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Arlt e Astier:
“amar a existência
com dentes
e unhas”
Os
ladrões
Os trabalhos
e os dias
O
títere
raivoso
Judas
Iscariotes
apêndice
O poeta
do bairro
posfácio
Roberto Arlt,
ou a garganta do bandoneon.
Voz e diccção imigrante
no sistema literário
argentino
prefácio
ARLT
E ASTIER: “AMAR A
EXISTÊNCIA COM DENTES E
UNHAS”
Escrever mal:
traduzir mal
Elias Machado. “As lições de Arlt para o jornalismo”. Revista Subtrópicos. Florianópolis, número 10, julho
de 2014, pp. 2-3. Disponível em: http://issuu.com/ayrtonsilveira/docs/subtropicos_n10.
13. Para uma relação um pouco mais detalhada, porém já desatualizada dos estudos dedicados a Arlt no
âmbito universitário brasileiro, ver: Frenkel, E. e Costa, W. (2007, pp. 33-38).
14. Publicado originalmente em Crítica Magazine, número 28, Buenos Aires, 28 de fevereiro de 1927.
* Epígrafe que consta na primeira edição de 1926 publicada pela editora Latina. A partir de 1931, época
em que sai a segunda edição já pela editora Claridad, a epígrafe é suprimida. Resurge apenas na edição de
1993, da editora Espasa Calpe, a cargo de Ricardo Piglia.
capítulo 1
OS
LADRÕES
Quando eu tinha catorze anos, fui iniciado nos deleites e afãs da literatura
bandoleiresca por um velho sapateiro andaluz que tinha sua loja de reparos
junto a uma casa de ferragens de fachada verde e branca, no eirado de uma casa
antiga na rua Rivadavia, entre Sud América e Bolívia.
Decoravam a frente da espelunca as policromadas capas dos livretos que
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narravam as aventuras de Montbars, o Pirata, e de Wenongo, o Moicano. Nós,
a molecada, ao sair da escola, nos deleitávamos observando aquelas gravuras
que pendiam da porta, desbotadas pelo sol.
Às vezes entrávamos pra comprar só meio maço de cigarros mata-ratos, e o
homem praguejava por ter que deixar o banquinho e barganhar com a gente.
Era de montanhosas costas, mal-encarado e barbudo, e ainda por cima algo
coxo, um coxear estranho, o pé redondo como a pata de uma mula com o
calcanhar virado pra fora.
Cada vez que eu o via, me lembrava desse provérbio, que minha mãe
costumava dizer: “Cuidado com os marcados por Deus”.
Costumava resenhar alguns parágrafos de prosa comigo lá, e, enquanto
escolhia um irreconhecível sapato entre a pilha de formas e os rolos de couro,
me iniciava, com amarguras de fracassado, no conhecimento dos bandidos
mais famosos nas terras de Espanha, ou me fazia apologia de um cliente
assíduo mão aberta a quem lustrava o calçado e que o favorecia com vinte
centavos de lambuja.
Como era cobiçoso, sorria ao evocar o cliente, e o riso sórdido, que não
servia para encher as bochechas, enrugava o lábio sobre os seus dentes
carcomidos.
Tomou simpatia por mim apesar de ser um ranzinza e por alguns cinco
centavos de pagamento ele me alugava seus livrecos adquiridos em longas
assinaturas.
Assim, entregando a história da vida de Diego Corrientes, ele me dizia:
– Esse cabra, lho… que cabra!… era mar lindo que uma rosa e foi morto
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pelos miguelete…
Tremia de in exões in amadas a voz do artesão:
– Mar lindo que uma rosa… se o cabra não fosse tão azarado…
Reconsiderava na sequência:
– Tome tino… dava ao pobre o que tomava ao rico… tinha mulher em
todos os pousos… se era mar lindo que uma rosa…
No barraco, empesteado com o fedor de cola e de couro, sua voz despertava
um sonho com montes viçosos. Nos des ladeiros havia festejos ciganos… todo
um país montanhoso e lascivo aparecia diante dos meus olhos chamado pela
evocação.
– Se era mar lindo que uma rosa – e o manco desafogava sua tristeza
amolecendo a sola a marteladas em cima de uma placa de ferro que apoiava nos
joelhos.
Depois, murchando os ombros como se descartasse uma ideia inoportuna,
cuspia através do canino em um canto, a ando com movimentos rápidos a
sovela na pedra.
Mais tarde acrescentava:
– Tu vai ver que parte mar linda quando chegar à dona Inezita e à birosca do
tio Pezuña – e observando que eu levava o livro, me gritava de advertência:
– Cuida dele, menino, que dinheiros custa – e retomando seus ofícios
inclinava a cabeça coberta até as orelhas por uma boina cor de rato, revirava
uma caixa com os dedos imundos de cola e, enchendo a boca com preguinhos,
continuava a fazer com o martelo toc… toc… toc…
Dita literatura, que eu devorava nas “publicações” numerosas, era a história
de José María, o Raio de Andaluzia, ou as aventuras de Dom Jaime, o
Barbudo, e outros malandros mais ou menos autênticos e pitorescos nas
gravuras que os representavam desta forma:
Cavaleiros em potros estupendamente encilhados, com escurecidas costelas
no corado rosto, coberto o rabicho de toureiro por um chapéu de sete sombras
e o trabuco na sela. Geralmente ofereciam com magnânimo gesto uma bolsa
amarela de dinheiro a uma viúva com um lho no colo, parada aos pés de uma
colina verde.
Então eu sonhava ser bandido e estrangular coronéis libidinosos; endireitaria
pau nascido torto, protegeria as viúvas e me amariam as singulares donzelas.
Precisava de um camarada nas aventuras da primeira idade, e este foi
Enrique Irzubeta.
Era o tal um pilantra de marca maior a quem eu sempre ouvi chamar pelo
edi cante apelido de “o falsi cador”.
Eis aqui como se estabelece uma reputação e como o prestígio secunda o
principiante na louvável arte de tapear o desavisado.
Enrique tinha catorze anos quando encanou o fabricante de uma fábrica de
balas, o que era uma evidente prova de que os deuses tinham traçado qual seria
no futuro o destino do amigo Enrique. Mas como os deuses são arteiros de
coração, não me surpreende ao escrever minhas memórias saber que Enrique
estaria hospedado em um desses hotéis que o Estado reserva para os audazes e
os velhacos.
A verdade é esta:
Certo fabricante, para estimular a venda de seus produtos, iniciou um
concurso com premiação destinada àqueles que apresentassem uma coleção de
bandeiras das quais se encontrava um exemplar dentro da embalagem de cada
bala.
Consistia a di culdade (dado que escasseava sobremaneira) em encontrar a
bandeira da Nicarágua.
Essas disputas absurdas, como se sabe, apaixonam a garotada que, amparada
por um ânimo comum, computa todos os dias o resultado desses trabalhos e o
progresso de suas pacientes indagações.
Então Enrique prometeu a seus companheiros de bairro, certos aprendizes
de uma carpintaria e os lhos do dono do lugar, que ele falsi caria a bandeira
da Nicarágua sempre que um deles disponibilizasse uma.
O menino duvidava… vacilava conhecendo a reputação de Irzubeta, mas
Enrique magnanimamente ofereceu como garantia dois volumes da História da
França, escrita por M. Guizot, para que não fosse posta em xeque sua
honestidade.
Assim cou fechado o trato na calçada da rua, uma rua sem saída, com
luminárias pintadas de verde nas esquinas, com poucas casas e compridos
muros de tijolos. Em cercas distantes, repousava a celeste curva do céu, e só
entristecia a viela o monótono rumor de uma serra sem m ou o mugido das
vacas no estábulo.
Mais tarde soube que Enrique, usando nanquim e sangue, reproduziu a
bandeira da Nicarágua tão habilmente que o original não se distinguia da
cópia.
Dias depois Irzubeta ostentava um novíssimo fúsil de ar comprimido, que
vendeu a um brechó da rua Reconquista. Isto acontecia no tempo em que o
esforçado Bonnot e o honradíssimo Valet aterrorizavam Paris.
Eu já tinha lido os quarenta e tantos tomos que o visconde de Ponson du
Terrail escrevera sobre o lho adotivo de mamãe Fipart, o admirável
Rocambole, e aspirava a ser um bandido da velha guarda.
Bom: num dia de estival, no sórdido armazém do bairro, conheci o Irzubeta.
A tórrida hora da sesta pesava nas ruas, e eu, sentado em um barril de mate,
discutia com Hipólito, que aproveitava os sonhos do pai para fabricar
aeroplanos armados em bambu. Hipólito queria ser aviador, “mas deveria
resolver antes o problema da estabilidade espontânea”. Em outros tempos, ele
andou preocupado com a solução do movimento contínuo e costumava me
consultar acerca do resultado possível de suas indagações.
Hipólito, com os cotovelos em um jornal manchado de toicinho, entre um
porta-queijo e as varetas vermelhas “do caixa”, escutava atentissimamente a
minha tese:
– O mecanismo de um relógio não serve para a hélice. Mete um motorzinho
elétrico e as pilhas secas na “fuselagem”.
– Então, como os submarinos…
– Que submarinos? O único risco é que a corrente pode te queimar o motor,
mas o aeroplano vai ir mais sereno, e antes de as pilhas descarregarem você vai
se divertir muito.
– Escuta: e o motor não pode funcionar com a telegra a sem os? Você teria
que estudar esse invento. Sabe que seria genial?
Naquele instante, entrou o Enrique.
– E aí, Hipólito, minha mãe perguntou se você não pode me dar meio quilo
de açúcar para pagar depois.
– Não posso, cara; o velho me disse que não até que vocês zerem a
caderneta…
Enrique franziu ligeiramente a testa.
– Não acredito, Hipólito!…
– Se fosse por mim, já sabe… mas é o velho, cara – e apontando pra mim,
satisfeito de poder mudar de assunto, agregou, dirigindo-se a Enrique:
– Cara, você não conhece o Silvio, né? É aquele do canhão.
O semblante de Irzubeta se iluminou diferente.
– Ah, é você? Parabéns. Ouvi dizer que você atirava com uma Krupp…
Enquanto ele falava, eu o observei.
Era alto e enxuto. Sobre a volumosa testa, manchada de sardas, os lustrosos
cabelos negros se ondulavam elegantemente. Tinha olhos cor de tabaco,
ligeiramente oblíquos, e vestia uma beca marrom adaptada a seu tamanho por
mãos pouco hábeis à costura.
Apoiou-se na quina do balcão, descasando a barba na palma da mão. Parecia
re etir.
Célebre aventura foi a do meu canhão, e me agrada recordá-la.
De uns peões de uma companhia de eletricidade eu comprei um tubo de
ferro e várias libras de chumbo. Com esses materiais fabriquei o que eu
chamava de “concubina” ou de morteiro. Procedi desta forma:
Em um molde hexagonal de madeira, forrado interiormente com barro,
introduzi o tubo de ferro. O espaço entre ambas as faces internas ia revestido
de chumbo fundido. Depois de romper o invólucro, desbastei o bloco com
uma lima grossa, xando o longo cano através de braçadeiras de latão em uma
coronha fabricada com tábuas mais grossas de um caixote de querosene.
Minha concubina era encantadora. Carregava projéteis de duas polegadas de
diâmetro, cuja carga eu colocava em sacos de barbante cheios de pólvora.
Acariciando meu pequeno monstro, eu pensava:
– Este canhão pode matar, este canhão pode destruir – e a convicção de ter
criado um perigo obediente e mortal me desatinava de alegria.
Admirada, a rapaziada da vizinhança o examinava, e isso evidenciou minha
superioridade intelectual, que desde então prevaleceu nas expedições
organizadas para ir roubar fruta ou descobrir tesouros enterrados nos
descampados que estavam pra lá do riacho Maldonado, no bairro de San José
de Flores.
No dia em que testamos, o canhão cou famoso. Entre um terreno
arborizado que havia em uma enorme estrebaria na rua Avellaneda, antes de
chegar a San Eduardo, zemos o experimento. Um círculo de adolescentes me
rodeava enquanto eu, cticiamente exaltado, carregava a espingarda pela boca.
Em seguida, para comprovar suas virtudes balísticas, direcionamos a pontaria
ao reservatório de zinco que, sobre o muro de uma carpintaria próxima, a
abastecia de água.
Emocionado, aproximei um fósforo do pavio; uma pequena chama escura
encabritou sob o sol, e de repente um estampido terrível nos envolveu em uma
nauseante neblina de fumaça branca. Por um instante permanecemos
embasbacados pela maravilha: parecia que naquele momento tínhamos
descoberto um novo continente, ou que, por magia, éramos convertidos em
donos da terra.
