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Antonio Di Benedetto nasceu na cidade de Mendoza, Argentina, em 2 de

novembro de 1922. Na sua juventude, após abandonar os estudos de


advocacia, iniciou a carreira de jornalista, sobretudo no jornal mais
importante de sua cidade natal, Los Andes, no qual exerceu funções de
direção entre os anos 1967 e 1976. Como atividade paralela ao jornalismo,
Di Benedetto explorou a literatura desde a década de 1950 e deixou cinco
romances e coletâneas de contos.
Em março de 1976, poucas horas após o golpe militar, o autor foi preso
e encarcerado em um dos centros clandestinos da última ditadura argentina,
permanecendo preso durante catorze meses. Nunca foram esclarecidos os
motivos de seu encarceramento. Em 1977, devido à intervenção de
intelectuais argentinos e estrangeiros, foi libertado e saiu do país para um
exílio que durou até 1984. Nesses sete anos, o escritor morou em Madri e
passou por outras cidades européias, como Roma, Paris e Berlim, e pelos
Estados Unidos, onde permaneceu por alguns meses do ano de 1981 como
bolsista da Fundação McDowell.
Sua obra literária — que, como afirma Saer, se destaca por uma rara
“conjunção de rigor, de inteligência e de graça” — obteve reconhecimento
nacional e internacional em várias oportunidades, tendo recebido distinções,
prêmios, bolsas de estudo e, nos últimos anos, homenagens. Dentre os
prêmios recebidos, o mais importante foi o Itália-América Latina de
Literatura, outorgado em Roma em 1978 pelo romance Zama.
Restabelecidas as instituições democráticas, em 1984 Di Benedetto
retornou à Argentina, quando sua obra literária, traduzida para diversas
línguas (alemão, francês, italiano e polonês, entre outras), já havia atingido
projeção internacional. Faleceu em 10 de outubro de 1986, em Buenos
Aires.

J J S nasceu em Serodino, província de Santa Fé, Argentina, no


dia 28 de junho de 1938. Foi professor da Universidade Nacional do Litoral,
onde lecionou história do cinema e crítica e estética cinematográficas.
Contista, romancista, poeta e ensaísta, publicou quatro livros de contos —
En la zona (1960), Palo y heso (1965), Unidad de lugar (1967), La mayor
(1976) — e dez romances: Responso (1964), La vuelta completa (1966),
Cicatrices (1969), El limonero real (1974), Nadie nada nunca (1980), El
entenado (1983), Glosa (1985), La ocasión (1986, Prêmio Nadal), Lo
imborrable (1993), e La pesquisa (1994). Em 1983, publicou Narraciones,
antologia de relatos em dois volumes. Em 1986, apareceu Juan José Saer
por Juan José Saer, seleção de textos seguidos de um estudo de Maria
Teresa Gramuglio, e, em 1988, Para una literatura sin atributos, conjunto
de conferências e artigos publicados na França. Em 1991, publicou o ensaio
El rio sin orillas, e, em 1997, El concepto de ficción. Sua poesia está
reunida em El arte de narrar (1977). Tem sido traduzido para o francês, o
inglês, o alemão, o italiano e o português. Faleceu em Paris, França, no dia
11 de junho de 2005.
Antonio Di Benedetto

prefácio:
Juan José Saer

tradução:
Maria Paula Gurgel Ribeiro
Copyright © 1999 by Luz Di Benedetto
Copyright da tradução © 2006 by Editora Globo S. A.

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida – em
qualquer meio ou forma, seja mecânico ou eletrônico, fotocópia, gravação etc. – nem apropriada ou
estocada em sistema de bancos de dados, sem a expressa autorização da editora.

Título espanhol:
Zama

Revisão: Beatriz de Freitas Moreira, Maria Sylvia Corrêa


e Ana Maria Barbosa
Capa: Ettore Bottini, sobre detalhes do Retrato de Jacques Marquet, óleo de Jean-Auguste-
Dominique Ingres (1811).

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Di Benedetto, Antonio
Zama / Antonio Di Benedetto ; prefácio Juan José Saer ; tradução Maria Paula Gurgel Ribeiro. – São
Paulo : Globo, 2006.

ISBN 978-85-250-5746-4

1.Di Benedetto, Antonio. Zama – Crítica e interpretação 2. Existencialismo na literatura 3. Romance


argentino I. Saer, Juan José. II. Título.

06-0485 CDD-ar863.4

Índice para catálogo sistemático:


1. Romances : Literatura argentina ar863.4

Direitos de edição em língua portuguesa


adquiridos por Editora Globo S. A.
Av. Jaguaré, 1485 – 05346-902 – São Paulo, SP
www.globolivros.com.br
Sumário
Capa
Sobre o autor
Folha de rosto
Créditos
Prefácio
Às vítimas
1790
1
1794
Remontava-me à idéia
1799
Vicuña Porto era
Notas
Prefácio

Z [1]

A Nicolás Sarquis

Como a maior dos acontecimentos literários, o surgimento de Zama,


em 1956, passou praticamente despercebido. Algumas resenhas
bibliográficas isoladas apontaram, no entanto, a qualidade do livro.
Abelardo Arias diria mais tarde, e com razão, que se Antonio Di Benedetto
tivesse escrito seus contos e romances em Paris, e não em Mendoza, sua
cidade, seria mundialmente famoso; diferentemente de outros escritores
latino-americanos que escrevem da Europa e alcançaram, desse modo, e
talvez por essa razão, grande renome nas letras continentais, mas não
mundiais, Zama ocupará algum dia esse cobiçado lugar. Se os críticos de
língua espanhola falassem dos bons livros e não dos livros mais vendidos e
mais propagandeados, dos livros que trabalham deliberadamente contra seu
tempo e não dos que tratam de adular a todo custo o gosto contemporâneo,
Zama teria ocupado nas letras de fala espanhola, desde o seu surgimento, o
lugar que merece e que já começa, de modo silencioso, lento e férreo, a
ocupar: um dos primeiros. Zama é superior à maior parte dos romances que
foram escritos em língua espanhola nos últimos trinta anos, mas nenhum bom
romance latino-americano é superior a Zama.
Pretendeu-se, às vezes, que Zama fosse um romance histórico. Na
verdade, longe de ser semelhante coisa, Zama é, ao contrário, a refutação
deliberada desse gênero. Não há, a rigor, romances históricos, tal como se
entende o romance cuja ação transcorre no passado e que tenta reconstruir
determinada época. Essa reconstrução do passado não é mais que simples
projeto. Não se reconstrói nenhum passado, mas simplesmente se constrói
uma visão do passado, certa imagem ou idéia do passado que é própria do
observador e que não corresponde a nenhum fato histórico preciso.
A pretensão de escrever romances históricos — ou de os estar lendo —
resulta de confundir a realidade histórica com a imaginação arbitrária de um
passado perfeitamente improvável. Já não lembro onde nem quem afirmava
que o único valor de Zama era o de reconstruir a língua colonial da época
em que se supõe que transcorre o romance. Em Zama não há, tampouco,
nenhum tipo de reconstrução lingüística — e é evidente que tal projeto nunca
foi levado em conta por seu autor. Há, ao contrário, paródia, e no sentido
nobre do termo, sentido que se opõe mais lucidamente ao de burla ou
pastiche ou imitação.
O que distingue uma paródia de uma imitação é a relação dialética que a
paródia estabelece com seu modelo, mediante a qual o modelo é só
parcialmente recoberto para conseguir, desse modo, a partir da relação
mútua, um novo sentido. A imitação pretende sobrepor-se inteiramente a seu
modelo, empresa que é, evidentemente, inútil, já que sempre há de restar
uma margem, um interstício, pelo qual se mostre o modelo pondo em
evidência, ao mesmo tempo, a imitação. Na paródia esse interstício é
deliberado, e da exibição da paródia como tal surgirá o novo sentido.
É por meio dessa paródia, justamente, que Zama quer mostrar que não
há de ser lido como um romance histórico. A língua em que está escrito não
corresponde a nenhuma época determinada, e se em alguns momentos
desperta algum eco histórico, quer dizer, o de uma língua datada, essa não é,
de maneira alguma, contemporânea aos anos em que supostamente transcorre
a ação — 1790-1799 —, mas anterior em quase dois séculos: é a língua
clássica do Século de Ouro. É claro que não se trata de uma imitação vulgar
à maneira de nossos neoclássicos, e sim de um sábio procedimento alusivo e
secundário incorporado à entonação geral da língua nacional de Di
Benedetto.
Toda narração transcorre no presente, embora fale, a seu modo, do
passado. O passado não é mais que o rodeio lógico, e inclusive ontológico,
que a narração deve dar para agarrar, através do que já permitiu, a frágil
incerteza da experiência narrativa, que ocorre, do mesmo modo que sua
leitura, no presente. Ao tornar esse passado mais evidente, ao transformá-lo
em passado cru, nitidamente afastado da experiência narrativa, o narrador
não quer senão sugerir a persistência histórica de certos problemas. O
esforço de Di Benedetto tende, portanto, não a se evadir do presente —
esforço condenado, por outro lado, a uma impossibilidade trágica —, mas a
exaltar a validade do presente e a torná-la mais compreensível mediante um
afastamento metafórico em direção ao passado.
Porém não por não poder ser romance histórico, a narração não há de
poder ser historicamente datada. Publicado em 1956, Zama tinha mais de
uma razão para passar quase inadvertido: na Argentina, nesses anos, o
existencialismo e seu estilo sociológico, marcado por Que é a literatura?,
de Sartre, constituíam a maior influência sofrida por nossos escritores e
nossos intelectuais. Em certos aspectos, Zama pode ser considerado um
romance existencialista, embora por muitas razões se afaste
consideravelmente dessa corrente. Por um lado, Zama, em que a história
está, a seu modo, presente, nega-se a aceitar esse estilo sociologista
considerando, com razão, que o estilo sociológico do existencialismo, ainda
que tenha sido fecundo para sua evolução, introduz um elemento voluntarista
que é estranho à narração. E, por outro lado, mediante seu afastamento
metafórico em direção ao passado, Zama põe por terra o historicismo
superficial que pretende que o repertório temático do existencialismo não
tenha sido mais do que o produto, em sentido puramente determinista, da
Segunda Guerra Mundial.
Zama é, por certos aspectos de sua concepção narrativa, comparável às
maiores obras da narração existencialista, com A náusea e O estrangeiro.
Eu acredito, no entanto, que pelas circunstâncias em que foi escrita e a
situação peculiar da pessoa que o escreveu, Zama é, em muitos sentidos,
superior a esses livros.
Em primeiro lugar, o que distingue os livros citados de Zama é que seus
autores, de um modo ou de outro, tiveram, na época em que os escreveram,
um comércio estreito com a filosofia. A náusea é um livro que, por ter sido
escrito depois de ter sido concebida a filosofia que o sustenta, podemos
considerar mais um informe ou uma ilustração de certas teses do que uma
narração. Algo aproximado, embora menos taxativo, podemos afirmar de O
estrangeiro. Zama, entretanto, não é o produto de nenhuma filosofia prévia:
encontra, antes, a filosofia, de maneira espontânea, como Édipo a seu pai
desconhecido na trágica encruzilhada.
Deste fato podemos inferir uma distinção precisa entre literatura e
filosofia: distinção que não se encontra no objetivo de reflexão, mas na fase
do processo de criação ou de expressão em que esse objeto se encontra
localizado: anterior, no caso da filosofia; dentro, em algum lugar, no caso da
narração.
A filosofia parte de um objeto de reflexão; a narração encontra-se com
ele ou o semeia em algum momento de seu percurso. O fato de Di Benedetto
ser um escritor e não um filósofo, e o fato de que tenha escrito seu romance
em uma pequena cidade argentina e não na cidade na qual o existencialismo
alcançou o esplendor mundano que o transformou na moda intelectual dos
anos 1950, multiplica o valor de Zama e corrobora a universalidade de
certos temas maiores do existencialismo, que a mundanidade não fez mais do
que colocar, em seu momento, em xeque.
A estrutura interna de Zama é aparentemente simples. É o próprio
protagonista quem narra, em primeira pessoa, dez anos de sua vida, anos
cruciais em que sua decadência física e moral vai colocando-o, como um rio
lento e terrível, na margem oposta da vida.
Mas essa simplicidade narrativa é enganosa: uma e outra vez, a
narração linear sofre a interferência de breves histórias, alegorias,
metáforas, que anulam a ilusão biográfica e instalam o conjunto do narrado
em uma dimensão mítica. A partir da quarta frase do livro, que é também o
quarto parágrafo, a descrição de um macaco morto detém a narração — quer
dizer, o simples caminhar dos acontecimentos — e a cifra em um sentido que
é ambíguo e, no entanto, revelador do que está por vir, como se
instintivamente o narrador soubesse que não vivemos nossa vida mais do que
à margem dos acontecimentos e sobrepondo à nossa experiência a confusa
reflexão sobre seus possíveis sentidos.
Esse procedimento quebra continuamente a narração, não só em Zama
como na maior parte dos escritos de Di Benedetto, e a enriquece. Trata-se,
vinte anos antes que a retórica do nouveau roman a classificasse como um
de seus procedimentos mais correntes, de uma variante da mise en abîme
que Gide descreve em seu diário, em uma página de 1893: “Não me
desagrada que em uma obra de arte se reencontre transposto, à escala dos
personagens, o próprio tema dessa obra. Nada a ilumina mais nem
estabelece de um modo mais seguro as proporções do conjunto. Dessa
maneira, em certos quadros de Memling ou de Quentin Metsys, um
espelhinho convexo e escuro reflete, por sua vez, o interior do cenário em
que ocorre a cena pintada. O mesmo em As meninas, de Velázquez (embora
de um modo um pouco diferente). Finalmente, em literatura, em Hamlet, a
cena da comédia; e em outras partes também, em muitas outras obras. Em
Wilhelm Meister, as cenas de marionetes ou a festa no castelo”. Nada
ilumina mais Zama, efetivamente, do que essa contínua imobilização da
narração, esse formigamento de pequenas intervenções metafóricas que
contribuem para liberá-la da pressão do acontecer. Que eu saiba, nenhum
narrador na América, exceção feita talvez a Borges ou a Felisberto
Hernández, havia tentado, nos mesmos anos, experiências equivalentes.
Em vão se tentará localizar Zama nas categorias rotineiras que manejam
nossos críticos e historiadores da literatura. Uma recente enciclopédia, que
dedicou páginas e páginas a autores que uma semana depois de aparecida
sua enciclopédica consagração já caíam aos pedaços, prodigaliza a Di
Benedetto, antes de passar a outra coisa, uma etiqueta lapidar: “Pratica a
literatura experimental”. Discriminação que não deixa de ser curiosa, se
levarmos em conta que não há, para a literatura, outro modo de continuar
existindo que o de ser experimental — condição sine qua non que a mantém
em vida desde Gilgamesh.
O jornalista anônimo que redigiu a frase distingue, sem dúvida, a
literatura experimental com o fim preciso de fazer notar que não vale a pena
se ocupar dela. Nem fantástica nem realista, nem urbana nem rural, nem
clássica nem de vanguarda, nem escapista nem engagée, Zama, justamente
por não se encaixar em nenhum escaninho previamente preparado pelos
escreventes de nossas revistas e de nossas universidades, está destinado a
brilhar com luz própria e a nos mostrar, por lampejos, a cada nova leitura,
zonas secretas de nós mesmos que o hábito dessas falsas classificações
oblitera. Essa narração, que faz como se nos contasse fatos transcorridos há
quase dois séculos, narra-nos, no entanto, a nós, seus leitores. Zama é, não
nosso espelho, mas nosso instrumento — no sentido musical e operacional
do vocábulo. Aprendendo a tocá-lo ouviremos, depois de um momento,
nossa própria canção, que não é mais do que um turvo ronronar, subjetivo,
contínuo e universal, e que, cheio de som e de fúria, não significa, não
propriamente nada, mas algo preciso, previamente determinado, dado de
uma vez e para sempre, e que possa dispensar-nos do estado de difícil
lucidez, mistura de insônia e sonolência, em que nossas vidas se debatem.
Dir-se-á que tudo isso não é mais do que irracionalidade e escapismo.
Quero destacar, no entanto, que se aceitarmos por um momento a oca
categoria de romance da América, abstrata e chauvinista, e adotarmos o
ponto de vista daqueles que a manejam, entre todos os romances que
pretendem esse título nos últimos trinta anos Zama seria o primeiro a
merecê-lo, apesar do folclore, do anedotário passadista e do academicismo
arteiro que pululam na atualidade e que se pretende fazer passar por um novo
romance. Zama não se rebaixa à demagogia do maravilhoso nem à ilustração
de tese sociológica; não se obstina em repetir-nos as velhas crônicas
familiares que murcham o romance burguês desde fins do século ; não
divide a realidade, que é problemática, em nações; não pretende ser a
summa de nenhum grupo ou lugar; não dá ao leitor o que o leitor espera de
antemão, porque os preconceitos da época condicionaram seu autor
induzindo-o a escrever o que seu público lhe impõe; não honra revoluções
nem heróis de extração duvidosa e, no entanto, apesar de sua austeridade, de
seu laconismo, por ser o romance da espera e da solidão, não faz senão
representar, a seu modo, obliquamente, a profunda condição da América, que
cintila, frágil, em cada um de nós. Não tem nada a ver com Zama a exaltação
patrioteira, a falsa historicidade, a cor local. A escura agonia de Zama é
solidária com a do continente em que essa agonia ocorre.
Uma última observação: há um estilo Di Benedetto, reconhecível
inclusive visualmente, do mesmo modo que há um estilo Macedonio, ou
Borges, ou Juan L. Ortiz. Este mérito pode muito bem ser secundário; mas,
que eu saiba, não o encontramos, na Argentina, em nenhum outro narrador
contemporâneo de Di Benedetto.

Juan José Saer


(1973)
Às vítimas
da espera
1790
1

Saí da cidade, ribeira abaixo, ao encontro solitário do barco que aguardava,


sem saber quando viria.
Cheguei até o velho píer, essa construção inexplicável, já que a cidade e
seu porto sempre estiveram onde estão, um quarto de légua acima.
Entremeada entre suas estacas, balança a porção de água do rio que
entre elas recai.
Com sua pequena onda e seus redemoinhos sem saída, ia e vinha, com
precisão, um macaco morto, ainda completo e não decomposto. A água, em
frente ao bosque, foi sempre um convite à viagem, que ele não fez até não ser
macaco, mas cadáver de macaco. A água queria levá-lo e o levava, mas
enredou-o entre as estacas do píer decrépito e ali estava ele, de partida e
não, e ali estávamos.
Ali estávamos, de partida e não.

Em sendo tão mansa, cuidava-me da natureza desta terra, porque é infantil e


capaz de arroubar-me e, na lassidão semidesperta, punha-me repentinos
pensamentos traidores, desses que não dão conformidade nem, por épocas,
sossego. Fazia com que me desse comigo em coisas exteriores, nas quais, se
a isso me resignava, podia reconhecer-me.
Esses assuntos ficavam só para mim, excluídos da conversa com o
governador e com todos, por minha escassa ou nula facilidade para fazer
amigos íntimos com quem espraiar-me. Devia levar a espera — e o
desamparo — em solilóquio, sem comunicá-lo. Como me dizia esse às vezes
insolente Ventura Prieto, que se me arrimou aquela tarde, certamente que não
procurando por mim, mas indo ao acaso. Considerava que, nesta terra plana,
eu parecia estar em um poço. Ele me disse isso uma vez, e em mais de uma,
disse aos outros, descuidando-se do que todos sabiam: que eu fui galo de
rinha ou pelo menos dono de rinha.
Apareceu exatamente quando me entretinha o macaco e mostrei a ele,
para distraí-lo e impossibilitar que me perguntasse o que eu estava
esperando ali. E ele, Ventura Prieto, que era inferior a mim, cavilou por um
momento, como se procurasse um meio de esmagar-me em matéria de
curiosidades ou descobrimentos. Depois fez referência a uma dessas que ele
chamava investigações e eu ignoro se o eram mas que, por serem suspeitas
de insinuar comparação, desconcertavam-me, deixando-me repercussões que
podiam superar o sofrível.
Disse que há um peixe, nesse mesmo rio, que as águas não querem e ele,
o peixe, deve passar a vida, a vida toda, como o macaco, em vaivém dentro
delas; de um modo ainda mais penoso, porque está vivo e tem de lutar
constantemente com o fluxo líquido que quer arremessá-lo à terra. Disse
Ventura Prieto que estes sofridos peixes, tão apegados ao elemento que os
repele, talvez apegados apesar de si mesmos, têm de empregar quase que
integralmente suas energias na conquista da permanência e, embora sempre
estejam sob o perigo de serem arremessados do seio do rio, tanto que nunca
são encontrados na parte central do leito, mas nas margens, alcançam vida
longa, maior do que a normal entre os outros peixes. Só sucumbem, disse
também, quando o seu empenho lhes exige demais e eles não podem campear
alimento.
Eu havia seguido com viciada curiosidade esta história, que não
acreditei. Ao considerá-la, receava pensar no peixe e em mim ao mesmo
tempo. Por isso convidei Ventura Prieto para que regressássemos e retive
minhas opiniões.
Procurei ocupar a cabeça no motivo da minha caminhada, no fato de que
eu esperava um barco, e se um barco entrasse nele, podia chegar alguma
mensagem de Marta e dos meninos, embora ela e eles não viessem. Nem
nunca haveriam de vir.
2

Posso apiedar-me de , sem a vaidade da maceração, se o temor não é


mais de envergonhar-me diante dos demais, mas de passar dos limites que
sem avareza me concedo. Se admito minha disposição passional, em nada
hei de permitir-me estímulos idealizados ou buscados. Nenhuma desculpa
cabe diante do instinto que nos previne e não respeitamos.

Empurrou-me o sol que, já desembaraçado das nuvens de tantos dias sem


tormenta, se havia acendido até o branco e ali conjugava sua não-cor e sua
lisura fixa e ardente com a areia limpa que provoca visões. Pude ver um
puma e acreditá-lo estático e inofensivo como um enfeite, muito liso, sem
detalhes, como se não tivesse garras nem dentes, como se as curvas de seu
corpo não denunciassem elasticidade para o salto e, sim, docilidade e suave
disposição para alguma mão carinhosa. Por este puma não visto meditei nos
jogos que foram ou podem ser terríveis, não no momento em que são
jogados, mas antes ou depois.
Procurei o resguardo frondoso do arroio e entre as primeiras árvores
devo ter ficado, porque vinham, livres e confiadas, vozes de mulheres
excitadas pelo gozo da água.
Não obstante, adentrei-me e, encoberto pela vegetação, vi um instante,
de frente, corpos desnudos, morenos e dourado-escuros e, de lado, ocultas as
feições, pois só distinguia uma nuca e cabelo puxado para cima, outro que
não soube se branco ou mulato. Não quis continuar olhando, porque me
arrebatava e podia ser mulata e eu nem vê-las devia, para não sonhar com
elas, e predispor-me e vir em derrota.
Fugi. Mas era evidente que me haviam notado e, ao percebê-lo, não
pude precisar se entre o alvoroço que escutava às minhas costas escutava
prazer.
Minhas pernas se tornaram firmes na pernada, porque alguma coisa me
advertia que era perseguido. Homem não podia ser, porque os homens não
cuidam do banho das mulheres; índia sim, ou mulata, pela rapidez com que
andava fora do caminho, onde há matagal e os troncos se põem adiante.
Ela quase me alcançava, e este afã me advertiu que procurava ver o meu
rosto, conhecer-me, que tal devia ser a ordem de sua ama e, então, resultava
que ela era branca. Reneguei de minha retirada, de mal tê-la entrevisto,
privando-me de saber quem era. Tinha de voltar a enfrentar o que fosse:
descobri-la e descobrir-me.
Não era possível.
Unicamente podia descarregar na espiã o ímpeto que alimentava meu
ânimo defraudado.
Com uma súbita guinada para a esquerda, penetrei por entre as árvores e
ela, atônita de surpresa, não atinou em fugir. Assim como estava, em pêlo,
agarrei-a pelo pescoço afogando-lhe o grito e a esbofeteei até secar o suor
das minhas mãos. De um empurrão, dei com seu corpo no chão. Acocorou-
se, dando-me as costas. Aplique-lhe um pontapé na nádega e parti.
Comigo ia a fúria atenuada, dando lugar a um pensamento severo contra
mim mesmo: Gênio! Meu gênio! Ah!

A minha mão pode dar na face de uma mulher, mas o esbofeteado serei eu,
porque terei violentado minha dignidade.
Embora isto não fosse, embora só fosse na aparência a desordem, sabia-
me sem justificativa por me entregar à ira e à repressão no próximo daquilo
que eu mesmo engendrara nele.

3
Era de novo , que me fazia desejável, mas arriscado, o leito; era a
sesta que, ao menos nesse dia, tão próximo ao do banho das mulheres, não
queria repetir a céu aberto.
Era a sesta e esse homenzarrão terrível veio pela rua vazia como um
meteoro de sol destinado a mim, entre todos os mortais, por potências
infalíveis.
Agarrou-me pelas roupas e eu quis contê-lo com um enérgico
“Cavalheiro!”. Não me escutou, chamando-me de um só fôlego de “aliciador
de mulheres honestas” e “asqueroso abelhudo que nem se atreva”. Em um
confuso indignar-me e compreender que se tratava do marido e saber quem
era ela e tratar de largar-me, gritou para mim “Haverá duelo!”, e se foi e me
deixou. Deixou-me com a necessidade de segui-lo e sacudi-lo, enganando-
me, contendo-me, com a promessa da desforra futura, porque, ele disse,
haveria duelo.
Mas não haveria. Na rua toda não passavam mais do que uma cadela no
cio e seus pretendentes de quatro patas; conseqüentemente, nenhuma
testemunha lhe exigiria o cumprimento de sua palavra, um anúncio explosivo
que com certeza bastou-lhe para perder a vontade de infligir-me maus-tratos.
De minha parte, piores fraqueiras, podia recriminar-me.
No entanto, jurei-me que seria a última. Disse-me que, se a sofrer essa
me conformava, era unicamente compreendendo a razão de seu
arrebatamento, conhecendo-me culpado. Salvo que, eu alegava, não devia ter
me insultado. “Asqueroso abelhudo”: são palavras que entram sem
alternativa de esquecimento.
Se for assim, de nunca se produzir o proclamado duelo, devia deduzir
que existe uma medida para a satisfação da ofensa, mesmo que nos
indivíduos aparentemente mais brutais? Devia acreditar que, talvez, o
homem que defende com escasso zelo sua mulher, mais que temeroso é um
limitado por secretas motivações, que lhe vedam ocupar-se demais dela, um
ódio oculto, um fastio distante, um amor extinto e não obstante para ninguém
evidente, nem sequer para ele?
4

O governador me entregou um incompreensível caso. Nada mais me


solicitava que consultasse e ao pedido me ative. Não quis pensar se ele, o
governador, tinha ou não autoridade para tirar um réu da prisão, convicto de
assassinato, e fazê-lo ir ao meu gabinete ladeado por um só guardião para
“explicar-me a situação”, de modo a ver “por onde e como procede a
isenção de cargos”. Impunha-se atendê-lo e fazer-me de desentendido sobre
como chegou a mim, com que alta recomendação e os desígnios do
recomendatório. Era preciso que eu cuidasse da minha estabilidade, do meu
posto, justamente para poder desembaraçar-me dele, do posto.
Era preciso que ouvisse o preso, o que, em poucos momentos, me
pareceu impossível, visto que não é possível ouvir quem não fala. Estava
fechado, não com dureza, mas com ausência, em calar sobre o cerne da
questão, isto é, a trama de seu delito.
O guardião, com muito comedimento, por trás do preso, advertiu-me que
devíamos temer uma crise de choro ou não sei que dilaceramento de ordem
sentimental.
Não era, pois, um indivíduo temível, e sim um alquebrado.
Para poupar-me a cena que, talvez, eu mesmo provocara com a desnudez
do interrogatório e o enfado que me sobreveio rápido demais, deixei-o
sozinho, com o guardião, que, mais do que vigiá-lo, parecia fazê-lo objeto
de sua proteção.
No intervalo, acredito que para mudar de humor, passei ao aposento
onde trabalhava Ventura Prieto. Narrei-lhe o caso de mudez que deixara
atrás da porta.
Não tive que me arrepender, pois Ventura Prieto, com um não
desdenhoso “Assim não vai funcionar”, pediu-me autorização para lidar com
ele e ajudar-me.
À mercê de um sorriso de amigo, que bem podia parecer por se
assemelhar escassamente ao que se supõe seja um funcionário, Ventura
Prieto pôde fazer com que esse espírito enclausurado se entregasse
brevemente.
O olhar baixo, um respeitável pesar gravando o tom de sua voz, disse
aquele jovem que foi bem-apessoado e estava prematuramente definhado:
— Eu era um fumante tenaz. Uma noite, com espanto, observei que havia
nascido em mim uma asa de morcego...
Interrompeu-se.
Com a escassa declaração nos inquietou o suficiente como para desejar
que não emudecesse de novo. Não o fez. Advertira que as palavras não
respondiam totalmente ao seu pensamento e procurava, mediante uma
revisão mental, uma justa coordenação. Logo depois, recomeçou e compôs
seu discurso.
— Eu era um fumante tenaz. Uma noite adormeci com tabaco na boca.
Despertei com medo de despertar. Parece que sabia: tinha nascido em mim
uma asa de morcego. Com repugnância, na escuridão, procurei minha maior
faca. Cortei-a. Caída, à luz do dia, era uma mulher morena e eu dizia que a
amava. Levaram-me preso.
Não falou mais.
Compartilhamos seu silêncio.
Com os olhos, indiquei ao guardião que podia conduzi-lo de volta.

Também Ventura Prieto disse que eu devia encontrar a forma de salvá-lo.


Lamentava-se de não ter visto o corpo esfaqueado da mulher morena.
Queria saber por onde a cortou.

5
Esta audiência absorvente fez aplacar os estampidos que em meu coração
causaram os dois espaçados canhonaços anunciadores da presença de um
barco.
O saco de correspondência foi trazido à casa de governo antes que eu
pudesse sair, como outras vezes, até o píer, para aproximar-me mais das
possíveis novidades e do rosto dos marinheiros e contados viajantes que
desembarcavam.
O alferes-mor distribuiu conscienciosamente sobre sua mesa as
remessas para cada qual, nenhuma para dom Diego de Zama, porque as
minhas mãos estavam destinadas a permanecer vazias outro longo tempo.
Esta ausência de notícias de Marta, de meus filhos e de minha mãe me
causou essa depressão que em mais de uma chegada de barco tive de sofrer,
mas que, ao somar-se a cifra no transcorrer dos já quatorze meses de
permanência, abatia-me ainda mais.
Ao abandonar meu gabinete, prescindi desse espetáculo sempre
desejável de outra embarcação grande e procelosamente viageira, no porto.
Restringi-me à casa.
Pedi a uma escrava uma colação de ovos de galinha. Por
desacostumado, já que sempre comia fora, isto chamou a atenção das filhas
de meu hospedeiro, dom Domingo Gallegos Moyano, e determinou que mais
tarde uma delas se aproximasse dos meus aposentos com oferta de mate, que
aceitei.
Consagrei a segunda metade do dia a uma epístola, minuciosa e
queixosa, a Marta, para que o barco a levasse em seu caminho rio abaixo.
Desenvolvia devagar em minha mente a viagem da carta, por água até
Buenos-Ayres, por terra depois centenas de léguas com seu rumo oeste, e me
doíam as recriminações, ainda frescas no papel, que a minha esposa, distante
e sem seu homem, haveria de ler três, quatro meses mais tarde, talvez em um
dia em que eu fosse feliz. Mas não modifiquei o meu escrito.
Em meu retiro, em direção ao crepúsculo, tive o anúncio de um
visitante.
Como ignorava qual barco havia atracado, igualmente desconhecia que
o capitão era meu amigo, o oficial Indalecio Zabaleta, a quem abracei com
força e carinho.
Entrevi que, se me procurava tão rapidamente, afastando os assuntos que
em geral ocupam a um capitão em seu primeiro dia de porto, alguma coisa
trazia para mim. Mas alguém diferente capturou a minha atenção, antes de
fazer-lhe qualquer pergunta.
Mais adiante da porta, na galeria, estava detido — contido, pareceu-me
— um menino. Certamente vinha com Indalecio e podia ser filho deste. No
entanto, isso não me importava e, sim, suas feições, nobremente agitadas, e
os olhos, anunciadores de um transbordamento que, ao virar-se o capitão
para ele, produziu-se sem aguardar outro estímulo.
Correu e caiu em meus braços, estremecido por um soluço que, ocorreu-
me, era de gosto e entusiasmo.
Acertava. Indalecio explicou-me, impressionado, talvez orgulhoso, pelo
arrebatamento de seu rebento.
— Na viagem, eu lhe disse quem era o doutor dom Diego de Zama.

O doutor Diego de Zama, com a homenagem, imprevisível e tocante, de um


rapazote de doze anos. Esse reconhecimento fazia contrapeso a tantos
esquecimentos e diminuições suportados em dias e dias até aquela tarde.
O doutor dom Diego de Zama!... O enérgico, o executivo, o pacificador
de índios, o que fez justiça sem empregar a espada. Zama, o que dominou a
rebelião indígena sem gasto de sangue espanhol, ganhou honras do monarca e
respeito dos vencidos. Não era esse o Zama das funções sem surpresas nem
riscos. Zama, o corregedor, desconhecia com presunção o Zama assessor
letrado, enquanto este se esforçava por mostrar, mais do que um parentesco,
certa absoluta identidade que aduzia. Mostrava ao antigo corregedor a
assessoria, em segundo lugar em toda a extensão da província, exatamente
depois da casa de governo. Mas, ao fazê-lo, Zama assessor sabia, sem que
pudesse escondê-lo, que, neste país, mais do que nos outros do reino, os
cargos não endeusam, nem se faz um herói sem compromisso com a vida,
embora falte a justificação de uma causa. Zama assessor devia reconhecer-se
um Zama condicionado e sem oportunidades.
A essa altura do duelo, Zama, o minguado, podia suspeitar que Zama, o
bravio, não teve tanto de aguerrido e temível: um corregedor de espírito
justiceiro pode seduzir facilmente a vontade de escravos estragados por
meses de repressão, mais que violenta, cruel.
Eu fui esse corregedor: um homem do Direito, um juiz, e essas luzes, na
realidade, sem ser as de um herói, não admitiam ocultamento nem
desmentidos de sua pureza e altura. Um homem sem medo, com uma vocação
e um poder para terminar, ao menos, com os crimes. Sem medo.
“Disse-lhe quem era Zama.” Um resplendor da minha outra vida, que
não conseguia compensar a falta de brilho da que nessa época vivia.
Zama havia sido e não podia modificar o que foi. Podia-se acreditar
que me determinava um passado exigente de melhor porvir. Esse menino, o
filho de Indalecio, vinha-me reclamá-lo com sua emoção admirativa.
No entanto, eu via o passado como algo visceral, disforme e, ao mesmo
tempo, perfectível. Além de elementos nobres, não deixava de reconhecer
alguma coisa — a maior parte — engordurada, desagradável e difícil de
capturar como os intestinos de um animal recém-aberto. Não renegava isso;
tomava-o como uma parte de mim, inclusive imprescindível, embora não
houvesse intervindo em sua elaboração. Ao contrário, eu esperava ser eu no
futuro, mediante o que pudesse ser nesse futuro.
Talvez acreditasse já sê-lo e viver em função dessa imagem que me
aguardava adiante. Talvez esse Zama que pretendia se parecer com o Zama
vindouro se assentasse no Zama que havia sido, copiando-o, como se
arriscasse, medroso, interromper alguma coisa.

A aguardente pela metade, soube que Indalecio esteve em Buenos-Ayres com


o meu cunhado, gestor perante o vice-rei do translado que me correspondia
estritamente e precisa ter.
As promessas eram para um tempo incerto, mas de sinais positivos.
Em troca do anúncio, no qual confiava, embora em parte, já que possuía
alguns traços de reiterações falidas, entreguei ao capitão uma confissão das
minhas necessidades: não apetecia tanto uma promoção como a localização
em Buenos-Ayres ou em Santiago do Chile, porque a minha carreira estava
estancada em um posto que, foi-me insinuado com a nomeação, implicava
apenas uma fugaz interinidade. E mais isto: entre a minha mulher e eu
mediava a metade da longitude de dois países e toda a extensão do segundo.
Não obstante, talvez pela presença da criança, guardei a confissão total:
até que ponto a distância implicava tortura, pela rigorosa lealdade guardada
a Marta, embora não pudesse explicar claramente à minha consciência por
que lhe era tão fiel.

Jantamos na pousada.
De volta, tão tarde, pude maravilhar-me com o solitário senhorio da Lua
e, com a ajuda do álcool, sentir-me predisposto a igualá-lo diante de
qualquer situação de prova. As ruas solitárias, margeadas de casarões e
terrenos baldios sombreados, o terreno acidentado em sua depressão em
direção ao rio, eram propícios à surpresa que o meu estoque, com certeza,
saberia responder sem acanhamento.
Sentia-me valoroso e imensamente disposto a amar, essa noite.
Tive, como predestinado, a surpresa e uma mulher linda e fresca
comigo.
Como a hora ia já tão alta, entrei na casa pelos fundos, utilizando a
reservada portinhola da horta, para além do pátio dos empregados.
Acredito que a minha presença, inesperada nesse lugar e tão tarde,
desordenou alguma coisa. Calculo que alguém pôde fugir ou esconder-se
bem demais antes que eu entrasse.
Mas mais alguém ficou sem poder se dissimular o bastante. Tentou uma
fuga tardia, protegido pelos paredões e a distingui mulher, sem identificá-la.
Com dez longos passos muito táticos, cheguei aonde podia bloquear sua
passagem; e ela, sem dúvida, vendo-se irremediavelmente interceptada, não
se deteve.
Avançava direto, e esses instantes de espera talvez tenham calado mais
em mim do que nela, porque tive o otimismo e a audácia de conceber rápidas
esperanças.
Era Rita, a menor das filhas de dom Domingo, meu hospedeiro. Eu
soube disso quando ainda nos separavam quatro varas de distância, em que
pese o fato de que a mantilha mal limitava a claridade da Lua sobre seu
rosto. Mulher lunar, disse-me, para conferir encanto ao momento; mas outro
era o estremecimento que mandava em meus sentidos.
Não havia dado dois passos mais e caiu no chão. Tropeçara. Corri para
ajudá-la, embora já se pusesse meio de pé e, evidentemente, não precisava
de socorro. Mas eu, descontrolado, para aproveitar, tomei-a por trás e
terminei de alçá-la enquanto minhas mãos cobiçosas faziam pressão sobre
seus seios. Eram macios, como muito tocados.
Cobrava-me o silêncio que guardaria sobre sua escapada noturna.
Descobria intenções sem o menor reparo. Ela as ignorou. Reposta, suave,
desentendida de meu braço, olhou-me nos olhos com resolução, disse-me
comedidas palavras de agradecimento, como correspondendo a um grande
favor e, com dignidade e cautela, retirou-se em direção aos quartos.
Não podia imputar-me atrevimento nem abuso. Entendeu-o muito
rapidamente. Por sua vez, fez-me entender que não me temia.

Demorei-me na horta. Por um momento, estive voltado para o lugar por onde
ela havia desaparecido. Suponho que devo ter permanecido estupidamente
entorpecido e absorto.
Depois, reagindo, recostei-me em um trecho de erva aromática.
Necessitava que um tempo mais me assistisse o encanto da aventura a
descoberto dessa noite. Porque me havia sido revelada uma possibilidade,
sob meu próprio teto. Branca e espanhola; muito jovem. Minhas mãos
sabiam que não era pura.
6

Festa na casa de dom Godofredo Alijo, ministro da Fazenda Real.


A esposa havia anunciado que seria à moda inglesa e nos convidou para
as cinco da tarde. Fez servir cacau fumegante com tacinhas de licor doce e
confeitos. Todos diziam que era “muito inglês” e eu me abstive de opinar,
porque havia observado nas costas do Pacífico que os ingleses que o
tomavam, habitualmente como alimento, eram os marinheiros. Não teria
desagradado às minhas companheiras de tertúlia, menos aos homens, saber
que a bebida era de marinheiros, já que aqui são, de certo modo, de
costumes simples, embora de forma alguma teria lhes causado boa impressão
tomar conhecimento de que para eles constituía um alimento, e não uma
guloseima. Em resumo, para alternar e para não desrespeitar os costumes, a
dona da casa prodigalizou também o mate que, definitivamente, agradou mais
do que o cacau.
Antes do jantar incorporou-se alguém que se havia permitido prescindir
da “recepção inglesa”. Divisei-a desde que transpôs a porta e a partir desse
instante a reunião transformou-se, para mim, em um sutil jogo de expectativa.
Era a esposa do meteoro de sol. Luciana, cônjuge de Honorio Piñares
de Luenga, colega de Godofredo Alijo, ausente mais uma vez sem que
ninguém reparasse nisso, porque a esposa, e não ele, sempre aparecia nas
reuniões, e o meio oficial havia concluído por habituar-se a que assim fosse.
Naturalmente, não me era desconhecida Luciana e até alguns diálogos
mediaram antes entre nós. Desde que, pelo repto do marido, soube que ela
era a mulher do banho no arroio, dispensei ocasionais lapsos imaginativos a
seu corpo, agraciado mais do que as roupas permitiam supor. Não obstante,
descontei que se tratava de alguma coisa proibida e impossível.
Embora Piñares não tivesse vindo, a presença dela na festa entorpecia,
travava meus movimentos, mais porque não me dirigiu um olhar nem deu a
menor possibilidade ao cumprimento pessoal que eu não saberia como
apresentar-lhe.

Condenava-me por não haver previsto o encontro, rigorosamente lógico


pelo fato de Alijo e Piñares serem membros do mesmo corpo. É que nos dias
que mediaram desde o convite a minha atenção esteve posta, de um modo
excludente, em Rita.
Permaneci em casa tanto como nunca havia feito antes. Espreitei seu
passo, vigiei suas saídas à missa, tudo atrás de algum sinal de
condescendência em retribuição do acobertamento. Mas prescindiu,
orgulhosamente, de mim.
Pus-me febril, como se a febre me viesse da cabeça, consagrada a Rita e
aos projetos que com ela fazia.
A festa apresentou-se a mim como um provável respiro.
Três horas de tertúlia, entre cacau e jantar, forçosamente tinham de
acrescer a intimidade que a limitação do nosso círculo favorecia na vida
cotidiana, sempre repetida ao longo de meses e anos.
Podíamos nos permitir muito, uns aos outros, embora, na verdade, eu
permitisse mais do que a minha natural correção me autorizava a fazer aos
demais.
Alguém propôs, na roda masculina, que ao cabo do jantar, devolvidas as
mulheres ao lar, se fizesse uma reunião com mulatas livres em certa casa dos
arredores. Como a maioria aprovou a evidente lascívia na comissura dos
lábios, um homem de iniciativa, um organizador consagrado, perguntou de
um em um quem iria, para fazer cálculos e dispor tudo em uma escapada
imediata.
Eu me fazia violência ferrenha na vacilação, até que chegou a minha vez
e me escusei.
Então, um deles, como muitos já a par do meu comportamento,
perguntou-me sem malícia:
— Só branca há de ser?
— E espanhola! — respondi com arrogância.
O terminante de minha réplica cortou qualquer possibilidade de
comentário.
O organizador prosseguiu fazendo a lista.
Somente o homem da pergunta não recuou em sua curiosidade e, com
respeito e discrição, atreveu-se a chamar-me de lado para dizer-me que
estava espantado com a minha preferência excludente. Pediu-me a honra de
confiar-lhe se ao proceder de tal modo estava dando cumprimento a um voto
de caráter religioso.
Respondi a verdade:
— Temo o contágio do gálico. Temo perder o nariz, comido pela
doença.
Deixou-me em paz.
Não havia confessado a totalidade de minhas razões, e sim uma
principal. Nunca, até fazê-lo, pude prever que descobriria assim minhas
apreensões e um motivo de minha conduta a uma pessoa alheia à minha
intimidade.

Mas era um cavalheiro e nem o menor gesto insinuou a zombaria que bem
podia permitir-se quando, falando para os comensais mais próximos,
inclusive às senhoras, o dono da casa perorou com aprovação sobre os
homens virtuosos e insinuou qual dos companheiros de tertúlia podia ser tido
como tal.
Eu me encontrava em seu raio de influência; também Luciana, que não
mostrava aprovar o discurso moralista. No entanto, quando o perorador deu
a entender quem dos que ali estávamos carregava, segundo disse, o tormento
branco e santificador da pureza, Luciana soltou o brio de seu olhar
penetrando-me, seus olhos postos nos meus, de forma breve. Foi como se ela
respondesse, sem resistência, ao chamado de alguma coisa nova e levemente
estranha.
Senti-me de repente abrandado e benigno. Pude esquivar-me com
facilidade ao agrado de outros silenciosos olhares estimativos e aferrar-me
somente a este, fugaz, da mulher do admirável nu, que já evocava sem
sensualidade e prescindindo da evidência de que ela, essa noite e entre as
demais mulheres, não parecia superior a nenhuma.
No decorrer da refeição, não voltou a ocupar-se de mim. Esse desapego
me atraía mais e até me conduziu a um excesso de bebida a fim de animar-me
a parecer brilhante, o que, pude comprovar, não seduzia Luciana.
Tornei a guardar minha ansiedade em prudência e silêncio.

