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Fernando Namora
Ficha Técnica
Autor: Fernando Namora.
Título: O TRIGO E O JOIO.
Introdução de Eduardo Lourenço
Dados da Edição: Círculo de Leitores, Lisboa, 1988.
Série: Romances Portugueses — Obras-Primas do Século XX.
Género: romance.
Digitalização: Ana Medeiros.
Correcção: Vera Lúcia Figueiredo.
Sobre o Autor
"O Trigo e o Joio, verdadeiro poema lírico, é sem dúvida uma das
obras mais notáveis da literatura portuguesa contemporânea." — Lê
Figaro — França.
À
À noite, quando Alice já estava adormecida, afastou-lhe a manta
do corpo e pôs-se a investigar se existiria um indício de doença no
corpo da filha. Até aí, temera essa devassa. Mas agora já se sabia
suficientemente desesperada para dominar quaisquer outros
sentimentos. Descobriu, por fim, no ventre de Alice, uma bolha de
água, aureolada de vermelho, e então, embora já previsse que
acabaria por suceder qualquer coisa que revelasse a obra da morféia,
sentiu-se tolhida e esmagada. Foi dali sacudir o marido, que dormia
enrolado como um verme, e disse-lhe:
— Vende a burra.
Loas esfregou os olhos estremunhados.
— Que foi? Que se passou? Roubaram a burra? — gritou ele, com o
rosto cheio de estupor e inquietação.
— Temos de a vender.
— O quê? — insistiu ele, ainda de expressão sonolenta.
— Encontrei uma bolha no corpo da menina. Ela continua a
brincar com a burra.
Loas coçou ferozmente o coiro cabeludo. Tinha os pés nus de fora
da cama, a cabeça sobre o tronco, onde os ossos furavam uma pele
enrugada.
— Um raio me parta, Joana! — E numa voz dolorosa e cobarde: —
E tu pensas que a bolha é alguma coisa?
Queria fazer ainda outras perguntas, mas receava vê-las
esclarecidas.
— Não sei. Mas a gente tem de dar um jeito a tudo isto.
— Pois. Temos de dar um jeito. Um raio me parta: é mesmo
preciso dar um jeito a tudo isto. Amanhã leva-se a menina ao
virtuoso. E tu prende-me a danada da burra!
— Vende-a.
Loas respirou fundo e retorquiu com uma violência que parecia
culpar Joana de tudo o que lhes acontecia:
— Vende-a! Vende-a! E depois? Não sabes que a gente precisa da
burra?
Abotoou a camisa, prendendo-a nas calças repuxadas, e saiu para a
courela, repetindo aqueles desvairados passeios nocturnos.
XVII
Aquele assunto do virtuoso era trato para homens, mas Loas não
soube impedir que Joana acompanhasse a filha. Na ausência dos
dois, Barbaças ficaria a governar a courela.
— Escuta aí, Barbaças. Alice tem uma bolha na barriga. A gente vai
levá-la ao virtuoso. Toma conta da burra e... da courela.
— Sim senhor.
Ainda bem que o rapaz não se dava ao trabalho de pedir grandes
explicações.
Da courela ao monte do curandeiro era uma caminhada de
respeito. Barbaças não compreendia que alguém se ralasse com uma
simples bolha e que, além disso, não se servissem da burra para
transportar a garota. Era lá com eles! O Loas que alombasse com a
filha, logo que assim o desejava.
O monte do virtuoso ficava nos limites de uma aldeia gentia,
afogueada em poeira, para os lados de Espanha. Eram uns bons
quilómetros de terras de azinho, olivais, e, por fim, de planaltos
barrentos e descarnados, a dois passos de um rio que a paisagem
atormentada de secura nunca faria prever.
Joana, Loas e a garota avistaram a aldeia pela hora quente.
Tinham deixado para trás as leivas de terra funda, por vezes
atravessada de florestas que Joana sempre identificava com a
paisagem dos lugares da sua infância. Todas as vezes que passava ali
sorvia com ardor o ar leve e perfumado dos pinheiros, para que os
pulmões o retivessem por muito tempo. A aldeia conservava ainda as
ruínas de um castelo cercado de casario branco, de uma brancura
que parecia renovada naquele momento, olhando com sobranceria a
estrada asfaltada, junto da qual a atmosfera, vista da distância,
parecia agitada numa poeira fosforescente. Dali para diante, quase
de chofre, a terra despia-se, calcinada, até morrer nas faldas azuis
das serranias da fronteira.
Loas sentia as pernas grossas e pesadas. Havia muito que levava a
garota cavalgada nos ombros e o cansaço exigia-lhe qualquer espécie
de protesto.
— Ainda não te parecem horas de merenda?
Joana parou e abriu o farnel. Loas cheirou o pão e o toucinho e
perdeu o interesse.
— O que eu tenho é sede.
Alice estendeu imediatamente os braços para a merenda, receando
que o comentário do pai fosse adiar a refeição.
Loas foi observando o prazer com que Alice mordia o toucinho.
Apetite não lhe faltava. Apetite e vida. Era isso que ele queria
exprimir no olhar quase jovial que trocara com a mulher. Agora, que
estava perto da casa do virtuoso, apetecia-lhe voltar para trás. Tinha
pavor de uma confirmação. Perceberia o homem daquelas doenças?
Ná, não era bem isso que ele desejava saber. Não podia, sequer,
aceitar a hipótese de a garota estar doente. Alice não estava doente.
Mas saberia o homem dizer-lhes se existia algum contágio?
Contágio?! Mas contágio era doença. Com um tal apetite, raio! Podia
lá ser!
E Loas não despegava os olhos dos gestos da criança, da rapidez
com que ela mastigava a merenda, e nesse embevecimento parecia
estimulá-la a comer mais e sempre mais depressa, para, desse modo,
espantar de vez os receios e as indecisões da família. Apetite era
saúde. Então o Barbaças estaria doente petiscando a toda a hora,
bifando à sorrelfa toda a fruta que amadurava numa árvore? Podia
alguém ter a peste lá dentro rindo, comendo, saltando como Alice o
fazia? Rindo? Rindo, não. Alice andava murcha. Comia, tinha
apetite, mas perdera o bulício de outros tempos. Andava murcha da
doença. Não, não podia ser da doença! E a danada da burra? Não lhe
consumira já todo o pasto acumulado na frescura do Outono? Os
animais defendiam-se bem das doenças. E quem sabe se a lepra não
queria nada com as bestas!...
Abrenúncio: seria possível? Se assim fosse, a burra teria vindo
para a courela tão sã como qualquer outra. E Alice?
— Vamos. Alice já comeu.
Joana viera fechar brutalmente aquele clarão de esperança. O
virtuoso o diria. São homens predestinados, têm na boca as palavras
dos santos. Agora já desejava ardentemente chegar ao monte do
curandeiro. E, assim, Loas retomou a marcha sem pensar na fadiga
dos músculos.
— Olha, Joana. Tenho uma pergunta a fazer ao homem. Lembra-
me.
— Que homem?
— O virtuoso. Qualquer parvoeira.
E Joana espertou-lhe as passadas, adiantando-se-lhe no caminho.
No primeiro monte que encontraram, Loas indagou onde ficava a
casa do virtuoso.
— Na baixa daquele alqueive. É perto. Podem seguir o trilho dos
carros.
O trilho dos carros. Vinha ali, sabia-se, gente de toda a província e
de mais longe ainda. Lavradores, homens de letras, o povo de toda a
parte. Era um homem entendido.
Que iria ele dizer sobre a menina?
Joana atravessava agora um restolho de feno. Mais além, regos de
legumes, ávidos de uma invernia. E, de improviso, um telhado de
telha marselha, paredes de um amarelo intenso, toda essa arrogância
a esforçar-se por sobressair da monotonia plebeia de montes
rasteiros e brancos.
Depois de uns minutos de espera, com a menina bem segura nas
mãos do Loas, como se alguém estivesse a ameaçá-la, um homem
desceu a encosta, sem pressas, e abriu a porta. Era um homem novo,
gorducho. Vestia um colete desabotoado, ao desdém, e não parecia
surpreendido com a visita.
— Que desejam? — inquiriu desinteressadamente.
— Trazia aqui a minha filha — esclareceu o Loas, engasgando-se.
