mar. As fêmeas que andariam com a
gente, e atravessaríamos como grandes bacanas as cidades que estão do outro
lado do mar”.
Devagar, desenroscou-se outra voz no meu ouvido:
– Canalha… você é um canalha.
Minha boca entortou. Eu me lembrei de um cretino que vivia ao lado da
minha casa e que constantemente dizia com voz nasal:
– “Se eu não tenho culpa”.
– Canalha… você é um canalha…
– “Se eu não tenho culpa”.
– Ah, canalha!… canalha…
– Não me importa… e serei fascinante como Judas Iscariotes.
Carregarei uma pena por toda a vida… uma pena… A angústia abrirá meus
olhos a grandes horizontes espirituais… mas pra que tanta bronca? Eu não
tenho direito…? Logo eu?… E serei fascinante como Judas Iscariotes… e pela
vida toda eu carregarei uma pena… mas… ah!, é linda a vida, Manco… é
linda… e eu… eu te afundo, te degolo… eu dou uma rasteira em você… sim,
em você… que é duro na queda… que é “cobra criada”… eu te afundo, você…
sim, você, Manco… e então… então serei fascinante como Judas Iscariotes… e
terei uma pena… uma pena… Seu porco!

Grandes manchas de ouro acortinavam o horizonte, do qual surgiam uns


penachos de estanho, nuvens tormentosas circundadas de inquietos véus
alaranjados.
Levantei a cabeça e, próximo ao zênite, entre lençóis de nuvens, vi uma
estrela reluzir debilmente. Diria tratar-se de uma salpicadura de água trêmula
em uma fenda de porcelana azul.
Eu me encontrava no bairro indicado pelo Manco.
Os passeios estavam sombreados por folhudas copas de acácias e ligustros. A
rua era calma, romanticamente burguesa, com cercas pintadas diante dos
jardins, fontezinhas sonolentas entre os arbustos e algumas estátuas de gesso
avariadas. Um piano soava na quietude do crepúsculo, e eu me senti
surpreendido pelos sons, como uma gota de orvalho na ascensão de um talo.
De um roseiral invisível chegou uma tal rajada de perfume que, inebriado,
vacilei sobre meus joelhos enquanto lia em uma placa de bronze:

ARSENIO VITRI – ENGENHEIRO

Era a única indicando dita pro ssão ao longo de três quarteirões.


À semelhança de outras casas, o jardim orido estendia seus canteiros diante
da sala, e era interrompido ao chegar ao caminho de ladrilhos que levava à
porta envidraçada do biombo; depois, continuava formando um esquadro ao
longo do muro da casa ladeada. Em cima de uma varanda, uma cúpula de
vidro protegia o parapeito da chuva.
Eu parei e pressionei o botão da campainha.
A porta do biombo se abriu e, emoldurada pelo marco, vi uma mulata de
sobrancelhas uni cadas e de olhar atravessado, que de maus modos me
perguntou o que eu queria.
Ao lhe perguntar se estava o engenheiro, ela me respondeu que veria, e
voltou perguntando quem era e o que eu desejava. Sem me impacientar, eu
respondi que me chamava Fernán González, de pro ssão desenhista.
– A mulata voltou a entrar, e já mais apaziguada, me fez acompanhá-la.
Atravessamos por entre várias portas com as persianas fechadas, de repente
abriu a folha de um escritório, e diante de uma escrivaninha, à esquerda de
uma luminária com forro verde, vi uma cabeça grisalha inclinada; o homem
me tou, eu o cumprimentei, e ele me fez sinal para entrar. Depois, disse:
– Um instante, senhor, e já estou com você.
Eu o observei. Era jovem, apesar de seu cabelo branco.
Havia em seu rosto uma expressão de fadiga e melancolia. O cenho era
profundo, as olheiras profundas, formando um triângulo com as pálpebras, e a
extremidade dos lábios, ligeiramente caídos, acompanhava a postura dessa
cabeça, agora apoiada na palma da mão e inclinada na direção de um papel.
Enfeitavam a parede do recinto plantas e desenhos de edifícios luxuosos;
xei os olhos em uma prateleira, cheia de livros, e tinha conseguido ler um
título: Legislação da água, quando o senhor Vitri me perguntou:
– Em que posso servi-lo, senhor?
Baixando a voz, respondi:
– Perdoe-me, senhor, antes de tudo, estamos sozinhos?
– Suponho que sim.
– Me permite uma pergunta talvez indiscreta? O senhor não é casado,
verdade?
– Não.
Agora ele me tava seriamente, e seu rosto enxuto ia adquirindo
paulatinamente, por assim dizer, uma expressividade que se difundia em outra
mais aguda ainda.
Apoiado no encosto da poltrona, ele tinha lançado a cabeça para trás; seus
olhos cinzas me examinavam com dureza, por um momento se xaram no laço
da minha gravata, depois se detiveram em minha pupila e parecia que, imóveis,
lá em sua órbita, esperavam surpreender em mim algo inusitado.
Compreendi que devia deixar de circunlóquios.
– Senhor, eu venho para dizer que esta noite tentarão lhe roubar.
Eu esperava surpreendê-lo, mas me equivoquei.
– Ah!, sim… e como o senhor sabe disso?
– Porque eu fui convidado pelo ladrão. Aliás, o senhor sacou uma grande
soma de dinheiro do Banco e a tem guardada no cofre.
– É verdade.
– Desse cofre, como do cômodo em que ele está, o ladrão tem a chave.
– O senhor chegou a vê-la? – e retirando do bolso um chaveiro, me mostrou
uma excessivamente grossa.
– É esta?
– Não, é a outra – e separei uma exatamente igual a que o Manco tinha
mostrado.
– Quem são esses ladrões?
– O instigador é um guardador de carroças chamado Manco, e a cúmplice é
a sua serviçal. Ela subtraiu as chaves do senhor de noite, e o Manco fez outras
iguais em poucas horas.
– E o senhor, qual participação tem no assunto?
– Eu… eu fui convidado pra esta festa como um simples conhecido. O
Manco apareceu na minha casa e me propôs que eu acompanhasse ele.
– Quando o senhor o viu?
– Hoje, aproximadamente ao meio-dia.
– Antes o senhor não estava a par do que esse sujeito preparava?
– Do que preparava, não. Conheço o Manco; nossas relações se
estabeleceram vendendo eu papel pros feirantes.
– Então o senhor era amigo dele… essas con anças só se fazem aos amigos.
Eu me ruborizei.
– Não tanto como amigo… mas sempre me interessou sua psicologia.
– Nada mais?
– Não, por quê?
– Ia dizendo… mas a que horas vocês deviam vir esta noite?
– Nós vigiaríamos até que o senhor saísse pro Clube, depois a mulata abriria
a porta pra gente.
– O golpe é bem bolado. Qual é o domicílio desse sujeito chamado Manco?
– Condarco, 1375.
– Perfeitamente, tudo se ajeitará. E seu domicílio?
– Caracas, 824.
– Bem, venha esta noite às dez. A essa hora tudo estará bem guardado. Seu
nome é Fernán González.
– Não, eu mudei de nome se por acaso a mulata conhecesse já, por
intermédio do Manco, minha possível participação no assunto. Eu me chamo
Silvio Astier.
O engenheiro apertou o botão da sineta, olhou ao redor; momentos depois a
criada se apresentou.
O semblante de Arsenio Vitri conservava-se impassível.
– Gabriela, o senhor virá amanhã de manhã para buscar esse rolo de plantas
– e apontou um maço abandonado em uma cadeira –, ainda que eu não esteja
é para entregá-lo.
Em seguida, levantou-se, estendeu friamente a mão para mim, e saí
acompanhado da criada.