Eu não sabia até que ponto me havia traído. Percebi, não sem inquietude,
quando desloquei a cadeira para abandonar a mesa, como faziam todos, e o
alferes-mor, Bermúdez, aproximou-se de minha orelha, simulando para os
demais uma confidência amistosa e risonha, e me disse:
— Alguém, perto de mim, teve um repente que festejamos muito. —
Apontou para Luciana Piñares e exclamou: — É a mulher de corpo mais
encantador que Zama imaginou.
Era como para que em mim se levantasse uma tempestade de caráter.
Mas ocorreu que o imaginador de corpos encantadores recebeu, nesse
momento, nem um segundo depois, outro olhar da mulher do corpo mais
encantador que havia imaginado. Um olhar que cantava esta mensagem: “Se
melhor vos conhecesse...”.

Se, de regresso, tivesse dado na rua com Sua Majestade e em seus lábios
esta proposta: “Zama, quereis um cargo em Buenos-Ayres, mais bem-visto e
remunerado, se é que aceitais partir amanhã?”, eu teria respondido: “Ainda
não”.
Nenhum homem — disse-me — desdenha a perspectiva de um amor
ilícito. É um jogo, é um jogo de perigo e satisfações. Se se dá o triunfo,
ganhou a simulação perante p terceiro interessado e contra a sociedade,
guardiã gratuita.
7

Essa noite, além disso, se me apresentava como estabelecida para o amor


com Rita: entraria pela porta dos fundos e iria em sua caça na horta, dessa
vez implacável e, talvez, amado voluntariamente. A mais nova das Gallegos
Moyano havia passado, para mim, a uma condição de inferioridade com
relação à Luciana e, no planejamento do futuro que me fiz assistido pela Lua,
a uma função meramente acessória.
No entanto, quanto mais próximo me sabia da casa, maior importância
adquiria para minhas ânsias urgentes de amar, mesmo que fosse por
gentileza. Dispunha de antecipada resignação, mas não poderia suportar que
a horta vazia me defraudasse.
Defraudou-me.
Veio a mim, nem um grau a menos, o furor obstinado.
Atravessei os pátios sem cuidar de não fazer barulho e cheguei ao meu
de um só impulso, disposto a bater na porta, malogrando o repouso e a
tranqüilidade de Rita.
A minha porta estava aberta e o quarto expelia um estável resplendor.
Quis que fosse ela, aguardando-me, e sabia que isso era impossível.
Maldisse minhas largas passadas destruidoras do silêncio e do sonho e
procurei remediar o alvoroço anterior aproximando-me com pés de lã.
Sobre a mesa ardia uma vela e, junto da vela, encontrava-se uma caixa
de latão, depósito secreto de minhas moedas de prata.
Um ladrão.
Desmandei-me de novo, atropelando, rangendo de raiva.
A primeira coisa que me reclamou foi a caixa. Três ou quatro moedas
esparramadas sobre a tábua, as demais dentro. Foi uma comprovação
velocíssima, mas mais rápido resultou o intruso, a quem não havia visto até
então. Saiu das sombras do meu leito, contornou-me com agilidade e lançou-
se para a galeria sem me dar trégua na surpresa.
Era um menino loiro, maltrapilho e descalço.
Fui até a porta. Fora tragado pela escura galeria. Pensei que um menino
sozinho era pouco para tanto atrevimento e supus um cúmplice ainda
escondido. Voltei-me para o interior, já com o estoque desembainhado e
dando grandes gritos de ameaça para dentro e de alarme para o exterior.
Impetuoso, procurei as sombras e lancei-lhes estocadas, infrutíferas.
Depois, com a vela, inspecionei melhor e mais a parte inferior do leito.
Enquanto isso, chegava dom Domingo, disposta uma veterana pistola
mas com escassa firmeza e vista para que resultasse eficaz.

Três escravos que, pela pressa, não haviam terminado de colocar a camiseta,
obedeceram a nossas peremptórias intimidações: “Procurem! Procurem!”,
buscando pelas galerias, pelos pátios, atrás das plantas e garrafões, até
desaparecer. Regressaram sem ter topado com nada, a tal ponto que
pareciam reparar, nesse momento, que foram descobrir alguma coisa e
ignoravam o quê.
Dom Domingo explicou-lhes o que eu vi, caso alguém pudesse
proporcionar referência esclarecedora: “Um menino loiro, espigado, por
volta dos doze anos; descalço e quase sem roupas, que deve ter dormido
umas horas aqui, no leito de dom Diego”.
Os escravos se consultaram entre si, com o olhar e vozes baixas e
nervosas.
Um deles, um zambo, resumiu o que podia ser considerado um ditame:
— Há de ser um menino morto, meu amo.
Se Rita, em um dos quartos que destilavam luz pelas frestas, estava
escutando, era preferível que compartilhasse a idéia supersticiosa do negro.
Do contrário, julgar-me-ia merecedor de todas as chacotas.
Pela manhã, repetiu-se a prolixa revista da casa e suas dependências. Só
o meu quarto havia sido visitado e nada de valor faltava.
Possuía-me a suspeita de uma troça malévola, mas não conseguia
determinar suspeitos. Por que pensei em Ventura Prieto se nada tornava
razoável ato tão fastidioso contra mim? Levantadiço e disposto à pendência,
não pude, nas horas de deliberação, abstrair-me a uma recatada vigilância de
seus gestos, a um controle prevenido de suas possíveis alusões, caso
delatasse alguma. Mas não, nenhuma.
De tarde, enquanto cavilava onde esconder com maior segurança minhas
escassas moedas de prata, tive o mais desejado convite: de mate cevado por
Rita.
Sentamo-nos ao abrigo de um plátano ancião, em cadeirinhas baixas, e
me serviu o primeiro em silêncio. Era açucarado e fraco. Sorvi-o lentamente
e acredito que com o líquido me vinha gradual consciência de carinho, tanto
que me aninhava.
Alçou o olhar, como se estivesse a par desse sentimento novo e limpo, e
procurou em meus olhos um indício de que podia ter confiança em mim. Eu
estava enternecido: a via bela e delicada, vítima de um amor consumado no
mistério, com a solidão do segredo e supus — firme na convicção — que ela
havia sido, era e seria de um só homem.
Entretanto, não havíamos pronunciado uma palavra e eu não sabia como
participar-lhe minha disposição afetuosa, repentinamente fraternal. Disse-lhe
então algo desajeitado, apelando a um recurso de via indireta. Disse-lhe que
sentia imensa gratidão por ela. Surpreendida, perguntou-me por quê. Com
ardor, expliquei-lhe que se alguém se ocupava de mim, homem sem família e
afastado de sua terra, era por uma misericórdia que comovia meu peito até
esse ponto que se podia ver. Efetivamente, minha emoção resultava visível,
porque despontava em uma ligeira aquosidade sobre os olhos.
Esse rebentar de lágrimas e até minhas palavras eram
desproporcionados com o favor que recebia de Rita, uma atenção que em
múltiplas ocasiões me prodigalizaram suas irmãs. Há de ter compreendido
assim, deve ter percebido quanto era o meu desassossego pelo
arrependimento, talvez piedade, que me inspirou com seu oculto amor e sua
tardia, mas submissa, aproximação de mim. Saiu-lhe o choro, caudaloso, e
mordia os dedos para não gritar. Eu lhe acariciava a cabeça reclinada sobre
a minha perna, e procurava animá-la a recuperar-se logo, com justificado
medo de que nos descobrissem em tal situação.
Acalmou-se. Secou seu rosto. Tornou a uma atitude serena, mas triste.
Serviu-me um mate, depois sorveu um ela. Deixávamos que a atmosfera
luminosa e possessiva nos transformasse em calmos objetos.
Ela tentou o diálogo, perguntando-me pelo menino loiro da noite
anterior e, embora empregasse um tom diferente, veio a aguçar em mim esse
ressentimento da provável troça. Enquanto explicava-lhe como pulou do
leito, esquivou-me feito um pássaro em vôo e se incorporou às sombras
como se a elas pertencesse, atravessou-me uma suspeita urticante: Rita e seu
homem prepararam a cena. Quiseram assustar-me, talvez transtornar-me, em
castigo pelos meus retornos de alta noite que malogravam seus arrulhos.
Conteve-se em seco meu enternecimento e o maior esforço de correção
que fiz se dirigiu a não ferir demais com uma acusação. Obstinado na crença
de que Ventura Prieto estava envolvido no assalto do menino, ocorreu-me
que o amante de Rita era ele. Não me interessava se era ou não; eu queria
saber se a Rita devia, nem que fosse em parte, a minha grotesca perturbação
noturna.
Então declarei que me achava com direito, pelo menos, de conhecer o
nome da pessoa a quem protegia com minha reserva.
Apequenou seus olhinhos a indignação, apertou os dentes um momento
e, ato seguido, soltou-os para dizer, com rigor terminante:
— Alferes-mor Bermúdez.
E um gemido se foi com ela, na disparada, ao encontro de seu quarto.
Fiquei contemplando tenazmente a cadeirinha baixa, vazia, enquanto a
cuia esfriava na minha mão.

8
Somente a essa Bermúdez começou a ser, para mim, alguma coisa
definida. Até então não passava de um receptor e girante de dossiês na casa
de governo.
Para as pessoas, tenho entendido, representava algo parcialmente
espetacular: do pescoço para cima.
Havia sido capitão do rei e um fundo talho na altura do coração vedou-
lhe para sempre a vida violenta dos militares. Nada lhe impedia, entretanto,
o uso do capacete, o mais polido que já vi, e ele o luzia por conta de
qualquer solenidade, fosse civil, militar ou religiosa. Mas acontece que,
prematuramente, pois não passava dos trinta e cinco anos, ficou sem um fio
de cabelo na parte superior do crânio, e as pessoas diziam que, com
capacete ou não, a cabeça brilhava da mesma forma. Isto parecia envaidecer
Bermúdez.

Quando nos reunimos no trabalho, sua presença excitou minha dor e


arrependimento da véspera. Pensei que, depois de tudo, esse indivíduo de
pouca importância era para alguém razão de pecado, amargura e deleite, e
imaginei a pequena mão de Rita deslizando em carícia pela brunida cabeça
calva.
Bermúdez, que nunca se aproximou de mim senão com papéis, ou com
aquela maliciosa confidência da festa, teve nesse dia um infreqüente gesto
amistoso. Pediu-me que comêssemos juntos na pousada, ao meio-dia. Se bem
que não tenha mencionado a causa, senti-me obrigado, supondo que, com
prontidão extrema, Rita pôde transmitir-lhe seus pesares por minha conduta.
Renasceu minha disposição de ser útil aos amantes e, inclusive,
alimentei a ilusão de levar suas relações a um plano mais decoroso. Nada
havia no convite de Bermúdez que transluzisse ânimo agressivo, pelo que
acudi confiante em compartilhar sua mesa.

No entanto, sua maneira de me introduzir no assunto me irritou. Disse-me


que tinha de fazer-me uma confidência, para o bem da minha segurança, e me
rogava que não levasse a mal o seu desejo de prevenir-me. Como eu pensava
que ele, comigo, só estava em condições de ventilar a questão de seus
amores com Rita, supus que, depois de reconhecê-los, já que outra
alternativa não lhe restava, ele me formularia uma ameaça. Fiz as contas e
considerei que seu coração em perigo não o facultava para um duelo, de
modo que pude dispensar-lhe o obséquio de minha paciência até escutá-lo
mais um pouco.
Nem o melhor catador de homens está em condições de saber o que
esconde, o que traz o próximo que, pacificamente, devora com ele suculentas
porções de carne assada.
Quando apressei Bermúdez para que se explicasse, declarou-me:
— Senhor doutor, estais em um sério compromisso.
Pus-me trêmulo e apertei os punhos: de maneira que o compromisso era
para mim e não para ele?
Mas acrescentou rapidamente, sem dar-me oportunidade à reação, o
argumento que o determinava a pensar por mim: eu, que sou americano, o
único americano na administração desta província, embora tinha provada a
minha lealdade ao monarca, proclamei na festa que só me conformava com
mulheres espanholas. Minha esposa, sobre encontrar-se longe, era também
americana e, conseqüentemente, minhas palavras significavam apenas uma
coisa: que eu cobiçava ou já possuía uma mulher da colônia, em franco
adultério, por ser eu casado, e se a fêmea também o estava, em redobrado
delito.

Encontrei-me, de repente, elaborando uma justificação: eu apenas quis dizer


mulher branca, como oposta a índias, mulatas e negras, que me inspiravam
repugnância, e isso, atrevi-me a mentir, na hipótese de que se tratasse de uma
notória licenciosa e, de qualquer modo, como possibilidade. Estava
totalmente confundido e me envolvia em palavras sem deixar-me saída,
porque patente se me representou uma situação de desfavor para meu
provável traslado. Se o assunto era tomado como ofensa de um americano
contra a honra dos espanhóis e alguém interessado se encarregava de avultá-
lo, poderia estorvar minhas demandas perante o próprio vice-rei.
Estava desolado, até que me reconfortei apelando ao discurso sobre
minha virtude que fez no jantar dom Godofredo Alijo.
— Como é possível então conciliar opiniões tão diversas? Tenho a meu
favor a de um respeitável ministro da Fazenda Real.
Percebi que Bermúdez se encontrou subitamente desarmado. Ainda no
caso de que a autoridade máxima, o governador, tivesse tomado
conhecimento e se pronunciado contra, não era o alferes-mor pessoa
suficientemente indicada para estar a par de seu pensamento.
Argumentou então que certos cavalheiros haviam falado, nos dias
seguintes, sem cuidar que seu conceito transcendesse, embora ele,
Bermúdez, por discreto, não me daria seus nomes, pelo menos se isso não
resultasse imprescindível para as precauções que eu pudesse tomar.
Embora o rumor tivesse base real, sentia-me acima dele, porque não via
perigo iminente, de modo que assegurei a Bermúdez que não me
intranqüilizava e lhe disse que podia guardar reserva para sempre sobre a
identidade desses cavalheiros.
Já não pôde correr-me.

Outra imagem, não a do suposto favor, adveio à minha mente: Luciana de


Piñares de Luenga várias vezes em consulta, desusada em mulheres de sua
condição, no gabinete do alferes-mor.
Mas isto havia sido antes da festa e não se encontrava ligação com o
novo episódio.

9
Essas jornadas de acontecimentos imprevistos, de agitações e tombos,
afastaram-me de qualquer tentativa de encontrar-me com Luciana, o que era
difícil até outra reunião, e as reuniões se davam espaçadamente. Zama,
ofensor, não podia pisar o umbral de Piñares, ofendido. Procurá-la na missa
era desembocar no labirinto dos ofícios, que se davam de dois ou três por
semana em cada templo, e eram mais de seis, sem contar os de naturais.
Rita, que foi resplandecente, o era menos, como se alguma coisa
chupasse o seu sangue. Ao nos encontrarmos, forçava-se em prol de uma
conduta normal, porque havia sido ferida e conservava a ferida do frágil
humilhado pelo forte.

Pude, pois, retornar à Marta. Nesta disposição me encontrou uma mensagem


sua, enviada pelo mesmo barco em que chegou um cavalheiro oriental[2] com
cartas de recomendação para mim. Trazia este homem um provável negócio
de exploração de madeiras; pessoas consideráveis me encareciam atendê-lo
devidamente e apresentá-lo àqueles que pudessem facilitar suas coisas. Esta
atenção importava indubitavelmente em decréscimo de minhas moedas de
prata.
Marta, superando sustentados reparos, falava-me da situação econômica
do lar. Estava aflita. Tivera de vender as modestas jóias de seu dote, às
escondidas de minha mãe. Com esses recursos ganhava tempo, até que eu
pudesse ajudá-las.
Como eu imediatamente não podia, tive de franquear-me em outra
missiva comovida por sua abnegação silenciosa e repleta de recomendações
de que continuasse escondendo a crise de minha mãe. Tive de esclarecer que
o meu soldo era realmente de mil e quinhentos pesos, mas mil deviam ser
pagos a mim dos haveres da cidade, e, conseqüentemente, por ser estes tão
exíguos, os meus não passavam de ilusórios. Quanto aos outros quinhentos,
só em oito oportunidades haviam chegado da Espanha, em quinze meses de
permanência.
“Marta — suplicava eu com a pena —, sacrifiquemo-nos um pouco mais
ainda. É pela minha carreira, que não posso abandonar se quero outro cargo
mais próximo de ti, de maior brilho e efetivas receitas. O meu nome também
está em jogo, meu nome que é o dos teus filhos.”

10

Encontrei alojamento para o meu visitante em uma casa da rua de San


Francisco. A rua de San Francisco corre, vista do rio, atrás da rua de San
Roque, e na rua de San Roque estava a casa dos Piñares de Luenga. Dos
fundos desta, uma pedra lançada por mão de homem podia atingir a janela do
oriental.
Visitei-o assiduamente em seu quarto e há de ter estranhado tão solícito
interesse em favorecer seus negócios.
Até que um dia, bem cedo, observei agrupados, atrás da casa dos
Piñares, cavalos e mulas com avios de viagem. O senhor preparava a ida à
sua estância de Villa Rica.

Deixei transcorrer um lapso prudente e convidei o oriental para visitar


Piñares de Luenga, ministro da Fazenda Real, que certamente poderia
contribuir com informes que deixassem sólido e concluso o projeto.
Elaborado de forma que mereci elogios de meu favorecido, passei para
buscá-lo; de braço dado com ele, apresentei-me na porta principal em casa
de dom Honorio Piñares de Luenga.
Um jovem escravo nos informou que o senhor ministro encontrava-se em
sua estância de Villa Rica e não regressaria antes de um mês. Deixei
manifesta uma descomedida decepção, com vozes de tom algo elevado que
provocaram olhares de estupor de meu acompanhante. Não ia embora e
requeria maiores explicações. O oriental me puxou discretamente pela
manga e, antes que ele malograsse meu plano e tendo em vista que ninguém
lá de dentro vinha em minha colaboração, decidi-me e ordenei:
— Digas a tua senhora que aqui está, apresentado por dom Diego de
Zama, um cavalheiro de Montevidéu, que deve regressar muito em breve à
sua pátria e deseja ser atendido pelo senhor ministro.
O cunumí se retirou, deixando a porta entreaberta, em ato de precaução.
O oriental deu curso a seu mal-estar, dizendo-me que como podia
insistir dessa maneira por uma informação de relativa importância, de toda
forma impossível de se conseguir, já que o ministro não estava. Que havia
outros ministros da Fazenda Real, se tanto queria fazer por ele e que...
A porta se abriu de todo, franqueando-nos a passagem. O escravo nos
guiou até o salão.

Luciana nos recebeu muito distinta, mas com as faces um pouco ruborizadas.
Mostrou-se satisfeita com a nossa visita e eu soube que era por minha
ousadia. Acredito que nos sentimos repentinamente cúmplices.
Não obstante, dedicou toda a sua atenção ao oriental, a escutá-lo um
pouco, lamentar a ausência do marido e, em seguida, a cercá-lo de perguntas
que o homem não podia responder, porque não era nem muito sagaz nem
amigo das coisas espirituais, e para elas se encaminhou a curiosidade de
Luciana. Quis saber do teatro e da música de Buenos-Ayres e Montevidéu, e
como por aí não tirava proveito de ilustração, ocorreu-lhe que este
indivíduo, comerciante, podia estar a par de tecidos e perguntou a ele sobre
as lojas e até o preço dos dedais de prata. Como aqui acertava um pouco, o
oriental quis recuperar terreno e se mostrou viajado, contando de uma
viagem a Córdoba. Mas cometeu um equívoco, porque Luciana supôs que ao
menos algum doutor seria amigo dele e lhe veio a vontade de conhecer a
vida íntima das pessoas dessa classe, suas festas, reuniões, estilos de
roupas, pratos e bebidas, modos de educação dos filhos, um questionário
para enciclopédia. Não era para o oriental.
Era a minha vez. Eu ia a ele ressentido, porque licenciado sou, embora
não de Córdoba, e bem podia perguntar a mim. Era, dessa vez, um pouco
como sempre: ali onde as pessoas não são da universidade, se possuem
alguma coisa de que se orgulhar, posição ou fazenda, decidem ignorar estudo
e títulos de quem os têm.
A minha oferta proporcionou alívio para o oriental e em Luciana um
interesse que, assombrosamente, permitiu-se deixar em suspenso, até uma
nova visita nossa, que nos encarregou que se repetisse dois dias depois, na
hora da reza.

11

Nessa noite sonhei que por barco chegava uma mulher solitária e sorridente,
só para mim, necessitada de meu amparo, que se confiava aos meus braços e
mesclava com a minha a sua ternura. Pude precisar seu rosto, gentil, e uma
penugem loira que tornava pêssego seu pescoço e me punha guloso.
Não era Marta; tampouco Luciana. Não era ninguém que eu conhecesse.

Deixei o leito, espiritualizado. A manhã era limpa e propícia. Bebi o mate e


prescindi dos biscoitos. Comer, mastigar, parecia-me grosseiro.
Na rua dei com uma modesta berlinda, de arreios gastos e parelha de
pangarés.
Não prestei atenção nela quando passou ao meu lado. Mas reparei em
uma mão, carnudinha e jovem, muito branca, guardada por rendas, que
segurava na portinhola. A cortina fechada não permitia tornar público mais
do que esse breve testemunho de donaire. A carruagem se afastava e, por
modesta, não podia distingui-la de nenhuma outra.
Pensei em procurar meu cavalo; suspendi tal propósito.
Talvez fosse a mulher do sonho; certamente que não.
Assim como nela, operou em mim como que uma perdurável carícia.
Para juntar pedacinhos de esperança, revisei as características do coche
e dos animais de tiro, a fim de retê-las. Sem dúvida, disse-me, para a dama
da mão era um pobre meio de não ir a pé; no entanto, tive de dizer-me
também, de menos dispunha agora aquela que era, na verdade, minha dama,
Marta, minha senhora.
Senti-me traidor de seu amor, de sua humildade e de seu sacrifício; mas
pensei na mão resguardada por rendas, pensei em Luciana, e quis justificar-
me como diante de um tribunal: “Pelo menos, devo conservar o direito de
enamorar-me”.
Enamorar-me, unicamente, apontava em minha reserva de direitos, e
imaginava de novo a mão carnudinha e clara, fugitiva, e a tornava real
tornando-a de Luciana, e minha por um beijo, um só beijo de enamorado, e
depois o reclinar de minha face nela e sentir seu calor passando para o meu
corpo.

Devia acudir ao gabinete. Não me fazia mal sabê-lo, porque permanecia sob
a influência do sonho e da mão branca, outro sonho. Mal me causava, isso
sim, que o real me resultasse inapreensível e, se uma mulher vinha a mim, o
fizesse em sonhos, nada mais.
Nunca seria o visitado do amor? Não o amor de Luciana, se é que o
conseguiria, mas o de uma mulher de outras regiões, um ser de finezas e
carícias como podia existir na Europa, onde ainda que em alguns meses faça
frio e as mulheres usem agasalhos suaves ao tato como os corpos que
cobiçam.
Europa, neve, mulheres asseadas porque não transpiram em excesso e
habitam casas polidas onde nenhum piso é de terra. Corpos sem roupas em
aposentos aquecidos, com lume e tapetes. Rússia, as princesas... e eu ali,
sem uns lábios para os meus lábios, em um país que uma infinidade de
francesas e de russas, que infinidade de pessoas no mundo jamais ouviram
mencionar; eu ali, consumido pela necessidade de amar, sem que milhões e
milhões de mulheres e de homens como eu pudessem imaginar que eu vivia,
que havia um tal de Diego de Zama, ou um homem sem nome com umas mãos
poderosas para capturar a cabeça de uma moça e mordê-la até sair sangue.
Eu, em meio a toda a terra de um continente, que me resultava invisível,
embora o sentisse em torno, como um paraíso desolado e excessivamente
imenso para as minhas pernas. A América não existia para ninguém, a não
ser para mim; mas não existia senão em minhas necessidades, em meus
desejos e em meus temores.

Estava espiritualizado.
No meu caminho, caída e sem forças para mover-se, encontrei em uma
vala formada pelos caudais uma mulher indígena, de meia-idade.
Aproximei-me e ela não sabia com que objetivo, motivo pelo qual seus
olhos se puseram implorantes, como para que não a forçasse a sair dali, para
que não lhe fizesse mal. Com essa silenciosa súplica, com seu abandono e
sua dor, causou-me viva compaixão.
Quis saber o que ela tinha.
— Tuvïg — disse-me.
— Sangue? Estás ferida?
Negou lentamente com a cabeça.
— Não. Fluxos de sangue, Vossa Mercê.
— O que posso fazer por ti? O que posso oferecer-te?
— Erva ou açúcar para a médica, Vossa Mercê.
Dei-lhe uma moedinha para sua médica, a curandeira, e outra para ela.
Disse-lhe que devia aguardar até que chegassem dois homens, que a
levariam carregada para ver a curandeira e depois para o seu rancho.
— Não tenho rancho, Vossa Mercê. Sou livre e tinha; mas o meu homem
me expulsou.
Apesar de entender sua situação, não soube como contribuir para
resolvê-la. Joguei outra moeda sobre sua saia, consciente de que isso não
era nada para a miséria e a doença, que o marido queria extirpar pela raiz
eliminando de sua presença a mulher.

Diante da casa de governo me aguardava um emissário com mensagem do


oriental. Amanheceu com cólicas e vômitos e implorava a minha
colaboração para que se cuidasse de sua saúde.
Com repentino sangue na cabeça, interpretei-o como uma zombaria da
sorte, como uma brincadeira malévola para excitar superstições: eu me
ocupava, na rua, de uma doente desconhecida, à procura de que sarasse, e
parecia que a doença passava ao meu conhecido. Doente ele, não
poderíamos visitar Luciana pela tarde: a desventura recaía em mim.
Fiz avisar ao oriental que logo em seguida teria auxílio de especialistas,
mas decidi não ocupar-me dele nesse momento e, secretamente, desejei que
sofresse até uivar.
Prescindi também de mandar homens em socorro da mulher caída.
O governador tinha indicado que assim que eu chegasse me pusesse às
suas ordens. Isso implicava ante-sala, até que ele se dignasse a franquear-me
a passagem. Nessa ocasião, atrasou-se até crispar-me de impotência.
Em igual situação, e vendo o meu nervosismo, permaneciam de pé dois
anciãos pulcros e uma jovem bonita, simples e notoriamente passiva.
Estavam na sala antes de mim e responderam corteses e tímidos ao meu
abreviado cumprimento, e mais não houve entre nós, à exceção de um longo
silêncio e uma aparente igualdade de condições que me humilhava.
Deles se tratava. O governador, que me recebeu com uma cordialidade
apaziguadora, rogou-me que o livrasse dessa gente, segundo seus
conhecimentos, temivelmente pidona.
Tive que aceder, com calada reserva de vingança.
Passei à antecâmara sem olhá-los, tranquei atrás de mim a porta do
gabinete e esperei que eles me procurassem.
Teriam que se cansar de esperar a audiência do governador, animar-se a
inquirir seu secretário e então perceber que quem ia atendê-los era o senhor
assessor letrado; recebidos ao cabo de outro tempo, cair na comprovação de
que o assessor letrado era eu, ou seja, a mesma pessoa que tiveram ao
alcance da mão por meia hora, desperdiçada e irrecuperável.

Mas o tempo, ali, de nada servia, e finalmente me incomodou sua paciente


ante-sala. Mais me cansei eu do que eles; pelo menos, acredito eu.
Que fortes eram meus desejos de ser despótico e expedito e quão
escassa oportunidade me deram as humildes palavras do ancião.
Era descendente de adiantados;[3] podia citar, em linha direta, a Irala.
Quando me expunha isso, como uma relação de feitos, sem pose nem
orgulho, alguém bateu à porta e era Ventura Prieto. Eu o fiz entrar, para que o
ancião se sentisse diminuído, obrigado a confessar-se e a pedir diante de
pessoa estranha, sabe-se lá de que categoria.
Ventura Prieto, discreto, quis retirar-se; a uma indicação minha,
permaneceu perto da entrada, observando interessado.
O ancião, intranqüilo como eu o desejava, disse ser dos antigos
povoadores de Concepción, com terras herdadas, mas já tão renitentes às
suas decrépitas mãos, que havia caído na miséria e se via na precisão de
pedir a Sua Majestade para si, sua mulher e sua neta, esta sem pais devido a
um ato sanguinário dos índios, dez anos atrás.
A menina, que a princípio me olhava com limpidez, pouco a pouco
havia inclinado a encantadora testa e, com sua mãozinha, só com a ponta dos
dedos, agarrava-se à minha mesa, como para aferrar-se a alguma coisa. A
minha mesa representava o assessor letrado: eu era o sólido e o último para
abrir caminho.
Eu constituía, de novo, alguma coisa útil e importante.
Minha vaidade ditou estas palavras:
— Vossa Mercê pode voltar em paz à sua terra, que terá encomenda de
índios em nome de Sua Majestade, que há de acordar sem tardança o
governador, por quem me comprometo com minha palavra.
Pus tanta aplicação na solenidade de minha promessa, perseguindo um
brilho de gratidão nos olhos da jovem, que esqueci de reclamar-lhe
documentação probatória de sua ascendência.
A jovem me entregara o fulgor umedecido de seus olhos e eu me sabia
alguém, alguém feliz em sua intimidade.

Ventura Prieto vinha trazer-me a reiteração da mensagem do oriental.


Desusadamente amistoso, pedi-lhe conselho. Indicou-me ao cirurgião
Palos e fiz uma brincadeira com seu nome, obtive outras referências sobre o
modo de encontrá-lo e encarreguei-o de me enviar dois homens para que
fossem à procura da mulher caída. Eu era, nesse momento, uma pessoa boa e
comunicativa, tanto que referi a Ventura Prieto o episódio da rua, procurando
torná-lo partícipe de minhas humanas ações e de minha compaixão.
Maior era a sua ou mais lúcida. Disse-me que tanto merecia um
cirurgião a indígena como o oriental, e me animou tornando-me presentes os
procedimentos extravagantes dos curandeiros: “Feitiços ou cruéis
intervenções; do contrário, o inoperante: por exemplo, contra os fluxos de
sangue, defumadores de folhas de guembé”.
Pouco necessitou Ventura Prieto para persuadir-me, mas tive de
arrepender-me de haver lhe franqueado a minha confiança.
Atreveu-se a opinar sobre o meu pronunciamento no caso dos
descendentes de adiantados, do qual era testemunha.
Disse que para privar da liberdade a cem ou duzentos nativos e fazê-los
trabalhar em proveito alheio não era mérito suficiente um papel antigo com o
nome de Irala.
Como ainda não conseguia compreender se criticava minha disposição
favorável ao ancião ou simplesmente o regime das encomendas, quis
explorar um pouco mais, e lhe perguntei qual título considerava válido para
obter a encomenda.
— Nenhum — respondeu-me —, e menos ainda o da herança remota.
Contemplei-o com um tanto de superioridade e suficiência, porque suas
opiniões eram perigosas e o via ofuscado, enquanto eu me mantinha sereno.
Disse, muito pausadamente, como se estivesse refletindo, embora, na
realidade, pedisse resposta:
— Estarei falando com um espanhol ou com um americano?
E ele, incontinente, replicou:
— Espanhol, senhor! Mas um espanhol cheio de assombro diante de
tantos americanos que querem parecer espanhóis e não ser eles mesmos o
que são.
Aqui nasceu minha fúria:
— Isso é comigo?
Vacilou um instante, conteve-se e disse:
— Não.

Palos não estava como cirurgião e sim como beberrão e, embora resgatado
da taberna, não consentiu em atender mais do que o oriental, julgando
indigna a rua para “as consultas da ciência”.
Deixei-o, pois, junto ao leito dos cólicos e, seguido de dois escravos da
casa, acudi à procura da mulher, com planos de transportá-la para o pátio da
criadagem para que não fosse longo o caminho do cirurgião nem deprimente
para suas pretensões.
Não se encontrava onde antes a vi e ninguém pelas imediações parecia
ter-se ocupado dela, de seu estado e partida.
Tampouco era simples dar com a vivenda da curandeira, se é que para
ali se havia encaminhado a mulher. Os escravos primeiro e pessoas da
vizinhança em seguida informaram-me do que eu nunca havia me ocupado até
então: os “médicos” vinham do campo, mas só em dia de festa religiosa.
Uma gûaigüí, uma velha, havia, no entanto, com residência fixa e
consulta permanente.
Por Ventura Prieto soube, quando fui à pousada para repor forças e
ainda estava desorientado, tanto que fazia transcender meu desassossego e
remorsos, culpado por descuidar de uma vida que prometi assistir.
Tanto os americanos como os espanhóis, e estes das classes mais
distintas, para remédio de seus achaques preferiam, antes do cirurgião, o
cura especialista, e, mais do que o cura especialista, o curandeiro. De
qualquer modo, era provérbio que a morte é coisa só de velhos e de
parturientes, não de soldados nem de doentes. Se algo de verdade havia
nesta convicção, sua vigência não excedia os limites da província e, em todo
caso, do núcleo mais civilizado, ali onde não dominavam os indígenas nem
se comia carne humana.
Nada alterou, pois, minha presença na casa da médica, onde duas
senhoras espanholas aguardavam sua vez e fingiram não conhecer-me.
Entre a afluência não se encontrava a procurada. Demorei-me um
instante, para o caso de que fizesse parte do grupo que, mais lá para dentro e
com certo isolamento, consultava-se com a gûaigüí. Como o trâmite
demorou, fui até lá e lá estava, entre todos, um menino loiro, de uns doze
anos, espigado, na tarefa de passar para a velha os canudos de cana com
urina para o diagnóstico.
Uma noção me forçava a associá-lo com o bandidinho que ocupou a
minha cama e destampou a minha caixa de cabedais. Mas a certeza tardava a
vir. Por aí, em uma trégua de sua tarefa, olhou-me tranqüilo e sorridente,
como com familiaridade. Não duvidei: era ele.
Com resolução que não precisou de reflexões, abri caminho por entre o
grupinho de doentes e caí em cima dele com minha mão pesada, agarrando-o
por um ombro. O rapazote se desconcertou um pouco, enquanto eu o
acusava: “Foste tu, canalha. Foste tu!”. E para forçá-lo prontamente à
resposta, chacoalhei-o, repreendendo-o: “Safado, diz-me quem te mandou
me roubar. Diz-me!”.
Eu sentia em volta o revoar de galinhas assustadas das mulheres e isso
me incomodou, distraindo-me o suficiente como para que o pequeno, ladino
e bravio se sacudisse entre as minhas mãos, liberando-se um pouco até
sentir-se firme em um pé: com o outro me aplicou um forte pontapé na parte
proibida.
Gritei de dor, eu, maldito seja! E o rapaz se me escapou.
As mulheres haviam se espalhado e ninguém pensava em auxiliar-me
nem em aproximar-se. A velha, com ar místico e ausente, permanecia
sentada no chão, com as pernas cruzadas sob a saia. Eu bramia, contendo
com as mãos a parte afetada.
Quando a dor se atenuou, assaltei a velha com perguntas. Só pude
esclarecer que dias antes o menino loiro levou-lhe de presente uma
quantidade de pimenta vermelha seca, que utilizava como remédio e, em
troca, autorizou-o a ficar na sua casa, sem saber quem era, nem sequer seu
nome.
Muito segura de sua afirmação, mas sem lamentar a perda do ajudante,
disse-me:
— Não voltará.

12

Começava a tarde, mas tanto mal havia me causado aquele dia que me
espantava dar continuidade a ele. No entanto, não se pode renunciar a viver
meio dia: ou o resto da eternidade ou nada.
Podia, sim, abster-me das armadilhas da cidade montando o cavalo com
rumo impensado. Oscilava entre essa perspectiva e a muito incerta de visitar
Luciana.
Não poderia fazê-lo senão como acompanhante do oriental, mas o corpo
do oriental era sobre o leito um verme que se retorcia sem sair de um ponto
fixo. Resultava-me tão inútil para aquela ocasião que o contemplei em
silêncio e me disse que sua morte nada me importaria.
Nada me importaria a minha própria morte, pensei também, e me
acometeu uma forte gana de não ocupar-me de coisa alguma, de não retornar
nem ao meu quarto nem à rua ardente e empoeirada, de jogar-me ali mesmo,
nem que fosse no chão, e descansar, descansar.

Como entrei pelos fundos, na casa de meu hospedeiro encontrei as mulheres


da cozinha que dedicavam a sesta a preparar doces. Ao ar livre, em grandes
panelas de ferro, cozinhavam as frutas descascadas.
Eu vinha suado e certamente mais ruborizado do que o normal por causa
da terra, essa terra vermelha das ruas grudada no meu rosto. Desejei o
benefício de uma água morna por todo o meu corpo e mandei que
aproveitassem esse fogo para preparar-me um banho.
Colocaram uma grande tina no meu quarto e embalsamaram o ambiente
com eucalipto.
Um escravo esfregou as minhas costas com um pano molhado. Depois,
ordenei-lhe que se fosse.
Permaneci longo tempo sentado na água, gozando de uma paz calmante
que levou minha imaginação ao longínquo lar e pouco depois à possibilidade
de um amor imediato, o de Luciana ou outra mulher agradável e sadia, de
que necessitava tanto como de comer.

O banho me confortou, pôs-me garboso e tão inconscientemente predisposto


ao que ia fazer que bastou, para decidir-me, um pequeno episódio. Ao
retirar-me do quarto para a rua, meu hospedeiro, dom Domingo, disse-me,
entre paternal e complacente: “Eu também já estou a par da novidade: que
houve banho de corpo inteiro”. Sem deter-me, enquanto o cumprimentava
com uma inclinação de cabeça, sorri-lhe, amistoso e ufano, muito satisfeito
de que o tivesse notado.
Eu era alguém merecedor de ser bem-visto e bem recebido. Diziam-me
as discretas gentilezas do cavalheiro, meu hospedeiro. Se um ancião como
ele se banha em tina, pensa-se que é um velhinho asseado, nada mais, e se
procura que não adoeça com a água. Mas o banho de um homem de trinta e
cinco anos sugere outros motivos.
Já apetecia a aventura e até o risco, a ponto de preferir que o oriental
continuasse prostrado. Apliquei o escrúpulo de passar outra vez para
inteirar-me de seu estado. Era inquietante, pois lhe haviam nascido umas
terríveis calenturas. Temi que fosse por minha culpa, em virtude daquele
desejo ruim de mais cedo.
Sua situação, a intranqüilidade de minha consciência, frearam meus
ímpetos, somente até notar que da mesma comida e das mesmas cólicas eu
podia morrer uma semana depois. Podia morrer ascético com o sangue
ardente e a boca cheia de queixas contra mim mesmo, sem deixar mulher
alguma condoída por haver pecado por Diego de Zama. É que Diego de
Zama, sem haver beijado durante anos outro corpo que o de sua mulher,
conhecia-se alheio à pureza da fidelidade e precisava também que alguém
mais participasse de sua confusão de desejos e mordentes recriminações.
Não; não ia eu, sob aquele céu nebuloso de entardecer, em direção a um
amor luminoso nem alegre. Com que certeza o sabia.

De que ia ao amor, não duvidava. Meu ânimo resoluto me fazia confundir a


apetência com uma implícita combinação.
Perdi parcialmente a vontade quando fiquei diante da casa e ainda não
tinha pensado o pretexto para apresentar-me.
Pedi para falar com a senhora. Luciana bordava no salão e me recebeu
benevolamente, sem se surpreender.
Fingimos os dois estar muito interessados nos assuntos do oriental. Ela
deplorava a ausência do marido. Fez promessa de enviar na manhã seguinte
um recado com o escravo que viera da fazenda.
Entregou-se à confidência:
— O meu marido continua tão apaixonado por mim como no começo do
nosso matrimônio. Quando se ausenta, me assedia com carinhosas missivas.
Tomei coragem:
— Senhora, saber isso me faz mal.
— Por quê?
— Sou ciumento.
Atalhou-me, vivamente:
— Nada vos autoriza a sê-lo.
Sobreveio o silêncio, mas eu estava obstinado em meu propósito e não
fui cavalheiro, quer dizer, nem pedi desculpas nem me retirei.
Amansou-se, embora tomando um ar compungido. Disse-me que muitas
mulheres a abominavam por sua independência e muitos homens se
enganavam a respeito de sua conduta porque ela passava longas temporadas
sozinha, pois não compartilhava do gosto de seu marido pela fazenda e, ao
contrário, afogava-se em casa e também no país. Pouco podia julgar dos
outros, porque veio da Espanha na adolescência; mas calculava que em
cidades maiores as pessoas viviam menos sozinhas porque se conheciam
menos entre si.
Eu não queria seguir suas reflexões, espreitava a palavra que me desse
chance para uma insinuação ou avanço. Enquanto ela assumia mais e mais
uma atitude desolada, eu me sentia como que disposto a assaltá-la e a
observava rigorosamente, quase com despeito porque ela não correspondia
com maior ligeireza ao que já me parecia iminente. Na análise, seu crânio
me pareceu o reverso da beleza e comparei sua mandíbula com a de um
cavalo, por ser forte e proeminente.
Cessou em um discurso de voz comedida a que eu não havia atendido e
ignoro se respondi, e me comunicou, como condoída de ter que fazê-lo:
— Diego, a noite está chegando; é tarde. Não sejamos imprudentes.
Chamava-me, intimamente, de Diego; pedia prudência e mais parecia
estabelecer o laço de uma cumplicidade. Era o meu triunfo, um triunfo
repentino. Recebi-o com nervosismo, gosto e uma tremenda vacilação,
porque ignorava como e quando poderia consumá-lo e se me correspondia a
iniciativa.
Só soube dizer-lhe, cobiçoso, veemente e enamorado — enamorado —,
enquanto segurava uma de suas mãos:
— Luciana, minha Luciana.
E ela assentiu com um suspiro, sem dizer palavra e com o olhar baixo,
enquanto subtraía sua cálida prisioneira de minhas mãos e, com o
cumprimento, ordenava-me:
— Agora, até amanhã.

Tudo resultou simples demais, fácil demais. Mas eu temia minha sorte.

13

Foi, realmente, Ventura Prieto?


Naquela noite me despreocupei do oriental. De manhã, apareceu na casa
de governo um emissário, com um recado do hospedeiro de meu protegido.
Comunicava-me que os males deste se haviam agravado e já resultavam
alarmantes.
Como o mensageiro era um criado-grave, empregou tanta cerimônia nos
cumprimentos prévios e tanta minuciosa abundância no informe que aqueles
que passavam pelo lugar — atendi-o na galeria — encurtavam o passo para
apanhar no ar algumas palavras. Um deles foi o oficial Bermúdez, que,
autorizado ainda mais para a pergunta por meu semblante de enfado, quis
saber se recebera notícias infaustas de alguém querido.
Falou comigo diante de Ventura Prieto e não pude impedir que este
escutasse a minha resposta discretamente cortês e informativa, nem muito
menos que desse corda à sua habitual curiosidade e me interrogasse —
corretamente, isso sim — sobre a minha procura da mulher achacada por
fluxos de sangue.
Como, na verdade, Ventura Prieto estava demasiado a par do assunto,
porque recorri a ele quando não sabia a quem dirigir-me, respondi-lhe que
não pude dar com a doente, mas sim com a velha médica que me indicou.
— Então Vossa Mercê viu a mística do menino loiro?
Quanto continha para mim esta pergunta: Ventura Prieto estava a par de
que o menino loiro acompanhava a médica e me mandou procurá-la. Era uma
gozação e uma afronta. Isso pensei, e por fim pude desafogar minha
indignação.
Apliquei-lhe dois rijos bofetões, sem averiguar mais, sem lhe dar aviso
nem respiro. Cambaleou, assustado. Reagiu e me cravou um olhar de ferro.
Encurvou lentamente o corpo e caiu em cima de mim tratando de agarrar meu
pescoço e me fez rodopiar. Consegui parar o empurrão e, embora ele
estivesse preso a mim, consegui eludir a tenaz das mãos com enérgicos
movimentos de cabeça e deixando o pescoço duro até sentir que as minhas
veias quase explodiam. Para ele, seria como agarrar um tronco com vida.
Suávamos, presos corpo a corpo, mas eu me sentia mais poderoso ou mais
impulsivo e tratei de sitiá-lo contra uma janela. Passo a passo, cedeu terreno
até ficar encostado nos ferros. Então agarrei-o pelos cabelos e bati sua
cabeça três vezes contra as grades. Não queria destroçá-la, nem tantas eram
minhas forças. Mas deixei-o zonzo e ainda enceguecido por saber-me
dominante, atinei a tirar a faca do flanco e lhe fiz um talho na face.
De um salto, joguei-me para trás e fiquei à distância, na expectativa,
faca na mão, espiando sua reação. Ele permanecia desfalecido e ofegante e
acredito que eu nem sequer desejava ver seu sangue.
Em vista de que a luta havia terminado, algumas pessoas se
aproximaram para esbanjar afetos, felicitando-me por minha destreza e
minha vitória, lançando denostos contra Prieto e mostrando interesse em
ajudar-me, se é que estava ferido ou esgotado.