— Entrem pelo outro lado.
Era uma ordem. Loas aproximou-se da mulher. Ambos se sentiam
humildes e embaraçados.
O curandeiro ofereceu-lhes duas cadeiras, onde eles se sentaram
de tronco muito direito (um raio me parta! Porque é que um homem
não se sentiria ali à vontade?), enquanto aproximava de si uma
cadeira de lona e nela se reclinava com preguiça. Loas, num gesto de
respeito, havia tirado o chapéu, mas o virtuoso, como quem concede
uma graça, convidou-o a repô-lo no seu lugar.
Loas olhou Joana, Joana olhou Alice, e esta, assustada, escondeu-
se nos joelhos do pai. Qual deles tinha coragem para começar?
— Quem os mandou cá?
— Ninguém.
O homem coçou os ouvidos com o lápis, abanando
negligentemente com as pernas. Parecia enfastiado.
— Donde são?
Loas voltou-se de novo para Joana e a mulher disse uma frase
curta:
— De perto.
— Não os conheço. Mas na vossa terra não há quem ensine?
Alice, inquieta e deslumbrada, olhou o pai. Loas respondeu com
uma espécie de triste humilhação:
— Há um homenzito qualquer que vende umas ervas. Pouco sabe.
Do senhor é que se fala por toda a parte.
O virtuoso sorriu com indulgência. Quando ele sorria, via-se um
dos seus caninos empoleirado sobre um dente vizinho. Alice fixou
essa pequena deformidade e aquele homem desconhecido lembrou-
lhe um gato assanhado.
— Está bem. Vamos então saber quem está doente.
Loas de novo procurou um apoio na mulher, e, como esta baixasse
os olhos, o virtuoso, aproveitando a hesitação, interpôs-se à resposta:
— Vou eu dizer. — E passou as mãos pela poeira acumulada na
mesita cheia de frasearia com rótulos de farmácia. Depois de
verificar o pasmo do Loas, acrescentou:
— Que médicos o trataram?
— A mim? — disse o Loas.
— Você tem às vezes noites mal dormidas, não é verdade? — Loas
coçou a nuca, sem encontrar uma resposta decente. — E dias em que
está com pior disposição do que outros. E sente às vezes carregação
sobre os olhos. Zanga-se em certas ocasiões por coisa pouca.
Loas, de súbito, encarou Joana. Raio de mulher! Teria ela... Sentia-
se caído numa miserável armadilha.
— Um raio me parta! — gritou ele, por fim, numa voz que já
dispensava cerimóniass.
— Sossegue — disse o homem, sem que a sua expressão se tivessse
alterado. — Você é um doente dos nervos. Tem uma neurastenia
irritativa nervosa. Já tomou xaropes?
E o seu rosto carnudo, o seu olhar sanguíneo, desafiavam o olhar
magro e perplexo do Loas, fixando-se depois nas mãos do lavrador,
irrequietas sobre os joelhos.
Loas ia a esconder as mãos, mas o curandeiro segurou-lhas.
— Deixe ver. Olhe que às vezes a sua doença é tão forte que até
mirra as partes.
Joana levantou-se com decisão e ia para corrigir toda aquela
trapalhada quando o virtuoso a travou com um dedo apontado à
testa:
— E vossemecê é que tem de tomar conta dele. Se não mo tivesse
trazido, era mais que certo que lhe mirravam as partes. Há quem
venha a ter o S. Vito pilético, que dá o pileticismo.
Loas levou as mãos às partes. Na testa borbulhava-lhe um suor
frio. Aterrado, não sabia que dizer ou pensar. O homem adivinhava
tudo! Sim, havia muito que o apoquentavam todas aquelas coisas:
noites mal dormidas, zangas, carregação sobre os olhos... E quanto
às partes, efectivamente, nos últimos anos... Joana armara-lhe
aquela cilada, gaitas! Mas reconhecia agora que ela procedera muito
bem. De contrário, ele nunca se teria convencido de que era um
doente. E, desprezada a moléstia, acabaria no pileticismo.
Desta vez fixou a mulher com humilde gratidão e foi nessa altura
que ela levantou bruscamente o vestido de Alice, antes que esta
pudesse defender o seu pudor, e disse com aspereza:
— Vossemecê está enganado. A doente é a menina. Tem esta bolha
na barriga.
O virtuoso teve um momento de desorientação. As suas narinas
fremiam e no seu olhar correu uma nuvem de crueldade.
Depois disse:
— Isso já eu sabia. É andaço. Mas em primeiro lugar estava a
doença do pai.
— E a bolha da pequena será de cuidado?
O curandeiro abriu as gengivas num arremedo de sorriso,
descobrindo o canino cavalgado. De olhos brilhantes e narinas
abertas, como se estivesse acometido de cio, pôs uma trágica
severidade na resposta:
— De muito cuidado.
XVIII
Aquela conversa com o virtuoso precisava de ser bem meditada. E
não era com as pernas inchadas e dormentes e com a menina
encavalitada nos ombros que um homem podia arrumar as ideias.
Havia meia hora que estava para dizer a Joana que ficaria à beira da
estrada a descansar um pedaço, que fosse indo ela à frente, com a
menina ao colo, se assim o entendesse. A certa altura, passou os
dedos pela testa, com enfado, e fez um sinal de paragem, como a
auscultar um novo rumo, e logo poisou Alice no chão.
— Vai indo, Joana. Vai indo, que me doem as tripas.
E talvez doessem. As tripas e muita coisa mais. Sim, ele tinha de
esclarecer ali, sem demora, no sossego daquela solidão, o que lhes
dissera o virtuoso. Palavras estranhas e sombrias, com mil diabos!
Teria ele, efectivamente, uma neurastenia irritativa nervosa? Tinha,
fora de dúvida. O homem adivinhara-lhe as mudanças de génio, as
aflições, a insónia. O resto também deveria ser verdade. E então
aquela história das partes mirradas...
Um raio me parta: acertara! Tinha de cuidar de si. Era um doente,
muito perto do tal pileticismo, e nunca o suspeitara. E Alice? Alice!
Como podia ele esquecer que era a saúde da filha que importava
acima de tudo?! Ora o virtuoso começara a falar em bolhas de
andaço, certamente para lhes evitar uma sentença mais terrível, até
que o Loas o puxara a um canto, para lhe explicar, longe dos ouvidos
de Alice, que a burra fora para a courela das mãos de uma leprosa e
que ninguém conseguia separá-la da menina. "Morféia, diz
vossemecê" — gritara o homem, de olhar afiado e ríspido pregado em
Joana. (Por que razão é que o virtuoso não gostara de Joana?)
"Morféia? Estão perdidos!" E dissera que era preciso defumar
imediatamente a besta e a garota com ramos de tojos que, pesados a
olho, equivalessem ao peso de Alice, Teria de se fazer uma fogueira
dos tojos e segurar a menina e o animal por cima das chamas, até
que o mato se reduzisse a cinzas. E, fora do tratamento, a garota
deveria ser impedida de toda a aproximação com a burra.
— E o fogo não lhe queimará a barriga?
— Talvez — aventurara o curandeiro. — Mas também lhe queima a
morféia...
— E... e... quem será capaz de segurar a burra com a barriga
chamuscada?
— Quem é o dono? Não é vossemecê? Não é vossemecê o pai da
garota?
Sim. O homem tinha razão. Em todo o caso, se a besta se
lembrasse de escoicinhar, atirando-lhe com uma ferradura às
partes...
— Mas... será mesmo preciso que seja o pai da menina?
— Lá preciso, não é.
Era isso que ele desejava ouvir. Agora, ali, no meio do longo
silêncio da charneca, tinha de estudar um meio de proceder às curas
sem arriscar o seu corpo combalido.
