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Resumo:
À partir do início do período das Grandes Navegações (sec. XV - XVII), muitas nações
europeias estabeleceram seu primeiro contato com a China. Entre as nações que se
dedicaram a estudar este país asiático e formaram importantes estudiosos que
publicaram traduções, artigos, críticas e ensaios sobre a cultura chinesa, pensa-se na
França, na Inglaterra, na Alemanha, mas não comumente em Portugal, que, de fato, foi
a primeira nação europeia a estabelecer relações comerciais e culturais com o império
chinês na época dos descobrimentos. Sendo o primeiro país ocidental a entrar em
contato com a China no período, a ocupar e administrar uma pequena parte de seu
território, especificamente Macau, e a primeira nação a estabelecer uma
comercialização entre a Europa e o Extremo Oriente, Portugal tem uma história antiga
de relação com a cultura chinesa. Entretanto, apesar dessa relação tão antiga, a
sinologia não foi um campo tão explorado pelo governo português em Macau, tendo
poucos estudiosos e obras sobre o assunto. O presente artigo tem como objetivo traçar
uma linha histórica a fim de mostrar o desenvolvimento e a importância da sinologia
portuguesa em Macau desde seu princípio até os dias atuais.
Abstract:
From the beginning of the period of the Great Navigations (15th - 17th century)
onwards, many European nations established their first contact with China. Among the
nations that dedicated themselves to studying this Asian country and formed important
scholars who published translations, articles, criticisms and essays about Chinese
culture, many people think of France, England, Germany, but not commonly Portugal,
which, in fact, was the first European nation to establish commercial and cultural
relations with the Chinese empire at the time of the discoveries. Being the first western
country to come into contact with China in the period, to occupy and administer a small
part of its territory, specifically Macau, and the first nation to establish a trade between
Europe and the Far East, Portugal has an ancient history of relationship with Chinese
culture. However, despite such an ancient relationship, sinology was not a field
explored by the Portuguese government in Macau, with few scholars and works on the
subject. This article aims to trace a historical line in order to show the development and
importance of Portuguese sinology in Macau from its beginnings to the present day.
O que é Sinologia?
O estudo sobre a China pelo ocidente começou a partir do período das Grandes
Navegações, quando diversas nações europeias tiveram o primeiro contato com o
1
Império Chinês. Com estes contatos iniciais, percebeu-se o quanto o pensamento, a
ciência, a cultura em geral deste povo eram diferentes do mundo europeu. Tal fato fez
com que um estudo focado em pesquisar e aprender sobre esta cultura surgisse, o que
viria a ser chamado de sinologia, nome sem data precisa de criação, mas que passou a
ser utilizado primeiramente pelos jesuítas que missionavam na China no começo do
século XVI. Apesar de possuir em sua composição a expressão logia, normalmente
utilizada em nomes de áreas científicas, como biologia - estudo da vida, astrologia -
estudo dos astros, a sinologia, seguindo a mesma lógica, estudo da China, não pode ser
considerada estritamente uma ciência, visto que a civilização chinesa não é, como
objeto de análise, completamente diferente de qualquer outra sociedade para que se
justifique a criação de uma área científica com o único propósito de estudá-la. (Kuipjer,
2000, apud Bueno, 2007, p. 4) Entretanto, essa sociedade oriental apresenta uma
amálgama de conceitos muito distintos dos ocidentais em relação às diversas áreas do
conhecimento, o que pode, sim, acentuar a importância de um estudo voltado para o
entendimento destes conceitos. Portanto, de um modo geral, a sinologia pode ser
considerada como o estudo acerca da civilização chinesa, que a princípio, restringia-se
ao estudo das línguas chinesas, mas com o passar do tempo, o termo também passou a
designar o estudo de diversos assuntos relacionados à civilização chinesa, como
história, pensamento, arte, religião e ciência. Por este fato, atualmente os estudos
sinológicos costumam ser divididos nestas áreas. Não obstante, o estudo do idioma ou
idiomas chineses ainda é comumente considerado como pilar principal da sinologia,
pois é o que possibilita ao sinólogo tanto um acesso direto à cultura chinesa quanto às
fontes primárias da área que se pretende estudar.