Ventura Prieto foi posto na prisão.


O governador me fez chamar. Mal entrei, declarou:
— Já o destituí.
Requereu-me um informe verbal do episódio, mas me adiantou seu
ponto de vista:
— Que Deus nos acuda! Que estejamos expostos ao assalto de qualquer
insensato, nós, aqui, na própria casa do rei!...
Entendi que a partida estava ganha, embora Prieto fosse espanhol e eu
americano. Operava a solidariedade de estado.
Soube, pois, como organizar meu relato.

14

P . Contudo, para não dar o que falar, comi, como de


costume, na pousada.
Puseram-me uma sopa de mandioca e, já que tanto fazia isso como
qualquer outra coisa para a minha falta de fome, admiti-a sem queixa. Fiquei
com o estômago isento de sólidos e todos os humores do vinho na cabeça.
Reneguei do oriental e me entreguei ao leito.
Mas o oriental estava decididamente contra mim: morreu e vieram me
acordar para comunicar-me o fato.
Também sua morte era um viveiro de males, porque me dava a
incumbência das cerimônias e das providências legais, de conduzi-lo ao
túmulo e, talvez pelos reclamos de parentes distantes, tirá-lo da terra,
colocá-lo sobre a água, em um barco, e mandá-lo rio abaixo.
Consolei-me calculando que antes ganharia meu traslado. Ainda que
tenha conjecturado que o destino poderia rir de mim enviando-me, em um
mesmo navio, a nomeação e uma procuração dos parentes do morto para que
despachasse o cadáver, em cujo caso teria que viajar, ainda, com o oriental,
apegado a mim como poucos nunca o foram.

A morte do oriental, descontada a violência das causas, ajustava-se à maior


naturalidade; a morte de um homem era e é algo corriqueiro. Não me pareceu
o mesmo do recado que, com escassa diferença, seguiu a esse: Luciana
mandou uma escrava à porta do meu hospedeiro, dom Domingo Gallegos
Moyano, para se pôr a par do estado de minha saúde, preocupada pela briga
com Ventura Prieto, que lhe havia sido participada.
Tive um princípio de alarme pelo escasso recato de Luciana, por sua
facilidade para tornar público o interesse que podia sentir por mim e, a
princípio, resolvi fazer rosto a ele.
Mas me ganhou o orgulho de sabê-la tão seduzida que não se protegia de
riscos.

Muito pouco fiz pelo oriental. Apenas despachei um cura para que o velasse
e comuniquei às pessoas da casa onde se hospedava que no dia seguinte
faríamos inventário, com escrivão, das roupas e do dinheiro que restaram.
Não podia consagrar-me de cheio a essas tarefas imediatamente porque
me estorvariam, tirando-me tempo, a reunião com Luciana.
E mais: para não perturbá-la nem afetar o espírito ditoso que procurei
imprimir ao encontro, não lhe disse que morrera e, como perguntasse pelo
curso de sua doença, menti que continuava com cólicas. Aconselhou-me que
lhe desse para tomar treze goles de aguardente. Compreendi que Luciana era
muito ignorante, pelo menos em certas matérias.
No entanto, desde que cheguei de novo a ela adquiri outro compromisso
de gratidão com sua benevolência, que me impedia de julgá-la em questões
secundárias: tributou-me o acolhimento merecido por um herói, em virtude
da minha luta daquela manhã. Quis examinar meu rosto, para ver se tinha
algum machucado que não houvesse percebido, e até pressionou com as
mãos na testa, para ativar qualquer dor ainda calada, se é que havia.
Tomei isso como um pretexto para pousar suas mãos na minha cara e a
deixei fazer, sensibilizado até o desfalecimento. Não ocorreu-lhe que podia
ter sido golpeado em outras partes do corpo, ao menos não as apalpou.
Depois se sentou, em uma distância maior de mim do que na noite
anterior, e enquanto falávamos do oriental e me prescrevia a aguardente, foi
transformando-se na senhora que recebe uma visita e me chamava de “senhor
de Zama”, “doutor” ou “dom Diego”. Prestei atenção para ver se alguém
estava nos espiando e ela prescindia de intimidades para despistar; mas nada
adverti de suspeito.
Por um instante, mantive o tom que Luciana me impunha, embora por fim
se impôs a minha necessidade dela e quis apressar. Disse-lhe algumas frases
de viva devoção, mentindo uma total consagração mental desde a noite
precedente quando, na verdade, ao lembrar dela durante a jornada, estimei
desnecessário preocupar-me demais com ela, porque se me aparecia em
imagens de submissão e entrega que me dispensavam de maiores empenhos.
Mas nessa noite não era a Luciana submissa e entregue que previ, mas a
Luciana na defensiva.
Com habilidade, eliminava de suas respostas o que pudesse
comprometê-la com minhas declarações amorosas até que, no fim, formulou
uma confissão desconcertante:
— Todos os homens cobiçam meu corpo. Honorio, meu próprio esposo,
vive fascinado pela carne. Eu o desprezo e desprezo todos os homens por
seu amor de possessão.
Estavam estabelecidas as condições.
Calou-se um momento como extenuada pelo esforço e a coragem de
falar com essa clareza, e mesmo assim como dando-me tempo para ponderar
e pronunciar-me.
Eu estava enamorado de seu corpo e para ele tendia. Nada mais me
importava dessa mulher iletrada, de rosto incapaz de sugerir impressões
amáveis. Mas ela desprezava a quem pretendesse o amor de seu corpo.
Era o fracasso de meus propósitos. Não obstante, se Luciana me aceitou
tão franca e prontamente, alguma coisa lhe havia sugerido que eu fosse
diferente dos demais homens, dos que ela desprezava. É que eu era o homem
virtuoso do discurso de dom Godofredo Alijo!
Adaptei-me, pois, a esta fantasia, conformando-me em sustentá-la nela
para encobrir de elegância uma retirada que considerei próxima no tempo.
Resultou-me simples a tarefa de perorar sobre sua virtude e seu
idealismo e acabei argumentando que o meu espírito ansiava a descoberta de
uma mulher dessa natureza, que me prodigalizasse sua amizade e um terno
carinho sem implicâncias.
A vi muito lisonjeada. Insinuou-me que, se rendesse méritos suficientes,
poderia tornar-me credor desse afeto. Concedia-me dois pontos, quando no
dia anterior havia combinado seis e prometido dez.
Ao deixá-la, anoitecia. Acompanhou-me até a galeria e chamou um
criado para que me levasse à porta.
Pela rua, caminhava aos tropeções, balançando o sino, um sacristão
sonolento.
O criado perguntou:
— Quem morreu?
E o sacristão salmodiou a resposta de praxe:
— Um filho de Deus: dom Félix Ordóñez. Roga por ele.
Félix Ordóñez era o oriental. Em poucos minutos, por boca do criado, o
saberia Luciana.

Com o desaparecimento do oriental, ficava anulado o pretexto de minhas


visitas que Luciana podia fazer valer perante seu esposo. Esta possibilidade
me favorecia, porque me livrava de entrevistas já sem objetivo e com
evidente risco. Por outro lado, nada havíamos combinado para o dia seguinte
nem para os demais. Não tinha compromisso de voltar.
Talvez eu tenha me alegrado de ter saído incólume da aventura.
Como o oriental viajou tão rapidamente e não deixou indicação alguma,
eu ignorava qual das ordens teria preferido, de modo que o incorporei à de
minhas inclinações, a das Mercês.
Quando deixei Luciana, fui à casa do luto, e este era já muito visível: o
quarto velado, o canto das confrarias alternado com rezas e um ambiente
opressivo de murmúrios que não entendo como era tão vasto, com tão poucas
pessoas que pudessem interessar-se pelo destino post-mortem daquele
estrangeiro. O cura havia organizado tudo muito esmeradamente, sem dúvida
suspeitando que o oriental chegou a porto bem provido.
A tanto alcançava com seu zelo o sacerdote que proibiu acender fogo
para a comida, como se realmente o morto integrasse a família dos donos da
casa. Além disso, a escassa divulgação do óbito, pela tardia saída do
sacristão, fez com que em toda a noite não chegasse uma só panela das que,
nestes transes, costumam mandar as pessoas de posição. Motivo pelo qual,
pela manhã, com sono e fadiga de tanto velar, torturava-me a fome.
O primeiro guisado foi envio dos Piñares de Luenga. Agradecia minha
sorte, por haver inspirado algum apego à Luciana.
A criada-grave, uma mestiça muito desenvolta, fez o protocolo verbal
das condolências, escusou a ausência de seus senhores do velório e, com
exemplar reserva, disse-me que a senhora me aguardaria depois do
sepultamento.
Tal anúncio me irritou na mesma hora, porque significava complicar-me
em uma reacomodação de visitas que para mim seriam formalistas e
improdutivas.

Por isso, depois de ter entregado o ataúde do oriental à terra sombreada pelo
templo das Mercês, tirei duas horas para mim, consagradas ao necessário
repouso, antes de acudir ao chamado de Luciana.
Talvez procurasse provocá-la para que se incomodasse pela minha
tardança e começasse a acreditar menos em minha retidão e cortesia.

15

Nas ocasiões anteriores, devo ter ido com o rosto ansioso; não desta outra
vez, o que autorizou Luciana a colocar-me uma dúvida: se ela não me tivesse
feito chamar, eu a teria visitado?
Com esta pergunta me pôs a descoberto tão habilmente que me sufoquei
alegando tal necessidade de sua compreensão e companhia que teria
realizado qualquer esforço para vê-la, embora alguma coisa poderosa se
opusesse a isso.
Respondeu-me com um vago sorriso, transluzia sua incredulidade, e não
admitiu que continuasse justificando-me.
Segurou-me com perguntas sobre a morte do oriental e os detalhes da
cerimônia. Eu me recriminava de um modo feroz ter me colocado atrás
daquela mulher que, afinal de contas, permitia-se dispor do meu tempo para
uma conversa tão conducente ao fastio.
Devo pensar que foi só tática dela para estudar-me e conhecer minhas
reações. O oriental e os pregos de seu ataúde lhe importavam como
excipiente. Ela incluiria a droga no momento oportuno, com uma longa pausa
sublinhada por esta palavra:
— Ingrato...
Uma mola. Acionou-me, colocando-me de um impulso a seus pés, joelho
em terra e acariciando-lhe a mão que deixara sobre a saia, também beijando-
a, logo depois.
Os dedos de sua mão livre afundavam em minha cabeleira. Depois
condescenderam até a barba, comunicando-lhe a extrema suavidade de sua
carícia.
Alcei o olhar a seus olhos, em interrogação e súplica.
Ela declarou, com ar de acatamento a uma encantadora e temível
fatalidade:
— O que tem de ser, será.
Tombou a cabeça sobre o espaldar e entendi que se oferecia ao beijo.
Foi prolongado e suculento.
Quando saímos dele, enquanto eu aguardava sinais que me dissessem até
onde podia avançar, Luciana permanecia dissolvida em um sonho.
Depois, voltando, chamou-me:
— Amado...
E quando eu me inclinava sobre ela para outro beijo, sua mão direita se
interpôs, com delicada mas inobjetável autoridade. Acatei-a, pois, e então
me disse:
— Agora, vai.
Pude resignar-me porque já me sentia seu dono e nada custoso me
resultava permitir-lhe essas dilações, conjecturavelmente destinadas a
adormecer, sem brusquidão, a virtude.

Na tarde seguinte, estava no salão com uma complexa tarefa de bordado.


Empregava fragmentos de seda de múltiplas cores. Por isso, e em virtude de
que o tecido excedia em muito o tamanho do bastidor, exigindo que alguém o
sustentasse para que não andasse pelo chão, junto a Luciana encontrei uma
mestiça.
Não importava sua presença razão suficiente para tirar-me ânimo, salvo
que suspeitei uma estudada estratégia quando, passado um tempo, outra
criada começou a trazer mate com periódica pontualidade. Sem dúvida,
obedecia a ordens anteriores à minha chegada.
Na quinta ou sexta rodada de mate me declarei satisfeito, para afastar ao
menos uma das vigilantes; mas muito rapidamente voltou com uma jarrinha
de licor que serviu em taças diminutas. Como o conteúdo de cada tacinha era
escasso, esvaziei-o muito rapidamente, por três vezes, até perceber que isso
dava motivo à criada para apresentar-se sem ser chamada para servir-me de
novo. Deixei intacta a última porção e, de tal modo, em algumas inspeções
mais teve de persuadir-se de que não precisava de seu serviço.
Luciana meneou a cabeça, desarmada e comprazida por minha
tenacidade à procura de tornar mais íntimo o nosso encontro, e dispôs o
necessário para premiar-me. Indicou à mestiça que sustentava o tecido que o
estendesse sobre um sofá e de algum remoto aposento lhe trouxesse umas
tesourinhas especiais. Além disso, que ao sair deixasse a porta entreaberta e
que, ao voltar, batesse antes de entrar.
Entreaberta a porta, Luciana e eu nos pusemos de pé em um só impulso,
indo à união dos lábios e a um abraço com que nos apertávamos, fortemente,
um ao outro. Isto não cessava e, para mim, a sensação de contato se estendia
por todo o corpo como se não tivéssemos roupas. Já um pouco sufocados,
soltei meus lábios e os fiz conhecer suas faces, seu pescoço, o nascimento de
sua cabeleira por trás das orelhas...
Duas tênues batidas, com os dedos sobre a madeira, e foi necessário
compor a melena e a roupa.
A conversa se fez de novo impessoal, por mais alguns momentos, até
que Luciana me disse, com indiferença que ignoro se era simulada ou
efetiva, que seu marido regressaria no dia seguinte. Quis saber a hora, com a
esperança de que fosse bem tarde da noite, e ainda me restasse uma
oportunidade; mas não. Havia mandado um mensageiro com aviso de que ia
pernoitar em um povoado a meio dia da cidade e empreenderia a caminhada
de madrugada.
Não pude digerir minha decepção, tão esmagadora que Luciana arriscou
um inofensivo sorriso de zombaria. Mas ela era sábia, se não em outras
matérias, na advertência, na comunicação e na arte de assegurar esperanças.
Seus lábios se ordenaram em um risinho tranqüilizador. Uma inclinação de
cabeça com olhos cheios de confiança em si própria me anunciaram alguma
astúcia para não suspender nossos encontros.
Qual era o sistema? Tornaria possível que nos víssemos mesmo que
apenas na presença de terceiros ou a prudente distância? Estorvava minha
urgência de sabê-lo a mestiça dos fios de seda.
Meu último beijo daquele dia foi de cumprimento, na mão da senhora.
Estávamos na galeria, diante de sua mensageira e do escravo que me
acompanhava até a porta. Outros criados passavam com bandejas para o
jantar. Junto à Luciana permanecia, repentinamente agarrada a sua patroa
como se fosse um antigo cachorrinho de estimação, sua assistente de
bordado. Luciana indicou-lhe que me cumprimentasse, como se entre mim e
a mulherzinha houvesse nascido também algum vínculo especial. A jovem
me tributou galharda cerimônia, dobrando a perna e inclinando o busto, e
emitiu um guincho inexpressivo.
A guardiã, essa de quem o tempo todo temi que pudesse nos delatar se
falássemos sem prudência, era muda.

Com esse outro ardil para reprimir-me, Luciana rebaixou o orgulho que me
dava sabê-la disposta a intrigas dirigidas a nos vermos mesmo quando o
marido permanecesse na cidade.
Se me antecipava isso, sem sequer consultar meu não descartável
engenho, descobria ser destra em tais tramóias.

16

Toda a minha para que o rigor da prescindência de mulher não


fosse extremo se havia quebrantado. Eu era o cavalo sobre a raia e a ordem
de saída se diferia.
Confiei, no entanto, no domínio que podia exercer sobre mim mesmo,
exercitado pela longa espera já de ano e meio.
Restava o temor aos sonhos, que são incontroláveis, mas a fadiga
acumulada me exigia cama.
Não obstante, o único sonho apreensível foi sedante: reiterou sua
chegada aquela jovem solitária e sorridente que vinha confiar-se ao meu
amparo. De novo me resultava inidentificável com Marta, Luciana, Rita ou
qualquer mulher conhecida.
Configurava um vaticínio agradável que, repetido em poucos dias,
ganhava crédito de tornar-se realidade. Desejei-o fervorosamente, como um
consolo e um freio.
Da mesma maneira que na ocasião anterior, permitiu-me começar a
manhã com sossego e esperanças.
Era um dia inativo, por causa de algum santo não muito festejado, e o
iniciei com uma cavalgada terra adentro, de ida contemplativa e regozijada,
de regresso obstinada em velocidade, pelo puro prazer de andar vivamente,
pôr-se em tensão para guiar e não cair, sentir o ritmo do corpo conjugado
com o compasso do galope... Mas era também uma pressa em chegar, como
se necessitasse estar de novo com as pessoas.
Passei pelo porto. Não havia notícias de barco do Prata. E eu precisava
receber alguma coisa, ter alguma coisa diferente, alguma coisa que me
ocupasse e tivesse relação direta comigo, qualquer coisa proveniente de um
ser humano; embora, de forma alguma, as costumeiras relações de vizinhança
e de funcionário.
Conduzi o animal à cocheira.
A cidade, madrugadora e tenuamente festiva, entreabria janelas e
intercambiava caminhantes e carruagens de bairro a bairro e de igrejas a
lares.
Nas ruas, cumprimentei algumas senhoras e donzelas que costumava
tratar por amizade ou vínculo com seus respectivos homens, esposos ou pais.
De repente, lancei-me à aventura.
Uma desconhecida dama de mantilha, escoltada por duas pardas, fixou
seu olhar em mim à medida que nos aproximávamos de frente. Acreditei
interessar-lhe e, afastando-me para um lado, fiz-lhe uma reverência, que não
respondeu. Veio-me a apetência dela — a apetência de mulher — e fiquei um
momento na expectativa de que desse meia-volta ou ordenasse fazê-lo a uma
de suas criadas. Como isso não aconteceu, e simplesmente parecia deixar-
me atrás e eu não me resignava a que desaparecesse sem que se esclarecesse
o porquê de seu olhar insistente, tomei seu caminho, de forma resoluta.
Alguma criadinha o advertiu e a dama, avisada, apertou o passo, mas o meu
ganhava mais espaço. Ela já quase corria e eu também, embora os dois sem
perder a compostura. Era uma perseguição violenta, destinada, bem o via, a
um fracasso por qualquer motivo, mais do que qualquer outro ao de meu
escasso tato. Não desisti até pôr-me a algumas varas dela. Então saiu ao meu
encontro, de seu lar, calma e inegável, uma renomada família com a qual eu
mantinha freqüentes contatos. Tive de deter-me para cumprimentar.
Depois me enfiei pelas ruas de diferentes rumos, sem dar com a fugitiva.

Mas já estava lançado.


Retornei aos lugares onde afluíam mulheres devotas ou visitadoras e
cumprimentei todas as que não vinham com guarda masculina. Se eram
conhecidas, procurava em sua expressão um indício de disposição mais do
que cortês; se não, alguma correspondência à minha atitude ligeiramente
galante que me revelasse a mulher capaz de um desvio.
Estava excitado e atento aos sinais mais sutis, disposto a aferrar-me a
qualquer deles e levar adiante minha ousadia até alguma vitória. Caminhei,
suei; fui e voltei por uma hora ou mais. Depois, a população móbil foi
rareando e se extinguiu. Já era tempo de almoçar e também meu estômago
reclamou por seus direitos.
Quando me puseram na mesa o prato de queijo e o jarro de vinho,
calculei em quantas mesas, nesse momento, uma mulher comunicava ao
marido sua estranheza pela conduta atrevida do assessor de governo. Havia
espalhado infrutíferos receios, de conseqüências que não podia prever.
Ainda condenando meu desregramento, sentia-o poderoso, reticente a
qualquer freio, no sangue desejoso. Devia conter-me, devia castigar-me.
Recorri ao recolhimento no meu quarto. Mas não tinha sono. Pensava
nos beijos de Luciana e, embora os reconhecesse culpados pelo meu estado,
imaginava-os minuciosamente e podia reproduzir as sensações que me
percorreram.

Não me lancei nas ruas até o anoitecer. Na praça e arredores, tinha havido
feira e as vendedoras, mulheres livres ou escravas mandadas pelos seus
senhores, já retiravam as cestas de mandioca, pimentas, doces, tabaco, café e
outras mercadorias que permaneceram penduradas, ou espalhadas pelo chão,
sem conseguir quem as levasse.
Estive alguns momentos entretido em vê-las recolher suas mercadorias,
contar as moedinhas, tagarelar e despedir-se depressa, certamente com pena
de que terminasse um dia para elas tão ameno. Retiravam-se em pequenos
grupos que, pelo caminho, iriam desgarrando-se.
Ao passar, uma que caminhava com outras três me olhou com esse olhar
que quer dizer: este homem eu amaria, mas sei que é impossível.
Não. Não era impossível.
Segui-as à distância. Notaram minha manobra e se puseram inquietas.
Duas ficaram em uma casa de gente bem de vida. As outras duas
continuaram em direção às rancharias. Uma delas era a desejada.
No limite da aglomeração circulava a ronda. Se me escondia, ao não ser
isso de solução simples, dava às mulheres pretexto para denunciar-me.
Os soldados não incomodaram as mulheres. De suas roupas e cestos
transcendia que regressavam do mercado.
Quando se aproximavam de mim, encurtaram o passo. O oficial me
reconheceu e não houve necessidade de esclarecimentos; ao contrário, não
me retardou em absoluto e me fez algumas adulações desnecessárias, que em
situação diferente teriam me agradado.
Uma mulher se introduziu em um rancho.
Para a outra faltava caminho: os últimos ranchos dispersos, as ruínas do
hospital e depois, estendidas, uma e outra coga, chácara, com suas moradias
definidas por minguados resplendores de lar.
A noite já estava densa demais, o céu, pesado, com essa gravidez que
precede a diafanidade, quando a lua está por subir. Não podia distinguir a
qual das mulheres seguia. Não me importava.
A noite estava compacta, dura, e comunicava-me sua energia. Adiante ia
uma forma de mulher e era já como tê-la, com uma certeza que nada podia
alterar. Meu corpo adivinhava o seu.
Já!, disse-me, e, ao ir a passos largos, para prendê-la, subiu pela noite o
uivo agourento de um cachorro.
Condenei-o como a um filho de Satanás e, sem afrouxar o passo, ia
murmurando os insultos que afugentam as más influências.
Nesse ponto chegou a claridade lunar e minha alegria de sentir-me mais
seguro, vendo onde pisava, extinguiu-se em um instante. Uma matilha
silenciosa havia farejado presa e vinha para cima de nós. Aflorava das
vizinhanças das ruínas.
A mulher, a vinte passos, estancou.
Gritei-lhe: “Coragem! Aqui vou eu”, e fui, espada em mãos.
Mas os cachorros passaram ao seu lado sem roçá-la — haviam-na
reconhecido — e, excitados, lançaram o assalto contra mim, o estranho. O
primeiro veio com tal impulso que não pude vará-lo, e subiu pelo meu peito
até querer morder a minha cara. Afastei-o com força mediante um golpe do
braço livre e ele caiu de costas. Dei-lhe um pontapé certeiro e rápido que o
anulou.
Enquanto isso, cercavam-me outros dois, e um deles dava mordidas nas
minhas botas. Feri-os gravemente, a cutiladas. Ficaram agonizantes, com
uivos de dor e de raiva. Os outros se mantiveram à distância, latindo para
mim, até que os dispersei com investidas e gritos.
A mulher refugiara-se entre as primeiras ruínas. Acudi, limpando a
espada, fanfarrão e dominante.
Era ela e era jovem.
Pôs o meu mesmo ardor. Tive, por um momento, dezoito anos, a
juventude perfeita.

Sentei-me em uns restos de adobe. Usei o archote e a primeira luz me


mostrou seus pés descalços e curtidos. Levei a chama ao rosto. Ela sorria,
esperando. Considerei os traços, seu nariz, sua pele. Era, sem dúvida,
nascida de mãe negra, e eu, tanto tempo privado das mulatas que por
dinheiro... Mas dessa vez tivera a aceitação voluntária.
Confortava-me com este pensamento, entre minhas reflexões, enquanto
descansávamos.
Ela me disse:
— Vossa Mercê, se quiser continuar comigo...
Eu estava agradecido e satisfeito e me sentia complacente. Por isso a
escutei.
Impunha-me certos requisitos! Devia levá-la como criada à minha casa
e também sua mãe e seus irmãozinhos.
Empreguei outra parcela de paciência, a suficiente para perguntar-lhe:
— E se eu não o fizer?
— Não me verá mais.
Foi totalmente categórica. Advertiu que não fora o meu capricho de
homem branco e se alçava com seu estabelecimento de condições, tão dona
de dar como eu. Estávamos em um mesmo plano; nesse momento, ela o sentia
assim e eu também. Mas eu era um homem branco e funcionário do rei: podia
ofender-me. Não obstante, estava humilhado.
Pus-me de pé, sacudi minhas roupas e, em silêncio, empreendi o
caminho para a cidade.
Aquele episódio excedia o direito de enamorar-me. No amor do
enamoramento há um requisito de encanto ideal.
Eu podia pensar dessa maneira porque andava momentaneamente
aquietado, com relação a alguma coisa. Embora só de pensá-lo me vinha a
angústia. Uma seca angústia.
A umas cem varas, quis ver como nos distanciávamos, cada qual por seu
rumo.
Virei-me e me recebeu em cheio a noite, que se tornara aprazível e
tolerante. Estava, talvez, cativada.
Pareceu-me que sairia da noite ao regressar à cidade.
Mas me custou desprender-me dessa visão do vasto mundo para fixar
atenção na pegada e seu trajeto em direção ao horizonte. Ninguém transitava
por ela. A jovem ainda devia estar deitada no chão, talvez muito triste.

De dia, possivelmente não o teria feito.


Pela manhã, evitava dar com meu próprio olhar: penteei-me diante do
espelho, sim, ainda que olhando para cima, e depois cuidei da passagem
pela barba do mesmo modo, sem ver-me os olhos.
Não obstante, assim que me compus, joguei o pente e fui ao espelho.
Olhei-me nos olhos com desafio. Depois, mais calmo. Resistia a meu
próprio olhar consciente de que, diante dos olhos de Marta, teria sentido
necessidade de cortar-me algo.

17

Veio barco.
Não estava eu, naquela época, à espera dos canhonaços do porto. Por
isso, ao escutar o primeiro, com o sobressalto, não atinei a discernir o que
esperava do navio. Por um instante, lembrei que aguardava uma jovem em
travessia desde o Prata ao meu encontro. Marta?... Não; não. Outra era, outra
tinha de ser; mas tampouco aquela... integrada à região dos sonhos. Missiva,
de minha mãe, de minha esposa, de meu cunhado devia esperar eu; um
decreto com o selo do rei merecia receber desse barco.
O segundo canhonaço soou imperativo para minhas urgências; então me
governaram confusos pressentimentos.
Vou por carta, preveni ao secretário. De tal modo deixava uma resposta
ao governador, se é que desejava saber de mim, tão descumpridor de minhas
obrigações nas semanas anteriores. Acudia, de um modo excludente, pelo
rosto da sonhada viajante.
Como não a descobri entre aqueles que assomavam pela borda, estive
eu no navio antes que os viajantes tocassem a terra. Empurrava-me a
necessidade de encontrá-la e outra vez — tão rápido — não tinha sossego,
embora estivesse tão-somente enamorado. Enamorado, mas com que
veemência. Inspecionava com tal denodo que um oficial, talvez obedecendo
a ordens do capitão, quis deter-me. Apelei à minha autoridade; mas me
respondeu que a bordo não podia reconhecê-la, a menos que lhe explicasse
por que me introduzia dessa forma nas cabines de passageiros.
O fiz, dizendo-lhe que procurava uma dama que vinha do Prata.
Demandou-me seu nome e, claro, não pude dá-lo. Sim, os sinais; mas não
havia embarcado nenhuma mulher jovem em toda a rota.

Conformei-me com a falta de notícias de meu lar, já que, ao não serem boas,
nada poderia ter feito para remediar suas dificuldades.
Trouxe o bergantim um grande rolo com os selos do rei, embora não
para o assessor letrado, mas para o governador.

Pediu minha presença em seu gabinete. Na mesa, estava desenrolado o


envio, com selos externos rasgados e, no interior, um muito grosso, de lacre
e ouro, com fitilhas. Parecia esplender entregando suas luzes ao rosto do
governador.
No entanto, não me falou do envio real, mas do meu caso, dizendo-me
que estava a par dos meus desejos, gestões e merecimentos e com o anúncio,
que antes nunca fez entrever, de que logo alguém de influência poderia
ocupar-se da promoção e do translado apetecidos.
Sem dar-me tempo de perguntar pelo benfeitor, com um ar cada vez mais
acentuadamente bondoso e sempre como que ocultando alguma coisa,
antecipou-me que, por ora, essa pessoa disposta a ajudar-me daria solução a
um dos meus problemas imediatos.
Ele — era ele, naturalmente — já havia arranjado para que não
houvesse julgamento contra Ventura Prieto, em troca de que este saísse da
prisão para passar para o barco e se exilar. De tal modo, evitava-me todas
as desagradáveis alternativas do processo judicial.
O governador se mostrava radiante e sem dúvida acreditava que eu iria
dobrar-me em manifestações de gratidão. Não atinei a fazê-las porque fiquei
meditabundo, com esquecimento de que me encontrava em audiência:
Ventura Prieto pagava uma ofuscação minha com a desonra, um talho na face,
a prisão, perda do posto e saída do país. Quanto podia argumentar eu para
inculpá-lo era aversão para com ele e o fato de que tenha me perguntado se
dei com a curandeira acompanhada de um menino loiro, o que de nenhuma
maneira, visto à distância, significava que ele mandasse esse rapazote para
assaltar a minha casa. É bem verdade que esta não era sua pátria, mas aqui
estavam seus interesses e por alguma coisa deveria ter vindo. Era demais
perseguir assim a um homem; no entanto, eu devia reconhecer que, por minha
irritação ou precipitação, com fundamento ou não, ele tinha se transformado
em meu inimigo, de maneira que a cidade era pequena demais para nós dois.
O governador procedeu por sua conta, sem consultar-me, e como na
realidade me havia favorecido, eu não podia permanecer mudo depois de
sabê-lo. Mas não consegui abrir a boca mais do que para perguntar-lhe isto:
— Ele escolheu novo lugar de residência?
Desconcertado, o governador, por minha sequidão e o que ele
consideraria ingratidão, respondeu-me apenas que sim, que Santiago do
Chile.
Conseqüentemente, Santiago do Chile se apagava como possibilidade
de um posto vizinho à terra de minha esposa e de minha mãe.
Esqueci os selos do rei que, da mesa, fascinaram-me na primeira metade
da entrevista. Perguntei-lhe se lhe era necessário para mais alguma coisa e,
diante de sua resposta negativa, pedi permissão para retirar-me.

Tive diante dos olhos, e não soube ver, uma providência real que dava maior
categoria e passava à corte o meu governador. Ele queria fazer-me saber,
depois de ter-me comovido com sua insinuação de favores, e eu devia
aparentar regozijo e prodigalizar-lhe adulações.
Perdi o advogado de maior predicamento que pude ter em Madri.
Suportei a irritação; mas de noite, no leito, prescindindo já das
recriminações com que podia atormentar-me, caí vítima de um desespero de
outro tipo.
Eu era um animal enfurecido, raivoso. Ignoro que animal, só sei que de
quatro patas e bem forçudo. Necessitava escapar, e todo obstáculo era uma
rocha. Investia contra ela e, em cada investida, mais uma ferida se partia no
meio da minha cara. Continuei investindo, cada vez mais fraco, mais fraco,
mais...
Era depois um homem, embora sempre com a necessidade de superar
certa limitação. Já não tinha nada pela frente, mas uma extensão lisa onde
estavam abolidas as necessidades. Só devia avançar e avançar. Porém tinha
medo do final porque, presumivelmente, não havia final.

18

Convinha-me, pois, sair de mim mesmo.


Carreguei meu cabedal com ânimo de aumentá-lo ou ficar a zero nas
corridas de cavalo.
Fui muito cedo, à meia-tarde. O sol estava inclemente e não se
animavam ao espraiado mais do que os ginetes de cada prova e os juízes.
Mesmo estes mudavam a cada duas ou três corridas.
Nós, os apostadores, permanecíamos deitados sob as árvores exteriores
do bosque. Como era função somente para homens, a aguardente não tinha
limites de prudência em sua entrada pela garganta e muitos se despojavam de
suas roupas até não ficar com nada mais do que a parte inferior coberta.
Perdi duas vezes, ganhei uma; em outra corrida, abandonou-me o
recuperado.
Quis dar-me uma trégua prudente e, além disso, pensei que malograva
minhas apostas porque não via bem os cavalos, de tão longe, e era
conveniente que esperasse o pôr-do-sol. Ao término da tarde, podia
flanquear-se a pista e parecia mais simples considerar as possibilidades.
Sem interesse pecuniário nas partidas seguintes, distraí-me em
conversas, caminhei mudando de grupos e, por último, fui esticar-me sob
uma palmeira, um pouco isolado dos demais.
Próximo tinha unicamente um ébrio, que dormia no chão, respirando
para cima. Eu o conhecia. Era um homem de fortuna.
Observei a largada e o começo de outra corrida. Depois adormeci e as
minhas pálpebras se me fecharam.
Dormi nada mais do que um momento, calculo, porque, ao abrir os
olhos, repentinamente, os cavalos voltavam trotando do ponto de chegada.
Mas esse momento de mormaço me resultava tão evasivo que precisei
confrontar a realidade presente com a que vivera antes de dormir.
Por isso procurei fixar a atenção em tudo o que me rodeava: adiante, as
corridas de treino; eu mesmo sentado fazendo um tronco de espaldar; ali os
demais, aqui o ébrio... Alguma coisa ainda indefinida vivia entre as ervas
próximas a ele, alguma coisa que avançava. Pressenti que era uma aranha de
grande porte e não pensei no homem que dormia, e sim em mim. Julguei que
a distância parecia considerável para qualquer alimária, por mais veloz que
fosse, antes que me alcançasse estando eu prevenido.
Depois a vi melhor, distingui suas patas, longas e muito finas, que mal
dobravam as frágeis folhinhas da grama. Não sabia se as aranhas de patas
longas e finas são venenosas. Disse-me que não.
A aranha se adiantava em direção ao ébrio. Quando estão a um quarto
de vara podem dar um pulo e picar sem que um homem acordado atine a
defender-se se o surpreenderam. Não sentia desejos de mover-me. Podia
esmagá-la com a bota. Posterguei até o último momento.
Enquanto ela ia se aproximando da cabeça, quis ver se se produzia
alguma coisa fora do comum: que o homem acordasse subitamente,
obedecendo a não sei que aviso, e a matasse. Não acordou. Em um instante,
o bicho caminhava por sua cabeleira. Eu não o vi subir; o vi em cima e me
pareceu que já nada devia fazer.
Desceu pela testa, circundou o nariz e a boca, esticando as patas pela
face direita; passou ao pescoço. Disse-me: aí pica. Não picou. Jogou uma
pata para cima e se encarapitou no queixo. Como a respiração do jacente
agitava-lhe os pêlos da barba e esta subia e descia, supus que a aranha ia
considerar-se atacada e picaria. Ali estava ela, em sobe-e-desce sobre a
ponta dos pêlos.
Essa situação não podia perdurar. Terminou como eu menos imaginava:
o ébrio lançou um tapa certeiro e a aranha fez pelo ar mais de uma vara.
Pensei que o homem havia acordado. Temi uma increpação, por não tê-
lo defendido. Mas seu braço retornara à posição anterior e todo o corpo
estava fofo e em notório gozo do descanso. A respiração mantinha sua força.
Levantei-me para procurar o cadáver da aranha. Caíra em um trecho de
lisa areia vermelha. Não estava morta e, sim, impossibilitada de deslocar-
se, porque a aventura lhe custou quatro ou cinco patas. Contemplei-a por um
momento. Depois a destrocei com o salto.
Fiz uma revisão do episódio: em nenhum momento senti emoção alguma,
exceto quando supus que o homem havia acordado e lançaria contra mim
uma justificada acusação.

Todo o meu dinheiro passou a outros bolsos.


Não podia permanecer sem recursos, ignorando como ignorava quando
chegaria minha paga.
Vendi o cavalo a um dos freqüentadores das corridas. Neste país os
cavalos abundam e nunca tive em muito boa conta o meu. Conseqüentemente,
meu preço foi modesto. Pagaram-me mais pela sela e demais arreios do que
pelo animal.
Como não tinha em que regressar e me envergonhava fazê-lo
caminhando, aguardei a saída de alguma carruagem de pessoa conhecida.
Entretanto, fizeram correr meu cavalo. Eu não sabia que o colocariam na
pista e menos ainda tão rápido. Ganhou.
Vi mais duas corridas, já das boas, as do entardecer. Estava tentado a
apostar e unicamente me refreava pensando que não me restaria com que
pagar a hospedaria.
Então apresentaram de novo meu cavalo. Provara ser rápido e seguro.
Mas eu não lhe tinha confiança suficiente.
Ganhou outra vez.
Fui sentar-me em uma carroça, de costas para a pista.

Partiu o barco.
A Ventura Prieto não foi permitido nem recolher pessoalmente seus
móveis e demais pertences. Tudo foi trasladado a bordo sem sua
intervenção. Ele passou da prisão ao navio sob custódia, até o momento de
soltar as amarras.
No dia seguinte, um guarda da prisão solicitou que eu lhe outorgasse
audiência.
Mordeu-me a intriga, porque não podia dar em minha imaginação com
um motivo válido. Brevemente, encolhi-me com a suspeita de que Ventura
Prieto tivesse feito embarcar a um guarda com suas roupas e ele, vestido de
guarda, preparava-se então para vingar-se.
Para demonstrar coragem, autorizei a entrada do visitante.
Era um carcereiro mirrado e sujo. Desculpou-se com parcimônia por
seu atrevimento e me estendeu um bilhetinho.
Era de Ventura Prieto e rezava: “Concordo em partir porque não possuo
indignação suficiente”.

A mim não me faltava, tinha indignação de sobra por este confinamento que
sofria, sem vantagens nem escapatória e mascarado de brilho pela hierarquia
de minhas funções.
Mas pressenti que Ventura Prieto aludia a outro tipo de indignação, a
indignação por um motivo que não é exatamente aquele que afeta a nós
mesmos.
Pensava em Ventura Prieto representando-o, para mim, como o
propagandista de alguma coisa, se bem que ignorasse de quê. Eu estava
desconforme com meu comportamento, embora tributasse minhas desordens
a potências interiores irredutíveis e a um jogo de fatores externos
inescrutáveis, invisivelmente montados para provocar minha conturbação.
Este cerco indutor, pensava eu, em determinado momento me jogava em atos
não desejados, ocasionalmente sedutores e capazes de transformar-se, a
posteriori, em alguma coisa repelente e abominável. Depois deste
raciocínio, assaltava-me a dúvida de que não fosse alguma coisa meramente
de ordem moral e suspeitava de que se eu tivesse sabido pronunciar-me,
escolher, antes, não no próprio momento do ato tentador, mas na etapa de
suas origens, poderia ter me salvado. Ao chegar a este ponto, também
anulava a reflexão formulada, convencido de que igualmente no último
momento se pode eleger.

Quis aventar causas, enclausurando-me.


Recuperei meu gosto pelas leis. Davam-me fruição todas aquelas que
correspondiam às matérias de minha preferência na Universidade e as novas
— que por meses havia acumulado sem ler — nas quais a lógica se impunha
parágrafo a parágrafo, de modo que, conhecendo os primeiros dois ou três,
podia deduzir o texto dos seguintes.
Tinha de preparar-me para sobressair em Buenos-Ayres. O Peru
continuava na linha de minhas aspirações; o mais cobiçado, como
culminação, era a Espanha.
Marta estava presente em todos esses pressupostos. Marta estava
comigo, com a antiga bonança de nossa vida em comum, nesses dias de
estudo e concentração.
Às vezes me desligava das leis e, sem afastar-me da banqueta, entrava em
complexas associações.
Em certa ocasião, a espada, pendurada em um prego, recordou-me o
ataque dos cachorros. Pensei que era o único sangue que havia sujado essa
lâmina, presente de meu cunhado quando embarquei no rio da Prata. Chamei-
me de mata-cachorros.
Mas aqueles animais estripados estavam, para sempre, ligados ao
encontro nas ruínas do hospital... Apeteci-o... Apesar do meu
encaminhamento, desejei outra noite e outro sobressalto semelhantes. Aquele
me apaziguou; mas um copo d’água não sacia a sede da vida toda.
Luciana se introduziu então em minha clausura. Daí em diante, com farta
freqüência, sua lembrança punha em branco as folhas escritas e quando, na
minha cama, visitava-me a memória de seus suculentos beijos, bruscamente
pegava os livros, para recuperar-me.
Não conseguia.

Para livrar-me dessa tentação, nada fazia à procura de ver Luciana.


Permanecia passivo, com a ansiedade de seu chamado.
Talvez a ordem que transcendia do meu novo modo de viver, minha
aparente correção recuperada, tenham induzido dom Domingo Gallegos
Moyana a conceder-me participação em sua mesa nos dias festivos. Era um
costume, longo lapso de tempo abandonado, dos primeiros tempos de
convivência em sua casa.
Eu desfrutava dessas comidas de fortes condimentos e desses inúmeros
doces que solicitavam todos os afazeres das senhoritas, além de suas
costuras. O maior prazer vinha de saber-me em uma mesa de família.
Nunca mais, desde o episódio do choro, estive perto de Rita. A
proximidade de nossas cadeiras, nas refeições, obrigou a um medido
diálogo, no qual eu não advertia sinais de aversão, mas uma dor geral que os
demais, acredito, não notavam.
Porém a melhor descoberta que me permitiu aquela proximidade foi a
aparição, na pele de sua testa, das espinhazinhas da virtude.
Padeciam meus sentimentos de sabê-la doente, ignorando se sofria pelo
abandono do oficial Bermúdez ou pela retirada voluntária de sua influência,
devido a alguma atitude de arrependimento e integridade que ela tivesse
adotado.
Depois de um almoço dominical, convidei-a para caminhar pelo jardim.
Não me rechaçou.
Era maior do que a minha sua necessidade de revolver na chaga.
Sem olhar-me, como contando para si mesma, fez-me uma confissão na
qual sua vergonha cedia diante da coragem de mostrá-la.
Bermúdez era um indivíduo exigente e sem respeito, do qual ela não
podia — nem queria — desligar-se, não obstante ter descoberto seu egoísmo
e de estar em dúvida sobre a real natureza de seus sentimentos.
Rita procurava dar-me a sensação de que se torturava por uma dúvida
teórica; mas não me conformou, nem ela, talvez, conseguia guardar para si só
todas suas inquietudes sem saída. Forcei-a a completar aquela confissão que
pretendia haver terminado.
O oficial Bermúdez estava desamorado. Deixava transcorrer semanas
sem a menor intenção de ter com ela, nem mesmo na rua ou à saída da missa;
muito menos, é claro, mediante as furtivas escapadas noturnas.
Rita me disse isso crispada a ponto de explodir, e depois com um choro
sufocado, ferida e desesperada, explicou-se com toda a franqueza:
— Bermúdez não é homem de viver sem o amor de uma mulher.
Rita adivinhava que havia sido substituída. Mostrei indignação e
condenei o infiel. Enquanto procurava acalmar Rita, ofereci-lhe, com
sinceridade, ajudá-la a endireitar sua vida, afrontando Bermúdez, se fosse
necessário, para que voltasse para ela e já em franco pedido de casamento.
Do contrário, afirmei, eu o esbofetearia em público, obrigando-o ao duelo.
Rita se espantou com os meus planos, lançados todos sem respiro e com
veemência. Implorou-me para que não interviesse, que não causasse mal ao
seu homem, que não tornasse pública sua situação tão humilhante. Chorava e
me rogava tanto que me comoveu até umedecer meus olhos de vê-la tão
rendida a esse sujeito e tão zelosa de que ele pudesse continuar gozando em
liberdade das aventuras que lhe dessem vontade.
Rita se mostrava resignada com seu infortúnio e eu não podia fazer nada
a não ser acatar sua vontade. Mas estava pujante de brios, e me doeu não
responder a eles em um ato imediato que novamente desse fé de meu caráter
desafiador e da força de meu braço.
Não obstante, em meio a essa festa de hombridade que eu me dava,
quando prometi a Rita não proceder, filtrou-se em meu espírito essa
tranqüilidade que produz o ser eximido de uma obrigação perigosa.