De repente alguém gritou:
– Mete o pé! Os tiras!
Não houve tempo material para fazer uma retirada honrosa. Dois vigilantes
se aproximavam a toda velocidade, duvidamos… e subitamente fugimos a
grandes saltos, abandonando a “concubina” ao inimigo.
Enrique disse por m:
– Cara, se você precisar de dados cientí cos para as suas coisas, eu tenho em
casa uma coleção de revistas que se chama “Ao redor do mundo” e posso te
emprestar.
Desde esse dia até a noite do grande perigo nossa amizade foi comparável a
de Orestes e Pílades.
OS TRABALHOS E OS DIAS
Como o dono da casa aumentara o aluguel, trocamos de bairro, mudando
para um sinistro casarão da rua Cuenca, na saída do bairro Floresta.
Deixei de ver Lucio e Enrique, e uma acre treva de miséria se assenhoreou
dos meus dias.
Certo entardecer, quando completei quinze anos, minha mãe disse:
– Silvio, você precisa trabalhar.
Eu, que lia um livro ao lado da mesa, levantei os olhos observando-a com
rancor. Pensei: trabalhar, sempre trabalhar. Mas não respondi.
Ela estava de pé em frente da janela. Azulada claridade crepuscular incidia
nos seus cabelos embranquecidos, no rosto amarelo, rabiscado de rugas, e me
tava obliquamente, entre desgostosa e compadecida, e eu evitava encontrar
seus olhos.
Insistiu, compreendendo a gravidade do meu silêncio.
– Você precisa trabalhar, entende? Não quis estudar. Eu não posso te
sustentar. É necessário que você trabalhe.
Ao falar, ela apenas movia os lábios, delgados como duas tabuinhas.
Escondia as mãos nos plissados do xale preto que modelava seu pequeno busto
de ombros caídos.
– Tem de trabalhar, Silvio.
– Trabalhar, trabalhar de quê? Pelo amor de Deus… O que a senhora quer
que eu faça?... que invente o emprego…? Já sabe muito bem que andei
procurando trabalho.
Falava estremecido de coragem; rancor por suas palavras teimosas, ódio à
indiferença do mundo, à miséria nossa de cada dia e, ao mesmo tempo, uma
pena inominável: a certeza da própria inutilidade.
Mas ela insistia como se fossem essas suas únicas palavras.
– De quê?… deixa ver, de quê?
Maquinalmente se aproximou da janela e, com um movimento nervoso,
ajeitou as rugas da cortina. Como se lhe custasse dizer:
– Os jornais sempre anunciam vagas…
– Sim, de lavador de pratos, peão… quer que eu seja lava-pratos?
– Não, mas você tem de trabalhar. O pouco que sobrou dá só para a Lila
terminar de estudar. Mais nada. O que você quer que eu faça?
Sob a barra da saia expôs uma botina estropiada e disse:
– Olha só essas botinas. Lila, para não gastar com livros, tem de ir todos os
dias à biblioteca. O que você quer que eu faça, lho?
Agora sua voz era de tribulação. Um sulco escuro fendia a sua testa, indo do
cenho até a raiz dos cabelos e quase tremia os lábios.
– Tudo bem, mãe, vou trabalhar.
Quanta desolação. A claridade azul martelava na alma a monotonia de toda
nossa vida, implicava hedionda, taciturna.
Ouvia-se vindo lá de fora o canto triste de uma roda de crianças:
La torre en guardia.
La torre en guardia.
La quiero conquistar.
Suspirou em voz baixa.
– O que mais queria é que você pudesse estudar.
– Estudar não serve pra nada.
– No dia que Lila se formar…
A voz era mansa, com tédio de dar pena.
Tinha se sentando junto à máquina de costura, e, no per l, abaixo da na
linha de sobrancelha, o olho era uma cova sombria com um brilho branco e
triste. Suas pobres costas encurvadas, e a claridade azul na lisura dos cabelos
deixava certa claridade de iceberg.
– Quando penso… – murmurou.
– Mãe, a senhora está triste?
– Não – respondeu.
De repente:
– Quer que eu fale com o senhor Naidath? Você pode aprender a ser
decorador. Não gosta do ofício?
– É tudo igual.
– Mas isso dá dinheiro...
Eu me senti impulsionado a me levantar, a tomá-la pelos ombros e
chacoalhá-la, gritando na orelha dela:
– Não fale de dinheiro, mãe, por favor…! Não fale… ca calada…!
Estávamos ali, imóveis de angústia. Lá fora a ciranda das crianças ainda
cantava com melodia triste:
La torre en guardia.
La torre en guardia.
La quiero conquistar.
Pensei:
– E assim é a vida, e quando eu crescer e tiver um lho, direi a ele: “Você
tem que trabalhar. Eu não posso te sustentar”. Assim é a vida. Uma rajada de
frio me sacudia na cadeira.
Agora, tando-a, observando seu corpo tão mesquinho, o meu coração se
encheu de pena.
Acreditei vê-la fora do tempo e do espaço, em uma paisagem agreste, a
planície parda e o céu metálico de tão azul. Eu era tão pequeno que nem podia
caminhar, e ela, agelada pelas sombras, angustiadíssima, caminhava à margem
dos caminhos, levando-me nos seus braços, acalentando-me os joelhos com o
peito, estreitando todo meu corpinho contra seu corpo mesquinho, e
mendigava por mim, e, enquanto me dava o peito, um calor de soluço secava a
sua boca, e de sua boca faminta ela retirava o pão para dar a minha boca, e de
suas noites, o sono para atender às minhas queixas, e com os olhos
resplandecidos, com seu corpo vestido de míseras roupas, tão pequena e tão
triste, abria-se como que um véu para acolher meu sono.
Coitada da minha mãe. Teria gostado de abraçá-la, fazê-la inclinar a
embranquecida cabeça no meu peito, pedir-lhe perdão por minhas palavras
duras, e, de repente, no prolongado silêncio que guardávamos, disse com voz
vibrante:
– Sim, vou trabalhar, mãe.
Delicadamente:
– Muito bem, lho, muito bem… – e outra vez a dor profunda selou os
nossos lábios.
Lá fora, sobre a rosada crista de um muro, resplandecia na paisagem celeste
um fúlgido tetragrama de prata.
Dom Gaetano tinha sua livraria, melhor dito, sua casa de compra e venda de
livros usados, na rua Lavalle 800, uma loja imensa, entupida de volumes até o
teto.
O lugar era mais comprido e tenebroso que o antro de Trofônio.
Seja lá aonde fosse o olhar, existiam livros: livros em mesas formadas por
tábuas em cima de cavaletes, livros nos mostradores, nos cantos, embaixo da
mesa e no porão.
Uma extensa fachada mostrava aos transeuntes o conteúdo da caverna, e nos
muros da rua pendiam volumes de histórias para imaginações vulgares, o
romance de Genoveva de Barbante e As aventuras de Mussolini. Em frente, como
em um enxame, as pessoas alvoroçavam pelo átrio de um cinema, com sua
sineta repicando incessantemente.
No mostrador, junto à porta, atendia a esposa de dom Gaetano, uma mulher
gorda e branca, de cabelo castanho e olhos admiráveis por sua expressão de
crueldade verde.
– Dom Gaetano não está?
A mulher me apontou um grandalhão que em mangas de camisa olhava lá
da porta o vai e vem das pessoas. Atava uma gravata preta ao pescoço nu, e o
cabelo encrespado sobre a testa tumultuosa deixava ver por entre seus cachos a
ponta das orelhas. Era um belo tipo, com seu vigor e sua pele morena, mas, sob
as pestanas hirsutas, os olhos grandes e de ressaca causavam descon ança.
O homem apanhou a carta na qual me recomendavam, leu-a; depois,
entregando-a para a sua esposa, cou me examinando.
Uma grande ruga fendia sua testa, e, pela atitude cautelosa e prazenteira,
adivinhava-se homem descon ado por natureza e trapaceiro, ao mesmo tempo
que meloso, de açucarada bondade ngida e de falsa indulgência em suas
cavernosas gargalhadas.
– Quer dizer que antes você trabalhou em uma livraria?
– Sim, patrão.
– E trabalhava muito, o outro?
– Bastante.
– Mas não tem tanto livro como aqui, hein?
– Ah, claro, nem a décima parte.
Depois, falou à esposa:
– E o Mosiú, ele não vem mais trabalhar?
A mulher, com tom áspero, disse:
– Assim são todos esses piolhentos. Quando matam a fome e aprendem a
trabalhar, se vão.
Disse, e apoiou o queixo na palma da mão, mostrando entre a manga da
blusa verde um pedaço do braço nu. Seus olhos cruéis se imobilizaram na rua
transitadíssima. Incessantemente, repicava a campainha do cinema, e um raio
de sol, perpassando entre os altos muros, iluminava a fachada do edifício da
Dardo Rocha.
– Quanto você quer ganhar?
– Eu não sei… o senhor que sabe.
– Bem, olha… Vou te pagar um peso e meio mais casa e comida; vai viver
melhor que um príncipe, isso sim – e o homem inclinava sua grenhuda cabeça
– aqui não tem horário… a hora de mais trabalho é das oito às onze…
– O que, às onze da noite?
– E o que mais um rapaz como você poderia querer senão estar até às onze
da noite olhando lindas moças? Mas pela manhã a gente se levanta às dez.
Recordando o conceito que Dom Gaetano merecia daquele que me
recomendara, disse:
– Tudo bem, mas, como preciso do dinheiro, vocês me pagarão todas as
semanas.
– O que, não con a na gente?
– Não, senhora, mas como em minha casa necessitam e somos pobres… a
senhora compreenderá…
A mulher voltou seu olhar ultrajante para a rua.
– Bom – prosseguiu dom Gaetano –, vem amanhã às dez ao apartamento;
vivemos na rua Esmeralda – e anotando a direção em um pedaço de papel, me
entregou.
A mulher não respondeu a minha despedida. Imóvel, a bochecha repousada
na palma da mão e o braço despido apoiado na lombada dos livros, os olhos
xos na frente da casa da Dardo Rocha, parecia o oráculo tenebroso da caverna
dos livros.
Uma sensação de nojo começou a enervar minha vida dentro daquele antro,
rodeado dessa gente que não vomitava mais que palavras de ganância ou
ferocidade. Fui contagiado pelo ódio que lhes crispava as fuças e momentos
houve em que percebi dentro do meu crânio uma neblina vermelha que se
movia com lentidão.
Certo cansaço terrível me prostrava os braços. Vezes houve em que eu quis
dormir dois dias com suas duas noites. Tinha a sensação de que meu espírito
estava se sujando, de que a lepra dessa gente me cindia a pele do espírito, para
escavar ali suas cavernas escuras. Deitava-me raivoso, levantava taciturno. O
desespero me dilatava as veias, e sentia entre meus ossos e minha pele o
crescimento de uma força antes desconhecida de meus nervos sensórios. Assim
eu permanecia horas escornado, em uma abstração dolorosa. Uma noite, dona
Maria, encolerizada, ordenou que eu limpasse a latrina porque estava
asquerosa. E obedeci sem dizer palavra. Creio que eu buscava motivos para
multiplicar em meu âmago uma nalidade obscura.
Outra noite, dom Gaetano, rindo, eu querendo sair, pôs uma mão sobre
meu estômago e outra sobre meu peito para certi car-se de que não lhe
roubasse livros, levando-os escondidos nesses lugares. Não consegui indignar-
me nem sorrir. Era necessário isso, sim, isso; era necessário que minha vida, a
vida que durante nove meses um ventre de mulher havia nutrido penosamente,
sofresse todos os ultrajes, todas as humilhações, todas as angústias.
Ali comecei a car surdo. Durante alguns meses perdi a percepção dos sons.
Um silêncio a ado, porque o silêncio pode adquirir até a forma de uma
navalha, cortava as vozes em meus ouvidos.
Não pensava. Meu entendimento se embotou em um rancor côncavo, cuja
concavidade dia a dia fazia-se mais ampla e encouraçada. Assim ia se
incubando meu rancor.
Eles me deram um sino, um chocalho. E era divertido, Deus é Pai!, ver um
pilantra da minha estatura dedicado a tão baixa tarefa. Eu me estacionava na
porta da caverna nas horas de maior trânsito na rua, e sacudia a sineta para
chamar as pessoas, para atrair a atenção das pessoas, para que as pessoas
soubessem que ali se vendiam livros, belos livros… e que as nobres histórias e
as altas belezas deviam ser negociadas com o homem dissimulado ou com a
mulher gorda e pálida. E eu sacudia o chocalho.