É neste contexto, com a missão dada a eles pela Companhia de Jesus de difundir a
fé cristã ao redor do mundo, que os jesuítas portugueses chegaram ao Império Chinês,
tornando-se os primeiros europeus a estabelecer relações com a civilização chinesa e a
construir o que viria a ser a primeira universidade ocidental no extremo oriente e sede
para a preparação das missões jesuítas da China e do Japão, o Colégio Universitário de
São Paulo. Este assunto será melhor tratado mais adiante.
Para se atingir este fim, era estritamente necessário o aprendizado tanto do idioma
quanto dos costumes dos povos alvos das missões, e tal fato tornou esses religiosos
grandes estudiosos e divulgadores das línguas e culturas que estudavam, não sendo raras
as vezes que esses missionários se apegavam tanto aos povos, objetos de seus estudos,
que houve ocasiões de clara parcialidade por parte deles a favor dos mesmos. No caso
4
da China, foi o jesuíta Alessandro Valignano quem primeiro percebeu a importância de
se estudar a língua e os costumes chineses, e foi graças à sua intervenção que os padres
italianos Michele Ruggieri e Matteo Ricci, este último, sendo considerado o maior
exemplo de sucesso de encontro e trocas culturais entre China e ocidente, foram
enviados a Macau. Ricci é responsável por um genuíno caso de parcialidade a favor dos
nativos, pois contrariando outras ordens religiosas católicas, era a favor dos chineses
convertidos ao cristianismo manterem seu costume de rito aos antepassados3.
3
Rito aos antepassados é um conjunto complexo de rituais de reverência aos ancestrais muito divulgado
pelo pensador chinês 孔 子 Kǒngzǐ, ou Confúcio, na versão latinizada. Esta questão ficou conhecida
como controvérsia dos ritos na China, e foi uma disputa sobre a aceitação ou não deste rito ser mantido
pelos chineses catequizados, pois havia uma discussão se tal prática constituía ou não formas de idolatria
e superstição. Os jesuítas, a começar por Matteo Ricci, eram a favor dos chineses convertidos manterem a
prática do rito, enquanto que outras ordens religiosas, como os dominicanos, eram contra, alegando que a
prática era incompatível com o catolicismo. Para mais informações sobre este assunto, ver: Araújo,
Horácio Peixoto de (1998). “Capítulo III: A Questão dos Ritos Chineses”. Os Jesuítas no Império da
China: O Primeiro Século (1582-1680). Macau: Instituto Português do Oriente.
4
Terceiro menor estado da Malásia.
5
aprendizado do idioma ou mesmo um entendimento maior sobre os costumes chineses.
Sobre este fato, Rui Manuel de Loureiro, em seu artigo Primórdios da Sinologia
Europeia, esclarece que: “A perspectiva dominante nesta aproximação, entretanto,
continuava a ser redutível aos interesses de ordem económica, que se desenvolviam com
o auxílio de intermediários chineses”. (Loureiro, 2002, p. 7) Mas o contínuo contato
com este império asiático até o início da segunda metade do século XVI gerou uma
série de notícias e documentos inéditos sobre os costumes e a sociedade daquele povo
que, embora ainda não pudessem ser considerados conhecimentos estritamente
sinológicos, foram de grande ajuda para um melhor entendimento da cultura chinesa por
parte dos portugueses, assim como exemplifica os relatos de Manuel de Chaves, Galiote
Pereira e Amaro Pereira sobre seus encontros com o mundo sínico, que apesar de não
haver conhecimentos significativos sobre a língua, possuíam uma riqueza de detalhes
quanto aos costumes locais.
6
O segundo andamento no conhecimento português e europeu sobre a
Ásia dá-se entre cerca de 1511 e cerca de 1545. Esta segunda fase
desenvolve a acumulação de conhecimentos pontuais e imediatos, graças,
sobretudo, à frequência das cartas-relatório oficiais produzidas pelos
quadros burocráticos do Estado da Índia. (Barreto, 1998, p. 278)
5
Expressão utilizada para se referir a portugueses que viviam em território asiático e que, por isso,
compreendiam melhor a cultura local.
6
Mestiços de povos da Ásia com os portugueses.