19

Algo mais poderoso e de interesse mais direto me subtraiu muito


rapidamente de minha preocupação por Rita, de modo que dali em diante
com ela mantive um relacionamento, se mais freqüente, não tão íntimo como
o daquela sesta de domingo.
Aparentei não querer perturbá-la com indagações constantes sobre o
desenvolvimento de seu conflito e deixei que o suportasse sem a
possibilidade daquele mínimo respiro que lhe dava sua comunicação
comigo.
Luciana se apresentou em meu gabinete.
Nada me havia advertido. Todo o aviso que tive foi o pedido de
audiência quando ela já estava na ante-sala.
Ali deixou sua criada e entrou sozinha.
Esperei-a atrás da porta e a cerquei com meus braços, beijando-a com
paixão, perturbado, sem controle, pelo presente de sua presença e sua ação
temerária de ir visitar-me.
Correspondeu com carinho aos meus abraços mas, mais precavida do
que eu, fez com que tudo ganhasse a aparência de uma audiência normal.
Sentado em minha mesa, embora engulosinado, contemplando-a, escutei
a exposição de seu ardil.
A mestiça que em minha presença a ajudou a sustentar o tecido do
bordado era livre. Com o ânimo de que também o fossem seus filhos,
procurava casar-se com ela um tropeiro da fazenda dos Piñares. Sua ânsia
de liberdade não conhecia obstáculos. Em sua primeira juventude, tinha
outro senhor, um tabaqueiro. Querendo esquivar-se dele, jogou-se ao rio
para chegar ao Chaco. Queria reunir-se com os guaicurus, mesmo sabendo
que eram selvagens. Mas o pessoal do seu senhor foi à sua caça e, como
castigo, a fim de que não pudesse fugir nunca mais, abriu a planta dos seus
pés e untou os talhos com o sumo de uma planta venenosa que lhe deixou
uma corrosão permanente, tormento certo em uma caminhada.
Luciana e o marido prestavam seu consentimento para o casamento do
tropeiro, que nada de infreqüente tinha, embora a ela tenha ocorrido colocar
a seguinte dúvida: se a mestiça livre era muda, a validade do seu
consentimento seria reconhecida? Piñares não conseguiu resolver a questão,
e então ela disse que era preciso formular a consulta ao assessor letrado do
governo. O marido se cansou e disse que, se o casamento trouxesse tantas
complicações, ele se oporia. Luciana insistiu até conseguir que mantivesse a
tolerância inicial e a autorizasse a visitar-me para saber se havia
impedimento ou não de parte da inválida.
Eu a olhava embevecido por esse desdobramento de recursos, com certo
assombro de que se comprouvesse em brincar de tal modo com o respeito
devido ao seu esposo até nos aspectos formais. Por quê? Como aceitava ele
que Luciana tentasse incliná-lo a entender-se comigo? Como permitiria que
sua mulher me visitasse sozinha, depois de ter me julgado um “asqueroso
abelhudo” porque a vi no banho de rio?
Abstive-me, no entanto, de perguntar-lhe por que motivo participava a
seu esposo atos que obrigatoriamente levariam meu nome ao seu
pensamento. Esta maneira de organizar as coisas me resultava enfadonha;
punha Luciana em descrédito e a mim, em temor de riscos.
Sem necessidade de consultar livros, expus com desenvoltura sobre as
incapacidades e procurei o remédio legal.
Luciana seguia minha palavra com satisfação que me devolvia como um
espelho a imagem de um Zama jurista eminente. Ao finalizar, apertou os
olhos e me disse:
— Mereces um beijo.
Mas não se moveu do assento nem me chamou junto a ela.
Teria o beijo merecido; não ali, mas em sua casa, naquela noite. Esta foi
a promessa.
Honorio Piñares era de dormir ruidoso e Luciana, sensível ao ruído, que
lhe causava uma dor que tomava nada mais do que a parte direita da cabeça,
embora com extrema intensidade. O marido lhe permitia ocupar outro
dormitório; embora não nos primeiros dias de seu retorno da fazenda, por
motivos compreensíveis, aos quais Luciana, naturalmente, não fez referência.
Essa noite estaria no segundo dormitório, distante do outro toda a
extensão da casa, por encontrar-se na galeria oposta, e, mais, porque estava
no andar de cima. Passada a meia-noite, eu deveria esgueirar-me por uma
ruela vizinha e ela me daria sinal do momento oportuno com a luz de uma
vela em sua janela. Então me franquearia a porta de entrada uma escrava na
qual Luciana depositava fé.
Excessiva maquinação para um beijo, disse-me, e entrevi recompensas
maiores.

Naquela noite, a Lua se regozijava em mostrar todas as suas luzes, alheia à


minha conveniência.
Atentei na vizinhança mais imediata para uma casa abandonada, sem
portas nem teto, única dissimulação viável no setor norte da casa de Luciana,
por estar sem benefício de construção todo esse lugar. Ao sul, sim,
alinhando-se com o lar dos Piñares, havia duas ou três moradias mais e
também pelos fundos destas últimas. Mas a que me interessava ficava como
proeminente e a descoberto.
Permaneci à espera do sinal, petrificado de tanta firmeza para olhar sem
descuidos. No entanto, nada desatendia do ambiente ao redor e estava atento
a qualquer ruído ou sombra delatora de alguma armadilha.
Percebi a ronda à distância. Alinhou-se tão justamente em direção onde
eu me escondia que, entre os dentes, soltei um insulto.
Tive de recuar para a casa semidestruída e, por enfiar-me no canto mais
escuro; pegajosas teias de aranha se enredaram na minha barba. Usei as
mãos, cuspi: aderiam-se aos meus lábios.
Passou o pelotão de soldados.
Como se houvesse se soltado dele, estava ali um indivíduo de capa com
o pescoço rígido por dirigir o olhar para cima, para a janela de Luciana.
Reparou em mim, pelo rumor que, pisando o cascalho, causei ao sair.
Ficamos tesos, cada um cravado no lugar onde nos achávamos ao nos
descobrir reciprocamente. Isto foi só um instante, pois, em seguida, como se
combinado, lançamos mão à empunhadura, que ali ficou, prevenida, enquanto
nos considerávamos.
Os chapéus de abas largas colocavam em sombra o rosto, por causa da
Lua tão justamente em cima de nós, e impediam a identificação, por mais que
nos esforçássemos. De minha parte, pus todo o empenho possível. Mas sem
nos aproximarmos mais, os olhos se gastavam em um esforço vão.
Não obstante, resultava-me muito evidente que se tratava de um
cavalheiro, pela espada e pelo aparato, que incluía pena no chapéu. Não era,
certamente, um bandido, nem eu podia dar-lhe a impressão de tal.
Devia ser, como eu, um aficionado por Luciana, talvez seu amante.
Não me importava quem fosse nem queria nada com ele: nem
esclarecimento verbal, nem luta, nem cumprimento.
Resolvi seguir rua abaixo, dando as costas ao rival noturno e à
ofertadora de beijos. Vacilei um instante pensando que, talvez, ele tomaria
meu movimento, depois de tanta imobilidade, como uma ameaça de ataque e,
neste caso, ver-me-ia precisado de oferecer-lhe contenda.
Mas não me resultava possível permanecer fincando pé, já com
dificuldades de equilíbrio, sobre os irregulares restos de adobe.
Mandei um último olhar para a janelinha.
Ele, que estivera atento aos meus gestos, seguiu o rumo que indicava
minha cabeça e pareceu compreender. Então virou o rosto, levantou dois
dedos à altura do chapéu, como se me fizesse um cumprimento de
camaradas, virou-se e o vi afastar-se em direção às ruas do porto.
Renunciava à Luciana, em um gesto que era de desprezo para com ela,
não de recuar diante de mim.
Eu também podia fazê-lo. Necessitei dizer isso ao desconhecido. Tive
vontade de gritar, chamando-o, para que fôssemos beber juntos. Não o fiz.
Ao afastar-me, procurei fazer soar os saltos contra o chão, para que
Luciana soubesse que lhe dava as costas. Mas a maldita areia indiferente
apagava qualquer som.
Fiquei despeitado e raivoso.
Embora um evidente gentil-homem, meu rival, eu fora igualado a ele
como objeto de zombaria. Isto se Luciana quis causar-nos desengano,
provocando um encontro que nos pusesse em ridículo, um em frente ao outro.
Preferi repudiá-la e dar-lhe os mais denigrintes insultos, supondo que o
convocado para essa noite era eu e que o outro compareceu unicamente por
hábito que, antes, teria lhe rendido proveito.

20

Dois dias depois, recebi na minha sala um bilhetinho. Estava escrito, com
abundantes erros de construção e ortografia, o que em discreto castelhano
pode-se colocar assim: “Honorio se foi, por um mês, à estância. Espero-te
hoje, às 6 p.m. Se estás ofendido e resistes em vir, quero que penses
entretanto sobre isto: achas que eu abriria a minha alcova a um homem que
não seja meu esposo?”.

Mulher de assombro! Queria dizer, então, com seu papelzinho, que naquela
noite não se propôs a fazer-me sinal algum nem ao menos permitir-me o
acesso à sua casa? Isso significava que mentiu para provar o acatamento que
eu tivesse de sua virtude?
Mas como podia pretender correr-me com sua honestidade se me
permitia beijá-la e ela própria me beijava com fúria? Não é honesto beijar-
se com o corpo todo e o é beijar-se com os lábios? Talvez, disse-me, seja
assim. E, reconhecendo-o, encontrei tranqüilidade e desculpa diante da
remota possibilidade de que alguma vez tivesse de responder às acusações
de minha esposa.

Recebeu-me compradora, sem palavras, com um beijo que não lhe pedi e
que ela tinha servido na boca como primeira oferenda.
Em uma mesinha estavam preparados licores e confeitos. Nas brasas,
apitava a chaleira, e a cuia e a erva-mate se achavam dispostas. Tudo isso
constituía advertência de que não ia interferir nenhuma criada.
Não censurei suas artimanhas. Não lhe perguntei a razão de que tivesse
estado ali esse desconhecido, olhando para a sua janela. Não discuti sua
virtude nem me escusei de tê-la suposto inexistente ao aceitar sua mentida
oferta de incursão noturna.
Não pude falar, não me deixou. Enchia-me a boca de doces, de confeitos
e de beijos. Não serviu o mate, certamente porque é demorado e propício ao
diálogo.
Estreitada entre os meus braços, por fim, como repondo-se do
esgotamento de tanta paixão entregue através dos lábios, de novo brindou-os
a mim, chamando-me de “Esposo, meu esposo...”.
Esposo, chamava-me. Meu esposo, havia dito, e ela só abriria sua
alcova...
Mas, com carinhos de adormecedora ternura, foi se desprendendo de
mim. Aproximou a boca de minha orelha e, quando acreditei que me faria
objeto de outro raro carinho, perguntou-me:
— Virás amanhã?
Suas palavras marcaram como um regresso. Não eram do meu gosto,
nesse momento, as vozes, e eu próprio falar me parecia uma pequena
empresa que requeria alguma coisa assim como um desprendimento e,
também, certo exercício momentaneamente esquecido. No entanto, a
interrogação se mantinha em seus olhos: “Virás amanhã?”.
Respondi que sim.
Devia ter dito que não, e ficar.

Na tarde seguinte, ao transpor o portal, dei com um espetáculo inesperado:


todos os móveis da sala e da sala de jantar estavam empilhados na galeria.
Os dois quartos encontravam-se em processo de pintura, nada mais do que
esses dois, em todo o setor da casa visível para mim. A sala e a sala de
jantar eram os dois únicos recintos a que um visitante, que não fosse membro
da família, podia ter acesso.
Luciana me aguardava no jardim. Conversamos e bebemos mate
sentados em um banco de madeira. Explicou-me o significado das figuras
entalhadas no espaldar. Disse que esse mate me agradava. Sem suspeitar o
alcance de minha declaração, proporcionei-lhe uma oportunidade para que
falasse das plantações de mate de seu marido e da maneira de beneficiar a
erva que ele aplicava, e como o ponto se prestava, associou-o às
características gerais e os mais mínimos detalhes da estância, descrevendo-
os circunstanciadamente.
Nesse dia rocei sua pele só com um beijo na mão, ao despedir-me.
A pintura dos dois quartos durava infinitamente mais do que o normal,
dias e dias. Como me queixei desta singularidade, Luciana, que continuava
atendendo-me no jardim, explicou-me que, depois de mandar caiá-los,
inteirou-se de que não entram moscas onde há paredes pintadas,
interiormente, de azul. Portanto, aguardava que a pintura branca secasse
bem, para fazer dar uma demão de azul.
Com uma resolução que lhe mostrei não conseguiria contestar, disse-lhe,
pausadamente, para que penetrasse bem o sentido de minha advertência:
— Esta noite voltarei a esta casa.
Ela me escrutou os olhos, tranqüila, e perguntou:
— Quem abrirá a porta?
— Sou capaz de armar alvoroço. Vais ver.
Quis distrair-me, anunciando-me que dois dias mais tarde teríamos de
novo nossas tertúlias íntimas no salão.
Irritado, pus-me de pé, repetindo o anúncio, em um sussurro que fiz
penetrante como uma faca:
— Virei esta noite.
Cominou-me:
— Não o faças.
Pôs-se severa, repentinamente, e não sei se também desgostosa.

À meia-noite, hora que de algum modo podia estar em seus cálculos, já que
ela a mencionou uma vez, passei pela ruela.
Sua janela, como todas as janelas altas, era, à distância, uma só placa de
madeira, sem a menor abertura que transcendesse a luz de um sinal e um
estímulo.
Tateei a porta da rua. Era ferro, de tão bem assegurada.
Instalei-me ao pé da casa em ruínas e não podia sequer permanecer em
espera tranqüila, porque os cachorros ladravam confusamente, como dando
alarmes dirigidos contra mim.
Não me atormentava um resultado previsto desde a tarde. Só procedia
por teimosia e por mostrar-lhe que estava resolvido a uma atitude enérgica e
decisiva. Já que lhe havia antecipado que armaria alvoroço, quis ser fiel à
minha palavra. Procurei uma pedra de tamanho considerável e, fazendo com
paciência todos os ensaios idealizados, levando em conta o peso do projétil,
o impulso do meu braço e a distância a percorrer, lancei-a com absoluta
precisão. Bateu na janela, sem quebrar nada, embora fazendo um ressonante
choque, e rebotou em direção à terra.
Mas ninguém, nem na casa nem nas vizinhanças, pareceu se importar.
Fui embora.

Deixei um dia de intervalo, com a pretensão de tornar patente a Luciana o


meu desgosto, e suscitar seu chamado.
Como as horas da manhã se entregaram ao passado sem melhorar as
perspectivas do futuro, ao meio-dia perguntei se, por descuido, na casa de
governo, haviam omitido passar-me algum recado. Tampouco na casa do
meu hospedeiro apareceu papel ou pessoa alentadora e, claro, cedi, porque
não há problema para o homem em fazê-lo se é diante de uma mulher.
Fiz retumbar a porta de Luciana, com ares de “aqui estou eu”, na hora
costumeira. Com formalidade igualmente de hábito aceito, o cunumí me
pediu que aguardasse na rua para que avisasse à sua senhora.
Depois veio e me anunciou que ela não podia receber-me.

Ocorreu-me que, ao reconhecer-me na rua, qualquer pessoa poderia ver, no


meu nariz, portas.
Acudi à taberna.
Estava espessa de fregueses e de fumaça, por ser hora de aguardente e
de vinho puros.
Tomei assento junto à mesa mais rala, onde três anciãos bebiam em
silêncio e amaciavam, com as gengivas quase desdentadas, pequenas fatias
de matambre. Um era remelento. Outro, ao meu lado, transpirava como se se
encontrasse sob o sol. Da cabeleira, resvalando pelas têmporas, ou da testa,
percorrendo os sulcos horizontais até cair pela costeleta, estendiam-lhe
intermitentes jorros de suor, que logo desciam pela escassa barbicha até o
pescoço, onde se perdiam, rumo ao interior da roupa, em profundas
depressões formadas pela pele enrugada. Quando não era jorro, mas uma
gota, o que deslizava, talvez por sua forma convexa, atuava como uma lente,
e em seu trânsito me fazia ver, atrozmente aumentados, ora um pêlo, ora um
pontinho preto, ora o vermelho de uma irritação da pele. Em certa região, ao
cabo da passagem de duas ou três gotas, reconheci em detalhe a pequena
crosta preta daquele que nunca lava a cara. Com a lente líquida e corrediça
que lhe dava tamanho, parecia mover-se para fora, como para sair.
Como se o meu estômago a tivesse visto, pôs-se agitado, convulso e,
subitamente, em protesto, devolveu-me alguma coisa, que me forçou a sair
correndo para a rua, mão na boca, para não sujar a mesa.
Ponteou o riso — som — em não sei quais imprecisos setores da
bodega.
O ridículo continuava levando-me aos trancos.

Outra tarde, quando já terminava o turno de um sol desses que vão dentro do
corpo, rondei, irresoluto, fazendo diante da porta de Luciana extensos
passeios que ia encurtando na ida e na volta.
Mais vale, aduzia como pretexto, aguardar a noite, quando não possa
mandar-me ao jardim, se me receber.
Outra volta e ali estava eu, chegando, quando a porta fez dois barulhos
de folha para dentro e franqueou caminho a um homem.
Piñares. Veio-me o nome no sobressalto. Mas não: Bermúdez.
Bermúdez da cabeça aos pés.
E Bermúdez não era homem de conformar-se com o amor virtuoso.

No recinto materno, eu estava encolhido, com os joelhos à altura da boca,


incômodo pela espada e pelo chapéu que não se avinham a uma posição
estável no limitado e movediço lugar. A espera me resultava suportável
porque pouco me faltava para nascer. Quando o momento devido se
produziu, e eram tais as convulsões que eu deslizava de costas para fora, um
indivíduo de reluzente capacete de aço, surgido de não sei onde, adiantou-se
pelo túnel em direção à luz. As paredes interiores do recinto se aquietaram e
eu tive de permanecer comprimido até que se produzisse uma nova
oportunidade.
Eu, vestido de festa, todo de veludo verde e bordados de ouro, era
convidado de honra à função. A multidão esplêndida acudia à porta, onde
desaparecia sem que emitisse mais nenhum som. Ao transpor essa porta, meu
anfitrião, que me levava muito cordialmente pelo braço, extinguiu sua
presença. Entrei. Estava sozinho diante das ruínas de antigos camarotes, de
um palco com os bastidores, coxias e panos caídos sob uma lenta
acumulação de pó. Uma noite fechada de silêncio. Ao fundo, a cortina
decorativa, sob uma morta claridade lunar, representava uma batalha imóvel.
Essas pintadas figuras de cavaleiros e de animais acentuavam a minha
solidão. Não queria vê-las nem podia ir embora. Mas eram irresistíveis.
Tornei a olhá-las, e então se soltou um ginete, um ginete de capacete
reluzente, que ao galope de sua cavalgadura atravessou o teatro suscitando
uma tormenta de ruídos. Ao passar, cobriu-me de terra.
Mas nunca, na realidade, conseguia considerar Bermúdez algo
consistente. Se ganhou vulto na porta de Luciana, passou de sujeito a objeto
antes de deixar de vê-lo. A meu ver, constituía, simplesmente, um objeto de
amor de Luciana.
Na casa de governo me forçava por isolá-lo dos papéis e dos móveis,
ou melhor, do aparato burocrático, e não era possível. Quando dirigia a ele
os olhos ou o pensamento, não me servia mais do que para uma noção: o
capaz de ser amado.
E isto só para que a idéia fosse se chocar contra ele e retornasse a mim
com as formas da comparação: eu não.
Podia resignar-me, no entanto, a uma das possibilidades de desmentida:
eu obtive o amor completo e provado de minha esposa. Retinha sua fé e seu
carinho.
21

Somente Marta, mel amoroso, podia ser a viajante do Prata.


Demorei ainda dois meses em sabê-lo, meses em que andei despegado
até do desejo de receber suas notícias. Ninguém, nada me solicitava, exceto
a refeição, que pedia mais copiosa desde que não dispunha de meios para
pagá-la. Estava sempre com fome e o estalajadeiro se regozijava disso,
provocando minha gula.
Um airoso bergantim, que aparentemente não mais proclamava boas
notícias, trouxe epístola de Marta. Já não se queixava de minhas penúrias
econômicas, e me oferecia vender nossa casa e horta para mandar-me
dinheiro. “Em primeiro lugar, tua carreira, Diego”, dizia.
Úmidos os olhos de gratidão e renascida ternura, beijei o papel onde se
havia pousado a generosa mão.
Por aquele bergantim chegou cabedal suficiente para o último
pagamento do governador e o meu de dez meses.
Em meu quarto, e a portas fechadas, distribuí as moedas sobre a mesa e
abri caminhos entre elas. Cada setor isolado representava o pagamento de
uma dívida. Do que sobrou, fiz duas partes iguais: uma para Marta; a outra,
em reserva, para a minha caixa de latão.
A soma destinada ao meu lar era de quase dois mil pesos. Feita a conta,
subtraí cem pesos para comprar um cavalo regiamente empavesado de
arreios. Mas me arrependi. Os cem pesos ficaram para Marta e peguei
oitenta, para uma aquisição mais modesta, da caixa de latão.
O governador se despediu com a festa do patrono, San Blas. Na
véspera, deu um baile para as pessoas ilustres.
Eu me acreditava aguerrido para o encontro com Luciana. Estava sereno
pela compreensão e pelo sacrifício de Marta; sentia-me com deveres só para
com ela e capaz de exigir-me os maiores rigores para manter essa atitude.
Mas Luciana não participou do baile. Os propósitos de despreocupar-
me dela ficavam postergados, disse-me, até saber o motivo.
Estava prostrada pelas penetrantes dores de cabeça.

Como seu mal se apresentava de forma isolada, um dia dentre muitos, supus,
já com desejos de vê-la, que estaria na jornada de San Blas.
Não acudiu à missa.
No banquete de almoço, o assento imediato ao de Honorio Piñares ficou
vazio.
A festa popular da tarde, na praça, dar-se-ia com palanque para as
autoridades e sua orbe oficial. Desejava tanto vê-la como que me visse,
muito próximos os dois, entre o ter distinguido daquela coletividade com
infinitas ocasiões de trocar olhares, observações, lembranças.
Piñares se comportou como certamente não o teria feito se tivesse no
palanque o controle da esposa. Durante as corridas de cavalos, foi do setor
privilegiado ao popular e voltou a ele cruzando apostas com comerciantes e
militares subalternos. Eu não o descuidava para achar motivos de odiá-lo e
desprezá-lo. Não me deu muitos, na verdade.
O baile popular, que se seguiu às corridas, representava a parte mais
tediosa do programa para as pessoas do palanque, pois deviam limitar-se a
olhar. No entanto, ninguém se retirava, por protocolo e também porque ao
final do baile se acendiam os fogos de artifício.
Então, de longe, observamos que as cabeças de alguns se inclinavam
para a orelha de outros, e assim a multidão foi vista como um trigal
percorrido, pouco a pouco, pelo vento.
Um soldado abriu caminho até seu oficial, que estava no palanque, e o
oficial comunicou uma ordem em voz baixa ao chefe do regimento. O chefe
do regimento falou ao governador, e este às pessoas que estavam ao seu
redor. Dali, a notícia refluiu, espalhando-se a partir de duas fontes: o povo,
no extremo da praça, e a principal autoridade, dos assentos de honra.
Enquanto a população se concentrava na festa, deixando a cidade oca,
Rita Gallegos Moyano fora golpeada e despojada de todos os seus vestidos,
até das prendas mais coladas ao corpo.
Encontrou-a, encolhida em uma vala, uma indígena. Rita lhe rogou que
lhe arranjasse alguma coisa com que se cobrir, e a nativa, necessitada, não
dispunha mais do que do trapo que tinha no corpo. No entanto, empenhou-se
para procurar um pano ou qualquer outro gênero que resultasse
suficientemente útil.
Bateu em várias portas, mas os vizinhos estavam na praça. Deu, por fim,
onde ficava uma velha criada. Esta nada aceitou lhe arranjar sem autorização
de seus senhores, indubitavelmente por desconfiança, já que o pedido vinha
de uma indígena. Quis comprovar o caso com seus próprios olhos. Guiada
pela pouco apurada intermediária, foi até a vala, constatou que se tratava de
uma mulher branca totalmente nua e, embora nada tenha respondido aos
requerimentos de ajuda da infeliz, procurou fazer o que seu entendimento e
honestidade lhe permitiam.
Foi até a praça, procurou seus senhores até dar com eles, e lhes pediu
permissão para dispor de um lençol. O insólito da solicitude motivou a que a
senhora reclamasse maiores explicações, que a criada não teve objeção em
lhe dar com toda a sua voz, a fim de se fazer ouvir em meio à balbúrdia.
Aquela família ajudou a jovem branca desconhecida, conduzindo-a a
seu lar; mas a prejudicou ao não se cuidar de calar o acontecido, que
transcendeu desonrosamente mal Rita foi posta na cama pelas criadas que
haviam ficado na casa.
A primeira curiosidade, que nasceu em um setor da multidão em virtude
do que foi gritado pela criada, encontrou-se com a corrente de informação
posterior, e deste modo teve confirmação e se expandiu com aditamento da
imaginação e do mau juízo.

Não escutei o relato todo, que averiguaria depois, se me interessasse, e só


pedi a meu informante que me dissesse onde estava Rita e se havia sido
ferida. Renascia por ela meu afeto fraternal, com a exigência de acudir, sem
tardança, a seu lado.
Procurar o cavalo teria me resultado embaraçoso e lerdo. Corri pelas
ruas e observei que outras pessoas, de distinta condição, procediam de igual
maneira.
Diante da casa do meu hospedeiro achava-se reunida uma multidão de
curiosos, atentos a um espetáculo que certamente não aconteceria, de
qualquer modo satisfeitos de acharem-se mais próximos de quem havia sido
vítima do oprobrioso episódio.
Abri caminho e murmurei entre os dentes: “Corja!”.
Só pela minha insistência em bater foi-me franqueada a porta.
Dom Domingo encontrava-se na galeria, assistido por suas três filhas,
todas debulhadas em pranto, enquanto as mulatas e as negras lhes faziam
coro de lamentações. O ancião bradava aos céus por sua desonra e levantava
os braços em protesto de vingança.
Pensei que Rita havia morrido.
Mas não. É que aumentava o desespero de seu pai, negando-se a abrir a
porta, que tinha atrancada, e não aceitando nem diante das mais terríveis
ameaças confessar quem era seu ofensor.
A alteração rendia extremadamente e, julgando que contribuía para seu
crescimento tanta lamentação das servas, quis proceder com a energia que o
ancião não conseguia empregar e me pus a afastá-las aos berros.
Por isso há de ter advertido minha presença Rita, que se fez escutar do
interior de seu quarto, anunciando que a mim me receberia.
O pai quis introduzir-se comigo, mas não permiti, instando-o com razões
e até com a força de meus braços a que me permitisse colocar sua filha em
uma atitude mais razoável.

O quarto estava em semipenumbra. Custou-me distinguir a jovem no


primeiro momento e, antes que pudesse compreender seus propósitos, ela
havia passado de novo a tranca e estava a meus pés, implorando: “Vingança,
vingança! Vingai-me, dom Diego!”.
Era mais do que pude prever. Essa humilhação, essa dilacerada súplica
me dobraram, falseando meus joelhos e derrubando-me no chão.
Ali os dois, o corpo de um junto ao do outro, por um instante sentimos a
aproximação de nosso calor e nos abraçamos para dar asas à nossa angústia.
Eu chorava por minhas desilusões, minhas traições e, em última instância,
pela desgraça daquela mulher que me assistia em meio de seu desalento.
Recobramo-nos, por fim.
Sentados na beira de seu leito, entre soluços me fez escutar sua história.
Havia assediado Bermúdez sem conseguir ocasião para lhe jogar na cara
suas recriminações. Aproveitando a confusão da festa, aproximou-se dele e
exigiu-lhe que caminhassem até um lugar afastado para ventilar suas
questões. Em uma ruela abandonada, discutiram e ele se manifestou decidido
a um distanciamento definitivo. Deu-lhe as costas e ela o perseguiu alguns
passos batendo nas suas costas com seus frágeis punhos. Então tirou o punhal
da cintura dele, disposta a matá-lo; mas Bermúdez não lhe deu tempo nem de
levantar a arma. Torceu seu pulso e a jogou por terra, onde a maltratou, a
pontapés. Depois a despiu.
Ao chegar a este ponto, Rita não se conteve mais e tornou a clamar por
vingança.
Eu vacilava, sem responder-lhe, e tratando de tranqüilizá-la, já não por
falta de coragem, mas com o súbito temor de que se pensasse que algum
vínculo secreto entre Rita e mim me impulsionava a tomar a sua defesa.
Tentava explicar isso, quando ela, interpretando meu profundo silêncio como
negativa, procurou persuadir-me desta ominosa maneira:
— Eu vos rogo, dom Diego. Não façais que morra meu pai nas mãos
desse infame. Arriscai vossa vida, que vale menos, pelo bom nome de uma
mulher.
Uma agulheta em brasa, bem dentro, bem dentro.
Ergui-me. Esse, não o anterior, era o momento de chorar. Mas demandei
serenidade ao meu pensamento, firmeza às minhas atitudes.
Rita se calara, de repente. Embora não visse o sangue brotar, não sabia
quão extensa e profundamente ferira.
Avancei até a porta e então ela tomou consciência de seu insulto.
Gritava para mim “Perdão, perdão”, tratando de obstaculizar minha mão,
para que não afastasse a tranca. Mas quase não me custou safar-me de seus
gestos.
Um golpe de luz bateu em todo o meu corpo e ela ficou entre suas
sombras.
O pai cessara em sua gesticulação. Esperava meu pronunciamento, fosse
consolo ou incitação a qualquer brutal empresa de honra e repressão.
Informei-lhe:
— Nada me disse. Nada sabe ou não lembra.
— Como? Como?...
O ancião, que tudo esperava de mim e dessa entrevista, ainda não
entendia minha negativa em ajudá-lo. Continuei até a porta. Ele me alcançou
e queria refrear-me. Dava pulos de raiva que o deixavam a um palmo do
chão.
Não conseguiu reter-me.

Tomei quarto na pousada.


Bermúdez abandonou suas funções e desapareceu da cidade.
Quando transcendeu essa fuga, dom Domingo Gallegos, alerta a todos os
sinais reveladores do ofensor, pôde imaginar o que sua filha não denunciava.
Então o ancião se transformou em um buscador frenético. Fiscalizava
rostos na pousada e na taberna. Acudia diariamente ao gabinete vacante do
alferes-mor. Instalava-se horas e horas na rua onde Bermúdez teve casa,
como espreitando sua saída. Todos se compadeciam dele, porque era notório
que o safado abandonara a cidade sem intenção de regressar.
Alguém trouxe a versão de que Bermúdez estava nas missões.
Dom Domingo, ginete em manso zaino, isento de avios de viagem e sem
ter consentido escolta, partiu para o Sul.
Ninguém pôde pensar com fundamento que o ancião poderia voltar
algum dia, nem sequer que alcançaria o destino a que se propôs.
Luciana, a dama que mais ventilava seus vestidos, permanecia reclusa
em sua casa, segundo as minhas contas, desde pouco antes do dia de San
Blas: três meses bem cumpridos. Mal pensei que se impunha penitência: seu
mal na cabeça não suportava barulhos e, conseqüentemente, fizera de seu lar
uma ilha de silêncio.
Ao inteirar-me de sua prostração, senti-me inclinado a uma visita de
cortesia, até certo ponto para provar a quanto chegava a austeridade que eu
mesmo me impus naquela época.
Nessa favorável disposição de ânimo me pegou uma epístola que
declarava: “Estou tão sozinha que penso menos em mim. Pergunto-me: O que
faz Diego por sua prosperidade? Atém-se a vagas promessas de parentes e
amigos bem-intencionados mas nada eficientes? Poderia ser-lhe útil uma
súplica de meu irmão perante S. M.? Diego: Porque estivestes próximo,
embora não te visse, sempre vacilei em te oferecer uma ajuda que possa te
levar a outro país, talvez à Espanha. Agora peço menos da vida e estou
resignada a que triunfes longe de mim. Farás o bem de visitar-me?”.

A princípio, a carta me causou vergonha. Em um ímpeto, ateie-lhe fogo até


que se consumiu. Adiantava-me a qualquer olhar que, por um papel,
descobrisse que por mim mediava ou oferecia mediar uma mulher. Menos
ainda por esta palavra: prosperidade. Prosperidade significava algo além do
discretamente razoável: equivalia ao buscado por ambição.
Depois a reflexão pousou no vocábulo eficiência. Supostamente, o
irmão possuía essa eficiência que nos demais parecia não haver traços de
abundar.
E eu precisava de um posto perto de Marta, por Marta, por minha mãe,
por meus filhos... para buscar meu passado: o lar. Esse lar que me doía
porque eu o formara e obedecia a uma estrutura mais remota ainda, herdada
de meus pais e de meus avós, esse lar que me pesava mais porque não o
tinha.
Necessitava, igualmente, de Luciana. O lar estava atrás; o traslado,
adiante, mas muito distante. Devia ter um futuro mais próximo, palpável,
imediato, alguma coisa que se submetesse a mim rápida e incessantemente.

Daquela carta transcendia uma Luciana apagada, arrependida e triste, não


imaginável senão em um leito que não pudesse abandonar.
No entanto, quando cheguei, estava na sala, agulha na mão, viçosa e tão
afanosa que se desculpou por não abandonar o labor diante do anúncio da
minha presença, porque, disse rapido, não podia soltar certos pontos, mas já
ia acabar.
Efetivamente, mal tive de aguardar, bem perto da porta, chapéu na mão.
Via-a de perfil. Ao pôr-se de pé, com um sorriso de festa e de boas-vindas,
deu-me o rosto em cheio, vindo a mim: tinha uma pálpebra caída, a direita.
Minha pena por sua desgraça se fez suavidade e, se não exagero, esse
respeito que a muitos veda julgar as ações dos mortos.
Comparecera altaneiro e forte, disposto a rechaçar seus beijos se me os
brindasse, e também sua oferta de ajuda, se calculava que não teria validade
suficiente o respaldo desse mentado irmão, do qual até então eu ignorava a
existência.
Não consegui localizar um tema de conversa, sendo como devia ser o
primeiro sua saúde, ou a falta dela. Parecia-me indiscreta qualquer alusão à
sua doença, de tão visíveis e deformantes conseqüências.
Luciana limpou o caminho. Perguntou-me se não observara a
insegurança de sua escrita. Mentindo, respondi que não. Mas ela manifestou
surpresa porque, disse, o impedimento de usar os dois olhos causava-lhe
enormes transtornos. Para ver de um modo completo o que tinha na frente,
devia inclinar brevemente a cabeça para a direita, e o olho esquerdo, que
arcava com toda a atividade, se fatigava e se negava a lhe servir.
Uma noite, ao deitar-se, a escassa luz do castiçal procurou revelar-lhe
uma aranha gorda, redonda e vagarosa, no teto. Não pôde certificar-se de
que o fosse. O marido, a seu lado, já dormia.
Depois de algumas horas, acordou com uma advertência no peito.
Acendeu a vela. Olhou para a porta, caso tivesse sido violada. Não. Para o
teto, para aquilo que podia ser aranha. Escuro e aparentemente sem corpos
estranhos. Para o marido, caso tivesse acordado com a luz.
A aranha estava no pescoço de Piñares, caminhando com a mais extrema
torpeza, mas sem desprender-se da carne.
Luciana, pelo terror, não pôde mais do que cobrir os olhos com as mãos
e chorar para dentro, sem capacidade de mover-se para fugir. De repente,
pela quietude de Piñares, pensou que já o tivesse picado e que estava morto.
Então lhe deu uma coragem demente. Pegou a aranha com a mão e a jogou no
chão.
Um tempo depois, quando Luciana teve forças para acordar Piñares, o
animal continuava no chão, vivo e sem ferimento. Mataram-no.
Pela manhã, as paredes foram revistadas, para ver se havia deixado
parceiro ou filhote. Encontrou-se um ninho de vespa-caçadora. A caçadora
leva alimento para suas crias, durante todo o tempo de filhote, uma aranha
suficientemente volumosa. Adormece-a com ferroadas e a deixa no ninho.
Aquela aranha estava adormecida, mas conseguiu escapar das vespinhas
antes que estas nascessem.

Desconheço se esta aventura efetivamente ocorreu, se bem que era tão longa
e Luciana a narrou com tanta emoção e realce que veio, pleno, o
entendimento entre nós.
Estivemos muito rapidamente como que de mãos dadas.
Bebemos mate doce sem pressa, preguiçosamente. Mais avançada a
tertúlia, admoestou-me de maneira severa por abandonar-me a inoperantes
influências e a tolerar esse confinamento em um cargo que considerou
inferior ao devido à minha capacidade. Eu estava de acordo e lhe disse,
comprazido, à vontade, contente:
— Bem, vejamos que favor pode esperar o doutor dom Diego de Zama
de uma mulher.
— Já vais ver — respondeu-me com resolução e de imediato
desenvolveu planos em torno de um irmão que, fez-me saber, era cavaleiro e
prestava serviço na corte.
Era uma ilusão digna de ser bem acolhida. Pôs-me ricamente abastecido
de esperanças.
Assim que teve meu assentimento para realizar a gestão, prometeu-me
despachar um ofício pelo primeiro correio.
Logo depois escrutou o céu, assomando-se brevemente à galeria. Ao vê-
la afastar-se, pensei que ia considerar as perspectivas de tormenta ou tempo
estável, para ver se aquela retardava a chegada do barco ou este a favorecia.
Outra era a razão. Urgiu-me:
— Tens de se apressar. Logo Honorio virá jantar. É tarde.
Deu-me um golpe de sangue.
— O teu marido está na cidade? — perguntei, desconcertado,
recriminando-a ato seguido, sem lhe dar tempo de responder o que parecia
evidente: — Não havias me prevenido.
— Mas... pensastes que ele estava na estância?
Luciana era a surpreendida pela minha ignorância e ria dela sem
inquietude, tão boa e ingenuamente que me apaziguei.
Tornara-se mais menina, mais cândida? Já não concebia a astúcia?
Perguntou-me, ainda:
— Como pudeste pensar que estava na fazenda, se eu não o disse no
meu bilhete?

Dois dias mais tarde, as baterias deram aviso de barco do Prata.


Piñares de Luenga esteve no porto e subiu para conversar com o
capitão.
De tarde, Luciana mandou buscar-me. Eu disse ao criado-grave que iria,
mas não o fiz. Ofuscavam-me suas táticas, mais despegadas de minha
segurança do que quando mentiu levando-me a uma rua noturna e à
vizinhança de um rival que me superou em capacidade de desprezo.
Pela manhã, despertou-me um criado da pousada com este bilhetinho
excitante: “Tens medo de Honorio? Não temas. Mas se não queres vir, rogo-
te que me envie uma relação dos teus títulos para comunicá-los ao meu
irmão. Sem dúvida, ele precisará transcrevê-los na súplica”.
Levei na boca a relação de títulos.
Eu era já um homem desesperado, privado até da justificação do desejo.
Posto que o sabia, entrava tanto em minhas previsões como em minha
vontade encontrar Honorio Piñares em sua casa. Desejava ver-me forçado
ao encontro e, se preciso, à luta.
No entanto, o mais recôndito sentido da precaução me induziu a
escolher a hora vespertina e, claro, não houve tal enfrentamento.
Disse a Luciana:
— E se, ao perguntar por ti, fazendo-me anunciar, teu marido estivesse
em casa?...
— Não temas — começou a explicar-me.
— Não temo — repliquei, violento.
— Bom, não temas — aduziu, conciliadora.
Quando me viu serenado, pôs fim à sua argumentação:
— Ele diz que os homens são desprezíveis e que a mulher não o adverte
até estar casada. Acredita que compartilho sua opinião e que todos os
homens me causam repugnância.
Luciana falava como confiando um segredo desagradável ao tecido do
bordado, sobre o qual inclinava a cabeça.

Apesar desse seguro que me oferecia com a exposição da crença de Piñares,


não quis que a visitasse até que ele se retirasse para a estância.
Foi uma longa temporada de um mês, assídua, não obstante eu, a
princípio, tinha me proposto a manter nada mais que uma relação de
superfície, para resguardar a possibilidade de apoio perante o rei.
Era uma amizade serena, até que um dia observei que a pálpebra caída
respondia mais nobremente aos requerimentos de suas funções naturais.
Subia até quase deixar o olho totalmente descoberto. Congratulei Luciana
com sinceridade, efusivo, e ela, sentida e acessível como em tempos
passados, disse-me:
— Graças a ti, ao carinho e ao sossego que tu me dás.
Quis que só respondessem os meus órgãos cordiais, mas secretamente,
por essas palavras confiadas, soltaram-se postergados impulsos. Dentro de
mim, nada mais.

Depois, enquanto caminhava, o juízo me entregou pronta a decisão de


apossar-me de Luciana uma vez. Lançava em exploração raciocínios
supostamente capazes de fortalecer-me em minha prescindente atitude
anterior e era como lutar contra uma resolução de todo o meu corpo, muito
anterior e severamente imperativa.
Já era uma febre de fazê-lo e sua pujança aceitava, não obstante,
conjugar-se com a cautela que me ditava o instinto.
Procurava eu provocar, com mesura, aquele amor comunicativo que me
entregou Luciana em algum momento. Fiz aventureiras as palavras e, nos
diálogos, Luciana se arriscou pela picada que elas abriam.
Ocorreu, numa das vezes, que um laço que lancei, como eximido de
propósito definido, trouxe-me caça maior.
Disse-lhe que a julgava mulher incapaz de afetos profundos porque não
entendia que tivesse se privado dos filhos. Isso fere a mulher, mas eu soube
conter-lhe uma réplica direta mediante um tom zombeteiro, de brincadeira, e
o desvio imediato para um tema paralelo alheio a ela.
Fingi inteirar-me a essa altura do sistema que usavam as índias mbayas
para eliminar a perspectiva de um nascimento, que consistia em exercer
pressão, com seus próprios dedos, sobre certas partes do corpo. Isso distraiu
Luciana da proposição inicial. Referiu-me que ela havia presenciado, no
campo, o bárbaro procedimento; era um pouco diferente: submetiam-se ao
curandeiro, que lhes aplicava pontapés em zonas delicadas com uma sanha
tão brutal quanto eficaz.
Depois de contar-me, Luciana ponderou brevemente. Perguntou-me, com
tristeza, se eu pensava que ela recorria a esses métodos ou outro semelhante.
Disse-lhe que não.
Então soube, por sua boca, qual era a causa de que não tivesse filhos.
Soube, também, por que Luciana não amava a seu marido.
O pai de Honorio era indiano. Regressou enriquecido para sua terra,
deixando na América seu único rebento, de quinze anos de idade e
administrador de estância e casa. O rapaz sofreu atropelos que, no entanto,
sua frágil existência conseguiu suportar com estoicismo e inclusive superá-
los, assegurando-se mando e fortuna. Mas o pai, depois de tê-lo
desamparado tão pequeno, impôs-lhe ainda a carga do matrimônio sem
consultar sua opinião e preferência. Na Espanha, o autoritário ancião
combinou com sua própria irmã o casamento da filha desta, Luciana, com
Honorio. Como resultado disso, Luciana, aos onze anos de idade, estava
comprometida em matrimônio com seu primo, Honorio, de vinte e dois.
Nada lhe foi dito até ter seus quinze anos. Então se iniciaram os preparativos
para as bodas, acordada por cartas-procurações. Aos dezessete anos, viajou
para a América para reunir-se com seu desconhecido primo e esposo.
Quando descrevia os costumes das índias mbayas, Luciana estava tão
solta e animada, tão sem recato nomeava certas partes que, escutando-a, tive
a sensação desagradável de que se confundia e falava comigo como se eu
fosse uma mulher.
No entanto, a história de seu casamento, que era penosa mas não
suscetível de causar vergonha, foi para ela como uma entrega, obrigada e
irremediável, de algo que afetasse seu pudor.
Percebi sem tardança que toda essa intimidade que pusera em minhas
mãos logo se transformaria em receio e rechaço. Estava autorizado, também,
para temer sua hostilidade.
Então, ignoro se comovido ou temeroso de que me abandonasse
novamente, jurei-me respeitá-la tanto como ela quisesse ser respeitada.

O chefe do regimento, tenente de governador até que se apresentasse o novo,


justamente pela certeza do limitado de seu interinato, pôs-se executivo e
mostrou possuir garra para sê-lo.
Na realidade, seu império se revelou de maneira efetiva só em uma
questão: o pagamento do estipêndio devido aos funcionários e empregados
da administração real. Mas somente isso, deve-se reconhecer, podia ocupar-
lhe e interessar-lhe, já que, exigindo pelos demais, demandava
implicitamente por si mesmo.
De tal sorte, a caixa de latão, tempos atrás restituída à sua missão,
satisfatoriamente fornida, pela primeira vez desde a minha permanência na
província resultou insuficiente para o cabedal que devia entesourar.
A remessa em prata veio por barco madrugador, na manhã seguinte
àquele desafortunado diálogo com Luciana. Como o tenente de governador
julgou que o bem-estar daqueles que administram a coisa pública deve ser
atendido antes da coisa pública em si, ordenou os pagamentos mal entrado o
dinheiro. Em conseqüência, pude dispor prontamente de recursos que para o
meu longínquo lar representavam o sustento cotidiano e, repetido móvel, a
moeda em minha mesa me ajudou a evocar Marta.
O amor suave e manso que irradiava de sua lembrança adquiria uma
aproximação real, e de repente acreditei saber com lucidez por quê: porque
esse tipo de amor bom animava alguma coisa em mim ou em minha vida ali
mesmo, e não, de modo algum, com relação à minha esposa, que ficava atrás.
Pensei que tal era a verdadeira natureza de meu amor por Luciana e temi por
Marta.
Desci para comer. Bebi com desconsideração. Na sesta, adormecido,
obstinei-me em uma imagem lasciva de Luciana. Acordava e, devido ao
vinho, minha cabeça caía de novo no travesseiro. Acabei por amar essa
imagem.
Vencido pelo torpor, refresquei a cabeça com água.
Estava em paz. Minha dona, perpétua e inalterável, era Marta.