Muitos olhos me despiram lentamente. Vi rostos de mulheres que não
esquecerei jamais. Vi sorrisos que ainda me gritam troça nos olhos…
Ah!, é verdade que eu estava cansado… mas não está escrito: “ganharás o
pão com o suor do teu rosto”?
E esfreguei o chão, pedindo licença a deliciosas donzelas para poder passar o
trapo no lugar que elas ocupavam com seus pezinhos, e fui à compra de um
cesto enorme; levei recados… Possivelmente, se me tivessem cuspido na cara,
eu me limparia tranquilo com as costas da mão.
Caiu sobre mim uma escuridão cujo tecido se tornava espesso lentamente.
Perdi na memória os contornos dos rostos que eu havia amado com
recolhimento choroso; tive a noção de que meus dias estavam distanciados
entre longos espaços de tempo… e meus olhos se secaram para o choro.
Então repeti palavras que antes tiveram um sentido pálido em minha
experiência.
– Sofrerás – dizia para mim, sofrerás… sofrerás… sofrerás…
– Sofrerás… sofrerás…
– Sofrerás… – e a palavra caía dos meus lábios.
Assim amadureci ao longo de todo o inverno infernal.
1 Expressão que tem origem no dialeto genovês e que poderia ser traduzida como bagaceira, rameira,
mulher moralmente rebaixada. [N. de T.]
2 Expressão que tem origem no dialeto genovês e que poderia ser traduzida como seu bosta, borra botas
ou cagão. [N. de T.]
capítulo 3
O
TÍTERE RAIVOSO
Depois de lavar os pratos, de fechar as portas e abrir as espreitadeiras, eu me
recostei na cama, porque fazia frio.
Sobre a cerca, o sol avermelhava obliquamente os tijolos.
Minha mãe cosia em outro quarto, e minha irmã fazia a lição de casa. Eu
decidi ler. Sobre uma cadeira, junto à cabeceira da cama, tinha as seguintes
obras:
Virgem e mãe, de Luis de Val, Eletrotécnica, de Bahia, e um Anticristo, de
Nietzsche. A Virgem e mãe, quatro volumes de mil e oitocentas páginas cada
um, eu tomara emprestado a uma vizinha passadeira.
Já comodamente deitado, observei com displicência Virgem e mãe.
Evidentemente, hoje não me encontrava disposto à leitura do dramalhão
truculento e então, decidido, apanhei a Eletrotécnica e me pus a estudar a teoria
do campo magnético giratório.
Eu lia devagar e com satisfação. Pensava já interiorizado da complicada
explicação acerca das correntes polifásicas.
– É um sintoma de uma inteligência universal poder presentear-se com
distintas belezas, e os nomes de Ferranti e Siemens Halscke ressoavam em meus
ouvidos harmoniosamente.
Pensava:
– Eu também, algum dia, poderei dizer perante um congresso de
engenheiros: “Sim, senhores… as correntes eletromagnéticas que geram o sol
podem ser utilizadas e condensadas”. Genial, primeiro condensadas, depois
utilizadas! – diabo, como poderiam ser condensadas as correntes magnéticas do
sol?
Eu sabia, por notícias cientí cas que aparecem em distintos periódicos, que
Tesla, o mago da eletricidade, havia idealizado um condensador de raio.
Assim sonhava até o anoitecer, quando, no quarto ao lado, eu escutei a voz
da senhora Rebeca Naidath, amiga da minha mãe.
– Olá!, como vai, frau Drodman? Como vai minha lhinha?
Levantei a cabeça do livro para escutar.
A senhora Rebeca pertencia ao rito judaico. Sua alma era ruim, porque seu
corpo era pequeno. Caminhava como uma foca e esquadrinhava como uma
águia… Eu a detestava por certas rapinagens que me havia feito.
– Silvio não está aqui? Preciso falar com ele. – Em um piscar de olhos ela
estava no outro quarto.
– Olá!, como tem passado, frau, e as novidades?
– Você entende de mecânica?
– Claro… Sei umas coisas. Você não mostrou pra ela, mãe, a carta de
Ricaldoni?
Efetivamente, Ricaldoni tinha me felicitado por algumas combinações
mecânicas absurdas que eu havia idealizado em minhas horas de
vagabundagem.
A senhora Rebeca disse:
– Sim, eu a vi. Toma – passando-me um jornal em cuja página seu dedo
ornado de sujeira apontava um anúncio, comentou:
– Meu marido disse que eu viesse e te avisasse. Leia.
Com os punhos nos quadris, lançava o busto até mim. Levava um
chapeuzinho preto cujas penas des adas pendiam lamentáveis. Suas pupilas
pretas inspecionavam ironicamente o meu rosto e, vez por outra, afastando as
mãos dos quadris, coçava o nariz encurvado com os dedos.
Eu li:
“Precisa-se de aprendizes de mecânicos de aviação. Dirigir-se à Escolar Militar
de Aviação. Palomar Caseros”.
– Caramba, que linda notícia, frau, muito obrigado… Será que dá tempo de
ir hoje?
– Sim, você pega um trem pra La Paternal, diga ao guarda que vai descer em
La Paternal, toma o 88. Te deixa na porta.
– Sim, ainda hoje, Silvio, é melhor – recomendou minha mãe sorrindo
esperançosa. Coloque a gravata azul. Já está passada e eu costurei o forro.
De um salto eu me plantei no meu quarto e, enquanto me vestia, escutei a
judia que narrava com voz lamentosa uma briga com seu marido.
– Que coisa, frau Drodman! Veio bêbado, bem bêbado. Maximito não
estava, tinha ido a Quilmes pra ver um trabalho de pintura. Eu estava na
cozinha, saio lá fora, e ele me diz, punho em riste, assim:
“A comida, rápido… E o canalha do teu lho, por que não apareceu na
obra?” Que vida, frau, que vida… Vou à cozinha e rapidinho abro o gás.
Achava que se o Maximito chegasse ia acontecer um fuzuê, e eu tremia, frau.
Meu Deus. Rapidinho trago a frigideira com bife de fígado e ovos fritos na
manteiga. Porque ele não gosta de óleo. Você tinha que ver, frau, de olhos
arregalados, o nariz franzido e me diz:
“Cachorra, isto está podre”, e eram ovos frescos. Que vida, frau, que vida…!
A cama toda era ovos e manteiga. Eu corri até a porta e ele se levantou, pegou
os pratos e os jogava contra o chão. Que vida. Até a linda sopeira, lembra frau?,
até a linda sopeira se quebrou. Eu estava com medo e, como me fui, ele veio e
pum, pum, dava tremendos murros no peito… Que coisa horrível!, e me
gritou coisas que nunca, frau, tinha gritado pra mim: “Porca, quero lavar as
minhas mãos no seu sangue!”
Ouvia-se a senhora Naidath suspirar profundamente.
Os percalços da mulher me divertiam. Enquanto fazia o laço da minha
gravata, eu me imaginava sorrindo para o grandalhão do seu marido, um
polaco grisalho, com nariz de papagaio, vociferando atrás da dona Rebeca.
O senhor Josias Naidath era um hebreu mais generoso que um cossaco do
século dos Sobieski. Homem estranho. Detestava os judeus até a exasperação, e
seu antissemitismo grotesco se exteriorizava em um léxico fabuloso pelo
obsceno. Natural, seu ódio era coletivo.
Amigos especuladores o tinham enganado muitas vezes, porém não queria
convencer-se disso e, na sua casa, para desespero da senhora Rebeca, sempre se
podiam encontrar imigrantes alemães gordos e aventureiros de miserável
linhagem, que se fartavam ao redor da mesa com chucrute e salsichão, e que
riam com grossas gargalhadas, movimentando os inexpressivos olhos.
O judeu os protegia até que encontrassem trabalho, valendo-se das relações
que tinha como pintor e maçom. Alguns o roubaram; teve um calhorda que do
dia para noite desapareceu de uma casa em reforma levando consigo escadas,
tábuas e tintas.
Quando o senhor Naidath soube que o vigilante, seu protegido, tinha se
despachado dessa forma, esbravejou tanto que o ouviriam lá do céu. Parecia o
deus or enfurecido… mas não fez nada.
Sua esposa era o protótipo da judia avara e sórdida.
Recordo que quando minha irmã era menor, foi visitá-la em sua casa um
dia. Com candidez, admirava uma linda ameixeira cheia de fruta madura e,
como é lógico, a fruta apetecia e lhe pedia com palavras tímidas.
Então a senhora Rebeca a repreendeu:
– Filhinha… Se você está com vontade de comer ameixa, pode comprar
todas que quiser no mercado.
– Sirva-se o chá, senhora Naidath.
A judia continuava narrando lamentosamente:
– Depois gritava comigo, e todos os vizinhos ouviam, frau; gritava comigo:
“Filha de açougueiro judeu, judia porca, protetora do teu lho”. Como se ele
não fosse judeu, como se Maximito não fosse seu lho.
Efetivamente, a senhora Naidath e o bruto do Maximito se entendiam
admiravelmente para enganar o maçom e lhe surrupiar dinheiro que gastavam
com besteiras, cumplicidade da qual tinha conhecimento o senhor Naidath, e
que de imaginá-la apenas servia para tirá-lo dos eixos.
Maximito, origem de tantas desavenças, era um mané de vinte e oito anos,
que se envergonhava de ser judeu e ter a pro ssão de pintor.
Para dissimular sua condição de peão de obra, vestia-se como um senhor,
ostentava óculos, e à noite, antes de deitar-se, untava as mãos com glicerina.
De suas presepadas, eu conhecia algumas saborosíssimas.
Certa vez recebeu clandestinamente um dinheiro devido por um hoteleiro a
seu pai. Tinha à época vinte anos e, sentindo-se com aptidões de músico,
investiu o montante em uma harpa magní ca e dourada. Maximito explicou,
por sugestão de sua mãe, que havia ganhado uns pesos na quina da loteria, e o
senhor Naidath não disse nada, mas, cismado, olhou com o rabo do olho a
harpa, e os culpados tremeram como Adão e Eva no paraíso quando
observados por Jeová.
Passaram-se os dias. Enquanto isso, Maximito tangia a harpa, e a velha judia
se regozijava. Estas coisas costumam acontecer. A senhora Rebeca dizia a suas
amizades que Maximito tinha grandes condições de ser harpista, e as pessoas,
depois de admirar a harpa em um canto na sala, diziam que sim.
Mas o senhor Josias, pese a sua generosidade, era um homem muitas vezes
prudente e entendeu, de repente, por meio de que trapaça era dono da harpa o
magnânimo Maximito.
Nesta conjuntura, o senhor Naidath, que tinha uma força espantosa, esteve à
altura das circunstâncias, e como recomenda o salmista, falou pouco e fez
muito.
Era sábado, mas o senhor Josias, que dava a mínima para o preceito
mosaico, a título de prólogo, meteu dois pontapés no traseiro da sua mulher,
agarrou Maximito pelo pescoço e, depois de tirar-lhe o couro, conduziu-o até a
porta da rua, e aos vizinhos que, em mangas de camisa, se divertiam
imensamente com o barraco, arremessou-lhes a harpa através da janela na
direção das cabeças.
Isso ameniza a vida, e por isso as pessoas diziam do judeu:
– Ah!, o senhor Naidath… é uma ótima pessoa.
Terminando de me arrumar, saí.
– Bem, até logo, frau, lembranças minhas a seu esposo e a Maximito.
– Não vai agradecer a ela? – interrompeu minha mãe.
– Já agradeci antes.
A hebreia levantou seus olhinhos invejosos das rabanadas de pão untadas
como manteiga e com frouxidão me estendeu as mãos. Já reagiam nela os
desejos de me ver fracassado em minhas gestões.
Entrada a noite, cheguei a Palomar.
Ao perguntar por ele, um velho que fumava sentando em um embrulho, sob
o farol da estação, com um gasto mínimo de gestos, indicou-me o caminho
entre as trevas.
Compreendi que me dava com um indiferente; não quis abusar de sua
parcimônia, sabendo quase tanto quanto antes de interrogá-lo, agradeci e
empreendi caminho.
Então o velho me gritou:
– Diz aí, menino, você não tem dez centavos?
Pensei em não bene ciá-lo, mas, re etindo rapidamente, disse a mim
mesmo que se Deus existisse poderia ajudar-me em minha empresa como eu
fazia com o velho e, não sem secreta pena, me aproximei para lhe entregar uma
moeda.