7
primeiro texto europeu impresso que faz um claro elogio à cultura chinesa e à
importância de sua literatura e história antigas. (Barreto, 1998, p. 283)
Com estes contatos diretos cada vez mais frequentes, o que culminou em um maior
convívio entre portugueses e chineses, é errôneo pensarmos que os portugueses não
conseguiam se comunicar com seus parceiros comerciais asiáticos. O que aconteceu é
que, devido ao já citado interesse estritamente econômico no começo da relação com a
China, o domínio que os comerciantes portugueses adquiriam dos dialetos chineses era
suficiente apenas para uma comunicação específica, voltada para fins econômicos, pois
para esses objetivos, um estudo de aprofundamento linguístico não parecia necessário.
De acordo com Loureiro, o único português que se tem notícia ter dominado uma certa
fluência em um dos dialetos chineses durante a primeira metade do século XVI,
provavelmente o cantonês, pois vivia na província de Cantão ( 廣 東 Guǎngdōng), foi
Vasco Calvo, que teria enviado à corte lusitana um livro chinês sobre geografia. E foi
justamente por este período que o estudo português sobre a China começou a se formar,
pois escritos de diversos tipos começaram a ser enviados da China para Portugal, onde
foram compilados e sistematizados por Fernão Lopes de Castanheda 7 e João de Barros8.
Isso possibilitou que a partir de 1551-1552 surgissem obras que apresentassem uma
síntese muito bem elaborada da China e de seus costumes. Mas enquanto Lopes de
Castanheda se limitava às informações de origem portuguesa, João de Barros, apesar de
nunca ter estado no Império Chinês, conseguia acesso às fontes originais, pois graças a
seus contatos, adquiriu livros chineses, que traduziu com a auxílio de um erudito chinês.
Foi a partir dessas compilações das notícias portuguesas sobre a China que a Europa
começou a tomar conhecimento sobre esta poderosa nação oriental.
7
Fernão Lopes de Castanheda (1502 – 1559): historiador português renascentista famoso pela obra
História do descobrimento e conquista da Índia pelos portugueses, amplamente traduzida em toda a
Europa.
8
João de Barros (1496 – 1570): considerado o primeiro grande historiador português e importante
gramático, tendo escrito a segunda obra de normalização da língua portuguesa.
8
macaense. Segundo fontes chinesas, a que comumente aparece é 1553, mas em grande
parte dos documentos portugueses, a data é 1557. Apesar das referidas datas distarem
em quatro anos, segundo o historiador chinês especialista em Macau, Dai Yixuan (Jin;
Wu, 2003, p. 73), após uma longa e minuciosa pesquisa em fontes tanto portuguesas
quanto chinesas, o especialista concluiu que 1553 teria sido o ano em que os
portugueses entraram em Macau, mas apenas a partir de 1557 é que começaram a
construir residência fixa.
Mas as dificuldades para se estabelecer uma relação com o Império Chinês não se
restringem somente a estes quatro anos de tentativa de fixação em Macau. Os anos que
os precederam também foram bastante conflituosos, o que podemos compreender
através das explicações de Fok Kai Cheong, em seu texto The Macao Formula: The Key
to Four Hundred Years of Successful Interactions Between China and The West, onde
esclarece que o contato do Império Ming9 com nações estrangeiras costumava acontecer
com territórios vizinhos, como Malásia, Japão e Indonésia. Este contato era baseado em
um sistema de tributos, no qual os governantes destes territórios vizinhos eram vassalos
e enviavam presentes ao imperador chinês, que retribuía com outros presentes ou
vantagens comerciais. O Império Chinês só realizava comércio com estes territórios
vassalos, pois eles se submetiam a seguir as regras estabelecidas pelo governo Ming.
Mas os portugueses, sendo estrangeiros de terras longínquas, não se encaixavam nesta
categoria. Além do mais, a impressão que os chineses tinham dos portugueses era, para
dizer o mínimo, desfavorável, pois eram considerados de aparência estranha e grotesca,
chegando mesmo a serem confundidos com uma espécie de duendes canibais do
folclore chinês que se disfarçavam de humanos. Havia mesmo relatos de que os
portugueses gostavam especialmente de comer crianças. (Fok, 2011, p. 41)
Esta imagem negativa dos portugueses por parte dos chineses dificultou bastante o
começo das relações entre as duas nações. Mas uma característica que viria a se mostrar
vantajosa pouco depois foi sua estratégia militar, que chegou aos ouvidos do Império
Chinês através da Malásia, onde os portugueses já tinham estabelecido residência fixa e
um grande controle comercial. A frota naval portuguesa chegou a mostrar o seu poderio
bélico em duas ocasiões de confronto com as frotas navais do Império Ming em 1521 e
1522.
