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A binomia azevediana e a questão do poeta titânico em

Lembrança de morrer e O Poeta Moribundo


Erasto Santos Cruz1

Manuel Antônio Álvares de Azevedo é considerado até hoje um dos maiores


representantes do romantismo brasileiro. Foi estudante da Faculdade de Direito do
Largo de São Francisco em São Paulo, onde rapidamente se destacou pela enorme
facilidade de aprender línguas e pela sua precoce e surpreendente produção literária.
Morreu aos vinte anos de tuberculose, antes mesmo de se formar.

Tendo como fortes influências em sua obra grandes nomes da literatura da época,
como Byron, Goethe e Musset, a obra de Álvares de Azevedo se situa na chamada
segunda fase romântica (Ultra-Romantismo, também conhecido como Mal-do-século).
Sua principal temática é a morte, o sofrimento da vida e a donzela inalcançável, o que
não exclui outros assuntos, como será demonstrado mais tarde.

A obra que será utilizada para a elaboração deste trabalho é Lira dos Vinte Anos,
seu mais famoso livro, que é dividido em três partes: na primeira, predomina a poesia
sentimental, onde a morte, a família, a erotização metaforizada e a idealização da
mulher são temas principais, sempre ambientados pela noite fria e sombria; na segunda,
o autor muda de tom e toma uma postura irônica e reflexiva, mas sem deixar de lado as
características melancólicas e sentimentais, para dialogar com os outros poetas
românticos e repensar sobre sua própria estética; já a terceira parte, é como se fosse uma
retomada da primeira, com os mesmos temas: amor inatingível, morte, família e
sofrimento.

Ao se estudar as obras de Álvares de Azevedo, deve-se levar em consideração


uma peculiaridade de seu estilo, a chamada binomia. Nome dado por ele mesmo para
definir sua poética, que consiste em aproximar extremos (racional x sentimental) através
da ironia e da metalinguagem, e que está explicada no prefácio à segunda parte de Lira
dos Vinte Anos. Esta binomia se dá por causa da influência do titanismo. O herói
titânico é uma espécie de poeta rebelde que luta contra “as leis e os limites que o

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Doutorando em Estudos Literários e Interculturais na Universidade de Macau, Tradutor Chinês-
Português, Mestre em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo, Graduado e Licenciado em
Letras - Português/Chinês pela mesma instituição.
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oprimem, que desafia a sociedade e o próprio Deus.”2. É o poeta genial, que a sociedade
não aceita, e por isso, é forçado a viver na solidão “desafiando o destino”.

É pensando na binômia azevediana e no titanismo que este trabalho tem como


objetivo analisar e comparar os poemas Lembrança de morrer e O Poeta Moribundo,
situados na primeira e na segunda parte de Lira dos Vinte Anos respectivamente, bem
como as diferenças na construção da imagem do poeta titânico em cada um deles.

Lembrança de morrer Se uma lágrima as pálpebras me inunda,


No more! O never more! Se um suspiro nos seios treme ainda,
Shelley É pela virgem que sonhei . . . que nunca
Aos lábios me encostou a face linda!
Quando em meu peito rebentar-se a fibra
Que o espírito enlaça à dor vivente, Só tu à mocidade sonhadora
Não derramem por mim nem uma lágrima Do pálido poeta deste flores . . .
Em pálpebra demente. Se viveu, foi por ti! E de esperança
De na vida gozar de teus amores.
E nem desfolhem na matéria impura
A flor do vale que adormece ao vento; Beijarei a verdade santa e nua,
Não quero que uma nota de alegria Verei cristalizar-se o sonho antigo . . .
Se cale por meu triste passamento. Ó minha virgem dos errantes sonhos,
Filha do céu, eu vou amar contigo!
Eu deixo a vida como deixa o tédio
Do deserto, o poento caminheiro Descansem o meu leito solitário
__ Como as horas de um longo pesadelo Na floresta dos homens esquecida,
Que se desfaz ao dobre de um sineiro; À sombra de uma cruz, e escrevam nela:
Foi poeta – sonhou – e amou na vida. –
Como o desterro de minh’alma errante,
Onde fogo insensato a consumia: Sombras do vale, noites da montanha
Só levo uma saudade – é desses tempos Que minh’alma cantou e amava tanto,
Que amorosa ilusão embelecia. Protegei o meu corpo abandonado,
E no silêncio derramai-lhe um canto!
Só levo uma saudade – é dessas sombras
Que eu sentia velar nas noites minhas . . . Mas quando preludia ave d’aurora
De ti, ó minha mãe pobre coitada E quando à meia-noite o céu repousa,
Que por minha tristeza te definhas! Arvoredos do bosque, abri os ramos . . .
Deixai a lua pratear-me a lousa!
De meu pai . . . de meus únicos amigos,
Poucos – bem poucos – e que não zombavam
Quando, em noites de febre endoidecido,
Minhas pálidas crenças duvidavam .

