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prefácio:
Juan José Saer
tradução:
Maria Paula Gurgel Ribeiro
Copyright © 1999 by Luz Di Benedetto
Copyright da tradução © 2006 by Editora Globo S. A.
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida – em
qualquer meio ou forma, seja mecânico ou eletrônico, fotocópia, gravação etc. – nem apropriada ou
estocada em sistema de bancos de dados, sem a expressa autorização da editora.
Título espanhol:
Zama
Di Benedetto, Antonio
Zama / Antonio Di Benedetto ; prefácio Juan José Saer ; tradução Maria Paula Gurgel Ribeiro. – São
Paulo : Globo, 2006.
ISBN 978-85-250-5746-4
06-0485 CDD-ar863.4
Z [1]
A Nicolás Sarquis
A minha mão pode dar na face de uma mulher, mas o esbofeteado serei eu,
porque terei violentado minha dignidade.
Embora isto não fosse, embora só fosse na aparência a desordem, sabia-
me sem justificativa por me entregar à ira e à repressão no próximo daquilo
que eu mesmo engendrara nele.
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Era de novo , que me fazia desejável, mas arriscado, o leito; era a
sesta que, ao menos nesse dia, tão próximo ao do banho das mulheres, não
queria repetir a céu aberto.
Era a sesta e esse homenzarrão terrível veio pela rua vazia como um
meteoro de sol destinado a mim, entre todos os mortais, por potências
infalíveis.
Agarrou-me pelas roupas e eu quis contê-lo com um enérgico
“Cavalheiro!”. Não me escutou, chamando-me de um só fôlego de “aliciador
de mulheres honestas” e “asqueroso abelhudo que nem se atreva”. Em um
confuso indignar-me e compreender que se tratava do marido e saber quem
era ela e tratar de largar-me, gritou para mim “Haverá duelo!”, e se foi e me
deixou. Deixou-me com a necessidade de segui-lo e sacudi-lo, enganando-
me, contendo-me, com a promessa da desforra futura, porque, ele disse,
haveria duelo.
Mas não haveria. Na rua toda não passavam mais do que uma cadela no
cio e seus pretendentes de quatro patas; conseqüentemente, nenhuma
testemunha lhe exigiria o cumprimento de sua palavra, um anúncio explosivo
que com certeza bastou-lhe para perder a vontade de infligir-me maus-tratos.
De minha parte, piores fraqueiras, podia recriminar-me.
No entanto, jurei-me que seria a última. Disse-me que, se a sofrer essa
me conformava, era unicamente compreendendo a razão de seu
arrebatamento, conhecendo-me culpado. Salvo que, eu alegava, não devia ter
me insultado. “Asqueroso abelhudo”: são palavras que entram sem
alternativa de esquecimento.
Se for assim, de nunca se produzir o proclamado duelo, devia deduzir
que existe uma medida para a satisfação da ofensa, mesmo que nos
indivíduos aparentemente mais brutais? Devia acreditar que, talvez, o
homem que defende com escasso zelo sua mulher, mais que temeroso é um
limitado por secretas motivações, que lhe vedam ocupar-se demais dela, um
ódio oculto, um fastio distante, um amor extinto e não obstante para ninguém
evidente, nem sequer para ele?
4
5
Esta audiência absorvente fez aplacar os estampidos que em meu coração
causaram os dois espaçados canhonaços anunciadores da presença de um
barco.
O saco de correspondência foi trazido à casa de governo antes que eu
pudesse sair, como outras vezes, até o píer, para aproximar-me mais das
possíveis novidades e do rosto dos marinheiros e contados viajantes que
desembarcavam.
O alferes-mor distribuiu conscienciosamente sobre sua mesa as
remessas para cada qual, nenhuma para dom Diego de Zama, porque as
minhas mãos estavam destinadas a permanecer vazias outro longo tempo.
Esta ausência de notícias de Marta, de meus filhos e de minha mãe me
causou essa depressão que em mais de uma chegada de barco tive de sofrer,
mas que, ao somar-se a cifra no transcorrer dos já quatorze meses de
permanência, abatia-me ainda mais.
Ao abandonar meu gabinete, prescindi desse espetáculo sempre
desejável de outra embarcação grande e procelosamente viageira, no porto.
Restringi-me à casa.
Pedi a uma escrava uma colação de ovos de galinha. Por
desacostumado, já que sempre comia fora, isto chamou a atenção das filhas
de meu hospedeiro, dom Domingo Gallegos Moyano, e determinou que mais
tarde uma delas se aproximasse dos meus aposentos com oferta de mate, que
aceitei.
Consagrei a segunda metade do dia a uma epístola, minuciosa e
queixosa, a Marta, para que o barco a levasse em seu caminho rio abaixo.
Desenvolvia devagar em minha mente a viagem da carta, por água até
Buenos-Ayres, por terra depois centenas de léguas com seu rumo oeste, e me
doíam as recriminações, ainda frescas no papel, que a minha esposa, distante
e sem seu homem, haveria de ler três, quatro meses mais tarde, talvez em um
dia em que eu fosse feliz. Mas não modifiquei o meu escrito.
Em meu retiro, em direção ao crepúsculo, tive o anúncio de um
visitante.
Como ignorava qual barco havia atracado, igualmente desconhecia que
o capitão era meu amigo, o oficial Indalecio Zabaleta, a quem abracei com
força e carinho.
Entrevi que, se me procurava tão rapidamente, afastando os assuntos que
em geral ocupam a um capitão em seu primeiro dia de porto, alguma coisa
trazia para mim. Mas alguém diferente capturou a minha atenção, antes de
fazer-lhe qualquer pergunta.
Mais adiante da porta, na galeria, estava detido — contido, pareceu-me
— um menino. Certamente vinha com Indalecio e podia ser filho deste. No
entanto, isso não me importava e, sim, suas feições, nobremente agitadas, e
os olhos, anunciadores de um transbordamento que, ao virar-se o capitão
para ele, produziu-se sem aguardar outro estímulo.
Correu e caiu em meus braços, estremecido por um soluço que, ocorreu-
me, era de gosto e entusiasmo.
Acertava. Indalecio explicou-me, impressionado, talvez orgulhoso, pelo
arrebatamento de seu rebento.
— Na viagem, eu lhe disse quem era o doutor dom Diego de Zama.
Jantamos na pousada.
De volta, tão tarde, pude maravilhar-me com o solitário senhorio da Lua
e, com a ajuda do álcool, sentir-me predisposto a igualá-lo diante de
qualquer situação de prova. As ruas solitárias, margeadas de casarões e
terrenos baldios sombreados, o terreno acidentado em sua depressão em
direção ao rio, eram propícios à surpresa que o meu estoque, com certeza,
saberia responder sem acanhamento.
Sentia-me valoroso e imensamente disposto a amar, essa noite.
Tive, como predestinado, a surpresa e uma mulher linda e fresca
comigo.
Como a hora ia já tão alta, entrei na casa pelos fundos, utilizando a
reservada portinhola da horta, para além do pátio dos empregados.
Acredito que a minha presença, inesperada nesse lugar e tão tarde,
desordenou alguma coisa. Calculo que alguém pôde fugir ou esconder-se
bem demais antes que eu entrasse.
Mas mais alguém ficou sem poder se dissimular o bastante. Tentou uma
fuga tardia, protegido pelos paredões e a distingui mulher, sem identificá-la.
Com dez longos passos muito táticos, cheguei aonde podia bloquear sua
passagem; e ela, sem dúvida, vendo-se irremediavelmente interceptada, não
se deteve.
Avançava direto, e esses instantes de espera talvez tenham calado mais
em mim do que nela, porque tive o otimismo e a audácia de conceber rápidas
esperanças.
Era Rita, a menor das filhas de dom Domingo, meu hospedeiro. Eu
soube disso quando ainda nos separavam quatro varas de distância, em que
pese o fato de que a mantilha mal limitava a claridade da Lua sobre seu
rosto. Mulher lunar, disse-me, para conferir encanto ao momento; mas outro
era o estremecimento que mandava em meus sentidos.
Não havia dado dois passos mais e caiu no chão. Tropeçara. Corri para
ajudá-la, embora já se pusesse meio de pé e, evidentemente, não precisava
de socorro. Mas eu, descontrolado, para aproveitar, tomei-a por trás e
terminei de alçá-la enquanto minhas mãos cobiçosas faziam pressão sobre
seus seios. Eram macios, como muito tocados.
Cobrava-me o silêncio que guardaria sobre sua escapada noturna.
Descobria intenções sem o menor reparo. Ela as ignorou. Reposta, suave,
desentendida de meu braço, olhou-me nos olhos com resolução, disse-me
comedidas palavras de agradecimento, como correspondendo a um grande
favor e, com dignidade e cautela, retirou-se em direção aos quartos.
Não podia imputar-me atrevimento nem abuso. Entendeu-o muito
rapidamente. Por sua vez, fez-me entender que não me temia.
Demorei-me na horta. Por um momento, estive voltado para o lugar por onde
ela havia desaparecido. Suponho que devo ter permanecido estupidamente
entorpecido e absorto.
Depois, reagindo, recostei-me em um trecho de erva aromática.
Necessitava que um tempo mais me assistisse o encanto da aventura a
descoberto dessa noite. Porque me havia sido revelada uma possibilidade,
sob meu próprio teto. Branca e espanhola; muito jovem. Minhas mãos
sabiam que não era pura.
6
Mas era um cavalheiro e nem o menor gesto insinuou a zombaria que bem
podia permitir-se quando, falando para os comensais mais próximos,
inclusive às senhoras, o dono da casa perorou com aprovação sobre os
homens virtuosos e insinuou qual dos companheiros de tertúlia podia ser tido
como tal.
Eu me encontrava em seu raio de influência; também Luciana, que não
mostrava aprovar o discurso moralista. No entanto, quando o perorador deu
a entender quem dos que ali estávamos carregava, segundo disse, o tormento
branco e santificador da pureza, Luciana soltou o brio de seu olhar
penetrando-me, seus olhos postos nos meus, de forma breve. Foi como se ela
respondesse, sem resistência, ao chamado de alguma coisa nova e levemente
estranha.
Senti-me de repente abrandado e benigno. Pude esquivar-me com
facilidade ao agrado de outros silenciosos olhares estimativos e aferrar-me
somente a este, fugaz, da mulher do admirável nu, que já evocava sem
sensualidade e prescindindo da evidência de que ela, essa noite e entre as
demais mulheres, não parecia superior a nenhuma.
No decorrer da refeição, não voltou a ocupar-se de mim. Esse desapego
me atraía mais e até me conduziu a um excesso de bebida a fim de animar-me
a parecer brilhante, o que, pude comprovar, não seduzia Luciana.
Tornei a guardar minha ansiedade em prudência e silêncio.
Eu não sabia até que ponto me havia traído. Percebi, não sem inquietude,
quando desloquei a cadeira para abandonar a mesa, como faziam todos, e o
alferes-mor, Bermúdez, aproximou-se de minha orelha, simulando para os
demais uma confidência amistosa e risonha, e me disse:
— Alguém, perto de mim, teve um repente que festejamos muito. —
Apontou para Luciana Piñares e exclamou: — É a mulher de corpo mais
encantador que Zama imaginou.
Era como para que em mim se levantasse uma tempestade de caráter.
Mas ocorreu que o imaginador de corpos encantadores recebeu, nesse
momento, nem um segundo depois, outro olhar da mulher do corpo mais
encantador que havia imaginado. Um olhar que cantava esta mensagem: “Se
melhor vos conhecesse...”.
Se, de regresso, tivesse dado na rua com Sua Majestade e em seus lábios
esta proposta: “Zama, quereis um cargo em Buenos-Ayres, mais bem-visto e
remunerado, se é que aceitais partir amanhã?”, eu teria respondido: “Ainda
não”.
Nenhum homem — disse-me — desdenha a perspectiva de um amor
ilícito. É um jogo, é um jogo de perigo e satisfações. Se se dá o triunfo,
ganhou a simulação perante p terceiro interessado e contra a sociedade,
guardiã gratuita.
7
Três escravos que, pela pressa, não haviam terminado de colocar a camiseta,
obedeceram a nossas peremptórias intimidações: “Procurem! Procurem!”,
buscando pelas galerias, pelos pátios, atrás das plantas e garrafões, até
desaparecer. Regressaram sem ter topado com nada, a tal ponto que
pareciam reparar, nesse momento, que foram descobrir alguma coisa e
ignoravam o quê.
Dom Domingo explicou-lhes o que eu vi, caso alguém pudesse
proporcionar referência esclarecedora: “Um menino loiro, espigado, por
volta dos doze anos; descalço e quase sem roupas, que deve ter dormido
umas horas aqui, no leito de dom Diego”.
Os escravos se consultaram entre si, com o olhar e vozes baixas e
nervosas.
Um deles, um zambo, resumiu o que podia ser considerado um ditame:
— Há de ser um menino morto, meu amo.
Se Rita, em um dos quartos que destilavam luz pelas frestas, estava
escutando, era preferível que compartilhasse a idéia supersticiosa do negro.
Do contrário, julgar-me-ia merecedor de todas as chacotas.
Pela manhã, repetiu-se a prolixa revista da casa e suas dependências. Só
o meu quarto havia sido visitado e nada de valor faltava.
Possuía-me a suspeita de uma troça malévola, mas não conseguia
determinar suspeitos. Por que pensei em Ventura Prieto se nada tornava
razoável ato tão fastidioso contra mim? Levantadiço e disposto à pendência,
não pude, nas horas de deliberação, abstrair-me a uma recatada vigilância de
seus gestos, a um controle prevenido de suas possíveis alusões, caso
delatasse alguma. Mas não, nenhuma.
De tarde, enquanto cavilava onde esconder com maior segurança minhas
escassas moedas de prata, tive o mais desejado convite: de mate cevado por
Rita.