O Manco foi detido às nove e meia da noite. Vivia em uma mansarda de


madeira, em uma casa de gente modesta. Os agentes que o esperavam
souberam pelo Menor que o Manco tinha vindo, “revirou o bagulho e se
mandou”. Como ignoravam quais eram os lugares que costumava frequentar,
apresentaram-se inopinadamente à dona da casa, zeram-se conhecer como
agentes de polícia e entraram por uma inclinada escada até o quarto do Manco.
Ali, aparentemente, não tinha nada que valesse a pena. Porém, coisa
inexplicável e absurda, as duas chaves encontravam-se penduradas em um
prego à vista de todo aquele que entrasse: a do cofre e a da porta do escritório.
Em um caixote de querosene, com alguns trapos velhos, acharam o revólver e,
no fundo, quase escondido, recortes de jornais. Faziam referência a um assalto
cujos autores não tinham sido identi cados pela polícia.
Como as notícias de jornais tratavam do mesmo delito, era de supor, com
razão, que o Manco não estava alheio a essa história e, por precaução, o Menor
foi detido, quer dizer, foi enviado à delegacia do bairro na companhia de um
agente.
Na mansarda havia também uma mesa de pinho branco-chá, com uma
gaveta lateral. Ali se encontraram um torno de relojoeiro e um jogo de limas
nas. Algumas denotavam uso recente.
Con scadas todas as provas do delito, a encarregada da casa foi novamente
chamada.
Era uma velhota descarada e avarenta; enrolava a cabeça com um lenço
negro cujas pontas eram amarradas sob o queixo. Sobre sua testa caíam tufos de
cabelos brancos, e sua mandíbula se mexia com incrível ligeireza quando falava.
Sua declaração fez pouca luz em torno do Manco. Ela o conhecia de apenas
três meses. Pagava pontualmente e trabalhava pela manhã.
Interrogada acerca das visitas que recebia o ladrão, deu dados obscuros;
lembra, disso sim, “que domingo passado uma negra veio às três da tarde e saiu
às seis junto com Antônio”.
Descartada qualquer possibilidade de cumplicidade, ordenaram-lhe absoluta
discrição, que a velhota prometeu por temor a posteriores compromissos, e os
agentes voltaram à mansarda para esperar pelo Manco, já que fora explícito o
desejo do engenheiro de que o Manco fosse detido fora de sua casa, para
atenuar a pena que merecia. Talvez tenha pensado também que eu não era
alheio à decisão do Manco.
Os investigadores achavam que este não viria; possivelmente jantara em
algum restaurante das redondezas, e se embriagara para tomar coragem, mas se
equivocaram.
Naqueles dias o Manco tinha ganhado dinheiro com umas apostas no turfe.
Depois que se separou de mim, ele voltou à mansarda para sair mais tarde em
direção a um prostíbulo que conhecia. Quase na hora dos comércios fecharem,
ele entrou em uma loja e comprou uma mala.
Depois se dirigiu ao quarto, bem alheio ao que lhe esperava. Subiu a escada
cantarolando um tango, cujos tons tornavam mais distintas as batidas da mala
nos degraus.
Quando abriu a porta, deixou-a no chão.
Introduziu depois uma mão no bolso para tirar a caixa de fósforos e, nesse
instante, um golpe terrível no peito o fez retroceder, ao mesmo tempo em que
outro policial o agarrou pelo braço.
Não é de duvidar que o Manco compreendeu do que se tratava, porque,
fazendo um esforço desesperado, se soltou.
Os vigilantes, ao tentar lhe seguir, tropeçaram na mala e um deles rodopiou
pela escada, deixando cair do coldre o revólver, que disparou.
O estampido encheu de espanto os moradores da casa e, equivocadamente,
atribuiu-se esse tiro ao Manco, que não tinha chegado a ultrapassar a porta da
rua.
Então aconteceu uma coisa terrível.
O lho da velhota, açougueiro de pro ssão, avisado por sua mãe do que
ocorria, apanhou um bastão e se precipitou em perseguição ao Manco.
Após trinta passos o alcançou. O Manco corria arrastando sua perna inútil,
de repente o bastão caiu sobre seu braço, virou a cabeça e o porrete ressoou em
cima do seu crânio.
Aturdido pelo golpe, ainda tentou se defender com uma mão, mas o
investigador que tinha chegado lhe deu uma banda e outra porretada, que lhe
atingiu o ombro e acabou por derrubá-lo. Quando lhe puseram as algemas, o
Manco gritou com um grande berro de dor.
– Ai, mãezinha! – depois outro golpe o fez calar e foi possível vê-lo
desaparecer na rua escura, os punhos atados pelas algemas que, com raiva,
retorciam os agentes, marchando a seu lado.
Quando eu cheguei à casa de Arsenio Vitri, Gabriela já não estava lá.
Sua detenção se efetuou poucos momentos depois que eu saí.
Um o cial de polícia, chamado para tais ns, deu a ordem de prisão na
frente do engenheiro. A mulata a princípio se negou a confessar o que fosse,
mas quando, mentindo, lhe foi dito que o Manco já tinha sido detido,
disparou a chorar.
As testemunhas do ato não esqueceriam jamais essa cena.
A mulher escura, prensada, com os olhos brilhantes, olhava para todos os
lados, como uma fera que se prepara para saltar.
Tremia extraordinariamente; mas quando se insistiu que o Manco estava
detido e que sofreria por sua causa, suavemente ela disparou a chorar; com um
pranto tão delicado que o cenho dos circunstantes se acentuou… de repente
levantou os braços, seus dedos se detiveram em um nó de seus cabelos,
arrancando dali um pente e, esparramando sua cabeleira pelas costas, disse,
juntando as mãos, tando como que enlouquecida aos presentes:
– É, é verdade… é verdade… vamos… vamos lá onde está o Antônio.
Em comboio, a conduziram à delegacia.
Arsenio Vitri me recebeu em seu escritório. Estava pálido e seus olhos não
me encararam ao me dizer:
– Sente-se.
Inesperadamente, com voz in exível, me perguntou:
– Quanto te devo pelos seus serviços?
– Como…?
– Sim, quanto te devo…? porque ao senhor só se pode pagar.
– Compreendi todo o desprezo que ele me jogava na cara.
Empalidecido, eu me levantei:
– Pois bem, a mim, só se pode me pagar. Guarde esse dinheiro que eu não te
pedi nada. Adeus.
– Não, venha, sente-se… me diga, por que você fez isso?
– Por quê?
– Sim, por que você traiu seu companheiro, e sem motivo?! Não te dá
vergonha ter tão pouca dignidade, sendo ainda jovem?
Enfurecido até a raiz do cabelo, eu respondi:
– É verdade… Há momentos em nossa vida em que temos necessidade de
ser canalhas, de nos emporcalhar até as entranhas, de fazer alguma infâmia, eu
sei lá… de destroçar para sempre a vida de um homem… e após ter feito isso
poderemos voltar a caminhar tranquilos.
Vitri agora não me olhava na cara. Seus olhos se encontravam xos no laço
da minha gravata, e seu semblante ia adquirindo sucessivamente uma seriedade
que se difundia em outra mais terrível.
Prossegui:
– O senhor me insultou e, contudo, não me importa.
– Eu podia ajudá-lo – murmurou.
– O senhor podia me pagar, e agora nem isso, porque eu, por minha
quietude, me sinto superior ao senhor, apesar de toda minha canalhice – e me
irritando, subitamente, eu gritei com ele:
– Quem é o senhor?… Ainda me parece um sonho ter delatado o Manco.
Com voz suave, ele replicou:
– E por que o senhor está assim?
Um grande cansaço se apoderava de mim rapidamente, e me deixei cair na
cadeira.
– Por quê? Sabe Deus. Ainda que passem mil anos não poderei me esquecer
da cara do Manco. O que será dele? Sabe Deus; mas a lembrança do Manco
estará sempre na minha vida, será em meu espírito como a lembrança de um
lho que se perdeu. Ele poderá vir a cuspir na minha cara e eu não direi nada.
Uma tristeza enorme passou pela minha vida. Mais tarde, eu recordaria
sempre esse instante.
– Sim, é assim – balbuciou o engenheiro e, de repente, erguendo-se, com os
olhos brilhantes xos no laço da minha gravata, murmurou como que
sonhando: – É como o senhor disse. É assim. Acontece com uma lei brutal que
está dentro da gente. É assim; mas quem foi que te disse que é uma lei? Onde
aprendeu isso?
Repliquei:
– É como um mundo que, de repente, desabara em cima de nós.
– Mas o senhor tinha previsto algum dia que chegaria a ser como Judas?
– Não, mas agora estou tranquilo. Irei pela vida como se fosse um morto.
Assim vejo a vida, como um grande deserto amarelo.
– Não te preocupa essa situação?
– Pra quê? É tão grande a vida. Há um momento atrás me pareceu que o
que eu tinha feito estava previsto havia dez mil anos; depois eu acreditei que o
mundo se abria em duas partes, que tomava uma cor mais pura e os homens,
nós não éramos tão desgraçados.
Um sorriso pueril apareceu no rosto de Vitri. Ele disse:
– É assim que o senhor acha?
– Sim, algum dia acontecerá isso… acontecerá, as pessoas irão pela rua
perguntando uns aos outros: É verdade isso, é verdade?
– Senhor, diga, o senhor nunca esteve doente?
Compreendi o que ele estava pensando e, sorrindo, continuei:
– Não… já sei o que o senhor está pensando… mas me escute… eu não
estou louco. Há uma verdade, sim… e é que eu sei que a vida vai ser
extraordinariamente linda pra mim. Não sei se as pessoas sentirão a força da
vida como eu a sinto, mas em mim existe uma alegria, uma espécie de
inconsciência cheia de alegria. – Uma súbita lucidez agora me permitia
discernir os cursos de minhas ações anteriores, e continuei:
– Eu não sou um perverso, sou um curioso desta força enorme que está em
mim…
– Prossiga, prossiga.
– Tudo me surpreende. Às vezes tenho a sensação de que faz uma hora que
vim à terra e de que tudo é novo, amejante, encantador. Então abraçaria as
pessoas pela rua, pararia no meio da calçada pra dizer a elas: Mas por que vocês
andam com essas caras tão tristes? Se a Vida é linda, linda… o senhor não
acha?
– Sim…
– E saber que a vida é linda me alegra, parece que tudo se enche de ores…
dá vontade de se ajoelhar e dar graças a Deus, por nos ter feito nascer.
– Prossiga…
– Não está entediado?
– Não, prossiga.
– Acontece que essas coisas a gente não pode sair dizendo pras pessoas.
Tomariam a gente por louco. E eu digo comigo: o que faço desta vida que
existe em mim? E eu gostaria de dá-la… presenteá-la… me aproximar das
pessoas e dizer: Vocês têm que ser alegres! Sabem? Têm que brincar de
piratas… fazer cidades de mármore… rir… soltar fogos de artifício.
Arsenio Vitri se levantou e, sorrindo, disse:
– Tudo isso está muito certo, mas é preciso trabalhar. Em que posso lhe ser
útil?
Re eti um instante, logo:
– Veja; eu gostaria de ir pro Sul… pra Neuquén… lá onde tem gelo e
nuvens… e grandes montanhas… gostaria de ver a montanha…
– Perfeitamente; eu o ajudarei e lhe conseguirei um lugar no Comodoro;
mas agora vá embora porque tenho que trabalhar. Eu te escrevo em breve…
Ah!, e não perca sua alegria; sua alegria é muito linda…
E sua mão apertou fortemente a minha. Tropecei em uma cadeira… e saí.

1 Diz-se de partidário da acracia, termo de étimo grego usado para reivindicar a supressão de toda
autoridade e do Estado. No contexto de início do século XX, esteve presente no léxico dos anarquistas
italianos e espanhóis, logo, recorrente em cidades como Buenos Aires e São Paulo. [N. de T.]
2 Arlt usa aqui o pretérito do verbo “tra car” que, em espanhol, articula polifonicamente os sentidos
tanto daquele que pratica o ato de comercializar ilegalmente quanto daquele que se desloca de um lugar
para o outro. Optei, aqui, pelo campo semântico espacial em detrimento do comercial, uma vez que a
apreensão da paisagem descrita, uma paisagem suburbana, implica um distanciamento geográ co do
centro urbanizado de Buenos Aires em relação às zonas periféricas àquela época, implicando, portanto,
uma borda membranosa entre o campo e a cidade. [N. de T.]
3 Menção ao deus romano Mercúrio. Em alguns casos – o que não vem a ser exatamente o do contexto
acima – o adjetivo mercurial expressa temperamento explosivo, energia desmesurada. Já em outros, o
adjetivo designa algo errático, volátil ou instável, de voos rápidos e passagem abrupta entre um ponto e
outro. Ora associado ao deus grego Hermes, Mercúrio é um mensageiro de índole eólica, hábil em levar e
trazer mensagens, ora tomado ao contexto romano, está vinculado à palavra latina merx, de onde deriva
mercadoria, mercador, o comércio em última instância. Daí, como no contexto acima, denota o traquejo
daquele cuja tarefa é negociar astutamente com os outros. [N. de T.]
4 De milonga, tipo de canção (às vezes considerada precursora do tango-canção, às vezes tida como uma
derivação deste) e baile, bem como designação da festa popular onde é executado e dançado esse tipo de
música característico da região em torno da bacia do Rio da Prata, Buenos Aires e Montevidéu. O
milonguero, assim como o guapo, é um emblema da referida manifestação cultural. Via de regra, ganha
conotações pejorativas, caricaturais, ou seja, indivíduos avivados, algo pícaros, dados a pequenas trapaças
a m de ganhar a vida. Em possível analogia com o samba brasileiro, haveria correspondência entre o
malandro, o guapo e ou o milonguero, tipos sociais que representam um conjunto dos hábitos e traços
comportamentais de um povo. [N. de T.]
5 O termo garrón é um lunfardismo, ou seja, uma idiossincrasia lexical do espanhol criollo, sobretudo rio-
pratense, fartamente presente nas letras de tangos e milongas. No contexto acima, diz respeito ao gozo
obtido pelo cafetão, em última instância, pelo indivíduo que tem a vida custeada pelo dinheiro ganho
pela mulher que trabalha como prostituta, assim desfrutando gratuitamente de um prazer pelo qual
outros teriam de pagar. Há, atualmente, uma derivação da expressão em questão (¡Qué garrón!), algo que
dá polissemia ao uso original, podendo, de acordo com o caso, conotar sentido contrário ao
anteriormente referido, por exemplo, algo na ordem do brochante, en m, do que é entristecedor,
desestimulante ou de má sorte. [N. de T.]
6 O Almanaque de Gotha, publicado em alemão pelo duque Friedrich III da região de Saxe-Gotha-
Altemburgo a partir de 1763, mas logo traduzido e difundido na França, foi o guia de referência da alta
nobreza e das famílias reais europeias até meados do século XX. [N. de T.]
7 Tenho uma alcova a mais, “ca fa”/ onde sempre é boa hora/ e que eu aluguei/ e que eu aluguei/ para
que transe ela, ora.
Apêndice