Então o maltrapilho foi mais explícito. Abandonou o pacote e, com um
braço trêmulo estendido na direção da escuridão, apontou:
– Veja, menino… siga retinho, retinho e à esquerda está o cassino dos
o ciais.
Caminhava.
O vento remexia as folhagens ressecadas dos eucaliptos e, perpassando os
troncos e os altos os do telégrafo, assoviava ululante.
Atravessando o caminho lodoso, apalpando os arames das cercas, e indo
mais rápido quando permitia a dureza do terreno, cheguei ao edifício que o
velho descrevera à esquerda, com o nome de Cassino.
Indeciso, parei. Deveria chamar? Atrás das varandas do sobrado, diante da
porta, não havia nenhum soldado de guarda.
Subi três degraus, e audazmente – assim pensava então – me meti em um
estreito corredor de madeira, material de que estava construído todo o edifício,
e me detive em frente à porta de uma oblonga sala, cujo centro ocupava uma
mesa.
Ao redor dela, três o ciais, um escornado em um sofá junto ao trinchante,
outro de cotovelos na mesa, e um terceiro com os pés no ar, pois apoiava as
costas da cadeira na parede, conversavam com displicência em frente a cinco
garrafas de cores distintas.
– O que o senhor deseja?
–Vim apresentar-me, senhor, pelo edital.
– Já se preencheram as vagas.
Objetei sumamente tranquilo, com uma serenidade que me nascia da pouca
sorte:
– Caramba, é uma pena, porque eu sou meio inventor, teria me encontrado
em meu ambiente.
– E o que o senhor já inventou? Vá entrando, sente-se – falou um capitão
aprumando-se no sofá.
Respondi sem mudar de rosto:
– Um sinalizador automático de estrelas cadentes, e uma máquina de
escrever em caracteres de imprensa aquilo que a ela é ditado. Tenho aqui uma
carta de felicitação a mim dirigida pelo físico Ricaldoni.
Isso não deixava de ser curioso para os três o ciais entediados, e de repente
compreendi que lhes tinha interessado.
– Vamos ver, sente-se – indicou para mim um dos tenentes examinando
minha catadura dos pés a cabeça –. Explique para nós seus famosos inventos.
Como se chamava?
– Sinalizador automático de estrelas cadentes, senhor o cial.
Apoiei meus braços na mesa e olhei, com olhar que parecia investigador, os
semblantes de linhas duras e olhos inquisidores, três rostos curtidos de homens
dominadores, que me observavam entre curiosos e irônicos. E naquele instante,
antes de falar, pensei nos heróis das minhas leituras prediletas e a catadura de
Rocambole, do Rocambole com chapéu de viseira de tule e sorriso canalha na
boca torta, passou pelos meus olhos me incitando à atitude heroica.
Reconfortado, certíssimo de não incorrer em erros, eu disse:
– Senhores o ciais: os senhores saberão que o selênio conduz a corrente
elétrica quando iluminado; na escuridão se comporta como isolante. O
sinalizador não consistia nada mais que em uma célula de selênio, conectada
com um eletroímã. A passagem de uma estrela pelo retículo de selênio seria
marcada por um sinal, já que a claridade do meteoro, concentrada por uma
lente côncava, poria o selênio em condições de condutor.
– Muito bem. E a máquina de escrever?
– A teoria é a seguinte. No telefone, o som é convertido em uma onda
eletromagnética.
“Se medirmos com um galvanômetro de tangente a intensidade elétrica
produzida por cada vogal e consoante, podemos calcular o número de amperes-
volta necessário para fabricar um teclado magnético, que responderá à
intensidade da corrente de cada vogal”.
O cenho do tenente se acentuou.
– A ideia não é ruim, porém o senhor não leva em conta a di culdade de
criar eletroímãs que respondam a alterações elétricas tão ín mas, e isso sem
contar as variações do timbre de voz, o magnetismo remanescente; outro
problema muito sério e, talvez, pior, é que as correntes se distribuam por si
mesmas nos eletroímãs correspondentes. Mas o senhor tem aí a carta de
Ricaldoni?
O tenente se inclinou sobre ela; depois, entregando-a a outro dos o ciais,
me disse:
– O senhor percebe? Os inconvenientes que eu lhe postulo também são
assinalados por Ricaldoni. Sua ideia, em princípio, é muito interessante. Eu
conheço o Ricaldoni. Foi meu professor. O homem é um sábio.
– Sim, baixinho, gordo, bastante gordo.
– Aceitaria um vermute? – ofereceu para mim o capitão sorrindo.
– Muito obrigado, senhor. Não bebo.
– E de mecânica, o senhor sabe algo?
– Alguma coisa. Cinemática… Dinâmica… Motores a vapor e a explosão;
também conheço os motores a óleo cru. Além disso, estudei química e
explosivos, que são coisas interessantes.
– Também. E o que o senhor sabe de explosivos?
– Pergunte-me o senhor – repliquei sorrindo.
– Bem, vejamos, o que são fulminatos?
Aquilo adquiria ares de um exame, e bancando uma de erudito, respondi:
– O Capitão Cundill, em seu Dicionário de explosivos, diz que os fulminatos
são sais metálicos de um ácido hipotético chamado fulminato de hidrogênio. E
são simples ou duplos.
– Vamos ver, vamos ver: um fulminato duplo.
– O de cobre, que são cristais verdes e produzidos fazendo ferver o
fulminato de mercúrio, que é simples, com água e cobre.
– É notável o que sabe esse rapaz. Qual a sua idade?
– Dezesseis anos, senhor.
– Dezesseis anos?
– Percebe, capitão? Este jovem tem um grande futuro. O que você acha de
falarmos com o capitão Márquez? Seria uma pena se ele não pudesse ingressar.
– Indiscutivelmente – e o o cial do corpo de engenheiros se dirigiu a mim.
– Mas onde diabos o senhor estudou todas essas coisas?
– Em todas as partes, senhor. Por exemplo: estou andando pelas ruas e vejo
em uma casa de mecânica uma máquina que não conheço. Eu paro, e digo pra
mim estudando as diferentes partes do que olho: isto deve funcionar assim e
assim e deve servir pra tal coisa. Depois que z minhas deduções, entro na loja
e pergunto, e acredite em mim, senhor, raramente me equivoco. Além do mais,
tenho uma biblioteca regular e, se não estudo mecânica, estudo literatura.
– O quê? – interrompeu o capitão –, também literatura?
– Sim, senhor, e tenho os melhores autores: Baudelaire, Dostoievski, Baroja.
– Ei, não será um anarquista este aí?
– Não, senhor capitão. Não sou anarquista. Mas eu gosto de estudar, de ler.
– E o que seu pai pensa de tudo isso?
– Meu pai se matou quando eu era muito pequeno.
Subitamente, calaram-se. Olhando-me, os três o ciais se taram.
Lá fora assoviava o vento, e em meu rosto se acentuou ainda mais o sinal de
atenção.
O capitão se levantou e eu o imitei.
– Olhe, amiguinho, eu o felicito, venha amanhã. Esta noite tratarei de ver o
capitão Márquez, porque o senhor merece. É disso que necessita o exército
argentino. Jovens que queiram estudar.
– Obrigado, senhor.
– Amanhã, se quiser me ver, vou atendê-lo com o maior gosto. Pergunte
pelo capitão Bossi.
Explodindo de imensa alegria, me despedi.
Agora atravessava as trevas, saltava os alambrados, estremecido de uma
coragem sonora.
Mais que nunca se a rmava a convicção do destino grandioso a cumprir-se
em minha existência. Eu poderia ser um engenheiro como Edison, um general
como Napoleão, um poeta como Baudelaire, um demônio como Rocambole.
Eu me sentia no sétimo céu. Pelo elogio dos homens, eu gozei noites
estupendas, que o sangue, em uma multidão de alegrias, atropelava o meu
coração, e eu acreditava, semelhante a um símbolo de juventude, cruzar os
caminhos da terra sobre as costas de meu povo de alegrias.
JUDAS ISCARIOTES
Monti era um homem ativo e nobre, excitável como um espadachim, enxuto
como um dalgo. Seu olhar penetrante não desmentia o irônico sorriso do
lábio, no, sombreado por sedosos os de bigode negro. Quando se
encolerizava, as maçãs do seu rosto avermelhavam, e seu lábio tremia até o
queixo escavado.
O escritório e depósito de papel do seu negócio eram três cômodos que
alugava de um judeu peleteiro, e separado dos fétidos fundos da loja do hebreu
por um corredor sempre cheio de pirralhos ruivos e amundiçados.
O primeiro cômodo era algo assim como um escritório e mostruário de
papel no. Suas janelas davam para a rua Rivadavia, e os transeuntes, ao passar
desde a calçada, viam corretamente alinhadas em um ambiente de madeira
resmas de papel salmão, verde, azul e vermelho, rolos de papel impermeável,
rajado e duro, blocos de papel de seda e do assim chamado papel-manteiga,
cubos de etiquetas com ores policromadas, maços de papel oreado, de
superfície rugosa e estampas de vasos decorados.
Na parede azulada, uma estampa do golfo de Nápoles realçava o esmalte azul
do mar imóvel na costa parda, semeada de quadrinhos brancos: as casas.
Ali, quando Monti estava de bom humor, cantava com limpa e entoada voz.
“A maré chiaro che se de una puesta”.
Eu gostava de escutá-lo. Ele o fazia com sentimento; compreendia-se que,
cantando, evocava os recantos e os momentos de devaneio transcorridos em sua
pátria.
Quando Monti me aceitou como vendedor por comissão, entregando-me
um mostruário de papéis classi cados por sua qualidade e preço, disse:
– Bom, agora vá vender. Cada quilo de papel são três centavos de comissão.
Princípio duro! Recordo que durante uma semana eu caminhei seis horas
por dia inutilmente. Aquilo era inverossímil. Não vendi um quilo de papel em
um trajeto de quarenta e cinco léguas. Desesperado, eu entrava em hortifrútis,
quitandas e armazéns, rodava os mercados, fazia antessala a farmacêuticos e
açougueiros, mas inutilmente.
Alguns me mandavam o mais cortesmente possível para o diabo, outros
diziam para voltar na semana que vem, outros arguiam: “Eu já tenho
fornecedor que há tempos me serve”, outros não me atendiam, alguns
argumentavam que a minha mercadoria era excessivamente cara, vários, que era
ordinária demais, e, alguns raros, na demais.
Ao meio-dia, de volta ao escritório do Monti, eu me deixava cair em uma
pilastra formada de resmas de papel e permanecia em silêncio, estonteado de
cansaço e desalento.
Mario, outro vendedor, um folgado de dezesseis anos, sorte de varapau, todo
ele pernas e braços, debochava das minhas estéreis diligências.
Era um trapalhão o tal do Mario! Parecia um poste de telégrafo rematado em
uma cabeça pequena, coberta de uma fabulosa mata de cabelos crespos.
Caminhava a trancos enormes, com uma pasta de couro vermelho embaixo do
braço. Quando chegava ao escritório, jogava a pasta em um canto e tirava o
chapéu, um chapéu-coco tão untado de gordura que com ele se poderia
lubri car o eixo de um carro. Vendia endiabradamente e sempre estava alegre.
Folheando uma caderneta ensebada ele lia em voz alta a longa lista de
pedidos recolhidos e, dilatando sua boca de baleote, ria-se até mostrar o fundo
vermelho da garganta e duas leiras de dentes salientes.
Para simular que a alegria fazia doer seu estômago, acolhia-o com ambas as
mãos.
Por cima do gaveteiro da escrivaninha, Monti nos observava sorrindo,
irônico. Abarcava sua ampla testa com a mão, esfregava-se nos olhos como que
dissipando preocupações e nos dizia depois:
– Não é pra desanimar, diávolo. Quer ser inventor e não sabe vender um
quilo de papel. – Depois indicava: – É preciso ser perseverante. Todo tipo de
comércio é assim. Até que fulano não te conheça não tem trato. Em um
negócio te dizem que já tem. Não importa. É preciso voltar até que o
comerciante se acostume a te ver e acabe por comprar. E sempre “gentile”,
porque é assim, – e mudando de conversa, acrescentava: – Venha tomar café
esta tarde. Conversaremos um pouco.
1 Diz-se de partidário da acracia, termo de étimo grego usado para reivindicar a supressão de toda
autoridade e do Estado. No contexto de início do século XX, esteve presente no léxico dos anarquistas
italianos e espanhóis, logo, recorrente em cidades como Buenos Aires e São Paulo. [N. de T.]