Sentamo-nos ao abrigo de um plátano ancião, em cadeirinhas baixas, e
me serviu o primeiro em silêncio. Era açucarado e fraco. Sorvi-o lentamente
e acredito que com o líquido me vinha gradual consciência de carinho, tanto
que me aninhava.
Alçou o olhar, como se estivesse a par desse sentimento novo e limpo, e
procurou em meus olhos um indício de que podia ter confiança em mim. Eu
estava enternecido: a via bela e delicada, vítima de um amor consumado no
mistério, com a solidão do segredo e supus — firme na convicção — que ela
havia sido, era e seria de um só homem.
Entretanto, não havíamos pronunciado uma palavra e eu não sabia como
participar-lhe minha disposição afetuosa, repentinamente fraternal. Disse-lhe
então algo desajeitado, apelando a um recurso de via indireta. Disse-lhe que
sentia imensa gratidão por ela. Surpreendida, perguntou-me por quê. Com
ardor, expliquei-lhe que se alguém se ocupava de mim, homem sem família e
afastado de sua terra, era por uma misericórdia que comovia meu peito até
esse ponto que se podia ver. Efetivamente, minha emoção resultava visível,
porque despontava em uma ligeira aquosidade sobre os olhos.
Esse rebentar de lágrimas e até minhas palavras eram
desproporcionados com o favor que recebia de Rita, uma atenção que em
múltiplas ocasiões me prodigalizaram suas irmãs. Há de ter compreendido
assim, deve ter percebido quanto era o meu desassossego pelo
arrependimento, talvez piedade, que me inspirou com seu oculto amor e sua
tardia, mas submissa, aproximação de mim. Saiu-lhe o choro, caudaloso, e
mordia os dedos para não gritar. Eu lhe acariciava a cabeça reclinada sobre
a minha perna, e procurava animá-la a recuperar-se logo, com justificado
medo de que nos descobrissem em tal situação.
Acalmou-se. Secou seu rosto. Tornou a uma atitude serena, mas triste.
Serviu-me um mate, depois sorveu um ela. Deixávamos que a atmosfera
luminosa e possessiva nos transformasse em calmos objetos.
Ela tentou o diálogo, perguntando-me pelo menino loiro da noite
anterior e, embora empregasse um tom diferente, veio a aguçar em mim esse
ressentimento da provável troça. Enquanto explicava-lhe como pulou do
leito, esquivou-me feito um pássaro em vôo e se incorporou às sombras
como se a elas pertencesse, atravessou-me uma suspeita urticante: Rita e seu
homem prepararam a cena. Quiseram assustar-me, talvez transtornar-me, em
castigo pelos meus retornos de alta noite que malogravam seus arrulhos.
Conteve-se em seco meu enternecimento e o maior esforço de correção
que fiz se dirigiu a não ferir demais com uma acusação. Obstinado na crença
de que Ventura Prieto estava envolvido no assalto do menino, ocorreu-me
que o amante de Rita era ele. Não me interessava se era ou não; eu queria
saber se a Rita devia, nem que fosse em parte, a minha grotesca perturbação
noturna.
Então declarei que me achava com direito, pelo menos, de conhecer o
nome da pessoa a quem protegia com minha reserva.
Apequenou seus olhinhos a indignação, apertou os dentes um momento
e, ato seguido, soltou-os para dizer, com rigor terminante:
— Alferes-mor Bermúdez.
E um gemido se foi com ela, na disparada, ao encontro de seu quarto.
Fiquei contemplando tenazmente a cadeirinha baixa, vazia, enquanto a
cuia esfriava na minha mão.
8
Somente a essa Bermúdez começou a ser, para mim, alguma coisa
definida. Até então não passava de um receptor e girante de dossiês na casa
de governo.
Para as pessoas, tenho entendido, representava algo parcialmente
espetacular: do pescoço para cima.
Havia sido capitão do rei e um fundo talho na altura do coração vedou-
lhe para sempre a vida violenta dos militares. Nada lhe impedia, entretanto,
o uso do capacete, o mais polido que já vi, e ele o luzia por conta de
qualquer solenidade, fosse civil, militar ou religiosa. Mas acontece que,
prematuramente, pois não passava dos trinta e cinco anos, ficou sem um fio
de cabelo na parte superior do crânio, e as pessoas diziam que, com
capacete ou não, a cabeça brilhava da mesma forma. Isto parecia envaidecer
Bermúdez.
9
Essas jornadas de acontecimentos imprevistos, de agitações e tombos,
afastaram-me de qualquer tentativa de encontrar-me com Luciana, o que era
difícil até outra reunião, e as reuniões se davam espaçadamente. Zama,
ofensor, não podia pisar o umbral de Piñares, ofendido. Procurá-la na missa
era desembocar no labirinto dos ofícios, que se davam de dois ou três por
semana em cada templo, e eram mais de seis, sem contar os de naturais.
Rita, que foi resplandecente, o era menos, como se alguma coisa
chupasse o seu sangue. Ao nos encontrarmos, forçava-se em prol de uma
conduta normal, porque havia sido ferida e conservava a ferida do frágil
humilhado pelo forte.
10
Luciana nos recebeu muito distinta, mas com as faces um pouco ruborizadas.
Mostrou-se satisfeita com a nossa visita e eu soube que era por minha
ousadia. Acredito que nos sentimos repentinamente cúmplices.
Não obstante, dedicou toda a sua atenção ao oriental, a escutá-lo um
pouco, lamentar a ausência do marido e, em seguida, a cercá-lo de perguntas
que o homem não podia responder, porque não era nem muito sagaz nem
amigo das coisas espirituais, e para elas se encaminhou a curiosidade de
Luciana. Quis saber do teatro e da música de Buenos-Ayres e Montevidéu, e
como por aí não tirava proveito de ilustração, ocorreu-lhe que este
indivíduo, comerciante, podia estar a par de tecidos e perguntou a ele sobre
as lojas e até o preço dos dedais de prata. Como aqui acertava um pouco, o
oriental quis recuperar terreno e se mostrou viajado, contando de uma
viagem a Córdoba. Mas cometeu um equívoco, porque Luciana supôs que ao
menos algum doutor seria amigo dele e lhe veio a vontade de conhecer a
vida íntima das pessoas dessa classe, suas festas, reuniões, estilos de
roupas, pratos e bebidas, modos de educação dos filhos, um questionário
para enciclopédia. Não era para o oriental.
Era a minha vez. Eu ia a ele ressentido, porque licenciado sou, embora
não de Córdoba, e bem podia perguntar a mim. Era, dessa vez, um pouco
como sempre: ali onde as pessoas não são da universidade, se possuem
alguma coisa de que se orgulhar, posição ou fazenda, decidem ignorar estudo
e títulos de quem os têm.
A minha oferta proporcionou alívio para o oriental e em Luciana um
interesse que, assombrosamente, permitiu-se deixar em suspenso, até uma
nova visita nossa, que nos encarregou que se repetisse dois dias depois, na
hora da reza.
11
Nessa noite sonhei que por barco chegava uma mulher solitária e sorridente,
só para mim, necessitada de meu amparo, que se confiava aos meus braços e
mesclava com a minha a sua ternura. Pude precisar seu rosto, gentil, e uma
penugem loira que tornava pêssego seu pescoço e me punha guloso.
Não era Marta; tampouco Luciana. Não era ninguém que eu conhecesse.
Devia acudir ao gabinete. Não me fazia mal sabê-lo, porque permanecia sob
a influência do sonho e da mão branca, outro sonho. Mal me causava, isso
sim, que o real me resultasse inapreensível e, se uma mulher vinha a mim, o
fizesse em sonhos, nada mais.
Nunca seria o visitado do amor? Não o amor de Luciana, se é que o
conseguiria, mas o de uma mulher de outras regiões, um ser de finezas e
carícias como podia existir na Europa, onde ainda que em alguns meses faça
frio e as mulheres usem agasalhos suaves ao tato como os corpos que
cobiçam.
Europa, neve, mulheres asseadas porque não transpiram em excesso e
habitam casas polidas onde nenhum piso é de terra. Corpos sem roupas em
aposentos aquecidos, com lume e tapetes. Rússia, as princesas... e eu ali,
sem uns lábios para os meus lábios, em um país que uma infinidade de
francesas e de russas, que infinidade de pessoas no mundo jamais ouviram
mencionar; eu ali, consumido pela necessidade de amar, sem que milhões e
milhões de mulheres e de homens como eu pudessem imaginar que eu vivia,
que havia um tal de Diego de Zama, ou um homem sem nome com umas mãos
poderosas para capturar a cabeça de uma moça e mordê-la até sair sangue.
Eu, em meio a toda a terra de um continente, que me resultava invisível,
embora o sentisse em torno, como um paraíso desolado e excessivamente
imenso para as minhas pernas. A América não existia para ninguém, a não
ser para mim; mas não existia senão em minhas necessidades, em meus
desejos e em meus temores.
Estava espiritualizado.
No meu caminho, caída e sem forças para mover-se, encontrei em uma
vala formada pelos caudais uma mulher indígena, de meia-idade.
Aproximei-me e ela não sabia com que objetivo, motivo pelo qual seus
olhos se puseram implorantes, como para que não a forçasse a sair dali, para
que não lhe fizesse mal. Com essa silenciosa súplica, com seu abandono e
sua dor, causou-me viva compaixão.
Quis saber o que ela tinha.
— Tuvïg — disse-me.
— Sangue? Estás ferida?
Negou lentamente com a cabeça.
— Não. Fluxos de sangue, Vossa Mercê.
— O que posso fazer por ti? O que posso oferecer-te?
— Erva ou açúcar para a médica, Vossa Mercê.
Dei-lhe uma moedinha para sua médica, a curandeira, e outra para ela.
Disse-lhe que devia aguardar até que chegassem dois homens, que a
levariam carregada para ver a curandeira e depois para o seu rancho.
— Não tenho rancho, Vossa Mercê. Sou livre e tinha; mas o meu homem
me expulsou.
Apesar de entender sua situação, não soube como contribuir para
resolvê-la. Joguei outra moeda sobre sua saia, consciente de que isso não
era nada para a miséria e a doença, que o marido queria extirpar pela raiz
eliminando de sua presença a mulher.
Palos não estava como cirurgião e sim como beberrão e, embora resgatado
da taberna, não consentiu em atender mais do que o oriental, julgando
indigna a rua para “as consultas da ciência”.
Deixei-o, pois, junto ao leito dos cólicos e, seguido de dois escravos da
casa, acudi à procura da mulher, com planos de transportá-la para o pátio da
criadagem para que não fosse longo o caminho do cirurgião nem deprimente
para suas pretensões.
Não se encontrava onde antes a vi e ninguém pelas imediações parecia
ter-se ocupado dela, de seu estado e partida.
Tampouco era simples dar com a vivenda da curandeira, se é que para
ali se havia encaminhado a mulher. Os escravos primeiro e pessoas da
vizinhança em seguida informaram-me do que eu nunca havia me ocupado até
então: os “médicos” vinham do campo, mas só em dia de festa religiosa.
Uma gûaigüí, uma velha, havia, no entanto, com residência fixa e
consulta permanente.
Por Ventura Prieto soube, quando fui à pousada para repor forças e
ainda estava desorientado, tanto que fazia transcender meu desassossego e
remorsos, culpado por descuidar de uma vida que prometi assistir.
Tanto os americanos como os espanhóis, e estes das classes mais
distintas, para remédio de seus achaques preferiam, antes do cirurgião, o
cura especialista, e, mais do que o cura especialista, o curandeiro. De
qualquer modo, era provérbio que a morte é coisa só de velhos e de
parturientes, não de soldados nem de doentes. Se algo de verdade havia
nesta convicção, sua vigência não excedia os limites da província e, em todo
caso, do núcleo mais civilizado, ali onde não dominavam os indígenas nem
se comia carne humana.
Nada alterou, pois, minha presença na casa da médica, onde duas
senhoras espanholas aguardavam sua vez e fingiram não conhecer-me.
Entre a afluência não se encontrava a procurada. Demorei-me um
instante, para o caso de que fizesse parte do grupo que, mais lá para dentro e
com certo isolamento, consultava-se com a gûaigüí. Como o trâmite
demorou, fui até lá e lá estava, entre todos, um menino loiro, de uns doze
anos, espigado, na tarefa de passar para a velha os canudos de cana com
urina para o diagnóstico.
Uma noção me forçava a associá-lo com o bandidinho que ocupou a
minha cama e destampou a minha caixa de cabedais. Mas a certeza tardava a
vir. Por aí, em uma trégua de sua tarefa, olhou-me tranqüilo e sorridente,
como com familiaridade. Não duvidei: era ele.
Com resolução que não precisou de reflexões, abri caminho por entre o
grupinho de doentes e caí em cima dele com minha mão pesada, agarrando-o
por um ombro. O rapazote se desconcertou um pouco, enquanto eu o
acusava: “Foste tu, canalha. Foste tu!”. E para forçá-lo prontamente à
resposta, chacoalhei-o, repreendendo-o: “Safado, diz-me quem te mandou
me roubar. Diz-me!”.
Eu sentia em volta o revoar de galinhas assustadas das mulheres e isso
me incomodou, distraindo-me o suficiente como para que o pequeno, ladino
e bravio se sacudisse entre as minhas mãos, liberando-se um pouco até
sentir-se firme em um pé: com o outro me aplicou um forte pontapé na parte
proibida.
Gritei de dor, eu, maldito seja! E o rapaz se me escapou.
As mulheres haviam se espalhado e ninguém pensava em auxiliar-me
nem em aproximar-se. A velha, com ar místico e ausente, permanecia
sentada no chão, com as pernas cruzadas sob a saia. Eu bramia, contendo
com as mãos a parte afetada.
Quando a dor se atenuou, assaltei a velha com perguntas. Só pude
esclarecer que dias antes o menino loiro levou-lhe de presente uma
quantidade de pimenta vermelha seca, que utilizava como remédio e, em
troca, autorizou-o a ficar na sua casa, sem saber quem era, nem sequer seu
nome.
Muito segura de sua afirmação, mas sem lamentar a perda do ajudante,
disse-me:
— Não voltará.