22

Discernia o que de Luciana e entendi que as dilações e


entorpecimentos derivavam da minha facilidade para enternecer-me. Pondo-
me brando, distraía-me do objetivo e a mulher se fortalecia, deleitando-se
em prolongar o prazer de sentir-se assediada.
Não esquecia quão estéreis resultaram antes meus aprestos de energia.
Mas pretendia diferenciar duas épocas: a inicial, em que Luciana estava
desacordada e brincava comigo, e esta segunda, de paciente aproximação e
tensão amorosa que poderia derivar em paixão por qualquer estímulo
repentino.
Confiei de um modo tão excludente em uma possibilidade ocasional,
imprevista, de ser amado assim, que me ocorreu que podia suceder naquela
mesma tarde e, precisamente por supor tal coisa, fiquei na tasca. Não me
encontrava forte, nesse dia, para amar com veemência.
Na tasca, bebia um capataz boiadeiro e eu, solitário, escutei-o.
Juntava tropas para seu senhor, Alfonso de Almeida, que acudia para
tomar posse, em Villa Rica, da estância de dom Honorio Piñares de Luenga.

Embora em hora tardia e, portanto, já inesperado, apresentei-me diante de


Luciana.
Não a via desde a noite anterior, quando me revelou seu duplo
parentesco com Piñares; mas este novo já era outro tempo, por mim
pressentido.
A pálpebra do olho direito estava outra vez fechada. Não tanto, contudo,
que impedisse a passagem de uma lágrima que acompanhou a mais franca do
olho esquerdo, totalmente embaçado ao nos encontrarmos, sem palavras.
Estendeu-me as mãos, só as mãos, e manteve afastado o corpo.
Precisava meu consolo e o consolo, é verdade, sente-se mais quando o
sangue o comunica.
Tanta violência se havia feito, ao falar-me aquela noite, que seu mal a
atormentou de modo tão extremo? Isto lhe perguntei e me respondeu que não,
negando tenuamente, com um movimento de cabeça. De manhã, um
mensageiro do marido havia lhe dado parte de certo trâmite que estava por
formalizar-se: a venda de sua fazenda em Villa Rica. E, bem, já estava
concluída.
— Mas o que entranha essa venda de temível ou doloroso? — demandei
eu, desconcertado por seu desconsolo, esquecido de quanto me havia
inquietado ao sabê-lo na taberna. Ainda mais, quis saber:
— É que, por acaso, estais ameaçados de pobreza?...
Luciana me afastou dessa idéia, para acrescentar, em seguida, com pena
piedosa, tranqüila:
— Não o sabes, pobrezinho.
Não sabia eu que Honorio se sentira tentado pelo mesmo desejo de seu
pai: desfrutar na Espanha dos bens acumulados na América. Como não tinha
filho com quem compartilhar riquezas, recolhia todas e renunciava ao cargo
de ministro da Fazenda Real, sem sequer apetecer outro na Corte nem em
lugar algum do território espanhol.
Luciana nunca me dissera, até então, por medo de que, ao saber que ia
ausentar-se para sempre, despreocupasse-me dela.
Dois pensamentos por igual otimistas, também igualmente aceitáveis,
acudiram ao chamado das decisivas novidades: Luciana viria a mim, de
vontade própria, antes de partir. Encontrando-se na Espanha, ela se faria
acicate tenaz em prol de minha elevação de posição e novo destino de mais
lustre; prova de sobra tinha eu de sua habilidade para empresas
diplomáticas.

23

Nunca, nunca mais tive um beijo de Luciana. A partida estava organizada


com tal minuciosidade que foi possível no primeiro barco que desceu para o
Prata, e com tanta antecipação que eu não entendia como pude ser a pessoa
mais próxima a Luciana e ignorar o que já a muitos havia transparecido.
É que permaneci tempo excessivo assimilado por Luciana e alheio à
vida ao meu redor.
Ela impôs que nos despedíssemos no jardim. “À vista de todos”,
proclamou.
Mas não à vista do marido, completamente possível, já que, durante
aquela semana final, distinguia-o ou acreditava distingui-lo, próximo e
preciso, ou longe e ligeiramente confundível, em todos os lugares onde um
homem podia estar, como se em cada um deles tivesse alguma coisa para
arrumar ou alguém a quem apertar a mão. Receava eu que, ainda, antes de
partir, déssemos de frente e quisesse falar grosso comigo. Para que não me
visse, então, escapulia de tal maneira que tropeçava com ele em cada pedra.
Luciana impôs lugar e impunha a si mesma um tom de abnegação
heróica, que eu consentia impondo-me, de minha parte, o ar melancólico do
irremediável abandonado. Meu duplo âmago se regozijava com a viagem: já
não passaria esses perigos das convocatórias sem proveito.
Em ambos tudo era, nesse momento, ridículo e exterior. Eu o entendia,
mas Luciana não, de modo que acatou minha simulação como verdade e quis
corresponder tornando-se humilde, entregando-me, por fim, a polpa de seus
sentimentos.
Disse-me Luciana que nenhum outro homem, como eu, soube procurá-la
sem pensar na carne, e por isso eu fora e sempre seria o predileto de seu
coração.
Fez-me tanto bem este juízo alheio à realidade que arrisquei tudo para
confirmá-lo:
— O predileto, sim. Obrigado, Luciana. Mas também o único?
— És tanto para mim, sou tão tua e só tua, que te teria dado o que nunca
me pediu, se me tivesses pedido.
Mordeu um soluço, apertou-me arrebatadamente as duas mãos e, sem
facilitar-me tempo para a menor reação, afastou-se para os quartos.
Foi a única visita que concluiu sem protocolo. Dirigi-me sozinho para a
porta.

Acreditei que me amava. Não exigia simulação da pureza. Aceitava simular


que podia ser impura. Por isso era forte: seu jogo era mais sutil e perfeito do
que o meu.

Para o Prata, depois para o mar e para a Espanha. Onde nunca fui mais do
que um nome anotado em papéis, estender-se-ia um pensamento, uma
sensibilidade humana impregnada de mim. Alguém, na Europa, saberia quem
era eu, como era Diego de Zama, e o acreditaria bom e nobre, um letrado
sábio, um homem de amor. Estava dignificado.
Para Luciana, minha pureza constituía uma noção antiga e permanente.
Eu duvidava, ainda, entre acreditá-la pura ou não. Podia escolher. E escolhi
uma fé redentora de seu conceito e de sua honra.
Compreendi que ela era mais candura e desespero do que mulher.
Em todo caso, negava-se a ser carne e vencia. Era mais livre do que eu.

Quis ser testemunha da partida, mas me passou inadvertida.


A princípio, tentei identificar Luciana no bergantim. Depois, encostado
sem peso a um fardo do porto, tomei como uma antecipação de descanso.
Faltava luz, por causa das nuvens fechadas, que não cuidavam do céu,
mas do chão, de tão baixas. As palmeiras oprimiram seus verdes. O azul
tolerava, sem batalha, a corrosiva infiltração do cinza. Grávida de umidade,
possessiva, a atmosfera suspendera a vida. Surto nas águas iguais, mantinha
o barco uma quietude sem memória.
Não o vi zarpar. Em certo momento, já não estava lá, e as pessoas
haviam se dispersado do porto.

Uma presença ficava suprimida. Eu teria, dali em diante, minhas tardes


livres. Poderia estudar e vagabundear. A vagabundagem é prazerosa.
Caminhava em direção oposta às águas, para a casa de governo, onde já
não estavam o oficial Bermúdez e Ventura Prieto. Os dois tinham razões
pelas quais viver e não me interessava seu destino. Já os apagara e lembrar
deles não me produzia nenhuma impressão. Não era forçoso, tampouco, que
acudisse ao meu gabinete. O tenente de governador não pretendia ordem
mais do que em seu quartel. Nós, na casa de governo, não usávamos
uniforme. Podia, pois, montar meu animal e ir caçar pelos pacíficos montes.
Se quisesse, era possível que formasse tropa para uma incursão até as
missões, que tinha curiosidade de conhecer. Com dinheiro contava para esse
gasto e um ano mais. Por igual tempo assegurara recursos para Marta.
Entretanto, sem dúvida chegaria aviso de meu traslado, pela gestão do irmão
de Marta em Buenos-Ayres ou a do irmão de Luciana na Corte.
Sem desmontar a casa, já que reluzia certa a minha colocação em outra
cidade, nesse tempo de espera da providência real os meus poderiam vir
comigo. Marta, enfim, em meus braços, e com ela o desejado lar. Não era
fábula irrealizável: dispunha de meios e o tenente de governador assegurava
regularidade nos recebimentos por muitos meses.
Não obstante, nem tudo estava bem.
Alguma coisa em mim, em meu interior, anulava as perspectivas
exteriores. Eu via tudo ordenado, possível, realizado ou realizável. No
entanto, era como se eu, eu próprio, pudesse gerar o fracasso. E tenho aqui
que ao mesmo tempo me julgava isento de culpa desse provável fracasso,
como se minhas culpas fossem herdadas e não me importava muito: dispunha
como de uma resignação prévia, porque percebia que, no fundo, tudo é
factível, mas esgotável.
Tampouco a fugacidade me inquietava, porque é possível tirar partido
do transitório, desfrutar momento a momento. Era algo maior a razão de
minha submersa insipidez, ignoro o quê, algo assim como uma poderosa
negação, imperceptível, embora superior a qualquer rebeldia, a qualquer
aplicação de minhas forças.
Mais: eu o temia à distância. Por ora, tudo se apresentava com rosto
favorável. Mas receava outra etapa — distante? imediata? — irrebatível, à
qual eu chegasse sem vigor, como a uma extinção no vazio. O que era isso
tão pior? A destruição, acaso? A pobreza? Alguma afronta? Talvez a morte?
O quê, o que era?... Nada, ignoro. Não era nada. Nada.
Quis discernir o porquê desse sobressalto e adverti que era como se
tivesse andado longo tempo em direção a um esquema previsto e já estivesse
dentro dele.
Necessitei imperiosamente agarrar-me a alguma coisa. O estômago veio
em minha ajuda, reclamando-me alimento. Acudi à pousada como atrás da
esperança.
1794
Remontava-me à idéia de um deus criador. Um espírito que não tinha pé em
nada, capaz de estabelecer as leis do equilíbrio, a gravidade e o movimento.
Mas seu universo era uma rotação de bolinhas, maiores ou menores, opacas
ou luminosas, em um espaço preciso, como recortado pelo alcance de um
olhar, no qual o som resultava inconcebível.
Então, por minhas necessidades, o deus criador adquiria a figura de um
homem, que não podia ser verdadeiramente um homem, porque era um deus,
alheio e remoto. Um ancião de melena e barba brancas, sentado em uma
rocha, que contemplava com cansaço o mudo universo.
Seus cabelos eram, desde sempre, brancos. Nascera ancião e não podia
morrer. Sua solidão era atroz. Aziaga.
Como um deus não pode criar deuses, pensou em criar o homem, para
que este os criasse.
Criou então a vida. Mas antes de criar o homem, fez as cobras, os
germes da peste e as moscas, deu fogo aos vulcões e removeu a água dos
mares. Precisava extirpar o tormento e uma certa cólera que a solidão pusera
em seu coração.
Depois realizou uma obra de amor: o homem, e o rodeou de bens.
Mas o deus fracassou, porque o homem criou uma multidão de deuses
que não olhavam bem para o primeiro e não só dividiram entre si o universo,
como alguns deles impuseram hegemonias. O maior fracasso do deus
consistiu em que podia ver o homem, mas o homem não podia vê-lo, não
podia devolver-lhe nenhum de seus olhares enternecidos de pai.
O deus ficou sozinho e irritado. Deixou que os frutos do bem se
multiplicassem por si próprios ou por obra do homem; mas não eliminou os
males e, desde então, para manifestar sua presença, comprazia-se em agitá-
los, ora aqui, ora ali. Outros deuses adventícios o ajudavam.

Quis ser pai. Ser pai novamente, com filho ali mesmo, onde eu estava, que
pudesse entregar-me um olhar de carinho quando eu pusesse nele meus olhos
e minha desolação.
Emilia, a mulher que me servia, uma espanhola viúva e pobre, que não
me superava em idade mas sim em caráter, resistiu e me insultava em cada
ocasião que eu me voltava sobre os meus propósitos.
Para manter as aparências, eu conservava o meu quarto na pousada,
embora dormisse em seu rancho, com ela, naturalmente.
Uma noite, lunar, bem passada a meia-noite, estávamos desvelados e
sem gosto um pelo outro. Emilia tagarela e eu, com o pensamento em minha
teogonia, no ouro do Peru e nos cavalos das corridas. Ela fazia o inventário
dos parentes que perdera e, na realidade, acredito, não lhe restava nenhum.
Este cálculo há de ter feito, porque de repente começou a chorar e me disse
que eu era seu único e último amparo, que gostava mais de mim do que de
seu defunto marido, e outras confidências chorosas e abrandadoras. Beijou-
me muito na boca e essa noite foi a primeira da conta, até ser mãe.
Na época dos enjôos, nem eu a tolerava nem ela me suportava. Só me
dava acesso quando lhe levava dinheiro, em oportunidades cada vez mais
ralas, porque minhas disponibilidades já eram muito magras e devia
administrá-las com sabedoria.
O menino nasceu enfermiço, sem dúvida porque a mãe gastara todas
suas energias para fora, gritando para mim.

24

A cidade era um pouco diferente. Tinha lojas e havia feira todos os dias. A
sociedade não era uma só e suas diversas constelações se permitiam não
estar muito de acordo com o assessor letrado e outros funcionários. Ao
mesmo tempo, eu me permitia prescindir da sociedade. O governador era
meu cúmplice secreto.
Muito orgulhoso, participei-lhe minha paternidade. Ria, cuspindo um
pouco, e me dava tapinhas nos ombros. Não era ofensivo e eu estava alegre.
Depois cederam suas expansões ruidosas e procurou mostrar-se
benévolo comigo, situando-me. Aconteceu-lhe que, por ocasião de ter nova
carga, eu estava em condições de dirigir uma súplica diretamente ao rei, a
fim de propor, de um modo patético, minhas aspirações.
Eu, embevecido, assentia. Acredito que estava esquecendo de minha
ciência jurídica.
Mas o governador reparou seu erro muito rapidamente:
— Não se pode.
— Como? Por que não se pode?
— Reconheças! És bastardo!
Dava um soco contra a outra mão aberta. Por ter me acendido e apagado
tão rapidamente essa ilusão, suponho, o governador procurou uma reparação
para mim de um modo que, certamente, valia mais do que o trâmite
descartado por impossível. Ofereceu-me subscrever ele mesmo uma petição
dirigida a Sua Majestade e, arrebatado como era, para não perder tempo,
arrastou-me atrás de si até dar com um escrevente.
O que encontramos, escrevia.
— O que estás escrevendo?
O governador o interrompeu com sua presença e com a pergunta, não
mal-intencionada, mas dirigida a saber se era coisa de importância dentro de
seu labor. O rapaz, um tal de Manuel Fernández, não o tomou assim, e,
sobressaltado, tratando de esconder seus papéis, confessou:
— Um livro, senhor governador.
A surpresa foi então para o governador. Mas aceitou a declaração
bonachonamente.
— Ha, ha! Um livro! Faça filhos, Manuel, não livros. Aprenda com o
nosso assessor.
Fernández me olhou sem importar-se muito comigo e eu sorri, dando
mostras de participar da troça ou o que quer que fosse que montava o
governador.
Depois, o escrevente, com tom respeitoso, persuadido do que afirmava,
disse:
— Eu quero realizar-me em mim mesmo. E não sei como serão os meus
filhos.
O governador vacilou um pouco antes de replicar-lhe. Quando o fez,
escolheu a saída ofensiva:
— E os livros?... Ha, ha! Piores que os filhos.
Eu também ri. Sentia-me obrigado, não convencido.
Fernández ficava vermelho, de vergonha e de raiva. Quase explodindo,
animou-se a dizer:
— Os filhos se realizam, mas não se sabe se para o bem ou para o mal.
Os livros se fazem só para a verdade e a beleza.
— Nisso acreditas tu, nisso acreditam os autores; mas não pensam o
mesmo os leitores — foi a rápida réplica. Fernández, que falara um momento
antes com expressão cortante, inclinou a cabeça. Adverti que não podia
continuar discutindo sem cometer falta contra o respeito devido ao
governador.
Este aparentou ser magnânimo. Disse: “Bem, bem”, e se retirou,
chamando-me: “Vamos embora, Zama”. Em seu gabinete, sentou-se em
silêncio, contrariado, desgostoso, e me encomendou uma desagradável
missão, a de averiguar por que Fernández escrevia um livro na casa de
governo.
A familiaridade que me concedia o governador me autorizou a
perguntar-lhe, ainda:
— Disporá hoje Vossa Mercê o pedido a Sua Majestade? Procuro outro
escrevente?
— Não, não. Hoje não, dom Diego. Outro dia será.

Esse outro dia não foi o seguinte, porque eu, por discrição, nada lhe falei, e
ele, fingindo-se esquecido, nada tampouco.
Nem foi no subseqüente, porque parece que ele advertiu quando ia abrir
a boca para renovar o reclamo e o interceptou reclamando-me, por sua vez,
o informe sobre o caso do escrevente, que eu não lhe passara.
Assim se agravou a situação do homem, porque essa vez em que o
governador se lembrou dele estava irritado, e me ordenou que o informe
fosse terminantemente desfavorável, de modo a poder exonerá-lo.
Propus-me a não fazê-lo dessa maneira, e sim como me ditassem minha
própria opinião e boa-fé.

Simulei boa-fé diante de Fernández, ao abordá-lo: não lhe comuniquei que o


meu interrogatório era perigoso, pois suas respostas iriam para um
memorando.
Perguntei-lhe, amistosa e reservadamente, no escritório que ele
ocupava, por que escrevia na casa de governo, ou seja, onde seu tempo
devia estar consagrado inteiramente a serviço do rei. Respondeu-me de
maneira ambígua:
— A disposição de escrever não é uma semente que germina em tempo
fixo. É um animalzinho que está em sua toca e procria quando tem vontade,
porque sua época é variável, pois algumas vezes é cachorro, outras, furão,
algumas vezes, pantera, e outras, coelho. Pode fazê-lo com fome, ou sem
fome, em algumas ocasiões só se está muito descansado, em outras se lhe dói
uma ferida do caçador ou se regressa de uma jornada de malfeitorias.
Prestei suma atenção ao seu discurso e depois, assentindo, disse:
— Muito bem!
Atraída em parte sua confiança, pedi-lhe que me mostrasse umas
páginas. Consentiu em fazê-lo, e li alguns parágrafos detidamente, porque o
pensamento aparecia arrevesado.
Tive de declarar:
— Mas isto é incompreensível!...
— Senhor doutor, é possível que o primeiro homem e o primeiro lagarto
fossem também incompreensíveis para tudo quanto os rodeava. Eu não só
escrevo: faço minha criação.
Observei-o ligeiramente admirado. Depois procurei aconselhá-lo:
— Ninguém vai aceitá-lo!
Cortou-me, arrogante:
— Vossa Mercê, para escrever o meu livro não tenho senhor.
— E a censura?
— Escrevo porque sinto necessidade de escrever, de colocar para fora
o que tenho na cabeça. Guardarei os papéis em uma caixa de latão. Os netos
dos meus netos os desenterrarão. Então será diferente.
Pensei que era um egoísta. Pensei também que, talvez, dentro de cento e
cinqüenta anos, ao abrir-se a caixa, haveria outras formas de restrições e
censura.
Reproduzi suas respostas com toda a fidelidade que a minha memória
consentia. Acreditei que dessa maneira me ajustava à verdade e dava
argumentos suficientes para o mau desígnio do governador.
Mas o governador não se conformou. Quis que eu pusesse um ditame e o
assinasse como inquisidor.
O fiz.

25

N , quando considerava que já não poderia lhe dar


motivos para postergar o que ele espontaneamente me ofereceu, se havia
levantado outra muralha.
Estava restabelecido o protocolo que, na realidade, era o usual em todas
as sedes de governo, mas que este governador desregrado, díspar de caráter,
às vezes de costumes comuns, eliminou desde o princípio de sua gestão, ao
menos para mim e outros funcionários de hierarquia.
Para entrar em seu gabinete já não bastava bater na porta; era necessário
solicitar audiência. Isso me foi comunicado pelo alferes-mor.
Solicitei audiência. Não a obtive.

Por um desses meios secretos que todos conhecemos quando agimos como
transmissores ou receptores, Manuel Fernández foi avisado de que se
tramava altamente contra ele.
Acudiu a mim. Conhecia o informe. Não me increpou nem pediu. Não
podia increpar-me. Disse-me que se tornaria soldado ou caçador, embora
duvidasse que fosse aceito no regimento, porque habitualmente aqueles que
exercem a injustiça costumam completar sua obra manchando de ignomínia.
Para que não procedesse como Ventura Prieto, disse-lhe que intercederia
perante o governador. Não me importava sua sorte de soldado, caçador ou
mendigo: quis lembrá-lo que eu estava em condições de comunicar-me com
o governador e contribuir para que se decidisse a sorte de uma pessoa.
Em audiência, disse ao governador que Manuel Fernández me havia
pedido que intercedesse por ele.
Levantou-se de seu assento, deu uma volta ao redor da mesa e passou às
minhas costas. Tornou a sentar-se e me fez esta caprichosa proposta: um dos
dois, Manuel Fernández ou eu, teria de renunciar ao favor; se anulasse as
diligências contra o escrevente, não suplicaria ao rei por mim; se me
postulasse perante o rei, exonerava Fernández. Eu devia decidir. Perguntei:
— Agora?
— Não. Amanhã.

Eu não queria decidir.


Quem escreve um livro, às vezes, é capaz de ações de desprendimento.
Eu pressentia e desejava que Manuel Fernández, esse homenzinho escritor de
livros, me permitisse sair sem cargas morais daquele enredo. Ele podia
assumir o sacrifício.
Disse-lhe que o governador me havia dado a alternativa e eu renunciei a
ser o favorecido; mas que o governador não podia acreditar em tanta
abnegação e desejava que Fernández soubesse, antes que as coisas se
tornassem definitivas, o que eu fazia por ele.
Fernández me respondeu que gostava desses rasgos de abnegação e
agradecia o meu, porque mais importante era para ele seu modestíssimo
posto do que podia ser para mim uma promoção.
Não conseguia replicar-lhe nem aceitava ir-me com tal resposta. Fiz-lhe
observar que nem tudo era fácil em meu cargo, já que estava há mais de um
ano sem perceber meus emolumentos e, em compensação, a ele, em seu
modestíssimo posto, se lhe pagava com o que aproximadamente se podia
chamar de regularidade.
Respondeu-me que não se pode chamar de regularidade o atraso de
meio ano.
Reduzi-me ao desconsolo e dilatei qualquer possibilidade de entrevista
com o governador.
O dono da pousada não me fez servir nem com a mulher nem com a
filha: me atendeu ele mesmo, abarrotou minha mesa de excelente comida e
me chamava de “senhor doutor”.
Sem suspeitas, pensei que a chegada de barco e desacostumados
viajantes, essa manhã, lhe haviam procurado benefícios que o punham
obsequioso.
Ao término do almoço, serviu-me licor verde e se sentou ao meu lado.
Disse-me que não me reclamava, ainda, o pagamento de tanto alimento e
leito como eu lhe devia, mas que precisava do meu quarto, o melhor do
estabelecimento, para um casal que vinha ao país só o tempo necessário para
negociar uma herança. Depois que essa gente — que comia ali, em uma mesa
próxima, e eu podia ver — se ausentasse, dois ou três meses mais tarde, o
quarto me seria devolvido.
Irritado — enquanto o dono da pousada passava obstinadamente a
palma da mão pela superfície da mesa, como suavizando alguma coisa que
talvez fosse eu —, repliquei que em breve pagaria minhas dívidas e que já
tinha resolvido mudar de casa, para uma de família de minha amizade.

Necessitava, rigorosamente, viver tomado das possibilidades, porque as


coisas — coisas demais — escapavam de mim. Eu ia ficando nu. São
terríveis os açoites nas carnes nuas.
Disse ao governador que Manuel Fernández renunciava ao próprio
benefício, sabedor do dano que a meus interesses poderia ocasionar com
suas pretensões, diante da alternativa que nos dera. Louvei o gesto do
escrevente, demarcando que se mostrou tão nobre que me rogou não se
soubesse nem ninguém o mencionasse. A única coisa que pedia, se possível,
acrescentei, era que no decreto de separação do cargo não lhe pusessem
máculas de honra, a fim de poder ingressar em uma distante guarnição
militar. Distante desejava eu que fosse.
O governador me escutou em silêncio. Aplicou seu “Bem, bem”, e
referendou: “Bem. Já se providenciará”.

26

Emilia descascava batatas. Seu semblante mostrava uma tenaz irritação, mas
me atendia, tanto que não se preocupava com o menino.
O menino se deslocava pelo chão de terra com o impulso dos seus
joelhos e de suas mãozinhas. As mãozinhas estavam muito porcas. Como seu
nariz escorria sem que ninguém o limpasse, haviam se formado dois jorros,
até o lábio superior. Dessa maneira, sua pele estava irritada e ardia. O
pequeno se coçava e, com a mão suja de terra, remexia aquilo, ferindo mais
ainda a machucada cútis. De volta, os dedinhos com essa matéria macia,
aquosa, faziam um impossível barro ao assentar-se na terra.
Esse era o meu filho.
Antes, recriminara a Emilia sua desatenção com a criança. Dessa vez
não me animava a fazê-lo.
Eu estava fazendo um longo argumento que arrematei com o anúncio de
que levaria para ali minha papeleira, meus livros, minha cama...
— Se trazes a cama é porque não podes pagar a pousada.
— Se trago a cama é porque quero ficar contigo o tempo todo.
— Aqui tem uma.
— Tu a compartilhas com o menino.
Quando não tinha resposta, calava, segundo sua conveniência, porque
outras vezes era muito loquaz. Descascava as batatas interminavelmente.
Tirava seus pontos pretos. Removia as partículas amarelas das cascas que
não ficavam finas demais. Presumivelmente, cozinharia sopa.
Perguntei:
— O que dizes, então?
— Que não sou tua mulher. Por isso me consultas antes de agir.
— Não é minha mulher? Não é a mãe do menino e eu, o pai?
— A tua mulher é outra.
— E tu, digas, por acaso é de outro?
— Não.
— E então?...
Ela deu outro rumo, inesperado e temível, à discussão.
— Trouxeste o meu dinheiro?
Chamava seu dinheiro a aquilo que eu devia entregar-lhe. O menino
desatou seu choro, lá fora, aonde fora sem que o advertíssemos. Pensei que
essa interferência me salvaria de responder. Mas não.
Eu prestei atenção aos soluços da criança. Ela me chamou à questão que
lhe importava:
— Trouxeste o meu dinheiro? Responde.
Não podia dizer-lhe que não.
Mostrei-me repentinamente exultante. Procurei participar-lhe minha
nova esperança e, com ela, minha alegria. Mas um tema, razoavelmente,
estava-me vedado: minhas ânsias de obter posição em outra cidade.
Transformei então o assunto dizendo-lhe que o governador, de próprio
punho, subscrevera nesse dia um informe ao rei sobre o estado de minha
caixa e as de outros funcionários de hierarquia que permaneciam não pagos.
Emilia, sem querer, fez apontar nos olhos o interesse. Para dissimulá-lo,
levantou-se e foi até onde chorava o menino, como se nesse momento o
notasse. Eu a segui, incentivando-a com o que notara que a seduzia:
— Dezenove meses — ia lhe dizendo, enquanto caminhávamos — estou
sem ver um real do tesouro. Daqui, dos próprios, tomei o que somam três
inteiros e pouco mais, nessa época: uns três mil e quinhentos pesos. Mas já
me deviam de antes, dos próprios, mais de dez meses e de...
Interrompi-me. Havíamos chegado onde estava o menino, sob as vigas
onde dormiam as galinhas. Era o entardecer. As galinhas, a essa hora, ficam
agitadas e descarregam. O menino foi ficar debaixo e...
Emilia procedeu, murmurando sua irritação e sua repugnância. Tirou o
menino; passou pela cabeça dele a ponta de sua saia, eliminando os
excrementos, e voltou a deixá-lo no chão, meio afastado. Em vez de esmerar-
se na higiene da criança, apanhou seus instrumentos e se pôs a limpar o chão
manchado pelas aves.
Pensei que estivesse calma e disposta a continuar a escutar-me. Falei
com esforço, porque ela gerava uma massa de terra flutuante e o menino não
havia parado de choramingar, embora de forma já mais comedida. Algumas
galinhas, perturbadas, galavam com o cacarejar, em um bobo desafio.
— Vejas bem, Emilia. Dez meses de antes, dos próprios, mais dezenove
são vinte e nove, menos três e meio... Vinte e nove por mil, fazem vinte e
nove mil, vinte e nove mil pesos. Agora, vejamos o das caixas reais. A conta
é fácil. À razão de quinhentos, dezenove por quinhentos... dezenove por
quinhentos... Não, melhor será contar por partes: primeiro, dez por
quinhentos, e depois, nove por quinhentos. Dez por qui...
— Vai embora! Vai embora! Louco, vai embora daqui!
Rompeu comigo.
Hasteou a pá, ameaçadora e bufante. Dei um pulo para trás, precavido,
distanciando-me de sua fúria. Mas continuava gritando: “Vai embora! Vai
embora!”, e o menino, assustado, chorava também aos gritos.
Virei-me, resignado, conhecendo que não conseguiria aplacá-la.
Caminhei alguns passos e calou.
Então virei para dizer-lhe alguma coisa, ainda. Estava tensa, com as
pernas abertas. Abaixara a pá, mas tornou a levantá-la por cima de sua
cabeça.
Dessa distância não poderia acertar-me.
Apontei para ela com o braço, em recriminação, e disse:
— Não esperes que eu volte se não me chamares. Nunca. Nunca, viste?
Porém, consagrei o olhar ao menino.
Meu filho. De quatro, sujo até confundir-se, no crepúsculo, com a
própria terra. Um estilo de mimetismo. Pelo menos possuía essa defesa,
característica dos animais.

No caminho, esqueci do menino e de sua belicosa mãe. Era tempo de fazer


as contas, em razão de que a súplica do governador ao soberano traria o
traslado e, uma vez que estivesse em Buenos-Ayres, poderia reclamar o
pagamento ao próprio vice-rei, porque seus cofres eram mais sólidos.
De modo que, disse-me, vinte e nove por mil fazem vinte e nove mil.
Mas com menos três mil e quinhentos já recebidos dos próprios, vinte e
cinco mil e quinhentos. Dezenove dos cofres reais, ah, e um anterior de
atraso, vinte; vinte por quinhentos, dez mil. Dez mil pesos, mais vinte e cinco
mil e quinhentos, trinta e cinco mil e quinhentos. A travessia do mar, pela
súplica e depois pela providência real, o tempo de preparação de minha
viagem até o abandono do cargo, sete, oito, nove meses atrás. Nove mil por
quinhentos... Melhor, dez, por mil e quinhentos, quinze, e sendo nove, treze
mil e quinhentos. Trinta e cinco mil e quinhentos atuais e treze mil e
quinhentos por vir... quarenta e nove mil pesos. O trâmite perante o rei
poderia ser lerdo e então se excederiam os oito ou nove meses, para ser
doze ou quatorze. E, conseqüentemente, cinco meses mais sete mil e
quinhentos pesos sobre os quarenta e nove mil... a glória!

27

O governador solicitou a minha presença em seu gabinete. Estava sorridente,


afável, destilando filantropia. Mostrou-me o pedido ao rei, escrito em
pergaminho e já com sua assinatura e selo. Era de abundante elogio à minha
pessoa e títulos, falava de talento e muito finamente propunha minhas
pretensões.
Acendeu-se em mim uma felicidade emocionada. Eu era um ancião
abandonado a quem acudia uma menina reconhecendo-o como avô, sem que
jamais a tivesse visto nem tivesse idéia de sua existência. Na neta revelada o
avô podia reconhecer todas as virtudes da família.
Aí estava o espelho esquecido de meus méritos, e era esperança e
constituía promessa de uma realidade quase, quase ao alcance da mão.
O governador me desenganou:
— Sua Majestade nunca atende a este tipo de pedido na primeira vez.
Mas é necessário fazê-lo. Depois de um ano ou dois, nós o renovaremos.
Então, sim, o considerará.

Ao retirar-me do gabinete, dei, depois da porta, com Manuel Fernández.


Perguntei-lhe o que fazia ali. Disse-me que o governador o havia feito
chamar. Para quê? Ignorava. Estava temeroso, ele. Eu também devia estar;
mas não. Até um breve diálogo poderia mostrar a ponta da meada que eu
teci.
Decidi ocupar-me com alguma coisa que me tirasse do escritório, ao
menos naquele dia.
Tinha má fama minha algibeira, por desnutrida, não por fechada, e isso ia
contra qualquer possibilidade de que as pessoas inteiradas de algo mais do
que meu nome e meu cargo concordassem em dar-me alojamento estável em
sua casa.
Por isso, de noite eliminara, de uma lista mental, o nome de todas as
famílias conhecidas. Esquecido de que disse ao dono da pousada que já
tinha escolhido residência, requeri-lhe informação sobre quem estaria
disposto a receber-me.
Afundava o dedo na orelha, fazendo cócegas, certamente para ativar o
cérebro; franzia as sobrancelhas, obrigado pelo esforço, e por fim me disse:
— Não me atrevo a recomendar Vossa Mercê.
Em outra época, só dois anos antes, teria lhe dado indigestão de
estocadas, quando menos de cutiladas. Mas tinha vendido espada e estoque
meses atrás.
No entanto, increpei-o pela palavra, claro está. Confundiu-se muito e me
disse que não quis dizer que eu fosse pessoa duvidosa para recomendar, mas
que não se animava a recomendar-me as condições de certa família.
Por um teimoso afã de mudar rápida e elegantemente o rumo do diálogo,
exigi dele que me indicasse de quem se tratava. Se o dono da pousada temia
por minha impontualidade nos pagamentos, a essa gente iria eu, para
prejudicá-la invocando seu nome e recomendação.

Não só seu nome — Ignacio Soledo — parecia-me novo, mas sua figura, de
pessoa maltratada, quem sabe se pelos anos, pela doença ou pelo vício. Fiz-
lhe notar que, acreditando-me já conhecedor de sobra de quantos habitantes
brancos tinha a cidade, ainda me havia faltado, até esse momento, dar-me
com ele. De modo algum comprouve minha curiosidade, limitando-se a
dizer-me que apenas pisava na rua para comparecer aos ofícios religiosos.
Em sentido inverso de sua reserva pretendeu saber de mim mais do que,
talvez, podia considerar-se discreto. Tomou meu cargo como garantia; quis
saber com precisão o montante de meu estipêndio e, uma vez que eu o disse,
desculpou-se por sua curiosidade, dizendo-me, com um amistoso sorriso que
não chegou a persuadir-me, que nunca teve ocasião de se relacionar com
pessoa tão importante, embora, sim, com muitos comerciantes e marinheiros
endinheirados.
Declarou-me que a casa era segura e eu respondi que assim acreditava,
posto que, apesar de encontrar-se quase à beira da aglomeração, a cidade
toda se reputava como tranqüila e só se sabia de atentados menores, em
geral pilhagem de índios à luz do dia, sem destroço nem maior prejuízo para
ninguém.
Meu aposento não se encontrava, como na casa de Gallegos Moyana,
alinhado com os demais sobre uma galeria interna, mas dispunha de porta
para a rua, direta, e atrás de uma antecâmara, comunicada com um pátio que
dava passagem para os fundos. Era escuro e úmido, e estava entulhado de
móveis miseráveis, que indiquei ao senhor Ignacio que podia retirar, porque
eu traria os meus.
Combinei apenas o arrendamento dos quartos. Quanto às refeições,
disse que as faria na pousada e que só em caso de ficar em meus aposentos,
por causa de meus estudos ou algum trabalho que me absorvesse demais,
rogar-lhe-ia que me fizesse servir ali mesmo uma refeição leve.
Achou razoável o modo de organizar a satisfação de minhas
necessidades, desculpou-se e partiu, deixando-me sozinho na antecâmara,
que estava vazia.
Ao cabo de um momento, regressou. Trazia uma sineta e a pôs em
minhas mãos. Disse-me que eu o veria pouco e que a casa tinha escassos
habitantes: sua filha e três empregados, duas fêmeas de cor e um mulato fiel.
Se eu agitasse essa sineta, uma das escravas acudiria para servir-me.

Depois da última noite na pousada, conjecturei que meus únicos apuros


imediatos seriam os de dispor de meios para pagar casa e comida, até a
chegada de alguns fundos.
Não.
O governador fazia o jogo do esporão e do desconcerto.
Em meu gabinete, até então privado e exclusivo, estava alguém sentado
em uma segunda mesa: Manuel Fernández.
Pôs-se de pé. Mostrava no rosto que estar ali não era sua vontade. Não
me disse isso, é claro; mas se desculpou por sua presença naquele recinto,
há tempos consagrado à assessoria.
O governador encontrara a forma de humilhar-me sem desmerecer o
cargo: Manuel Fernández passava a ser, a partir daquele dia, meu secretário,
e um secretário, aceitavelmente, pode pôr sua mesa coladinha à de quem
serve. Assim estava, roçando a minha. Observei-o; disse a ele. Não era,
tampouco, um abuso seu.
— O próprio governador, ontem de tarde, dirigiu a instalação.
Precisava saber se Fernández tinha me traído, afinal de contas, traído
com a verdade.
— Isto foi decidido ontem, não é mesmo? Quando tu entraste para ver o
governador. Eu sei, eu sei. Mas, diz-me, então reviram o caso, o teu e o meu?
Nunca, até então, tratei-o com este tú de superioridade. Copiava isso do
governador, para impor-me a ele logo de saída. Como o sentia forte em meus
punhos, porque o tú abusivo era uma introdução à violência.
Não havia motivo. Fernández, teso de excitação, mas ainda assim muito
soberano em sua necessária aceitação e tolerância de meu primeiro atropelo,
informou-me:
— Pode ser que o senhor governador tenha revisto o caso. Não sei. De
qualquer modo, não comigo. Não me permitiu falar. Já tinha tudo disposto.
Fernández, por sua vez, ignorava minha tramóia.
Estávamos, relativamente, empatados, sem nada que cobrar um do outro.
Pelo menos, eu não reconhecia dívidas.

Fiz transportar meus móveis e meus livros.


Facilitou-me o acesso e ajudou na instalação uma escrava de cor, ao que
parece africana, mas de uma linguagem que era mistura de português e
espanhol e, ocasionalmente, na procura de um meio de expressão, apoiava-
se no guarani.
Por ela e por esse desconhecimento absoluto que até o dia anterior
tivera de seu senhor, senti-me como acolhido em um país diferente. Nada
mais autorizava tal impressão. Era suficiente.
A escrava me deixou sozinho, com a umidade e as minhas coisas, as
quais me resultavam, nesse momento, como pacientes companheiras de
viagem, uma espécie de mulas arrastadas por mim, e não eu por elas. Voltou,
em seguida, com uma jarra de água límpida e, ao retirar-se, trancou a porta
que dava para o pátio.

Quando tive necessidade de ir aos fundos, considerei prudente não


introduzir-me sozinho através da casa. Aguardei ainda, para ver se a escrava
reaparecia, enviada ou de vontade própria, de qualquer maneira em
cumprimento de uma ação cortês comum com um recém-chegado.
Não se produziu tal cortesia dentro do tempo que eu podia esperar sem
causar incômodo a mim mesmo. Agitei a sineta. As paredes absorviam o som
sem suscitar nada no exterior.
Mais forte. Um silêncio sustentado, regular e distante.
Com maior império ainda.
Uns ligeiros passos na rua — nascentes, máximos diante da porta, em
diminuição, diminuindo até não se saber mais deles — ressaltaram a falta de
barulhos humanos no interior da casa.
Abri para a rua. Ainda não era de noite. Não podiam já se ter recolhido.
Sacudi a sineta, por três vezes seguidas, atrás da porta da antiga
antecâmara. Longa, espaçadamente.
Alguns pássaros, muito poucos já, piavam nas árvores do pátio.
Franqueei, pois, a porta, e, sem desgrudar-me muito dela, fiquei no
pátio, meio por fazer-me visível, meio por espreitar.
Um coelho assomava a cabeça por entre umas plantas — talvez desde
um tempo atrás — e a furtou rapidamente ao meu olhar. Uma galinha
inspecionava de forma esmerada o chão e lançava bicadas como de tesoura.
Fora esses dois bichinhos, nada se moveu diante de minha presença.
Tudo estava quieto: as plantas, a tarde, e eu; menos a galinha,
indiferente.
Ia dar uns gritos. Pareceu-me demais para esse ambiente. Lembrei que a
sineta permanecia na minha mão. Olhei ao redor.
Em um quarto afastado, no final da galeria que corria em frente, da
semipenumbra crepuscular e através dos vidros opacos, olhava-me,
impassível, uma jovem.
Contive o movimento que já dava para a sineta. Fui falar. As palavras
vinham na minha boca e com elas um impulso para que a minha mão as
acompanhasse em ademão cavalheiresco. Mas não saíram e a minha mão
permaneceu caída. Nada convidava a falar, a cumprimentar-se. Teria sido
como estragar alguma coisa.
Retirei-me, confundido, fechando a porta atrás de mim.
Permaneci sentado, calculando o nascimento da noite, a fim de passar,
encoberto por ela, aos fundos.

Decidi fazer nada mais do que duas refeições e que uma delas fosse a
conveniente colação com Soledo. Em vez de café-da-manhã, mate; de tarde,
mate.
Mas de manhã ninguém bateu na minha porta com oferta de mate, nem de
uma chaleira com água caldeada. Ao dirigir-me aos fundos, descobri a
cozinha.
Não tinha a vida que, dela, costuma comunicar-se ao resto da casa, em
todas as casas, com a presença do sol e antes ainda.
Atrevi-me a pisar o umbral. Estava abandonada, sem lume nos
fogareiros, escassas as vasilhas e ainda esburacadas as demais.
Sem nada para que fizesse exercício o meu estômago, passei ao
escritório.
Sem aplicar-me em raciocinar, compreendi que Manuel Fernández era
homem de fiar, que não estaria inteiramente do meu lado, mas mais do que
em prol do governador, sim.
Como primeira missão em sua carreira de secretário do assessor
letrado, encarreguei-o de vigiar o pergaminho que pedia por mim até vê-lo
embarcado.
Subentendia-se que eu depositava maior confiança nele do que na
conduta do governador. Sei que me agradeceu por isso, dentro de si, sem
permitir-se fazê-lo transcender.

Se de noite e tão de manhã em torno dos meus aposentos ficava estabelecido


o vazio, hora de pedir a refeição leve e, conseqüentemente barata ou
gratuita, era a do almoço.
Desembaracei-me da timidez e fui ao pátio a dar canto e chamadas de
sinetas.
De algum corredor que eu não distinguia, na primeira parte da galeria,
zona aproximada da sala e da janela onde descobri a mulher branca, emergiu
uma moça morena, vindo na minha direção.
Estava triste, como uma pessoa vexada que já se resignou.
Não era a que me atendeu na minha chegada. Perguntei-lhe por aquela.
— Sumala? — perguntou-me por sua vez.
— Não sei — disse. — Parecia da África, talvez do Brasil.
— Sim, Sumala — confirmou com um suspiro. — Agora sou eu.
Era-me indiferente que fosse Sumala ou ela quem estivesse para
atender-me; no entanto, alguma coisa me instou a perguntar sobre Sumala.
— Morreu — declarou-me.
Um pedaço de carvão se havia acendido em minhas mãos.
Quis desprender-me de Sumala, essa mulher vigorosa que me serviu
uma vez, e possivelmente morreu a alguns passos de mim. Pensei que podia
ser interpretado sem esforço aquele silêncio da tarde anterior e o abandono
da cozinha.
A moça morena se ofereceu para servir-me. Com a mão, indiquei
vagamente que não precisava dela. Ela fez uma reverência para retirar-se e
lembrei que eu mesmo havia chamado com a sineta.
Pedi água. Uma garrafa cheia.

Comi na pousada, o almoço e o jantar. Pediria a colação no meio-dia


seguinte.