Um coice nas partes poderia ser-lhe fatal. O Barbaças seria homem
que tomasse esse encargo para si? Dantes, talvez fosse. Mas já
começava a enfiar o nariz nas ordens que lhe davam. Teimoso,
desconfiado. E via-se bem que andava de mau modo. Havia de
querer que lhe explicassem o motivo daquelas fumaradas e iria logo
pensar que se tratava de negócios com o mafarrico. Não, com o
Barbaças não poderia contar. Ainda se o virtuoso lhe não tivesse
chamado a atenção para as partes... (Homem entendido! Como ele
lhe penetrara nos segredos mais íntimos!) Claro que, se tal não
houvesse acontecido, não iria chamar ninguém para o substituir nas
curas da filha; mas assim, era evidente que deveria tomar
precauções. E o Vieirinha? O Vieirinha, pois, abrenúncio! Em um
tipo lhe dizendo que aquelas práticas com burras e tojos eram
recomendáveis para seduzir os favores das mulheres... Ainda bem
que o Vieirinha padecia desse fraco! Antes de chegar à courela, daria
uma volta pela cabana do compadre. O Vieirinha ainda tinha
músculos para se agarrar às ilhargas de uma burra e segurá-las por
cima do fogo. Começariam a defumar a menina nessa mesma noite.
Loas, com os seus problemas resolvidos, levantou-se do aterro em
que se sentara e, quase alegre, recomeçou a jornada.
Joana e Alice levavam-lhe cerca de uma hora de caminho. Alice
precisava de correr para acompanhar a pressa da mãe e puxava-lhe
as saias uma vez por outra, como para lhe refrear a rapidez ou
sacudir o mutismo. Joana, de tão apressada, dir-se-ia que desejava
aumentar rapidamente a distância que a ia afastando do virtuoso, da
árida charneca que precedia o bosque de pinheiros. Fugia. Fugia da
odiosa sentença do virtuoso? Morféia, lepra! Fugia da charneca, da
angústia, das ingénuas e contraditórias preocupações do Loas? Para
onde fugia Joana, indiferente ao cansaço da filha?
Os seus pés nus sobressaltavam a poeira da estrada. A poeira
levantava-se, agarrando-se-lhes ao rosto e ao vestuário, continuando
a segui-las até alcançarem o piso de torgas virgens. Bastavam duas
semanas de céu limpo para que as nuvens de poeira voltassem aos
caminhos da charneca. Poeira, secura, solidão. E por toda a parte o
odor quente do trigo, espesso e lascivo, fundindo-se com o mofo
daquelas terras onde os restolhos apodreciam até que o arado, na
próxima sementeira, os sepultasse no subsolo. E também os
pensamentos mergulhavam nesse charco, sem que um vendaval,
chuva, serras, árvores, vento, os revolvesse e tornasse límpidos.
Joana, fugindo da charneca, fugindo do trigo, fugia dos seus
pensamentos estagnados.
Todos os anos, logo que o tempo enxugava, anunciando os meses
rasos em que a terra e céu eram rescaldos de um incêndio, Joana
tornava-se inquieta e ainda mais taciturna do que habitualmente. E
nela despertava, com uma agudeza que o tempo não conseguia
amortecer, a saudade da sua província. A monotonia parda da
charneca, persistindo ano após ano, como num cárcere perpétuo,
nunca a poderia seduzir; por muito que o tempo ou a paisagem se
repetissem, essa teimosia apenas a aproximava da harmonia
caprichosa da paisagem da sua infância, lá onde os cheiros, os dias e
as cores nunca chegavam a sedimentar. Cores de uma beleza volúvel,
de uma garridice fugitiva, evolando-se como fugazes borboletas, que
o vento magro e puro das serranias soprava de norte a sul,
misturando-as, renovando-as, para que os sentidos se não cansassem
de as reter. O céu nunca repousava, matizando ora de luz, ora de
sombra, esse mundo prolixo, onde as pessoas, perante a
instabilidade da paisagem, se tornavam comunicativas e agitadas.
A maldição que descera sobre a courela juntava-se ao marasmo da
planície. Tornava-se qualquer coisa como um lodo que lhe
empastasse ainda mais a respiração. Também Joana tinha os
pulmões obstruídos. Lodo, lodo. Dir-se-ia que a charneca inchava
com a peste — uma pasta de pão que a levedura obriga a fermentar.
Joana espremia os músculos do peito para se libertar desse
estrangulamento. Todo o seu corpo exigia desesperadamente a
violência da montanha, o vento másculo que desentorpece os
sentidos, as árvores que purificam o ar dos pulmões.
Todos os anos, quando o céu, sem uma ruga, se curvava
docemente sobre a terra para um sono de alguns meses, Joana era
acometida dessa rebelião contra a planície.
E então saía da courela, atravessava herdades e pousios, para se
refugiar durante horas na floresta. E lá voltava sempre que
suspeitava que os problemas da família tinham alguma coisa que ver
com a charneca. Essa romagem começava a ter o seu quê de
misticismo. Esquecera quase todas as orações da sua infância, mas
acontecia-lhe ter estranhos diálogos com os santos nas vezes que
procurava esse oásis de majestade e verdura. Chamava uma santa
pelo seu nome, chamava-a por entre os murmúrios misteriosos da
floresta, como teria chamado uma pessoa de família. A santa, nesse
apelo biológico, compreenderia melhor o seu desejo de regressar ao
Norte. E à medida que se confundia com a paisagem, também os
deuses se iam identificando com as árvores, com as folhas, com o
próprio rumor do vento. Por fim, dirigia-se indiferentemente ou
simultaneamente ao bosque e às divindades.
Alice percebeu que se afastavam do caminho da courela e que a
floresta começava a elevar-se e a aproximar-se das duas. E, tal como
sucedia ao pai, ela encarava o cerro alto, onde as árvores cresciam
para o céu, como um lugar interdito. Joana teve de puxar por um
braço da filha para que ela não ficasse para trás. A menina nascera
na charneca, era um rebento do lodo. Joana puxava-a cada vez com
mais brusquidão.
— Estou cansada, mãe.
— Descansamos já.
Descansaram numa clareira de eucaliptos e pinheiros. O chão seco
estava atapetado de flores arroxeadas. Joana respirou com
sofreguidão o cheiro das ervas e das folhas — mas nessa embriaguez
vinha misturar-se pouco a pouco o fedor gordo e mole da campina.
Subindo do fundo da estepe purpúrea, alongando-se no clarão do
crepúsculo, a campina chegava ali. Joana levantou-se, com a mão de
Alice nas suas mãos, e penetrou mais no interior da floresta. Os
troncos eram agora tão juntos que não havia uma fenda por onde
espreitar a planície. Alice olhava para todos os lados com mais terror
que curiosidade. Para onde queria a mãe levá-la?
— Gostas, Alice?
A voz da mãe era mais aveludada, ansiosa e distante.
— De quê?
De quê! A menina era um rebento da charneca; não
compreenderia. Joana, há muitos anos, quando Alice estava para
nascer, trouxera ali o marido com a esperança de que ele, contagiado
pela magia do bosque, se decidisse a mudarem a sua vida para longe
da planura. Loas, porém, encarando as árvores solenes, sentira-se
perante um mundo misterioso e secreto — e abalara antes que ela
reunisse coragem para repetir o pedido. Nem o Loas nem a filha
poderiam compreender. Nem a filha — fruto da sua carne, sangue
onde corria ainda o ímpeto da gente do Norte! E ela tanto desejava
que a filha tivesse os sentidos despertos para esse apelo das
entranhas!
Se Alice viesse ali muitas vezes, talvez o ar tranquilo dos pinheiros
a libertasse dos limos da charneca e da podridão da doença. Mas quê!
A menina tinha nas veias o torpor da planície; Joana estava sozinha
na sua devoção pela floresta.
Bem o sabia. E, mastigando as lágrimas, para que elas não fossem
explodir, pôs-se a pensar na sua terra como se nada mais lhe
restasse, como se a sua terra fosse apenas cor, folhas, árvores, e a
nostalgia do passado apenas a saudade de um bosque, a nostalgia de
uma cor.
XIX
— Mas para que é preciso meter nisso a burra e a garota? insistiu o
Vieirinha.
Loas encontrara o Vieirinha dentro da cabana, deitado sobre a
esteira, e à sua volta as maçãs, as cinzas e os melões impregnavam de
tal modo o ambiente que o próprio Vieirinha cheirava como um fruto
das hortas. A sua obesidade, assim emoldurada, identificava-o com
um deus pagão. Loas levou um dos melões ao nariz, a esconder do
amigo a dificuldade da resposta, e, por fim, retorquiu:
— São mistérios. Não te ponhas a adivinhar. Eu, quando me deito
a ler o livro de S. Cipriano ou com certas conversas com o Diabo, não
faço outra coisa do que obedecer. Mais nada. Tenho um medo
danado de fazer perguntas.