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Começava a tarde, mas tanto mal havia me causado aquele dia que me
espantava dar continuidade a ele. No entanto, não se pode renunciar a viver
meio dia: ou o resto da eternidade ou nada.
Podia, sim, abster-me das armadilhas da cidade montando o cavalo com
rumo impensado. Oscilava entre essa perspectiva e a muito incerta de visitar
Luciana.
Não poderia fazê-lo senão como acompanhante do oriental, mas o corpo
do oriental era sobre o leito um verme que se retorcia sem sair de um ponto
fixo. Resultava-me tão inútil para aquela ocasião que o contemplei em
silêncio e me disse que sua morte nada me importaria.
Nada me importaria a minha própria morte, pensei também, e me
acometeu uma forte gana de não ocupar-me de coisa alguma, de não retornar
nem ao meu quarto nem à rua ardente e empoeirada, de jogar-me ali mesmo,
nem que fosse no chão, e descansar, descansar.
Tudo resultou simples demais, fácil demais. Mas eu temia minha sorte.
13
14
Muito pouco fiz pelo oriental. Apenas despachei um cura para que o velasse
e comuniquei às pessoas da casa onde se hospedava que no dia seguinte
faríamos inventário, com escrivão, das roupas e do dinheiro que restaram.
Não podia consagrar-me de cheio a essas tarefas imediatamente porque
me estorvariam, tirando-me tempo, a reunião com Luciana.
E mais: para não perturbá-la nem afetar o espírito ditoso que procurei
imprimir ao encontro, não lhe disse que morrera e, como perguntasse pelo
curso de sua doença, menti que continuava com cólicas. Aconselhou-me que
lhe desse para tomar treze goles de aguardente. Compreendi que Luciana era
muito ignorante, pelo menos em certas matérias.
No entanto, desde que cheguei de novo a ela adquiri outro compromisso
de gratidão com sua benevolência, que me impedia de julgá-la em questões
secundárias: tributou-me o acolhimento merecido por um herói, em virtude
da minha luta daquela manhã. Quis examinar meu rosto, para ver se tinha
algum machucado que não houvesse percebido, e até pressionou com as
mãos na testa, para ativar qualquer dor ainda calada, se é que havia.
Tomei isso como um pretexto para pousar suas mãos na minha cara e a
deixei fazer, sensibilizado até o desfalecimento. Não ocorreu-lhe que podia
ter sido golpeado em outras partes do corpo, ao menos não as apalpou.
Depois se sentou, em uma distância maior de mim do que na noite
anterior, e enquanto falávamos do oriental e me prescrevia a aguardente, foi
transformando-se na senhora que recebe uma visita e me chamava de “senhor
de Zama”, “doutor” ou “dom Diego”. Prestei atenção para ver se alguém
estava nos espiando e ela prescindia de intimidades para despistar; mas nada
adverti de suspeito.
Por um instante, mantive o tom que Luciana me impunha, embora por fim
se impôs a minha necessidade dela e quis apressar. Disse-lhe algumas frases
de viva devoção, mentindo uma total consagração mental desde a noite
precedente quando, na verdade, ao lembrar dela durante a jornada, estimei
desnecessário preocupar-me demais com ela, porque se me aparecia em
imagens de submissão e entrega que me dispensavam de maiores empenhos.
Mas nessa noite não era a Luciana submissa e entregue que previ, mas a
Luciana na defensiva.
Com habilidade, eliminava de suas respostas o que pudesse
comprometê-la com minhas declarações amorosas até que, no fim, formulou
uma confissão desconcertante:
— Todos os homens cobiçam meu corpo. Honorio, meu próprio esposo,
vive fascinado pela carne. Eu o desprezo e desprezo todos os homens por
seu amor de possessão.
Estavam estabelecidas as condições.
Calou-se um momento como extenuada pelo esforço e a coragem de
falar com essa clareza, e mesmo assim como dando-me tempo para ponderar
e pronunciar-me.
Eu estava enamorado de seu corpo e para ele tendia. Nada mais me
importava dessa mulher iletrada, de rosto incapaz de sugerir impressões
amáveis. Mas ela desprezava a quem pretendesse o amor de seu corpo.
Era o fracasso de meus propósitos. Não obstante, se Luciana me aceitou
tão franca e prontamente, alguma coisa lhe havia sugerido que eu fosse
diferente dos demais homens, dos que ela desprezava. É que eu era o homem
virtuoso do discurso de dom Godofredo Alijo!
Adaptei-me, pois, a esta fantasia, conformando-me em sustentá-la nela
para encobrir de elegância uma retirada que considerei próxima no tempo.
Resultou-me simples a tarefa de perorar sobre sua virtude e seu
idealismo e acabei argumentando que o meu espírito ansiava a descoberta de
uma mulher dessa natureza, que me prodigalizasse sua amizade e um terno
carinho sem implicâncias.
A vi muito lisonjeada. Insinuou-me que, se rendesse méritos suficientes,
poderia tornar-me credor desse afeto. Concedia-me dois pontos, quando no
dia anterior havia combinado seis e prometido dez.
Ao deixá-la, anoitecia. Acompanhou-me até a galeria e chamou um
criado para que me levasse à porta.
Pela rua, caminhava aos tropeções, balançando o sino, um sacristão
sonolento.
O criado perguntou:
— Quem morreu?
E o sacristão salmodiou a resposta de praxe:
— Um filho de Deus: dom Félix Ordóñez. Roga por ele.
Félix Ordóñez era o oriental. Em poucos minutos, por boca do criado, o
saberia Luciana.
Por isso, depois de ter entregado o ataúde do oriental à terra sombreada pelo
templo das Mercês, tirei duas horas para mim, consagradas ao necessário
repouso, antes de acudir ao chamado de Luciana.
Talvez procurasse provocá-la para que se incomodasse pela minha
tardança e começasse a acreditar menos em minha retidão e cortesia.
15
Nas ocasiões anteriores, devo ter ido com o rosto ansioso; não desta outra
vez, o que autorizou Luciana a colocar-me uma dúvida: se ela não me tivesse
feito chamar, eu a teria visitado?
Com esta pergunta me pôs a descoberto tão habilmente que me sufoquei
alegando tal necessidade de sua compreensão e companhia que teria
realizado qualquer esforço para vê-la, embora alguma coisa poderosa se
opusesse a isso.
Respondeu-me com um vago sorriso, transluzia sua incredulidade, e não
admitiu que continuasse justificando-me.
Segurou-me com perguntas sobre a morte do oriental e os detalhes da
cerimônia. Eu me recriminava de um modo feroz ter me colocado atrás
daquela mulher que, afinal de contas, permitia-se dispor do meu tempo para
uma conversa tão conducente ao fastio.
Devo pensar que foi só tática dela para estudar-me e conhecer minhas
reações. O oriental e os pregos de seu ataúde lhe importavam como
excipiente. Ela incluiria a droga no momento oportuno, com uma longa pausa
sublinhada por esta palavra:
— Ingrato...
Uma mola. Acionou-me, colocando-me de um impulso a seus pés, joelho
em terra e acariciando-lhe a mão que deixara sobre a saia, também beijando-
a, logo depois.
Os dedos de sua mão livre afundavam em minha cabeleira. Depois
condescenderam até a barba, comunicando-lhe a extrema suavidade de sua
carícia.
Alcei o olhar a seus olhos, em interrogação e súplica.
Ela declarou, com ar de acatamento a uma encantadora e temível
fatalidade:
— O que tem de ser, será.
Tombou a cabeça sobre o espaldar e entendi que se oferecia ao beijo.
Foi prolongado e suculento.
Quando saímos dele, enquanto eu aguardava sinais que me dissessem até
onde podia avançar, Luciana permanecia dissolvida em um sonho.
Depois, voltando, chamou-me:
— Amado...
E quando eu me inclinava sobre ela para outro beijo, sua mão direita se
interpôs, com delicada mas inobjetável autoridade. Acatei-a, pois, e então
me disse:
— Agora, vai.
Pude resignar-me porque já me sentia seu dono e nada custoso me
resultava permitir-lhe essas dilações, conjecturavelmente destinadas a
adormecer, sem brusquidão, a virtude.
Com esse outro ardil para reprimir-me, Luciana rebaixou o orgulho que me
dava sabê-la disposta a intrigas dirigidas a nos vermos mesmo quando o
marido permanecesse na cidade.
Se me antecipava isso, sem sequer consultar meu não descartável
engenho, descobria ser destra em tais tramóias.
16
Não me lancei nas ruas até o anoitecer. Na praça e arredores, tinha havido
feira e as vendedoras, mulheres livres ou escravas mandadas pelos seus
senhores, já retiravam as cestas de mandioca, pimentas, doces, tabaco, café e
outras mercadorias que permaneceram penduradas, ou espalhadas pelo chão,
sem conseguir quem as levasse.
Estive alguns momentos entretido em vê-las recolher suas mercadorias,
contar as moedinhas, tagarelar e despedir-se depressa, certamente com pena
de que terminasse um dia para elas tão ameno. Retiravam-se em pequenos
grupos que, pelo caminho, iriam desgarrando-se.
Ao passar, uma que caminhava com outras três me olhou com esse olhar
que quer dizer: este homem eu amaria, mas sei que é impossível.
Não. Não era impossível.
Segui-as à distância. Notaram minha manobra e se puseram inquietas.
Duas ficaram em uma casa de gente bem de vida. As outras duas
continuaram em direção às rancharias. Uma delas era a desejada.
No limite da aglomeração circulava a ronda. Se me escondia, ao não ser
isso de solução simples, dava às mulheres pretexto para denunciar-me.
Os soldados não incomodaram as mulheres. De suas roupas e cestos
transcendia que regressavam do mercado.
Quando se aproximavam de mim, encurtaram o passo. O oficial me
reconheceu e não houve necessidade de esclarecimentos; ao contrário, não
me retardou em absoluto e me fez algumas adulações desnecessárias, que em
situação diferente teriam me agradado.
Uma mulher se introduziu em um rancho.
Para a outra faltava caminho: os últimos ranchos dispersos, as ruínas do
hospital e depois, estendidas, uma e outra coga, chácara, com suas moradias
definidas por minguados resplendores de lar.
A noite já estava densa demais, o céu, pesado, com essa gravidez que
precede a diafanidade, quando a lua está por subir. Não podia distinguir a
qual das mulheres seguia. Não me importava.
A noite estava compacta, dura, e comunicava-me sua energia. Adiante ia
uma forma de mulher e era já como tê-la, com uma certeza que nada podia
alterar. Meu corpo adivinhava o seu.
Já!, disse-me, e, ao ir a passos largos, para prendê-la, subiu pela noite o
uivo agourento de um cachorro.
Condenei-o como a um filho de Satanás e, sem afrouxar o passo, ia
murmurando os insultos que afugentam as más influências.
Nesse ponto chegou a claridade lunar e minha alegria de sentir-me mais
seguro, vendo onde pisava, extinguiu-se em um instante. Uma matilha
silenciosa havia farejado presa e vinha para cima de nós. Aflorava das
vizinhanças das ruínas.
A mulher, a vinte passos, estancou.
Gritei-lhe: “Coragem! Aqui vou eu”, e fui, espada em mãos.
Mas os cachorros passaram ao seu lado sem roçá-la — haviam-na
reconhecido — e, excitados, lançaram o assalto contra mim, o estranho. O
primeiro veio com tal impulso que não pude vará-lo, e subiu pelo meu peito
até querer morder a minha cara. Afastei-o com força mediante um golpe do
braço livre e ele caiu de costas. Dei-lhe um pontapé certeiro e rápido que o
anulou.
Enquanto isso, cercavam-me outros dois, e um deles dava mordidas nas
minhas botas. Feri-os gravemente, a cutiladas. Ficaram agonizantes, com
uivos de dor e de raiva. Os outros se mantiveram à distância, latindo para
mim, até que os dispersei com investidas e gritos.
A mulher refugiara-se entre as primeiras ruínas. Acudi, limpando a
espada, fanfarrão e dominante.
Era ela e era jovem.
Pôs o meu mesmo ardor. Tive, por um momento, dezoito anos, a
juventude perfeita.
17
Veio barco.
Não estava eu, naquela época, à espera dos canhonaços do porto. Por
isso, ao escutar o primeiro, com o sobressalto, não atinei a discernir o que
esperava do navio. Por um instante, lembrei que aguardava uma jovem em
travessia desde o Prata ao meu encontro. Marta?... Não; não. Outra era, outra
tinha de ser; mas tampouco aquela... integrada à região dos sonhos. Missiva,
de minha mãe, de minha esposa, de meu cunhado devia esperar eu; um
decreto com o selo do rei merecia receber desse barco.
O segundo canhonaço soou imperativo para minhas urgências; então me
governaram confusos pressentimentos.
Vou por carta, preveni ao secretário. De tal modo deixava uma resposta
ao governador, se é que desejava saber de mim, tão descumpridor de minhas
obrigações nas semanas anteriores. Acudia, de um modo excludente, pelo
rosto da sonhada viajante.
Como não a descobri entre aqueles que assomavam pela borda, estive
eu no navio antes que os viajantes tocassem a terra. Empurrava-me a
necessidade de encontrá-la e outra vez — tão rápido — não tinha sossego,
embora estivesse tão-somente enamorado. Enamorado, mas com que
veemência. Inspecionava com tal denodo que um oficial, talvez obedecendo
a ordens do capitão, quis deter-me. Apelei à minha autoridade; mas me
respondeu que a bordo não podia reconhecê-la, a menos que lhe explicasse
por que me introduzia dessa forma nas cabines de passageiros.
O fiz, dizendo-lhe que procurava uma dama que vinha do Prata.
Demandou-me seu nome e, claro, não pude dá-lo. Sim, os sinais; mas não
havia embarcado nenhuma mulher jovem em toda a rota.
Conformei-me com a falta de notícias de meu lar, já que, ao não serem boas,
nada poderia ter feito para remediar suas dificuldades.