9
A Dinastia Ming governou a China entre os anos de 1368 e 1644, depois da queda da dinastia Mongol.
9
A partir de 1550, o problema com os Wo-k’ou, ou piratas japoneses, intensificou-
se, atrapalhando o comércio com o Japão e ao mesmo tempo fazendo com que o
Império Chinês repensasse sua estratégia de defesa litorânea na costa sul. Por causa
desta situação, e aproveitando o grande interesse que os portugueses tinham em fazer
negócios, bem como seu poder bélico, trocas comerciais entre estas duas nações
finalmente foram permitidas, e posteriormente, a fixação dos portugueses em Macau.
Isto aconteceu apenas devido à mudança estratégica ocorrida no final da dinastia Ming,
assim como descreve Fok: “[…] a policy was gradually but finally shaped to
accommodate two realities: that foreign maritime trade was profitable, and that practical
considerations for effective coastal defense were essential”. (Fok, 2011, p. 43), mas
enfatiza que: “In economic terms, policy was formulated in response primarily to local
needs and, secondarily, to imperial needs”. (Ibidem), ou seja, segundo Fok, a principal
preocupação do Império Chinês era com a defesa de Macau. Talvez por conta desta
preocupação, há uma versão de que os portugueses só foram permitidos a ocupar Macau
por causa de seu auxílio ao combate contra os piratas japoneses. Entretanto, a respeito
deste suposto auxílio bélico, Monica Simas, em seu livro Margens do Destino: Macau e
a literatura em língua portuguesa, aponta que:
Portanto, apesar das diferenças culturais entre China e Portugal, por causa de
circunstâncias históricas específicas para promover um ganho econômico vantajoso que
fosse compatível com a segurança imperial, uma política de pragmatismo e tolerância
entre os dois povos foi estabelecida, o que permitiu com que Portugal fosse a única
nação ocidental a ter a chave do sucesso comercial e de relação cultural com a China
por um contínuo e longo período de tempo. Esta política de tolerância responsável pelos
mais de quatro séculos de convivência entre Portugal e China foi nomeada de The
Macao Formula pelo pesquisador chinês Fok Kai Cheong. (Fok, 2011, p. 60)
Com os laços comerciais cada vez mais estreitos, a importância de um estudo mais
sistemático sobre a cultura chinesa se fez necessária. Foi então que em 1570, o
missionário dominicano português, Gaspar da Cruz, publicava o seu Tratado das cousas
da China, primeiro livro estritamente sobre assuntos chineses da Europa. O tratado foi
uma compilação muito bem elaborada e sistematizada de todas as notícias que tinham a
ver com a China disponíveis pelos navegantes portugueses até então. A obra descrevia
muito detalhadamente sobre aspectos cotidianos e culturais do povo chinês, bem como
se dava o relacionamento entre estes e os comerciantes portugueses, além de também
apresentar documentos chineses traduzidos para o português, que o autor conseguiu
adquirir na província de Cantão. Havia uma parte que até mesmo se dedicava a
descrever as características da escrita ideográfica chinesa. Pela importância que teve
essa obra não só para Portugal, mas para a Europa inteira, Loureiro chega a afirmar que
11
frei Gaspar da Cruz “[...] pode bem aspirar ao título de primeiro sinólogo português”.
(Loureiro, 2002, p. 10)
O Interesse Espanhol
O sucesso dos portugueses não demorou a virar notícia em toda a Europa, e seus
vizinhos espanhóis logo demonstraram grande interesse em obter uma fatia do bolo.
Após anos de tentativa em descobrir uma rota até o extremo oriente, em 1565 o
navegante espanhol Andrés de Urdañeta10 finalmente descobre um caminho a partir do
México até às Filipinas, e é então que o contato da Espanha com o oriente finalmente
tem início. Em pouco tempo, já controlavam o comércio no Arquipélago das Filipinas,
que tinha por base Manila11, e começavam suas tentativas de contato com o Império
Chinês.