Tora, a morena, era serviçal. Grande de corpo, parecia forçuda, obstinada e


torpe. Talvez desses atributos derivasse seu apelido. Torpe, pelo menos,
pareceu-me quando de manhã, obediente ao meu chamado, pude pedir-lhe
água quente para cevar o mate, ela disse que sim e podia-se pensar que não,
que não me entendera, porque não regressava.
Assomei-me ao pátio, domínio, segundo o aspecto, dos pássaros e de
algumas errantes aves de cercado. Tora vinha de novo da parte anterior da
galeria, chaleira na mão.
Vê-la com essa procedência me deu como uma apreensão, é provável
que uma apreensão estúpida, mas tal e qual se todos tivessem se retraído
diante da minha presença concentrando-se em um quarto. Todos ali: o
maduro hospedeiro, a filha, o mulato e Tora. Talvez, também, o corpo
exânime de Sumala. Em um canto, o fogo onde cozinhavam seus guisados.
Interroguei Tora. Por que trazia a água dos quartos e não da cozinha.
— Vive-se lá, Vossa Mercê — disse, estranhando a minha pergunta, e
mostrava com um dedo e com o braço todo. Essa era a explicação, que
ampliou sem que me custasse esforço. A casa se estendia em outro corpo;
esse outro corpo se comunicava com o meu pátio mediante um corredor.
Nada mais que isto havia então, e nada de suspeito para urdir intrigas.
Minha fácil conformidade me fez supor que eu não observei atos
mortuários, nem soube da saída do cadáver, porque tudo ocorrera na outra
parte do edifício.
A refeição leve, ao meio-dia, foi tão leve que parecia isenta de peso; uma
rabanada de queijo e outra de chipá, o pão de mandioca. Por vinho, mate.
De tarde, conseqüentemente, tive agonias de estômago que me levaram
cedo para a pousada, onde os vizinhos de mesa conheceram a fraqueza do
meu almoço pelo barulho das tripas.
— Pururú — disse um e outro sorriu, assentindo, confiados os dois em
minha suposta ignorância do vocábulo indígena.
Embora o desconhecesse, pururú faziam elas, lá dentro, e eu as
entendia.

No dia seguinte, dei a volta por cima, fazendo a refeição forte no almoço. A
fome com o sono se apaga, disse-me, prevendo o jantar insuficiente que Tora
me traria.
Acertei em cheio as proporções da comida, embora não a dissimulação
que podia lhe prestar o repouso noturno. Dormi bem por duas horas ou mais;
depois o apetite voltou tão brioso que me fez despertar com o império de
uma ordem ou de um grito.
Bebi um copo d’água. O protesto adormeceu e pude repousar de novo.
Mas só alguns minutos.
Vela na mão, fui à cozinha abandonada. Acendi o fogo. Procurei a minha
chaleira e preparei um mate.
Sorvi-o devagar, sentado na banqueta diante da porta da cozinha.
Era a hora secreta do céu: quando mais refulge, porque os seres
humanos dormem e nenhum o olha.
Tão desanuviado como o universo celeste estava eu.
Pensei em Marta, sem pena.
O passado era um caderninho de notas que se me extraviou.

28
O sol estava . Eu também.
O rancho de Emilia se achava com outros que, vistos em conjunto, por
cima da altura dos telhados, pareciam ter caído, esparramados, como dados
saídos sem lei de um copo de jogo. Eu o olhava mais de cima, de um
barranco próximo, que não se podia dizer que cortava a rua, porque rua
traçada não havia, mas interferia a linha ideal que se podia traçar a partir da
porta do rancho.
Esperava, tranqüilo, ver o meu filho. Tinha resguardo de sombra e, de
assento, um toco vetusto. Fumava.
Eu supunha que o pequeno ia sair como da última vez que o tive diante
de mim, arrastando-se, fascinado pelo movimento amarelo de um patinho
novo ou pelo resplendor de algum fragmento de vidro. Chegaria até ele,
gostaria de reter o brilho do vidro, bateria uma e outra vez nele com a
mãozinha até fazer um talho. Então irromperiam o sangue e seu pranto. Eu
esperava presenciar tudo isso. Esperava seu choro, não porque desejasse seu
sofrimento, mas para senti-lo vivo, audível.
Ele não aparecia, no entanto.
Transcorrido um tempo, uma hora ou mais, a mãe saiu carregada com um
tacho de restos. Jogou-os para as galinhas, que se atiraram sobre eles,
lutando para engoli-los. Mas os cachorros que faziam a sesta também
queriam sua parte e desafiaram as bicadas para chegar às sobras. De nada
lhes valeu o risco: eram cascas de vegetais, nada de carne.
Isto supus, vendo que voltavam sem mastigar, sem um osso entre as
mandíbulas.
Emilia arcava com o meu filho e com a miséria. Entendi isso
claramente, embora sem remorsos.
A criança continuava lá dentro, possivelmente adormecida. Pensei que
era melhor assim. Uma galinha famélica, em transe de procurar sustento,
tanto mete o bico nas descarnaduras de um osso de vaca como no olho de
uma criança, se esta está sozinha e indefesa pelo chão.
Levantei-me do toco. Nesse instante, Emilia assomava de novo pela
porta da cozinha. Mesmo que à distância, advertiu o movimento. Colocou a
mão sobre os olhos, como um anteparo. Reconheceu-me, talvez, porque
jogou mais lixo no pátio, introduziu-se na cozinha e trancou a porta.
Regressei a passo lento. Fumava. Almoçara em abundância.
A caixa de latão estava vazia. Na algibeira, guardava o suficiente para
pagar dez refeições. O dono da pousada não trazia a caçarola se não visse na
mesa as moedas, que eu depositava cuidadosamente, ao sentar-me.

Retirei-me cedo, alto mas inválido o Sol, como em toda a jornada.


Coloquei sobre a mesa uns livros, alguns abertos. Agitei a sineta.
Tora apareceu, para saber de minhas necessidades, e depois me trouxe
um ovo quente, com uma fatia de chipá.
Comi-a com gosto; mas o ovo, depois de uns minutos, deixa na boca
essa lembrança que preferiríamos não ter. Para não tê-la e beber alguma
coisa, peguei a chaleira e saí para o pátio, para ir à cozinha. Pela galeria da
frente passava uma mulher branca, vestida de verde, com um pente alto na
cabeça, muito séria. Seus pés assentavam sem barulho na lajota.
Desapareceu por onde eu supunha que estava o corredor, no encontro,
sempre escuro, de duas alas do edifício.
Não me viu. Coincidiu tão exatamente seu passo com a minha saída que,
talvez, eu tenha ficado nas suas costas ao deixar o quarto.
Isto pensava eu, sem ter me movido da minha porta, porque esperei até o
final que ela se virasse para mim, para ver seu rosto e ter ocasião de
cumprimentá-la.
Como o pátio recobrara seu ar morto de sempre — que a presença
daquela mulher, devo reconhecer, tampouco conseguiu alterar —, tive a idéia
de assomar-me ao corredor para observar o setor da casa aonde meu
hospedeiro, com manifesta descortesia, nunca me havia levado nem
convidado.
Ia fazê-lo, mas alguma coisa me conteve. Foi nada mais como se a
atmosfera se tivesse posto pesada e limitasse meus movimentos. Percebi
que, apesar de tudo, não estava sozinho.
Olhei para onde soube que devia olhar: atrás da mesma janela de antes,
uma jovem branca me olhava com quietude, sem firmeza, como sem
interesse.
Alguma coisa, a surpresa ou não sei o quê, impedia-me de reagir com
naturalidade. Quando quis assentar-me em mim mesmo, a primeira sensação
foi de deselegância, com a chaleira na mão. Agachei-me para deixá-la no
chão, no canto da porta. Ao levantar-me, a jovem já não estava mais lá.
Então me esforcei para captar rapidamente alguma coisa que havia
visto, e temia que escapasse da minha cabeça sem haver precisado o que era.
Não era alguma coisa palpável ou real. Era... uma ausência. Sim. O que
faltava, atrás dos vidros, era um vestido rosado. A jovem vestia rosa.
A outra mulher, a que um momento antes passou diante de mim, estava
vestida de verde.
Não era, pois, a mesma. Não teve tempo de mudar de roupa.
Encerrei-me em meus aposentos. Desagradava-me a idéia de atravessar
o pátio para ir à cozinha.
Em absoluto merecia ser julgada como acontecimento estranho a
aparição sucessiva de duas mulheres brancas na casa. Soledo me disse que
só havia uma, sua filha. Mas isso foi em determinado dia e posteriormente
bem poderia ter se incorporado outra, com vistas à permanência fixa ou
como mera visita. Podia ser uma ajudante, talvez necessária em virtude da
morte de Sumala.
O raciocínio me procurava conclusões lógicas. No entanto, o episódio
me obcecava como uma imposição desnecessária. Algo de falso, elaborado,
parecia-me que havia em tudo isso. Mais do que em qualquer outra pessoa, o
meu desgosto se fincava no senhor Ignacio, que cortara todo vínculo comigo
desde o dia dos nossos tratos.

Manuel Fernández mostrou condições pelo menos para a metade de sua


secretaria: um bom secretário não só guarda os segredos de seu chefe, como
sabe penetrar nos alheios que podem interessar-lhe.
Vigiou a entrada do pergaminho em uma sacola, o traslado da sacola ao
bergantim, e a recepção e registro, para o rei, por um oficial do barco.
Tomou nota, além disso, de que o barco trouxera um cofre do Tesouro e,
perguntando àqueles que o carregaram, pôde inteirar-se de que era muito
leve, mas isto, disse-me, devia ser porque as moedas fossem de ouro e não
inferiores.
Não eram de ouro e foram para os inferiores. O governador exortou a
nós, que tínhamos mais títulos, a não fomentar falatórios adversos ao rei.
Para isso era necessário que os empregados de menor quantia, os menos
zelosos da honra de Sua Majestade, recebessem o seu. Nós teríamos de
esperar nova remessa.
Ao governador não parecia lesivo pertencer ao genérico nós, porque
possuía bens e rendas próprias dentro da mesma província.

Mas ao dono da pousada transcendeu sem detalhes a notícia de que a casa de


governo ficara endinheirada naquela manhã e quis seu dinheiro, quer dizer, o
meu.
Não compreendia por que alguns haviam sido pagos e outros não, coisa
que tampouco eu pude explicar direito porque, ao fazê-lo, trairia as
diretrizes do governador. Alguns comensais deixavam de mastigar, para
escutar melhor, como se se tratasse de um negócio de Estado ao que se
encontrassem abocados, ainda que mais não fosse, de ouvido. Eu os via na
dependência de minhas palavras e da atitude do dono e me irritava.
O dono da pousada se retirou, resmungando. Explodi em um soco sobre
a madeira e em um “Maldita seja, gente palúrdia!”, que enfureceu o dono da
pousada e o empurrou ao assalto, mas foi contido por dois ou três prudentes
que se interpuseram. Eu bramia, levantando o punho e dizendo-lhe coisas
sobre sua sandice, sem que ninguém se atrevesse a coibir-me nem tivesse o
comedimento de aplacar-me. O sujeito — eu o via degolador de reses,
manchado de sangue — repetia como um resmungão: “Deixai-o comigo!”, e
um homem magro e encurvado lhe dizia: “Assim te condenas, Miguel”. E a
cada “Deixai-o comigo”, outro “Assim te condenas, Miguel”. Dei outro soco
e ele outra arremetida, que os demais refrearam, e parti.
Minha mão doía. Estava trêmulo até as pernas.

O regime da taberna era invariável e mísero; embutidos, carne assada, sopa


de mandioca e pão de mandioca. A taberna era, naturalmente, para beber,
não para fazer as refeições regulares, e quem pretendesse alimentar-se ali
habitualmente pagava sem economia com relação à pousada.
De noite, então, comi matambre, carne assada, pão e sopa de mandioca.
Manuel Fernández se comprazia em demorar uma exígua ração de vinho.
Cumprimentou-me, respeitoso, sem aproximar-se. Chamei-o. Trouxe seu
vinho.
Disse injúrias do dono da pousada. Fernández devia saber por quê.
Disse-me que a razão e a justiça estavam do meu lado.
Com dissimulação, remexeu sob o lado direito de suas vestes. Tirou um
pequeno saquinho, que colocou na mesa, ocultando-o com o chapéu.
Escarafunchou o lado esquerdo; apareceu em sua mão outro saquinho, um
pouco menor, que acompanhou o primeiro.
Levantou um pouco o chapéu, o suficiente para que eu olhasse debaixo.
Disse-me:
— Escolha Vossa Mercê aquele que desejar e preferir.
Olhei-o nos olhos. Estava ébrio.
Peguei o menor. Ele me disse:
— Em paz.
Não entendi o sentido de sua seca afirmação: “Em paz”; mas respondi
que estava de acordo.
— Em paz — repeti.

Em meu quarto, acendi uma vela. Sentei-me à mesa.


Peguei as moedas em dois punhadinhos e abri a palma das mãos. Depois
as fui agrupando em uma só pilha, das maiores para as menores. Três deixei
à parte e as pus sobre o dorso da minha mão direita. A luz da vela batia em
cheio nelas. Eu as contemplava espiando seu inexistente movimento.
Era um rito estúpido. Mas eu precisava olhá-las até não vê-las.
Consegui. Já não pensava nelas, depois de um tempo. Então reapareceu
em volta, com sua umidade e sua noite, o quarto, prolongado em sombras
para trás, para a antecâmara sem móveis.
Apurei dois manotaços, para tapar as moedas, de forma que não fossem
vistas. Uma ficava meio corpo sob o mindinho, duas haviam pulado longe.
Olhei para a antecâmara. Nada podia tapar a quem quer que estivesse
me espiando.
Meu coração pressionava.
Derrubei a cadeira, com estrépito, talvez para afugentar intrusos.
Fui até a porta sem dar as costas. Peguei um ferro, tranca de postigo.
Depois a vela. Com cautela, o ferro a postos, passei à antecâmara.
Ninguém.

29

Era de temer que, por seu empréstimo, Manuel Fernández pretendesse


privilégios ou bem que, encontrando-se sóbrio, se arrependesse de ter me
fornecido quase tanto quanto a metade de seu dinheiro.
Eu estava disposto a resistir a qualquer tentativa de que lhe devolvesse
o seu rápido demais. Não obstante, procedeu naquela manhã com essa
correção indicadora de que o empréstimo foi ontem e lá, a dom Diego de
Zama, e não ao assessor letrado, seu chefe.
Ele sabia dar; eu sabia receber.
Ao meio-dia, convidei-o para que comêssemos juntos na taberna.
Aceitou, com uma palavra de agradecimento. Saímos juntos da casa de
governo.
Na praça, pela qual passávamos, distingui entre as mulheres da feira,
Emilia. Ela não havia reparado em mim.
A seus pés, atadas em junta pelas patas, jaziam quatro galinhas. Com as
galinhas, meu menino.
Fiz sinal a Fernández para que parássemos. Ele não sabia por quê; mas
se ateve à minha indicação. Contemplei a minha criança, sentadinha na terra
vermelha, com vestígios de ter rolado nela e, no entanto, fresco o rosto e
saudável o corpo.
Meu filho.
As galinhas.
Estava claro, então! Daqueles restos que Emilia jogou diante de sua
porta, os cachorros não pegaram nem um osso de ave porque a infeliz mulher
tinha de reservar suas galinhas para a venda, conformando-se com um
alimento de hortaliças e cereais.
Tive o ímpeto de aproximar-me e deixar na sua mão a metade das
minhas moedas.
Mas, disse para mim mesmo, ela vive, e, eu, quem sabe se possa fazê-lo
sem dinheiro.
Precisava comunicar o bom para que não me envenenasse o mal.
Indiquei a Fernández:
— Esse, o deitadinho ali, esse de pele tão clara, é o meu.
O menino, para ele, nascia nesse momento.
— Gosto dele — disse.
Pensei que me formularia alguma amabilidade. Mas permaneceu em
silêncio, observando-o, e não duvido de que também fazendo uma
composição mais completa com o menino, a mãe e as galinhas.
Quis participar-lhe meu orgulho, para que não pensasse demais sobre a
situação da mulher e meu rebento, e lhe disse:
— Será um herói. Vamos.
Arrastei-o atrás de mim.
Seguiu-me, meditabundo.
Em seguida, disse:
— Como saber, desde agora, que será um herói ou que ao menos tentará,
ou que aceitará sê-lo, dada a ocasião?
Desgostava-me essa maneira de falar de Fernández. Procurei mostrar
suficiente autoridade, ao menos autoridade de pai.
— Eu decidi. Será um herói.
Balançou a cabeça, negando, não vitorioso, mas convencido.
— Ninguém pode decidir as ações, as esperanças, nem a totalidade das
possibilidades do outro.
Excitava-me, com suas reflexões negativas e sua tranqüilidade para
pronunciá-las.
Extraí a algibeira. A fiz soar e disse:
— Eu o ajudarei. Já veremos o que há de ser o meu filho, se herói ou
nada.
Era uma fanfarronice e devia pagar por ela.
Na mesa, afastei a metade das moedas. Coloquei-as nas mãos de
Fernández com a incumbência de entregá-las, em meu nome, a Emilia. Ele a
vira essa manhã, sabia quem era. Indiquei-lhe como chegar ao rancho.

À meia-tarde, suspendemos as tarefas do escritório. Fernández derivou para


os pagamentos de Emilia, com minhas moedas. Eu me dirigi aos meus
aposentos.
Faltava desde a manhã.
Passei para o pátio, que estava para mim. Vagaroso, dono, preparei fogo
na cozinha, fervi água e levei a chaleira sob uma planta. Tirei uma banqueta
e, instalado com comodidade, sorvi com prazer o suco cálido e esverdeado.
Olhava distraído para o fundo da galeria. De repente, apareceu Ignacio
Soledo.
Ver-me e retroceder, sem cumprimentar, foi tudo o que fez.
Causou-me indignação. Não podia entender por que se retraía a esse
ponto, privando-me inclusive do cumprimento.
Preferi supor que não tenha me visto e, ao chegar ao pátio, tenha
mudado de propósito, virando-se. Mas me sentia como submetido ao
isolamento, por um desígnio, incompreensível, dele e de sua gente.
Por isso me devolveu a alma a aparição de Tora, harmônica, vital, tanto
que se podia esquecer a escuridão de sua tez vendo-a caminhar.
Trazia-me um bilhetinho, do senhor Ignacio. Aduzia apuros de dinheiro
e me rogava que lhe antecipasse uma porção da importância de minha
hospedagem.
Quer dizer, que havia me visto no pátio, pois do contrário não teria
enviado Tora tão cedo.
Como com vontade de promover desafio, perguntei a Tora por que
Soledo não me dirigia o pedido pessoalmente.
— Meu senhor está de cama — explicou-me a mulher.
— De cama?
— Está doente, Vossa Mercê.
— Desde quando está de cama e desde quando está doente, queres me
dizer?
Eu não podia acreditar nesse argumento e indagava, para que se
desvirtuasse. A escrava me disse com naturalidade que já estava há dois
dias no leito. Procurei fazer com que se enredasse mais em seu embuste:
— Posso visitá-lo?
Titubeou um instante. Em seguida, declarou:
— Delira e grita. É feio de ver.
— Como, então, escreveu este papel?
— Deixou escrito no dia da morte de Sumala.
Sua defesa era correta.
Vacilei, de minha parte, e a essa altura lembrei que havia observado que
Soledo, ao assomar ao pátio, tinha no pescoço uma grossa echarpe, o que,
certamente, não era costume nessa época do ano e com um dia tão forte de
sol. A razão pode estar nos outros, pensei, fazendo a conjectura de que,
possivelmente, o senhor Ignacio escapou da vigilância da filha e das
escravas e tentou sair ao ar livre, abandonando seus planos ao dar comigo.
Se fosse assim, resultava admissível que fugisse ao ver-me, sem sequer
atinar a cumprimentar-me, pois teria me julgado inimigo de seus propósitos.
Talvez por minha abstração, supondo-me em dúvida sobre o conteúdo
do escrito, Tora me disse algo convincente e decisivo. Uma mulher, a quem
ela chamava misiá[4] Lucrecia, entregara-lhe o bilhetinho um momento antes,
com pedido de que eu desse andamento ao pedido, por ser-lhes de extrema
necessidade devido à doença que afligia a seu senhor.
Não perguntei quem era misiá Lucrecia. Dei por sabido que se tratava
da mulher de vestido verde que passou na tarde anterior. Ficava confirmado,
pois, que outra mulher branca encontrava-se na casa, além da filha de
Soledo.
Mais persuadido pela intermediária e seu esclarecimento do que pelo
bilhetinho, entreguei uma soma de minhas moedas que me reduziu de novo a
uma estreita situação.
Pelo menos, pensei enquanto Tora se afastava, paguei teto por um tempo
e Soledo ainda haverá de cuidar-se de pedir-me mais, por este favor do
adiantamento.
Em meio à satisfação e à segurança que me deparavam tais
pensamentos, interpôs-se este outro, saído sem esforço nem advertência de
escuras camadas do meu ser: alguém sabia que desde a noite anterior a
minha algibeira estava mais gorda.
Podia contradizer-me só de lembrar que o recado, segundo Tora, era de
dois dias antes. No entanto, estranhava que até essa tarde não me tivesse
sido apresentado.
Apaguei qualquer impressão que me inspirasse receio ao advertir que
só eu estava a par de quão magros eram meus fundos e, em compensação, os
Soledo estariam convencidos de que era homem de recursos, ao qual parecia
natural dirigir-se a qualquer momento, com a certeza de obter dinheiro sem
dilações e na quantidade pedida.
Dei um chupão no mate, despreocupado, de novo satisfeito de que fosse
confundido com pessoa solvente e necessária.

Do rancho de Emilia, Fernández trouxe ao escritório um semblante triste que


sinalizava, para mim, uma recriminação. Era uma cara condoída, quando me
prestava conta do cumprimento do encargo. Pareceu-me insolência e me
recriminava ter lhe dado tal missão. Mas era meu secretário e alguém tinha
de fazê-lo por mim, já que Emilia estava fora de minhas obrigações e de
meus desejos e, até certo ponto, de minhas necessidades.
Ao meio-dia, perguntei-lhe se almoçaria na taberna, com vontade de que
me dissesse que não. Disse-me que permitisse um convite, de puchero de
galinha, preparado pela mulher que o servia.
Aceitei. Fui ao seu quarto, em uma casa humilde onde mais dois quartos
também estavam arrendados a empregados subalternos.
Enquanto mastigava, veio-me uma suspeita:
— É presente de Emilia?
Ruborizou-se. Disse:
— Não.
Só isso: não. Não acreditei nele. Deixei a presa no prato. Insisti.
— É um obséquio? Ela te deu para que a cozinhasses e me convidasse?
— Não, senhor. É compra.
— Compraste? De quem? De Emilia?
Assentiu com a cabeça, como confessando uma culpa.
— Por quê? Por que dela?
— Para ajudá-la, senhor.
Limpei meus bigodes. Nada tinha que objetar.
Continuei mascando, muito calado. Depois lhe disse que eu não poderia
ajudá-la mais até que chegasse dinheiro da Espanha ou do Peru. Contei-lhe
como investira pouco menos que a totalidade do resto de meu cabedal.
Nada comentou Fernández.
Depois de um tempo, perguntou-me, como perguntando a si mesmo:
— O que vamos fazer...?
— A troco do quê vem agora esse o que vamos fazer?
— Senhor, também eu fiquei sem nenhum. Quanto havia na minha
algibeira, gastei ontem à noite em vinho.
— Vinho! Tudo só para ti?
— Não, senhor. Fiz um convite geral.
— Foi isso o que fizeste? — eu o recriminava como se tivesse me
enganado.
Ele estava extremamente envergonhado. Ainda lhe restava o que
confessar.
— Depois fiz mais uma coisa.
— Mais uma coisa? E o quê? Pode-se saber? Anda, diz.
— Fiz o convite geral e mais tarde...
— Sim, diz.
— Fiz outro convite geral.
Contemplei-o como se nesse momento o descobrisse. Fernández podia
ser meu filho ou o filho, um filho bom, de qualquer homem de bem.
Comi uma batata e comecei a beber o caldo. Ele não comia. Animei-o,
ajudando o gesto com a colher, para que me seguisse. Esse caldo, essa
comida presente merecia atenção; não mais o ocorrido, irreparável.
Com um esforço, tímido, como dizendo pode ser que entre, disse-me
ainda:
— Senhor doutor... isso não é tudo.
Não levei muito em conta suas palavras. Sem cessar nos goles de caldo
gorduroso, repliquei:
— Sim, sim. Já sei. Depois do primeiro convite geral e do segundo
convite geral houve um terceiro convite geral.
— Não, senhor. Não é isso. — Recobrava sua austera serenidade.
— Bem. O que há? — disse-lhe, olhando-o nos olhos.
— Quando perguntei o que vamos fazer, estava me perguntando o que
vamos fazer pela senhora.
— Qual senhora?
— Perdão: a senhora Emilia.
— E que interesses tens com ela?
Fernández fez um gesto e ademão de defesa, de negar que possuísse
qualquer interesse de ordem pessoal.
— O que vamos fazer? — retomei a palavra. — Nada. Nem tu nem eu,
nada. Nada podemos.
Fernández disse:
— É verdade, nada.
E abandonou-se, tão rápido como era impossível imaginar quando
propôs o assunto tão alheio à sua incumbência.
Com Fernández fingia ser bravo. Fernández simulava ceder.

30

Era isolada assim a edificação por aqueles extremos da cidade: entre a


última casa e a do senhor Ignacio, acima de cinqüenta varas; para o outro
extremo e para trás, não menos de trinta até dar com paredes habitadas; em
frente, cara a cara, com espaço nada mais do que para a passagem das
carruagens e dos animais, uma, duas, três casas, alinhadas com pulcritude.
Nem portas nem janelas tiravam hermetismo ao conjunto parelho das
três casas, porque normalmente permaneciam fechadas. Somente por uma
dessas janelas, baixa e larga, olhava-se o mundo. Quase raspava o chão.
Uma mulher sentada no quarto podia olhar para o exterior e ser vista até a
metade do corpo.
Uma mulher estava sentada, de tarde, quando eu voltava, e me olhava
com porfia, olhos de expectativa. Eu a olhava um momento, quase para
constatar que de novo se instalara ali, e depois apalpava os meus bolsos,
procurava na cinta a chave, ocupava-me, para desviar-me dela.
Era uma mulher com mais idade do que quarenta anos, de cabelo preto,
duro e frisado a curtos intervalos. A melena, talvez sem preparativo algum,
caía-lhe de cima em linha oblíqua abrindo-se para os lados, como se
evitasse o contato da cara, que ninguém podia desejar.

— Tora, quem é essa senhora que se senta todas as tardes junto à janela?
— Sempre fez isso.
— Não estou te perguntando desde quando o faz, mas quem é.
— Sempre se assoma. Desde que nasci.
— E tens lembranças desde que nasceu?
— Desde antes, Vossa Mercê.
— Estás me gozando, Tora?
— Como poderia, Vossa Mercê?
Desnudou o braço até mais acima do cotovelo. Mostrou-me um antigo e
cicatrizado ferimento na carne.
— Tenho outros no corpo. Nasci com eles. Um branco, irritado, quis
matar a minha mãe com uma corrente. Eu estava dentro da minha mãe; não
havia nascido.
— E lembras disso?
— Sim, Vossa Mercê.

Tora me disse que essa mulher devia ter se retirado a um convento, porque
nenhum homem a tomou por esposa no devido tempo, mas não o fez. Seus
pais morreram. Depois, fugazmente, alojava-se na casa um cavalheiro,
suposto irmão, que vinha do interior.
Acabaram as referências de Tora. Devia saber mais, mas não podia
dizer-me todas sem esforço de memória. Por isso, talvez, fez esta
observação:
— Não é mais rica do que o meu senhor.
— E o teu senhor é rico?
— Não, é pobre.
Ao dizê-lo, lembrou ainda: o senhor Ignacio pretendeu remediar a
solidão da vizinha. Aconselhou-a que vendesse a casa e passasse a viver na
sua. Isso já faz muito tempo. A mulher se incomodou com a proposta e dom
Ignacio disse que pretendia conservar casa própria para receber com
comodidade a esse indivíduo que antes de morrer os pais ninguém conhecia
como irmão. Desde então, não existiam relações entre as duas famílias.
Por curiosidade de saber se na realidade Soledo traiu com aquele plano
algum desígnio secreto de homem sem mulher, perguntei:
— Isso que estás me contando aconteceu antes da morte da tua senhora?
Tora não estava surpresa ao dizer-me:
— A minha senhora não morreu.
Tomei como natural minha ignorância. Pretendeu continuar falando da
mulher que olhava a rua. Não deixei.
— Onde mora a tua senhora? Onde está?
A partir dessa resposta, Tora falou como se defendendo de uma
acusação, alarmada com o meu excitado interesse:
— Está aqui, Vossa Mercê. A senhora está na própria casa.
— É a mulher que chegou agora?
— Não chegou nenhuma mulher, Vossa Mercê.
— Como não! Por acaso não é a mulher que há dois dias estava vestida
de verde?
— Não sei, Vossa Mercê. Talvez não.
— Mas, pode ser?
— Sim, Vossa Mercê, pode ser.
— E a outra, então? Quem é a outra, a mulher jovem?
Tora me passou, com o olhar, sua acusação de sacrilégio:
— Vossa Mercê, Sumala morreu. O corpo de Sumala está na terra.
Mordi-me. Não devia continuar falando com Tora dessa questão
complexa e delicada.
Meus sentidos me diziam que na casa havia duas mulheres brancas. A
escrava afirmava — sem malícia, acredito — que era uma só e não filha,
mas esposa do senhor Ignacio.
Mentiras, mentiras, disse a mim mesmo, desgostoso e impotente. Casa
de embustes e de embusteiros.
Se fosse gozação, era excessiva.

Ausente Tora, quis fazer o que nunca fazia: ler, escrever alguma carta. Disse-
me que devia fazê-lo, consagrar meu tempo a alguma coisa de meu direto
interesse, e não a situações confusas de um lar que não era o meu.
Não obstante, o pátio me chamava. Peguei um livro, abrindo-o em
qualquer página.
O pátio chamava, chamava.
Não me importava o que lia. Não o entendia. Pensei que era a primeira
vez na minha vida que estava com esse livro. Não precisei constatar o
contrário: era um manual de leis muito usado por mim, a vida toda. É que o
pátio chamava!
E eu sabia que não estava atrás da porta, mas em mim, e que ganharia
vigência real só quando eu estivesse nele.
Saí. Era um alívio. Ali estava, com seus galhos sujos de branco pelos
pássaros, com suas luzes cinza do crepúsculo. Lá, ao fundo, na galeria, com
as alvas mãos cruzadas sobre sua ampla saia, de pé, sem, ao que parece,
nenhum sentimento, nenhuma ansiedade que a agitasse, estava a jovem.
Olhava-me.
Olhou-me um instante e se virou, correta e suave, para o corredor em
sombras. Um instante mais e já não estava lá.
Corri para o canto sombrio onde, segundo minhas presunções, abria-se
o corredor. Nesse lugar escuro não havia mais do que o encontro de duas
paredes, bem para dentro do beiral e, por isso, sempre sem luz.
Olhei para o pátio, desassossegado. Desejava que o dia não terminasse
rápido demais. Devia falar com Soledo, mas antes procurar por minha conta,
constatar, para que esse homem reservado até o desespero não me enganasse.
Percorri a parede alguns passos pela galeria norte.
Cheguei a uma porta que me era conhecida, pois correspondia à sala
onde me recebeu Soledo. As possibilidades eram mínimas; em não mais de
cinco metros por uma ou outra galeria devia estar o corredor. Era o único
setor que eu distinguia com clareza em seus detalhes a partir dos lugares do
pátio que antes não tentei exceder.
Os cinco metros da segunda galeria, até onde a luz dava em cheio, não
tinham mais do que uma porta fechada, inconfundível com a que seria
própria em um corredor, se é que alguém tinha vontade de colocar porta em
um corredor.
Depois desta porta, seguindo pela galeria defronte à ala onde se
achavam localizados os meus aposentos, abria-se uma janela. Detrás de seus
vidros vi duas vezes a jovem.
Estava aberta. Olhei, sem prudência. Dava para um quarto vazio, como
rota para o fundo, porque lhe faltava a porta na parede posterior. Mais
adiante, podia presumir-se um pátio ou um jardim, com plantas altas.
Impossível decifrá-lo, porque anoitecia. As sombras caíam em seu interior
como teias de aranha impregnadas de fuligem. Olhei para cima, como para
ver quem as soltava. Aquele quarto não tinha teto.
Então compreendi. Toda a ala do edifício encontrava-se abandonada.
Por alguma das portas, possivelmente a que deixei atrás, podia-se passar ao
outro corpo da casa.
Virei-me. Experimentei a porta. Suas dobradiças estavam secas e
descuidadas. Faziam barulho de ratazanas, mas mantinham a obediência. A
porta franqueava o acesso a outro quarto oco, sem teto.
Passei por ela.
Um vigoroso jardim de vegetação opaca. Pela frente, era fechado por
uma ala com galeria, adormecida. Em frente, outro setor alinhado de quartos,
com seres humanos capazes, para meu alívio, de acender candelabros e fazer
sob sua luz uma costura, um testamento, amor ou a morte.
Minha expedição não devia adiantar nem uma vara mais de terreno.
Tranquei a porta por fora, cuidando de deixar tão juntas as folhas como
as havia encontrado.
Já não precisava de explicações de Soledo e me aborrecia pensar em
uma conversa com ele.
Ao passar, observei a janela.
Uma mulher, às vezes, vinha a ela. Instalava-se no quarto vazio e me
dirigia seus olhares.

Em meu quarto, notei abertamente a noite, pelas amassadas trevas, a umidade


e as exigências do meu estômago.
Agitei a sineta, a porta aberta primeiro, no pátio em seguida.
A esterilidade do som me convenceu de que, na verdade, passara em
excesso o tempo de pedir refeições leves.
Mas isto e o pensamento de como vinham reduzidas as rações me
levaram a um terreno de reflexões irritantes. Se me atendia duas de cada três
vezes que chamava, mal e tarde, essa mulher não me queria bem, não tentava
comigo sequer essa aproximação que sugere um confeito, um prato de
comida abundante ou disposto com graça, nada. Talvez as colações fossem
controladas pelo marido ou ficavam a critério e manha da escrava. Talvez
ela não tivesse mando suficiente. Este era, segundo minhas conjecturas, o nó:
uma mulher extremamente inferior em idade ao esposo, limitada pela
autoridade, inclusive a sovinice deste, muito possivelmente também, pelos
ciúmes.
Apesar do aceitável dessa hipótese, veio-me um lampejo de dúvida,
porque quando pude vê-la mais próxima, na ocasião em que passava pela
galeria, produziu-me a sensação de ver uma mulher madura, de quarenta anos
ou mais, embora não tivesse a idade do marido. Não entendia por que, então,
em seu mirante dos vidros e ainda essa tarde, de pé na galeria, pude
acreditar que transcendiam dela não só os encantos dos anos de mocidade,
mas também o recato de uma adolescente e até o ar compungido e resignado
de uma jovem enclaustrada prematuramente, contra sua vontade.

Fernández me convidou para um peixe, em seu quarto.


Franzi o nariz justamente como se me desse nele o fedor. Franzi porque
na província é comida inferior e os nativos dizem pirá, peixe, e cospem.
Franzi além disso porque a reiteração em dar-me de comer me pareceu
bondade dissimulada de Emilia.
Disse a Fernández:
— O teu peixe é de Emilia. Que eu saiba, Emilia não vende nem cria
peixes; mas pode adquiri-los.
Fernández sorriu com o jeito de quem cumpriu uma boa ação sem
esperar recompensa e se torna objeto não só da ingratidão, como da torpeza
do beneficiado.
Dois indícios me mostrou em seu corpo: azuis olheiras que lhe caíam
com largueza até os pômulos e a ferida de uma evidente dentada em três
dedos da mão esquerda.
Passara a noite pescando. Subtraiu-se à taberna pelo arroio e pelo
sustento, afinal de contas o seu sustento e o meu. Por algo mais, talvez.
Quando ficamos diante da enorme travessa, eu disse: “É muito e bom”, e
perguntei: “Mas, é tudo?”.
Fernández confessou que não. Entregara a metade da pesca à Emilia.

A mulher vespertina, essa espécie de guardiã da rua, sofria em seu posto,


vendo-me chegar. Ignoro se lançava seu olhar para mim para entregar-me ou
apanhar alguma coisa.
Pareceu-me gracioso o lance.
Com dissimulação, verifiquei que a vida humana, naquele lugar, parecia
quase extinta. Era a crosta da Lua com quatro casas, um homem que
caminhava entre elas e uma mulher de voz desconhecida pronta para soltar
sinais com os dedos, com os braços, com sua agitação, talvez.
Em vez de dobrar do meio da rua para a minha casa, o fiz em direção à
sua. Conheci que isso desejava, pelo seu rosto, que, no mesmo instante, se
me figurou mais cheio de carnes flácidas, macio, do que na realidade estava.
Teria dado, no máximo, dois passos mais quando a vi levar as mãos à
boca, com horror, e compreendi de repente que o perigo me acossava.
Olhei para trás.
Um cavalo vinha para cima de mim. O ginete rasgava sua boca aos
puxões, para desviá-lo, e, quase sobre mim, o bruto rodopiou e fiquei a
salvo.
O chão, ali, é de terra vermelha, com base pouco menos que
inconsistente. Aberto, quase despovoado, era o lugar pista plana para os
ginetes e carruagens que emergiam da aglomeração. O transeunte não podia
escutá-los até tê-los sobre ele, se caminhava muito distraído. Quase cabia
dizer que mais os anunciava à distância a poeira levantada do que o barulho.
Tomei o episódio como uma advertência de males. Afastei-me então do
caminho que já levava em retidão para a mulher e sua janela.

Era cedo e eu descansava.


Preparei mate e pude desfrutar, no pátio, a formação do crepúsculo.
Distantes, escutei batidas de chamar sobre uma porta. Não me
concerniam: eram vozes de periferia.
Repetiram-se. Prestei atenção e localizei o rumo.
Pela terceira vez. Era a minha porta. Nunca ninguém havia batido por
mim naquela casa.
Antes de sair, compus a vestimenta e penteei a barba.
Abri.
Era uma menininha, uma mulatinha de oito a dez anos. Dava prazer vê-
la, tão criança, estranhamente asseadinha, com um sobressalto que lhe saía
pelos olhos, como se tivesse defraudado sua esperança de que pessoa
alguma acudisse ao chamado.
Com simpatia, perguntei-lhe a quem procurava e tentou se explicar, mas
levantou umas duas vezes o braço como para impulsionar as palavras
necessárias e estas não saíram.
Então tratou de colocar nas minhas mãos um papelzinho com tal torpeza
e pressa que caiu no chão. A pequena não reparou nisso, pois certamente
considerava cumprida sua missão; começou a correr e passou para a rua.
Entrou na casa da mulher janeleira.
O papelzinho aos meus pés ganhou significado. Continha duas breves
linhas, duas perguntas: se podia ajudar-me e se eu aceitava o diálogo por
escrito.
Resultava risível. Essa mulher sugeria uma casta de relação própria de
adolescentes e enamorados.
Devolvi-me ao mate, pretendendo gozá-lo simultaneamente com o riso
interior que me dava essa aventura que não busquei.
Dizia-me: não, não; e pensava que, pretender-me, era excessiva
pretensão sua.
Imaginava Tora, mulher plena, grata de ver, levando às escondidas
bilhetinhos a essa fofa e involuntária celibatária, e era tal a diversão que a
cena me causava que lamentei não ter companheiro próximo para festejá-la.
No entanto, acredito, exagerava em um só sentido para encobrir tudo
quanto a primeira pergunta removera de minha vida precedente.
De novo alguém me oferecia ajuda. Outra mulher se sentia autorizada a
dispensar-me proteção. Eu era, pois, um visível homem frágil.
Não se tratava disso somente. É que insinuava reprodução da urdidura
de Luciana, aquele trâmite afanoso que houve de naufragar, não sei, porque
passou a ser para mim como um parente desaparecido. Luciana e sua gestão
se reproduziam com aquele bilhete, mas já, meramente, como um simulacro,
uma burla do tempo através dessa fealdade que me procurava.
Como em outras oportunidades, toda uma massa de reflexões lógicas
ficou deslocada por uma intuição que apareceu sem anunciar-se, legível,
nítida: essa mulher queria ajudar-me com dinheiro.
Pensei se devia aceitar ou não. Indaguei a causa de tal vacilação. Não
era por escrúpulo, não. Já não. Vacilava porque, desde a provisão de meus
conhecimentos, Tora me advertia que essa mulher não era mais rica do que o
seu senhor, sendo o senhor pobre.
Compreendi que a minha conduta devia ater-se às perspectivas do
presente, sem queixas nem freios de minha vida anterior.
A opção por essa mulher, no entanto, não prometia maiores benefícios.
E este pressuposto afirmava a decisão inicial do pronunciamento pelo não.
O último mainumbig depôs seu silente e absorto esvoaçar diante das
flores e soube então que era preciso ceder lugar à noite no jardim.
Não consegui acender o candeeiro do meu quarto. Ternos dedos davam
contra a porta.
A mulatinha, mais escura na rua escura, permanecia calada, olhando-me
com o sofrimento daquele que não se resolve e o apressam.
Procurei ajudá-la:
— Estás me trazendo outro recado?
Inclinou a cabeça, sem responder. Olhava para os seus pés nus e não
podia tê-los quietos.
Não era isso. Perguntei-lhe então:
— Para que vieste?
Mas tive de repetir a pergunta, porque de uma só vez não se decidiu.
— Por que vieste? Para quê? Anda. Diz.
— Não sei. Ela me mandou.
Uma vozinha tímida, que dava por subentendido quem era ela.
A mulher olhadora não suportava demora na correspondência. Pedia
resposta.
Indiquei para a pequena “Espere” e fui à minha mesa. Acendi a luz.
Procurei papel, pena, tinta... Mas ignorava o que ia escrever.
Duvidava entre uma longa epístola dilatória que, não obstante,
entretivesse desejos, caso me visse precisado a solicitar seu apoio, e umas
linhas lacônicas e expressivas como as recebidas, desenganando-a.
Olhei para ver se a menina tinha ido embora, livrando-me da obrigação
imediata. Ali permanecia, submissa e frágil, com sua pouca vida servindo,
sem saber, às avidezes sensuais de uma mulher malograda.
Concretamente, tive a resposta na cabeça. Ela perguntava se podia
prestar-me ajuda e se aceitava relação mediante missivas. Para responder às
duas perguntas bastava uma palavra: não.
Pus: sim.

Entregue o papel e fechada a porta, voltei à minha mesa. Jogara com tal
pressa a pena, como para evitar que o arrependimento viesse com a demora,
que manchei com tinta alguns de meus papéis brancos.
Observei as gotas escuras, ainda frescas.
A frio, muito consciente do que fazia, esmaguei-as, enchendo minha mão
de tinta e de salpicaduras outros papéis. Queria estender a sujeira, que tudo
estivesse sujo.
Sopesei a algibeira; restavam algumas moedinhas. Eram suficientes.
Saí à procura de mulher.

31

Algibeira e estômago , ative-me ao convite de Manuel Fernández que,


sobre a hora do almoço, ainda não se produzira.
Conseqüentemente, insinuei-me:
— Descansaste, vê-se. Não tens olheiras.
— Sim, senhor doutor. Dormi a valer.
— Então, ontem à noite não houve pesca.
— Não, senhor doutor.
— E já se decompôs o que pescaste anteontem à noite?
— Sim, senhor doutor. Já ontem nada do que havia sobrado podia ser
cozinhado para o jantar.
Segundo as aparências, não prosperava com minha indignação.
Continuamos aplicados aos papéis.
Como não podia comer, não me apressei a levantar-me do trabalho.
Mas Fernández, tomando uma liberdade que em circunstâncias diversas
teria castigado, disse-me:
— Senhor doutor, acredito que está na hora.
— Hora?... Hora de quê?
— De comer. Espera-nos um guisado de galinha.
Para dissimular o contentamento, disse:
— Outra vez galinha? Estás dispendioso, Manuel.
— Senhor, desta vez é de presente.
— Posso saber de quem?
— Sim, senhor doutor. É da senhora.
— Da senhora Emilia, queres dizer?...
— Sim, senhor doutor. Da senhora Emilia.
Não averigüei mais.
Fomos comer.

Para não falar da galinha, na refeição procurei como assunto a composição


daquele livro que nos relacionou. Perguntei a Fernández por ele, de sua
natureza, que eu ignorava, ainda que tendo lido uma página, porque não a
entendi, e de seus progressos, pois suspeitava que o tinha relegado, alerta
como estava de que não lhe convinha gastar tinta e tempo de escritório para
escrevê-lo.
Deixou que estendesse com abundância as perguntas, tal e como se eu as
descarregasse sobre ele e tivessem peso que concordava em suportar como
um castigo.
Depois, contrito, declarou-me:
— Dei para um velho. Não sei quem é nem de onde vinha. Queixava-se
na taberna do atraso do barco, que o reteve três semanas na cidade, e nas
três semanas não pôde dar com um livro, a não ser de assuntos religiosos. Eu
tinha o meu, os sete cadernos já compostos, no banco, ao meu lado.
Perguntei-lhe se gostaria de lê-los. Revisou-os. Respondeu que sim, mas que
lhe faltaria tempo, pois devia partir rápido demais. Disse-lhe que eram seus,
que podia levá-los para sempre e dispor deles.
— Como pudeste fazer isso? A investigação te atemorizou a tal ponto ou
foi o governador que mandou que te desfizesses de tua obra?
— Não, de maneira alguma. Isso aconteceu mais tarde. Posso lhe dizer
quando.
— Quando?
— No dia em que levei seu dinheiro para a senhora Emilia.