O POETA
DO BAIRRO*
Juan disparou a rir.
– Eu não entendo dessas coisas… diz pra mim, quer vir comigo ver um
poeta? Tem dois ou três livros publicados e, como sou secretário de uma
biblioteca, estou encarregado de enchê-la de livros. Portanto, visitamos todos
os escritores. Quer vir? Vamos essa noite.
– Como ele se chama?
– Alejandro Villac. Tem um livro, A caverna das musas, e outro, O colar de
veludo.
– E que tal são esse versos?
1
– Eu não li. Ele publica na revista Caras y Caretas .
Ah, se publica em Caras y Caretas, deve ser um bom poeta.
2
– E publicaram um retrato dele na revista El Hogar! – eu repeti,
assombrado; – mas então não é um poeta qualquer. Se publicaram um retrato
dele na El Hogar… caramba… pra publicar na Caras y Caretas e ter um retrato
na El Hogar… vamos lá esta noite mesmo; – e tomado de um súbito temor –
mas, será que ele vai nos receber?… Porque pra ser publicado um retrato dele
na El Hogar!
– Bom; claro que nos vai receber. Eu levo uma carta do bibliotecário. Então
você vem me buscar esta noite? Ah, espera aí que eu vou trazer pra você Electra
e Città Morta.
Quando nos separamos, eu não pensava nos livros, nem no emprego, nem
na sincera generosidade de Juan, o magní co; pensava emocionado no autor de
A caverna das musas, no poeta que publicava na Caras y Caretas e cujo retrato
exibira gloriosamente a revista El Hogar.
O poeta morava a três quarteirões da rua Rivadavia, em uma ruela sem
calçamento, com lampiões a gás, calçadas desniveladas, árvores seculares e
casinhas enfeitadas de jardins insigni cantes e agradáveis, quer dizer, em uma
dessas tantas ruas que, nos subúrbios portenhos, têm a virtude de nos fazer
lembrar de um campo de ilusão e que constituem o encanto da vizinhança de
Flores.
Como Juan não conhecia exatamente o endereço do autor de A caverna das
musas, tivemos que pedir informação no bairro, e nos orientou uma menina
apoiada na pilastra de um jardim.
– É a casa do poeta a que vocês estão procurando, não é, do senhor Villac?
– É, sim, senhorita; de quem foi publicado o retrato na El Hogar.
– Então é ele mesmo. Estão vendo a casinha de fachada branca?
– Aquela com a árvore caída?…
– Não, a outra; essa antes da esquina, a de portão de grade.
– Ah, sim, sim!
– O senhor Villac mora ali.
– Muito obrigado, e, cumprimentando-a, nós nos retiramos.
Juan mantinha o sorriso acético. Por quê? Ainda não sei. Sempre sorria
assim, entre incrédulo e triste.
Eu me sentia emocionado; percebia nitidamente a pulsação das minhas
veias. Não era pra menos. Dentro de poucos minutos eu me encontraria frente
a frente com o poeta de quem haviam publicado o retrato na El Hogar e,
apressadamente, imaginava uma frase sutil e elogiosa que me permitisse
congraçar com o vate.
Resmunguei:
– Será que ele nos receberá?
Como tínhamos chegado à porta, Juan, por toda resposta, se limitou a bater
fortemente a palma de suas mãos, o que me pareceu uma irreverência. O que
diria o poeta? Só um cobrador mal-humorado chamaria dessa forma.
Escutou-se o roçar de solas no piso, na escuridão a criada atropelou um vaso,
depois se desenhou a forma branca a cujas perguntas Juan respondeu
entregando a carta.
Enquanto aguardávamos, ouviam-se ruídos de pratos na sala de jantar.
– Entrem; o senhor vem em seguida. Está terminando de jantar. Passem por
aqui. Tomem assento.
Ficamos sozinhos na sala iluminada.
Diante da janela acortinada, um piano coberto com uma capa branca.
Ocupavam os quatro cantos do cômodo esbeltas coluninhas, de onde as
begônias, em vasos de cobre, exibiam suas folhas estriadas de veias vinosas.
Sobre a escrivaninha, decorada por porta-retratos, via-se, em poético
abandono, uma folha onde estava escrito o começo de um poema, e uma
porção de partituras musicais esquecidas em certo tamborete cor-de-rosa.
Havia também quadrinhos e delicadas quinquilharias que, nos cantos, em cima
dos móveis, pendendo do lustre, testemunhavam a diligência de uma esposa
prudente. Através dos vidros de uma biblioteca de mogno, as lombadas de
couro das encadernações duplicavam com seus títulos em letras de ouro o
prestígio do conteúdo.
Eu, que xeretava os retratos – disse:
– Olha, uma fotogra a de Usandivaras, e com dedicatória.
– Juan comentou debochadamente.
– Usandivaras… se não me engano, Usandivaras é um mané que escreve
versos pampeiros… algo assim como Betinotti, mas com muito menos talento.
Vamos ver… vamos ver… José M. Braña.
– Esse é um poeta tosco. Escreve com ferraduras.
No corredor, escutamos os passos do vate que publicava em Caras y Caretas.
Nós nos levantamos emocionados quando o homem apareceu.
Alto, romântica cabeleira, nariz aquilino, bigode espesso, negríssima pupila.
Nós nos apresentamos e, cordialmente, indicou as poltronas.
– Tomem assento, jovens… Quer dizer que os senhores vêm designados pelo
centro Florencio Sánchez?
– Sim, senhor Villac, e se o senhor não tem nenhum…
– Nada, nada, com o maior prazer… Gostariam de tomar uma xícara de
café?
Direcionou-se ao corredor e, em seguida, já estava conosco.
– Jantamos tarde, porque o escritório, as ocupações…
– Certamente…
– Efetivamente, as exigências da vida. E conversando enquanto saboreava o
café na sua xicarazinha, com simplicidade encantadora, o poeta disse:
– São agradáveis essas solicitudes. Não deixam de ser um estímulo para o
trabalhador honrado. Já recebi várias da mesma índole, e sempre trato de
satisfazê-las. Não se incomode, jovem… está bem assim – acomodando a xícara
na bandeja. – Como eu lhes dizia, na semana passada recebi uma carta de uma
dama argentina residente em Londres. Vejam vocês que e Times lhe pedia
informações acerca de minha obra aplaudida em jornais argentinos.
– O senhor publicou O colar de veludo e A caverna das musas?
– Há também outro volume; foi o primeiro. Chama-se De meus vergéis, mas,
naturalmente, uma obra com defeitos… à época eu tinha dezenove anos.
– Tanto quanto sei, a crítica tem se ocupado muito do senhor.
– Sim, disso eu não me queixo. Principalmente A caverna das musas foi bem
acolhida… Dizia um crítico que eu uno à simplicidade de Evaristo Carriego o
patriotismo de Guido y Spano… e eu não me queixo… faço o que posso – e,
com magno gesto, desviou o cabelo das têmporas até as orelhas.
– E os senhores, não escrevem?
– O senhor – disse Juan.
– Prosa ou verso?
– Prosa.
– Fico feliz, co feliz… Se precisar de alguma recomendação… Traga algo
que eu possa ler… Se quiserem me visitar aos domingos pela manhã, faríamos
uma pequena caminhada até o Parque Olivera. Eu costumo escrever lá. A
natureza ajuda tanto.
– Como não? Obrigado; vamos aproveitar seu convite.
Juan, vendo o diálogo empalidecer, perguntou, mentindo:
– Se não me engano, senhor Villac, li um soneto seu no La Patria degli
Italiani. O senhor escreve também em italiano?
– Não, é possível que o tenham traduzido; não teria nada de surpreendente
nisso.
Juan insistiu:
– De qualquer modo, vou ver se encontro esse número e envio para o
senhor. Belo idioma, não é verdade, senhor Villac.
– Efetivamente, sonoro, grandiloquente…
– Eu, com candidez, perguntei:
– E ao senhor, Villac, quem o emociona mais, Carducci ou D’Annunzio?
– Como romancista, Manzoni… hein? Mais vida, não é verdade? Lembra o
Ricardo Gutiérrez.
– Sim, é verdade; mais vida – replicou Juan, tando-o quase assombrado.
– Aliás, Carducci… o que eu posso te dizer… Carducci… hein, os senhores
não acham… o que é que eu posso dizer… sinceramente… há poucos poetas
que me agradam tanto como Evaristo Carriego, essa simplicidade, aquela
emoção daquela costureirinha que deu mau passo… esse sonetos… talvez seja
por eu ser sonetista e
“O soneto é uma lira de bras de ouro”
“Uma caixa…”
– Certamente, – observou Juan, impassível. – Certamente, me dei conta de
que a crítica aplaude muito o senhor como sonetista.
– “Uma caixa de encantos”
eu escrevi outra vez na Caras y Caretas… e não me equivoquei. Nosso século
prefere o soneto, como em um estudo indi…
A entrada da criada com um pacote que continha A caverna das musas e
outros volumes interrompeu suas palavras e, desgraçadamente, não pudemos
saber o que indicava em seu estudo o homem do retrato na El Hogar.
Para não pecarmos por indiscrição, nós nos levantamos, e acompanhados até
o umbral da porta nos despedimos efusivamente do sonetista. Eu prometi
voltar.
Quando passamos na frente da casa de nossa informante, a menina ainda
estava na porta. Com voz tímida, perguntou:
– Encontraram o senhor…?
– Sim, senhorita… obrigado…
– Não é mesmo talentoso?
– Oh!… – disse Juan – um talento extraordinário. Veja que até o Times se
interessa em saber quem ele é.

Notas
* Este texto apareceu no segundo ano da primeira revista Proa (número 10, maio de 1925, p. 34-43), de
cujo editor, o escritor Ricardo Güiraldes, Roberto Arlt foi secretário de redação. Dava-se, ali, como prévia
do primeiro romance de Arlt, seguido da seguinte inscrição: “Capítulo de la novela Vida Puerca que
aparecerá próximamente”. Quando o romance é nalmente publicado, em 1926, após receber o prêmio
literário da editora Latina que implicava a sua publicação pela mesma editora, o capítulo em questão
havia sido excluído. Também o título original do romance, Vida puerca, fora alterado para El juguete
rabioso, sugestão de Güiraldes. Dois meses antes de ser publicado o capítulo excluído da edição nal,
outro capítulo do que viria a ser o primeiro romance de Arlt já havia aparecido na mesma revista Proa,
precisamente no número 8 de março de 1925, p. 28-39. Chamou-se esse capítulo inaugural de “El Rengo”
e, como é de se supor, trata-se do trecho em que Astier vai à feira de Flores à procura do Manco, capítulo
nal. Esse texto, sim, foi mantido quando o livro é publicado pela editora Latina. Cabe esclarecer que o
capítulo-apêndice que vai acima já foi apresentando na edição a cargo de Ricardo Piglia para a editora
Espasa Calpe, na Colección Austral, Biblioteca de Literatura Hispano-americana. Essa edição, contudo,
traz uma imprecisão ao localizar a aparição do texto “El poeta parroquial” na revista Proa de março de
1925, mês correspondente ao número 8 da revista de Güiraldes e que, como já foi dito, corresponderia à
publicação do capítulo “El Rengo”, e não de “El poeta parroquial” que apareceu em maio de 1925, no
número 10 da revista aludida. [N. de T.]

1Caras y Caretas – revista de variedades da vida cotidiana muito popular na Argentina àquela época, de
circulação massiva. Apresentou uma seção destinada a publicações literárias. Teve vasto alcance de leitores
nas camadas populares. [N. de T.]
2 Revista semanal, voltada para assuntos domésticos de ordem pequeno-burguesa; assim como Caras y
Caretas, reservava uma seção de assuntos literários onde, por exemplo, aparecem os primeiros ensaios do
escritor Jorge Luis Borges, bem como contos de Güiraldes e também alguns textos do próprio Arlt. No
caso de Borges, é vasta a sua produção nas páginas da revista El Hogar, devidamente publicada na década
de 1980 sob a forma de livro, em uma edição cuidada pelo crítico uruguaio Emir Rodriguez Monegal, e
atualmente integrada ao quarto volume das Obras completas, seção ali designada como “Textos cativos”.
[N. de T.]
Posfácio

por Davidson de Oliveira Diniz*

ROBERTO ARLT, OU A GARGANTA


DO BANDONEON. VOZ E DICCÇÃO
IMIGRANTE NO SISTEMA
LITERÁRIO ARGENTINO
Panorama crítico sobre
a tradução de “A vida porca”

Procuro um poema que não encontro, o poema de um corpo a quem o desespero povoou subitamente em
sua carne, de mil bocas grandiosas, de dois mil lábios gritadores.
Aos meus ouvidos chegam vozes distantes, resplendores pirotécnicos, porém estou aqui, sozinho, condenado
a minha terra de miséria, preso por nove cravos.
1
Roberto Arlt