2 Arlt usa aqui o pretérito do verbo “tra car” que, em espanhol, articula polifonicamente os sentidos
tanto daquele que pratica o ato de comercializar ilegalmente quanto daquele que se desloca de um lugar
para o outro. Optei, aqui, pelo campo semântico espacial em detrimento do comercial, uma vez que a
apreensão da paisagem descrita, uma paisagem suburbana, implica um distanciamento geográ co do
centro urbanizado de Buenos Aires em relação às zonas periféricas àquela época, implicando, portanto,
uma borda membranosa entre o campo e a cidade. [N. de T.]
3 Menção ao deus romano Mercúrio. Em alguns casos – o que não vem a ser exatamente o do contexto
acima – o adjetivo mercurial expressa temperamento explosivo, energia desmesurada. Já em outros, o
adjetivo designa algo errático, volátil ou instável, de voos rápidos e passagem abrupta entre um ponto e
outro. Ora associado ao deus grego Hermes, Mercúrio é um mensageiro de índole eólica, hábil em levar e
trazer mensagens, ora tomado ao contexto romano, está vinculado à palavra latina merx, de onde deriva
mercadoria, mercador, o comércio em última instância. Daí, como no contexto acima, denota o traquejo
daquele cuja tarefa é negociar astutamente com os outros. [N. de T.]
4 De milonga, tipo de canção (às vezes considerada precursora do tango-canção, às vezes tida como uma
derivação deste) e baile, bem como designação da festa popular onde é executado e dançado esse tipo de
música característico da região em torno da bacia do Rio da Prata, Buenos Aires e Montevidéu. O
milonguero, assim como o guapo, é um emblema da referida manifestação cultural. Via de regra, ganha
conotações pejorativas, caricaturais, ou seja, indivíduos avivados, algo pícaros, dados a pequenas trapaças
a m de ganhar a vida. Em possível analogia com o samba brasileiro, haveria correspondência entre o
malandro, o guapo e ou o milonguero, tipos sociais que representam um conjunto dos hábitos e traços
comportamentais de um povo. [N. de T.]
5 O termo garrón é um lunfardismo, ou seja, uma idiossincrasia lexical do espanhol criollo, sobretudo rio-
pratense, fartamente presente nas letras de tangos e milongas. No contexto acima, diz respeito ao gozo
obtido pelo cafetão, em última instância, pelo indivíduo que tem a vida custeada pelo dinheiro ganho
pela mulher que trabalha como prostituta, assim desfrutando gratuitamente de um prazer pelo qual
outros teriam de pagar. Há, atualmente, uma derivação da expressão em questão (¡Qué garrón!), algo que
dá polissemia ao uso original, podendo, de acordo com o caso, conotar sentido contrário ao
anteriormente referido, por exemplo, algo na ordem do brochante, en m, do que é entristecedor,
desestimulante ou de má sorte. [N. de T.]
6 O Almanaque de Gotha, publicado em alemão pelo duque Friedrich III da região de Saxe-Gotha-
Altemburgo a partir de 1763, mas logo traduzido e difundido na França, foi o guia de referência da alta
nobreza e das famílias reais europeias até meados do século XX. [N. de T.]
7 Tenho uma alcova a mais, “ca fa”/ onde sempre é boa hora/ e que eu aluguei/ e que eu aluguei/ para
que transe ela, ora.
Apêndice
O POETA
DO BAIRRO*
Juan disparou a rir.
– Eu não entendo dessas coisas… diz pra mim, quer vir comigo ver um
poeta? Tem dois ou três livros publicados e, como sou secretário de uma
biblioteca, estou encarregado de enchê-la de livros. Portanto, visitamos todos
os escritores. Quer vir? Vamos essa noite.
– Como ele se chama?
– Alejandro Villac. Tem um livro, A caverna das musas, e outro, O colar de
veludo.
– E que tal são esse versos?
1
– Eu não li. Ele publica na revista Caras y Caretas .
Ah, se publica em Caras y Caretas, deve ser um bom poeta.
2
– E publicaram um retrato dele na revista El Hogar! – eu repeti,
assombrado; – mas então não é um poeta qualquer. Se publicaram um retrato
dele na El Hogar… caramba… pra publicar na Caras y Caretas e ter um retrato
na El Hogar… vamos lá esta noite mesmo; – e tomado de um súbito temor –
mas, será que ele vai nos receber?… Porque pra ser publicado um retrato dele
na El Hogar!
– Bom; claro que nos vai receber. Eu levo uma carta do bibliotecário. Então
você vem me buscar esta noite? Ah, espera aí que eu vou trazer pra você Electra
e Città Morta.
Quando nos separamos, eu não pensava nos livros, nem no emprego, nem
na sincera generosidade de Juan, o magní co; pensava emocionado no autor de
A caverna das musas, no poeta que publicava na Caras y Caretas e cujo retrato
exibira gloriosamente a revista El Hogar.
O poeta morava a três quarteirões da rua Rivadavia, em uma ruela sem
calçamento, com lampiões a gás, calçadas desniveladas, árvores seculares e
casinhas enfeitadas de jardins insigni cantes e agradáveis, quer dizer, em uma
dessas tantas ruas que, nos subúrbios portenhos, têm a virtude de nos fazer
lembrar de um campo de ilusão e que constituem o encanto da vizinhança de
Flores.
Como Juan não conhecia exatamente o endereço do autor de A caverna das
musas, tivemos que pedir informação no bairro, e nos orientou uma menina
apoiada na pilastra de um jardim.
– É a casa do poeta a que vocês estão procurando, não é, do senhor Villac?
– É, sim, senhorita; de quem foi publicado o retrato na El Hogar.
– Então é ele mesmo. Estão vendo a casinha de fachada branca?
– Aquela com a árvore caída?…
– Não, a outra; essa antes da esquina, a de portão de grade.
– Ah, sim, sim!
– O senhor Villac mora ali.
– Muito obrigado, e, cumprimentando-a, nós nos retiramos.
Juan mantinha o sorriso acético. Por quê? Ainda não sei. Sempre sorria
assim, entre incrédulo e triste.
Eu me sentia emocionado; percebia nitidamente a pulsação das minhas
veias. Não era pra menos. Dentro de poucos minutos eu me encontraria frente
a frente com o poeta de quem haviam publicado o retrato na El Hogar e,
apressadamente, imaginava uma frase sutil e elogiosa que me permitisse
congraçar com o vate.
Resmunguei:
– Será que ele nos receberá?
Como tínhamos chegado à porta, Juan, por toda resposta, se limitou a bater
fortemente a palma de suas mãos, o que me pareceu uma irreverência. O que
diria o poeta? Só um cobrador mal-humorado chamaria dessa forma.
Escutou-se o roçar de solas no piso, na escuridão a criada atropelou um vaso,
depois se desenhou a forma branca a cujas perguntas Juan respondeu
entregando a carta.
Enquanto aguardávamos, ouviam-se ruídos de pratos na sala de jantar.
– Entrem; o senhor vem em seguida. Está terminando de jantar. Passem por
aqui. Tomem assento.
Ficamos sozinhos na sala iluminada.
Diante da janela acortinada, um piano coberto com uma capa branca.
Ocupavam os quatro cantos do cômodo esbeltas coluninhas, de onde as
begônias, em vasos de cobre, exibiam suas folhas estriadas de veias vinosas.
Sobre a escrivaninha, decorada por porta-retratos, via-se, em poético
abandono, uma folha onde estava escrito o começo de um poema, e uma
porção de partituras musicais esquecidas em certo tamborete cor-de-rosa.
Havia também quadrinhos e delicadas quinquilharias que, nos cantos, em cima
dos móveis, pendendo do lustre, testemunhavam a diligência de uma esposa
prudente. Através dos vidros de uma biblioteca de mogno, as lombadas de
couro das encadernações duplicavam com seus títulos em letras de ouro o
prestígio do conteúdo.
Eu, que xeretava os retratos – disse:
– Olha, uma fotogra a de Usandivaras, e com dedicatória.
– Juan comentou debochadamente.
– Usandivaras… se não me engano, Usandivaras é um mané que escreve
versos pampeiros… algo assim como Betinotti, mas com muito menos talento.
Vamos ver… vamos ver… José M. Braña.
– Esse é um poeta tosco. Escreve com ferraduras.
No corredor, escutamos os passos do vate que publicava em Caras y Caretas.
Nós nos levantamos emocionados quando o homem apareceu.
Alto, romântica cabeleira, nariz aquilino, bigode espesso, negríssima pupila.
Nós nos apresentamos e, cordialmente, indicou as poltronas.
– Tomem assento, jovens… Quer dizer que os senhores vêm designados pelo
centro Florencio Sánchez?
– Sim, senhor Villac, e se o senhor não tem nenhum…
– Nada, nada, com o maior prazer… Gostariam de tomar uma xícara de
café?
Direcionou-se ao corredor e, em seguida, já estava conosco.
– Jantamos tarde, porque o escritório, as ocupações…
– Certamente…
– Efetivamente, as exigências da vida. E conversando enquanto saboreava o
café na sua xicarazinha, com simplicidade encantadora, o poeta disse:
– São agradáveis essas solicitudes. Não deixam de ser um estímulo para o
trabalhador honrado. Já recebi várias da mesma índole, e sempre trato de
satisfazê-las. Não se incomode, jovem… está bem assim – acomodando a xícara
na bandeja. – Como eu lhes dizia, na semana passada recebi uma carta de uma
dama argentina residente em Londres. Vejam vocês que e Times lhe pedia
informações acerca de minha obra aplaudida em jornais argentinos.
– O senhor publicou O colar de veludo e A caverna das musas?
– Há também outro volume; foi o primeiro. Chama-se De meus vergéis, mas,
naturalmente, uma obra com defeitos… à época eu tinha dezenove anos.
– Tanto quanto sei, a crítica tem se ocupado muito do senhor.
– Sim, disso eu não me queixo. Principalmente A caverna das musas foi bem
acolhida… Dizia um crítico que eu uno à simplicidade de Evaristo Carriego o
patriotismo de Guido y Spano… e eu não me queixo… faço o que posso – e,
com magno gesto, desviou o cabelo das têmporas até as orelhas.
– E os senhores, não escrevem?
– O senhor – disse Juan.
– Prosa ou verso?
– Prosa.
– Fico feliz, co feliz… Se precisar de alguma recomendação… Traga algo
que eu possa ler… Se quiserem me visitar aos domingos pela manhã, faríamos
uma pequena caminhada até o Parque Olivera. Eu costumo escrever lá. A
natureza ajuda tanto.
– Como não? Obrigado; vamos aproveitar seu convite.
Juan, vendo o diálogo empalidecer, perguntou, mentindo:
– Se não me engano, senhor Villac, li um soneto seu no La Patria degli
Italiani. O senhor escreve também em italiano?
– Não, é possível que o tenham traduzido; não teria nada de surpreendente
nisso.
Juan insistiu:
– De qualquer modo, vou ver se encontro esse número e envio para o
senhor. Belo idioma, não é verdade, senhor Villac.
– Efetivamente, sonoro, grandiloquente…
– Eu, com candidez, perguntei:
– E ao senhor, Villac, quem o emociona mais, Carducci ou D’Annunzio?
– Como romancista, Manzoni… hein? Mais vida, não é verdade? Lembra o
Ricardo Gutiérrez.
– Sim, é verdade; mais vida – replicou Juan, tando-o quase assombrado.
– Aliás, Carducci… o que eu posso te dizer… Carducci… hein, os senhores
não acham… o que é que eu posso dizer… sinceramente… há poucos poetas
que me agradam tanto como Evaristo Carriego, essa simplicidade, aquela
emoção daquela costureirinha que deu mau passo… esse sonetos… talvez seja
por eu ser sonetista e
“O soneto é uma lira de bras de ouro”
“Uma caixa…”
– Certamente, – observou Juan, impassível. – Certamente, me dei conta de
que a crítica aplaude muito o senhor como sonetista.
– “Uma caixa de encantos”
eu escrevi outra vez na Caras y Caretas… e não me equivoquei. Nosso século
prefere o soneto, como em um estudo indi…
A entrada da criada com um pacote que continha A caverna das musas e
outros volumes interrompeu suas palavras e, desgraçadamente, não pudemos
saber o que indicava em seu estudo o homem do retrato na El Hogar.
Para não pecarmos por indiscrição, nós nos levantamos, e acompanhados até
o umbral da porta nos despedimos efusivamente do sonetista. Eu prometi
voltar.
Quando passamos na frente da casa de nossa informante, a menina ainda
estava na porta. Com voz tímida, perguntou:
– Encontraram o senhor…?
– Sim, senhorita… obrigado…
– Não é mesmo talentoso?
– Oh!… – disse Juan – um talento extraordinário. Veja que até o Times se
interessa em saber quem ele é.