Fernández estava afastando-me, até certo ponto. Eu não podia considerar-me


avisado, embora necessitasse compartilhar sua mesa.
Talvez não me importasse o que pretendia sugerir-me.

Incorporou-se a mim, não obstante, um incômodo por causa de Fernández,


que era como se o tivesse dentro de meu corpo.
Para desembaraçar-me dele, da necessidade dele, decidi aplicar-me
com um galanteio exigente à mulher da janela.
Lá estava ela, atrás dos vidros, quando transpunha eu a rua e dei com o
plano de chamar à sua porta e falar com ela, mas, vendo-a mais de perto, não
pude.
Ao ir fechar o meu quarto, que ela parecia ver como o cofre de suas
bem-aventuranças, fiz ademane de mandar-lhe, pelos ares, um beijo.
Uma hora depois, ou pouco mais, a mulatinha me trazia duas cartas.
A primeira se encobria de circunspecção, mas destilava férrea fé de que
eu já estava em suas mãos. Reclamava que lhe dissesse como poderia ser-me
útil, muito a par, ao que parece, das razões capazes de mobilizar-me. No
parágrafo seguinte, vinha o que tomei como cobrança desses favores
prometidos e era seu tom protetor, persuadida de não se achar exposta a
sofrer rechaço, ainda que introduzindo-se em minhas intimidades. Dizia que
cuidaria de mim com zelo, com olhos abertos, nessa casa malsã, e que ela se
ocuparia de manter-me alerta. Pensei que aludia à umidade do quarto e,
sobretudo, da antecâmara.
Esta epístola parecia anterior à minha pantomima amorosa. Seguia-lhe
essa segunda que, sem dúvida, absorveu a hora imediata à minha chegada.
Era a carta de uma enamorada com as essências do primeiro beijo ainda
sobre os lábios.
Essas cartas representavam para mim uma complicação necessária. Li-
as de enfiada, como para inteirar-me do curso de uma negociação, e fiz dos
papéis cinza e do conteúdo memória de arquivo, guardada para a ocasião
precisa.
Outra sorte há de ter imaginado minha enamorada para suas mensagens,
porque passado um tempo que terá acreditado suficiente a fim de que eu
escrevesse a minha resposta, mandou por ela, com a presença muda,
fartamente persuasiva, da criança.
Fiz algumas linhas: “Tenho a cabeça partida de dor. Amanhã escreverei
com a extensão que devo e o apaixonamento que me possui”.
Logo depois, estava a mensageira novamente diante da porta.
Não abri. Temia um remédio caseiro.

Por não escutar o persistente chamado da mulatinha, menos que por


mandados do estômago, passei à cozinha, através da noite, para acender o
fogo.
Quando a combustão ficou em estabilidade de brasa, voltei para o meu
quarto para pegar a chaleira.
Estava sobre a mesa, junto à vela ardente. Encaminhei-me diretamente
para ela, sem ocupar a cabeça com nada que não fosse o desejo de caldear a
água para o mate. Sem pressentimentos, sem apreensões.
Não na própria antecâmara, mas ao entrar no quarto tive a certeza de
que acabava de caminhar junto a alguém. Uma presença corpórea, mas
indefinida, ficou atrás, a alguns passos, recuada sobre a parede sem luz.
O barulho secreto de uma fuga sigilosa. Eu atrás. Não à caça. Para ver.
Um último instante sob a lua e depois acolhida pelo canto escuro.
Divisei sobre a cabeça o pente, o pente alto.
Segui-la era introduzir-se no recinto privado de Ignacio Soledo. Meus
brios se liberavam para ir increpar.
Soledo já estava de pé, segundo as notícias de Tora. Sua mulher,
mentida filha, espiava, espiava-me, talvez sob seu império, talvez para
saquear-me.
Esse era o perigo da casa, não a umidade. Eu fora prevenido e não
consegui entender. Permaneci na borda da antecâmara, no nascimento do
pátio.
Não via senão a imagem da fugitiva, tomado por esse golpe de velozes
reflexões.
Até que observei que passara diante de mim, leve, uma figura de mulher,
soltos os cachos sobre os ombros.
Ia para lá, para as sombras, como se fosse uma delas.
Cachos, não pente: minha mansa, passiva e distante amiga do mirante
sem teto junto ao corredor.
Duas, então. Duas mulheres.
Essa indignação pela espionagem, esse receio de assalto noturno
mudaram, com a passagem da segunda, para outras impressões.
Era uma fascinação. Havia circulado como convidando-me a segui-la. E
eu pressentia que o término de seu caminho não eram nem o amor, nem a
felicidade, nem a bonança.

32

D , até muito avançada a manhã.


Tinha de apressar-me para chegar ao escritório, e como Tora não acudiu
ao primeiro toque da sineta, parti sem beber mate nem ter conseguido a
menor ocasião de esclarecer a dupla presença noturna. Mais tempo, é claro,
ter-me-ia demandado uma conversa com Ignacio Soledo. Ficava, pois, a
reclamação de explicações para a hora vespertina.

De tal modo decidi meus procedimentos enquanto me vestia, mas já na rua, e


mais tarde no gabinete, aplicou-se a rodear-me aquela segunda figura do
trânsito, sem peso, pela galeria. Era amável pensar nela, se bem que com
algo de enganador, ou de vazio, ou de absorvente, que não me dava sossego.
Era como a beleza da perversão, tentando-me, e eu em resistência. Nasceu e
cresceu em mim uma fúria silenciosa, de tanto ímpeto como um golpe de
sangue.
Disse-me que por essa mulher eu mataria Soledo!
O horror.
O horror do absurdo que nos apanha.
Este era o horror da fascinação.
Uma consagração plena à sua imagem, sem sensualidade, com tristeza.
O desejo brutal de capturá-la, de vê-la mais do que um momento. Talvez
isso, nada mais, e por isso a indução ao crime, desnecessário, talvez.
Os horrores, em meu interior, despojando-me da realidade desse
escritório de todos os dias, com Manuel Fernández pela frente, físico, não
alterado, ainda com o barulhinho inesgotável de sua pena, que somente nesse
ponto reaparecia, ao vê-lo de novo.

Levou-me para comer.


Eu estava aturdido.
Falava, e meu pensamento se projetava para a noite, a noite próxima, na
dependência da anterior.
Não comia nem me tentava a comida ali no prato. Mais claro ainda: o
meu estômago, sem aportes desde o almoço da véspera, a pretendia, sem o
apoio da vontade das minhas mãos, da minha cabeça.
Manuel Fernández se expressava com veemência. Eu estava fraco,
abatido. Via-o e escutava-o como se ele estivesse dentro de um bloco de
água.
Disse-me, impaciente: “Por favor!”, e eu pus o ouvido atento às suas
palavras, porque escutá-las melhor me aliviava, confortava-me.
Ele declarava propósito e resolução de tomar Emilia em matrimônio.
Animou-se, animamo-nos.
Disse-me então que, com minha autorização, reconheceria como próprio
o meu filho.
Também disse que sim e me pareceu que esse homem conquistara uma
felicidade abnegada e seu rosto o fazia saber.
Eu estava contente por ele, por Emilia, por meu sujo filhinho. Estava
contente por mim, que cada vez ficava menos ligado às pessoas.
Ri, baixinho, com um leve riso, contínuo, de dentes entrecerrados, como
que sem motivo, como o riso de um menino idiota.
Roguei a Fernández que me levasse para a taberna.

Não escravo da aguardente, mas com a aguardente às minhas ordens,


obediente ao meu reclamo de impulsos, de coragem, esperei a noite.
Uma vela dava testemunho de que alguém não estava de acordo com a
minha ausência.
Lancei um punhado de terra sobre os vidros. Brutal, petulante.
Acudiu ao mirante transparente, com seus cabelos tesos e sua branda
cara. Não entendia se era repto, agressão ou endecha.
Cominei-a, com um ademane, para que me abrisse a porta.
Desapareceu a luz da janela.
Apresentou-se, para guiar-me, depois do ranger da porta deslocada para
dentro.
Afastei com um safanão a vela, que se apagou no ar e foi dar no chão.
Tomei-a com veemência.
Assim, sem vê-la, podia beijá-la. Muito, tanto quanto ela necessitasse.
Depois a joguei no chão, acredito que com gosto. Ela estava com pouca
roupa, como preparada.

Levantei-me, sacudindo a poeira.


Na escuridão, pude distinguir que se afastava, arrastando-se, até a
parede. Sentada no chão, recostou-se na parede. Ofegava.
Disse-lhe:
— Preciso de dinheiro.
Ela ofegou por um momento mais, respirou tomando fôlego e me
perguntou quanto, com uma só palavra, quanto, como se não colocada entre
sinais de interrogação.
— Cinqüenta pesos — disse, e soube na hora que pedia uma soma ruim,
sabendo também que já não poderia pedir mais porque eu não ardia nem a
mulher ofegava.
Disse-me “Os terás”, e para mim esse anúncio teve o poder libertador
de um cumprimento.
Tateei o portão, que ficara sem tranca, e saí para a rua.

Ao entrar no meu quarto, fiquei colado à porta, de costas: diante de mim, na


profundidade da casa adormecida e silenciosa, a imagem, que eu pressentia
errante, da jovem do temível encanto; atrás, com sua fealdade concreta e o
vínculo adquirido comigo nessa noite, aquela a quem não podia ver sem
rechaço na claridade diurna.
Pensei que a porta da antecâmara estava fechada e eu, por conseguinte,
isolado e seguro. Mas ao acostumar-me ao ambiente de trevas, muito
rapidamente, distingui ao fundo a forma das plantas corpulentas do jardim.
Corri para fechar.
Não obstante, se alguém estava dentro desde antes, ficara trancado
comigo. Quis iluminar para um registro. Não conseguia entender-me com o
archote.
Escutei um barulho surdo e rítmico.
Dei pontapés para onde me pareceu localizá-lo. Pontapés no vazio.
Estava mais próximo... em cima de mim!
Apalpei. Pensei que era o meu coração.
Mas já não era ali, e sim na madeira, na madeira da porta, um chamado.
Um chamado consciencioso, preciso e quedo.
Resistia a abrir a porta e continuava, caindo como um conselho: A-bre,
a-bre, a-bre.
Um irresistível mandado.
Com um puxão, separei as duas folhas, como para entregar-me, como
descobrindo o peito para as balas. Ali, diante de minha porta, aquele que
chamava: o menino loiro, espigado, descalço, andrajoso. Lá, no meio da rua,
de três cavalos na disparada, um enredava entre suas pernas um corpinho
breve, que se entregou com uma confusa gesticulação, mas sem um gemido.
De um salto, fiquei entre os animais e os ginetes que desmontavam. O
menino loiro correu para o meu lado.
A menina, a mulatinha, acabava de cair e já era um corpinho macio
confiado à terra. Minha atenção afastou duas coisas: os lábios entreabertos
com o doloroso sorriso de quem não pode rir, e em volta da sua mão aberta
contra o chão, cara para a Lua forrada de nuvens, moedas sem brilho, hirtas,
mas íntegras em sua redondez, constantes em sua materialidade, alheias à
tragédia.
As moedas, eu, a pequena morta, estávamos serenos e silenciosos. Os
três homens juravam, maldiziam, e o menino loiro os acompanhava,
gesticulante, dizendo não sei o quê. O cavalo assassino mantinha nervosas as
patas dianteiras e relinchava explodindo de fúria, talvez disposto a continuar
atropelando, ali, mais adiante, em todos os caminhos.
Retirei-me. Arrastava terra com as botas, porque não conseguia levantar
os pés. Se os meus braços fossem mais longos, também as minhas unhas
teriam se enchido de terra vermelha.
Do meu quarto, colocando a cabeça sobre a mesa, escutei vozes altas, choros
altos, depois o choro atenuado, atenuadas vozes, até extinguir-se.
Um, dois cavalos saíram correndo. Chegaram outros. Partiram.
Não sei mais, porque depois a noite, benfazeja, veio a meu cansado
corpo.
Sonhei que uma fresca mão de mulher acariciava a minha testa; esse
frescor se transmitia a todo o meu corpo, até então, talvez, com calenturas, e
daí em diante era o frio o dono da minha carne, motivo pelo qual alguém
jogava em cima de mim um fino poncho de lã.

33

A .
Havia lá fora, no pátio, um derramamento de sol, que punha gozosos e
falantes os passarinhos. Sacudi-me. Vestia uma roupa alheia.
Um poncho de suave lãzinha.
Pensei que Tora poderia ter colocado em mim; mas, com a dúvida sobre
algo que não se podia precisar, voltou-me o frio. Fechei a porta aberta para
o pátio. Fiz do poncho colcha e procurei o leito como uma caverna onde
esconder-me.
Dormi até tarde.
Não abandonei o quarto enquanto não pressenti ausência de luzes no
exterior.
Encontrei-me com a Lua, que era uma mulher gorda e nua, sentada no
horizonte.
Fui para os fundos.
Na horta, procurei alguma coisa para mastigar, mas estava sumida em
extremo desamparo e carecia de árvores frutíferas.
Tomei mate na cozinha.
Não pensava na menina morta. Já estava longe. Lembrei do menino
loiro. Reaparecia, ao cabo de quatro anos, em circunstâncias
incompreensíveis. Não consagrei minha mente a ele com excesso.
Eu estava como separado de tudo, na cozinha, sozinho, esquecido. Podia
morrer ali sem que ninguém o notasse. Não me preocupava cessar. Mas,
disse-me, seria terrível que no transe gritasse de dor — ou de medo — e
ninguém me escutasse.
Estava isolado, sitiado, indefeso porque tinham me desarmado os
contrastes. Também os pressentimentos.
Voltava ao meu quarto como recolhendo trevas e já com a faculdade —
podia pensar-se — de ver-me desde fora. Pude ver-me transformado,
gradualmente, em figura de luto, por adesão das sombras, penugem de
morcego, no curso de meu caminho.
Ao pisar a antecâmara, soube que tudo isso podia desaparecer.
Podia desaparecer comigo.
Ia dar com alguma coisa, com alguém, e compreendi que estava em
transe de escolhê-lo ou escolher sua morte. Mas confundia isso com a
própria morte, e era uma noite triste, na qual, acredito, não resultava penosa
a escolha.
Havia se instalado um vapor de mulher.
Ela estava na antecâmara e desta vez não fugiria. Acendi o candeeiro.
Precisava ver seu rosto.
Eu procedia com uma serenidade desventurada, como obtida em
empréstimo para aquela ocasião.
Ardeu o pavio.
Ela também me esperava, sem alterar-se, impávida mesmo quando
aproximei a chama de seus cachos, para ver se era, e sim.
A atmosfera se pôs leitosa; mas atinei a manter-me erguido, deixar
pausadamente o candeeiro na mesa e procurar o descanso.
Acordei e era noite: o resplendor impuro da luminária batia na parede.
Alguém me agasalhara e eu não queria virar a cabeça porque percebia
sua presença junto ao leito. Não por evitar vê-la, mas porque quem sabe o
que me advertia de uma decepção.
Passou a mão — água fresca — pela minha testa e deduzi que era a
mesma carícia da véspera.
Ela.
Virei a cabeça.
Decepção, sim. Decepção.
Pente. Idade sem flores. Um afeto compassivo, uma piedade amorosa e
sacrificada, nos olhos. Tudo muito definido, sem reservas, sem mistério.
— Não és — disse, balançando a cabeça e falando como se estivesse
sozinho ou ela nada significasse.
— Sou — disse-me com amargura.
Não podia fingir e enganar-me, embora possuísse tanta clarividência
para entender minha decepção por aquelas duas palavras: “Não és”. Não
podia mentir para mim: também sua voz era a de uma matrona quando disse:
“Sou”.
Eu, rechaçando sua afirmação, fechava obstinadamente os olhos, como
para isolar-me com a íntegra angústia do não-encontro.
Até que ela me disse, insinuando a dor do bem perdido e irrecuperável:
— Ah, bem o sei. Outra mulher pode desejar quem, como vós, vê-se
procurado e atendido sem que o solicite. Outra mulher deveria ser a que esta
noite se arrisca para vos assistir e, transtornada de solidão, põe-se em
vossas mãos. Jovem teria de ser, talvez mais bonita do que sou agora, clara a
voz, suaves os cachos, suave o cor-de-rosa de seu vestido...
Era como advertir-me que me sabia submetido ao encanto daquela outra
figura entrevista, para mim sua possível filha, para ela sua efetiva rival.
Mas eis aqui que também a presente alcançava os poderes da
fascinação, e isto pela voz, que ganhou um tom grave, dolente e
inapreensível, embora próximo, como eu o queria. Entreguei-lhe minha
atenção como predisposto a um canto revelador que viesse do bosque.
Porque tudo quanto me dizia era simples e compreensível. Porém eu o
recebia como se tivesse duplo âmago e, nele, a explicação, todas as
explicações.
Apertou uma das minhas mãos por cima da manta. Procurava ser mais
persuasiva ao propor-me:
— Ah, se um homem quer... Pode-se ser uma e a outra. Ele consegue ver
uma mulher como ela é e como a deseja.
Isso havia feito eu nos dias anteriores? Receava que me dissesse isso.
Receava isso e mais alguma coisa. E ela, continuando seu pensamento, disse:
— Mas só se ele ama essa mulher. Porque se se aferra unicamente
àquela que já não é, ama uma perigosa fantasia. Dela viriam um dia, para
ele, a destemperança, o dissabor, talvez, o horror.
Isso, justamente, era. O horror, nessa noite ainda não revelado como
horror, já me capturara.
Então o neguei, para negar poderes sobre mim a essa mulher que tão
certeiramente penetrava em meu interior:
— Como posso eu, como ninguém poderia, abandonar-se
voluntariamente ao horror?
Como resposta, cravou-me estas palavras:
— Se quereis ver com medo o meu passado, é para transferir o temor de
vosso próprio passado.
Tive a sensação de estar discutindo com essa perigosa fantasia que ela
mencionara.
Essa sugestão, por ser muito forte, não chegou a assustar-me e consegui
fazer um esforço de discernimento a fim de colocar suas palavras dentro do
normal e do possível. Pensei que nada mais pretendia do que me intimidar,
para que eu repudiasse a imagem da jovem e a amasse. No entanto, rechacei
a tentação de discutir a verdadeira natureza dessa figura viçosa das
aparições vespertinas. Sim, reclamei por sua censura à minha vida
precedente. Exclamei:
— O meu passado não é indigno!
Olhei-a no rosto, para ver se a afetava o impacto da minha explosão, e
isso não aconteceu. Estava serena, e com sua serenidade afugentou as
suspeitas que me conduziram um momento à exasperação.
Parecia ter estado agüentando com paciência o desenvolvimento de
minhas idéias. Contemplava-me. Pensei que, prevenida de que não aceitava
sua opinião, falaria comigo já com esse acatamento à minha pessoa que sua
presença em meu quarto deixava supor.
Mas não. Disse:
— Todos, quase todos, somos pequenos fatos. Elaboramos presente
miúdo e, conseqüentemente, passado aborrecível.
Tomou-me de um ombro, aferrando-se com a mão aberta, e me disse:
— Tenho medo de elaborar culpas, para que o passado não seja mais
poderoso do que o futuro.
Não eram, para mim, reparos novos, pois podiam se confundir com os
de toda mulher que formula a última vacilação antes de sua entrega
passional. Não obstante... por que me penetravam de tão inquietantes
impressões? Quando falava de si mesma, não se poderia pensar que falava
de mim? Por qual razão sua linguagem era tão estranha e ajuizadora? Por que
motivo se pronunciava de maneira tão conceitual e inoportuna para uma
situação semelhante?
Tudo era ambíguo demais, mas não me parecia que a ambigüidade
estivesse nela, e sim que emanasse de mim mesmo e que essa figura
feminina, ao meu lado, não fosse verdadeira, mas uma projeção de minha
atribulada consciência, uma projeção corporificada pelos poderes de
criação mágica que possui a febre.
— Tenho medo — repetia ainda com tristeza, e me ocorreu que essa
tristeza não lhe pertencia, que era minha e muito alheia.
— Tenho medo — dizia, e eu também tinha medo e quis dizê-lo sem a
vergonha das palavras. Com a minha mão procurei a sua e a segurei, e estava
ardente, e isso teria me confortado se não tivesse deslizado em mim a
suspeita de que a minha mão direita segurava a minha mão esquerda, ou a
esquerda a direita, não podia saber.
Não podia saber se havia mulher, não podia saber se dialogava com
alguém. Eu não sabia, não conseguia saber se tudo isso estava acontecendo
ou não.
E em meio a esta desordem e a esta incerteza, pareceu-me que ela se
virava em uma desesperada tentativa de apagar o dito, de anular o caos que
estabelecera com o raciocínio.
Beijou-me como para fazer-me chagas. Beijou-me infinitamente.
Tomava, com aqueles beijos, minhas forças.
Era de uma sensualidade dominadora e, no entanto, capaz de cavar e
deixar-me vazio até fazer com que já não a desejasse.
Só meus lábios tomava e, através do beijo, como em uma absorção,
parecia levar-me lá, aonde não sei, nem nada há, nada é. Tudo se negava.
As minhas forças se esgotavam antes de onde é possível a vontade.
Terminavam... Terminavam... Sem sobressaltos, já sem sobressaltos,
mansamente, terminavam.
E tudo era... um acolhedor e dilatado silêncio.

34

Não da primeira , sobre a qual forçosamente tinha de declarar-me


inábil para julgar, mas das imediatas, posso dizer que ignoro se o
entendimento me escapava ou se era que eu preferia não entender.
Deixava-me ficar, no leito colado à janela, e pela janela o olhar
alcançava uma palma e um trecho exíguo de mato. Consentia que me fosse
administrada a sopa de mandioca e a outra, mais estranha, de tutano, como a
uma criança, a colheradas que me levavam com solicitude à boca.
De noite, nessa estreiteza, via deitar-se juntos Emilia e Fernández. Às
vezes de dia, um pouco, e depois ela fazia suas tarefas cantando. Nem
sempre soube que eram Emilia e Fernández, mas um homem e uma mulher.
Isto pude perceber bem.
Uma tarde em que ela me dava a sopa, levantei os olhos, tateando, e
estava tão serviçal e sem irritação que me atrevi a dizer-lhe:
— Emilia...
Mas acredito que a minha voz, por inativa, não saiu, e ela não pôde ver
senão o meu esforço em falar, e isso certamente ela reconhecia.
Chamou Fernández.
Ele trazia nos braços o meu filho e o meu filho estava limpo e cheinho, e
parece que o chamado os tirou de uma mútua diversão que lhes deixara
regozijo no rosto.
Emilia e Manuel me consideraram com vozes baixas, e, acredito,
temerosas de terem esperanças antes do tempo.
Por esse respeito cauteloso que lhes vedou aproximar-se, não viram o
choro bom em meus olhos.

Compartilhei sua mesa. Comidas virtuosas: feijão, mandioca, queijo, a


polenta, mpaipig, o mbeyú de milho.
Virtuosa também sua união conjugal, com sacramentos do mesmo cura
que pretendeu dar a mim como artigo de morte.
Meu filho, batizado Diego, por mim, e Luciernes, pela mãe, passara a
ser de nome Diego, de sobrenome Fernández.

Caminhei, como ensaio, até a ribanceira. Andei, com satisfação, o teste mais
bravo que me impus, de chegar, subindo, até esse lugar onde, numa sesta,
instalei-me para ver a ruindade de minha segunda família.
Dei com o toco vetusto e me foi útil para um respiro, comprazido da
façanha.
Olhei para baixo, para o rancho.
Eles, eles dois, seguiam minha proeza com um gozo prudente.
Manuel abraçava Emilia pelos ombros. Ela se deixava ter, confiada, e
ninguém podia dizer que tenha sido uma mulher irritável e porca. Cinco anos
mais velha do que Manuel, isso sim, continuava e continuaria rindo.
Pessoa alguma, disse-me, pode perceber meu amor, minha bondade,
meu sacrifício, mas pode proceder por mim. Não obstante, se me machuca,
sem ciúmes, que Manuel o tenha feito, é porque não perdi a compaixão nem
a magnanimidade.
A prova seguinte foi mais severa: até uma rua e uma casa afastadas, ao
norte, da aglomeração.
Indaguei.
O senhor Soledo, sua esposa, misía Lucrecia, um mulato e uma escrava,
de apelido Tora, partiram com destino ao Brasil entre quatro e cinco
semanas antes.
Esse era o inventário, com uma só e única mulher branca.

Meu corpo esgotado suportou pior o retorno. Demorei mais do que podia ter
tranqüilos a Emilia e Manuel.
Eu me segurava nas grades de uma janela, para descansar antes de outro
trecho de marcha, e vi Manuel vir, certamente mandado para as ruas para
buscar-me. Não tentei continuar caminhando. Ele me ajudaria.
Era, ainda, meu secretário. Senti desejos de instá-lo com gestos para
que se apressasse. Eu precisava saber se ele guardara para mim alguma
mensagem de Marta.
1799
Vicuña Porto era como o rio, pois com as chuvas crescia.
Quando as águas do céu tórrido se derramavam sobre a terra, inchava-se
a língua da corrente, enquanto Vicuña Porto escapava daqueles solos
assiduamente molhados.
Então, se uma vaca se perdia, culpa se jogava ao rio, o lambedor da
gula incessante, e se um mercador morria, na cama, destripado, já a culpa
era de Porto.
A cada ano — e já iam dois —, Vicuña Porto aumentava: era um homem
numeroso e a cidade o temia.
Temerosa vivia dele, mas sem levantar o garrote, até que veio o
incêndio e tomou uma quadra e duas e três, e cada qual escutava abrasar-se
aqueles paus como se fossem seus ossos.
A cidade se decidiu e quis caçar Vicuña.
Mas alguns diziam que era o tempo de sua chegada e, outros, o tempo de
sua partida, e ninguém podia dizer se estava ou não na cidade; deu-se inútil
batida nela e depois se pôs de pé uma coluna de guerra, contra Vicuña e sua
gente, para alcançá-lo em seu esconderijo e para sua morte alcançar.

Pedi lugar na legião.


Ninguém sabia por quê.
Ninguém nunca viu Vicuña, nem suspeitava de seus traços. O nome era
dele e ninguém o havia dado.
Vicuña... e um tempo ido. Vicuña... e o corregedor. Eu conhecia seu
nome e conhecia sua cara!

35
O governador segurava uma das minhas mãos com as suas e não cessava de
despedir-se de mim, incrédulo de minha partida para o Norte, tão contrária à
sempre desejada.
Disse-me, por fim, com a solenidade do cargo nas faces, que “Sua
Majestade celebraria este retorno às armas e mais o triunfo, que saberia
compensar”.
Esta era a promessa necessária, coincidente com a evidência de que
uma arriscada empresa de armas, para o bem do sossego da população,
poria-me nas mãos do monarca, para que ele me colocasse onde a mim
melhor me acomodasse.
O triunfo seria uma ronda, dada com séquito. Vicuña Porto não poderia
dissimular-se como fazendeiro, colono ou peão de plantação de mate. Aonde
quer que déssemos com ele, eu saberia reconhecê-lo.
Atendera a meu serviço, na época do corregimento. Desleal, amotinou
índios, promoveu rapina e nunca se deixou apresar, até extinguir-se o
barulho de suas correrias, por outros rumos que tomou, e pacificaram as
terras aos meus cuidados.

O chefe do regimento não me outorgou mando. Disse-me que teria eu inteira


autoridade, mas o pelotão levaria à sua frente um oficial do serviço ativo e
das próprias tropas.
Era um desdém, o do chefe, encoberto de respeito. Uma cautela, disse-
me, para dar-me segurança e um mínimo de cuidados, posto que os soldados,
em campo cru, tornavam-se ariscos e indolentes.
Do quartel partimos os dois, o oficial, capitão Parrilla, e eu, com
escolta mínima. A tropa, de vinte e cinco homens, marchara na frente, mais
de manhã, devido à cavalaria, dez cavalos de revezamento para cada um, e
do gado para alimentação.
Não houve, pois, revista nem gala alguma, que eu tivesse apetecido,
talvez porque me visse o meu Diego.
Uma vaca indócil de longuíssimos chifres gastava suas forças para
escapar da manada, e quatro soldados fingiam ser impotentes para subjugá-
la, procurando ocasião de dar rédeas aos cavalos e sair do ritmo quedo da
marcha.
Acolheram-nos, então, a poeira e uma parcial desordem.
Passamos adiante, Parrilla mal-humorado.
Virei-me na sela. Queria advertir a cidade que regressaria a ela só de
passagem. Uma cabeça, a de Vicuña Porto, franquear-me-ia esse melhor
destino que não me proporcionaram méritos civis, intermediários nem
súplicas.
Mas entre nós e a cidade mediavam os soldados e os animais. Nada
mais me restava, como possibilidade, que olhar para a frente.
Para a frente, então.

36

Depois do terreno , último limite das cavalgadas menores que


realizavam as pessoas da cidade, começava o bosque, que margeamos.
O sol nos dava na cabeça com seus fachos. O bosque parecia leve,
acolhedor e fresco, mas ficava ali, ao lado, à margem de nós ou nós a
margem dele.
Depois, parecia seguir-nos; não cessava de fluir ao nosso lado.
Adormecia-me, amodorrava-me, e Hipólito Parrilla era homem de não
falar, segundo sua conduta até este ponto.
Não era assim. Enquanto não estivéssemos perto da lagoa doce,
procurava não se dar sede, com a conversa e a poeira que se introduz na
boca aberta.
Ali nos fez beber. Primeiro os homens, depois os cavalos, em seguida as
vacas, em ordem de importância imposta pelos primeiros.
Não permitiu mate nem assado. Exigia rendimento na marcha enquanto
estivéssemos com as forças sem gastar.
Os soldados mascavam charque moído. Eu não quis fazê-lo tão
rapidamente.

O capitão era muito díspar de caráter.


De dia manteve o rigor tão extremo que não foi possível tomar o menor
confortativo cozido. Ao anoitecer, instalamo-nos nas ruínas de Pitun, onde se
fez assado que ele e eu tivemos em fogão à parte, atendido por um dos
homens. Com o estômago notoriamente avultado, pôs-se alegre, e como eu
não podia segui-lo em seu humor, pois o sono me envolvia, somou-se à roda
da tropa.
Cantou com os soldados e autorizou a aguardente.
De manhã, quando soou o clarim, se se olhava em volta, resultava
notória a diminuição de homens.
Foram buscados.
Jaziam nas valas que os curas fizeram, um século antes, para impedir
que os índios fugissem para os bosques.
Parrilla ordenou açoites para todos os ébrios. Mas eram menos os
sóbrios, de modo que o castigo foi leve e curto para cada um, a fim de não
postergar em demasia a marcha.
Também dessa vez me afastei dos soldados, para não presenciar um
fustigamento tedioso e notoriamente injusto, já que constituía castigo que o
próprio chefe autorizara.

Antes de entrar em Ypané, Parrilla se pôs de pé sobre seu cavalo, ao estilo


indígena, e arengou a tropa, advertindo que se nesse povoado se repetissem
os desregramentos, os açoites iam ser, já não nas costas, mas mais embaixo,
para que a cavalgada fosse uma tortura.
Pensei que mais conviria um discurso dirigido a impor à milícia sobre o
plano da expedição, pois, pareceu-me, nenhum o sabia ao certo.
Eu me sentia muito desacomodado. Parrilla, que pôde ser meu
camarada, até certo ponto meu igual, não se interessava por mim e era um
indivíduo desconhecedor do que desejava, áspero algumas vezes, expansivo
outras, e sempre com excesso. Com a tropa comungava eu tão pouco que
nada fiz para cruzar o olhar com um só dos soldados. Não atendia a eles,
exceto a quatro ou cinco que se puseram diante dos meus olhos sem que os
procurasse eu: o assistente, o cuidador dos meus cavalos, e mais alguns.

Em Ypané, Parrilla se obstinou em uma injustificada desconfiança. Resultava


notório que Vicuña Porto não podia encontrar refúgio em um povoado tão
escasso de dimensões, tão pobre e pacífico.
Insatisfeito com o informe do cura e do administrador, que aduziram
saber por ouvir falar da existência de tal bandido, mas que nunca o haviam
visto nem ele lhes fez vítimas por maldade, Parrilla dispôs que se reunisse a
população de brancos e indígenas na frente da igreja.
Era tempo de semeadura de não sei o quê. Os índios abriam só a flor do
terreno, com brancos ossos de vaca ou de cavalo, porque não dispunham de
instrumento mais adiantado, nem acredito que o conhecessem. Outros, atrás,
semeavam, e uns terceiros, que lhes seguiam pelos quase imperceptíveis
sulcos, iam cobrindo as sementes servindo-se, igualmente, de precárias
ferramentas.
Mas antes que chegassem estes últimos, arremessavam-se sobre a terra
os pássaros, em disputa com os homens, e lhes roubavam as sementes. De
cada cinco, ficavam três. Eu via essas três serem comidas pelos insetos e os
vermes, que viriam logo que passassem os chacareiros e as aves vorazes.
Perguntei pelo rendimento das colheitas — seu pão — a um dos índios
que tocávamos dos terrenos semeados para a igreja. Não me entendeu.
Não me era necessária a resposta.
Anos atrás, Ventura Prieto dera-a a mim, embora nunca me tenha falado
disso.

37

Pela tarde, incursionamos na região dos índios mbayas.


Conseqüentemente, cessamos de ser vanguarda do pelotão. Parrilla
mandou adiante um baqueano, sozinho, segundo costume, para que não fosse
distraído por conversa alguma.
Eu estava sedento e com a boca como cheia de farinha.
A vegetação denunciava um estuário.
Pensei que Parrilla daria ordem de desconcentrar-se para beber; muito
ao contrário, ao observar que alguns dos cavalos de muda tentavam safar-se
do grupo para molhar a boca, dispôs que fossem contidos.
Condescendeu a explicar-me:
— Podem ser águas insalubres.
Um argumento persuasivo, para quem não fosse eu, porque já estava
receando que o capitão impunha maiores sacrifícios do que os necessários,
com o fim de moer a minha resistência, só por isso.
Veio então a minha provocação.
Pedi-lhe o frasco de aguardente. Eu não me havia munido de um.
Bebi dois goles, sem devolver o frasco a ele. Outros dois, quatro. Mais
dois, quatro, cinco, seis.
Depois o meu couro cabeludo coçava e eu, loquaz com o capitão que me
observava incomodado, dizia-lhe que era o sol.
Perguntei-lhe se a sua família tinha brasões. Respondeu-me que sim.
Disse-lhe que no escudo da minha figuram a árvore e a torre. Nada
comentou. Então quis saber se no escudo dos Parrilla figurava o utensílio
desse nome.
Parrilla explodiu em uma chicotada na garupa do meu cavalo. O cavalo,
pego, como eu, de improviso, deu dois fortes coices, e no segundo me botou
por terra.
Parrilla desmontou e veio antes que eu terminasse de me levantar. A
minha cabeça ardia, de aguardente, de raiva.
Segurou-me pelos ombros, ajudando-me no impulso para levantar-me, e
eu, ao fazê-lo, gesticulava para dar-lhe na cara, e ele me disse com um tom
sincero e veemente: “Não pode um homem inflamar-se e errar, arrepender-se
e ser perdoado?”.

Atrás de nós, a umas cem varas, trotavam os cavalos de muda. Os soldados


vinham logo a seguir dos cavalos de muda.
Não podiam saber o que ocorrera.
Talvez pensassem que se tratava de um acidente, um mau passo, uma
ofuscação repentina do animal que eu montava.
Pode-se, sim, pode-se, cavalgar ao trote, um ginete junto ao outro, sem
olhar-se entre ambos o rosto.

38

O Sol, no último quarto de céu, suspendeu-se em seu trânsito.


Nosso refúgio noturno seriam os pastos.
Ajudei a pisar o terreno e essa foi a primeira vez, no curso da marcha,
que me misturei com os soldados.
Estava rude, desgostoso. Pretendia achar-me muito lúcido quando, na
verdade, o embotamento me fazia ver como flutuantes aos homens que
cruzavam comigo no ir-e-vir da tarefa.

Durante essa limpeza, a víbora, se não morre esmagada pelo cavalo ou não
consegue escapar, defende-se atacando.
Não quis morder embaixo, nem na quartela. Subiu pela pata do animal e
pude bater nela quando ia pelo joelho e ainda mais acima, porque se
encaminhava para morder-lhe o peito.
Mas de nada tive consciência até sentir os coices e ver-me em risco de
sofrer outra afrontosa rodada.
Perdi as rédeas e me prendi na crina.
O cavalo, mordido, estendia-se em galope e a víbora perdera apoio e
ficava pendurada no peito, presa pelo dente. Chicoteava seu longo corpo
sobre as costelas da vítima e esse era o perigo — estimulante do meu pavor
—, que se soltasse e, serpenteando um segundo no ar, fosse enroscar-se na
minha perna.
O quadrúpede tropeçou, rodei por cima de sua cabeça e acudiram a
auxiliar-me.

Armaram um rancho de palha para Parrilla e para mim, porque ameaçava


chover, constrangendo-nos de tal modo a uma indesejada aproximação
maior.

Para as minhas necessidades, antes de dormir, internei-me na escuridão.


Seguiram-me por um momento os cachorros, que montavam guarda,
olfato alerta para descobrir, pela catinga, a proximidade das feras. Depois
de cheirar-me, deixaram-me avançar. Reconhecimento cumprido. Meu cheiro
seria o santo e sinal para o regresso.
Estava em situação um pouco incômoda para valer-me, quando escutei o
quebrar-se de grama seca às minhas costas.
Passos.
Uma umidade em minhas têmporas.
Passos, pesados, como de animal de vulto. Cravava-me, no entanto,
reduzindo-me à ausência de defesa, a sensação do extravagante transe que,
dizia-me, superarei em um segundo, contanto que se retarde um instante,
porque se fujo assim, eles me verão chegar de um modo que... E os
cachorros atrás e...
Mas já não podia fugir.
Virei-me, e o tempo de girar a cabeça me bastou para saber que não era
a pisada de uma fera, porque lhe faltava cautela.
Um homem.
Um homem tranqüilo.
Disse-me, como se sua ocorrência fosse jocosa:
— O campo todo para nós dois e demos de escolher o mesmo lugar.

Quando era tempo de que regressássemos, pediu-me que não o fizéssemos


ainda.
Disse:
— Senhor doutor, não há lua, chamaremos a atenção se fizermos luz com
um archote. Meu rosto, neste momento, não é visível. Convém, pois, que diga
meu nome.
Eu esperava esse nome e já o sabia:
— Vicuña Porto.
Não reagi. Adivinhava um punhal em suas mãos.
Era ele, se ele dizia sê-lo, expondo com isso a vida. Além disso, sua
voz me trouxe a presença de minha mesa, meu gabinete, meu cavalo, minha
espada, minhas fainas em outra terra. Não era descabido que estivesse ali, se
justamente o procurávamos por esses lugares. Mas não entendia como pôde
aproximar-se sem ser visto, e menos ainda de que modo conseguiu
identificar-me em meio à cerração noturna.
Como ele se havia descoberto, sem dúvida aguardava ver como
procedia eu e eu não conseguia mais do que temer algum golpe traiçoeiro
enquanto transbordava de admiração por meu singular destino de ser o que
caísse em suas mãos.
Posto que eu não falava, ele, então, incitou-me:
— Por acaso não me conhece o senhor doutor, não conhece Vicuña
Porto?
Apressei-me a dizer que sim, porque mediava o tom de sua pergunta
entre a burla e a advertência. E como disse que sim, ele comentou, como se o
sentisse:
— Me conhece, sim! Como isso é lamentável!
Pressenti que me jogava as últimas palavras, antes de imolar-me.
Joguei-me para trás, de um salto, para fugir, não para sacar arma. Mas
me deu o estranho pressentimento de que assim me entregava ao meu
vitimário: alguém à minha zaga, com uma faca, pronto para degolar-me. A
queixa de Porto devia ser uma ordem para o outro...
Foi por isso que, mal recuei, ricocheteei adiante, e esta manobra
pareceu, a Porto, ataque. Esticou o pé na minha passagem, caí de boca e ele
caiu em cima de mim, prendendo-me com as pernas enquanto me punha uma
ponta afiada na nuca.
Clamei:
— Piedade.
— Desarme-se — ordenou-me.
Disse-lhe onde tinha a faca.
Como a encontrou onde eu indicara, na bota, pareceu compreender que
não tive o propósito de atacá-lo: afrouxou a pressão das pernas e não senti
mais a agudeza do metal cravada na nuca.
Mas não abandonou sua posição de ginete e me dava pancadas na
cabeça, dizendo ao mesmo tempo: “Não me conhece, não me conhece...
Vossa Mercê não me conhece”.
Matou a vontade de me bater. Levantou-se.
Fiquei deitado no chão de grama.
Sabia-o em cima, de pé, vigiando os meus movimentos.
Ao cabo de um tempo, apaziguamo-nos os dois.
Como para respirar, talvez para testar-me, deu uma volta, sem perder-
me de vista.
Olhei para a fogueira. Estava longe. Se tentasse fugir, Vicuña Porto me
alcançaria, punhal assassino em mãos.
Ao olhar vi que, no acampamento, alguém se erguia, junto ao fogo. Uma
figura negra e estática contra o lume.
Depois, desapareceu.
Reapareceu, rodeada de cães, justamente como se soubesse onde podia
encontrar-me.
Vicuña Porto aproximou-se, de um salto, advertindo-me novamente:
“Não me conhece, hein? Não me conhece”.
Mas não se foi. Permaneceu ao meu lado. Ordenou que me levantasse e
caminhássemos ao encontro daquele que vinha.
Admirei sua temeridade. Pensei que enfrentaria o soldado para dar-lhe
morte. Não me ocorreu o que poderia fazer comigo depois.
Marchávamos lado a lado.
Os cachorros se adiantavam.
A sentinela lançou o chamado de prevenção.
— Senhor dom Diegooooo!...
Vicuña Porto respondeu por mim:
— Aqui vamos nós, jáaaaa...

Vicuña Porto era um dos soldados da legião posta à caça de Vicuña Porto.

39

Gastei parte da em tramar o meio de denunciá-lo sem colocar-me em


perigo.
Inventei muitos, que me pareciam fáceis e nada arriscados mal subiam à
superfície do meu pensamento, mas em seguida deixavam conhecer seus
inconvenientes.

De manhã, minha primeira ansiedade foi ver Vicuña Porto, caso nos tivesse
deixado de noite, eximindo-me de tal maneira do peso do acobertamento e
de sua permanente ameaça.
Estava ali, indistinto entre os demais, quase manso, poderia dizer,
quando descobriu que tinha o meu olhar sobre ele.
Não quis expor-me como imprudente e me afastei.
Durante os preparativos, escrutei atentamente semblante e aspecto dos
demais, para ver se alguma coisa revelava a existência de sequazes do
temido. Podiam sê-lo, ocorreu-me, três, quatro... Podiam ser todos, talvez
nenhum. Todos eram igualmente rudes, sujos, robustos, vigorosos e sãos. Eu
tardara dois dias em saber suas características mais visíveis e em topar com
suas caras.
Hipólito Parrilla, mate na mão, que continuava chupando mesmo depois
de tê-lo secado, desafogava-se em ordens supérfluas, já que cada um estava
perfeitamente a par de sua rotina e a cumpria, sem pressa, isso sim,
tampouco com maior apuro só porque o chefe o mandasse.
Recém-amanhecido, o capitão já não se continha de excitação.
Entediava-o a perspectiva de internar-se em domínio de índios armados
embora, teoricamente, eles fossem amistosos vizinhos dos espanhóis.
Ao vê-lo tão excedido de irritação, entrou-me o sabor de meu segredo;
eu, o que sofri resignadamente a afronta de sua ira, era o único inteirado de
que Vicuña Porto galopava detrás de seu perseguidor.
Vingança. Regozijo.
Podia calar dois, quatro, oito dias mais sem penar por minhas fraquezas.
Contava com a desculpa, válida perante mim mesmo, de que diferia a
denúncia para cobrar-me a mão que Parrilla colocou em cima de mim,
zombando de mim, caladamente, de seus esforços, que o levavam, sem razão,
mais adiante, cada vez mais adiante.