Ecos de vozes que precedem


“A vida porca”
Ao longo de um século completo, a determinante teórica da literatura
argentina se condensa em um ponto especí co: delimitar o plano de
composição para o registro tanto de uma linguagem quanto de uma dicção
textual apropriada para a fundamentação da literatura nacional. Entre os anos
de 1838 e 1839, Esteban Echevarría ocupa-se das páginas que, mais tarde,
seriam publicadas sob o título de “El matadero”, cção primeva da literatura
2
argentina. No início da década de 1950, Jorge Luis Borges prepara “El escritor
argentino y la tradición”, conferência a ser ditada em 1951 no Colegio Libre de
Estudios Superiores de Buenos Aires. Essas duas datas, essas duas narrativas,
inauguram e encerram um vasto ciclo permeado por proposições
complementares, embora os ns sejam divergentes. A primeira delas semeia a
proposta de desenvolvimento para um romantismo nacional, tendência estética
e social preocupada em dotar a pátria nova, cuja independência política fora
alcançada na Revolução de 1810, de um modo expressivo capaz de romper
com as normas gramaticais peninsulares mediante uso especí co do espanhol,
aproximando-o, por m, de estruturas linguísticas e valores lexicais
desenvolvidos às margens do litoral do Rio da Prata. Cento e doze anos depois,
a segunda narrativa revela-nos o esgotamento do projeto de uma literatura
nacionalista disseminado por meio do romantismo patriótico da geração de
1837 e, ainda, sistematiza uma contraproposta que conformaria a de nitiva
in exão estética no interior do projeto literário borgeano. Ao longo das décadas
de 1930 e 1940, a política nacionalista do peronismo opera, no âmbito
cultural, a cooptação da estética criollista promovida durante a década de 1920
por meio do modernismo argentino. É para escapar dessa maquinaria
ideológica que Borges denegaria, nos anos 1950, a primeira fase de sua
3
produção poética, iniciada à época das revistas Martín Fierro e Proa. Trata-se, é
preciso esclarecer, de uma crítica direcionada não exatamente à geração
martín errista, núcleo irradiador do modernismo portenho, mas, antes, aos
retoques ideológicos a que a estética modernista vinha sendo submetida pelo
projeto cultural peronista. A recusa de uma nacionalização da literatura,
portanto, é o que leva Borges (2007, p. 323) a estipular que o repertório da
literatura argentina deveria ser toda a cultura ocidental, e não a bandeira de um
nacionalismo extremista, algo que, por ertar com o fascismo europeu,
impediria as desmesuras da escrita ccional naquele país (Cf. Piglia, 2013;
Hernaiz, 2013; Balderson, 2013).
Fecha-se, assim, um século e um ciclo literário. De Echeverría a Borges, a
moderna literatura argentina faz um percurso que vai da ideia de literatura
4
nacional, isto é, da narrativa nacional como formação discursiva, à proposição
da literatura como círculo de reescrita, quer dizer, como revisão crítica do
cânone ocidental, pensando a si mesma inserida em contexto exterior ao
sistema literário argentino sem desmantelá-lo para isso, senão o ampliando
textualmente pelo regime da adição literária em vez da subtração, deformação
nacional característica na literatura argentina a partir de Borges.
Obliquamente a esses dois extremos é que se situa a produção literária de
Roberto Arlt, escritor que, por sua vez, não deixou de re etir sobre a escolha da
linguagem em sua produção literária. Basta lembrar, por exemplo, uma
conhecida água-forte denominada “El idioma de los argentinos”, texto em que
se menciona a necessidade de “palavras novas” ou “giros estranhos” no idioma
5
quando a proposta de uma literatura é expressar ideias insólitas. Arlt (1996, p.
142) evoca a postura dos “muchachos antigramaticalmente boxeadores” em
detrimento do academicismo literário de exibições nos salões burgueses. O seu
primeiro romance, de 1926, que aqui se traduziu como A vida porca, é
precisamente a fundação desse ringue-livro, tópos semântico por meio do qual
Arlt pretende entrar na literatura argentina, combatendo purismos acadêmicos,
lutando pela sobrevivência social e literária de indivíduos e escritores
desfavorecidos, procurando impor, como ele gostava de dizer, uma arte e um
anti-idioma como prepotência.
Antes da aguda in exão no registro literário operado pelo primeiro romance
arltiano, que será discutida adiante, há pelo menos duas outras ocorrências
precedentes na literatura argentina. O gesto inaugural, já foi dito, está em “El
matadero”, às vezes amparado pela incipiente teorização levada a cabo por
Echeverría em textos como “Fondo y forma en las obras de imaginación”,
proposta de um romantismo reivindicante da “absoluta independência” poética
após a independência política instaurada entre 1810 e 1818. É
fundamentalmente paradoxal a estética echeverriana. Assimila-se, com o conto
6
“El matadero” e o poema “La cautiva”, a paisagem pampeana sem, porém, dar
lugar de nitivo ao uso de traços linguísticos característicos da nação que, havia
pouco, se independizara em relação à coroa espanhola. Echeverría, que no
texto citado emprega uma única vez o vocativo che da fala popular argentina,
dá ênfase ao vosotros da gramaticalidade ibérica, eliminando, assim, o voseo
característico da região rio-platense. O narrador do texto fundacional da
literatura argentina, por tudo isso, subtrai a voz aos protagonistas
caracterizados pelos costumes rurais, a “chusma federal”, para avançar em
direção a uma linguagem bem cuidada, afeita à normativa cultural dos liberais
unitários da geração de 1837, assim desmerecendo os diálogos dos gauchos
federalistas para relacioná-los ao que é da ordem da selvageria e da brutalidade
no espetáculo do matadouro, antonomásia echeverriana para a “pequeña
república” dos carniceiros sanguinolentos. Desdenha-se o popular, nesse
sentido, para rebaixar a opção política dos federalistas que apoiam o governo de
Rosas. A partir daí estaria pre gurado o dilema sarmientino entre civilização e
barbárie (Cf. Sosnowski, 2008, p. 318; Croce, 2013, p. 12-15) cuja tradução
política é a oposição entre os unitários (partidários da concentração do poder
legislativo na Capital Federal) e os federais (defensores da partilha do poder
entre a Capital Federal e as demais províncias argentinas). Mais tarde, com
“Apologia del matambre”, Echeverría consegue, entretanto, uma aproximação
esteticamente mais produtiva em relação à terminologia popular, elevando os
valores gastronômicos e linguísticos da cozinha criolla em relação aos produtos
alimentícios nomeados nas expressões europeias, tais como o roast beef e plum
pudding ingleses, o omelette sou ée francês, e o chorizo e a olla podrida
espanhóis. É para cobrir esse campo cinzento nas opções linguísticas da geração
de 1837, cerne do romantismo republicano argentino, que se estrutura a poesía
gauchesca, gênero literário que, apesar de sua ascensão urbana em Montevidéu e
Buenos Aires, dá voz à dicção de uma subversão gramatical praticada pela gente
da área da campanha rosista, pessoas de hábitos campesinos. A narrativa
gauchesca, ainda, coopta um público iletrado para o sistema literário argentino
até então negligenciado pelo intelectualismo característico do romantismo de
1837. E passa a produzir tomando em consideração as demandas de tal
público, sobretudo a partir do êxito literário de José Hernández, como é
possível ler no prólogo da volta de Martín Fierro (1872-1879), encerramento
do gênero. Com isso, atualiza a independência política de 1810 em termos
especi camente linguísticos (Cf. Rama, 1977; Rama, 1976).Resumidamente:
com Echeverría, a literatura argentina começa a falar dos costumes do campo
em relação à cidade, confrontando-os em primeiro momento, suplementando-
os sub-repticiamente quando interessam à ideologia patriótica unitária,
enfatizando, em qualquer caso, um falar sempre característico do mundo
urbano, letrado, que às vezes se vale da semântica rural, mas nunca de sua
estrutura sintática, instância na qual a literatura moderna verdadeiramente
ocorre. Com Barlomé Hidalgo, Hilário Ascasubi, Estanislao Del Campo e,
muito notavelmente, com Antonio Lussich e Hernández, en m, com os pilares
da gauchesca, a literatura argentina (e rio-platense) passa a falar dos costumes
do campo, mimetizando a dicção rural, valorizando ao extremo os desvios
linguísticos da gente simples e, ainda, fazendo desse uso estratégias políticas ao
cooptar a voz do gaucho para a representação da ideologia nacionalista, ligando
duas zonas verbais, uma oral e outra escrita, e assim promovendo a uni cação
das vozes entre letra e arma, poesia e ideologia (Cf. Ludmer, 2000).
É na breve digressão do quadro anterior, portanto, que se explica o caráter
inovador quanto à composição do plano de registro linguístico que A vida
porca traria à literatura argentina. Arlt, pre gurado pela tríade que ele mesmo
evoca, a saber, Last Reason, Félix Lima e, especialmente, Fray Mocho, passa a
plasmar na literatura argentina dos anos 1920 em diante uma espessura
popular do idioma até então sem voz, partilhada entre o espanhol rio-platense
e a dicção dos imigrantes italianos, espanhóis, alemães e austríacos, poloneses,
turcos e sírios, que passam a povoar o país desde a virada do século XIX para o
XX. A estratégia para fazer falar todo esse imenso gueto linguístico (a princípio
do século passado metade da população da cidade de Buenos Aires é formada
por imigrantes europeus) é uma estilização do lunfardo, dimensão suburbana
da língua o cial, con gurando ora um repertório de termos trazidos pela
imigração, ora uma mistura de expressões populares, vindas da interseção entre
a cultura iletrada do campo e a cultura escrita urbana, ora uma torção
7
anagramática dos semas e morfemas linguísticos. Até Arlt, essa dimensão da
língua oral suburbana permanecia sem expressão literária na Argentina,
emergindo apenas nas letras de tangos e outras manifestações folclóricas, como
a milonga, restando, ao m de tudo, apenas como canção, quer dizer, como
canto e narrativa oralizada, e não exatamente como literatura, mas como
manifestação folclórica, se quisermos pensar com a época que então não podia
considerar literários elementos dessa ordem.
É nesse sentido, então, que A vida porca inicia uma fase literária alternativa a
que, na mesma época, viria arrematar Don Segundo Sombra (1926), romance de
formação do escritor Ricardo Güiraldes em que o protagonista assimila as
instruções da vida do campo em detrimento da cidade, mediante uma
fantasmagoria da tradição gauchesca, como constituinte maior do ethos social
argentino. Daí que A vida porca não seja considerado apenas o primeiro
romance de Arlt senão, também, o primeiro romance que abre o modernismo
8
argentino.
E aqui é preciso anotar uma distinção fundamental antes de seguir com a
re exão. Contrariamente ao que a fortuna crítica arltiana costuma apontar com
frequência, A vida porca não inova exatamente por apresentar uma perspectiva
literária urbana (algo incipiente já nos romances naturalistas Sin rumbo [1885]
e En la sangre [1887], de Eugenio Cambaceres, e de claro lastro discursivo na
narrativa de La bolsa [1891], de Julián Martel, ou nas crônicas de Eduardo
Wilde). A narrativa arltiana é inaugural, isso sim, porque ressigni ca, antes de
qualquer outro texto argentino, o subúrbio como saída da tradicional aporia
entre o campo e a cidade (Cf. Williams, 2011). Abre-se, por tudo isso, uma
espessura narrativa da língua ainda não desenvolvida naquele sistema literário.
Ainda, permite a ruptura com o pacto linguístico nacional promovido por
meio do poeta Leopoldo Lugones ao longo das conferências de 1913, no
Teatro Odeón, que então celebravam o primeiro centenário republicano, sendo
essas exitosas conferências publicadas mais tarde, em 1916, no livro El payador
(Cf. Guido, 1991). Daí por diante, o Martín Fierro, expressão de nitiva do
gênero gauchesco, é levado à qualidade de livro nacional. O pacto fomentado
por Lugones, ao mesmo tempo político, cultural, linguístico e literário, teve
um propósito crucial que não se pode perder de vista: preservar o idioma
nacional argentino das “deformações” a que a língua vinha sendo submetida
pelos imigrantes que não paravam de chegar à pátria centenária. A dicção do
imigrante, assim como a voz do gaucho, fora antes expulsa da literatura
consolidada pela primeira geração dos românticos liberais; é, então, a exceção
da uniformidade linguística que o pacto nacional do centenário republicano
procura fundar sob o modelo literário do Martín Fierro. A proposição de
Lugones, quanto a isso, consiste na transformação do texto de José Hernández,
consagração da poiesis gauchesca, em uma epopeia argentina, espécie de
monumento verbal capaz de blindar o idioma ante os estrangeirismos, bem
como ressigni car a proposta do romantismo echevarriano que celebrava a
imprecisão dos gêneros literários e a liberdade na versi cação e na metri cação
como gesto de independência.
A contrapelo de tudo isso, portanto, é que emerge o incipiente projeto
literário arltiano, abrindo espaço novo para o modernismo argentino. A vida
porca é a contrapartida da hiperdecodi cação do gênero gauchesco que busca
promover Lugones, bem como a alternativa que permite escapar à sobrevida
espectral daquele gênero cujo exemplo tardio, mencionava-se, aparece com
romance nativista de Güiraldes, o Don Segundo Sombra.
Bastante sintomático, por tudo isso, o fato de ser justamente Güiraldes a
repreender o nome original pretendido pelo primeiro romance de Arlt,
aconselhando-lhe adotar El juguete rabioso em lugar de Vida puerca, título este
que, em 1925, precedia os capítulos adiantados nas páginas da revista Proa.
Güiraldes sugere o título menos cético, procurando brilho em lugar de
sombras, ou seja, eliminado, com isso, o uso do grotesco tipicamente arltiano
capaz de reunir violentamente tanto a luz quanto a treva, sem dicotomizá-las,
9
mas, antes, as sobrepondo para criar um realismo distorcido. Ainda no papel
de possível editor de Arlt, Güiraldes argumenta o veto do título original
evocando um con ito a Calderón:
Acredito rmemente que o senhor deveria modi car o título do seu romance (…) perceba, A vida
porca é um nome cético demais, me parece que o senhor poderia colocar o nome de O títere raivoso,
que de nitivamente é como a vida porca, porém lhe outorga um pouco mais de brilho. Não é o
mesmo uma vida desafortunada desde o princípio do que um joguete, como é a vida, à maneira de
10
Calderón de la Barca, e, para mais, raivoso, e irritado. (Güiraldes apud Borré, 1999, p. 109)