Notas
* Este texto apareceu no segundo ano da primeira revista Proa (número 10, maio de 1925, p. 34-43), de
cujo editor, o escritor Ricardo Güiraldes, Roberto Arlt foi secretário de redação. Dava-se, ali, como prévia
do primeiro romance de Arlt, seguido da seguinte inscrição: “Capítulo de la novela Vida Puerca que
aparecerá próximamente”. Quando o romance é nalmente publicado, em 1926, após receber o prêmio
literário da editora Latina que implicava a sua publicação pela mesma editora, o capítulo em questão
havia sido excluído. Também o título original do romance, Vida puerca, fora alterado para El juguete
rabioso, sugestão de Güiraldes. Dois meses antes de ser publicado o capítulo excluído da edição nal,
outro capítulo do que viria a ser o primeiro romance de Arlt já havia aparecido na mesma revista Proa,
precisamente no número 8 de março de 1925, p. 28-39. Chamou-se esse capítulo inaugural de “El Rengo”
e, como é de se supor, trata-se do trecho em que Astier vai à feira de Flores à procura do Manco, capítulo
nal. Esse texto, sim, foi mantido quando o livro é publicado pela editora Latina. Cabe esclarecer que o
capítulo-apêndice que vai acima já foi apresentando na edição a cargo de Ricardo Piglia para a editora
Espasa Calpe, na Colección Austral, Biblioteca de Literatura Hispano-americana. Essa edição, contudo,
traz uma imprecisão ao localizar a aparição do texto “El poeta parroquial” na revista Proa de março de
1925, mês correspondente ao número 8 da revista de Güiraldes e que, como já foi dito, corresponderia à
publicação do capítulo “El Rengo”, e não de “El poeta parroquial” que apareceu em maio de 1925, no
número 10 da revista aludida. [N. de T.]
1Caras y Caretas – revista de variedades da vida cotidiana muito popular na Argentina àquela época, de
circulação massiva. Apresentou uma seção destinada a publicações literárias. Teve vasto alcance de leitores
nas camadas populares. [N. de T.]
2 Revista semanal, voltada para assuntos domésticos de ordem pequeno-burguesa; assim como Caras y
Caretas, reservava uma seção de assuntos literários onde, por exemplo, aparecem os primeiros ensaios do
escritor Jorge Luis Borges, bem como contos de Güiraldes e também alguns textos do próprio Arlt. No
caso de Borges, é vasta a sua produção nas páginas da revista El Hogar, devidamente publicada na década
de 1980 sob a forma de livro, em uma edição cuidada pelo crítico uruguaio Emir Rodriguez Monegal, e
atualmente integrada ao quarto volume das Obras completas, seção ali designada como “Textos cativos”.
[N. de T.]
Posfácio
Procuro um poema que não encontro, o poema de um corpo a quem o desespero povoou subitamente em
sua carne, de mil bocas grandiosas, de dois mil lábios gritadores.
Aos meus ouvidos chegam vozes distantes, resplendores pirotécnicos, porém estou aqui, sozinho, condenado
a minha terra de miséria, preso por nove cravos.
1
Roberto Arlt
E é por isso que ele vai celebrar a Vida, com maiúscula no original, ainda
(ou exatamente por) que seja porca, apesar de (ou exatamente por) ser
hedionda, para além do bem e do mal, uma ética da transvaloração e,
consequentemente, do desmantelamento do maniqueísmo característico da
época trágica em que o mundo cristão ainda não fora abandonado por Deus,
bem como do idílio clássico de Gaia. Os dois solilóquios nais de A vida porca,
nesse sentido, são reveladores de todo o esvaziamento da causalidade no trágico
moderno em que se descarta a salvação divina como alternativa ao fracasso
humano:
Algumas vezes na noite. – Piedade, quem terá piedade de nós?
Sobre esta terra quem terá piedade de nós. Míseros, não temos um Deus diante de quem nos
prostrar, e toda nossa pobre vida chora.
Diante de quem eu me prostrarei, a quem falarei de meus espinhos e de minhas duras sarças, desta
dor que surgiu na tarde ardente e que ainda é por mim?
Quão pequeninos somos, e a mãe terra não nos quis em seus braços e hei-nos aqui acerbos,
desmantelados de impotência.
Por que não sabemos de nosso Deus?
Oh! Se Ele viesse em um entardecer e, suavemente, abarcasse com suas mãos as nossas duas
têmporas.
O que mais lhe poderíamos pedir? Passaríamos a andar com seu sorriso aberto na pupila e com
lágrimas suspensas nos cílios.
(…)
Devagar, desenroscou-se outra voz no meu ouvido:
– Canalha… você é um canalha.
(…)
– “Se eu não tenho culpa”.
– Canalha… você é um canalha…
– “Se eu não tenho culpa”.
– Ah, canalha!… canalha…
– Não me importa… e serei fascinante como Judas Iscariotes.
Carregarei uma pena por toda a vida… uma pena… A angústia abrirá meus olhos a grandes
horizontes espirituais… mas pra que tanta bronca? Eu não tenho direito…? Logo eu?… E serei
fascinante como Judas Iscariotes… e pela vida toda eu carregarei uma pena… mas… ah!, é linda a
13
vida, Manco… é linda… (Arlt, 1995, p. 118-126).
Arlt até pode ter algo de um realista tardio em sua quaestio narrativa. Porém,
é ativamente modernista naquilo que respeita o plano de composição literária.
Trata-se, portanto, de um escritor com as características dos demais escritores
que iniciam a criação estética do século XX. É por isso que a sua obra escapa
completamente à obsoleta oposição entre os grupos de Boedo (os escritores à
época publicados pela editora Claridad cujas obras se ocuparam de denunciar
as mazelas sociais, sacri cando, muitas vezes, o experimentalismo e a
autonomia do campo literário) e Florida (a vanguarda modernista publicada
pela revista Martín Fierro e pela revista e editora Proa).
A dicção imigrante em
“A vida porca”
Para Arlt, a língua nacional é o lugar onde convivem e se enfrentam distintas linguagens, com seus registros
e seus tons.
14
Ricardo Piglia
Quero elogiar o bandoneon suburbano; o fole desencantado de três teclas e torto de tanto ser manuseado;
quero elogiar o bandoneon que canta, nas noites do cortiço enluarado, a tristeza dos feios e a penúria das
moças prendadas; quero elogiar, no bandoneon, toda a angustiosa bronca de Cuando llora la milonga, e a
alma do subúrbio, subindo na ponta das sonoridades até as estrelas que piscam sobre os barracões de zinco
de Nueva Pompeya, de Mataderos, da baixada de Belgrano e Villa Luro. Quero elogiar no bandoneon
arrabalero toda a bronca (…); do tango cujos diques são nossos diques e que é a válvula de escape da
penúria desta cidade…
(…) Bandoneon, única escapatória, válvula absoluta por onde estoura o cansaço, a esperança, os desejos, a
luxúria, o amor tímido, a carícia apaixonada, o rancor trapaceiro, a punhalada vil, o tiro viril dos
homens que não têm nenhum idioma, a não ser o idílio do fole: das sonoridades que saem cheias de
nostalgia de um país melhor…
(…) Soa na noite, e até os cães deixam de discutir à distancia com seus ladridos. Se havia furdunço no
botequim da esquina, o barulho se acalma; se aquele que toca é conhecido dos truqueiros, baixam as cartas
e, silenciosamente, entram no pátio do milongueiro e, de repente, pouco importa que sejam réus, ladrões,
assaltantes ou assassinos. O que importa isso! Ao redor daquele que toca se forma uma roda… O que
importa tudo isso! Das almas que escutam, cada uma viaja pelo país que o destino lhes negou.
Roberto Arlt19
Disse que a tarefa dos leitores do texto arltiano é encontrar uma posição à
escuta das multiplicidades de vozes elocutórias, o con ito representativo da
dicção tomada àqueles homens e àquelas mulheres que habitam a língua
através do desterro. Não é diferente a tarefa do tradutor arltiano. A ela apenas
se acresce uma renúncia: não eliminar, no texto da tradução, as imprecisões
sintáticas e semânticas, marca singular dessa literatura. Procurei, assim, uma
a nação especí ca do ouvido para traduzir o registro idiossincrático das vozes
dissonantes, de singulares arestas vocais, algo similar à sonoridade tirada ao
bandoneon dos subúrbios.
É difícil ler a literatura arltiana inclusive para aqueles cuja língua mátria é o
espanhol rio-platense. Há um lirismo lunfardo (ou, talvez, um lunfardismo
lírico) que hipnotiza com sua cadência canyengue, convencendo-nos a saltar em
direção ao despenhadeiro verbal, prometendo, com a queda, matizes
linguísticos que escapam à audição de quem permanece apenas na superfície.
Vêm daí a agramaticalidade, a torção sintática e, ainda, a geometrização cúbica
na criação de objetos verbais e o expressionismo paratático dos adjetivos que
abundam na escrita de que cuidei nesta tradução. É daí, fundamentalmente,
que se derrama a musicalidade arltiana. Foi preocupado em captar essa dicção
suja e abrasiva, entre todas as coisas, o que busquei, desde o primeiro
momento, ao traduzi-la nestas páginas. Nada nela é de natureza apenas lexical.
Já se criticou Arlt pelos excessos de lunfardismo, pelo emprego descontrolado
do jargão e das expressões nascidas da singularidade linguística dos subúrbios
portenhos apenas como adorno textual, trazidos entre aspas ao texto. Coisa,
obviamente, de gente insensata, que aprendeu a gíria suburbana apenas em
glossários ou dicionários para a aristocracia acadêmica ou turistas de ocasião,
en m, leitores incapazes de perceber que, muito mais do que um mero
repertório de palavras raras, uma lista de expressões estranhas, há, em Arlt, uma
espécie de rítmica lunfarda, espécie de canto marginalizado característico não
exatamente da língua, mas de seu ruído áspero, o murmurinho do idioma.
Como aqueles músicos da velha-guarda, que conseguem retirar ao
bandoneon a mugre (literalmente a “imundice”, mas, no jargão dos
bandoneonistas argentinos, a particularidade rítmica, a cadência singular de
uma sujeira sonora produzidas no instrumento) ao contorcê-lo na extensão do
corpo, essa marca musical que o executor imprime ao fole, algo inexistente no
código normativo da partitura, encontrável apenas na artimanha do tocador,
Arlt procura operar o idioma argentino comprimindo-o em sua normatividade,
em sua regra gramatical, debatendo-se ali, para extrair uma voz sufocada,
pessoal e, ao mesmo tempo, capaz de cumprir o destino suburbano do idioma
moderno. A dicção da literatura arltiana, por tudo isso, é a mesma que está na
garganta do bandoneon, balbucio agonizante à procura de uma nota
inexistente, grito seco que é um silêncio porque, no nal, já não há mais ar
para propagá-lo entre os ouvintes. É a as xia nal da comunicação que canta o
devir da linguagem despossuída de tudo, a literatura.