40

Em direção ao , a terra derivava em insensíveis colinas, que, em


gradual crescimento, à distância tomavam o azul aéreo das serras.
A oeste, às vezes diante de nós, progredia o pajonal, alto, suficiente
para encobrir um homem em toda a sua estatura.
Foi indispensável destacar uma guarda avançada, de três vigias, que
marchavam distanciados entre si uns quinhentos passos e a umas trezentas
varas diante de nós.
Em certo momento, vi um deles retardar-se. Fez seu cavalo mover-se em
círculos e deu, com o braço, o sinal de alarme.
Rápido apresto à voz do chefe, que serpenteou velozmente ao redor da
tropa.
Antes que Parrilla tivesse terminado de revistar sua gente, o vigia
mudava o alarme para um aviso de temor infundado.
Aproximamo-nos, a galope curto.
Do pajonal haviam saído dois índios altos, bem formados, sem
sobrancelhas, com uma faixa de pintura azul que lhes marcava a testa e
descia pelo nariz. Cada um levava sua lança.
O baqueano nos explicou que em suas mãos não passava de uma arma
inofensiva.
Eram índios guanás e, conseqüentemente, pacíficos. Usavam a lança a
fim de caçar veados e avestruzes e para defender-se das feras. Para caçar,
precisavam de cavalgadura. Iam juntar-se à população mbaya com o
objetivo de dispor de cavalos.
Juntaram-se, pois, à nossa tropa.
Em uma colina aprazível, o acampamento de índios procriava a
reiterada silhueta de suas unidades. Por sua altura, conquistavam um fundo
de nuvens finas e alongadas que o sol, declinante, tornava suavemente
vermelhas.
Os índios serviram de emissários, enviados por Parrilla.
Regressaram abrindo e fechando os braços no ar. As tendas, queriam
dizer, encontravam-se vazias.
Não acreditei neles. Parrilla tampouco.
Prevendo uma cilada, adiantou-se a guarda com as armas dispostas. Ao
voltar, confirmou a observação.
Os guanás apalparam as cinzas junto às moradias e disseram que haviam
sido abandonadas pouco tempo antes. Conseqüentemente, sentenciaram, os
mbayas tinham uma festa, mais para o lado do sol, ou se postavam em algum
lugar escondido, aguardando-nos ou temendo uma represália dos índios
caaguás, seus inimigos.
Parrilla ordenou formação de combate e tive consciência de seu
aturdimento porque, com tanta cavalaria de revezamento e gado entre nós,
nenhum ordenamento era possível. Além disso, porque avançar com a noite
prevenida para envolver-nos, em menos de uma légua, representava perigo
certo de nos entregarmos em confusão ao cerco dos indígenas.
Eu o entendia desta maneira, mas não discuti a ordem, mais do que por
incapacidade de resistir a ela, porque a aventura apresentava uma nova
dimensão.
Desde a partida e o impulso de revalidar títulos à mercê de uma
façanha, não havia aprovado meu comportamento, nem desfrutado de fazê-lo
como naquele momento.
Acredito que não pensei que podia morrer.
Pensava na luta.
Deixamos o acampamento na retaguarda e em mais de meia hora de marcha
cautelosa nada de alarmante distingui nem, ao que parece, advertiram nossos
vigias.
O avanço ia se produzindo por uma insensível encosta. Ao chegar ao
topo, os observadores se detiveram.
Parou nossa coluna.
Eles não avançavam nem nos passavam notícias.
Parrilla partiu, em um ímpeto, e eu não aceitei ficar postergado.
Chegamos e olhei o que, em silêncio, olhavam os vigias.
Lá embaixo, como a meia légua, outro agrupamento de tendas, com o
sinal vital do fogo em caudalosas fogueiras e essa instabilidade das figuras
que em volta indicava corpos em movimento. Mas não os que formam o
número de uma tribo, e sim multidão.
Parrilla mandou retomar a marcha. Tomamos francamente o declive.

Evadira-se a ilusão da luta. Para mim. Para o capitão Parrilla, talvez, não.
Pode-se pensar que continuou alucinado pelo fantasma da batalha. Esqueceu
de mudar a ordem de formação de combate e, embora esta fosse puramente
quimérica, importava uma exibição de armas que resultou mortal. Eu
tampouco o notei.

Acredito que a noite, posta a favor dos indígenas, descarregou-se em poucos


momentos.
Só se viam, à distância, as móveis labaredas das fogueiras.
O ulular bateu em nós, de repente.
Um instante antes, eu havia pendurado o trabuco a tiracolo e não
consegui lembrar dele.
Estava desarmado quando percebi que os alaridos tornavam-se uma
massa próxima, flutuante e contínua, como uma cinta em volta do nosso
grupo.
Nada percebi entre os nossos, nenhum som. Tudo vinha de fora.
Mas o corpo múltiplo que formávamos com soldados, cavalos e vacas
tendeu a explodir e eu, que estava em uma ponta, sentia-me impulsionado
para essa parede envolvente e estrondosa.
Cessou.
Os índios se retiraram.
Então foi o tempo de escutar os gritos de dor, os chamados de socorro
revoltos com os relinchos e mugidos que exalavam os pobres animais
espantados ou feridos tapando, por vezes, as vozes humanas.
Os indígenas haviam batido em retirada, presumi, preparando outra
investida.
Os dois guanás os conheciam melhor. Ofereceram-se para passar às
linhas inimigas para explicar que não tínhamos propósitos bélicos.
Parrilla, por uma vez, não se sentiu suficiente para resolver tudo. Eu
estava ao seu lado. Consultou-me. Disse que desejava castigar os indígenas.
Fiz-lhe notar que não sabíamos quantos eram nossos atacantes e que
desconhecíamos o terreno que eles mostravam ter como aliado.
Parrilla aceitou a minha opinião.
Talvez fosse também a sua, mas precisava de alguém que tomasse, nem
que fosse em parte, a responsabilidade da claudicação.

Os guanás regressaram com um emissário mbaya.


Aceitavam as nossas explicações, lamentava-se o sangue espanhol
perdido e nos convidavam para participar de sua festa, uma celebração de
vitória guerreira obtida às expensas dos monteses.
Parrilla os fez dizer que nos honrava o convite, mas que não poderíamos
aceitá-lo porque devíamos atender aos nossos feridos.
Partiram o mbaya e os guanás.

Enquanto se cumpria a negociação não era possível um reconhecimento nem


acender fogo.
Tínhamos de permanecer em guarda.
Os lamentos golpeavam-me o rosto.
Pensei nas lanças. Uma delas que viesse a mim na escuridão, acertasse
o meu ventre e eu pudesse segurá-la com as mãos, sabendo-a agente de
minha irremediável morte. Mas não na testa. Não na boca. Não nos olhos.

Os negociadores regressaram com uma tocha acesa.


O cacique Nalepelegrá exigia que, ao extinguir-se o archote, estivessem
com ele na festa todos os sobreviventes ilesos e os feridos em condições de
montar a cavalo. Era uma ordem de vencedor.
Inteirado de que presumivelmente alguns dos nossos homens estavam
mortos, faziam-nos saber que, pela longa amizade de mbayas e espanhóis,
não lhes arrancariam a cabeleira. Pela manhã, poderíamos enterrar seus
corpos inteiros. Eles se lamentariam conosco pela morte de nossos
companheiros de armas e uma filha do cacique, em sinal de luto,
permaneceria trancada em sua tenda por três dias, com espinhas de peixe
cravadas nos braços.

O archote era de curtas dimensões. Fez-se necessário apressar-se.


Três mortos. Os feridos, cinco, dois deles com a crueldade da lança,
três quebrados pelas patadas dos animais assustados.
Vicuña Porto mantinha sua total saúde e energia.

Não era uma festa e, sim, luta.


Mais precisamente uma batalha pensada e ritual.
Chegamos às tendas sem sermos anunciados nem recebidos de maneira
especial.
Nos incorporamos aos espectadores: crianças, mulheres, anciãos,
sentados no chão sem mostrar inquietude, paixão nem compaixão.
Procurei discernir essa função bárbara. Os índios batiam uns nos outros,
em batalha de socos que não eximia, ao que parece, nenhum adulto nem
adolescente.
Na hora não pude acreditar na eficácia dos golpes: não admitia meu
entendimento que, tão logo bateram em nós, produziu-se entre eles a
discórdia. Mas vi narizes sangrando, lábios partidos, olhos arrebentados.
Um deles se deteve, terminou de amolecer um dente, jogou-o no chão e
procurou adversário, com o qual em seguida estava novamente em pura
perda.
Mais adiante, as quatro fogueiras. Entre elas, um lugar em claro.
Alguma coisa se amontoava nesse lugar. Distraí-me da contenda olhando
detidamente.
Cabeças com o pescoço quebrado, couros cabeludos com os cabelos
assentados pelos coágulos de sangue, membros recentemente seccionados.
Os troféus.
Enquanto isso, a rinha ficara em suspenso, embora ainda inflamada em
alguns setores. Certo número de indígenas procurou apaziguar os bravos que
sustentavam a ação. Estes os agrediram. Pareceu-me que outra vez se
generalizaria a luta. Mas não.
Então se aproximou um índio muito sujo pela terra, pelo sangue e pelo
suor da luta.
Disse-nos que essa parte da festa terminara e era tempo de beber.
Disse seu nome, Nalepelegrá, e disse que desejava conhecer o nosso.
Parrilla disse “Capitão Hipólito Parrilla”, pondo-se rígido, como em
atitude de cumprimento diante de um superior, embora sem cumprimentar e,
conseqüentemente, mostrando-nos que não se humilhava. Nalepelegrá tocou
suas faces com as palmas abertas.
Dei um passo adiante. Nalepelegrá reparou em mim. Aproximou-se.
Disse meu nome sem acrescentar títulos, sem forçar a posição do corpo. O
cacique passou os dedos pela minha barba. Tinham um cheiro repelente, que
ficou grudado em mim.
Pensei que então repartiria a bebida. Mas não ainda.
Mantinha-se à espera. Eu não sabia de quê.
Parrilla me olhou, procurando ajuda, como se de nós dependesse a
situação.
Nalepelegrá pateou o chão. Em um instante se transformou em um
cavalo. Batia os cascos.
Minhas carnes se sentiram martirizadas pelo terror e não podia, não
devia mover-me.
Vicuña Porto, sem pedir autorização a seu capitão, adiantou-se diante do
cacique, tocando-lhe a testa com a mão esquerda.
Nalepelegrá se aplacou.
Vicuña Porto disse “Gaspar Toledo”, seu nome na milícia, e o chefe dos
índios levantou a mão para as suas barbas.
Entendemos.
A cerimônia se repetiu com os demais soldados.
Depois bebemos aguardente de mel.
Muita.
Eu necessitava matar a sede e dormir pesada, bestialmente.

O sol era um cachorro de língua quente e seca que me lambia, lambia-me, até
acordar-me.
O cachorro mostrara comigo a maior fidelidade, acordando-me primeiro
que todos. Ficavam pelo chão, para a sua língua, muitos dormentes.
Índios, soldados, o capitão...
Ergui-me até sentar-me. Contraí as pernas e, dando-lhes firmeza seguras
com os braços, coloquei sobre os joelhos a cabeça, que não aceitava manter-
se erguida.
Mas funcionava.
Fez-me presente que a cavalhada estava dispersa e seria esgotante
reuni-la. Que as vacas teriam fugido para os bosques, e as que não, estariam
em poder dos índios, talvez carneadas.
Que haviam sido carneados três dos nossos.
Quis condoer-me. Não pude.
Não sabia quais eram. Não os conhecia. Mal os vi, de noite.
Considerei que teríamos de dar-lhes sepultura.
Ficariam ali, ao pé do monte, com uma cruz e uma pedra em cima.
O vento derrubaria a cruz. Alguém, depois, tiraria a pedra.
Terra lisa.
Ninguém.
Nada.
Sacudi-me sem mover-me.
Não podia ser. Isso não podia ser para mim.
Era preciso regressar, não se expor mais.
Abandonar a procura.
Parrilla não se disporia a fazê-lo, injuriada sua honra militar pelos
índios e sem ter capturado Vicuña Porto, sem haver farejado um rastro dele.
Vicuña Porto.
Denunciá-lo. Voltar.
Levantei a cabeça apenas para que os olhos procurassem.
Não estava entre os caídos.
Parrilla dormia. De costas, boca aberta, cabeça virada.
Acordá-lo. Dizer-lhe. Chamar os dois, os seis, oito, soldados
adormecidos, os mais próximos, e ir por ele.
Sim.
Devia fazê-lo. Chamar Parrilla, dizer-lhe...
Pensava em todas as ações, mas não conseguia mover-me.
Tinha as pernas rodeadas pelos braços, o corpo como embalado. Para
que o transportassem, não para deslocar-se.
Teria sido terrível que alguém me exigisse que o fizesse pôr de pé, o
corpo.
Apareceu um soldado, não sei por onde. Outro. Um terceiro, que era
Vicuña.
Olhavam, talvez para ver quando o chefe se aprumava.
Pus a testa sobre os joelhos.
Dormir... Dormir...
41

Nalepelegrá pegou nossas vacas dizendo que pagaria por elas mais do que
seu valor. Este pagamento foi dizer-nos que as vacas fugitivas de todas as
fazendas do Norte se refugiavam nos bosques de y-cipó.
Aconselhou-nos tirá-las, formar um grande cerco, levá-lo para a nossa
terra e abandonar a procura do homem branco, porque, disse, todos os
homens brancos são igualmente malvados, menos o capitão Parrilla, eu e
cada um dos nossos soldados, aos quais mencionou por seus nomes ou
alguns aproximados. Envaidecia-se de tê-los aprendido.

Carecíamos de carne fresca.


Um dia comemos charque.
Noutro, pescamos. Consegui um manguruyú, talvez de cinco arrobas.
Para aproximarmo-nos da água, descuidávamos dos bosques,
afundávamo-nos nos pajonais, e de tal modo perdíamos de vista as
populações indígenas, onde, lembrou Parrilla, podia estar amparado Porto.
Vivíamos em coesão. Parrilla se apegava muito a Vicuña porque o viu
conhecedor do caráter indígena ao contentar o cacique.
Éramos menos, escasso também o arreio de cavalos de muda.
Estava decidido a denunciá-lo, sem encontrar-me resolvido a fazê-lo em
ocasião precisa, pois nenhuma, imaginada em detalhe, conseguia tampar-me
o suficiente, e eu aguardava que se desse um modo real, com todas as
circunstâncias favoráveis.
A meta, a princípio incerta sobre o último limite das terras de índios
catequizados, estendera-se pelo domínio dos mbayas e já nos levava em
direção ao país norte-oriental dos guanás. Parecia escorrer, ser um objetivo
móbil, e assim era na verdade, posto que ia conosco. Por quê? Para quê?...
Eu desconhecia as motivações de Parrilla e nunca me atrevi a entabular com
ele uma conversa que, talvez, me tivesse dado indício, talvez maior
violência e mal-estar.
No entanto, poderia esquecer-me de Vicuña, e vê-lo soldado, Gaspar
Toledo. Ele, sem esforço, parecia-se extraordinariamente a como pôde ser
um Gaspar Toledo qualquer, soldado das Índias.
Então, pensando que ele se achava entre nós e padecíamos
necessidades, fadigas, tropeços e mortes para encontrá-lo, ocorreu-me que
era como procurar a liberdade, que não está lá, e sim em cada qual.

Talvez Parrilla tivesse postergado a persecução de Vicuña até compor nossa


provisão de víveres, preparando charque ou então carne salgada, porque sal
grosso possuíamos ainda em quantidade.
Desviamo-nos do rumo norte sem que explicasse por quê. Mas
entendemos.
Não foi sem sorte, se é que perseguia o bosque de y-cipó.
Para que as vacas saiam, queima-se o bosque. Nalepelegrá disse que
não o queimássemos e Parrilla estava estranhamente influenciado por
Nalepelegrá.
Pareceu-me que era vegetação excessivamente fechada para que as
vacas pudessem penetrá-la. Parrilla opinou que podiam entrar por onde não
sabíamos. Disse-lhe então que procurássemos essa entrada ou parte menos
espessa.
Gastamos o resto do dia.
Junto ao fogo, de noite, os olhos de Parrilla eram uma recriminação e
um insulto para mim. Não me importava: eu tinha razões superiores por que
viver, não meramente as de honra.
Levantamo-nos de madrugada à ordem de transpassar o bosque.
Nem todos possuíam machado. Aqueles que não, trabalhavam com a
faca.
Cortei cipós, que pareciam poderosas cordas com que estiveram atadas
as árvores entre si.
Não era necessário abater árvores, porque se alguma se interpunha na
brecha ao eliminar as trepadeiras que a ligavam a suas vizinhas, caía com o
impulso de nossos braços. Era solo suzú, fofo, e as plantas mal arraigavam.
Entramos não sei quantas varas. Perdia-se a luz, que a princípio
recebíamos de fora, ao nível de nossos cortes. Eu a procurava em cima e
havia outras palmas sobre a forquilha das árvores que nasciam do chão.
Palmeiras pindó e plantas desconhecidas, samambaias, flores, formavam
outro bosque, aéreo, às vezes tão denso como o que perfurávamos.
Eu via nossa situação como a de quem quisesse penetrar no desenho de
um bosque sobre o qual se fez o desenho de outro bosque, e mais acima, mas
ligado ao primeiro, o desenho de um terceiro bosque confundido com um
quarto bosque.

Vicuña Porto usou facão uma vez, ao meu lado. Muito mudo, suado e
esfalfado.
Bateu em um cipó, o mesmo que eu trabalhava e a pouca distância: o
machado resvalou e os dois metais, faca e machado, chocaram-se.
Pensei que era uma provocação, mas não.
Irascível, com esforço, disse-me que foi uma torpeza de seu braço e que
o dispensasse.
Afastou-se.
Outro dia, o imediatamente posterior, procurou-me e se pôs ao meu
lado. Cortávamos com denodo, como para mostrar, um ao outro, que nada
nos importava, a não ser abrir o bosque.
Esgotei-me e, arfando ansiosamente, interrompi. Ele também. Então me
disse:
— Tenho meus pecados, mas não todos os que imputam a Vicuña Porto.
Não existe o Vicuña Porto nem o sou eu nem é ninguém. É um nome. E o meu
é Gaspar Toledo. Sou Gaspar Toledo, eu o venho sendo durante um longo
ano, e não quero ser outra coisa.
Batia em seu peito quando dizia que era Gaspar Toledo.
Eu o escutava escutando todos os barulhos do contorno, para saber se
Parrilla chegava, para torná-lo partícipe, sem a minha intervenção, daquela
confissão não pedida.
Estávamos sozinhos, os dois em um maldito buraco, que havíamos
cavado juntos ao longo da tarde.
Vicuña Porto não falou porque lhe saíssem da boca culpas e protestos
de virtude. Procurava comprometer mais minha cumplicidade pela
persuasão, convencendo-me de sua inocência.
De modo que assim que terminou de falar, e compreendi que ninguém
nos escutava, disse-lhe:
— Acredito.
Propus-me a desmascará-lo essa noite.

Espreitava a hora do repouso, para aproximar-me do ouvido de Parrilla.


Quando todos estavam deitados, nus, simulei dormir e realmente
adormeci, sem entregar-me plenamente. Era esse gosto do descanso, que o
corpo adquire assim que a posição e o silêncio se fazem propícios.
Estava fresco o ambiente, ameaçador de chuva, depois de dois dias de
vento sul. Os soldados já não construíam, para mim e o chefe, rancho nem
abrigo algum.
Cobria-me o céu cinza e me enroupava a voluptuosidade do sonho,
tentador, que me tomava e não, afrouxava, voltava, afrouxava, voltava
ganancioso cada vez...
Algo fino como um chicote, mas com vida, introduziu-se sutilmente pelo
couro que me embolsava. Cobra.
Sobre mim, arrastando-se depressa. A impotência, a cãibra total.
Chegou até a cintura, envolveu-se em si mesma e ali ficou.
Eu evitava respirar, para não me mover. Depois relaxei.
Ela procurava calor e sabia onde encontrá-lo. Eu conhecia seus
costumes e entendi que, sem agitar-me nem atacá-la, não seria mordido.
Se chamasse, quem tentasse despojar-me dela a excitaria e minha carne
ia pagar sua raiva.
Com os olhos muito abertos, contemplei o curso da Lua mais de meia
noite.
O sono veio como uma invasão secreta. Dormi, acredito que por alguns
minutos, e acordei com a morte nas têmporas, consciente de ter-me movido
involuntariamente.
Já não havia peso sobre o meu ventre. Foi a serpente a que se mexeu, ao
abandonar seu morno ninho noturno.
Amanhecia. Livrei-me da rigidez, virando-me, feliz, sobre o lado do
coração.
Quis fazer um sonho sem medos, embora não fosse mais longo do que
uns minutos.

42

P .
Retomávamos a marcha e os homens já haviam equipado as montarias.
A espada do capitão não podia talhar o desenho.

A noite de tensão e desvelo me pôs fraco e sumido, mais magro e leve,


acreditei. Pensava que ao cavalo não devia custar nenhum esforço carregar-
me.

A zona de bosque se prolongava de uma maneira pobre, como


correspondendo à minha natureza desse dia. Depois da riqueza e da potência
do bosque de y-cipó, uma pradaria queimada pelo sol ou pelo fogo
estabelecia a transição a um enfermiço laranjal acre.
Os cachorros, até então dispersos em nossa vizinhança, adiante ou atrás,
repentinamente se organizaram em quadrilha, na qual mais de três se
esmeravam em ficar na dianteira, e nos abandonaram. Franquearam um
momento o bosque e em seguida se perderam nele.
Pareceram-me ratos em fuga do barco que se afunda. Se tivesse podido,
teria interceptado a debandada, porque era como um sinal de meu naufrágio,
talvez, de nosso naufrágio.
Outra coisa representava para Parrilla.
Deu a ordem de parar e, com cinco homens na retaguarda, pôs-se no
rastro dos cachorros.
Não me contive e galopei por entre a poeira que o pelotão deixava. Era
como se lançar pela borda. Alcancei Parrilla, vibrante no esforço para
recuperar o terreno que me levava de vantagem.

Um lugar aberto, rico de pastos.


Uma vaca e seu bezerro.
Oito, dez cachorros no encalço da mãe, e os outros à distância, língua de
fora, ansiosos, taticamente contidos.
Parrilla nos indicou que os deixássemos fazer.
A vaca se defendia com seus curtos mas fortes coices. Os cães mordiam
os calcanhares dela e pulavam até os lombos.
O bezerro ficou desamparado. O grosso da matilha, inativo até esse
momento, arrastou-o e, dilacerando seu pescoço, matou-o. Era sua presa.
Sem disputa, os cachorros nos deixaram a vaca, que um dos homens
aprisionou com um laço.
Eu não intervinha na operação e contemplei o bezerro e seus caçadores:
um pedaço de carne invadido por vermes famélicos em feixe fervente.
Opinei que constituía para eles banquete demais.
Parrilla, talvez com o mesmo pensamento, embora mais ativo,
desmontou, chicote na mão, para dispersá-los.
Resistiam, rosnando.
Um, excitado pela fome velha e o sangue quente de sua vítima, tornou-se
metralha de mordidas no ar e, de um salto, derrubou Parrilla. Cinqüenta
passos.
Larguei o cavalo, para atropelar.
Uma limpa folha de metal se cravava desde embaixo da barriga do
cachorro e revolvia.
Com um puxão, freei o meu animal.
Parrilla se desembaraçava do cadáver, que lhe caíra em cima,
inundando-o com o suco das veias.
Compreendi que podia entregá-lo a Vicuña: Parrilla sabia ultimar os
cachorros.
Soltei-me do cavalo. Acredito que necessitava despojar-me de tudo o
que não fosse a idéia. Caminhei ao encontro de Parrilla.
Disse-lhe:
— Capitão, Vicuña Porto está conosco.
Parou de fazer escorrer o sangue das roupas. Com uma mão aprisionou a
outra, talvez porque a tinha mordida pelo cachorro, talvez para não bater-me.
Mas me batia com os olhos.
— Onde? Qual é?
Disse a ele.
— Como pode?... Como pode ser?
Parecia agarrar-me pelas roupas, para enfiar-me dentro e saber com
certeza, pronto.
— É. Esteve a meu serviço, quando fui corregedor. É. Ameaçou-me aos
dois dias de marcha.
Estava tudo claro. Tudo. Senti-me recondidamente limpo.
Parrilla se desligou de mim com um olhar que me mostrou que em seu
peito não havia gratidão.
Montou. Bem depressa, ao passar, ordenou aos soldados que
sacrificassem a vaca.
Atravessou o bosque, e eu atrás. Como se ficasse pendente uma resposta
sua e eu a perseguisse.
Porto sobressaía ao pelotão, como exposto, como predestinado.
Ocorreu-me que Parrilla jogava o cavalo em cima dele. Mas não.
Desviara-o a tempo e, no entanto, ficava insinuada a ameaça.
Acredito que fez sinal para que o seguisse, e podia-se acreditar que o
tomava por ser ele o que mais próximo teve ao precisar um homem.
Permaneci à distância, expectante, sem entender sua manobra.
Parrilla passou diante de mim seguido de Vicuña Porto; o capitão
impusera, com o exemplo, o trote rápido, e Porto se amoldava a ele.
Logo vi, nítido, o artifício.
O capitão freou em seco, fez um giro veloz e, desconcertando Vicuña,
deu-se tempo e manha para sacar a pistola e pô-lo em via de rendição.
O solapado descoberto esporeou e considerei que já estávamos
derrotados, porque em um instante se transformou em algo que se projeta
para a distância e sabemos que já nada o pára e há de ficar por completo
fora de nossas possibilidades.
Um disparo, e o cavalo se pronunciou na queda de costas.
Porto brincou no ar e caiu de pé, mão no cinto.
Estava sozinho na terra tensa e nua. Desvalido. Mais distante do que
toda a força de seu braço e a vingança ou defesa de sua faca.
Reapareceu em minha consciência o capitão. Ele, Vicuña e eu
formávamos um triângulo. Cada extremidade com seu rancor.
Soube que eu ainda não podia considerar-me seguro.
Da mesma forma que se a proteção ou o perigo dependessem de um
fator alheio, tratei de encontrar a tropa, que estava ali, perturbada, para sair
da ordem como se a ordem fosse um curral.
Alguma indicação de Parrilla houve, não sei.
Correram até ele quatro ginetes.
Depois, aos pares, avançaram por dois dos lados do triângulo. Um, para
onde se encontrava Vicuña; o outro, em direção a mim.
43

O insidioso carachai, em bando, picava o meu pescoço, a cara. Quando a


nuvenzinha procurava ferir-me a testa, eu nem podia ver, porque tampava um
profundo espaço, diante dos meus olhos.
As mãos não me serviam nem para a defesa contra o mísero inseto:
estavam ligadas por uma corda, às minhas costas. Sentia saudades delas,
como ausentes, e para senti-las minhas com uma fazia pressão sobre a outra.
Sem mãos, devia manter-me no cavalo ajustando as pernas às suas
costelas.
Talvez na invisível ferida de cada picada se tivesse depositado um grão
de pó, que me dava um ardor mordente e vivos sufocamentos de sangue.
O nariz destilava levemente e me sujava o bigode. Uma mosca grudou
um momento naquela matéria e procurei espantá-la com sopros para cima,
mas ela não ia embora. Depois, afugentaram-na os borrachudos.
Imaginei a entrada na cidade.
Toda a carne do rosto inchada. Como um porco: o nariz, os bigodes e os
lábios e, grudadas neles, as moscas, aproveitadoras e ominosas.
Detrás, minhas mãos, ineptas.
Para as pessoas, tão derrotado, repugnante e ruim Vicuña Porto, o
bandido, quanto Zama, seu acobertador.

Os vigias deram o alarme, que para mim estava presente desde alguns
momentos antes.
Um apinhado de forma variável, remoto e móvel.
Pensei em um exército indígena, uma matilha de chimarrões famélicos,
uma manada de animais selvagens...
Pensei que, talvez, Parrilla me deixaria morrer com as mãos atadas.
No entanto, acudiu a mim a esperança com a apreciação de que, quem
fosse que viesse, homem ou animal, marchava de sobra a descoberto para
merecer que se presumisse inimigo.
Não obstante, se se tratava de nativos em plano de agressão, podiam
contar eles com a vizinhança da noite, que apenas reduzia sua segurança no
deslocamento e para nós constituía estorvo e espessa clausura.
O capitão fez alistar os homens e mandou aos observadores que
avançassem tanto quanto pudessem para ver melhor.
Antes de meia hora estavam de volta, com a maravilha no rosto.
Afirmaram que eram indígenas, em número de quinhentos ou pouco
mais, e que marchavam a pé, em procissão, mas sem cruz nem imagem de
santo na frente, talvez sem rezas.
Parrilla perguntou se os guiava ou acompanhava algum frade.
— Não, senhor capitão — respondeu o principal, e os outros dois vigias
disseram que não com a cabeça.
É possível que só em tal ponto reparassem no desacerto de imaginar
uma caravana religiosa. Chegaram vestidos de cinza com o crepúsculo.
Parrilla havia alinhado seus homens em duas filas pares, talvez calculando
construir um muro duplo, e isto, claro, em uma batalha passaria a ser,
deveras, mera fantasia.
Porto e eu fomos mandados para a zaga, com custódia, junto aos cavalos
de revezamento.
Meu posto era deprimente e inábil para a observação.
Vi aproximar-se aquilo.
Estendido, podia envolver-nos hermeticamente.
Antes de superar certa distância estritamente prudente, que de maneira
alguma autorizava a carga dos ginetes, cessou o avanço.
Pela terra neutra, adiantaram-se uns oito ou dez meninos.
Ocorreu-me que tinham esse ar de decisão e essa confiança em si
próprios e em seus poderes que os tornam mais imunes aos diplomatas.
Puseram um joelho em terra diante do cavalo de Parrilla.
Notei que corria junto a ele um dos baqueanos.
Parlamentavam. O capitão do rei e os pequenos indígenas.
Eu não podia saber o que diziam.
Uma voz, uma só, passaram uns aos outros os soldados; mas veio a
morrer no trecho em claro entre eles e nós.

Cegos. Todos os adultos eram cegos. As crianças, não.

44

Tivemos acampamento em reunião.


Aproximou-nos deles, mais do que o acordo estabelecido em
parlamento, sua hospitalidade, uma generosa hospitalidade.
Traziam caça de veado daquele mesmo dia, e aguardente de alfarroba.
Entregaram tudo à nossa voracidade.
Depois, pude ficar um pouco mais com as mãos livres, sentado diante de
uma fogueira. O empanturramento de Parrilla o consentia.
Eu pretendia discernir dois acampamentos: o nosso, o noturno da
milícia, e outro externo, povoado por essa gente que, sem se forçar, aparecia
entremesclada conosco e com tudo o que transcendia de nós.
Preferia vê-los sem compaixão.
Eram as vítimas da ferocidade de uma tribo mataguaya. Foram cegados
com facas em brasa.
Sua descendência, no tempo passado desde o atropelo, que pude
calcular em doze anos, não se havia interrompido. Os filhos não nasciam
cegos.

Um soldado apertou o meu joelho.


Chamada de atenção, talvez de perigo.
Temi um golpe traiçoeiro por trás.
Para ali me impulsionava a olhar o solapado informante e em seu rosto
não adverti receio, e sim avidez, desordenados desejos.
Olhei.
Um índio jogara-se sobre uma índia.
Estavam na zona de luz.
Acreditei compreender. Não viam e haviam eliminado de cima deles o
olhar dos demais.

Outro índio trouxe para as brasas seu igtacú-guá, para caldear água.
Acocorou-se entre nós. Não falava.
Preparou mate.
Passou a cuia ao acaso, para quem quisesse servir-se antes dele. Disse
“forte”, que o mate era forte.
Falava espanhol. Foi mitayo[5] antes de ser cego.
Narrou outra vez a invasão dos mataguayos. Todos nós já a
conhecíamos.

Perguntei-lhe para onde se encaminhavam.


Não me respondeu. Dirigiu à minha voz um sorriso compreensivo que
me dizia que eu era muito ingênuo.
Para não mostrar que me cortava, perguntei-lhe então onde estavam seus
ranchos ou suas tendas.
Disse-me alguma coisa de que eu antes intuíra e mais, que por mim
mesmo possivelmente não tivesse conseguido entender.
Quando a tribo se acostumou a servir-se com prescindência dos olhos,
foi mais feliz. Cada qual podia ficar sozinho consigo mesmo. Não existiam a
vergonha, a censura e a inculpação; não foram necessários os castigos.
Recorriam uns aos outros para os atos de necessidade coletiva, de interesse
comum: caçar um veado, fazer teto de um rancho. O homem procurava a
mulher e a mulher procurava o homem para o amor. Para isolar-se mais,
alguns batiam em seus ouvidos até romper os tímpanos.
Mas quando os filhos alcançaram certa idade, os cegos compreenderam
que os filhos podiam ver. Então foram penetrados pelo desassossego. Não
conseguiam estar em si mesmos. Abandonaram os ranchos e se lançaram aos
bosques, às pradarias, às montanhas... Alguma coisa os perseguia ou os
empurrava. Era o olhar das crianças, que ia com eles, e por isso não
conseguiam deter-se em nenhum lugar. Apenas uns poucos, ainda rendidos à
vida nômade, não se sentiam alcançados ainda.

45

D .
Para além das paredes do sonho, tive um deslumbramento.
Abri os olhos. Impossível olhar.
Um momento, tivera junto ao rosto um archote aceso.
Já não estava seu calor em minha carne.
Fiz por ver, prevenido.
Dois, três archotes corriam entre os corpos adormecidos.
Uma verificação.
Sigilo.
Quis levantar-me. Não pude.
Meus pés estavam presos por uma corda.
No entanto, ao deitar-me para passar a noite sozinho, tinha as mãos
atadas.

A alvorada se insinuou na existência dos cegos, como um aviso de que outra


vez se colocariam em evidência.
Desgarraram-se do acampamento e somente nós ficamos no chão,
dormidos todos exceto eu, supus.
Não.
Três se levantaram e, em conclave, vagarosos, acudiram a cada um dos
que jaziam.
Baixavam um archote amputando-lhe o rosto; falavam-lhe; depois,
inclinados sobre ele, faziam alguma coisa, como se talhassem.
Então, aquele que fora visitado se incorporava, se esfregava e fazia
contorções que rapidamente interpretei: desentorpecia-se porque, como eu,
esteve atado.
Vieram a encontrar-me, os três.
Um disse que eu devia acompanhar o capitão.
Outro, que não, porque poderia matar tantos índios como qualquer um
deles, no caso de sermos atacados.
O terceiro aportou uma peregrina opinião: que graças a mim haviam
chegado até esse lugar.
A voz do segundo era a de Vicuña Porto.
Ele, parece-me, cortou a ligadura de meus pés.
Pude levantar-me.

Todos tinham soltos pés e mãos; eu, com liberdade de caminhar, permanecia
manietado.
Os soldados comiam carne assada, fria, de veado. Detive-me perto,
para olhá-los.
Um, talvez meu companheiro de fogueira da noite anterior, desatou-me e
me deu de comer.
Ninguém objetou a sua ação.
Alimentavam-se em silêncio, como reservando seus pensamentos por
temor de discuti-los. Alguma coisa ficava por fazer.
Vicuña Porto abandonou a cuia sem esvaziá-la.
Os demais cessaram de mastigar e afastaram os restos de carne.
Meu benfeitor, olhando-me na cara, disse-me que já era suficiente.
Pretendia que eu lhe dissesse que me amarrasse de novo? Não podia pedir-
lhe isso. Ele o fez, então, sem que mediasse solicitude de minha parte.
Resmungava, ele.
Vicuña Porto se retirou, e os soldados o seguiram. Segui Vicuña Porto e
os soldados.
Tinham Parrilla como prisioneiro e era um feroz prisioneiro.
Estava caído no chão, travado com muitas cordas.
Aquela que foi sua gente o rodeou, contemplando-o, e eu com eles, mas
possivelmente ele não me distinguia. Insultava a todos de um modo geral.
Afastaram-se. Soube que era um conselho no qual eu não seria admitido.
Fiquei ali, diante do capitão.
Ele me disse: “Também disseste que sim”, e pensei que os outros
soldados, aqueles que não eram os três, haviam dito que sim a alguma coisa,
mas eu não, porque nada me perguntaram.
Ia explicar a Parrilla, e ocorreu-me que já era desnecessário, porque
Parrilla, logo a seguir, deixaria de estar conosco.
Pareceu-me que, nesse momento, em toda a crosta terrestre não
alentavam mais do que dois homens: o capitão, encordoado aos meus pés, e
eu, manietado, observando-o como se não fosse ele, como se não fossem
possíveis os sentimentos, como se não fossem possíveis as possibilidades.

Um o agarrava pelos cabelos, outro em diferentes partes do corpo.


Acreditei que haviam pactuado em torturá-lo. Mas não.
Apenas, talvez, o último mau-trato. Levaram-no desse modo, soerguido,
até a ribeira.
Postergado vinte passos, ia eu. Sozinho.
Jogaram-no no rio.
Pensei que, se soubesse nadar sob a superfície, poderia salvar-se.
Depois lembrei que não lhe haviam cortado as cordas.
46

Meu protetor me devolveu o domínio das mãos. Cavalgamos como para


recuperar algum lugar que houvéssemos perdido no dia anterior.
Mas não era o bosque de y-cipó. Nem, tampouco, o acre laranjal. Devia
estar mais para dentro.
A empresa não tinha aspecto de suscitar alegria ou fortes esperanças.
Não falavam dela.
Para mim representava uma fuga, uma fuga incerta.
Acredito que então, junto com essa incerteza do objetivo, começou a
possuir-me a certeza de que, em qualquer lugar, as minhas possibilidades
seriam as mesmas.
Perguntei-me, não por que vivia, mas por que havia vivido. Supus que
pela espera e quis saber se ainda esperava alguma coisa. Pareceu-me que
sim.
Sempre se espera mais.
No entanto, isto discernia meu entendimento; mas, com prescindência
dele, estava entregue a uma inércia violenta, como se minha quota estivesse
por esgotar-se, como se o mundo fosse ficar despovoado porque eu não ia
mais estar nele.

47

Na fogueira vespertina, falaram dos cocos.


Admitiam-me já como testemunha. Pode ser que me considerassem
semelhante a um indígena cego, ou meramente um sequaz inferior e anulável.
Fizeram cerco ao fogo. Eu estava fora da roda, um pouco atrás. Quando
eliminaram a primeira fome, passaram-me uma ração.
Cocos.
Minha ilustração era perigosa.
Eles estavam enfeitiçados por um relato dos cegos. Os cegos haviam
escutado a explosão, que as crianças, seus filhos, por serem cegos, não
podiam distinguir com igual perfeição. Pelo estampido guiaram-se até a
serra. Acreditavam que era uma batalha de espanhóis e lusitanos, e que
poderiam aproveitar-se dos víveres abandonados. Eram pedras, umas pedras
redondas, que, ao rebentar, faziam barulho. As crianças diziam que
floresciam em cristais preciosos, essas gemas que os brancos cobiçam.
Eu podia desencantá-los, dizendo-lhes que não dariam senão com
espatos e minerais transparentes isentos em absoluto de valor, como o
souberam outros aventureiros e sacrificados em tempo tão distante como um
século antes.
Podia apagar, do céu que perseguiam, aquele relâmpago de pedraria.
Então ficaria eliminada a causa de gratidão que importou para que me
deixassem com vida. Teria de inclinar a cabeça, sem argumentos, aquele
piedoso que fez valer a utilidade de tê-los levado, e tão acima, que era como
dizer tão próximo dos tesouros.
A morte, então. Minha morte, escolhida por mim.
Pensei que não se pode gozar a morte, embora, sim, ir à morte, como um
ato querido, um ato da vontade, de minha vontade. Já não esperá-la. Acossá-
la, intimá-la.
Pedi que me escutassem.
Obtive um lugar na roda, que me ofereceram, como se pressentissem que
eu realizaria um aporte capaz de dar-me com eles condições de paridade.
Disse, pois, como os cocos representavam a ilusão.
Não me opuseram incredulidade nem desconfiança.
Soube que dissera sim aos meus verdugos.
Mas fiz por eles o que ninguém quis fazer por mim: dizer, às suas
esperanças, não.
48

Outra voz, no entanto, atendia à reunião, e ainda não, ao que parece, à da


vingança e da ferocidade.
Um soldado dizia o que antes não procurou dizer porque tinham pela
frente desígnio menos arriscado e, presumivelmente, de maior proveito.
Descreveu com minúcia a viagem dos portugueses a Matto Grosso e
Cuyabá e disse, como se o conhecesse por observação pessoal, da fadiga e
do desamparo que traziam no regresso esses homens junto com sua
prodigiosa carga de belos minerais.
Propunha sair ao seu encalço nos rios Cuchuy ou Tacuary.
De novo os diamantes acendiam suas luzes nos olhos daqueles astrosos
sublevados.
Parecia-me vê-las também presas em suas barbas.
Por acaso Vicuña Porto descobriu confirmadas em meu semblante as
perspectivas e me convidou a dizê-lo.
Fiava-se ele e fiaram-se os demais de minha pobre ciência geográfica,
que efetivamente se punha do lado da iniciativa.
Era possível.
Uma empresa maior. Consideravelmente afastada do poder das armas
espanholas.
Deixava-se ver que todos aguardavam a aceitação de Porto para soltar
seu entusiasmo.
Porto não se pronunciou ainda.
Procurou um frasco de aguardente, que talvez tenha sido do capitão; o
pôs contra o resplendor da chama e vi que restava não mais do que a
quantidade de dois goles.
Bebeu um, demorando-o na boca, para aproveitá-lo melhor.
Com a palma, limpou o bico. Estendeu-me o último gole.
Vacilei. Aceitá-lo, disse-me, é continuar.
Continuar era ser um dos homens da aventura e do crime. Continuar era,
também, viver.
Peguei o frasco com as duas mãos e o levei à boca como se o mordesse.

Ao estender-me para o repouso, guardei esse vidro colado às minhas carnes.


Amparava-o como se me protegesse. Aferrava-o como se fosse meu
salvo-conduto. Era... como a promessa de um filho, ou igual a um amado
despojo.

49

Um madrugador trouxe uma avestruz.


Quando a abria, pedi-lhe um pouco de sangue. Fez-me sinal de que
aproximasse uma vasilha e nela deixou cair o jorro de uma veia.
Mal coberto o fundo, disse-lhe:
— É suficiente.
Olhou-me com mediano espanto.
Arranquei uma pena da ave e me encaminhei ao baixio, junto ao grande
curso da água.
Com a faca, talhei ponta à pena.
Tirei de minhas roupas um papelzinho que se havia enegrecido nas
bordas. Alisei-o sobre a perna e escrevi: “Marta, não naufraguei”.
A última palavra, talvez, ficou escrita com traços confusos. O sangue da
avestruz se havia coagulado e já não me servia.
Pus o papel no frasco. Tapei-o e o joguei ao rio.
Depois da imersão se afastou, boiando.
Alguma coisa exterior, humana, uma presença influía no ambiente
através de mim.
Levei o olhar à barranca.
Um soldado me observava, impávido, como se fosse uma antiga
testemunha incapaz de surpreender-se.
Pensei que aquela mensagem não estava destinada a Marta nem à pessoa
alguma exterior. Havia escrito para mim.

50

Os dezesseis se pronunciaram por minha morte, a cara descoberta, olhando-


me nos olhos.
Mas o voto, único, de Vicuña Porto, era mais poderoso. Disse que a
delação tem pena capital e a traição merece igual castigo, mas ninguém pode
ser justiçado duas vezes. Disse então que se morre antes de morrer,
padecendo uma morte dupla, pela mutilação anuladora.
Deduzi que não, que ele se equivocava, porque mesmo sem braços, sem
olhos, poderia comer raízes arrancadas com os dentes, poderia rolar como
um pacote em direção ao rio. Se me deixavam a vida, conservaria a
faculdade de escolher a vida ou a morte.
Também Porto o sabia. Seu discurso, astuto, envolvia e dissimulava a
misericórdia que se propunha exercer.
Antes do primeiro talho, soprou-me ao ouvido: “Afunde os punhos na
cinza da fogueira. Se não te dessangrar, se te encontra um índio,
sobreviverás”.

Alguém me disse:
— Queres viver?
Alguém me perguntava se desejava viver.
Era, então, porque o meu sangue não se foi de todo. Era, também,
porque chegara o índio.
Podia, pois, não morrer. Não morrer ainda.
Rasgou a minha roupa.
Depois senti a prisão do torniquete nos braços e soube que as minhas
mãos sem dedos já não emanariam sangue.
Talvez tenha dormitado, talvez não.
Voltava do nada.
Quis reconstruir o mundo.
Descolei as pálpebras tão pausadamente como se elaborasse a alvorada.
Ele me contemplava.
Não era índio. Era o menino loiro. Sujo, estragadas as roupas, com não
mais de doze anos.
Compreendi que era eu, o de antes, que não havia nascido de novo,
quando pude falar com a minha própria voz, recuperada, e lhe disse através
de um sorriso de pai:
— Não cresceste...
Por sua vez, com irredutível tristeza, ele me disse:
— Tu tampouco.
[1]
Publicado originalmente em El concepto de ficción. Buenos Aires: Ariel, 1997.
[2]
Forma de referir-se aos uruguaios, da época colonial até os dias atuais, derivada do nome do país:
República Oriental do Uruguai. (N. T.)
[3]
Antigo cargo de governador de província ou comarca fronteiriça, com poder militar. (N. T.)
[4]
Tratamento de cortesia ou de respeito equivalente a minha senhora, antecedendo o nome da mulher a
que se refere. (N. T.)
[5]
Voz quéchua. Índio que, na América, era sorteado para trabalhar nas obras públicas e minas. Era um
trabalho forçado, mas pago. (N. T.)

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