Aí está, para mim, o equívoco mais grave da rejeição em relação ao título


original. Güiraldes sugere, para um modernista, o modelo trágico de um drama
barroco cujo princípio é tornar os protagonistas em imagens audíveis e visíveis
para o deleite do espectador aristocrático, revelando, em contrapartida, apenas
um núcleo interno diegético que governa misteriosamente as personagens. O
drama arltiano, característico do modernismo, será justamente uma subversão
desse culto das superfícies impenetráveis na retórica e nos simulacros barrocos
em que o ser da linguagem é entendido como mera contiguidade em relação ao
mundo. Com isso, procura explorar a interioridade das vozes e da linguagem
crítica, bem como devassar a interioridade das personagens em seu próprio
absurdo e ausência de sentido exterior sem, para isso, reduzi-las a uma mera
11
psique escrita, como no drama barroco ibérico.
Silvio Astier, de nitivamente, não é um inventor da sua própria infâmia,
como são, por exemplo, as personagens em Dostoiévski que eram, para lembrar
uma infundada mas espirituosa sentença borgeana ocupada de negar o
romance psicológico decimonônico, “suicidas por felicidade” ou “assassinos por
benevolência” ou “delatores por humildade” (Borges, 2007, p. 29). Astier é um
niilista cujo único encantamento é apenas o relato, cuja única concessão é a
narrativa, assim resultando altamente instável e absurdo, pre gurando o que,
décadas depois, viria a ser, por exemplo, a personagem de Meursault em O
estrangeiro, romance de Albert Camus. Astier – repito para distanciá-lo
secularmente do drama barroco ibérico e também do romance de formação
europeu, justi cando, assim, a opção de resgatar aqui o título arltiano – não
forja a sua própria infâmia, pois não aceita a culpa. Os livros, a literatura e a
possibilidade da narrativa o absolvem da culpabilidade de suas ações:
Amor, piedade, gratidão à vida, aos livros e ao mundo me galvanizava o nervo azul da alma.
(…) – Eu não sou um perverso, sou um curioso desta força enorme que está em mim… (Arlt, 1995,
p. 108-134).12

E é por isso que ele vai celebrar a Vida, com maiúscula no original, ainda
(ou exatamente por) que seja porca, apesar de (ou exatamente por) ser
hedionda, para além do bem e do mal, uma ética da transvaloração e,
consequentemente, do desmantelamento do maniqueísmo característico da
época trágica em que o mundo cristão ainda não fora abandonado por Deus,
bem como do idílio clássico de Gaia. Os dois solilóquios nais de A vida porca,
nesse sentido, são reveladores de todo o esvaziamento da causalidade no trágico
moderno em que se descarta a salvação divina como alternativa ao fracasso
humano:
Algumas vezes na noite. – Piedade, quem terá piedade de nós?
Sobre esta terra quem terá piedade de nós. Míseros, não temos um Deus diante de quem nos
prostrar, e toda nossa pobre vida chora.
Diante de quem eu me prostrarei, a quem falarei de meus espinhos e de minhas duras sarças, desta
dor que surgiu na tarde ardente e que ainda é por mim?
Quão pequeninos somos, e a mãe terra não nos quis em seus braços e hei-nos aqui acerbos,
desmantelados de impotência.
Por que não sabemos de nosso Deus?
Oh! Se Ele viesse em um entardecer e, suavemente, abarcasse com suas mãos as nossas duas
têmporas.
O que mais lhe poderíamos pedir? Passaríamos a andar com seu sorriso aberto na pupila e com
lágrimas suspensas nos cílios.
(…)
Devagar, desenroscou-se outra voz no meu ouvido:
– Canalha… você é um canalha.
(…)
– “Se eu não tenho culpa”.
– Canalha… você é um canalha…
– “Se eu não tenho culpa”.
– Ah, canalha!… canalha…
– Não me importa… e serei fascinante como Judas Iscariotes.

Carregarei uma pena por toda a vida… uma pena… A angústia abrirá meus olhos a grandes
horizontes espirituais… mas pra que tanta bronca? Eu não tenho direito…? Logo eu?… E serei
fascinante como Judas Iscariotes… e pela vida toda eu carregarei uma pena… mas… ah!, é linda a
13
vida, Manco… é linda… (Arlt, 1995, p. 118-126).

Arlt até pode ter algo de um realista tardio em sua quaestio narrativa. Porém,
é ativamente modernista naquilo que respeita o plano de composição literária.
Trata-se, portanto, de um escritor com as características dos demais escritores
que iniciam a criação estética do século XX. É por isso que a sua obra escapa
completamente à obsoleta oposição entre os grupos de Boedo (os escritores à
época publicados pela editora Claridad cujas obras se ocuparam de denunciar
as mazelas sociais, sacri cando, muitas vezes, o experimentalismo e a
autonomia do campo literário) e Florida (a vanguarda modernista publicada
pela revista Martín Fierro e pela revista e editora Proa).
A dicção imigrante em
“A vida porca”

Para Arlt, a língua nacional é o lugar onde convivem e se enfrentam distintas linguagens, com seus registros
e seus tons.
14
Ricardo Piglia

A tarefa dos leitores arltianos é, de nitivamente, a tarefa de quem está à escuta


de uma multiplicidade de vozes, à procura de um uníssono textual, que é o fato
estético. Isso não quer dizer que o romance arltiano seja um romance
polifônico, como é moda dizer atualmente. Quer dizer, sim, que a unidade da
voz literária, ali, acontece plasmando uma dispersão verbi-vocálica
antigramatical. Retomo, mais uma vez, o quadro previamente apresentado para
explicar com matizes o argumento de agora. Entre Echeverría e a gauchesca, o
que encontramos, quanto às vozes literárias, é a contradição, às vezes
dicotômica, às vezes não, em qualquer caso uma contradição sarmientina, entre
civilização (a norma culta, via de regra urbana, letrada e moderna) e barbárie (o
desvio da norma, ainda que mimetizando, decodi cando e utilizando, com
propósitos nacionalistas, o registro da tradição iletrada). Em Arlt, muito pelo
contrário, o que acontece é a superação, ou pelo menos o ensaio textual para se
chegar a isso, da velha antinomia característica do pensamento argentino
aberto com a geração de 1837 e invertido (mas não superado) pela gauchesca.
Em A vida porca o registro escrito torna-se indissociável do registro oral com
uma condição que o distinguirá de tudo aquilo que o precedera no sistema
literário argentino: a abertura de um tópos não mais con itivo, uma vez que o
espaço literário privilegiado em Arlt já não é nem mais o campo, nem mais
exclusivamente a cidade – é a membrana entre ambos, a emergência de uma
zona periférica entre o campo e a cidade, o assombro dessa transição
suburbana, um lugar de passagem e uma rasura que, de algum modo, apaga as
fronteiras entre um espaço e outro, não mais os polarizando, mas os religando
irreversivelmente nesses riscos que apagam a linha fronteiriça mediante um
15
“imaginário extremista”.
Nessa zona de passagem, constitui-se um novo foco linguístico, a linguagem
do arrabalde, dos subúrbios portenhos. Daí que o problema deixa de ser a cisão
entre campo/oralidade/cultura iletrada/tradição e cidade/escrita/cultura
letrada/modernidade. Passa a ser outro: o do valor e da valorização da transição
entre essas áreas gramaticais e agramaticais como produção do objeto estético
na literatura arltiana. É daí, portanto, que assoma a força irradiadora de A vida
porca, obra de começo que se desdobrará na vasta série das Águas-fortes, bem
como nos romances geminados, Los siete locos (1929) e Los lanzallamas (1931),
e alguns contos. No limiar dessa partilha entre o estrangeiro e o
profundamente nativo, entre a oralidade e a escrita, entre a crônica jornalística,
a investigação policial e, posteriormente, o relato de viajante, é que se dá o
acontecimento da sintaxe na narrativa arltiana. Ela mostra, antecipando de
algum modo a arguta percepção benjaminiana na sétima tese sobre o conceito
de história, que nunca houve um monumento de cultura que não fosse
também um monumento de barbárie, de modo que o processo de transmissão
daquela não é isento desta. Basta lembrar, para isso, a cena do roubo à
biblioteca escolar, momento antológico de A vida porca, em que aprendemos a
necessidade do delito para a instrução, para o acesso à cultura letrada por parte
daqueles que não são contemplados por ela em razão da ausência de poder
aquisitivo (Cf. Jitrik, 1987, p. 86-87). É a parcela fatalmente instrutiva da
barbárie em Arlt.
A abertura narrativa característica do plano sintático arltiano, desse modo,
opera mediante uma linha de potência cuja fusão é de origem grotesca,
elegendo e recombinando elementos aparentemente imiscíveis na tradição que
decantava a literatura argentina até então. É ainda essa abertura o que permite
a Arlt superar o método do contraste republicano que, ao pretender eliminar o
con ito, diluía falsamente as hierarquias. Tome-se, nesse sentido, o que
Sarmiento escreveu no Facundo, o civilización y barbarie (1842-1845) buscando
legitimar o projeto de constituição unitária como superação da ditadura de
Rosas que duraria até 1852:
Nós, pelo contrário, queríamos a unidade na civilização e na liberdade, e nos foi dada a unidade na
barbárie e na escravidão.
(…) Esta é a história das cidades argentinas. Todas elas têm de reivindicar glórias, civilização e
notabilidades passadas. Agora o nível barbarizador pesa sobre todas elas. A barbárie do interior
conseguiu penetrar até as ruas de Buenos Aires. Desde 1810 até 1840, as províncias que encerravam
em suas cidades tanta civilização foram bárbaras demais, porém para destruir, com seu impulso, a
obra colossal da revolução da Independência. Agora que nada lhes restou do que tinham de homens,
luzes e instituições, o que será delas? A ignorância e a pobreza, que é a consequência, estão como as
aves morrediças, esperando que as cidades do interior deem a última bocada, para devorar sua presa,
para torná-las campos, fazenda. Buenos Aires pode voltar a ser o que foi, porque a civilização
europeia é tão forte ali que, a despeito das brutalidades do governo, há de sobreviver. Mas, nas
províncias, em que se apoiará? Dois séculos não bastarão para recolocá-las no caminho que
abandonaram desde que a geração presente educa seus lhos na barbárie que lhe atingiu. Perguntem-
se agora, por que combatemos? Combatemos para voltar às cidades, sua vida própria. (Sarmiento,
16
1985, p. 26-74)