Pouco tempo depois, Martín de Rada12, com auxílio de chineses que viviam em
Manila, além de ter traduzido diversas dessas obras, também publicou vários livros
sobre a língua chinesa, os quais se destacam Bocabulário de llengua sangleya, obra que
tratava do idioma falado pela comunidade sangleyes13 de Manila, que era o dialeto de 福
建 Fújiàn, e Arte de la lengua chincheo, também dedicado ao dialeto desta mesma
10
Andrés de Urdaneta y Cerain (1508 – 1568): militar, cosmógrafo, navegador, explorador e religioso
agostiniano espanhol, famoso por descobrir e documentar a rota através do Oceano Pacífico das Filipinas
até Acapulco, conhecida como Rota de Urdaneta.
11
Capital das Filipinas.
12
Martín de Rada (1533 – 1578): foi um dos primeiros membros da Ordem de Santo Agostinho a
evangelizar as Filipinas e também um dos primeiros missionários cristãos a visitar a China durante a
dinastia Ming.
13
Sangleye: termo arcaico utilizado nas Filipinas pelos colonizadores espanhóis para descrever e
classificar os descendentes diretos de chineses residentes naquela região.
12
província. Este importante trabalho linguístico faz de Rada um dos principais
responsáveis pelo início da sinologia ibérica. E suas contribuições não param por aí,
pois em 1581, o religioso agostinho Juan Gonzáles de Mendoza compilou extensos
materiais e manuscritos de Martín de Rada em uma enciclopédia, publicada em Roma
no ano de 1585 por encomenda do Vaticano chamada Historia del Gran Reino de la
China. Esta obra foi a enciclopédia sobre o Império Chinês mais popular do século
XVI, tendo nada menos que quarenta edições traduzidas em diferentes línguas,
tornando-se durante muitos anos o manual europeu mais completo sobre a civilização
chinesa.
Percebemos então que os primeiros estudos sobre uma língua chinesa foram feitos
pelos espanhóis nas Filipinas, e não pelos portugueses em Macau, o que pareceria mais
próprio. Entretanto, precisamos observar que este estudo era focado apenas no dialeto
principal da província de 福建 Fújiàn, além do mais, o vocabulário desenvolvido por
Martín de Rada era transliterado para o idioma espanhol, ou seja, em outras regiões
chinesas, nem a língua falada poderia ser entendida pelos nativos e nem a escrita, visto
que as transliterações fonéticas não eram acompanhadas de caracteres.
O estudo do padre Ruggieri deu frutos, e em 1584, com a ajuda do jesuíta espanhol
Pedro Gómez, é publicada uma série de textos de doutrina cristã nomeada Doutrina
Christiana, que logo ganhou uma tradução para o chinês, com o nome de Tian Zhu
Shilu (Verdadeira Exposição Sobre o Senhor do Céu). Segundo os estudos de Loureiro,
este é possivelmente o primeiro livro em caracteres chineses produzido por um europeu.
Assim se seguiu os trabalhos de Ruggieri, que com a ajuda de um chinês letrado
convertido ao catolicismo, produziu vários outros textos curtos sobre a doutrina
católica, inclusive um pequeno vocabulário latim-chinês, com as traduções das palavras
essenciais da terminologia cristã para facilitar o entendimento dos ensinamentos cristãos
aos nativos.
Foi então através dos trabalhos missionários de Michele Ruggieri e Matteo Ricci
que o estudo em Macau para fins linguísticos finalmente teve início, e graças à
percepção do padre Ricci, as missões jesuítas começaram a adotar outra forma de
estratégia de aproximação com o povo chinês. Os frutos desta mudança não tardaram a
aparecer, e logo os missionários começaram a ser considerados pela elite chinesa como
homens de letras ocidentais, e não houve vantagens apenas para a parte ocidental, pois
graças a esta mudança estratégica de abordagem catequizadora, muitos jesuítas
adentraram profundamente no estudo da cultura chinesa, passando a compreendê-la e
respeitá-la cada vez mais. Esta mudança também era claramente vista nos escritos
catequizadores em chinês feitos pela Companhia de Jesus, pois continham vasta
referência aos clássicos chineses, o que só contribuía para a aceitação do povo local. O
sucesso desta mudança estratégica foi tão fundamental para a missão catequizadora que
graças a isso, em 1601 Matteo Ricci iniciava uma residência jesuíta permanente em
Beijing, onde ele próprio chegou a se tornar o primeiro conselheiro ocidental do
imperador da China, possibilitando maior acesso ao conhecimento da cultura e ciência
chinesa, mas também divulgando e ensinando a ciência ocidental na corte imperial,
realizando assim uma importante troca cultural que se mostraria muito proveitosa tanto
para o mundo ocidental quanto para o Império Chinês.