Trouxe o bergantim um grande rolo com os selos do rei, embora não
para o assessor letrado, mas para o governador.
Tive diante dos olhos, e não soube ver, uma providência real que dava maior
categoria e passava à corte o meu governador. Ele queria fazer-me saber,
depois de ter-me comovido com sua insinuação de favores, e eu devia
aparentar regozijo e prodigalizar-lhe adulações.
Perdi o advogado de maior predicamento que pude ter em Madri.
Suportei a irritação; mas de noite, no leito, prescindindo já das
recriminações com que podia atormentar-me, caí vítima de um desespero de
outro tipo.
Eu era um animal enfurecido, raivoso. Ignoro que animal, só sei que de
quatro patas e bem forçudo. Necessitava escapar, e todo obstáculo era uma
rocha. Investia contra ela e, em cada investida, mais uma ferida se partia no
meio da minha cara. Continuei investindo, cada vez mais fraco, mais fraco,
mais...
Era depois um homem, embora sempre com a necessidade de superar
certa limitação. Já não tinha nada pela frente, mas uma extensão lisa onde
estavam abolidas as necessidades. Só devia avançar e avançar. Porém tinha
medo do final porque, presumivelmente, não havia final.
18
Partiu o barco.
A Ventura Prieto não foi permitido nem recolher pessoalmente seus
móveis e demais pertences. Tudo foi trasladado a bordo sem sua
intervenção. Ele passou da prisão ao navio sob custódia, até o momento de
soltar as amarras.
No dia seguinte, um guarda da prisão solicitou que eu lhe outorgasse
audiência.
Mordeu-me a intriga, porque não podia dar em minha imaginação com
um motivo válido. Brevemente, encolhi-me com a suspeita de que Ventura
Prieto tivesse feito embarcar a um guarda com suas roupas e ele, vestido de
guarda, preparava-se então para vingar-se.
Para demonstrar coragem, autorizei a entrada do visitante.
Era um carcereiro mirrado e sujo. Desculpou-se com parcimônia por
seu atrevimento e me estendeu um bilhetinho.
Era de Ventura Prieto e rezava: “Concordo em partir porque não possuo
indignação suficiente”.
A mim não me faltava, tinha indignação de sobra por este confinamento que
sofria, sem vantagens nem escapatória e mascarado de brilho pela hierarquia
de minhas funções.
Mas pressenti que Ventura Prieto aludia a outro tipo de indignação, a
indignação por um motivo que não é exatamente aquele que afeta a nós
mesmos.
Pensava em Ventura Prieto representando-o, para mim, como o
propagandista de alguma coisa, se bem que ignorasse de quê. Eu estava
desconforme com meu comportamento, embora tributasse minhas desordens
a potências interiores irredutíveis e a um jogo de fatores externos
inescrutáveis, invisivelmente montados para provocar minha conturbação.
Este cerco indutor, pensava eu, em determinado momento me jogava em atos
não desejados, ocasionalmente sedutores e capazes de transformar-se, a
posteriori, em alguma coisa repelente e abominável. Depois deste
raciocínio, assaltava-me a dúvida de que não fosse alguma coisa meramente
de ordem moral e suspeitava de que se eu tivesse sabido pronunciar-me,
escolher, antes, não no próprio momento do ato tentador, mas na etapa de
suas origens, poderia ter me salvado. Ao chegar a este ponto, também
anulava a reflexão formulada, convencido de que igualmente no último
momento se pode eleger.
19
20
Dois dias depois, recebi na minha sala um bilhetinho. Estava escrito, com
abundantes erros de construção e ortografia, o que em discreto castelhano
pode-se colocar assim: “Honorio se foi, por um mês, à estância. Espero-te
hoje, às 6 p.m. Se estás ofendido e resistes em vir, quero que penses
entretanto sobre isto: achas que eu abriria a minha alcova a um homem que
não seja meu esposo?”.
Mulher de assombro! Queria dizer, então, com seu papelzinho, que naquela
noite não se propôs a fazer-me sinal algum nem ao menos permitir-me o
acesso à sua casa? Isso significava que mentiu para provar o acatamento que
eu tivesse de sua virtude?
Mas como podia pretender correr-me com sua honestidade se me
permitia beijá-la e ela própria me beijava com fúria? Não é honesto beijar-
se com o corpo todo e o é beijar-se com os lábios? Talvez, disse-me, seja
assim. E, reconhecendo-o, encontrei tranqüilidade e desculpa diante da
remota possibilidade de que alguma vez tivesse de responder às acusações
de minha esposa.
Recebeu-me compradora, sem palavras, com um beijo que não lhe pedi e
que ela tinha servido na boca como primeira oferenda.
Em uma mesinha estavam preparados licores e confeitos. Nas brasas,
apitava a chaleira, e a cuia e a erva-mate se achavam dispostas. Tudo isso
constituía advertência de que não ia interferir nenhuma criada.
Não censurei suas artimanhas. Não lhe perguntei a razão de que tivesse
estado ali esse desconhecido, olhando para a sua janela. Não discuti sua
virtude nem me escusei de tê-la suposto inexistente ao aceitar sua mentida
oferta de incursão noturna.
Não pude falar, não me deixou. Enchia-me a boca de doces, de confeitos
e de beijos. Não serviu o mate, certamente porque é demorado e propício ao
diálogo.
Estreitada entre os meus braços, por fim, como repondo-se do
esgotamento de tanta paixão entregue através dos lábios, de novo brindou-os
a mim, chamando-me de “Esposo, meu esposo...”.
Esposo, chamava-me. Meu esposo, havia dito, e ela só abriria sua
alcova...
Mas, com carinhos de adormecedora ternura, foi se desprendendo de
mim. Aproximou a boca de minha orelha e, quando acreditei que me faria
objeto de outro raro carinho, perguntou-me:
— Virás amanhã?
Suas palavras marcaram como um regresso. Não eram do meu gosto,
nesse momento, as vozes, e eu próprio falar me parecia uma pequena
empresa que requeria alguma coisa assim como um desprendimento e,
também, certo exercício momentaneamente esquecido. No entanto, a
interrogação se mantinha em seus olhos: “Virás amanhã?”.
Respondi que sim.
Devia ter dito que não, e ficar.
À meia-noite, hora que de algum modo podia estar em seus cálculos, já que
ela a mencionou uma vez, passei pela ruela.
Sua janela, como todas as janelas altas, era, à distância, uma só placa de
madeira, sem a menor abertura que transcendesse a luz de um sinal e um
estímulo.
Tateei a porta da rua. Era ferro, de tão bem assegurada.
Instalei-me ao pé da casa em ruínas e não podia sequer permanecer em
espera tranqüila, porque os cachorros ladravam confusamente, como dando
alarmes dirigidos contra mim.
Não me atormentava um resultado previsto desde a tarde. Só procedia
por teimosia e por mostrar-lhe que estava resolvido a uma atitude enérgica e
decisiva. Já que lhe havia antecipado que armaria alvoroço, quis ser fiel à
minha palavra. Procurei uma pedra de tamanho considerável e, fazendo com
paciência todos os ensaios idealizados, levando em conta o peso do projétil,
o impulso do meu braço e a distância a percorrer, lancei-a com absoluta
precisão. Bateu na janela, sem quebrar nada, embora fazendo um ressonante
choque, e rebotou em direção à terra.
Mas ninguém, nem na casa nem nas vizinhanças, pareceu se importar.
Fui embora.
Outra tarde, quando já terminava o turno de um sol desses que vão dentro do
corpo, rondei, irresoluto, fazendo diante da porta de Luciana extensos
passeios que ia encurtando na ida e na volta.
Mais vale, aduzia como pretexto, aguardar a noite, quando não possa
mandar-me ao jardim, se me receber.
Outra volta e ali estava eu, chegando, quando a porta fez dois barulhos
de folha para dentro e franqueou caminho a um homem.
Piñares. Veio-me o nome no sobressalto. Mas não: Bermúdez.
Bermúdez da cabeça aos pés.
E Bermúdez não era homem de conformar-se com o amor virtuoso.
Como seu mal se apresentava de forma isolada, um dia dentre muitos, supus,
já com desejos de vê-la, que estaria na jornada de San Blas.
Não acudiu à missa.
No banquete de almoço, o assento imediato ao de Honorio Piñares ficou
vazio.
A festa popular da tarde, na praça, dar-se-ia com palanque para as
autoridades e sua orbe oficial. Desejava tanto vê-la como que me visse,
muito próximos os dois, entre o ter distinguido daquela coletividade com
infinitas ocasiões de trocar olhares, observações, lembranças.
Piñares se comportou como certamente não o teria feito se tivesse no
palanque o controle da esposa. Durante as corridas de cavalos, foi do setor
privilegiado ao popular e voltou a ele cruzando apostas com comerciantes e
militares subalternos. Eu não o descuidava para achar motivos de odiá-lo e
desprezá-lo. Não me deu muitos, na verdade.
O baile popular, que se seguiu às corridas, representava a parte mais
tediosa do programa para as pessoas do palanque, pois deviam limitar-se a
olhar. No entanto, ninguém se retirava, por protocolo e também porque ao
final do baile se acendiam os fogos de artifício.
Então, de longe, observamos que as cabeças de alguns se inclinavam
para a orelha de outros, e assim a multidão foi vista como um trigal
percorrido, pouco a pouco, pelo vento.
Um soldado abriu caminho até seu oficial, que estava no palanque, e o
oficial comunicou uma ordem em voz baixa ao chefe do regimento. O chefe
do regimento falou ao governador, e este às pessoas que estavam ao seu
redor. Dali, a notícia refluiu, espalhando-se a partir de duas fontes: o povo,
no extremo da praça, e a principal autoridade, dos assentos de honra.
Enquanto a população se concentrava na festa, deixando a cidade oca,
Rita Gallegos Moyano fora golpeada e despojada de todos os seus vestidos,
até das prendas mais coladas ao corpo.
Encontrou-a, encolhida em uma vala, uma indígena. Rita lhe rogou que
lhe arranjasse alguma coisa com que se cobrir, e a nativa, necessitada, não
dispunha mais do que do trapo que tinha no corpo. No entanto, empenhou-se
para procurar um pano ou qualquer outro gênero que resultasse
suficientemente útil.
Bateu em várias portas, mas os vizinhos estavam na praça. Deu, por fim,
onde ficava uma velha criada. Esta nada aceitou lhe arranjar sem autorização
de seus senhores, indubitavelmente por desconfiança, já que o pedido vinha
de uma indígena. Quis comprovar o caso com seus próprios olhos. Guiada
pela pouco apurada intermediária, foi até a vala, constatou que se tratava de
uma mulher branca totalmente nua e, embora nada tenha respondido aos
requerimentos de ajuda da infeliz, procurou fazer o que seu entendimento e
honestidade lhe permitiam.
Foi até a praça, procurou seus senhores até dar com eles, e lhes pediu
permissão para dispor de um lençol. O insólito da solicitude motivou a que a
senhora reclamasse maiores explicações, que a criada não teve objeção em
lhe dar com toda a sua voz, a fim de se fazer ouvir em meio à balbúrdia.
Aquela família ajudou a jovem branca desconhecida, conduzindo-a a
seu lar; mas a prejudicou ao não se cuidar de calar o acontecido, que
transcendeu desonrosamente mal Rita foi posta na cama pelas criadas que
haviam ficado na casa.
A primeira curiosidade, que nasceu em um setor da multidão em virtude
do que foi gritado pela criada, encontrou-se com a corrente de informação
posterior, e deste modo teve confirmação e se expandiu com aditamento da
imaginação e do mau juízo.
Desconheço se esta aventura efetivamente ocorreu, se bem que era tão longa
e Luciana a narrou com tanta emoção e realce que veio, pleno, o
entendimento entre nós.
Estivemos muito rapidamente como que de mãos dadas.
Bebemos mate doce sem pressa, preguiçosamente. Mais avançada a
tertúlia, admoestou-me de maneira severa por abandonar-me a inoperantes
influências e a tolerar esse confinamento em um cargo que considerou
inferior ao devido à minha capacidade. Eu estava de acordo e lhe disse,
comprazido, à vontade, contente:
— Bem, vejamos que favor pode esperar o doutor dom Diego de Zama
de uma mulher.
— Já vais ver — respondeu-me com resolução e de imediato
desenvolveu planos em torno de um irmão que, fez-me saber, era cavaleiro e
prestava serviço na corte.
Era uma ilusão digna de ser bem acolhida. Pôs-me ricamente abastecido
de esperanças.
Assim que teve meu assentimento para realizar a gestão, prometeu-me
despachar um ofício pelo primeiro correio.
Logo depois escrutou o céu, assomando-se brevemente à galeria. Ao vê-
la afastar-se, pensei que ia considerar as perspectivas de tormenta ou tempo
estável, para ver se aquela retardava a chegada do barco ou este a favorecia.
Outra era a razão. Urgiu-me:
— Tens de se apressar. Logo Honorio virá jantar. É tarde.
Deu-me um golpe de sangue.
— O teu marido está na cidade? — perguntei, desconcertado,
recriminando-a ato seguido, sem lhe dar tempo de responder o que parecia
evidente: — Não havias me prevenido.
— Mas... pensastes que ele estava na estância?
Luciana era a surpreendida pela minha ignorância e ria dela sem
inquietude, tão boa e ingenuamente que me apaziguei.
Tornara-se mais menina, mais cândida? Já não concebia a astúcia?
Perguntou-me, ainda:
— Como pudeste pensar que estava na fazenda, se eu não o disse no
meu bilhete?
22
23
Para o Prata, depois para o mar e para a Espanha. Onde nunca fui mais do
que um nome anotado em papéis, estender-se-ia um pensamento, uma
sensibilidade humana impregnada de mim. Alguém, na Europa, saberia quem
era eu, como era Diego de Zama, e o acreditaria bom e nobre, um letrado
sábio, um homem de amor. Estava dignificado.
Para Luciana, minha pureza constituía uma noção antiga e permanente.