Sobre os lábios do Vieirinha correu um sorriso de indulgência.
— Um homem deve fazer perguntas, compadre. Um homem não
deve consentir que outro qualquer, homem ou Diabo, lhe deixe a
boca fechada.
— Mas aqueles não são homens, Vieirinha. Que ganhava eu em
fazer-lhes perguntas?
Vieirinha, com um punho apoiado na esteira, conseguiu soerguer-
se.
— Era o mesmo que fazê-las a ti próprio.
Já era muito. Coisas do Vieirinha. A conversa, porém, vinha
lembrar-lhe que não tinha chegado a pedir o tal esclarecimento ao
curandeiro. A lepra pegava-se? Gaitas! Então não era como se tivesse
feito a pergunta? O homem dissera que defumasse a menina e a
burra e que se devia separá-las sem contemporizações. Com isto, é
evidente, dizia tudo. Ele bem reparara nos olhos que o virtuoso
lançava a Joana, como se a acusasse de não ter prendido a filha
dentro de casa, como se a odiasse por essa negligencia. E tinha razão.
Joana era uma bruta.
Mas tudo iria mudar. Podia jurá-lo. Depois da visita ao curandeiro
a paz havia regressado à sua alma. E à courela também. Tinha agora
um inimigo definido a combater, não esbracejava as cegas. Irrompia
de novo dentro de si, em ondas de impaciência e euforia, o tenaz
optimismo de outros tempos. A doença maldita ia finalmente,
encontrar nele um adversário capaz de a aniquilar.
Sentia-se irrequieto, alegre, ansioso por essa luta que seria uma
nova odisseia da sua vida. Raio! Chegaria a estar satisfeito por existir
um espantoso acontecimento na courela, mesmo que esse
acontecimento fosse, como era, tão horrendo?
Fazia demasiadas perguntas a si próprio. E ainda o Vieirinha o
empurrava para mais perguntas! Sentia-se tão repleto de
contraditórias emoções que chegava a saltar-lhe a língua para
confessar orgulhosamente ao compadre:
— Tenho lepra na courela.
E depois de o ver arrepiado, acrescentaria:
— Mas a gente aqui, Vieirinha, não se vai pôr de cócoras em frente
do perigo. Temos unhas para nos defendermos.
E o Vieirinha iria contar à vila que a gente da courela tinha uma
coragem dos diabos. Não. O que era preciso, antes demais, era levar
o Vieirinha ao engano, convencê-lo a entender-se com a burra
durante as defumações. O Vieirinha, ao faro de umas conquistas, era
homem para rebentar os bofes antes de a burra se escapar das suas
mãos. O curandeiro não previra quantos tratamentos seriam precisos
mas o Loas estava convencido de que, em secando a bolha de Alice a
lepra estaria extinta. E, daí em diante, Alice podia estar certa de que
nunca mais lhe seria consentida a mínima convivência com a burra. .
.
— Bem, Vieirinha: posso então contar contigo?
— Tenho vergonha de o dizer, compadre, mas, já agora, estou
disposto a tudo. Só me cheira a parvoíce meter nisto a burra e a
pequena. Terias percebido bem?
— Também me tenho posto a magicar por que razão a menina e a
burra entram neste negócio. Burras e garotas são tudo fêmeas, é
certo. Mas, espera aí! A menina é a inocência e a burra é a besta.
Talvez seja para que o fumo dos tojos espante uma coisa e outra do
teu caminho. O contrário não te convinha.
— Pensaste excelentemente, compadre. Não és nada tolo.
— Posso então contar contigo?
Vieirinha afastou com os pés os melões que lhe obstruíam a saída
para o ferragial e, seguido pelo Loas, veio cá para fora olhar o céu, de
uma imobilidade langorosa.
— Eu ainda não sabia quanto eras meu amigo. Vens aqui prestar-
me um serviço e ainda perguntas se podes contar comigo!
— Bem, Vieirinha, eu...
— E metes nisto a filha e a burra, só para que eu tenha umas horas
de pecado com uma cabra qualquer.
— Não é bem isso, compadre. Eu...
— E já esqueceste que foi o Vieirinha que espatifou o dinheiro que
tinhas dado ao Barbaças para comprar uma besta; que fui eu que
levei o rapaz a uma cadeia, que... Tanta velhacaria, compadre! Não
quero que faças defumações por minha causa.
— Mas tu precisas de uma mulher! Oh, Vieirinha, um raio me
parta, já estava tudo combinado! Não te vais negar agora a...
— Vou, sim, compadre. Não mereço que compliques a tua vida por
uma cabra qualquer.
— Mas eu já tenho as rezas preparadas.
Vieirinha sacudiu a cabeça com decisão. Loas, ao vê-lo assim, sabia
que não seria fácil impedir-lhe aquela orgia de penitências. Pôs-se a
tossir discretamente, à espera que o outro, abrindo uma pausa,
verificasse que as suas palavras não eram contrariadas. Não, não ia
consentir que o Vieirinha, com as suas explosões de honradez tardia,
lhe fosse inutilizar os cálculos. Deixá-lo-ia falar no vazio.
E assim, Loas, para distrair a sua impaciência, começou a pensar
noutra coisa. Os legumes que o Vieirinha plantara à roda da cabana
estavam já espigados e começavam a ter cheiro. Era um cheiro
perturbante que adocicava a atmosfera. As moscas e as abelhas
desciam do céu, atraídas, certamente, por esse aroma cálido e
fecundo; desciam num zumbido seco e em chegando junto dos dois
homens estabeleciam um cerco, voando em círculos cada vez mais
apertados. Loas esperou que uma das moscas poisasse na cabeça do
compadre e, nessa altura, aproximou cautelosamente a mão,
intimando o Vieirinha a deixar-se ficar quieto para não alvoroçar a
caça. Vieirinha, vexado com a distracção do amigo, interrompeu a
frase, e quando pôde, enfim, terminá-la, já a tinha esquecido. Esse
facto irritou-o. Ia a dizer duas coisas desagradáveis para o Loas, mas
este já filara outra mosca. Com uma das mãos segurava o cotovelo do
Vieirinha, enquanto a outra se preparava para o assalto. Loas tinha
os movimentos subtis e silenciosos de um gato. Dava gosto vê-lo.
— Não te mexas, Vieirinha, que esta também não me escapa.
Dava gosto vê-lo. E, daí a nada, já o outro procurava imitá-lo.
— Se as moscas fossem pássaros, compadre! Que rica fritada!
Loas sorriu com vaidade. Agora já sabia que era possível reatar
uma conversa direita com Vieirinha.
— Esta noite poderíamos começar com a coisa. Vamos ter uma
noite clara.
— Hã?...
— Não te apetece?
— Vais ter um trabalhão dos diabos por minha causa. Eu bem sei
que não mereço isso.
Loas acenou pacientemente com a cabeça, como para dizer que
sabia tudo o que o compadre iria repetir, que lhe compreendia os
escrúpulos. Com um gesto magnânimo, sossegou-o de vez:
— Não me dás incómodo nenhum, compadre. Não há nada que me
dê mais gosto do que umas bruxarias bem preparadas.
Agora, que se dirigiam à courela para buscar a menina e a besta,
Vieirinha magicava ainda noutros reparos. Ao longe, a choupana,
com o telhado coberto de medas de palha moída, tinha um brilho
alaranjado, um brilho de trigo, sob o céu viscoso e sombrio. Vieirinha
voltava-se muitas vezes para trás, apreciando carinhosamente o seu
periódico refúgio de eremita.
— Que tal, compadre? Não gostaste do meu meloal? — Mas não era
isso que ele queria dizer. — Olha lá, Loas: da outra vez, quando me
expulsaste da tua courela... — Loas fez um gesto contrariado —,
estavas ainda zangado comigo. Ainda não tinhas esquecido a história
da burra. Bem o merecia, compadre. Ou não foi por isso?
Loas mediu o perigo. Se deixasse que o Vieirinha tivesse novo
pretexto para os seus martírios, o plano estaria uma vez mais
ameaçado. Pôs-se a procurar afincadamente uma desculpa.