Quanto à estrutura do texto arltiano, gostaria de dividi-la arbitrariamente
em três dimensões narrativas para explicar o panorama geral das estratégias
adotadas nesta tradução. Digo arbitrariamente porque o acontecimento
estético de A vida porca não é perceptível senão no entrelaçamento textual
dessas dimensões que aqui separarei apenas para permitir uma visualização da
tradução. A primeira dessas dimensões corresponde à voz narrativa que
chamarei de axial, dado que ela se ocupa (inutilmente) de domar a selvagem
dispersão paratática do texto. É através dessa voz que o relato se desenvolve em
sua estrutura como um todo. Não há aí grandes torções gramaticais ou, pelo
menos, nenhuma atonalidade tão especí ca que peça maior explicação. A
segunda dimensão acontece mediante uma ocorrência oblíqua em relação à
primeira voz, ou seja, desestabilizando a voz axial. São os diálogos do primeiro
capítulo entre Astier e o velho sapateiro andaluz, bem como entre Astier,
Enrique e Lucio. Também entre Astier, Dío Fetente, as ofensas em dialeto
genovês entre Dom Gaetano e sua mulher ao longo do segundo capítulo. A
cantoria mediterrânea de Monti logo no princípio do capítulo nal. E,
sobretudo, os diálogos entre Astier e o Manco, exuberâncias de expressões
típicas do subúrbio portenho que escapam completamente às regras normativas
do idioma culto, urbano. Exemplos disso, ainda, são os momentos no mercado
de Caballito e, depois, na feira do baixo Flores, verdadeiras explosões verbais de
cores sombriamente luminosas e cheiros azedos, quando se lê as discussões
entre Dom Gaetano e os vendedores, também a descrição da relação entre o
Manco e os feirantes. É nessa dimensão que acontecem os maiores ganhos
linguísticos e literários do romance. Os diálogos são estranhos, retorcidos,
fartos de expressões incomuns. Exagera-se nas expressões marcadas pelas
elocuções suburbanas, a mistura de expressões locais com o repertório
estrangeiro, conseguindo, desse modo, a espessura coloquial do idioma
sufocado pela literatura o cial à época. Foi aí que a tradução, notavelmente
mais que em outros momentos, precisou entrar profundamente na espiral da
escrita arltiana. Buscou-se, tanto quanto foi possível, a virtualidade rediviva das
expressões, trabalhando o linguajar popular, preocupando-se, contudo, em não
neutralizar o estranhamento dos diálogos originais com a pretensão equivocada
de adaptá-los a uma zona especí ca do português brasileiro. Antes pelo
contrário, a tentativa, aqui, foi adaptar o português brasileiro àquelas camadas
linguísticas do espanhol argentino, preservando, com isso, o estranhamento do
original, quando a intenção era manter o princípio da construção poética, isto
é, os dois ou mais pontos distantes da língua, quase sempre incomunicáveis,
que apenas as metáforas ou a robusta adjetivação arltianas permitem reunir em
novo elemento textual. Em uma terceira dimensão, ocorre uma espécie de volta
da primeira voz, mas com algo inusitado: o acréscimo do princípio tanto da
metaforização quanto da adjetivação determinante da segunda voz, assim
promovendo uma textualidade altamente artística, criando, nesse sentido,
notáveis paisagens verbais de uma inesgotável visualidade escrita. É aí,
precisamente na sedimentação dessas três dimensões narrativas, que se dá,
portanto, a abertura paratática mais notável na composição arltiana, fundindo
elementos que ora têm origem no sublime, ora no grotesco, até eliminar a
separação. Esse espaço narrativo, é bom dizer, quase sempre aparece no relato
ao longo de um deslocamento entre o centro urbanizado e os limiares
suburbanos de então, hoje assimilados pela nova geogra a da Capital Federal
argentina que já não possui apenas um centro, mas vários e instáveis. É
importante demarcar isso, a exemplo dos trechos em que Astier, vendedor de
papéis, desloca-se entre os bairros mais afastados, na periferia, pois é aí que a
tessitura da narrativa arltiana conseguirá delimitar um espaço então incomum
para a literatura argentina, espaço que, como procurei demarcar, não só é
geográ co, mas, especialmente, linguístico e estético, literário.
É daí que se pode escutar a profusão da mugre na garganta do texto arltiano:
espécie de sonoridade contida, mas que arrebenta e arrebata; é a instância
dissonante de uma sintaxe própria; é a meia-voz do coro; a co(n)fusão babélica
das linguagens encontradas, rumor das vozes; é a falha comunicativa que dá
corpo à língua; é a voz pela voz mesma, ou seja, a voz outra que se torna outra
voz, reverberação sem identidade ou sentidos prede nidos; dicção textual de
onde o escritor arranca a angústia que o amortalha entre as páginas do livro e
os leitores; en m, a invenção da palavra cujo ser é irredutível.
À maneira daqueles imigrantes desfavorecidos sem nenhum idioma, que
disparam um tiro viril com o bandoneon suburbano, instrumento
20
característico de zonas de imigração, Roberto Arlt assimila essas vozes
estrangeiras para revertê-las em algo altamente argentino, assim como o tango
assimilara o instrumento de origem alemã para de nir a musicalidade nacional,
permitindo a cada uma daquelas almas desterradas, que invadiam o país
daquela época, ajudando a sustentá-lo com a força operária, renovando-o
culturalmente, viajar pelos países que o destino lhes negou a cada um deles,
21
agora não só através do tango, mas também da literatura. É essa virtualidade
linguística que A vida porca traz para a literatura argentina, assimilando uma
zona então ignorada na criação da linguagem literária do país. É por isso que A
vida porca é, atualmente, um dos pilares da literatura argentina, após ser
resgatada pela nova orientação da crítica literária ao longo da década de 1950.
Foi com este livro que se deu carne àquelas vozes que um dia tentou-se calar no
projeto argentino de modernização nacional. A vida porca é registro arti cial –
e não um mero documento histórico – da dicção balbuciante de tudo isso que,
hoje, escutamos em várias páginas da literatura argentina contemporânea e
22
também para além dela.
Post-scriptum
O título inicial deste posfácio teria sido “Roberto (doble) Arlt – ou a garganta
do bandoneon”, alusão ao Doble A, apelido portenho da celebérrima marca de
bandoneon alemã produzida por Alfred Arnold. A censura pessoal me fez optar
por um título menos confuso para o público brasileiro. Também o altíssimo
valor a que um Doble A pode chegar atualmente, haja vista a interrupção de
sua fabricação após a destruição alemã ao nal da Segunda Guerra Mundial, já
não tem mais nada a ver com o bandoneon suburbano de que falava Arlt.23
Para além da estrutura rítmica do tango, componente da sintaxe arltiana de que
procurei falar acima, A vida porca tem, ainda, os motivos mais característicos
desse gênero musical, a saber: o lamento pela perda da mulher (Astier e as
contínuas rememorações de Eleonora); a ruptura do pacto com o amigo e a
angústia gerada pela traição (primeiramente o distanciamento de Astier em
relação a Enrique e Lucio, posteriormente, a ruptura completa, a traição
propriamente dita, do pacto com o Manco, momento em que o traço diegético
do tango se consolida na narrativa de Arlt). Deixo, portanto, essa sugestão
nal, nesse afora do texto.
2. Em razão do regime político vigente à época, o período autoritário (1829-1852) de Juan Manuel de
Rosas, “El matadero” circula clandestinamente, sendo o cialmente publicado apenas em 1871, na Revista
del Río de la Plata. Periódico mensual de Historia y Literatura de América. Buenos Aires: Imprenta y
Librería de Mayo.
3. Essa primeira fase da produção poética borgeana, promovida nos anos 1920, consiste na ressigni cação
de uma estética bairrista a partir da apropriação da obra de um poeta lateral, Evaristo Carriego. Tal fase
perdura mais ou menos até o ano 1935, quando Borges publica Historia universal de la infamia (é
abandonada apenas como projeto literário, mas ressurgirá em livros tardios, daí minha opção em falar em
termos de denegação). É a partir daí que Borges passa a ser lido como narrador, sobretudo a partir de uma
resenha em que Amando Alonso, lólogo espanhol residente em Buenos Aires, discute os procedimentos
narrativos do livro de 1935. Na primeira fase, procura-se por uma voz criolla na elocução do poema
modernista. Consolida-se na década de 1940 a fase seguinte, designada como o “círculo da reescrita”,
caracterizada pela revisão do cânone da literatura ocidental mediante a emergência de um sistema literário
emergente. O ponto de in exão entre uma fase e outra aparece no conto “Hombre de la esquina rosada”,
reunido entre os relatos de Historia universal de la infamia que Borges publicara anos antes na Revista
Multicolor de los sábados, suplemento literário do jornal Crítica. Esse conto desenvolve uma voz narrativa
em primeira pessoa, ocupando-se de um particular registro do idioma nacional suburbano, à maneira de
um pastiche da poesia gauchesca da última fase, de Lussich e Hernández, escritas que reivindicam a voz
do gaucho payador. Frente ao que virá a seguir neste texto, é preciso demarcar uma diferença crucial entre
Borges e Arlt quanto aos aprendizados da linguagem popular em âmbito urbano: o primeiro, na primeira
fase poética, enfatiza o tom castiço do idioma, tal como a gauchesca e, posteriormente, o romance Don
Segundo Sombra, enquanto que o segundo, por sua vez, assimilará a prosódia do lunfardo em detrimento
da elocução castiça do espanhol.
4. A expressão formação discursiva é de Michel Foucault (2004, p. 35-43). Diz respeito a uma emergência
simultânea e sucessiva de incoerências conceituais que traz a lume um sistema de dispersão que precede a
unidade discursiva organizadora e constituinte de um saber e, logo, de uma instância de exercício do
poder. É no processo de formação discursiva, ainda, que se dita a forma e os motivos pelos quais se
empreende a atividade escrita. Lanço mão dessa terminologia, portanto, para pensar o processo de
formação de uma narrativa nacional.
5. A publicação do referido texto arltiano incorpora uma série de outros textos de mesmo título que
caracterizaram o debate do modernismo linguístico no cenário argentino de então. Para mais nuances a
esse respeito, sugiro a leitura de “O coloquialismo urbano rio-platense como forma de valorização
popular”, capítulo nal do livro Poéticas da transgressão de Viviana Gelado. De acordo com essa autora, a
vanguarda argentina apresenta um “grau de moderatismo” em relação às vanguardas europeias, posição
que Gelado (2002, p. 222) argumenta a partir da censura feita à heterogeneidade e ao espontaneísmo
linguístico-discursivo de Arlt.
6. Os relatos dos primeiros viajantes por nosso continente, conjunto heterogêneo de textos produzidos no
período colonial e chamados de Crônicas das Índias, declarada intertextualidade no relato de Echeverría,
como deixa ver já o parágrafo introdutório, pintaram verbalmente a paisagem local americana. Nos textos
dos estrangeiros, porém, isso acontecia como um escapismo crítico, mero ornamento retórico ou
comentário do ambiente em torno cujo foco era noticiar o exotismo e a excentricidade americana, sem
problematizá-los, mas, antes, reduzindo-os ao imaginário eurocêntrico da empresa colonizadora. Nesse
sentido, a composição da paisagem americana à época dos cronistas, ao longo de período que abrange as
etapas da invasão, conquista e colonização, não constitui senão uma dimensão cognitivo-expressiva, isto é,
as manifestações discursivas de um ato cognitivo em que se expressa não propriamente um objeto ou um
acontecimento, mas, pelo contrário, aquilo que o sujeito da escrita sabe previamente ao se enfrentar com
a paisagem, o objeto ou o acontecimento (Cf. Mignolo, 2008, p. 61-62). A inversão desse panorama
passa a ocorrer, por exemplo, com “El matadero” e, posteriormente, com os relatos das viagens de
Sarmiento, entre outros. Essa in exão, obviamente, não é isenta do processo cognitivo-expressivo. A
diferença é que nos casos dos relatos republicanos, após a independência ante as coroas ibéricas, já não há
endosso da mentalidade europeia, tampouco da empresa colonizadora, e sim a busca por seu completo
desmantelamento.
7. Sendo insu ciente a explicação do que vem a ser o lunfardo, sugiro, para a assimilação concreta por
parte do público brasileiro, um comparatismo com a prosódia empregada por Adoniran Barbosa a seus
sambas. A descontar-se o humor que abunda no brasileiro e míngua no argentino.
8. Não é em outro sentido que Piglia (1993, p. 130) escreve que “(…) Borges es anacrónico, pone n,
mira hacia el siglo XIX. El que abre, el que inaugura [el siglo XX], es Roberto Arlt”.
9. César Aira (1993, p. 56-68), por exemplo, fala de uma prática expressionista em Arlt, com isso
sugerindo o “estilo da aproximação”, não havendo, nesse caso, distanciamento do real. Essa aproximação
narrativa em Arlt, ainda segundo Aira, gera uma “imaginação geométrica” do real, à maneira
expressionista e cubista, distorcendo o mundo cotidiano para reescrevê-lo a partir da deliberada
intromissão do narrador no mundo ao redor.
10. “Creo rmemente que usted debería modi car el título de su novela (...) fíjese, La vida puerca es un
nombre demasiado escéptico, a mí me parece que podría usted colocarle el nombre de El juguete rabioso,
que en de nitiva es como la vida puerca, pero le otorga un poco más de brillo. No es lo mismo una vida
desdichada desde el principio que un juguete, como es la vida, a la manera de Calderón de la Barca, y
además, rabioso, y enojado”.
11. Lezama Lima (1993, p. 79-80-81) faz uma emblemática distinção entre o barroco europeu e o
barroco americano no capítulo “La curiosidad barroca” do inovador ensaio La expresión americana (1957-
59). O poeta cubano propõe que o barroco europeu é mera acumulação e assimetria sem ruptura dos
elementos constitutivos; já o barroco americano constitui uma estrutura em constante tensão, assimetria
com plutonismo, ou seja, o fogo ígneo que opera a reformulação dos elementos fragmentários no plano
de composição. É nesse sentido que, para Lezama Lima, o barroco americano, em detrimento do
europeu, representa uma aquisição de linguagem crítica ao se fazer como uma vivência completa,
característica ausente no europeu. O barroco americano, assim, torna-se uma “arte de contraconquista”. É
pensando nessa con guração, portanto, que me parece inviável assimilar a narrativa arltiana à sombra do
modelo ibérico do barroco de Calderón.