15
Confucionismo: 儒家 Rújiā em mandarim, é uma escola de pensamento chinesa baseada nas ideias de
Confúcio ( 孔 子 Kǒngzǐ). Possui como fundamento o rito, série de regras que tem como propósito
alcançar a harmonia social.
15
Para esta parte de nosso trabalho, seguiremos, principalmente, o artigo: Os estudos
sínicos no panorama da história da educação em Portugal, de António Aresta, por ser o
texto que nos fornece mais elementos sobre a sinologia portuguesa em Macau.
16
Pastoral para não ver Actos, ou Comédias, que os Chinas fazem aos seus Pagodes..., de 18 de Maio de
1782, apud Aresta, 1997, p. 1048.
16
dos Seos ídolos; e dar-lhes os Gudoens das Gazas em que vivem para
nelles morarem onde fazem muitas Superstiçoens, e viverem com elles de
mistura nos mesmos Chalés, como também entrarem os ditos Chinas nas
Cazas de mulheres nossas, e estas nas delles; ou nas Suas Boticas e Ans se
tem posto em esquecimento as ditas Pastoraes, e há muitas transgressoens,
como me consta não sem grave sentimento pelos graves escândalos, e
pecados, e grande descuido no Serviço de Deos Nosso Senhor, que com
ellas se commettem. Pelo que querendo occorrer a alguns maos Christãos
conformando-me com as sobreditas Pastoraes, excitando-as, e pondo-as
em sua inteira observância, Ordeno, e mando debaixo das penas de prisão,
e tael e meio de condenação para o meirinho Geral, q. nenhuma mulher
Christã de menos de cincoenta annos de idade entre das portas das Boticas
dos Chinas para dentro, e que havendo de comprar alguma couza fique
para isso nas mesmas portas, e não se detenhão a falar com elles nas
Cazas, ou escadas a que elles forem sem assistência de pessoa que
prezencee o que se disser, e fizer. Idem que nenhum Christão more em
Challe de Chinas em que não haja se menos tres vizinhos Christãos. Item
que não dem Gudoens das Cazas, em que viverem para nelles morarem
Chinas gentios. Item, que nenhuma mulher Christãa conserve de portas
adentro China algum com o protexto de Atay ou outro qualquer, que passe
de doze annos de idade. Idem debaixo da condenação acima dita, e de
Excommunhão maior «latae sententiae», que nenhum Christão assista as
Festas, Autos, ou Comedias, que os Chinas fizerem em obzequio dos Seos
ídolos. E para que incorrão a dita Censura lhes assigno tres dias por cada
tres Canónicas admoestaçoens, os quaes correrão da publicação desta
adiante. Os Escravos em lugar de Censura serão prezos, e não serão soltos
athe seos Senhores pagarem a dita condemnação de tael e meio. O
Meirinho Geral terá muito cuidado de vigiar sobre a observância desta e
dar as denuncias contra os transgressores, e os parochos se informarão se
nas Suas Freguezias algumas pessoas deixam de observar o 2.° e 4.° Itens;
e dada a correcção, a que são obrigados pelos seos officios, senão fazer
effeito avizarão em Carta fechada com os nomes dos transgressores, e das
testemunhas, o q. muito lhes encarrego nas Suas Consciências; e para que
chegue a noticia de todos, e não possão allegar ignorância esta sendo
Registada, se publicará, e affixará nas Frequezias desta Dic. e no lugar
costumado.