— São dias, Vieirinha.
— Dias em que a gente repara nas ofensas dos amigos...
— Nada disso, um raio me parta! Era outra coisa. Sabes o que foi?
Queres saber? — E, sem atinar com uma rápida justificação, recorreu
aos seus modos sibilinos: — Foi uma coisa que te não digo.
— Mas eu não te censuro, compadre. A razão era tua. Sou um
miserável, um porco sujo.
— Nada disso, gaitas. vou dizer-te o que foi. Doíam-me as partes.
E o Loas levou as mãos às calças. Por uma singular coincidência,
nesse momento sentiu uma dor aguda, como se as partes se tivessem
reduzido a um cordão frágil, esmagado por tenazes. Estava perdido.
Ter-se-ia enganado o virtuoso? A sua doença não seria também a
hedionda morféia?
— Doem-te as partes, compadre?
À
— Um pouco. Às vezes. Agora estão-me a doer. E, nestas alturas,
digo coisas parvas. Desculpa, Vieirinha.
— Qual desculpa? Ainda por cima?! Descansa aí um bocado. Senta-
te.
Loas tinha o rosto pálido, contraído, e uma cor de cera.
— Não calculava uma coisa destas, compadre. Com efeito!
— lamentou o Vieirinha, enquanto ajudava o amigo a sentar-se.
— Tu, que sabes coisas... — começou o Loas, com uma expressão
formalizada — diz-me lá como se pegam as doenças.
— São miasmas que andam no ar. Entram-nos pela boca, pelo
nariz, pelos ouvidos. A doença sai de nós e espalha-se no ar que as
outras pessoas respiram.
Loas ficou a deslindar aquelas palavras e o outro respeitou-lhe a
meditação.
— Então não vale a pena matar uma pessoa doente.
— Matar?! — soletrou o Vieirinha, fitando o compadre com
assombro. — Pois não. Mas quem é que mata os doentes?!
— Nem só as pessoas adoecem. Os animais também têm mazelas e
também as pegam. Não há tipos que matam os cães enfolados?
— Não te percebo, compadre — respondeu Vieirinha, num misto
de desgosto e de compaixão.
— E os tais miasmas pegam-se também à terra, às árvores, ao
trigo?
— És danado para fazer perguntas!
— Mas tu disseste que a gente deve procurar razões para tudo.
— Não te falei em perguntas tolas.
— Deixa-me perguntar, Vieira. É só hoje — implorou o Loas com
os olhos vítreos, enquanto as mãos continuavam fechadas dentro das
calças. — Embora eu saiba que às vezes as perguntas só servem para
nos atordoar. Para que desejo eu uma courela e mulas e engenhos?
Se eu perguntasse isso muitas vezes, não perderia o gosto por tudo
isso?
Vieirinha tinha a cabeça tonta. Lá muito no íntimo, estava
amedrontado com as conversas do compadre. Não devia ter vindo.
— Não, compadre. Encontrarias uma razão mais forte para lutar
pelos teus desejos. Lutarias com mais insistência. Falta-te qualquer
coisa. A mim, a ti, a muitos. Estamos de olhos fechados. Falta-nos
qualquer coisa. Falta, compadre! — repetia ele com uma voz de febre.
— Lutar?... Com quem, Vieirinha?
— Contigo. Tinhas de começar por lutar contigo.
— Comigo?
Vieirinha já não o escutava: fechara-se em melancolia. A sua face
era a de um velho. Estava exausto e ausente como um velho. Mas as
suas palavras reboavam ainda nos ouvidos do Loas, atiravam-no
para um abismo de problemas. Lutar consigo. As palavras do
Vieirinha avolumavam-se, inchavam, começando a afogueá-lo. Mas,
por obscuras que parecessem, essas palavras representavam uma
lúcida revelação.
— Explica-me mais coisas, Vieira.
— Eu não sei muito, compadre. Que desejas tu saber?
— Sei lá, Vieirinha. Conta-me coisas que te vierem à cabeça.
— Da selva?
— Da selva? Da selva, não. Conta-me coisas que sejam verdade.
— Mas tu pensas...!
Loas encarou-o com fadiga. Numa voz débil, doce, triste,
emendou:
— Não é isso, Vieirinha. Eu queria dizer para me contares coisas
que eu possa entender, que me ajudem, que...
— De mulheres?...
— Doem-me as partes, Vieirinha. Não gosto de ouvir falar em
mulheres. Estou doente e não sei se devo pensar em mulheres.
— E porque não fazemos também uma defumação às tuas partes?
Tu julgas-te capaz de viver sem mulheres? Como é possível,
compadre?!
E Vieirinha apertou febrilmente o braço do amigo. Loas viu-lhe
uma expressão de insaciável avidez, de glutonice furiosa, gravando-
lhe pequenas rugas nas bochechas vermelhas, humedecendo-lhe os
olhos secos e as narinas frementes. Impressionava. Como pudera
Loas pensar na exploração das fraquezas do compadre? Como
pudera ele aproveitar-se da tragédia do Vieirinha para joguete das
suas cobardias? A febre do Vieirinha não era apenas sensualidade:
era qualquer coisa de profundo, de terrivelmente dramático.
— Um raio me parta, Vieirinha! Sou um mostrengo. Não, não me
olhes dessa maneira. Enganei-te com todos os dentes que tenho na
boca. As defumações não eram para ti.
— Mas não era eu que segurava a burra?
— Eras. Eras tu que seguravas a burra da leprosa.
Loas, ditas as palavras, olhou o compadre com desafio. Olhou-o
em silêncio, significativamente, para lhe dar tempo a que
compreendesse toda a terrível insinuação da sua resposta. Já que o
Vieirinha, durante esses meses, parecera inconsciente do que
representava a burra ter vindo da intimidade de uma leprosa, queria,
nesse momento, mergulhá-lo até ao fundo do drama e da abjecção a
que tentara sujeitá-lo.
— Percebeste, Vieirinha?
— Acho que sim, compadre.
— E percebes agora porque ando tão danado com a vida?
— Sim, tens razão, compadre. Mas acho que metes aí muita ideia
tua. Ainda não és velho para uma coisa dessas. Experimenta com
outra mulher! Às vezes um homem enjoa...
— Com outra mulher!?...
— Mas só uma vez, é claro. A tua Joana havia de concordar que era
só como remédio.
— Que conversa é essa, Vieirinha? Para que julgas tu que te fui
buscar quando falei em me segurares a burra? Pois ainda não
percebeste?
— Percebi, já disse. Doem-te as partes e o Diabo ou lá quem foi
aconselhou-te a defumares o corpo. E precisavas de um amigo que te
segurasse no rabo da burra. Podias ter sido franco. O que não
percebo... — e o Vieirinha levou um dedo à boca, uma súbita
perplexidade. — Estou outra vez sem perceber para que metes nisto a
burra e a garota.
A perplexidade passou logo do Vieirinha para o cérebro do Loas.
Era espantoso que o Vieirinha continuasse estupidamente
indiferente à ameaça da lepra. Falavam-lhe em leprosas, enfiando-
lhe os miolos nessa negra evidência — e nada disso lhe arrepiava o
rosto anafado ou lhe arranhava um pensamento. O Vieirinha ouvia
falar da burra e da sua dona leprosa com muito mais calma do que se
lhe falassem de maganas. Como é que as pessoas podiam manifestar-
se simultaneamente sagazes e estúpidas?
Era inútil teimar com insinuações, e Loas não conseguia a coragem
bastante para lhe dizer as coisas com uma bruta sinceridade.
— Isso é que eu não percebo — tornava o Vieirinha, com certa
irritação, que o mutismo do compadre mais justificava.
Loas contraiu os olhos, como se o incomodasse o reflexo intenso
do poente. Uma narceja empoleirara-se sobre a carcaça de um
chaparro, espreitando, assustada, os dois homens que vinham na
estrada. Loas espantou-a com uma pedra.
— Não percebo... Com efeito... — teimou ainda o outro.
— Nem queiras perceber. Não queiras perceber coisa nenhuma.
Vai-te embora.
E escarvou o chão com as botas, como um cavalo aluado.
— Mandas-me sempre embora, ainda gostava de saber porquê.
Mas não vou! E não te pergunto mais nada. Só preciso de saber que
te faço falta para segurar a burra.