A tensão das forças contrárias entre civilização e barbárie em Arlt é


diminuída com vistas a celebrar uma vida que é, a um só tempo, humana e
desumana. A partir do ensaio fundador do pensamento republicano argentino,
17
a máquina antropológica, que já começará a girar com “El matadero” de
Echeverría, ampli ca-se no projeto nacional de cultura letrada. A maquinaria
dessa antropogênese cívica, algo que procura assegurar a racionalidade da vida
pública, de ne o elemento civilizatório como uma pré-identidade, e pretende
submeter a barbárie e o iletramento ao projeto republicano, escamoteando-os
em função da emergência unitária de uma perspectiva de modernização cujos
parâmetros são ora estadunidenses, ora europeus, e só raramente sul-
americanos. Mas com A vida porca, por volta de 1926, a máquina antropológica
sarmientina enguiça, girando momentaneamente no vazio. Deixa de haver
necessidade de conectivos entre a vida porca, entre o processo de humanização
e desumanização característico da geração de 1837. A vida, então, deixa de ser
apenas uma identidade prévia do humano preocupada em livrar-se do aspecto
não humano. É por isso que Astier consegue ver, simultaneamente, o belo e o
desprezível da Vida. O dispositivo do quiasma implícito no título censurado
por Güiraldes atravessa, desse modo, todo o romance arltiano: traz uma
inusual condição que participa à vida a sua negação, que participa ao humano
a sua animalização, o letramento ao iletramento, en m, participando à
civilização a barbárie e, logo, à barbárie a civilização, entrecruzando esses tópos
conceituais formadores da cisão a partir da qual se funda a modernização na
Argentina. Por tudo isso, caberia dizer que A vida porca pre gura de alguma
maneira o revisionismo crítico que na década seguinte Ezequiel Martinez
Estrada (1996, p. 151) faria à antinomia sarmientina ao vislumbrar no ensaio
Radiografía de la pampa que tanto a civilização quanto a barbárie são uma e a
mesma coisa dentro do sistema dialético de harmonia entre cultura e natureza,
modernidade e tradição, a ponto de resultar do falso paradoxo republicano um
crescimento desproporcional da cidade – “a es nge urbana” na metáfora
estradiana –, transformando o espaço urbano, com efeito, no epicentro de um
nova barbárie, a civilização moderna, profundamente desumanizada por seu
18
fetiche materialista e pela modernização instrumental.

Para escutar a “Mugre” na


garganta do bandoneon

Quero elogiar o bandoneon suburbano; o fole desencantado de três teclas e torto de tanto ser manuseado;
quero elogiar o bandoneon que canta, nas noites do cortiço enluarado, a tristeza dos feios e a penúria das
moças prendadas; quero elogiar, no bandoneon, toda a angustiosa bronca de Cuando llora la milonga, e a
alma do subúrbio, subindo na ponta das sonoridades até as estrelas que piscam sobre os barracões de zinco
de Nueva Pompeya, de Mataderos, da baixada de Belgrano e Villa Luro. Quero elogiar no bandoneon
arrabalero toda a bronca (…); do tango cujos diques são nossos diques e que é a válvula de escape da
penúria desta cidade…
(…) Bandoneon, única escapatória, válvula absoluta por onde estoura o cansaço, a esperança, os desejos, a
luxúria, o amor tímido, a carícia apaixonada, o rancor trapaceiro, a punhalada vil, o tiro viril dos
homens que não têm nenhum idioma, a não ser o idílio do fole: das sonoridades que saem cheias de
nostalgia de um país melhor…
(…) Soa na noite, e até os cães deixam de discutir à distancia com seus ladridos. Se havia furdunço no
botequim da esquina, o barulho se acalma; se aquele que toca é conhecido dos truqueiros, baixam as cartas
e, silenciosamente, entram no pátio do milongueiro e, de repente, pouco importa que sejam réus, ladrões,
assaltantes ou assassinos. O que importa isso! Ao redor daquele que toca se forma uma roda… O que
importa tudo isso! Das almas que escutam, cada uma viaja pelo país que o destino lhes negou.

Roberto Arlt19
Disse que a tarefa dos leitores do texto arltiano é encontrar uma posição à
escuta das multiplicidades de vozes elocutórias, o con ito representativo da
dicção tomada àqueles homens e àquelas mulheres que habitam a língua
através do desterro. Não é diferente a tarefa do tradutor arltiano. A ela apenas
se acresce uma renúncia: não eliminar, no texto da tradução, as imprecisões
sintáticas e semânticas, marca singular dessa literatura. Procurei, assim, uma
a nação especí ca do ouvido para traduzir o registro idiossincrático das vozes
dissonantes, de singulares arestas vocais, algo similar à sonoridade tirada ao
bandoneon dos subúrbios.
É difícil ler a literatura arltiana inclusive para aqueles cuja língua mátria é o
espanhol rio-platense. Há um lirismo lunfardo (ou, talvez, um lunfardismo
lírico) que hipnotiza com sua cadência canyengue, convencendo-nos a saltar em
direção ao despenhadeiro verbal, prometendo, com a queda, matizes
linguísticos que escapam à audição de quem permanece apenas na superfície.
Vêm daí a agramaticalidade, a torção sintática e, ainda, a geometrização cúbica
na criação de objetos verbais e o expressionismo paratático dos adjetivos que
abundam na escrita de que cuidei nesta tradução. É daí, fundamentalmente,
que se derrama a musicalidade arltiana. Foi preocupado em captar essa dicção
suja e abrasiva, entre todas as coisas, o que busquei, desde o primeiro
momento, ao traduzi-la nestas páginas. Nada nela é de natureza apenas lexical.
Já se criticou Arlt pelos excessos de lunfardismo, pelo emprego descontrolado
do jargão e das expressões nascidas da singularidade linguística dos subúrbios
portenhos apenas como adorno textual, trazidos entre aspas ao texto. Coisa,
obviamente, de gente insensata, que aprendeu a gíria suburbana apenas em
glossários ou dicionários para a aristocracia acadêmica ou turistas de ocasião,
en m, leitores incapazes de perceber que, muito mais do que um mero
repertório de palavras raras, uma lista de expressões estranhas, há, em Arlt, uma
espécie de rítmica lunfarda, espécie de canto marginalizado característico não
exatamente da língua, mas de seu ruído áspero, o murmurinho do idioma.
Como aqueles músicos da velha-guarda, que conseguem retirar ao
bandoneon a mugre (literalmente a “imundice”, mas, no jargão dos
bandoneonistas argentinos, a particularidade rítmica, a cadência singular de
uma sujeira sonora produzidas no instrumento) ao contorcê-lo na extensão do
corpo, essa marca musical que o executor imprime ao fole, algo inexistente no
código normativo da partitura, encontrável apenas na artimanha do tocador,
Arlt procura operar o idioma argentino comprimindo-o em sua normatividade,
em sua regra gramatical, debatendo-se ali, para extrair uma voz sufocada,
pessoal e, ao mesmo tempo, capaz de cumprir o destino suburbano do idioma
moderno. A dicção da literatura arltiana, por tudo isso, é a mesma que está na
garganta do bandoneon, balbucio agonizante à procura de uma nota
inexistente, grito seco que é um silêncio porque, no nal, já não há mais ar
para propagá-lo entre os ouvintes. É a as xia nal da comunicação que canta o
devir da linguagem despossuída de tudo, a literatura.
Quanto à estrutura do texto arltiano, gostaria de dividi-la arbitrariamente
em três dimensões narrativas para explicar o panorama geral das estratégias
adotadas nesta tradução. Digo arbitrariamente porque o acontecimento
estético de A vida porca não é perceptível senão no entrelaçamento textual
dessas dimensões que aqui separarei apenas para permitir uma visualização da
tradução. A primeira dessas dimensões corresponde à voz narrativa que
chamarei de axial, dado que ela se ocupa (inutilmente) de domar a selvagem
dispersão paratática do texto. É através dessa voz que o relato se desenvolve em
sua estrutura como um todo. Não há aí grandes torções gramaticais ou, pelo
menos, nenhuma atonalidade tão especí ca que peça maior explicação. A
segunda dimensão acontece mediante uma ocorrência oblíqua em relação à
primeira voz, ou seja, desestabilizando a voz axial. São os diálogos do primeiro
capítulo entre Astier e o velho sapateiro andaluz, bem como entre Astier,
Enrique e Lucio. Também entre Astier, Dío Fetente, as ofensas em dialeto
genovês entre Dom Gaetano e sua mulher ao longo do segundo capítulo. A
cantoria mediterrânea de Monti logo no princípio do capítulo nal. E,
sobretudo, os diálogos entre Astier e o Manco, exuberâncias de expressões
típicas do subúrbio portenho que escapam completamente às regras normativas
do idioma culto, urbano. Exemplos disso, ainda, são os momentos no mercado
de Caballito e, depois, na feira do baixo Flores, verdadeiras explosões verbais de
cores sombriamente luminosas e cheiros azedos, quando se lê as discussões
entre Dom Gaetano e os vendedores, também a descrição da relação entre o
Manco e os feirantes. É nessa dimensão que acontecem os maiores ganhos
linguísticos e literários do romance. Os diálogos são estranhos, retorcidos,
fartos de expressões incomuns. Exagera-se nas expressões marcadas pelas
elocuções suburbanas, a mistura de expressões locais com o repertório
estrangeiro, conseguindo, desse modo, a espessura coloquial do idioma
sufocado pela literatura o cial à época. Foi aí que a tradução, notavelmente
mais que em outros momentos, precisou entrar profundamente na espiral da
escrita arltiana. Buscou-se, tanto quanto foi possível, a virtualidade rediviva das
expressões, trabalhando o linguajar popular, preocupando-se, contudo, em não
neutralizar o estranhamento dos diálogos originais com a pretensão equivocada
de adaptá-los a uma zona especí ca do português brasileiro. Antes pelo
contrário, a tentativa, aqui, foi adaptar o português brasileiro àquelas camadas
linguísticas do espanhol argentino, preservando, com isso, o estranhamento do
original, quando a intenção era manter o princípio da construção poética, isto
é, os dois ou mais pontos distantes da língua, quase sempre incomunicáveis,
que apenas as metáforas ou a robusta adjetivação arltianas permitem reunir em
novo elemento textual. Em uma terceira dimensão, ocorre uma espécie de volta
da primeira voz, mas com algo inusitado: o acréscimo do princípio tanto da
metaforização quanto da adjetivação determinante da segunda voz, assim
promovendo uma textualidade altamente artística, criando, nesse sentido,
notáveis paisagens verbais de uma inesgotável visualidade escrita. É aí,
precisamente na sedimentação dessas três dimensões narrativas, que se dá,
portanto, a abertura paratática mais notável na composição arltiana, fundindo
elementos que ora têm origem no sublime, ora no grotesco, até eliminar a
separação. Esse espaço narrativo, é bom dizer, quase sempre aparece no relato
ao longo de um deslocamento entre o centro urbanizado e os limiares
suburbanos de então, hoje assimilados pela nova geogra a da Capital Federal
argentina que já não possui apenas um centro, mas vários e instáveis. É
importante demarcar isso, a exemplo dos trechos em que Astier, vendedor de
papéis, desloca-se entre os bairros mais afastados, na periferia, pois é aí que a
tessitura da narrativa arltiana conseguirá delimitar um espaço então incomum
para a literatura argentina, espaço que, como procurei demarcar, não só é
geográ co, mas, especialmente, linguístico e estético, literário.
É daí que se pode escutar a profusão da mugre na garganta do texto arltiano:
espécie de sonoridade contida, mas que arrebenta e arrebata; é a instância
dissonante de uma sintaxe própria; é a meia-voz do coro; a co(n)fusão babélica
das linguagens encontradas, rumor das vozes; é a falha comunicativa que dá
corpo à língua; é a voz pela voz mesma, ou seja, a voz outra que se torna outra
voz, reverberação sem identidade ou sentidos prede nidos; dicção textual de
onde o escritor arranca a angústia que o amortalha entre as páginas do livro e
os leitores; en m, a invenção da palavra cujo ser é irredutível.
À maneira daqueles imigrantes desfavorecidos sem nenhum idioma, que
disparam um tiro viril com o bandoneon suburbano, instrumento
20
característico de zonas de imigração, Roberto Arlt assimila essas vozes
estrangeiras para revertê-las em algo altamente argentino, assim como o tango
assimilara o instrumento de origem alemã para de nir a musicalidade nacional,
permitindo a cada uma daquelas almas desterradas, que invadiam o país
daquela época, ajudando a sustentá-lo com a força operária, renovando-o
culturalmente, viajar pelos países que o destino lhes negou a cada um deles,
21
agora não só através do tango, mas também da literatura. É essa virtualidade
linguística que A vida porca traz para a literatura argentina, assimilando uma
zona então ignorada na criação da linguagem literária do país. É por isso que A
vida porca é, atualmente, um dos pilares da literatura argentina, após ser
resgatada pela nova orientação da crítica literária ao longo da década de 1950.
Foi com este livro que se deu carne àquelas vozes que um dia tentou-se calar no
projeto argentino de modernização nacional. A vida porca é registro arti cial –
e não um mero documento histórico – da dicção balbuciante de tudo isso que,
hoje, escutamos em várias páginas da literatura argentina contemporânea e
22
também para além dela.
Post-scriptum