Eu duvidava, ainda, entre acreditá-la pura ou não. Podia escolher. E escolhi
uma fé redentora de seu conceito e de sua honra.
Compreendi que ela era mais candura e desespero do que mulher.
Em todo caso, negava-se a ser carne e vencia. Era mais livre do que eu.
Quis ser pai. Ser pai novamente, com filho ali mesmo, onde eu estava, que
pudesse entregar-me um olhar de carinho quando eu pusesse nele meus olhos
e minha desolação.
Emilia, a mulher que me servia, uma espanhola viúva e pobre, que não
me superava em idade mas sim em caráter, resistiu e me insultava em cada
ocasião que eu me voltava sobre os meus propósitos.
Para manter as aparências, eu conservava o meu quarto na pousada,
embora dormisse em seu rancho, com ela, naturalmente.
Uma noite, lunar, bem passada a meia-noite, estávamos desvelados e
sem gosto um pelo outro. Emilia tagarela e eu, com o pensamento em minha
teogonia, no ouro do Peru e nos cavalos das corridas. Ela fazia o inventário
dos parentes que perdera e, na realidade, acredito, não lhe restava nenhum.
Este cálculo há de ter feito, porque de repente começou a chorar e me disse
que eu era seu único e último amparo, que gostava mais de mim do que de
seu defunto marido, e outras confidências chorosas e abrandadoras. Beijou-
me muito na boca e essa noite foi a primeira da conta, até ser mãe.
Na época dos enjôos, nem eu a tolerava nem ela me suportava. Só me
dava acesso quando lhe levava dinheiro, em oportunidades cada vez mais
ralas, porque minhas disponibilidades já eram muito magras e devia
administrá-las com sabedoria.
O menino nasceu enfermiço, sem dúvida porque a mãe gastara todas
suas energias para fora, gritando para mim.
24
A cidade era um pouco diferente. Tinha lojas e havia feira todos os dias. A
sociedade não era uma só e suas diversas constelações se permitiam não
estar muito de acordo com o assessor letrado e outros funcionários. Ao
mesmo tempo, eu me permitia prescindir da sociedade. O governador era
meu cúmplice secreto.
Muito orgulhoso, participei-lhe minha paternidade. Ria, cuspindo um
pouco, e me dava tapinhas nos ombros. Não era ofensivo e eu estava alegre.
Depois cederam suas expansões ruidosas e procurou mostrar-se
benévolo comigo, situando-me. Aconteceu-lhe que, por ocasião de ter nova
carga, eu estava em condições de dirigir uma súplica diretamente ao rei, a
fim de propor, de um modo patético, minhas aspirações.
Eu, embevecido, assentia. Acredito que estava esquecendo de minha
ciência jurídica.
Mas o governador reparou seu erro muito rapidamente:
— Não se pode.
— Como? Por que não se pode?
— Reconheças! És bastardo!
Dava um soco contra a outra mão aberta. Por ter me acendido e apagado
tão rapidamente essa ilusão, suponho, o governador procurou uma reparação
para mim de um modo que, certamente, valia mais do que o trâmite
descartado por impossível. Ofereceu-me subscrever ele mesmo uma petição
dirigida a Sua Majestade e, arrebatado como era, para não perder tempo,
arrastou-me atrás de si até dar com um escrevente.
O que encontramos, escrevia.
— O que estás escrevendo?
O governador o interrompeu com sua presença e com a pergunta, não
mal-intencionada, mas dirigida a saber se era coisa de importância dentro de
seu labor. O rapaz, um tal de Manuel Fernández, não o tomou assim, e,
sobressaltado, tratando de esconder seus papéis, confessou:
— Um livro, senhor governador.
A surpresa foi então para o governador. Mas aceitou a declaração
bonachonamente.
— Ha, ha! Um livro! Faça filhos, Manuel, não livros. Aprenda com o
nosso assessor.
Fernández me olhou sem importar-se muito comigo e eu sorri, dando
mostras de participar da troça ou o que quer que fosse que montava o
governador.
Depois, o escrevente, com tom respeitoso, persuadido do que afirmava,
disse:
— Eu quero realizar-me em mim mesmo. E não sei como serão os meus
filhos.
O governador vacilou um pouco antes de replicar-lhe. Quando o fez,
escolheu a saída ofensiva:
— E os livros?... Ha, ha! Piores que os filhos.
Eu também ri. Sentia-me obrigado, não convencido.
Fernández ficava vermelho, de vergonha e de raiva. Quase explodindo,
animou-se a dizer:
— Os filhos se realizam, mas não se sabe se para o bem ou para o mal.
Os livros se fazem só para a verdade e a beleza.
— Nisso acreditas tu, nisso acreditam os autores; mas não pensam o
mesmo os leitores — foi a rápida réplica. Fernández, que falara um momento
antes com expressão cortante, inclinou a cabeça. Adverti que não podia
continuar discutindo sem cometer falta contra o respeito devido ao
governador.
Este aparentou ser magnânimo. Disse: “Bem, bem”, e se retirou,
chamando-me: “Vamos embora, Zama”. Em seu gabinete, sentou-se em
silêncio, contrariado, desgostoso, e me encomendou uma desagradável
missão, a de averiguar por que Fernández escrevia um livro na casa de
governo.
A familiaridade que me concedia o governador me autorizou a
perguntar-lhe, ainda:
— Disporá hoje Vossa Mercê o pedido a Sua Majestade? Procuro outro
escrevente?
— Não, não. Hoje não, dom Diego. Outro dia será.
Esse outro dia não foi o seguinte, porque eu, por discrição, nada lhe falei, e
ele, fingindo-se esquecido, nada tampouco.
Nem foi no subseqüente, porque parece que ele advertiu quando ia abrir
a boca para renovar o reclamo e o interceptou reclamando-me, por sua vez,
o informe sobre o caso do escrevente, que eu não lhe passara.
Assim se agravou a situação do homem, porque essa vez em que o
governador se lembrou dele estava irritado, e me ordenou que o informe
fosse terminantemente desfavorável, de modo a poder exonerá-lo.
Propus-me a não fazê-lo dessa maneira, e sim como me ditassem minha
própria opinião e boa-fé.
25
Por um desses meios secretos que todos conhecemos quando agimos como
transmissores ou receptores, Manuel Fernández foi avisado de que se
tramava altamente contra ele.
Acudiu a mim. Conhecia o informe. Não me increpou nem pediu. Não
podia increpar-me. Disse-me que se tornaria soldado ou caçador, embora
duvidasse que fosse aceito no regimento, porque habitualmente aqueles que
exercem a injustiça costumam completar sua obra manchando de ignomínia.
Para que não procedesse como Ventura Prieto, disse-lhe que intercederia
perante o governador. Não me importava sua sorte de soldado, caçador ou
mendigo: quis lembrá-lo que eu estava em condições de comunicar-me com
o governador e contribuir para que se decidisse a sorte de uma pessoa.
Em audiência, disse ao governador que Manuel Fernández me havia
pedido que intercedesse por ele.
Levantou-se de seu assento, deu uma volta ao redor da mesa e passou às
minhas costas. Tornou a sentar-se e me fez esta caprichosa proposta: um dos
dois, Manuel Fernández ou eu, teria de renunciar ao favor; se anulasse as
diligências contra o escrevente, não suplicaria ao rei por mim; se me
postulasse perante o rei, exonerava Fernández. Eu devia decidir. Perguntei:
— Agora?
— Não. Amanhã.
26
Emilia descascava batatas. Seu semblante mostrava uma tenaz irritação, mas
me atendia, tanto que não se preocupava com o menino.
O menino se deslocava pelo chão de terra com o impulso dos seus
joelhos e de suas mãozinhas. As mãozinhas estavam muito porcas. Como seu
nariz escorria sem que ninguém o limpasse, haviam se formado dois jorros,
até o lábio superior. Dessa maneira, sua pele estava irritada e ardia. O
pequeno se coçava e, com a mão suja de terra, remexia aquilo, ferindo mais
ainda a machucada cútis. De volta, os dedinhos com essa matéria macia,
aquosa, faziam um impossível barro ao assentar-se na terra.
Esse era o meu filho.
Antes, recriminara a Emilia sua desatenção com a criança. Dessa vez
não me animava a fazê-lo.
Eu estava fazendo um longo argumento que arrematei com o anúncio de
que levaria para ali minha papeleira, meus livros, minha cama...
— Se trazes a cama é porque não podes pagar a pousada.
— Se trago a cama é porque quero ficar contigo o tempo todo.
— Aqui tem uma.
— Tu a compartilhas com o menino.
Quando não tinha resposta, calava, segundo sua conveniência, porque
outras vezes era muito loquaz. Descascava as batatas interminavelmente.
Tirava seus pontos pretos. Removia as partículas amarelas das cascas que
não ficavam finas demais. Presumivelmente, cozinharia sopa.
Perguntei:
— O que dizes, então?
— Que não sou tua mulher. Por isso me consultas antes de agir.
— Não é minha mulher? Não é a mãe do menino e eu, o pai?
— A tua mulher é outra.
— E tu, digas, por acaso é de outro?
— Não.
— E então?...
Ela deu outro rumo, inesperado e temível, à discussão.
— Trouxeste o meu dinheiro?
Chamava seu dinheiro a aquilo que eu devia entregar-lhe. O menino
desatou seu choro, lá fora, aonde fora sem que o advertíssemos. Pensei que
essa interferência me salvaria de responder. Mas não.
Eu prestei atenção aos soluços da criança. Ela me chamou à questão que
lhe importava:
— Trouxeste o meu dinheiro? Responde.
Não podia dizer-lhe que não.
Mostrei-me repentinamente exultante. Procurei participar-lhe minha
nova esperança e, com ela, minha alegria. Mas um tema, razoavelmente,
estava-me vedado: minhas ânsias de obter posição em outra cidade.
Transformei então o assunto dizendo-lhe que o governador, de próprio
punho, subscrevera nesse dia um informe ao rei sobre o estado de minha
caixa e as de outros funcionários de hierarquia que permaneciam não pagos.
Emilia, sem querer, fez apontar nos olhos o interesse. Para dissimulá-lo,
levantou-se e foi até onde chorava o menino, como se nesse momento o
notasse. Eu a segui, incentivando-a com o que notara que a seduzia:
— Dezenove meses — ia lhe dizendo, enquanto caminhávamos — estou
sem ver um real do tesouro. Daqui, dos próprios, tomei o que somam três
inteiros e pouco mais, nessa época: uns três mil e quinhentos pesos. Mas já
me deviam de antes, dos próprios, mais de dez meses e de...
Interrompi-me. Havíamos chegado onde estava o menino, sob as vigas
onde dormiam as galinhas. Era o entardecer. As galinhas, a essa hora, ficam
agitadas e descarregam. O menino foi ficar debaixo e...
Emilia procedeu, murmurando sua irritação e sua repugnância. Tirou o
menino; passou pela cabeça dele a ponta de sua saia, eliminando os
excrementos, e voltou a deixá-lo no chão, meio afastado. Em vez de esmerar-
se na higiene da criança, apanhou seus instrumentos e se pôs a limpar o chão
manchado pelas aves.
Pensei que estivesse calma e disposta a continuar a escutar-me. Falei
com esforço, porque ela gerava uma massa de terra flutuante e o menino não
havia parado de choramingar, embora de forma já mais comedida. Algumas
galinhas, perturbadas, galavam com o cacarejar, em um bobo desafio.
— Vejas bem, Emilia. Dez meses de antes, dos próprios, mais dezenove
são vinte e nove, menos três e meio... Vinte e nove por mil, fazem vinte e
nove mil, vinte e nove mil pesos. Agora, vejamos o das caixas reais. A conta
é fácil. À razão de quinhentos, dezenove por quinhentos... dezenove por
quinhentos... Não, melhor será contar por partes: primeiro, dez por
quinhentos, e depois, nove por quinhentos. Dez por qui...
— Vai embora! Vai embora! Louco, vai embora daqui!
Rompeu comigo.
Hasteou a pá, ameaçadora e bufante. Dei um pulo para trás, precavido,
distanciando-me de sua fúria. Mas continuava gritando: “Vai embora! Vai
embora!”, e o menino, assustado, chorava também aos gritos.
Virei-me, resignado, conhecendo que não conseguiria aplacá-la.
Caminhei alguns passos e calou.
Então virei para dizer-lhe alguma coisa, ainda. Estava tensa, com as
pernas abertas. Abaixara a pá, mas tornou a levantá-la por cima de sua
cabeça.
Dessa distância não poderia acertar-me.
Apontei para ela com o braço, em recriminação, e disse:
— Não esperes que eu volte se não me chamares. Nunca. Nunca, viste?
Porém, consagrei o olhar ao menino.
Meu filho. De quatro, sujo até confundir-se, no crepúsculo, com a
própria terra. Um estilo de mimetismo. Pelo menos possuía essa defesa,
característica dos animais.
27
Não só seu nome — Ignacio Soledo — parecia-me novo, mas sua figura, de
pessoa maltratada, quem sabe se pelos anos, pela doença ou pelo vício. Fiz-
lhe notar que, acreditando-me já conhecedor de sobra de quantos habitantes
brancos tinha a cidade, ainda me havia faltado, até esse momento, dar-me
com ele. De modo algum comprouve minha curiosidade, limitando-se a
dizer-me que apenas pisava na rua para comparecer aos ofícios religiosos.
Em sentido inverso de sua reserva pretendeu saber de mim mais do que,
talvez, podia considerar-se discreto. Tomou meu cargo como garantia; quis
saber com precisão o montante de meu estipêndio e, uma vez que eu o disse,
desculpou-se por sua curiosidade, dizendo-me, com um amistoso sorriso que
não chegou a persuadir-me, que nunca teve ocasião de se relacionar com
pessoa tão importante, embora, sim, com muitos comerciantes e marinheiros
endinheirados.