Loas encolheu os ombros. Já que o Vieirinha, mesmo de olhos
fechados, teimava em se mostrar camarada, levaria o conselho do
virtuoso até ao fim. O Vieirinha que continuasse convencido de que
as defumações se justificavam pela dor que lhe mordia as partes.
Agora tudo isso lhe era indiferente. Mas a sua indiferença já não era
serenidade: apenas renúncia. Perdera a confiança, o entusiasmo, a
paz. Todo o diálogo com o Vieirinha lhe abrira novos anseios, outras
dúvidas, novas perspectivas — mas, por enquanto, havia apenas
cansaço: deixar-se-ia arrastar pela enxurrada. Faria as defumações.
XX
Tinham perdido a noite na ceifa dos tojos e a segurar a burra sobre
as labaredas da fogueira. Aquilo acabara numa gritaria dos diabos,
quando Alice, presa à garupa do animal, viu que o pai e o compadre
não escolhiam meios para manter a besta amarrada ao sacrifício.
Berrando uns com os outros, lambidos pelo fogo, como danados,
pareciam demónios fugidos do Inferno.
Vieirinha, agora, que tudo terminara, sentia os ouvidos surdos e os
olhos ardiam-lhe de tanta fumarada. A burra, essa, escarranchava as
pernas como se estivesse podre de cio. Vinham todos murchos,
ridículos, parecendo ressentidos uns com os outros, ou apenas
envergonhados de se saberem comparsas de algum delito.
Regressando pela charneca, recortados por um luar violento que lhes
projectava nos caminhos uma sombra de malfeitores, Loas, não
suportando o silêncio dos companheiros, disse a Joana:
— Fecha-me a garota no quarto noite e dia. A gente há-de queimar
a doença. Tenho uma fé cá dentro a dizer-me que a gente há-de
queimá-la em torresmos, até que alguém nesta casa possa abrir a
boca à vontade e respirar.
As palavras do Loas pareciam mordidas, pareciam trituradas,
embora nelas houvesse também uma ânsia de confirmação.
Vieirinha, conquanto viesse lá para trás, coxeando de uma patada
que recebera da burra quando o fogo das urzes a chamuscara no
ventre, ouviu essas palavras distintamente, mas não lhes encontrou
qualquer sentido.
A verdade, porém, é que o compadre Loas nunca tivera o juízo no
seu lugar. Era de bom aviso que, mesmo esfomeado, e dorido da
anca, se retirasse quanto antes para a sua palhota, sem correr o risco
das contingências de esperar pelo jantar e por uma conversa sensata
que trouxesse alguma coerência às atitudes da gente da courela.
Loas viu-o afastar-se dali, mas não fez qualquer tentativa para o
reter. Também não consentiu que o Barbaças abrigasse a burra na
cabana e foi ele próprio prendê-la numas redes de alfirme, bem na
frente do banco de pedra onde todos sabiam que ele se iria sentar.
O luar escorria da copa das árvores, imobilizando a planície num
charco prateado. E também o silêncio, as árvores, a seara, ficavam
tolhidos dentro do marasmo. Era talvez por isso que a presença da
charneca se concentrava num cheiro adiposo rebentando dos poros
dessa imobilidade, que as narinas do Loas aspiravam com prazer
quase libidinoso. "É um cheiro repugnante", pensou o Loas. "Porque
será que a terra cheira assim tão mal?" Mas as suas narinas sentiam-
se inebriadas.
A besta, ali na frente, o Barbaças e Joana, de tão calados e quietos,
pareciam espectros do luar. O silêncio embrutecia-o. Tinha de dizer
alguma coisa.
— Olha lá, Barbaças: nunca te perguntei como achaste a gente das
Malhadas...
— Os donos da burra?
— Sim — anuiu contrafeito.
— Ele era meio maluco. Queria rebentar-me com laranjas.
— Também me pareceu. Mas aquela gente tinha um aspecto de
saúde. Não achas?
O Barbaças rosnou um assentimento, mas, aborrecido com a falta
de nexo de tal conversa, logo rectificou:
— Já não me lembro.
As narinas do Loas fremiam sempre. A terra, ou o luar, cheiravam
ainda. Era o fedor de um corpo monstruoso a decompor-se? O cheiro
que nos suja depois de um coito?
— A terra está doente, Barbaças.
— Que diz vomecê?
Joana pensou na terra dura e queimada dos meses de Verão, na
erva cinzenta, no pó. Também o seu cérebro era já uma estrada
poeirenta. O marido teria compreendido finalmente que a charneca
os ia devorando nas suas gretas de secura?
A courela sussurrava ao vento da noite, levantando, por vezes,
baforadas de cheiro. Cheiro de carne queimada? Loas levantou-se
para se esconder lá adiante, por detrás do engenho, como se tivesse
ido ali verter águas. Mas caminhou cautelosamente, temendo
acordar a terra. Queria debruçar-se sobre o chão, para que as narinas
se certificassem de que eram as emanações da erva, das folhas da
planície repleta.
— Não te vens deitar? — chamou-o Joana. Loas voltou para junto
da família, mas começara a despontar nele certa excitação. A burra,
ainda presa, rodava o pescoço para o balde que o Barbaças, a medo,
espreitando a reacção do Loas, trouxera para ali. E depois de
mergulhar o focinho na água rodou o pescoço de novo, para um e
outro lado, como se farejasse também o odor indecifrável que o dono
tinha nas narinas.
Loas levantou-se e foi junto do animal para lhe acariciar a garupa.
A burra ergueu o focinho para o dono e Loas viu-lhe os olhos doces e
magoados, viu-lhe qualquer coisa que podia ser um clarão de
lágrimas, o gemido de uma besta ferida ou uma agonia que, de
solitária, era desesperada. O animal pressentia a doença a minar-lhe
as entranhas. E foi então que o Loas identificou o cheiro que
preenchia a courela e as suas narinas. O cheiro vinha da besta, era a
lepra que cheirava.
E sentiu-se outra vez tomado de pânico.
— Já deitaste a menina? — perguntou à Joana, para lhe dizer
alguma coisa que o defendesse da obsessão.
A mulher puxou nervosamente o cabelo para trás, o cabelo negro e
corredio que, em rapariga, ela untava com azeite para que parecesse
mais lustroso, e retorquiu:
— Queres dizer se a fechei? Terei de a fechar para o resto da vida?
— Deixa-me! — gritou ele.
Joana desapareceu, seguida de Barbaças.
A brisa continuava a rumorejar através do luar e nela se sentiam-
os longos cílios do trigo, as ervas, os fenos, o nervosismo dos bichos,
mas todo esse arrepio vinha já encharcado de putrefacção da planície
contaminada.
Loas levou as mãos à cabeça e às narinas, a isolar o cérebro e os
sentidos da peste que o cercava. Deu uns passos pela courela e, ao
encontrar-se junto do engenho parado, mais um fantasma que o
lugar petrificava, desatou aos pontapés nessa mole de ferro corroída
pelo tempo. E depois riu baixinho. O engenho era um sinal dos seus
malogros, mas ele ainda estava ali, inteiro, para recomeçar de uma
hora para a outra. Onde, porém, estaria o seu erro? O Vieirinha
abrira-lhe possibilidades, ainda difusas, de um esclarecimento. Teria
de se libertar dos limos que se lhe enrolavam na carne. A burra, um
pobre sonho traído, seria um desses limos? "Vende-a!"
Mas, se o fizesse, não lhe ficaria nas mãos mais um punhado de
cinzas? Um raio me parta: talvez esses limos estivessem todos dentro
de si. "Luta contigo. Tens de começar por lutar contigo." Não era o
episódio da doença um dos muitos abismos negros onde se afogava a
sua volubilidade, alternando com aquelas outras ondas cíclicas de
esperança sem raízes e sem destino?
Loas olhou à volta à procura de um apoio, e apenas encontrou a
sombra da sua angústia. No seu espírito procurou reconstituir todos
os acontecimentos que ali se tinham passado nas últimas semanas.
De cabeça erguida, para que a frescura da noite lhe clarificasse o
cérebro, tentou recordar como tudo aquilo, courela e pessoas, eram
antes desses acontecimentos. Mas como o passado lhe parecia longe!