17
Nesta carta, fica-nos clara a intolerância cultural por parte de um representante da
instituição católica portuguesa estabelecida em Macau, condenando qualquer macaense
de origem lusitana a manter contato com chineses ou mesmo de demonstrar alguma
simpatia por sua cultura, com direito à punição para qualquer um que viesse a
desobedecer esta ordem. Também percebemos um certo domínio político da igreja, uma
vez que demonstrava uma forte influência administrativa, visto que parecia ter o poder
de tratar das penalizações públicas. É certo que esta ordem vinda da pastoral não
impediu a miscigenação entre estes dois povos. O historiador chinês, Wu Zhiliang,
reforça que esta mistura acontece desde o início da fixação dos portugueses em terras
chinesas, explicando que: “Os portugueses que navegaram por esse mundo fora, da
África à Ásia, ao Brasil, habituaram-se a transferir, sem nenhuma reserva, o seu amor à
terra natal para as terras então descobertas, onde começaram a fazer vida nova.” (Wu,
1999, p. 107) Talvez a causa desta carta pastoral tenha sido exatamente esta
convivência, altamente reprovada pela igreja local. Portugal é conhecidamente um país
de forte crença católica, motivo pelo qual a igreja exerceu papéis políticos importantes
ao longo da história deste país, e esta atitude de intolerância por parte da instituição
religiosa em Macau pode ajudar a explicar o suposto desinteresse da coroa portuguesa
em estabelecer um estudo sinológico oficial.
18
O novo contexto sinológico viria a mostrar um maior interesse cultural por parte de
Portugal, pois a própria rainha enviou uma carta ao governador de Macau no ano de
1838 ordenando a construção oficial de um museu, onde deveriam ser depositados
diversos artefatos que representassem a civilização chinesa, um jardim botânico para
cultivar principalmente as plantas utilizadas pela medicina, e, por fim, uma biblioteca de
assuntos orientais, onde os missionários portugueses ficariam incumbidos de traduzir as
obras selecionadas. A corte finalmente percebeu que o estudo da ciência e cultura
poderia proporcionar tanto valiosos conhecimentos práticos em diversas áreas quanto
uma facilitação nas relações diplomáticas, pois possibilitaria um maior entendimento
sobre a sociedade chinesa por parte dos portugueses.
O responsável por esta nova abordagem sinológica foi o padre Joaquim Afonso
Gonçalves (1781-1841), que já se encontrava em Macau desde 1813. Sua contribuição
foi enorme, principalmente nas áreas da linguística e lexicografia. Suas obras são vastas
e muito importantes para o aprofundamento sinológico português: “Grammatica Latina,
Ad Usum Sinensium Juvenum (1828); Arte China, Constante de Alphabeto e
Grammatica, Comprehendendo Modelos das Differentes Composições (1829);
Diccionário Portuguez-China, no Estylo Vulgar Mandarim e Clássico Geral (1831);
Diccionário China-Portuguez, no Estylo Vulgar Mandarim e Clássico Geral (1833);
Vocabularium Latino-Sinicum, Pronuntiatione Mandarina Litteris Latinis Expressa
(1837); Lexicon Manual Latino-Sinicum, Continens Omnia Vocabula Utília et Primitiva
Etiam Scriptae Sacrae (1839); Lexicon Magnum Latino-Sinicum, Ostendens
Etymologiam, Prosodiam et Constructionem Vocabulorum (1841). Ficaram, ainda,
inéditas após a sua morte duas obras, cujos rastros se perderam: Versão do Novo
Testamento em Língua China e um Diccionário Sínico-Latino.” (Aresta, 1997, p. 1052)
Nesta nova empreitada, surge outro sinólogo português muito importante, Pedro
Nolasco da Silva (l842-1912). Assim como o padre Joaquim Afonso Gonçalves,
Nolasco se preocupava sobremaneira com a pedagogia do ensino da língua chinesa, e
isso pode ser claramente notado em várias de suas obras destinadas ao ensino, que
possuíam uma didática intuitiva e de fácil assimilação. Este estudioso e professor de
vocação tinha como um de seus intuitos o ensino da língua falada, demonstrando assim
uma maior preocupação com as relações comunicativas entre portugueses e chineses.
Algumas de suas obras que podem exemplificar esta preocupação: “Phrases Usuaes dos
Dialectos de Cantão e Peking (1884); Vocabulário e Phrases dos Dialectos de Cantão e
Peking para uso dos Alumnos da Escola Central de Macau (l889); Compilação de
Phrases Usuaes e de Diálogos nos Dialectos de Peking e de Cantão para uso dos
Alumnos da Escola Central de Macau (1894); Os Rudimentos da Lingua Chinesa para
uso dos Alumnos da Escola Central do Sexo Masculino (1895); Phrases Usuaes.