O título inicial deste posfácio teria sido “Roberto (doble) Arlt – ou a garganta
do bandoneon”, alusão ao Doble A, apelido portenho da celebérrima marca de
bandoneon alemã produzida por Alfred Arnold. A censura pessoal me fez optar
por um título menos confuso para o público brasileiro. Também o altíssimo
valor a que um Doble A pode chegar atualmente, haja vista a interrupção de
sua fabricação após a destruição alemã ao nal da Segunda Guerra Mundial, já
não tem mais nada a ver com o bandoneon suburbano de que falava Arlt.23
Para além da estrutura rítmica do tango, componente da sintaxe arltiana de que
procurei falar acima, A vida porca tem, ainda, os motivos mais característicos
desse gênero musical, a saber: o lamento pela perda da mulher (Astier e as
contínuas rememorações de Eleonora); a ruptura do pacto com o amigo e a
angústia gerada pela traição (primeiramente o distanciamento de Astier em
relação a Enrique e Lucio, posteriormente, a ruptura completa, a traição
propriamente dita, do pacto com o Manco, momento em que o traço diegético
do tango se consolida na narrativa de Arlt). Deixo, portanto, essa sugestão
nal, nesse afora do texto.

Por m, agradeço ao Programa Sur de subsidios a las traducciones, seção


cultural da Embaixada Argentina que nanciou a tradução deste livro. À Maíra
Nassif, editora da Relicário Edições, pela acolhida do projeto e resolução de
todas as tramitações implicadas nesta tradução. À Mariana Di Salvio, cuidadosa
revisora desta tradução, pelos diálogos, sugestões e comentários enriquecedores.
Ao amigo Facundo Gomes, a quem recorri quando me faltou traquejo no
espanhol arltiano. À Eleonora Frenkel, pelo prefácio que aqui introduz em
altíssimo nível o texto de Roberto Arlt. À Ana C. Bahia, que certamente terá
feito a tradução grá ca deste livro com a sensibilidade visual que é peculiar a
seu trabalho. E à professora Laura Juárez, que tempos atrás me iniciou na
literatura arltiana, bem como em sua fortuna crítica. Nada, nestas páginas, teria
sido realizado sem tais contribuições. Com todo o meu agradecimento,
portanto.
Notas
*Davidson de Oliveira Diniz é Doutor em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela UFMG. Foi
bolsista da Capes e realizou Doutorado Sanduíche (2012-2013) na Universidade de Buenos Aires.
Assumirá no próximo ano o cargo de Professor Substituto de Literaturas Hispano-Americanas da UFRJ.
1. “Busco un poema que no encuentro, el poema de un cuerpo a quien la desesperación pobló
súbitamente en su carne, de mil bocas grandiosas, de dos mil labios gritadores. A mis oídos llegan voces
distantes, resplandores pirotécnicos, pero yo estoy aquí solo, agarrado por mi tierra de miseria como con
nueve pernos” (Arlt, 1995, p. 63).

2. Em razão do regime político vigente à época, o período autoritário (1829-1852) de Juan Manuel de
Rosas, “El matadero” circula clandestinamente, sendo o cialmente publicado apenas em 1871, na Revista
del Río de la Plata. Periódico mensual de Historia y Literatura de América. Buenos Aires: Imprenta y
Librería de Mayo.

3. Essa primeira fase da produção poética borgeana, promovida nos anos 1920, consiste na ressigni cação
de uma estética bairrista a partir da apropriação da obra de um poeta lateral, Evaristo Carriego. Tal fase
perdura mais ou menos até o ano 1935, quando Borges publica Historia universal de la infamia (é
abandonada apenas como projeto literário, mas ressurgirá em livros tardios, daí minha opção em falar em
termos de denegação). É a partir daí que Borges passa a ser lido como narrador, sobretudo a partir de uma
resenha em que Amando Alonso, lólogo espanhol residente em Buenos Aires, discute os procedimentos
narrativos do livro de 1935. Na primeira fase, procura-se por uma voz criolla na elocução do poema
modernista. Consolida-se na década de 1940 a fase seguinte, designada como o “círculo da reescrita”,
caracterizada pela revisão do cânone da literatura ocidental mediante a emergência de um sistema literário
emergente. O ponto de in exão entre uma fase e outra aparece no conto “Hombre de la esquina rosada”,
reunido entre os relatos de Historia universal de la infamia que Borges publicara anos antes na Revista
Multicolor de los sábados, suplemento literário do jornal Crítica. Esse conto desenvolve uma voz narrativa
em primeira pessoa, ocupando-se de um particular registro do idioma nacional suburbano, à maneira de
um pastiche da poesia gauchesca da última fase, de Lussich e Hernández, escritas que reivindicam a voz
do gaucho payador. Frente ao que virá a seguir neste texto, é preciso demarcar uma diferença crucial entre
Borges e Arlt quanto aos aprendizados da linguagem popular em âmbito urbano: o primeiro, na primeira
fase poética, enfatiza o tom castiço do idioma, tal como a gauchesca e, posteriormente, o romance Don
Segundo Sombra, enquanto que o segundo, por sua vez, assimilará a prosódia do lunfardo em detrimento
da elocução castiça do espanhol.
4. A expressão formação discursiva é de Michel Foucault (2004, p. 35-43). Diz respeito a uma emergência
simultânea e sucessiva de incoerências conceituais que traz a lume um sistema de dispersão que precede a
unidade discursiva organizadora e constituinte de um saber e, logo, de uma instância de exercício do
poder. É no processo de formação discursiva, ainda, que se dita a forma e os motivos pelos quais se
empreende a atividade escrita. Lanço mão dessa terminologia, portanto, para pensar o processo de
formação de uma narrativa nacional.

5. A publicação do referido texto arltiano incorpora uma série de outros textos de mesmo título que
caracterizaram o debate do modernismo linguístico no cenário argentino de então. Para mais nuances a
esse respeito, sugiro a leitura de “O coloquialismo urbano rio-platense como forma de valorização
popular”, capítulo nal do livro Poéticas da transgressão de Viviana Gelado. De acordo com essa autora, a
vanguarda argentina apresenta um “grau de moderatismo” em relação às vanguardas europeias, posição
que Gelado (2002, p. 222) argumenta a partir da censura feita à heterogeneidade e ao espontaneísmo
linguístico-discursivo de Arlt.

6. Os relatos dos primeiros viajantes por nosso continente, conjunto heterogêneo de textos produzidos no
período colonial e chamados de Crônicas das Índias, declarada intertextualidade no relato de Echeverría,
como deixa ver já o parágrafo introdutório, pintaram verbalmente a paisagem local americana. Nos textos
dos estrangeiros, porém, isso acontecia como um escapismo crítico, mero ornamento retórico ou
comentário do ambiente em torno cujo foco era noticiar o exotismo e a excentricidade americana, sem
problematizá-los, mas, antes, reduzindo-os ao imaginário eurocêntrico da empresa colonizadora. Nesse
sentido, a composição da paisagem americana à época dos cronistas, ao longo de período que abrange as
etapas da invasão, conquista e colonização, não constitui senão uma dimensão cognitivo-expressiva, isto é,
as manifestações discursivas de um ato cognitivo em que se expressa não propriamente um objeto ou um
acontecimento, mas, pelo contrário, aquilo que o sujeito da escrita sabe previamente ao se enfrentar com
a paisagem, o objeto ou o acontecimento (Cf. Mignolo, 2008, p. 61-62). A inversão desse panorama
passa a ocorrer, por exemplo, com “El matadero” e, posteriormente, com os relatos das viagens de
Sarmiento, entre outros. Essa in exão, obviamente, não é isenta do processo cognitivo-expressivo. A
diferença é que nos casos dos relatos republicanos, após a independência ante as coroas ibéricas, já não há
endosso da mentalidade europeia, tampouco da empresa colonizadora, e sim a busca por seu completo
desmantelamento.

7. Sendo insu ciente a explicação do que vem a ser o lunfardo, sugiro, para a assimilação concreta por
parte do público brasileiro, um comparatismo com a prosódia empregada por Adoniran Barbosa a seus
sambas. A descontar-se o humor que abunda no brasileiro e míngua no argentino.

8. Não é em outro sentido que Piglia (1993, p. 130) escreve que “(…) Borges es anacrónico, pone n,
mira hacia el siglo XIX. El que abre, el que inaugura [el siglo XX], es Roberto Arlt”.

9. César Aira (1993, p. 56-68), por exemplo, fala de uma prática expressionista em Arlt, com isso
sugerindo o “estilo da aproximação”, não havendo, nesse caso, distanciamento do real. Essa aproximação
narrativa em Arlt, ainda segundo Aira, gera uma “imaginação geométrica” do real, à maneira
expressionista e cubista, distorcendo o mundo cotidiano para reescrevê-lo a partir da deliberada
intromissão do narrador no mundo ao redor.

10. “Creo rmemente que usted debería modi car el título de su novela (...) fíjese, La vida puerca es un
nombre demasiado escéptico, a mí me parece que podría usted colocarle el nombre de El juguete rabioso,
que en de nitiva es como la vida puerca, pero le otorga un poco más de brillo. No es lo mismo una vida
desdichada desde el principio que un juguete, como es la vida, a la manera de Calderón de la Barca, y
además, rabioso, y enojado”.

11. Lezama Lima (1993, p. 79-80-81) faz uma emblemática distinção entre o barroco europeu e o
barroco americano no capítulo “La curiosidad barroca” do inovador ensaio La expresión americana (1957-
59). O poeta cubano propõe que o barroco europeu é mera acumulação e assimetria sem ruptura dos
elementos constitutivos; já o barroco americano constitui uma estrutura em constante tensão, assimetria
com plutonismo, ou seja, o fogo ígneo que opera a reformulação dos elementos fragmentários no plano
de composição. É nesse sentido que, para Lezama Lima, o barroco americano, em detrimento do
europeu, representa uma aquisição de linguagem crítica ao se fazer como uma vivência completa,
característica ausente no europeu. O barroco americano, assim, torna-se uma “arte de contraconquista”. É
pensando nessa con guração, portanto, que me parece inviável assimilar a narrativa arltiana à sombra do
modelo ibérico do barroco de Calderón.