Declarou-me que a casa era segura e eu respondi que assim acreditava,
posto que, apesar de encontrar-se quase à beira da aglomeração, a cidade
toda se reputava como tranqüila e só se sabia de atentados menores, em
geral pilhagem de índios à luz do dia, sem destroço nem maior prejuízo para
ninguém.
Meu aposento não se encontrava, como na casa de Gallegos Moyana,
alinhado com os demais sobre uma galeria interna, mas dispunha de porta
para a rua, direta, e atrás de uma antecâmara, comunicada com um pátio que
dava passagem para os fundos. Era escuro e úmido, e estava entulhado de
móveis miseráveis, que indiquei ao senhor Ignacio que podia retirar, porque
eu traria os meus.
Combinei apenas o arrendamento dos quartos. Quanto às refeições,
disse que as faria na pousada e que só em caso de ficar em meus aposentos,
por causa de meus estudos ou algum trabalho que me absorvesse demais,
rogar-lhe-ia que me fizesse servir ali mesmo uma refeição leve.
Achou razoável o modo de organizar a satisfação de minhas
necessidades, desculpou-se e partiu, deixando-me sozinho na antecâmara,
que estava vazia.
Ao cabo de um momento, regressou. Trazia uma sineta e a pôs em
minhas mãos. Disse-me que eu o veria pouco e que a casa tinha escassos
habitantes: sua filha e três empregados, duas fêmeas de cor e um mulato fiel.
Se eu agitasse essa sineta, uma das escravas acudiria para servir-me.
Decidi fazer nada mais do que duas refeições e que uma delas fosse a
conveniente colação com Soledo. Em vez de café-da-manhã, mate; de tarde,
mate.
Mas de manhã ninguém bateu na minha porta com oferta de mate, nem de
uma chaleira com água caldeada. Ao dirigir-me aos fundos, descobri a
cozinha.
Não tinha a vida que, dela, costuma comunicar-se ao resto da casa, em
todas as casas, com a presença do sol e antes ainda.
Atrevi-me a pisar o umbral. Estava abandonada, sem lume nos
fogareiros, escassas as vasilhas e ainda esburacadas as demais.
Sem nada para que fizesse exercício o meu estômago, passei ao
escritório.
Sem aplicar-me em raciocinar, compreendi que Manuel Fernández era
homem de fiar, que não estaria inteiramente do meu lado, mas mais do que
em prol do governador, sim.
Como primeira missão em sua carreira de secretário do assessor
letrado, encarreguei-o de vigiar o pergaminho que pedia por mim até vê-lo
embarcado.
Subentendia-se que eu depositava maior confiança nele do que na
conduta do governador. Sei que me agradeceu por isso, dentro de si, sem
permitir-se fazê-lo transcender.
No dia seguinte, dei a volta por cima, fazendo a refeição forte no almoço. A
fome com o sono se apaga, disse-me, prevendo o jantar insuficiente que Tora
me traria.
Acertei em cheio as proporções da comida, embora não a dissimulação
que podia lhe prestar o repouso noturno. Dormi bem por duas horas ou mais;
depois o apetite voltou tão brioso que me fez despertar com o império de
uma ordem ou de um grito.
Bebi um copo d’água. O protesto adormeceu e pude repousar de novo.
Mas só alguns minutos.
Vela na mão, fui à cozinha abandonada. Acendi o fogo. Procurei a minha
chaleira e preparei um mate.
Sorvi-o devagar, sentado na banqueta diante da porta da cozinha.
Era a hora secreta do céu: quando mais refulge, porque os seres
humanos dormem e nenhum o olha.
Tão desanuviado como o universo celeste estava eu.
Pensei em Marta, sem pena.
O passado era um caderninho de notas que se me extraviou.
28
O sol estava . Eu também.
O rancho de Emilia se achava com outros que, vistos em conjunto, por
cima da altura dos telhados, pareciam ter caído, esparramados, como dados
saídos sem lei de um copo de jogo. Eu o olhava mais de cima, de um
barranco próximo, que não se podia dizer que cortava a rua, porque rua
traçada não havia, mas interferia a linha ideal que se podia traçar a partir da
porta do rancho.
Esperava, tranqüilo, ver o meu filho. Tinha resguardo de sombra e, de
assento, um toco vetusto. Fumava.
Eu supunha que o pequeno ia sair como da última vez que o tive diante
de mim, arrastando-se, fascinado pelo movimento amarelo de um patinho
novo ou pelo resplendor de algum fragmento de vidro. Chegaria até ele,
gostaria de reter o brilho do vidro, bateria uma e outra vez nele com a
mãozinha até fazer um talho. Então irromperiam o sangue e seu pranto. Eu
esperava presenciar tudo isso. Esperava seu choro, não porque desejasse seu
sofrimento, mas para senti-lo vivo, audível.
Ele não aparecia, no entanto.
Transcorrido um tempo, uma hora ou mais, a mãe saiu carregada com um
tacho de restos. Jogou-os para as galinhas, que se atiraram sobre eles,
lutando para engoli-los. Mas os cachorros que faziam a sesta também
queriam sua parte e desafiaram as bicadas para chegar às sobras. De nada
lhes valeu o risco: eram cascas de vegetais, nada de carne.
Isto supus, vendo que voltavam sem mastigar, sem um osso entre as
mandíbulas.
Emilia arcava com o meu filho e com a miséria. Entendi isso
claramente, embora sem remorsos.
A criança continuava lá dentro, possivelmente adormecida. Pensei que
era melhor assim. Uma galinha famélica, em transe de procurar sustento,
tanto mete o bico nas descarnaduras de um osso de vaca como no olho de
uma criança, se esta está sozinha e indefesa pelo chão.
Levantei-me do toco. Nesse instante, Emilia assomava de novo pela
porta da cozinha. Mesmo que à distância, advertiu o movimento. Colocou a
mão sobre os olhos, como um anteparo. Reconheceu-me, talvez, porque
jogou mais lixo no pátio, introduziu-se na cozinha e trancou a porta.
Regressei a passo lento. Fumava. Almoçara em abundância.
A caixa de latão estava vazia. Na algibeira, guardava o suficiente para
pagar dez refeições. O dono da pousada não trazia a caçarola se não visse na
mesa as moedas, que eu depositava cuidadosamente, ao sentar-me.
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— Tora, quem é essa senhora que se senta todas as tardes junto à janela?
— Sempre fez isso.
— Não estou te perguntando desde quando o faz, mas quem é.
— Sempre se assoma. Desde que nasci.
— E tens lembranças desde que nasceu?
— Desde antes, Vossa Mercê.
— Estás me gozando, Tora?
— Como poderia, Vossa Mercê?
Desnudou o braço até mais acima do cotovelo. Mostrou-me um antigo e
cicatrizado ferimento na carne.
— Tenho outros no corpo. Nasci com eles. Um branco, irritado, quis
matar a minha mãe com uma corrente. Eu estava dentro da minha mãe; não
havia nascido.
— E lembras disso?
— Sim, Vossa Mercê.
Tora me disse que essa mulher devia ter se retirado a um convento, porque
nenhum homem a tomou por esposa no devido tempo, mas não o fez. Seus
pais morreram. Depois, fugazmente, alojava-se na casa um cavalheiro,
suposto irmão, que vinha do interior.
Acabaram as referências de Tora. Devia saber mais, mas não podia
dizer-me todas sem esforço de memória. Por isso, talvez, fez esta
observação:
— Não é mais rica do que o meu senhor.
— E o teu senhor é rico?
— Não, é pobre.
Ao dizê-lo, lembrou ainda: o senhor Ignacio pretendeu remediar a
solidão da vizinha. Aconselhou-a que vendesse a casa e passasse a viver na
sua. Isso já faz muito tempo. A mulher se incomodou com a proposta e dom
Ignacio disse que pretendia conservar casa própria para receber com
comodidade a esse indivíduo que antes de morrer os pais ninguém conhecia
como irmão. Desde então, não existiam relações entre as duas famílias.
Por curiosidade de saber se na realidade Soledo traiu com aquele plano
algum desígnio secreto de homem sem mulher, perguntei:
— Isso que estás me contando aconteceu antes da morte da tua senhora?
Tora não estava surpresa ao dizer-me:
— A minha senhora não morreu.
Tomei como natural minha ignorância. Pretendeu continuar falando da
mulher que olhava a rua. Não deixei.
— Onde mora a tua senhora? Onde está?
A partir dessa resposta, Tora falou como se defendendo de uma
acusação, alarmada com o meu excitado interesse:
— Está aqui, Vossa Mercê. A senhora está na própria casa.
— É a mulher que chegou agora?
— Não chegou nenhuma mulher, Vossa Mercê.
— Como não! Por acaso não é a mulher que há dois dias estava vestida
de verde?
— Não sei, Vossa Mercê. Talvez não.
— Mas, pode ser?
— Sim, Vossa Mercê, pode ser.
— E a outra, então? Quem é a outra, a mulher jovem?
Tora me passou, com o olhar, sua acusação de sacrilégio:
— Vossa Mercê, Sumala morreu. O corpo de Sumala está na terra.
Mordi-me. Não devia continuar falando com Tora dessa questão
complexa e delicada.
Meus sentidos me diziam que na casa havia duas mulheres brancas. A
escrava afirmava — sem malícia, acredito — que era uma só e não filha,
mas esposa do senhor Ignacio.
Mentiras, mentiras, disse a mim mesmo, desgostoso e impotente. Casa
de embustes e de embusteiros.
Se fosse gozação, era excessiva.
Ausente Tora, quis fazer o que nunca fazia: ler, escrever alguma carta. Disse-
me que devia fazê-lo, consagrar meu tempo a alguma coisa de meu direto
interesse, e não a situações confusas de um lar que não era o meu.
Não obstante, o pátio me chamava. Peguei um livro, abrindo-o em
qualquer página.
O pátio chamava, chamava.
Não me importava o que lia. Não o entendia. Pensei que era a primeira
vez na minha vida que estava com esse livro. Não precisei constatar o
contrário: era um manual de leis muito usado por mim, a vida toda. É que o
pátio chamava!
E eu sabia que não estava atrás da porta, mas em mim, e que ganharia
vigência real só quando eu estivesse nele.
Saí. Era um alívio. Ali estava, com seus galhos sujos de branco pelos
pássaros, com suas luzes cinza do crepúsculo. Lá, ao fundo, na galeria, com
as alvas mãos cruzadas sobre sua ampla saia, de pé, sem, ao que parece,
nenhum sentimento, nenhuma ansiedade que a agitasse, estava a jovem.
Olhava-me.
Olhou-me um instante e se virou, correta e suave, para o corredor em
sombras. Um instante mais e já não estava lá.
Corri para o canto sombrio onde, segundo minhas presunções, abria-se
o corredor. Nesse lugar escuro não havia mais do que o encontro de duas
paredes, bem para dentro do beiral e, por isso, sempre sem luz.
Olhei para o pátio, desassossegado. Desejava que o dia não terminasse
rápido demais. Devia falar com Soledo, mas antes procurar por minha conta,
constatar, para que esse homem reservado até o desespero não me enganasse.
Percorri a parede alguns passos pela galeria norte.
Cheguei a uma porta que me era conhecida, pois correspondia à sala
onde me recebeu Soledo. As possibilidades eram mínimas; em não mais de
cinco metros por uma ou outra galeria devia estar o corredor. Era o único
setor que eu distinguia com clareza em seus detalhes a partir dos lugares do
pátio que antes não tentei exceder.
Os cinco metros da segunda galeria, até onde a luz dava em cheio, não
tinham mais do que uma porta fechada, inconfundível com a que seria
própria em um corredor, se é que alguém tinha vontade de colocar porta em
um corredor.
Depois desta porta, seguindo pela galeria defronte à ala onde se
achavam localizados os meus aposentos, abria-se uma janela. Detrás de seus
vidros vi duas vezes a jovem.
Estava aberta. Olhei, sem prudência. Dava para um quarto vazio, como
rota para o fundo, porque lhe faltava a porta na parede posterior. Mais
adiante, podia presumir-se um pátio ou um jardim, com plantas altas.
Impossível decifrá-lo, porque anoitecia. As sombras caíam em seu interior
como teias de aranha impregnadas de fuligem. Olhei para cima, como para
ver quem as soltava. Aquele quarto não tinha teto.
Então compreendi. Toda a ala do edifício encontrava-se abandonada.
Por alguma das portas, possivelmente a que deixei atrás, podia-se passar ao
outro corpo da casa.
Virei-me. Experimentei a porta. Suas dobradiças estavam secas e
descuidadas. Faziam barulho de ratazanas, mas mantinham a obediência. A
porta franqueava o acesso a outro quarto oco, sem teto.
Passei por ela.
Um vigoroso jardim de vegetação opaca. Pela frente, era fechado por
uma ala com galeria, adormecida. Em frente, outro setor alinhado de quartos,
com seres humanos capazes, para meu alívio, de acender candelabros e fazer
sob sua luz uma costura, um testamento, amor ou a morte.
Minha expedição não devia adiantar nem uma vara mais de terreno.
Tranquei a porta por fora, cuidando de deixar tão juntas as folhas como
as havia encontrado.
Já não precisava de explicações de Soledo e me aborrecia pensar em
uma conversa com ele.
Ao passar, observei a janela.
Uma mulher, às vezes, vinha a ela. Instalava-se no quarto vazio e me
dirigia seus olhares.
Entregue o papel e fechada a porta, voltei à minha mesa. Jogara com tal
pressa a pena, como para evitar que o arrependimento viesse com a demora,
que manchei com tinta alguns de meus papéis brancos.
Observei as gotas escuras, ainda frescas.
A frio, muito consciente do que fazia, esmaguei-as, enchendo minha mão
de tinta e de salpicaduras outros papéis. Queria estender a sujeira, que tudo
estivesse sujo.
Sopesei a algibeira; restavam algumas moedinhas. Eram suficientes.
Saí à procura de mulher.
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33
A .
Havia lá fora, no pátio, um derramamento de sol, que punha gozosos e
falantes os passarinhos. Sacudi-me. Vestia uma roupa alheia.