12. “Amor, piedad, gratitud a la vida, a los libros y al mundo me galvanizaba el nervio azul del alma. (…)
– Yo no soy un perverso, soy un curioso de esta fuerza enorme que está en mí…”
13. “Algunas veces en la noche. – Piedad, ¿quién tendrá piedad de nosotros? Sobre esta tierra quién tendrá
piedad de nosotros. Míseros, no tenemos un Dios ante quien postrarnos, y toda nuestra pobre vida llora.
¿Ante quién me postraré, a quién hablaré de mis espinos y de mis zarzas duras, de este dolor que surgió en
la tarde ardiente y que aún es en mí? Qué pequeñitos somos, y la madre tierra no nos quiso en sus brazos
y henos aquí acerbos, desmantelados de impotencia. ¡Oh! Si Él viniera un atardecer y quedamente nos
abarcara con sus manos las dos sienes. ¿Qué más podríamos pedirle? Echaríamos a andar con su sonrisa
abierta en la pupila y con lágrimas suspendidas de las pestañas. (…) Despacio, se desenrosco otra voz en
mi oído: – Canalla… sos un canalla. (…) – “Si yo no tengo la culpa”. – Canalla… sos un canalla… –“Si
yo no tengo la culpa”. – ¡Ah!, canalla… canalla… – No me importa… y seré hermoso como Judas
Iscariote. Toda la vida llevaré una pena… una pena… La angustia abrirá a mis ojos grandes horizontes
espirituales… ¡pero qué tanto embromar!… ¿No tengo derecho yo…? ¿acaso yo?… Y seré hermoso como
Judas Iscariote… y toda la vida llevaré una pena… pero… ¡ah!, es linda la vida, rengo… es linda…”
14. “Para Arlt la lengua nacional es el lugar donde conviven y se enfrentan distintos lenguajes, con sus
registros y sus tonos” (Piglia, 1993, p. 134).
15. A expressão “imaginário extremista” é empregada por Beatriz Sarlo (2000) para designar, na cção
arltiana, a produção de um exagero que subverte as ideologias, denunciando os seus limites
hierarquizadores. Promove-se, assim, o que Sarlo (2007, p. 228) de niu como “a perspectiva do cínico”
na obra arltiana. E, dessa maneira, ocorre o convívio entre ideias aparentemente divergentes, como, por
exemplo, a lei e o delito, a política e a violência, o pensamento de direita e o pensamento de esquerda, a
anarquia e as instituições, etc., assim saindo “do con ito pela explosão” e, com isso, esvaziando as
ideologias de suas diferenças. É nesse sentido, portanto, que menciono a seguir a possibilidade de superar-
se pela primeira vez o con ito sarmientino a partir de A vida porca.
16. “Nosotros, empero, queríamos la unidad en la civilización y en la libertad, y se nos ha dado la unidad
en la barbarie y en la esclavitud. (…) Esta es la historia de las ciudades argentinas. Todas ellas tienen que
reivindicar glorias, civilización y notabilidades pasadas. Ahora el nivel babarizador pesa sobre todas ellas.
La barbarie del interior ha llegado a penetrar hasta las calles de Buenos Aires. Desde 1810 hasta 1840, las
provincias que encerraban en sus ciudades tanta civilización fueron demasiado bárbaras, empero, para
destruir con su impulso, la obra colosal de la revolución de la Independencia. Ahora que nada les queda
de lo que en hombres, luces e instituciones tenían, ¿qué va a ser de ellas? La ignorancia y la pobreza, que
es la consecuencia, están como las aves mortecinas, esperando que las ciudades del interior den la última
boqueada, para devorar su presa, para hacerlas, campos, estancia. Buenos Aires puede volver a ser lo que
fue, porque la civilización europea es tan fuerte allí que a despecho de las brutalidades del gobierno, se ha
de sostener. Pero en las provincias, ¿en qué se apoyará? Dos siglos no bastarán para volverlas al camino
que han abandonado, desde que la generación presente educa a sus hijos en la barbarie que a ella le ha
alcanzado. Pregúntasenos ahora, ¿por qué combatimos? Combatimos para volver a las ciudades, su vida
propia” [Itálicos no original].
17. A expressão máquina antropológica aparece na loso a de Giorgio Agamben (2007, p. 145-167) com
o propósito de conceituar a divisão, na cultura ocidental, entre o humano e o animal, entre natureza e
humanidade, buscando discutir como, meio a essa articulação polarizadora, um dos termos relacionados
sempre permite a supremacia do outro, submetendo e hierarquizando com vistas a compor um con ito
político que, ao censurar a verdadeira articulação entre o humano e o animal, permite a ascensão de uma
antropogênese constitutiva do pensamento ocidental.
18. É preciso não perder de vista a importância do ensaio de Sarmiento para o pensamento republicano
argentino, bem como para a constituição do ensaísmo latino-americano. Julio Ramos (2008, p. 39-43),
por exemplo, chama a atenção para o fato de o Facundo ser um livro capaz de constituir um “depósito de
vozes” ao compilar relatos orais, anedotas, histórias alheias, etc. Esse arquivamento, entretanto, se dá
(assim como víamos em Echeverría) sempre pela via da submissão do repertório da barbárie em relação à
violência da forma escrita que procura modelar a irregularidade da voz ali representada. É por isso que
Ramos pondera, argumentando que, em Sarmiento, a representação do bárbaro pressupõe “o desejo de
incluí-lo e subordiná-lo à generalidade da lei da civilização”. Já em Antonio Mitre (2003, p. 49-55)
encontra-se a proposta de uma linha interpretativa estradiana do Facundo para além do clássico
binarismo civilização versus barbárie, sugerindo, assim, a complementação não ambivalente dos conceitos
mediante a consistência híbrida da realidade americana que o ensaio sarmientino buscou representar. Esse
última perspectiva, a meu ver, é bastante interessante para pensar a fortuna crítica do Facundo, abrindo
novas chaves de leitura na contemporaneidade. Porém, torna-se problemático adotá-la quando a hipótese,
conforme se sobrescreve, opta por uma discussão do princípio de constituição da linguagem, bem como
do simbolismo e da representação das vozes no sistema literário argentino. Perigaria neutralizar o
declarado projeto republicano que opõe e submete o campo à cidade, a cultura oral e iletrada à cultura
letrada-escrita, os indivíduos e a multiplicidade subjetiva ao assujeitamento da lei.
19. “Quiero elogiar al bandoneón suburbiero; el fuelle desencantado de tres teclas y tuerto de tanto ser
manoseado; quiero elogiar el bandoneón que canta, en las noches del conventillo lunado, la tristeza de los
feos y la pena de las muchachas percaleras; quiero elogiar en el bandoneón toda la angustia bronca de
“Cuando llora la milonga”, y el alma del suburbio, subiendo en la punta de los sonidos hasta las estrellas
que parpadean sobre el cinc de Nueva Pompeya, de Mataderos, del Bajo de Belgrano y Villa Luro. Quiero
elogiar en el bandoneón arrabalero toda la bronca (…); del tango cuyos diques son nuestros diques y que
es la válvula de escape de la pena de esta ciudad... (…) Bandoneón, única escapatoria, válvula absoluta
por donde estalla el cansancio, la esperanza, los deseos, la lujuria, el amor tímido, la caricia apasionada, el
rencor tramposo, la puñalada trapera, el tiro macho de los hombres que no tienen ningún idioma, como
no sea el idilio del fuelle: de los sonidos que salen preñados de nostalgia de un país mejor... (…) Suena en
la noche y hasta los perros dejan de contestarse en la distancia con ladridos. Si había bochinche en el
boliche de la esquina, el barullo se encalma; si al que toca lo conocen los truqueros, dejan el naipe y,
silenciosamente, entran en el patio del milonguero y, de pronto, ¡qué importa que sean reos, ladrones,
asaltantes o asesinos!, ¡qué importa eso!, junto al tocador se forma una rueda... ¡Qué importa todo esto!
De las almas que escuchan, cada una viaja por el país que el destino les negó” (Arlt, 1930, s/p).
20. Basta pensarmos nos portos de Montevidéu e Buenos Aires, mas, também, das regiões do nordeste e
do sul brasileiros, onde se espalharam o acordeão e a sanfona de oito baixos, popularmente conhecida
como “pé de bode”.
21. É importante lembrar que durante os anos 1920 o tango não era considerado exatamente um ritmo
nacional; muito antes pelo contrário. Em tal contexto, ritmos e danças nacionais, folclóricos, era o “gato”,
o “estilo”, a “chacarera”, a “zamba”, a “vidalita” ou o “pericón”, executados em versões para piano ou
guitarra criolla, o violão de nylon. Exemplo rotundo da negativa com que a restauração nativista designa o
tango em tal contexto é a declaração que a compositora Ana Schneider de Cabrera (na época enviada à
Europa pelo Ministério de Instrução Pública da Argentina para oferecer concertos e ministrar
conferências universitárias difundindo e explicando a música folclórica da Argentina) dá para o jornal
Crítica em 18 de outubro de 1926, declarando que o tango não era música, nem muito menos dança
nacional argentina. Isso explica porque, naqueles anos, os compositores de tangos procederiam de modo a
aproximar tanto as letras quanto a estrutura rítmica do movimento tradicionalista, folclórico, cultivando
um repertório misto mediante a assimilação de elementos provenientes da tradição rural, bem
assimilando elementos internacionais (Cf. Goyena, 1991). Cabe perceber, nesse sentido, que o tango era
um gênero maldito, negado pela tradição folclórica, popular, e, também, recriminado pela elite urbana
portenha que, nas festas dos salões burgueses, dançava preferencialmente o “foxtrot”. O tango, à época de
nosso livro, era a música dos subúrbios e cortiços, como líamos acima no “Elogio del bandoneón
arrabalero” de Arlt, dançado pelas prostitutas dos cabarés. Só mais tarde viria a ser o ritmo nacional,
dançado nos salões.
22. Arlt teve uma recepção notável em sua época, bem como recebeu prêmios literários importantes em
escala local, tendo sido provavelmente o escritor argentino mais bem pago em seu tempo, dado o volume
das publicações em revistas e jornais ao logo da década de 1920 e 1930. A partir da década de 1940, com
consolidação do projeto cultural e estético da revista Sur, dirigida por Victoria Ocampo com a proposta
de divulgar a cultura letrada europeia em Buenos Aires, a obra de Arlt é momentaneamente esquecida. É
só a partir do nal da década de 1950, com a acessão da crítica acadêmica posicionada mais à esquerda,
sobretudo a partir das orientações teóricas dos irmãos David e Ismael Viñas, à frente da revista Contorno,
publicação irradiadora do revisionismo da crítica literária argentina naquela década, que a obra literária
arltiana seria resgatada como alternativa ao projeto estético do grupo Sur. Já a partir da década de 1970,
com Ricardo Piglia e Beatriz Sarlo à frente da revista Punto de vista, Arlt seguiria sendo lido e debatido
como um dos modelos literários capazes de levar a crítica literária argentina além da hierarquização da
estética realista característica daquele revisionismo da década de 1950. É, por isso, uma constante na obra
crítica e ccional de Piglia. Também o escritor chileno Roberto Bolaño (2004, p. 23-30), atualmente um
dos nomes literários mais celebrados mundialmente, faz sua vindicação da obra de Arlt. Da tríade lateral
que Bolaño reúne no ensaio “Derivas de la pesada”, com o propósito de discutir seus aprendizados
literários enquanto leitor da literatura argentina, Arlt é, segundo Bolaño, “o melhor dos três” (cotejado ali
com Osvaldo Soriano e O. Lamborghini). A obra arltiana é, por tudo isso, uma presença indiscutível na
contemporaneidade da literatura latino-americana.
23. Para um panorama sobre a produção do bandoneon na Argentina e na Europa, ver Venegas (2010).
A725v
Arlt, Roberto, 1900-1942.
A vida porca / Roberto Arlt ; tradução de Davidson de Oliveira Diniz. – Belo Horizonte: Relicário,
2014.
256 p. : 13 x 20 cm
Título original: El juguete rabioso.
ISBN 978-85-66786-13-2
Obra editada en el marco del Programa “Sur” de Apoyo a las Traducciones del Ministerio de Relaciones
Exteriores y Culto de la República Argentina.
RELICÁRIO EDIÇÕES
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