Em Lembrança de morrer é possível se observar várias características da


denominada segunda geração romântica ou ultra-romantismo. Nele, percebemos
claramente o tema da morte, lembranças idílicas em um tom evocativo e a desesperança
e agonia do sujeito-poético em relação ao mundo. É o chamado Mal-do-século que

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Aguiar e Silva, Vitor Manuel de. “Rococó, Pré-Romantismo e Romantismo”, pag. 479. In: Teoria da
Literatura. São Paulo: Martins Fontes.
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impregnou os poetas desta geração com a desilusão da vida. Entretanto, sendo
Lembrança de morrer o último poema da primeira parte de Lira dos Vinte Anos,
podemos analisá-lo como o processo de mudança de um estilo mais lírico e emotivo
para outro mais racional e irônico, que são as características que tomam conta da
segunda parte do livro.

Com este poema, Álvares de Azevedo inicia uma nova fase de sua poesia,
deixando para trás a predominância do emotivo e impulsivo, pois deixa de lado o
pessimismo diante da vida e a visão melancólica da morte para se utilizar de um jogo de
racionalização da própria obra, utilizando-se de uma metalinguagem para reorganizar
sua própria concepção de romantismo, apropriando-se de um tom reflexivo e irônico.
Este jogo entre o emotivo e o reflexivo são traços da binômia azevediana, que acaba por
redefinir a forma como as características românticas aparecem em seus poemas. A partir
daqui, o sujeito-poético não é mais ingênuo, desiludido e melancólico, mas sim, alguém
com um olhar crítico e racional acerca do fazer poético vigorado até então. É o poeta
titânico, rebelde que vai contra as “imposições” estilísticas. Devemos apenas tomar
cuidado para não achar que esta nova fase de Álvares de Azevedo o descaracteriza
como poeta romântico, pois mesmo sendo poemas mais reflexivos, o caráter emotivo
ainda permanece como tema recorrente.

Ao começar pelo título, já é possível perceber uma postura reflexiva, uma vez
que a palavra “lembrança” é um ato totalmente racional, ainda, esta “Lembrança de
morrer” é uma metáfora para esta mudança estético/temática que está para acontecer na
obra de Álvares de Azevedo, uma vez que, como já foi dito antes, este é o último poema
da primeira parte e prenuncia o que virá depois. É a “morte” do padrão romântico, a
ruptura dos costumes tradicionais do fazer poético para se entrar em uma nova fase,
dominada pela metalinguagem e ironia do titanismo. O velho precisa morrer para que o
novo nasça e prevaleça.

A “saudade” que aparece pela primeira vez na 4ª estrofe se refere aos tempos de
ingenuidade romântica, representado pelo “fogo insensato” e da qual o eu-lírico está
abrindo mão pela nova postura poética. Ingenuidade esta reforçada pela “amorosa
ilusão” no 4º verso. A lembrança dos pais e dos amigos será retomada na segunda parte
de Lira dos Vinte Anos, mas sob a nova ótica racional e reflexiva. O eu-lírico reforça
este apelo à reflexão do fazer poético quando compara o modo vigente com uma doença
que o fazia delirar, assim como aparece no 3º e 4º versos da 6ª estrofe: “Quando, em
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noites de febre endoidecido, / Minhas pálidas crenças duvidavam.”. Aqui, “crenças” se
remete ao impulso emotivo, ao fazer poético sem reflexão alguma por parte do poeta,
que escreve apenas por ilusões e devaneios.

Na sétima estrofe aparece a imagem da virgem. Ela é a musa, não propriamente


a donzela idealizada e inalcançável que está muito presente na segunda fase romântica e
por quem o eu-lírico sofre, mas a verdadeira musa inspiradora, a própria poesia, que o
poeta quer alcançar justamente através desta nova visão poética que inicia. E se antes,
só por essa musa o poeta vivia: “Se viveu foi por ti! E de esperança / De na vida gozar
de teus amores.”, é com sua morte e seu renascimento simbólicos que este talvez
finalmente a alcance, a verdadeira poesia.

Esta idéia é reforçada na 9ª estrofe, onde o poeta diz: “Beijarei a verdade santa e
nua, / Verei cristalizar-se o sonho amigo...”. E este sonho é o de finalmente alcançar a
verdadeira poesia através da reflexão e do racional, caracterizada pela “verdade santa e
nua”. Aqui, o poeta está negando a ingenuidade, o sentimentalismo puro do romantismo,
e afirmando o tom racional pelo qual irá guiar sua obra a partir de agora. E é com esta
mudança que o poeta chegará até a musa inspiradora, representada pela virgem: “Ó
minha virgem dos errantes sonhos, / Filha do céu, eu vou amar contigo!”.