E, de súbito, sentiu uma nova e irresistível necessidade de acção.
Percorreu a horta, a cozinha, a cabana, e à falta de outro pretexto
para agitar os braços pôs-se a pregar umas cardas nas gaiolas dos
coelhos. Nem assim conseguiu transmitir a sua excitação às coisas
que o cercavam. A noite dilatava-se e contraía-se, num ofegar sempre
mais penoso; a noite era um pulmão que se ia estrangulando. Na
charneca não se respirava.
Loas viu-se obrigado a fugir do ar livre. Foi levar a besta ao curral e
viu que ela procurava inutilmente qualquer verdura na manjedoura.
Barbaças guardava as rações numa prateleira alta, para que a burra
lhes não chegasse, e Loas empinou-se para lhe deitar uma medida de
cevada. Alguém teria de substituir Alice naqueles cuidados.
A burra pôs-se a roer o grão sem entusiasmo. "Esta danada tem a
boca fina. Mas a erva começa a ficar amarelenta. Se não chove no
quarto minguante...", pensou o Loas.
Havia de consultar o reportório dessa semana. Com um bom
engenho, teria sempre a courela viçosa; talvez o Vieirinha lhe
indicasse um tipo da cidade que percebesse de engenhos e não fosse
bêbado nem intrujão.
Viu junto dos cascos da burra um fio de arame enferrujado e,
forçando os pretextos de se demorar na cabana, atou-o
vagarosamente às ripas da manjedoura. Depois tirou ainda outra
medida de cevada da prateleira e saiu, por fim, espreitando, de
soslaio, o ventre da burra. Para a outra vez deveriam ter mais
cuidado com as defumações, não deixando que as chamas subissem
até à carne do animal. "É para bem dela" — desculpou-se a meia voz,
como se estivesse ali alguém para o ouvir. Agora iria fechar-se no
quarto.
Estendido no leito, de olhos fechados, não podia dormir, embora
estivesse morto de fadiga. A insónia palpitava-lhe na testa. A
angústia tinha voltado. Loas sabia que só poderia repousar quando
um clarão de luz o viesse esclarecer definitivamente. "Luta contigo."
Está bem, Vieirinha, mas que se há-de fazer para expulsar os
fantasmas? Vender a burra? Aferrolhar a menina toda a vida numa
prisão? Diabo: o Barbaças esquecia-se de deixar as rações na
manjedoura. Mas a doença, que o virtuoso iria curar em poucos dias,
merecia assim tanta pergunta e tanto desespero? Que representava a
doença naquela eclosão de problemas, por enquanto apenas
pressentidos?
E porque existia aquele cheiro lá fora, na terra?
E, abruptamente, esse cheiro entrou dentro de casa. Era o odor da
besta e da courela. Loas apercebia ainda o sussurro da terra,
vergando-se, encolhendo-se de pavor, à medida que a serpente
avançava. Loas, retendo a respiração, escutava o seu avanço.
Por fim, quis pôr-se de ombros direitos e cabeça erguida, para
enfrentar a lepra quando ela chegasse junto do leito, mas os
músculos ficaram imobilizados. Os braços e as pernas tinham-se
transformado em excrescências pesadas, que apenas o molestavam,
até que o odor lhe humedeceu a pele com um orvalho viscoso e
quente. Estava alagado em suor. E bruscamente adormeceu.
Quando abriu os olhos, era madrugada. Porém, a luz, que viera
apoiar-se no peitoril da janela, espreitando o interior do quarto, era
ainda luar. Por detrás dele, contudo, debruçava-se uma claridade
doce que já pertencia à alvorada. Loas sentia-se exausto, mas
renovado. E embora evitasse que os pesadelos da noite lhe acudissem
ao cérebro, verificava que esses pensamentos, quando vinham, já não
o mortificavam. Estava definitivamente liberto, sabia-o agora.
E, vencidos os espantalhos da sua indecisão, sentia-se vigoroso.
Vigoroso e lúcido. Com mais umas defumações, a menina estaria
curada e a doença teria desaparecido também do corpo da burra.
Tudo o resto, lepras, odores, fora apenas o medo de que a doença
viera para lhe destruir a ressurreição da courela. Dentro de dias,
poderiam recomeçar. O virtuoso assim o prometera: eram homens
predestinados que nunca se enganavam. E a dor das partes também
não tinha importância nenhuma. Quando muito, se voltasse a
apoquentá-lo, faria a experiência que o Vieirinha aconselhara. Raio
do Vieirinha! Era um amigo verdadeiro e sábio. Pegara no rabo da
burra, quase lhe arrancara as orelhas à dentada só para a obrigar a
estar quieta em cima da fogueira, embora soubesse muito bem que
não estava a arriscar-se em seu proveito. O Vieirinha podia talvez ser
homem para se domesticar numa courela, desde que lhe arranjassem
uma mulher para a cama. Havia de pensar nisso. O Barbaças tinha
melhores braços, é certo, mas nunca podia substituir a companhia
inteligente do Vieirinha, capaz de entreter um amigo em dois
Invernos seguidos só com histórias da selva. O Vieirinha sabia um
mundo de coisas e talvez se ajeitasse a pôr o engenho a trabalhar.
"Vou chamar o Vieirinha" — garantiu o Loas a si próprio. Iria
fazer-lhe uma proposta honrada e generosa, interessando-o na
courela, já que o Barbaças desperdiçara, como bruto que era, um
compromisso com o tabelião.
Loas, sentado na cama, à espera da alvorada, apetecia-lhe agir
imediatamente. Agir e cantarolar, como já não fazia há muito tempo,
visto que tinha, enfim, os seus problemas clarificados. Daí a pouco,
reuniria a família na horta, apresentando-lhe o plano de se chamar o
Vieirinha para a courela. É claro que o Barbaças, enciumado como
andava, ficaria logo com um nariz de palmo e meio. Ele já estranhara
não ter acompanhado os doentes ao virtuoso e, por certo, estranhara
ainda muito mais que tivesse sido o Vieirinha a dirigir as
defumações. (Boa patada dera a burra na pança do Vieirinha! Na
pança ou na coxa? Ao fim e ao cabo, fora uma noite divertida!) Mas o
Barbaças, por sentido que se mostrasse, já não seria capaz do gesto
pimpão de regressar à vila. Nos seus ressentimentos havia agora a
cobardia do rafeiro que, acima de tudo, teme ser escorraçado. Que
mudanças tinham acontecido nas pessoas da courela!
Sim, era preciso decidir tudo isso logo de manhã. Mas como a
manhã tardava! Tão longo era o tempo quando não havia ninguém,
de palavra fácil, que ajudasse a preenchê-lo!
O Vieirinha, por exemplo. Joana dormia, Barbaças dormia e Alice,
estafada das jornadas da véspera, certamente só acordaria quando o
sol já estivesse a pino sobre o monte. Não devia esquecer-se de lhe
apreciar a bolha logo que ela acordasse. Tudo dormia, enfim. Como
era possível que as pessoas pudessem dormir tanto, ali ao lado da
terra que em todos os momentos gerava e estremecia?
A impaciência começava a enervá-lo. Foi à janela para calcular as
horas e viu que as folhas pingavam orvalho e que a névoa estava
ainda agarrada aos ramos das árvores, à espera que o vento a
soprasse. "com estas neblinas, talvez o pasto se aguente por mais
tempo. A burra é danada para as verduras."
Nisto, Loas sentiu o ruído cauteloso de uns passos debaixo da
janela. Ter-se-ia o Barbaças levantado? Ná, não podia ser os passos
de gente da casa. Quem ia ali procurava não ser pressentido.
Abrenúncio! Querem ver que algum ladrão lhe rondava o monte ou o
aprisco da burra? Preparavam-se para lhe roubar a burra, pois claro!
Loas apertou as ceroulas de qualquer maneira e, pé ante pé, para que
o bandido não se alarmasse, foi à cozinha tirar a espingarda do
cabide. O ladrão ficaria estendido com duas chumbadas, fosse ele
quem fosse. E quem seria, raio! Alguém familiarizado com as
dependências da courela, decerto. E se fosse o Vieirinha? Não era ele
a única pessoa a saber do poiso da besta? Ah, sempre desconfiara
que o Vieirinha não era de muita confiança! Se ele teimara em ajudá-
lo, é porque a tinha fisgada havia muito tempo.