Um poncho de suave lãzinha.
Pensei que Tora poderia ter colocado em mim; mas, com a dúvida sobre
algo que não se podia precisar, voltou-me o frio. Fechei a porta aberta para
o pátio. Fiz do poncho colcha e procurei o leito como uma caverna onde
esconder-me.
Dormi até tarde.
Não abandonei o quarto enquanto não pressenti ausência de luzes no
exterior.
Encontrei-me com a Lua, que era uma mulher gorda e nua, sentada no
horizonte.
Fui para os fundos.
Na horta, procurei alguma coisa para mastigar, mas estava sumida em
extremo desamparo e carecia de árvores frutíferas.
Tomei mate na cozinha.
Não pensava na menina morta. Já estava longe. Lembrei do menino
loiro. Reaparecia, ao cabo de quatro anos, em circunstâncias
incompreensíveis. Não consagrei minha mente a ele com excesso.
Eu estava como separado de tudo, na cozinha, sozinho, esquecido. Podia
morrer ali sem que ninguém o notasse. Não me preocupava cessar. Mas,
disse-me, seria terrível que no transe gritasse de dor — ou de medo — e
ninguém me escutasse.
Estava isolado, sitiado, indefeso porque tinham me desarmado os
contrastes. Também os pressentimentos.
Voltava ao meu quarto como recolhendo trevas e já com a faculdade —
podia pensar-se — de ver-me desde fora. Pude ver-me transformado,
gradualmente, em figura de luto, por adesão das sombras, penugem de
morcego, no curso de meu caminho.
Ao pisar a antecâmara, soube que tudo isso podia desaparecer.
Podia desaparecer comigo.
Ia dar com alguma coisa, com alguém, e compreendi que estava em
transe de escolhê-lo ou escolher sua morte. Mas confundia isso com a
própria morte, e era uma noite triste, na qual, acredito, não resultava penosa
a escolha.
Havia se instalado um vapor de mulher.
Ela estava na antecâmara e desta vez não fugiria. Acendi o candeeiro.
Precisava ver seu rosto.
Eu procedia com uma serenidade desventurada, como obtida em
empréstimo para aquela ocasião.
Ardeu o pavio.
Ela também me esperava, sem alterar-se, impávida mesmo quando
aproximei a chama de seus cachos, para ver se era, e sim.
A atmosfera se pôs leitosa; mas atinei a manter-me erguido, deixar
pausadamente o candeeiro na mesa e procurar o descanso.
Acordei e era noite: o resplendor impuro da luminária batia na parede.
Alguém me agasalhara e eu não queria virar a cabeça porque percebia
sua presença junto ao leito. Não por evitar vê-la, mas porque quem sabe o
que me advertia de uma decepção.
Passou a mão — água fresca — pela minha testa e deduzi que era a
mesma carícia da véspera.
Ela.
Virei a cabeça.
Decepção, sim. Decepção.
Pente. Idade sem flores. Um afeto compassivo, uma piedade amorosa e
sacrificada, nos olhos. Tudo muito definido, sem reservas, sem mistério.
— Não és — disse, balançando a cabeça e falando como se estivesse
sozinho ou ela nada significasse.
— Sou — disse-me com amargura.
Não podia fingir e enganar-me, embora possuísse tanta clarividência
para entender minha decepção por aquelas duas palavras: “Não és”. Não
podia mentir para mim: também sua voz era a de uma matrona quando disse:
“Sou”.
Eu, rechaçando sua afirmação, fechava obstinadamente os olhos, como
para isolar-me com a íntegra angústia do não-encontro.
Até que ela me disse, insinuando a dor do bem perdido e irrecuperável:
— Ah, bem o sei. Outra mulher pode desejar quem, como vós, vê-se
procurado e atendido sem que o solicite. Outra mulher deveria ser a que esta
noite se arrisca para vos assistir e, transtornada de solidão, põe-se em
vossas mãos. Jovem teria de ser, talvez mais bonita do que sou agora, clara a
voz, suaves os cachos, suave o cor-de-rosa de seu vestido...
Era como advertir-me que me sabia submetido ao encanto daquela outra
figura entrevista, para mim sua possível filha, para ela sua efetiva rival.
Mas eis aqui que também a presente alcançava os poderes da
fascinação, e isto pela voz, que ganhou um tom grave, dolente e
inapreensível, embora próximo, como eu o queria. Entreguei-lhe minha
atenção como predisposto a um canto revelador que viesse do bosque.
Porque tudo quanto me dizia era simples e compreensível. Porém eu o
recebia como se tivesse duplo âmago e, nele, a explicação, todas as
explicações.
Apertou uma das minhas mãos por cima da manta. Procurava ser mais
persuasiva ao propor-me:
— Ah, se um homem quer... Pode-se ser uma e a outra. Ele consegue ver
uma mulher como ela é e como a deseja.
Isso havia feito eu nos dias anteriores? Receava que me dissesse isso.
Receava isso e mais alguma coisa. E ela, continuando seu pensamento, disse:
— Mas só se ele ama essa mulher. Porque se se aferra unicamente
àquela que já não é, ama uma perigosa fantasia. Dela viriam um dia, para
ele, a destemperança, o dissabor, talvez, o horror.
Isso, justamente, era. O horror, nessa noite ainda não revelado como
horror, já me capturara.
Então o neguei, para negar poderes sobre mim a essa mulher que tão
certeiramente penetrava em meu interior:
— Como posso eu, como ninguém poderia, abandonar-se
voluntariamente ao horror?
Como resposta, cravou-me estas palavras:
— Se quereis ver com medo o meu passado, é para transferir o temor de
vosso próprio passado.
Tive a sensação de estar discutindo com essa perigosa fantasia que ela
mencionara.
Essa sugestão, por ser muito forte, não chegou a assustar-me e consegui
fazer um esforço de discernimento a fim de colocar suas palavras dentro do
normal e do possível. Pensei que nada mais pretendia do que me intimidar,
para que eu repudiasse a imagem da jovem e a amasse. No entanto, rechacei
a tentação de discutir a verdadeira natureza dessa figura viçosa das
aparições vespertinas. Sim, reclamei por sua censura à minha vida
precedente. Exclamei:
— O meu passado não é indigno!
Olhei-a no rosto, para ver se a afetava o impacto da minha explosão, e
isso não aconteceu. Estava serena, e com sua serenidade afugentou as
suspeitas que me conduziram um momento à exasperação.
Parecia ter estado agüentando com paciência o desenvolvimento de
minhas idéias. Contemplava-me. Pensei que, prevenida de que não aceitava
sua opinião, falaria comigo já com esse acatamento à minha pessoa que sua
presença em meu quarto deixava supor.
Mas não. Disse:
— Todos, quase todos, somos pequenos fatos. Elaboramos presente
miúdo e, conseqüentemente, passado aborrecível.
Tomou-me de um ombro, aferrando-se com a mão aberta, e me disse:
— Tenho medo de elaborar culpas, para que o passado não seja mais
poderoso do que o futuro.
Não eram, para mim, reparos novos, pois podiam se confundir com os
de toda mulher que formula a última vacilação antes de sua entrega
passional. Não obstante... por que me penetravam de tão inquietantes
impressões? Quando falava de si mesma, não se poderia pensar que falava
de mim? Por qual razão sua linguagem era tão estranha e ajuizadora? Por que
motivo se pronunciava de maneira tão conceitual e inoportuna para uma
situação semelhante?
Tudo era ambíguo demais, mas não me parecia que a ambigüidade
estivesse nela, e sim que emanasse de mim mesmo e que essa figura
feminina, ao meu lado, não fosse verdadeira, mas uma projeção de minha
atribulada consciência, uma projeção corporificada pelos poderes de
criação mágica que possui a febre.
— Tenho medo — repetia ainda com tristeza, e me ocorreu que essa
tristeza não lhe pertencia, que era minha e muito alheia.
— Tenho medo — dizia, e eu também tinha medo e quis dizê-lo sem a
vergonha das palavras. Com a minha mão procurei a sua e a segurei, e estava
ardente, e isso teria me confortado se não tivesse deslizado em mim a
suspeita de que a minha mão direita segurava a minha mão esquerda, ou a
esquerda a direita, não podia saber.
Não podia saber se havia mulher, não podia saber se dialogava com
alguém. Eu não sabia, não conseguia saber se tudo isso estava acontecendo
ou não.
E em meio a esta desordem e a esta incerteza, pareceu-me que ela se
virava em uma desesperada tentativa de apagar o dito, de anular o caos que
estabelecera com o raciocínio.
Beijou-me como para fazer-me chagas. Beijou-me infinitamente.
Tomava, com aqueles beijos, minhas forças.
Era de uma sensualidade dominadora e, no entanto, capaz de cavar e
deixar-me vazio até fazer com que já não a desejasse.
Só meus lábios tomava e, através do beijo, como em uma absorção,
parecia levar-me lá, aonde não sei, nem nada há, nada é. Tudo se negava.
As minhas forças se esgotavam antes de onde é possível a vontade.
Terminavam... Terminavam... Sem sobressaltos, já sem sobressaltos,
mansamente, terminavam.
E tudo era... um acolhedor e dilatado silêncio.
34
Caminhei, como ensaio, até a ribanceira. Andei, com satisfação, o teste mais
bravo que me impus, de chegar, subindo, até esse lugar onde, numa sesta,
instalei-me para ver a ruindade de minha segunda família.
Dei com o toco vetusto e me foi útil para um respiro, comprazido da
façanha.
Olhei para baixo, para o rancho.
Eles, eles dois, seguiam minha proeza com um gozo prudente.
Manuel abraçava Emilia pelos ombros. Ela se deixava ter, confiada, e
ninguém podia dizer que tenha sido uma mulher irritável e porca. Cinco anos
mais velha do que Manuel, isso sim, continuava e continuaria rindo.
Pessoa alguma, disse-me, pode perceber meu amor, minha bondade,
meu sacrifício, mas pode proceder por mim. Não obstante, se me machuca,
sem ciúmes, que Manuel o tenha feito, é porque não perdi a compaixão nem
a magnanimidade.
A prova seguinte foi mais severa: até uma rua e uma casa afastadas, ao
norte, da aglomeração.
Indaguei.
O senhor Soledo, sua esposa, misía Lucrecia, um mulato e uma escrava,
de apelido Tora, partiram com destino ao Brasil entre quatro e cinco
semanas antes.
Esse era o inventário, com uma só e única mulher branca.
Meu corpo esgotado suportou pior o retorno. Demorei mais do que podia ter
tranqüilos a Emilia e Manuel.
Eu me segurava nas grades de uma janela, para descansar antes de outro
trecho de marcha, e vi Manuel vir, certamente mandado para as ruas para
buscar-me. Não tentei continuar caminhando. Ele me ajudaria.
Era, ainda, meu secretário. Senti desejos de instá-lo com gestos para
que se apressasse. Eu precisava saber se ele guardara para mim alguma
mensagem de Marta.
1799
Vicuña Porto era como o rio, pois com as chuvas crescia.
Quando as águas do céu tórrido se derramavam sobre a terra, inchava-se
a língua da corrente, enquanto Vicuña Porto escapava daqueles solos
assiduamente molhados.
Então, se uma vaca se perdia, culpa se jogava ao rio, o lambedor da
gula incessante, e se um mercador morria, na cama, destripado, já a culpa
era de Porto.
A cada ano — e já iam dois —, Vicuña Porto aumentava: era um homem
numeroso e a cidade o temia.
Temerosa vivia dele, mas sem levantar o garrote, até que veio o
incêndio e tomou uma quadra e duas e três, e cada qual escutava abrasar-se
aqueles paus como se fossem seus ossos.
A cidade se decidiu e quis caçar Vicuña.
Mas alguns diziam que era o tempo de sua chegada e, outros, o tempo de
sua partida, e ninguém podia dizer se estava ou não na cidade; deu-se inútil
batida nela e depois se pôs de pé uma coluna de guerra, contra Vicuña e sua
gente, para alcançá-lo em seu esconderijo e para sua morte alcançar.
35
O governador segurava uma das minhas mãos com as suas e não cessava de
despedir-se de mim, incrédulo de minha partida para o Norte, tão contrária à
sempre desejada.
Disse-me, por fim, com a solenidade do cargo nas faces, que “Sua
Majestade celebraria este retorno às armas e mais o triunfo, que saberia
compensar”.
Esta era a promessa necessária, coincidente com a evidência de que
uma arriscada empresa de armas, para o bem do sossego da população,
poria-me nas mãos do monarca, para que ele me colocasse onde a mim
melhor me acomodasse.
O triunfo seria uma ronda, dada com séquito. Vicuña Porto não poderia
dissimular-se como fazendeiro, colono ou peão de plantação de mate. Aonde
quer que déssemos com ele, eu saberia reconhecê-lo.
Atendera a meu serviço, na época do corregimento. Desleal, amotinou
índios, promoveu rapina e nunca se deixou apresar, até extinguir-se o
barulho de suas correrias, por outros rumos que tomou, e pacificaram as
terras aos meus cuidados.
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38
Durante essa limpeza, a víbora, se não morre esmagada pelo cavalo ou não
consegue escapar, defende-se atacando.
Não quis morder embaixo, nem na quartela. Subiu pela pata do animal e
pude bater nela quando ia pelo joelho e ainda mais acima, porque se
encaminhava para morder-lhe o peito.
Mas de nada tive consciência até sentir os coices e ver-me em risco de
sofrer outra afrontosa rodada.
Perdi as rédeas e me prendi na crina.
O cavalo, mordido, estendia-se em galope e a víbora perdera apoio e
ficava pendurada no peito, presa pelo dente. Chicoteava seu longo corpo
sobre as costelas da vítima e esse era o perigo — estimulante do meu pavor
—, que se soltasse e, serpenteando um segundo no ar, fosse enroscar-se na
minha perna.
O quadrúpede tropeçou, rodei por cima de sua cabeça e acudiram a
auxiliar-me.