As últimas três estrofes demonstram então a morte da postura antiga e o


surgimento da nova. O sepultamento do poeta no começo da 10ª estrofe representa o
sepultamento da própria postura antiga, que deve ser enterrada “Na floresta dos homens
esquecida,”, para que o nascimento desta nova estética possa acontecer, assim como
aparece no 1º verso da 12ª estrofe: “Mas quando preludia a ave d’aurora”. Este
prelúdio da ave da aurora representa o surgimento da nova proposta de Álvares de
Azevedo em relação à sua própria obra poética, no entanto, termina o poema com um
desejo de não ser esquecido: “Deixa a lua prantear-me a lousa!”, ou seja, as temáticas
antigas não devem ser totalmente esquecidas, ainda devem estar presentes, porém,
através de um novo olhar poético, mais racional e reflexivo.

O poeta moribundo Que ruínas! Que amor petrificado!


Tão antediluviano e gigantesco!
Poetas! Amanhã ao meu cadáver Ora, façam idéia que ternuras
Minha tripa cortai sonorosa! . . . Terá essa lagarta posta ao fresco!
Façam dela uma corda, e cantem nela Antes mil vezes que dormir com ela,
Os amores da vida esperançosa! Que dessa fúria o gozo, amor eterno . . .
Cantem esse verão que me alentava . . . Se ali não há também amor de velha,

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O aroma dos currais, o bezerrinho, Dêem-me as caldeiras do terceiro inferno!
As aves que na sombra suspiravam,
No inferno estão suavíssimas belezas,
E os sapos que cantavam no caminho!
Cléopatras, Helenas, Eleonoras;
Coração, por que tremes? Se esta lira Lá se namora em boa companhia,
Nas minhas mãos sem força desafina, Não pode haver inferno com Senhoras!
Enquanto ao cemitério não te levam,
Se é verdade que os homens gozadores,
Casa no marimbau a alma divina!
Amigos de no vinho ter consolos,
Eu morro qual nas mãos da cozinheira Foram com Satanás fazer colônia,
O marreco piando na agonia . . . Antes lá que do Céu sofrer os tolos! –
Como o cisne de outrora . . . que gemendo
Ora! E forcem um’alma qual a minha,
Entre os hinos de amor se enternecia.
Que no altar sacrifica ao Deus-Preguiça,
Coração, por que tremes? Veja a morte, A cantar ladainha eternamente
Ali vem lazarenta e desdentada ... E por mil anos ajudar a Missa!
Que noiva! ... E devo então dormir com ela? ...
Se ela ao menos dormisse mascarada!

Antes de começar a segunda parte de Lira dos Vinte Anos, Álvares de Azevedo
nos dá uma explicação do que podemos esperar dos poemas que se seguirão. No famoso
Prefácio, o autor nos adverte que, a partir deste momento, seus poemas deixarão de ser
puramente emocionais e passarão para uma postura mais lúcida em relação à realidade e
ao sentimentalismo excessivo do romantismo. É a binomia azevediana que tomará conta
dos poemas a partir daqui, que o autor explica da seguinte forma: “Duas almas que
moram nas cavernas de um cérebro pouco mais ou menos de poeta escreveram este livro,
verdadeira medalha de duas faces.”3. Explicando com outras palavras, o autor está
dividido entre o puramente emocional do romantismo convencional e a reflexão e o
racional do titanismo, e é através desta binomia que os poemas da segunda parte do
livro serão construídos.

O Poeta Moribundo é o último de um conjunto de seis poemas chamado Spleen


e charutos, que se encontra na segunda parte de Lira dos Vinte Anos, e assim como
sugere o prefácio, neste e nos outros poemas da segunda parte, a binomia azevediana se
faz mais clara, pois a ironia e a reflexão aparecem do começo ao fim.

Assim como em Lembrança de morrer, que a partir do título já se percebe uma


postura mais reflexiva, neste poema se observa uma postura mais irônica, pois o título:
“O Poeta Moribundo” é a satirização do tema da morte, do poeta que sofre de amores no
leito. Mas esta sátira só fica clara quando lemos a primeira estrofe: “Poetas! Amanhã ao
meu cadáver / Minha tripa cortai sonorosa!... / Façam dela uma corda, e cantem nela /
Os amores da vida esperançosa!”. É uma clara crítica ao sentimentalismo excessivo dos

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Candido, Antonio. In: Coleção melhores poemas, Álvares de Azevedo. São Paulo: Global Editora, 2008.
Pag. 49
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poetas românticos. Neste trecho, o autor quebra com o tom sério e melancólico do
romantismo satirizando o sofrimento amoroso dos poetas ao pedir para que cortem sua
tripa e a usem como corda para cantar “Os amores da vida esperançosa!”.