12. “Amor, piedad, gratitud a la vida, a los libros y al mundo me galvanizaba el nervio azul del alma. (…)
– Yo no soy un perverso, soy un curioso de esta fuerza enorme que está en mí…”

13. “Algunas veces en la noche. – Piedad, ¿quién tendrá piedad de nosotros? Sobre esta tierra quién tendrá
piedad de nosotros. Míseros, no tenemos un Dios ante quien postrarnos, y toda nuestra pobre vida llora.
¿Ante quién me postraré, a quién hablaré de mis espinos y de mis zarzas duras, de este dolor que surgió en
la tarde ardiente y que aún es en mí? Qué pequeñitos somos, y la madre tierra no nos quiso en sus brazos
y henos aquí acerbos, desmantelados de impotencia. ¡Oh! Si Él viniera un atardecer y quedamente nos
abarcara con sus manos las dos sienes. ¿Qué más podríamos pedirle? Echaríamos a andar con su sonrisa
abierta en la pupila y con lágrimas suspendidas de las pestañas. (…) Despacio, se desenrosco otra voz en
mi oído: – Canalla… sos un canalla. (…) – “Si yo no tengo la culpa”. – Canalla… sos un canalla… –“Si
yo no tengo la culpa”. – ¡Ah!, canalla… canalla… – No me importa… y seré hermoso como Judas
Iscariote. Toda la vida llevaré una pena… una pena… La angustia abrirá a mis ojos grandes horizontes
espirituales… ¡pero qué tanto embromar!… ¿No tengo derecho yo…? ¿acaso yo?… Y seré hermoso como
Judas Iscariote… y toda la vida llevaré una pena… pero… ¡ah!, es linda la vida, rengo… es linda…”

14. “Para Arlt la lengua nacional es el lugar donde conviven y se enfrentan distintos lenguajes, con sus
registros y sus tonos” (Piglia, 1993, p. 134).

15. A expressão “imaginário extremista” é empregada por Beatriz Sarlo (2000) para designar, na cção
arltiana, a produção de um exagero que subverte as ideologias, denunciando os seus limites
hierarquizadores. Promove-se, assim, o que Sarlo (2007, p. 228) de niu como “a perspectiva do cínico”
na obra arltiana. E, dessa maneira, ocorre o convívio entre ideias aparentemente divergentes, como, por
exemplo, a lei e o delito, a política e a violência, o pensamento de direita e o pensamento de esquerda, a
anarquia e as instituições, etc., assim saindo “do con ito pela explosão” e, com isso, esvaziando as
ideologias de suas diferenças. É nesse sentido, portanto, que menciono a seguir a possibilidade de superar-
se pela primeira vez o con ito sarmientino a partir de A vida porca.

16. “Nosotros, empero, queríamos la unidad en la civilización y en la libertad, y se nos ha dado la unidad
en la barbarie y en la esclavitud. (…) Esta es la historia de las ciudades argentinas. Todas ellas tienen que
reivindicar glorias, civilización y notabilidades pasadas. Ahora el nivel babarizador pesa sobre todas ellas.
La barbarie del interior ha llegado a penetrar hasta las calles de Buenos Aires. Desde 1810 hasta 1840, las
provincias que encerraban en sus ciudades tanta civilización fueron demasiado bárbaras, empero, para
destruir con su impulso, la obra colosal de la revolución de la Independencia. Ahora que nada les queda
de lo que en hombres, luces e instituciones tenían, ¿qué va a ser de ellas? La ignorancia y la pobreza, que
es la consecuencia, están como las aves mortecinas, esperando que las ciudades del interior den la última
boqueada, para devorar su presa, para hacerlas, campos, estancia. Buenos Aires puede volver a ser lo que
fue, porque la civilización europea es tan fuerte allí que a despecho de las brutalidades del gobierno, se ha
de sostener. Pero en las provincias, ¿en qué se apoyará? Dos siglos no bastarán para volverlas al camino
que han abandonado, desde que la generación presente educa a sus hijos en la barbarie que a ella le ha
alcanzado. Pregúntasenos ahora, ¿por qué combatimos? Combatimos para volver a las ciudades, su vida
propia” [Itálicos no original].
17. A expressão máquina antropológica aparece na loso a de Giorgio Agamben (2007, p. 145-167) com
o propósito de conceituar a divisão, na cultura ocidental, entre o humano e o animal, entre natureza e
humanidade, buscando discutir como, meio a essa articulação polarizadora, um dos termos relacionados
sempre permite a supremacia do outro, submetendo e hierarquizando com vistas a compor um con ito
político que, ao censurar a verdadeira articulação entre o humano e o animal, permite a ascensão de uma
antropogênese constitutiva do pensamento ocidental.

18. É preciso não perder de vista a importância do ensaio de Sarmiento para o pensamento republicano
argentino, bem como para a constituição do ensaísmo latino-americano. Julio Ramos (2008, p. 39-43),
por exemplo, chama a atenção para o fato de o Facundo ser um livro capaz de constituir um “depósito de
vozes” ao compilar relatos orais, anedotas, histórias alheias, etc. Esse arquivamento, entretanto, se dá
(assim como víamos em Echeverría) sempre pela via da submissão do repertório da barbárie em relação à
violência da forma escrita que procura modelar a irregularidade da voz ali representada. É por isso que
Ramos pondera, argumentando que, em Sarmiento, a representação do bárbaro pressupõe “o desejo de
incluí-lo e subordiná-lo à generalidade da lei da civilização”. Já em Antonio Mitre (2003, p. 49-55)
encontra-se a proposta de uma linha interpretativa estradiana do Facundo para além do clássico
binarismo civilização versus barbárie, sugerindo, assim, a complementação não ambivalente dos conceitos
mediante a consistência híbrida da realidade americana que o ensaio sarmientino buscou representar. Esse
última perspectiva, a meu ver, é bastante interessante para pensar a fortuna crítica do Facundo, abrindo
novas chaves de leitura na contemporaneidade. Porém, torna-se problemático adotá-la quando a hipótese,
conforme se sobrescreve, opta por uma discussão do princípio de constituição da linguagem, bem como
do simbolismo e da representação das vozes no sistema literário argentino. Perigaria neutralizar o
declarado projeto republicano que opõe e submete o campo à cidade, a cultura oral e iletrada à cultura
letrada-escrita, os indivíduos e a multiplicidade subjetiva ao assujeitamento da lei.

19. “Quiero elogiar al bandoneón suburbiero; el fuelle desencantado de tres teclas y tuerto de tanto ser
manoseado; quiero elogiar el bandoneón que canta, en las noches del conventillo lunado, la tristeza de los
feos y la pena de las muchachas percaleras; quiero elogiar en el bandoneón toda la angustia bronca de
“Cuando llora la milonga”, y el alma del suburbio, subiendo en la punta de los sonidos hasta las estrellas
que parpadean sobre el cinc de Nueva Pompeya, de Mataderos, del Bajo de Belgrano y Villa Luro. Quiero
elogiar en el bandoneón arrabalero toda la bronca (…); del tango cuyos diques son nuestros diques y que
es la válvula de escape de la pena de esta ciudad... (…) Bandoneón, única escapatoria, válvula absoluta
por donde estalla el cansancio, la esperanza, los deseos, la lujuria, el amor tímido, la caricia apasionada, el
rencor tramposo, la puñalada trapera, el tiro macho de los hombres que no tienen ningún idioma, como
no sea el idilio del fuelle: de los sonidos que salen preñados de nostalgia de un país mejor... (…) Suena en
la noche y hasta los perros dejan de contestarse en la distancia con ladridos. Si había bochinche en el
boliche de la esquina, el barullo se encalma; si al que toca lo conocen los truqueros, dejan el naipe y,
silenciosamente, entran en el patio del milonguero y, de pronto, ¡qué importa que sean reos, ladrones,
asaltantes o asesinos!, ¡qué importa eso!, junto al tocador se forma una rueda... ¡Qué importa todo esto!
De las almas que escuchan, cada una viaja por el país que el destino les negó” (Arlt, 1930, s/p).

20. Basta pensarmos nos portos de Montevidéu e Buenos Aires, mas, também, das regiões do nordeste e
do sul brasileiros, onde se espalharam o acordeão e a sanfona de oito baixos, popularmente conhecida
como “pé de bode”.

21. É importante lembrar que durante os anos 1920 o tango não era considerado exatamente um ritmo
nacional; muito antes pelo contrário. Em tal contexto, ritmos e danças nacionais, folclóricos, era o “gato”,
o “estilo”, a “chacarera”, a “zamba”, a “vidalita” ou o “pericón”, executados em versões para piano ou
guitarra criolla, o violão de nylon. Exemplo rotundo da negativa com que a restauração nativista designa o
tango em tal contexto é a declaração que a compositora Ana Schneider de Cabrera (na época enviada à
Europa pelo Ministério de Instrução Pública da Argentina para oferecer concertos e ministrar
conferências universitárias difundindo e explicando a música folclórica da Argentina) dá para o jornal
Crítica em 18 de outubro de 1926, declarando que o tango não era música, nem muito menos dança
nacional argentina. Isso explica porque, naqueles anos, os compositores de tangos procederiam de modo a
aproximar tanto as letras quanto a estrutura rítmica do movimento tradicionalista, folclórico, cultivando
um repertório misto mediante a assimilação de elementos provenientes da tradição rural, bem
assimilando elementos internacionais (Cf. Goyena, 1991). Cabe perceber, nesse sentido, que o tango era
um gênero maldito, negado pela tradição folclórica, popular, e, também, recriminado pela elite urbana
portenha que, nas festas dos salões burgueses, dançava preferencialmente o “foxtrot”. O tango, à época de
nosso livro, era a música dos subúrbios e cortiços, como líamos acima no “Elogio del bandoneón
arrabalero” de Arlt, dançado pelas prostitutas dos cabarés. Só mais tarde viria a ser o ritmo nacional,
dançado nos salões.

22. Arlt teve uma recepção notável em sua época, bem como recebeu prêmios literários importantes em
escala local, tendo sido provavelmente o escritor argentino mais bem pago em seu tempo, dado o volume
das publicações em revistas e jornais ao logo da década de 1920 e 1930. A partir da década de 1940, com
consolidação do projeto cultural e estético da revista Sur, dirigida por Victoria Ocampo com a proposta
de divulgar a cultura letrada europeia em Buenos Aires, a obra de Arlt é momentaneamente esquecida. É
só a partir do nal da década de 1950, com a acessão da crítica acadêmica posicionada mais à esquerda,
sobretudo a partir das orientações teóricas dos irmãos David e Ismael Viñas, à frente da revista Contorno,
publicação irradiadora do revisionismo da crítica literária argentina naquela década, que a obra literária
arltiana seria resgatada como alternativa ao projeto estético do grupo Sur. Já a partir da década de 1970,
com Ricardo Piglia e Beatriz Sarlo à frente da revista Punto de vista, Arlt seguiria sendo lido e debatido
como um dos modelos literários capazes de levar a crítica literária argentina além da hierarquização da
estética realista característica daquele revisionismo da década de 1950. É, por isso, uma constante na obra
crítica e ccional de Piglia. Também o escritor chileno Roberto Bolaño (2004, p. 23-30), atualmente um
dos nomes literários mais celebrados mundialmente, faz sua vindicação da obra de Arlt. Da tríade lateral
que Bolaño reúne no ensaio “Derivas de la pesada”, com o propósito de discutir seus aprendizados
literários enquanto leitor da literatura argentina, Arlt é, segundo Bolaño, “o melhor dos três” (cotejado ali
com Osvaldo Soriano e O. Lamborghini). A obra arltiana é, por tudo isso, uma presença indiscutível na
contemporaneidade da literatura latino-americana.

23. Para um panorama sobre a produção do bandoneon na Argentina e na Europa, ver Venegas (2010).

Referências bibliográ cas

AGAMBEN, Giorgio. Lo abierto. El hombre y el animal. Traducción de Flavia


Costa y Edgardo Castro. Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2009.
AIRA, César. Arlt. In: Paradoxa. Literatura/Filosofía, N° 7. Rosario: Beatriz
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© Relicário Edições

CIP –Brasil Catalogação-na-Fonte | Sindicato Nacional dos Editores de Livro, RJ

A725v
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A vida porca / Roberto Arlt ; tradução de Davidson de Oliveira Diniz. – Belo Horizonte: Relicário,
2014.

256 p. : 13 x 20 cm
Título original: El juguete rabioso.
ISBN 978-85-66786-13-2

1. Literatura argentina. I. Diniz, Davidson. II. Título.


CDD-Ar863

COORDENAÇÃO EDITORIAL Maíra Nassif Passos


PROJETO GRÁFICO & DIAGRAMAÇÃO Ana C. Bahia
REVISÃO Mariana Di Salvio

Obra editada en el marco del Programa “Sur” de Apoyo a las Traducciones del Ministerio de Relaciones
Exteriores y Culto de la República Argentina.

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