Vicuña Porto era um dos soldados da legião posta à caça de Vicuña Porto.
39
De manhã, minha primeira ansiedade foi ver Vicuña Porto, caso nos tivesse
deixado de noite, eximindo-me de tal maneira do peso do acobertamento e
de sua permanente ameaça.
Estava ali, indistinto entre os demais, quase manso, poderia dizer,
quando descobriu que tinha o meu olhar sobre ele.
Não quis expor-me como imprudente e me afastei.
Durante os preparativos, escrutei atentamente semblante e aspecto dos
demais, para ver se alguma coisa revelava a existência de sequazes do
temido. Podiam sê-lo, ocorreu-me, três, quatro... Podiam ser todos, talvez
nenhum. Todos eram igualmente rudes, sujos, robustos, vigorosos e sãos. Eu
tardara dois dias em saber suas características mais visíveis e em topar com
suas caras.
Hipólito Parrilla, mate na mão, que continuava chupando mesmo depois
de tê-lo secado, desafogava-se em ordens supérfluas, já que cada um estava
perfeitamente a par de sua rotina e a cumpria, sem pressa, isso sim,
tampouco com maior apuro só porque o chefe o mandasse.
Recém-amanhecido, o capitão já não se continha de excitação.
Entediava-o a perspectiva de internar-se em domínio de índios armados
embora, teoricamente, eles fossem amistosos vizinhos dos espanhóis.
Ao vê-lo tão excedido de irritação, entrou-me o sabor de meu segredo;
eu, o que sofri resignadamente a afronta de sua ira, era o único inteirado de
que Vicuña Porto galopava detrás de seu perseguidor.
Vingança. Regozijo.
Podia calar dois, quatro, oito dias mais sem penar por minhas fraquezas.
Contava com a desculpa, válida perante mim mesmo, de que diferia a
denúncia para cobrar-me a mão que Parrilla colocou em cima de mim,
zombando de mim, caladamente, de seus esforços, que o levavam, sem razão,
mais adiante, cada vez mais adiante.
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Evadira-se a ilusão da luta. Para mim. Para o capitão Parrilla, talvez, não.
Pode-se pensar que continuou alucinado pelo fantasma da batalha. Esqueceu
de mudar a ordem de formação de combate e, embora esta fosse puramente
quimérica, importava uma exibição de armas que resultou mortal. Eu
tampouco o notei.
O sol era um cachorro de língua quente e seca que me lambia, lambia-me, até
acordar-me.
O cachorro mostrara comigo a maior fidelidade, acordando-me primeiro
que todos. Ficavam pelo chão, para a sua língua, muitos dormentes.
Índios, soldados, o capitão...
Ergui-me até sentar-me. Contraí as pernas e, dando-lhes firmeza seguras
com os braços, coloquei sobre os joelhos a cabeça, que não aceitava manter-
se erguida.
Mas funcionava.
Fez-me presente que a cavalhada estava dispersa e seria esgotante
reuni-la. Que as vacas teriam fugido para os bosques, e as que não, estariam
em poder dos índios, talvez carneadas.
Que haviam sido carneados três dos nossos.
Quis condoer-me. Não pude.
Não sabia quais eram. Não os conhecia. Mal os vi, de noite.
Considerei que teríamos de dar-lhes sepultura.
Ficariam ali, ao pé do monte, com uma cruz e uma pedra em cima.
O vento derrubaria a cruz. Alguém, depois, tiraria a pedra.
Terra lisa.
Ninguém.
Nada.
Sacudi-me sem mover-me.
Não podia ser. Isso não podia ser para mim.
Era preciso regressar, não se expor mais.
Abandonar a procura.
Parrilla não se disporia a fazê-lo, injuriada sua honra militar pelos
índios e sem ter capturado Vicuña Porto, sem haver farejado um rastro dele.
Vicuña Porto.
Denunciá-lo. Voltar.
Levantei a cabeça apenas para que os olhos procurassem.
Não estava entre os caídos.
Parrilla dormia. De costas, boca aberta, cabeça virada.
Acordá-lo. Dizer-lhe. Chamar os dois, os seis, oito, soldados
adormecidos, os mais próximos, e ir por ele.
Sim.
Devia fazê-lo. Chamar Parrilla, dizer-lhe...
Pensava em todas as ações, mas não conseguia mover-me.
Tinha as pernas rodeadas pelos braços, o corpo como embalado. Para
que o transportassem, não para deslocar-se.
Teria sido terrível que alguém me exigisse que o fizesse pôr de pé, o
corpo.
Apareceu um soldado, não sei por onde. Outro. Um terceiro, que era
Vicuña.
Olhavam, talvez para ver quando o chefe se aprumava.
Pus a testa sobre os joelhos.
Dormir... Dormir...
41
Nalepelegrá pegou nossas vacas dizendo que pagaria por elas mais do que
seu valor. Este pagamento foi dizer-nos que as vacas fugitivas de todas as
fazendas do Norte se refugiavam nos bosques de y-cipó.
Aconselhou-nos tirá-las, formar um grande cerco, levá-lo para a nossa
terra e abandonar a procura do homem branco, porque, disse, todos os
homens brancos são igualmente malvados, menos o capitão Parrilla, eu e
cada um dos nossos soldados, aos quais mencionou por seus nomes ou
alguns aproximados. Envaidecia-se de tê-los aprendido.
Vicuña Porto usou facão uma vez, ao meu lado. Muito mudo, suado e
esfalfado.
Bateu em um cipó, o mesmo que eu trabalhava e a pouca distância: o
machado resvalou e os dois metais, faca e machado, chocaram-se.
Pensei que era uma provocação, mas não.
Irascível, com esforço, disse-me que foi uma torpeza de seu braço e que
o dispensasse.
Afastou-se.
Outro dia, o imediatamente posterior, procurou-me e se pôs ao meu
lado. Cortávamos com denodo, como para mostrar, um ao outro, que nada
nos importava, a não ser abrir o bosque.
Esgotei-me e, arfando ansiosamente, interrompi. Ele também. Então me
disse:
— Tenho meus pecados, mas não todos os que imputam a Vicuña Porto.
Não existe o Vicuña Porto nem o sou eu nem é ninguém. É um nome. E o meu
é Gaspar Toledo. Sou Gaspar Toledo, eu o venho sendo durante um longo
ano, e não quero ser outra coisa.
Batia em seu peito quando dizia que era Gaspar Toledo.
Eu o escutava escutando todos os barulhos do contorno, para saber se
Parrilla chegava, para torná-lo partícipe, sem a minha intervenção, daquela
confissão não pedida.
Estávamos sozinhos, os dois em um maldito buraco, que havíamos
cavado juntos ao longo da tarde.
Vicuña Porto não falou porque lhe saíssem da boca culpas e protestos
de virtude. Procurava comprometer mais minha cumplicidade pela
persuasão, convencendo-me de sua inocência.
De modo que assim que terminou de falar, e compreendi que ninguém
nos escutava, disse-lhe:
— Acredito.
Propus-me a desmascará-lo essa noite.
42
P .
Retomávamos a marcha e os homens já haviam equipado as montarias.
A espada do capitão não podia talhar o desenho.
Os vigias deram o alarme, que para mim estava presente desde alguns
momentos antes.
Um apinhado de forma variável, remoto e móvel.
Pensei em um exército indígena, uma matilha de chimarrões famélicos,
uma manada de animais selvagens...
Pensei que, talvez, Parrilla me deixaria morrer com as mãos atadas.
No entanto, acudiu a mim a esperança com a apreciação de que, quem
fosse que viesse, homem ou animal, marchava de sobra a descoberto para
merecer que se presumisse inimigo.
Não obstante, se se tratava de nativos em plano de agressão, podiam
contar eles com a vizinhança da noite, que apenas reduzia sua segurança no
deslocamento e para nós constituía estorvo e espessa clausura.
O capitão fez alistar os homens e mandou aos observadores que
avançassem tanto quanto pudessem para ver melhor.
Antes de meia hora estavam de volta, com a maravilha no rosto.
Afirmaram que eram indígenas, em número de quinhentos ou pouco
mais, e que marchavam a pé, em procissão, mas sem cruz nem imagem de
santo na frente, talvez sem rezas.
Parrilla perguntou se os guiava ou acompanhava algum frade.
— Não, senhor capitão — respondeu o principal, e os outros dois vigias
disseram que não com a cabeça.
É possível que só em tal ponto reparassem no desacerto de imaginar
uma caravana religiosa. Chegaram vestidos de cinza com o crepúsculo.
Parrilla havia alinhado seus homens em duas filas pares, talvez calculando
construir um muro duplo, e isto, claro, em uma batalha passaria a ser,
deveras, mera fantasia.
Porto e eu fomos mandados para a zaga, com custódia, junto aos cavalos
de revezamento.
Meu posto era deprimente e inábil para a observação.
Vi aproximar-se aquilo.
Estendido, podia envolver-nos hermeticamente.
Antes de superar certa distância estritamente prudente, que de maneira
alguma autorizava a carga dos ginetes, cessou o avanço.
Pela terra neutra, adiantaram-se uns oito ou dez meninos.
Ocorreu-me que tinham esse ar de decisão e essa confiança em si
próprios e em seus poderes que os tornam mais imunes aos diplomatas.
Puseram um joelho em terra diante do cavalo de Parrilla.
Notei que corria junto a ele um dos baqueanos.
Parlamentavam. O capitão do rei e os pequenos indígenas.
Eu não podia saber o que diziam.
Uma voz, uma só, passaram uns aos outros os soldados; mas veio a
morrer no trecho em claro entre eles e nós.
44
Outro índio trouxe para as brasas seu igtacú-guá, para caldear água.
Acocorou-se entre nós. Não falava.
Preparou mate.
Passou a cuia ao acaso, para quem quisesse servir-se antes dele. Disse
“forte”, que o mate era forte.
Falava espanhol. Foi mitayo[5] antes de ser cego.
Narrou outra vez a invasão dos mataguayos. Todos nós já a
conhecíamos.
45
D .
Para além das paredes do sonho, tive um deslumbramento.
Abri os olhos. Impossível olhar.
Um momento, tivera junto ao rosto um archote aceso.
Já não estava seu calor em minha carne.
Fiz por ver, prevenido.
Dois, três archotes corriam entre os corpos adormecidos.
Uma verificação.
Sigilo.
Quis levantar-me. Não pude.
Meus pés estavam presos por uma corda.
No entanto, ao deitar-me para passar a noite sozinho, tinha as mãos
atadas.
Todos tinham soltos pés e mãos; eu, com liberdade de caminhar, permanecia
manietado.
Os soldados comiam carne assada, fria, de veado. Detive-me perto,
para olhá-los.
Um, talvez meu companheiro de fogueira da noite anterior, desatou-me e
me deu de comer.
Ninguém objetou a sua ação.
Alimentavam-se em silêncio, como reservando seus pensamentos por
temor de discuti-los. Alguma coisa ficava por fazer.
Vicuña Porto abandonou a cuia sem esvaziá-la.
Os demais cessaram de mastigar e afastaram os restos de carne.
Meu benfeitor, olhando-me na cara, disse-me que já era suficiente.
Pretendia que eu lhe dissesse que me amarrasse de novo? Não podia pedir-
lhe isso. Ele o fez, então, sem que mediasse solicitude de minha parte.
Resmungava, ele.
Vicuña Porto se retirou, e os soldados o seguiram. Segui Vicuña Porto e
os soldados.
Tinham Parrilla como prisioneiro e era um feroz prisioneiro.
Estava caído no chão, travado com muitas cordas.
Aquela que foi sua gente o rodeou, contemplando-o, e eu com eles, mas
possivelmente ele não me distinguia. Insultava a todos de um modo geral.
Afastaram-se. Soube que era um conselho no qual eu não seria admitido.
Fiquei ali, diante do capitão.
Ele me disse: “Também disseste que sim”, e pensei que os outros
soldados, aqueles que não eram os três, haviam dito que sim a alguma coisa,
mas eu não, porque nada me perguntaram.
Ia explicar a Parrilla, e ocorreu-me que já era desnecessário, porque
Parrilla, logo a seguir, deixaria de estar conosco.
Pareceu-me que, nesse momento, em toda a crosta terrestre não
alentavam mais do que dois homens: o capitão, encordoado aos meus pés, e
eu, manietado, observando-o como se não fosse ele, como se não fossem
possíveis os sentimentos, como se não fossem possíveis as possibilidades.
47
49
50
Alguém me disse:
— Queres viver?
Alguém me perguntava se desejava viver.
Era, então, porque o meu sangue não se foi de todo. Era, também,
porque chegara o índio.
Podia, pois, não morrer. Não morrer ainda.
Rasgou a minha roupa.
Depois senti a prisão do torniquete nos braços e soube que as minhas
mãos sem dedos já não emanariam sangue.
Talvez tenha dormitado, talvez não.
Voltava do nada.
Quis reconstruir o mundo.
Descolei as pálpebras tão pausadamente como se elaborasse a alvorada.
Ele me contemplava.
Não era índio. Era o menino loiro. Sujo, estragadas as roupas, com não
mais de doze anos.
Compreendi que era eu, o de antes, que não havia nascido de novo,
quando pude falar com a minha própria voz, recuperada, e lhe disse através
de um sorriso de pai:
— Não cresceste...
Por sua vez, com irredutível tristeza, ele me disse:
— Tu tampouco.
[1]
Publicado originalmente em El concepto de ficción. Buenos Aires: Ariel, 1997.
[2]
Forma de referir-se aos uruguaios, da época colonial até os dias atuais, derivada do nome do país:
República Oriental do Uruguai. (N. T.)
[3]
Antigo cargo de governador de província ou comarca fronteiriça, com poder militar. (N. T.)
[4]
Tratamento de cortesia ou de respeito equivalente a minha senhora, antecedendo o nome da mulher a
que se refere. (N. T.)
[5]
Voz quéchua. Índio que, na América, era sorteado para trabalhar nas obras públicas e minas. Era um
trabalho forçado, mas pago. (N. T.)