O poeta se utiliza de várias comparações para desconstruir as belas imagens que


representam o romantismo, como na quarta estrofe, quando compara o cisne, animal
belo e majestoso que se enternecia de amores, com um marreco piando na agonia da
morte pelas mãos da cozinheira. Também satiriza a imagem da morte, quando, na quinta
estrofe, chama a “morte” de “lazarenta e desdentada”, convencendo-se de que não
precisa aceitá-la tão passivamente como o fazem os poetas românticos. Esta reflexão se
dá no terceiro verso: “Que noiva!... E devo então dormir com ela?...”. Aqui temos um
alto nível de titanismo, pois, além do autor demonstrar uma visão altamente racional da
temática romântica, ainda a satiriza, utilizando-se de comparações e do humor: “Se ela
ao menos dormisse mascarada!” (4º verso da 5ª estrofe).

A partir da sexta estrofe, o sujeito-poético negará a vida casta e pura em


detrimento da boemia, pois não vale à pena sofrer por causa de um único amor: “Que
ruínas! Que amor petrificado!”, mesmo que isto o leve ao paraíso, pois lá só há velhas
senhoras. As verdadeiras beldades estão no inferno, assim como aparece nos dois
primeiros versos da 8ª estrofe: “No inferno estão suavíssimas belezas, / Cléopatras,
Helenas, Eleonoras;”. O Céu é o lugar dos tolos, pois as boas companhias, “Amigos de
no vinho ter consolos,”, “Foram com Satanás fazer colônia,”. Termina na 10ª estrofe
chamando os poetas sentimentais de preguiçosos: “Que no altar sacrifica ao Deus-
Preguiça,”, que apenas ficam se lamentando, cantando ladainhas eternamente. É uma
crítica à futilidade do ultra-romantismo, ao sentimentalismo extremo que faz os poetas
sofrerem de amor e cultuar a morte; é a negação da idealização da mulher, do amor
platônico e casto através de um pensamento racional e irônico da realidade; é o poeta
titânico exercendo seu direito de rebeldia.

Ao compararmos a construção do poeta titânico nos dois poemas analisados,


podemos perceber que em ambos os poemas, a reflexão e a metalinguagem estão muito
presentes, das quais o poeta se utiliza para redefinir sua obra, porém, o primeiro poema,
Lembrança de morrer, visto que é o último de um conjunto de poemas sentimentais e
melancólicos, ainda é impregnado por um tom mais sério e triste, mas já apresenta uma
forte carga racional. O poeta fala sobre o seu próprio fazer poético e, estando no meio
de uma transição, está abrindo mão dos costumes puramente sentimentais do Ultra-
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Romantismo e iniciando uma nova fase estético/temática de sua obra poética, mais
voltada para a sátira, a metalinguagem e o racional do titanismo. Já no segundo poema,
O Poeta Moribundo, esta transição de um estilo para o outro está completa, portanto, a
ironia e a reflexão dividem lugar com o sentimental e o melancólico, sendo assim, o tom
irônico é profundamente maior. O poeta faz claramente uma sátira com as temáticas
românticas, tomando-as como meros clichês, assim desconstruindo o valor sentimental
e melancólico característicos do Mal-do-século através de uma visão altamente reflexiva
da vida, descrendo completamente das ilusões do universo ultra-romântico.

Assim como não poderia ser diferente de quaisquer outros poemas de Álvares de
Azevedo, Lembrança de morrer e O Poeta Moribundo são exemplos perfeitos para
demonstrar a grande genialidade de seu autor, poeta que se destacou durante o
movimento romântico como um dos mais inventivos e originais, e que soube como nem
um outro mesclar o sentimentalismo e a melancolia do romantismo com a ironia e a
reflexão do titanismo, através de sua extraordinária binomia.

Bibliografia
Candido, Antonio. In: Coleção melhores poemas - Álvares de Azevedo. São Paulo:
Global Editora, 2008.

Aguiar e Silva, Vitor Manuel de. “Rococó, Pré-Romantismo e Romantismo”. In: Teoria
da Literatura. São Paulo: Martins Fontes.

Pereira, Danglei de Castro. “Lembrança de morrer e o Guesa: Diálogos”. In: Terra roxa
e outras terras – Revista de Estudos Literários (Volume 10). Londrina: Universidade
Estadual de Londrina, 2007.

Revista eletrônica baixada da seguinte homepage: www.uel.br/pos/letras/terraroxa

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