Diálogos e Formas de Conversação (1903); Bussula do Dialecto Cantonense (1911);
Bussula do Dialecto Cantonense adptado para as Escolas Portuguesas de Macau
(1912)”. (Aresta, 1997, p. 1056). Como podemos observar pelos títulos das obras,
Nolasco contribuiu muito para o estudo pedagógico linguístico, tanto do mandarim
quanto do dialeto cantonês.
20
da história e costumes de Macau. Dentre suas obras, Aresta destaca: "[...] na Linguística
e Lexicografia (Vocabulário Cantonense-Português, 1941; Vocabulário Português-
Cantonense, 1942; O Estudo de Mil Caracteres, 1944; Noções Elementares de Língua
Chinesa, 1958), nas Traduções (O Clássico Trimétrico, 1944; O Clássico da Piedade
Filial, 1944; As Quatro Obras, 1945; Ou Mun KeiLeok, 1950), na Cultura Chinesa
(Lendas Chinesas de Macau, 1941; O Sistema de Adopção na China, 1945; Contos
Chineses, 1950; Chinesices, 1952; Festividades Chinesas, 1953; Arte Chinesa, 1954)"
(Aresta, 1997, p. 1057). Gonzaga Gomes se tornou o maior nome da sinologia
portuguesa na primeira metade do século vinte, e suas obras são referências até hoje.
Alguns outros sinólogos mais ligados à cultura do que à língua chinesa também se
destacaram. Dois deles compartilham o fato de terem sido professores de Luís Gonzaga
Gomes no Liceu de Macau17: Camilo Pessanha (1867-1926), e Manuel da Silva Mendes
(1867-1931). O primeiro, reconhecidamente o maior poeta do simbolismo português,
vivia uma relação dúbia com a cultura chinesa. Por um lado, considerava os estudos
acerca deste assunto como um “[...] fútil passatempo das horas tristes em longos anos de
solidão” (Romano, 2007, p. 233), assim como escreveu na introdução de suas Oito
Elegias Chinesas, seleção de oito poemas da dinastia 明 Míng traduzidos por Pessanha,
por outro, podemos perceber a influência desta mesma cultura em sua genial obra
poética. O segundo, Manuel da Silva Mendes, foi um verdadeiro entusiasta da cultura
chinesa. Ávido colecionador de arte chinesa, possuía um vasto catálogo, que em sua
maioria hoje se encontra no Museu de Artes de Macau. Escreveu vários artigos
dispersos em jornais sobre diversos assuntos ligados à sinologia.
Podemos então concluir que a sinologia portuguesa em Macau não foi devidamente
estruturada, pois apesar de algumas poucas tentativas ao longo dos quase cinco séculos
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Foi uma escola secundária de língua portuguesa em Macau, criada em 1893 e abolida em 1999.
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de permanência e administração do território macaense, a coroa portuguesa nunca se
preocupou em realmente estabelecer um estudo sinológico oficial, e mesmo possuindo
alguns estudiosos geniais, grande parte de seus sinólogos não criou discipulato. Nas
palavras de António Aresta: “[...] a sinologia portuguesa tem sido uma aventura
individualista, brilhante e pioneira em muitas áreas, mas incapaz de fazer escola e
formar discípulos.” (Aresta, 1997, p. 1047). Essa falta de estruturação acabou deixando
a sinologia portuguesa para trás, se compararmos, por exemplo, com escolas sinológicas
de maior sucesso, como a francesa e a de vertente anglófona, já citadas no começo deste
artigo, todas bem fundamentadas e com sinólogos renomados. Entretanto, muitas das
obras individuais da sinologia portuguesa são trabalhos intelectuais de primeira
grandeza e merecem ser estudadas e até mesmo reeditadas.
Reference List
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Successful Interactions Between China and The West. Chinese Cities and the Outside
World: A Workshop for City, Culture and Society. URP GCOE DOCUMENT 10.
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Históricas da Presença Portuguesa em Macau. Revista de Cultura / Review of Culture
(No 8), pp. 70-111.
Romano, Maria Fernanda (2007). Camilo Pessanha: travessias entre poesia e tradução.
241 f. Dissertation (Master in Portuguese Literature) – Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brazil.
Wu, Zhiliang (1999). Segredos da Sobrevivência: História Política de Macau (1ª ed.).
Macau: Associação de Educação de Adultos de Macau.
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