Pois que fosse o Vieirinha a ficar estendido. Serviria de exemplo
para todos aqueles rapinantes e devassos da vila!
Quando o Loas chegou à rua, de espingarda em riste, ouviu
perfeitamente o ranger da porta da cabana. O ladrão queria ser
chumbado dentro da ratoeira? Talvez lhe fizesse a vontade!
Anda, Vieirinha, sai cá para fora! Anda, porco sujo! De respiração
suspensa, Loas pôs-se atrás do chaparro, com o dedo no gatilho, à
espera que, de um instante para o outro, o mostrengo do Vieirinha
saísse com a burra presa pelo cabresto. Mas a verdade é que os
minutos passavam e a porta da cabana continuava fechada. Era
estranho que o meliante do Vieirinha demorasse tanto tempo a
ajeitar o cabresto do animal. Teria o Vieirinha farejado o perigo?
Loas decidiu, por fim estender-se sobre a erva, ocultando a arma
rente ao solo. Ele terá de sair, mais cedo ou mais tarde, nem que
esperasse ali o dia inteiro. Apetecia-lhe muito mais visá-lo de longe
do que embrulhar-se com ele nos quatro palmos da cabana. Sai daí,
cão danado! Gritar, não. Mas sabia-lhe bem bradar, dentro de si,
aqueles insultos e desafios.
E a porta rangeu de novo. O cano da arma aflorou sobre as hastes
do feno, visando o intruso precisamente no instante em que Alice,
espreitando o silêncio das imediações da casa, transpunha o umbral
da porta. Alice! O dedo ficou transido na concavidade do gatilho, um
soluço ia rebentando na garganta do Loas.
Alice foi rodeando cautelosamente o muro e a parede, como uma
sombra transparente, até desaparecer na porta do monte. Mas dela
ficou ainda a imagem e a sombra, flutuando como asas frias na luz
espectral da courela.
Loas não sabia que pragas deveriam explodir na sua boca e no seu
coração. Alice, sabia-o agora, todo aquele tempo se levantara de
noite da sua enxerga para dormir com a burra até de madrugada.
Tinham misturado o hálito dos corpos, o suor, a podridão. A lepra
estava dentro da carne e do sangue da menina, havia muito e para
sempre. A lepra, até ao fim dos tempos, faria parte dos sonhos do
Loas, do húmus da courela, da semente do trigo. Não. Não venderia a
burra, como aconselhava Joana.
Em qualquer sítio para onde a levassem, a besta escorreria de si,
para a seiva da charneca, a peste que corrompia. Eram nos imundos
que encontrariam sempre o cartão da courela. Vendê-la, nada
resolvia. Iria matá-la.
Loas ouviu a burra a escarvar o chão da palhota, como se tivesse
adivinhado a intenção do dono. E, de súbito, rompeu uma aurora
vermelha, incendiando a neblina.
Loas, durante uns minutos, não quis pensar, olhando a Atmosfera.
A aurora vinha surpreender violentamente a cortina grisalha,
rasgando-a com impaciência. Pareceu-lhe que, de um momento para
o outro, tudo iria arder sob um sol furioso. Matá-la. Também o céu
vinha assistir à carnificina. Mas não era apenas à morte da burra.
Ele, a courela e os sonhos ardentes seriam misturados nessa brutal
agonia.
— Joana! — gritou ele, atiçando dentro de si uma fúria que se
tornava necessária — Joana! Joana!
Dois cães de gado, lentos e desconfiados, levantaram-se da poeira
do caminho que ladeava o monte, e os berros do Loas levaram-nos a
procurar a testa do rebanho.
— Joana! Um raio me parta!
A mulher, de cabelos desgrenhados de bruxa, apareceu à janela.
Viu o marido de espingarda nas mãos e correu imediatamente ao seu
encontro. Ele pegou-lhe de um braço, com uma ternura ansiosa que
nunca usara até aí, e levou-a até à porta da cabana da besta.
— Deita-a cá para fora. Não a vendo.
Joana sentiu o fluido desesperado da sua emoção e o coração
contraiu-se-lhe. Olhava-o, de lábios cerrados, sem uma palavra.
Ele insistiu:
— Já sabias que a tua filha passa as noites empernada com a
maldita burra?
Joana, sem responder, abriu a porta da cabana e cravou as unhas
no animal, empurrando-o para a rua.
— Aí a tens. Mata-a já, Loas.
O animal encarou a luz da manhã e depois avançou, taciturno e
lento, como um dromedário, ao encontro do dono. Loas estendeu o
braço, talvez a impedir-lhe a aproximação.
Assim, não. Ele seria capaz de a matar, iria matá-la, mas era
preciso que ela não colaborasse na sua própria morte. Momentos
antes, com o cano da arma oculto nas ervas, vigiando a saída do
Vieirinha, era outra coisa. Assim, não. Tinha-se preparado para
liquidar o Vieirinha sem que ele o suspeitasse e era também desse
modo que desejava matar a burra e a sua peste. Antes tivesse sido o
Vieirinha, o gatuno. Raio! Mas, afinal, não havia gatunos naquela
história. Havia o Vieirinha, que nunca deixara de ser um tipo
honrado, a burra e a menina. Não, não era o Vieirinha. O Vieirinha
não era para ali chamado.
Loas continuava a recuar, como para tornar mais firme o apoio da
coronha da espingarda no seu ombro, enquanto Joana, erecta,
frígida, esperava o momento do tiro, e ele persistia em inquirir de si
próprio por que motivo o nome do Vieirinha vinha baralhar-se-lhe
nos pensamentos. E foi então que um clarão lhe rebentou no cérebro:
o Vieirinha nunca tivera nojo da burra, embora desde o primeiro
momento conhecesse a verdade. Pois não havia sido ele a informá-lo
de que a burra pertencera a uma leprosa? Nunca tivera nojo da
burra. Porquê? Abrenúncio! O Vieirinha sabia que a doença não se
transmitia às bestas! O compadre, apesar de niquento, não precisava
de ter asco da burra, pois tinha a certeza de que a doença ficara no
monte das Malhadas.
— Joana! Joana! Já não é preciso matar a burra!
Joana susteve a respiração e a surpresa na garganta. O marido
voltava a ser o mesmo de sempre: um volúvel e um fraco. Estariam
toda a vida submersos no lodo da charneca, da doença, da indecisão.
— Não faças essa cara de parva! Já não é preciso, digo-te eu. O
Vieirinha sabe que a morféia não se pega às burras, mas só agora é
que eu o percebi. Alice poderá brincar com a burra todas as vezes que
lhe apetecer!
A espingarda deslassara-se-lhe das mãos. O cano descaiu sobre as
ervas. Joana, ainda com os músculos rígidos, aproximou-se do
marido e ele recuou ainda mais, dessa vez intimidado pela expressão
parada e doida da mulher.
— Já não é preciso, Joana. Tu vais ver o que faremos desta courela.
É agora que havemos de plantar a tua vinha, os pinheiros, tudo o que
quiseres.
Ela ouviu falar em pinheiros e voltou-se, sonâmbula, para a colina.
Mesmo daquela distância, ela sentia as agulhas dos pinheiros
penteando o vento. Loas seguiu-lhe o olhar e as ideias.
— Se um dia a seara ardesse e o monte ardesse também, Joana, a
gente fugia para ali. Mas nada disso acontece. Hei-de ter tanta água
no engenho que a courela será uma lezíria.
Mas, num ímpeto, ela puxou-lhe a espingarda das mãos. E, antes
que ele pudesse tomar consciência do que se passava, um estampido
vermelho reboou na serenidade da manhã e a burra oscilou sobre o
piso orvalhado. A burra fez ainda um esforço para erguer as patas
traseiras, mas, gemebunda, logo voltou a cair sobre os joelhos. Um
dos seus olhos estava estilhaçado e dele corria uma nódoa quente no
chão da courela. A nódoa foi alastrando, abrindo nervuras na terra
negra. Já não era sangue da besta. Era a courela que gemia um suor
de agonia, um suor de sangue. E nem um vento áspero, esse vento
emigrado das montanhas do Norte, faltou ali para lhe enrugar a
superfície viscosa e coagulada.
Fim